View
74
Download
4
Category
Preview:
Citation preview
UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL CDS
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
SOBRE RAZES E UTOPIAS: CAMINHOS CONTEMPORNEOS DO DESENVOLVIMENTO SITUADO
Gabriela Tunes da Silva
Orientador: Roberto dos Santos Bartholo Junior.
Tese de Doutorado
Braslia-DF: Maro/ 2005
UNIVERSIDADE DE BRASLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
SOBRE RAZES E UTOPIAS: CAMINHOS CONTEMPORNEOS DO DESENVOLVIMENTO SITUADO
Gabriela Tunes da Silva
Tese de Doutorado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Doutor em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao em Poltica e Gesto Ambiental, opo Acadmica.
Aprovado por: _____________________________________ Roberto dos Santos Bartholo Junior, Doutor, UnB (Orientador) _____________________________________ Marcel Bursztyn, Dr., UnB (Examinador Interno) _____________________________________ Laura Duarte, Dr., UnB (Examinador Interno) _____________________________________ Mauricio Csar Delamaro, Dr., UNESP (Examinador Externo) _____________________________________ Carlos Renato Motta, Dr., UFRJ (Examinador Externo) Braslia-DF, 29 de Maro de 2005.
SILVA, GABRIELA TUNES DA
Sobre Razes e Utopias: Caminhos Contemporneos do Desenvolvimento Situado, 187 p., (UnB-CDS, Doutor, Poltica e Gesto Ambiental, 2005).
Tese de Doutorado Universidade de Braslia. Centro de Desenvolvimento Sustentvel.
1. tica 2. Desenvolvimento Sustentvel
3. Modernidade 4. Cincia
I. UnB-CDS II. Ttulo (srie)
concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias desta tese e emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.
________________________ Gabriela Tunes da Silva
Todo dia ser um dia de paz Para quem vive a verdade
(Cazuza)
Agradecimentos Ao orientador, Roberto Bartholo, mestre conhecedor dos livros e da vida, pela presena-palavra. minha me, Beth Tunes, por todas as leituras, pelas discusses, por acompanhar a tese em todos os detalhes, pela cumplicidade, por todo o amor, por ser uma grande amiga e uma grande mulher. Ao meu pai, Bob Silva, por toda a ajuda, pelo incentivo, pelas leituras, pelo amor, pelo cuidado de pai, por ser um homem incrvel. A Marcel Bursztyn, Maurcio Delamaro, Laura Duarte e Carlos Renato Motta, pelas crticas e sugestes e pelo apoio. Larissa e Janine, pelas tradues. Ao professor Antnio Csar Brasil Jnior, pela acolhida no momento da chegada ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel. Aos colegas do CDS, pelos estudos em grupo, pelas discusses em disciplinas, pelas conversas em corredores, pelas sadas aos botecos. Norma, ao Antnio, Shirleide, Ana Paula, ao William, pelo bom humor, pela simpatia e pela disposio em ajudar sempre. Ao Tiago, o filho, por cada sorriso, pela alegria, por me reservar uma surpresa por dia e por ser o sentido maior de minha vida. Ao companheiro, Ivaldo, pelas leituras, pela fora, pelo amor e carinho, e pelas palavras doces nos momentos certos. A todos os meus amigos, por se importarem comigo, por torcerem por mim, por compartilharem comigo a aventura de possibilidades surpreendentes que a vida.
Resumo A cincia contempornea exime-se de julgamentos ticos oriundos de modos de saber alheios a ela prpria. Seus critrios ligados ao utilitarismo, capacidade explicativa e sucesso preditivo tornam-se os seus prprios juzes. Cria-se, ento, um vcuo tico onde um mal absoluto, a destruio da humanidade, no encontra barreiras para estabelecer-se como inevitvel. Neste trabalho, examinam-se algumas das transformaes que vm ocorrendo no sistema de produo de conhecimentos cientficos, analisando-se a tendncia contempornea ao desenraizamento da cincia. Ao desenraizar-se, tal conhecimento tende a se converter em uma cega espiral cumulativa de poderes, que pode desencadear a destruio da humanidade pelas mos do prprio homem, quer por promover a degradao ambiental, quer por possibilitar a desumanizao do ser humano. Procura-se demonstrar que o enraizamento da cincia requer o resgate do princpio dialgico, de que nos fala Martin Buber. Discute-se uma implicao importante da vigncia do princpio dialgico para o Brasil e para a Amrica Latina, que consiste na tomada de autonomia e superao da dependncia, que historicamente marca suas realidades, a partir da assuno de suas prprias realidade, identidade e histria. Desse modo, questiona-se a validade da adoo de modelos de desenvolvimento exgenos, como o de desenvolvimento sustentvel, cujo discurso foi formulado a partir da vivncia de uma realidade distinta da que nos prpria. Conclui-se sobre a necessidade da transmutao antropofgica do desenvolvimento sustentvel em um modo de desenvolvimento que respeite a diversidade de povos e culturas. Abstract Contemporary science exempts itself form ethical judgements provenient from other kinds of knowledge. Its criteria, based on utilitarism, explanative capacity and predictive success became its own judges. That takes to the creation of an ethical vacuum, where an absolute evil, the destruction of humanity, does not find any obstacles on its way to establish itself as something unavable. In this work, some of the transformations that have been occurring in the scientific knowledge production system are examined, by analyzing the contemporary tendency to the uprooting of science. When it uproots, such knowledge tends to convert itself into a blind power cumulative spiral, which can cause the destruction of humanity by mens own hands. That can be done either by promoting environmental degradation or by making possible the inhumanization of human beings. This work aims to demonstrate that uprootedness science needs the rescue of the dialogical principal, proposed by Martin Buber. An important implication of the vigency of the dialogical principle for Brazil and for Latin America is discussed. Such implication consists in aquiring autonomy and superating the dependence that, historically, is part of these countries realities, through the assumption of their own realities, identities and histories.
1
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 2
1. TRS CAMINHOS PARA A SERVIDO ...................................................................... 18
1.1. Apologias do Moinho Satnico .....................................................................................18
1.2. A globalizao imperial.................................................................................................28
2. ...AINDA NOS CAMINHOS DA SERVIDO ................................................................ 39
2.1. A Reedio do Moinho Satnico ...................................................................................39
2.2. A verso nova de uma velha histria.............................................................................47
2.3. Sobre a religio do progresso ........................................................................................58
2.4. Como ela pode ter algum poder sobre ns, seno por ns?...........................................69
3. UCRONIA: SOBRE O TEMPO DA VIDA VIVIDA E ALGUNS DILEMAS TICOS
CONTEMPORNEOS.......................................................................................................... 76
3.1. Essa necessidade de to difcil definio.......................................................................76
3.2. Sobre a gravidade do presente .......................................................................................77
3.3. Sobre a posse do passado...............................................................................................84
3.4. Sobre o desenraizamento tecnocientfico ......................................................................91
4. O MUNDO QUE NOS FALA.......................................................................................... 109
4.1. Sobre a linguagem .......................................................................................................109
4.2. Sobre o conhecimento e a verdade ..............................................................................111
4.3. Sobre o indivduo, a pessoa e a liberdade....................................................................113
4.4. Implicaes..................................................................................................................119
5. RAZES E UTOPIAS....................................................................................................... 125
5.1. Civilizao e barbrie ..................................................................................................125
5.2. Barbrie latino-americana............................................................................................127
5.3. Os projetos para a Amrica Latina ..............................................................................129
5.4. Consideraes sobre a histria e a realidade brasileiras..............................................144
5.5. O projeto assuntivo no Brasil ......................................................................................159
5.6. Essa estranha filosofia latino-americana .....................................................................165
CONCLUSO....................................................................................................................... 176
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 183
2
INTRODUO
Em meio novidade que representa o discurso do desenvolvimento sustentvel, e
considerando seus alertas em relao a uma iminente catstrofe ambiental e as possibilidades
que abre para uma existncia da humanidade no planeta mais longa, mais justa e mais
harmoniosa, e, considerando, ainda, o lugar concedido aos pases ditos subdesenvolvidos nos
novos modelos de desenvolvimento, que se desenham a partir desse discurso, alguns
questionamentos se levantam. Tais questionamentos no representam novidades absolutas, e,
caso se demonstrem pertinentes, iro tambm demonstrar que a novidade do desenvolvimento
sustentvel no to nova assim, pelo menos para esses pases subdesenvolvidos. De fato, as
questes a serem colocadas podem ser consideradas atualizaes de uma questo que desde a
colonizao paira nos ares da Amrica Latina e do Brasil.
Eis a principal questo: no seria o desenvolvimento sustentvel apenas outro modelo
de desenvolvimento exgeno, que representa a soluo para problemas que no so nossos, e
que nos imposto por aqueles que nos dominam? Seguir a cartilha do desenvolvimento
sustentvel no seria, portanto, incorrer no mesmo repetido erro histrico de adotar como
espelho algo alheio nossa prpria realidade, tentando igualar-se a esse modelo, para
posteriormente constatar que as tentativas fracassaram, simplesmente porque uma cpia no
pode nunca igualar-se ao original? Mesmo considerando que o discurso do desenvolvimento
sustentvel aponta para a conservao da diversidade de formas de vida e de culturas, para a
necessidade de eliminao da pobreza e para outros elementos que realmente so parte de
nossa realidade brasileira, perguntamo-nos: quem profere esse discurso? No estavam os
jesutas e portugueses preocupados com a situao dos indgenas quando decidiram por mudar
sua cultura, catequizando-os? Ser que, ao assumirmos o discurso do desenvolvimento
sustentvel e ao tentarmos nos adequar s suas proposies, no estaramos nos deixando
catequizar como dceis ndios que acreditam que a civilizao nos salvar?
Sem dvida, essa forte questo no nova. As reaes a ela igualmente no o so. Ela
pode suscitar um repdio a tudo o que externo nossa realidade e nossa cultura, buscando
o isolamento total. Essa busca, contudo, resulta intil, principalmente na contemporaneidade,
em que a comunicao planetria um fato irreversvel. possvel, porm, que um discurso
exgeno seja assimilado, no prontamente aceito, mas alterado, modificado, enfim, convertido
em outro, do qual se pode dizer realmente que reflete uma outra realidade, diferente da
3
realidade que inspirou o discurso original. Essa resposta ao discurso do desenvolvimento
sustentvel no somente vivel; , sobretudo, necessria. nossa principal tarefa, dos
subdesenvolvidos, diante do problema ambiental global. Antes de termos responsabilidades
de conservar as florestas tropicais, manter os estoques de gua doce do planeta, eliminar a
pobreza que causa degradao ambiental, preservar os conhecimentos tradicionais associados
ao uso da biodiversidade, entre tantas outras questes colocadas pelo discurso do
desenvolvimento sustentvel, nossa responsabilidade primordial formular um discurso de
anlise e enfrentamento dos problemas contemporneos que seja genuinamente nosso.
interessante notar que essa questo, embora extremamente simples, evidencia um
paradoxo no discurso do desenvolvimento sustentvel, caso seja prontamente adotado pelos
pases subdesenvolvidos. Conforme aponta Sachs (1993), o desenvolvimento sustentvel
requer que os pases do Sul no copiem o modelo de desenvolvimento industrial, predatrio e
competitivo dos pases do Norte; todavia, indica uma srie de questes que devem ser
consideradas no planejamento do desenvolvimento desses pases, como mitigao do efeito
estufa e desenvolvimento de tecnologias sustentveis, entre outros. Ora, a situao de pobreza
e degradao que atinge tais pases foi gerada e mantida principalmente pela situao de
dependncia em relao s potncias hegemnicas. Criar um modelo de desenvolvimento e
sugerir que esses pases o adotem no seria um modo de prorrogar essa dependncia? Ser
que a sustentabilidade prometida pelo discurso do desenvolvimento sustentvel no requer
que cada pas, cada povo, cada localidade, possua autonomia, ou auto-sustentabilidade?
possvel um pas alcanar a sustentabilidade quando depende da importao de modelos,
conhecimentos e solues para seus problemas?
Esse trabalho um esforo no sentido de contribuir para essa discusso. Busca
fornecer elementos para que se pense na necessidade de ns, brasileiros e latino-americanos,
formularmos uma proposta de desenvolvimento que esteja ancorada em nossa realidade
concreta e vivida. Aponta-se para a necessidade de situar nosso pensamento, torn-lo
enraizado na realidade que nos prpria; do mesmo modo, deve ser situada a filosofia e a
cincia produzidas em nossas terras. Dessa filosofia, desse modo de produzir cincia, situados
e autnticos, poder emergir a proposta de um desenvolvimento situado, emanado de uma
determinada realidade e voltado para ela. Ser situado a condio para a sustentabilidade do
nosso desenvolvimento. Um discurso do desenvolvimento situado uma das respostas
possveis dos pases subdesenvolvidos ao discurso da sustentabilidade, formulado pelos pases
desenvolvidos e trazido a ns como a nova verdade redentora. um modo de erguer-se contra
4
a dependncia, afirmando nossa capacidade de produzir os discursos que iro guiar nossa
ao.
Embora o discurso do desenvolvimento sustentvel tenha uma origem essencialmente
poltica (McCormick, 1992), ao longo de sua construo incorporou proposies, hipteses e
dados cientficos. Sendo assim, pode-se dizer que se trata de um discurso poltico-acadmico.
Embora tenha uma enorme importncia poltica, tem um carter cientfico. Sua cientificidade
, inclusive, condio para sua legitimidade. Sendo assim, a anlise dos discursos cientficos e
acadmicos em geral, assim como de todo o sistema de produo tecnocientfica, ir nos
fornecer subsdios para a formulao de um novo discurso de desenvolvimento, que atenda ao
quesito da sustentabilidade, mas que afirme as nossas necessidades, as nossas prioridades, o
nosso estilo de vida.
Nesse trabalho, analisado o sistema de produo de conhecimentos cientficos,
visando a apontar para a necessidade de enraizamento da cincia. Tem como objetivo estudar
algumas das transformaes que vm ocorrendo no sistema de produo de conhecimentos
cientficos, e analisar a tendncia contempornea ao desenraizamento da cincia. Ao
desenraizar-se, tal conhecimento tende a se converter em uma cega espiral cumulativa de
poderes, que pode desencadear a destruio da humanidade pelas mos do prprio homem,
quer por promover a degradao ambiental, quer por possibilitar a desumanizao do ser
humano. Ancorada na idia de que pode ser a base de um progresso eticamente neutro, a
cincia contempornea exime-se de julgamentos ticos oriundos de modos de saber alheios a
ela prpria, e seus critrios ligados ao utilitarismo, capacidade explicativa e sucesso preditivo
tornam-se os seus prprios juzes. Cria-se, ento, um vcuo tico onde um mal absoluto, a
destruio da humanidade, no encontra barreiras para estabelecer-se como inevitvel.
A justificativa do trabalho refere-se, primeiramente, importncia e atualidade do
tema. Em segundo lugar, refere-se ao interesse pessoal da autora, despertado por dois
encontros: o primeiro deles, com o professor e orientador Roberto Bartholo, que foi o
responsvel pelo segundo encontro, com o pensamento de Martin Buber. A perspectiva
buberiana evidencia as inconsistncias e a insensatez do pensamento e da civilizao
ocidental com tamanha clareza que se torna impossvel permanecer inerte a ela. Por isso,
fornece tambm fortes argumentos para anlises e crticas. A terceira justificativa, que est
ligada segunda, sem dvida a mais importante, pois se refere ao fato de a autora do
trabalho estar profundamente convencida da Verdade do pensamento de Martin Buber, da
5
Verdade das palavras e dos ensinamentos do professor Roberto Bartholo e, portanto, da
Verdade de seu prprio trabalho. Por fim, a ltima justificativa reside na constatao da
existncia de inmeros outros autores que apontam na mesma direo de Martin Buber, e na
possibilidade de articular suas idias em um nico trabalho.
O trabalho compe-se de uma srie de cinco ensaios ou artigos, que, embora
independentes, articulam-se entre si. No primeiro ensaio, analisamos o contexto do
surgimento da sociedade capitalista industrial, e a criao das trs mercadorias fictcias:
trabalho, terra e dinheiro, apontada por Polanyi (2000), como fundamental para o
estabelecimento de uma sociedade de mercado. O segundo ensaio trata da criao da quarta
mercadoria fictcia, o conhecimento. O terceiro ensaio discute uma conseqncia da
mercantilizao do conhecimento, o desenraizamento da cincia. No quarto ensaio,
apontamos para a necessidade de re-enraizamento da cincia. No quinto ensaio so discutidas
as possibilidades e impossibilidades do enraizamento da cincia e da filosofia no Brasil e na
Amrica Latina.
O primeiro ensaio centra-se nas anlises de Karl Polanyi (2000) acerca da
transformao que marcou o surgimento da sociedade capitalista de mercado. Polanyi (2000)
afirma que, na ocasio da Revoluo Industrial, a sociedade inglesa passou por uma
transformao radical, cuja essncia foi uma inverso: o mercado, que antes se encontrava
imerso na vida social e era por ela regulado, passou posio de regulador da sociedade. Essa
transformao marcou a emergncia da sociedade industrial capitalista, e mudou a ndole e as
necessidades humanas. Polanyi (2000) aponta para um aspecto dessa Grande Transformao
que pouco abordado nas anlises sociolgicas e historiogrficas da Revoluo Industrial: a
desestruturao do modo de vida das pessoas comuns, que gerou verdadeiras desgraas para
suas vidas. Polanyi (2000) afirma que um ajuste legal foi crucial para que fosse possvel o
estabelecimento de uma sociedade industrial de mercado, que tratava da criao das trs
mercadorias fictcias trabalho, terra e dinheiro. O Estado ingls elaborou leis que convertiam
esses trs elementos em mercadorias porque, para que uma sociedade de mercado funcione,
preciso que todo o tecido social opere segundo as leis do mercado. Sendo o trabalho, a terra e
o dinheiro elementos importantes para uma sociedade, eles tm que estar submetidos lgica
mercantil, para que essa sociedade seja de fato uma sociedade de mercado.
A converso da terra em mercadoria teve por conseqncia a expulso dos
camponeses das terras onde viviam, e de onde retiravam sua subsistncia. Juntamente com
6
isso e com o surgimento das fbricas, as pessoas comuns foram foradas a vender sua fora de
trabalho para conseguir sobreviver nas novas cidades industriais que se formavam. Geraes
foram submetidas s piores condies de vida e trabalho, em jornadas desumanas e habitando
em cidades sem higiene e infra-estrutura para suportar o nmero crescente de habitantes.
Padeciam com doenas, fome, solido e desespero. Os laos familiares e convivenciais, que
eram antes a base do trabalho, da produo e da vida social em geral, foram eliminados, e as
relaes entre pessoas passaram a ser mediadas pelo dinheiro. Polanyi (2000) afirma que o
mercado foi o moinho satnico que destruiu os homens, convertendo-os em massa. Questiona
se as benesses trazidas pelo progresso tcnico representado pela Revoluo Industrial foram
maiores do que o mal que gerou na vida das pessoas comuns. Afirma que no se poderia
destruir a vida de uma pessoa sequer em nome do progresso, ou em nome de uma promessa
para o futuro.
Polanyi (2000) critica duramente o iderio liberal, que afirma que o mercado uma
instituio auto-regulvel, e que foi o suporte ideolgico da Grande Transformao. Por isso,
Polanyi transformou-se em um grande inimigo ideolgico do liberalismo. O primeiro ensaio
desse trabalho faz referncia a Frederich Hayek, um dos principais pensadores liberais. Em
O Caminho para a Servido, Hayek (1990) critica o socialismo cientfico, argumentando
que a centralizao de poder por ele gerado torna-o semelhante aos sistemas totalitrios, como
nazismo e facismo. Nesse trabalho, procura-se demonstrar que os elementos que Hayek
(1990) afirma serem constitutivos dos sistemas totalitrios esto presentes nos Estados Unidos
da Amrica, a grande potncia liberal. Assim, fica patente a falha na argumentao de Hayek
(1990), que, considerando que o socialismo cientfico gera escravido e servido, afirma que a
melhor e nica alternativa de organizao social o liberalismo econmico. Alm da falha
argumentativa, Hayek (1990) incorre em outro erro, que consiste em negligenciar as crticas
ao socialismo cientfico elaboradas por pensadores anarquistas. Tais autores (como
Kropotkin, Landauer, Proudhon, Tolstoi, entre outros) vislumbravam os problemas gerados
pela forte centralizao de poder presente no socialismo cientfico. Todavia, no apontavam o
liberalismo como alternativa, e o criticavam tambm. Propunham outras formas de
organizao da sociedade, baseadas em livres associaes e no princpio federalista. Hayek
(1990) desconsidera o pensamento desses autores, dado que seus argumentos contra o
liberalismo iriam de encontro s idias presentes em O Caminho para a Servido.
Procura-se, no ensaio, demonstrar que, no importando qual instituio seja a
reguladora da sociedade, mercado, Estado ou qualquer outra, a origem da servido e da
7
opresso est em subordinar a vida das pessoas a essas instituies. Para tanto, so utilizadas
como apoios argumentativos as idias de Noam Chomsky (2003), Istvn Meszros (2002) e
Fredric Jameson (2001). Evidencia-se a atualidade do pensamento de Karl Polanyi, que
enxergava os problemas do socialismo cientfico e do liberalismo econmico desde a
perspectiva da vida concreta das pessoas comuns. Enfatiza-se a necessidade de re-encaixe do
mercado na vida social, e de retomada da autonomia das pessoas comuns em conduzirem suas
prprias vidas. Aponta-se para o fato de que a adoo de modelos prontos de organizao
social tem enorme potencial para gerar opresso, e que o remdio para esse mal se encontra
em possibilitar que a vida social seja organicamente estruturada, de acordo com os anseios, o
pensamento e a vida daqueles que efetivamente a constituem.
O segundo ensaio baseia-se tambm no pensamento de Karl Polanyi (2000), e procura
fazer uma anlise da contemporaneidade a partir de sua perspectiva. analisada a criao de
uma nova mercadoria fictcia, o conhecimento, e suas implicaes para a organizao do
mundo contemporneo. A criao da fico da mercadoria conhecimento gerou uma
transformao na sociedade contempornea que pode ser entendida por analogia Grande
Transformao de que nos fala Karl Polanyi (2000). Todavia, o contexto da transformao
atual diferente do da transformao do sculo VXIII, de modo que ambas no podem ser
consideradas iguais. A transformao atual, entendida como informacionalizao da
produo, caracteriza-se pela migrao da indstria para os servios, processo que se encontra
em fase adiantada nos pases mais desenvolvidos. A produo de conhecimentos, ou a
produo industrial e agrcola informacionalizada, o setor produtivo mais proeminente na
economia global, demonstrando a importncia da mercantilizao do conhecimento para o
mundo contemporneo. Analisam-se, no ensaio presente nesse trabalho, as causas da
mercantilizao do conhecimento e os mecanismos utilizados para tal. A partir do pensamento
de Istvn Mszaros (2002), pode-se concluir que a causa da criao da fico da mercadoria
conhecimento relaciona-se necessidade intrnseca do capital de expandir-se. Caso no seja
satisfeita essa necessidade, o sistema entra em colapso. E tal expanso significa ampliao
permanente do consumo. Em uma situao em que todas as fronteiras do planeta j foram
cruzadas, e que o crescimento do capital ameaado pela finitude de recursos, a produo de
bens imateriais a soluo, ao menos provisria, necessidade de expanso constante do
capital. Quanto aos mecanismos da mercantilizao do conhecimento, apontamos para trs
deles: a nova organizao do trabalho, com a reedio do taylorismo para o novo contexto da
8
economia da informao, a criao de uma nova ideologia do progresso, baseada em
tecnologias informacionais, e a validao dos conhecimentos pela cincia.
A nova organizao do trabalho imaterial analisada a partir dos princpios da Gesto
do Conhecimento, uma rea da administrao de empresas voltada a adequ-las sociedade
do conhecimento. A antiga organizao industrial do trabalho, caracterizada pela diviso das
etapas da produo visando a produo em massa de produtos industriais, inadequada
produo dos novos bens imateriais, baseados no conhecimento. Isso acontece porque, na
indstria convencional, o controle da produtividade dos trabalhadores era feito por meio do
desenho das mquinas industriais, que possibilitavam que os operrios produzissem o mximo
possvel enquanto estivessem trabalhando. No caso da produo imaterial, as mquinas no
garantem mais a mxima produtividade dos trabalhadores. preciso que sua criatividade,
inventividade e capacidade decisria estejam a servio da empresa. preciso, portanto, que os
trabalhadores sintam-se motivados para trabalharem para a empresa. Dessa forma, a Gesto
do Conhecimento procura criar um ambiente de trabalho em que os trabalhadores sintam-se
motivados para produzirem muito. Isso feito por meio de estratgias de propaganda, que
disseminam a idia de que o sucesso da empresa coincide com o sucesso pessoal do
trabalhador. Alm disso, as empresas cobram e incentivam a educao continuada de seus
funcionrios, visando aumento de seu prprio capital imaterial. interessante notar que o
objetivo final da Gesto do Conhecimento o aumento da produtividade e dos lucros, por
meio de estratgias que induzem os funcionrios a trabalharem mais para a empresa. Na
produo industrial convencional, o simples controle do tempo em que os trabalhadores
permanecem trabalhando, juntamente com a elaborao de mquinas mais eficientes,
garantem maior produtividade. Na produo de bens imateriais, o controle do tempo dos
funcionrios no garante maior produtividade. Por isso, preciso que estejam motivados, e
acreditem que devem trabalhar mais. Nesse ponto, a Gesto do Conhecimento rica em
discursos ideolgicos que garantem a subservincia voluntria dos trabalhadores.
A nova economia do conhecimento traz tambm uma reedio da ideologia do
progresso, que profetiza que o desenvolvimento de tecnologias informacionais ir solucionar
os problemas da humanidade. A nova ideologia do progresso analisada a partir do
pensamento do filsofo Pierre Lvy (1993 e 2000). Ele aponta para uma utopia civilizatria,
que ser atingida em determinado momento do desenvolvimento das tecnologias
informacionais. Nesse trabalho, aponta-se para o fato de que sua ideologia do progresso,
embora baseada em tecnologias informacionais, parte dos mesmos pressupostos das
9
ideologias disseminadas na ocasio da Revoluo Industrial. Considerando que a idia de que
o progresso tcnico e a industrializao levaro a uma sociedade justa caiu em descrdito
dadas as constataes factuais que a solapam, difunde-se a idia de que novas tcnicas (agora
comunicativas), possibilitaro que a humanidade se liberte dos grilhes do mercado. Ento, a
argumentao de Pierre Lvy (1993 e 2000) no passa de uma nova forma de defender a uma
velha idia, a de que o progresso tcnico ir resolver os grandes problemas da humanidade. A
crtica ao pensamento de Pierre Lvy (1993 e 2000) elaborada tendo como base as
argumentaes de Emmanuel Lvinas (2000) e Karl Lwith (1977).
O terceiro mecanismo para a criao da fico da mercadoria conhecimento consiste
na validao dos conhecimentos pela cincia. Parte-se do pressuposto de que no qualquer
conhecimento que tem valor no mercado; sendo o conhecimento algo que qualquer pessoa
pode gerar e possuir, preciso que se crie uma demanda para a compra de conhecimentos que
as pessoas comuns no podem gerar. A cincia desempenha, ento, o papel de geradora ou
validadora dos conhecimentos vlidos. O conhecimento cientfico , tambm, utilizado para
desqualificar os saberes de outra natureza. Nesse trabalho, o discurso da divulgao da
cincia, que responsvel por levar o conhecimento cientfico aos leigos, analisado, e
demonstra-se que ele aponta para a cincia como nica fonte possvel de conhecimentos
vlidos, ou verdadeiros. Aponta-se, tambm, para o fato de que o discurso de divulgao da
cincia esconde os erros e o carter provisrio dos fatos cientficos, procurando vende-los
como verdades absolutas. Discute-se, ainda, uma conseqncia disso, que se trata da
converso da cincia em potncia tutelar, tornando a vida das pessoas comuns cada vez mais
dependente dela, e, portanto, dependente de conhecimentos que no podem gerar, mas
somente comprar.
O terceiro ensaio do trabalho consiste na anlise de uma conseqncia da
mercantilizao do conhecimento para a cincia. importante ressaltar que o modo cientfico
de conhecimento no surgiu em decorrncia da mercantilizao do conhecimento. Todavia,
dada a importncia que a cincia tem no mercado do conhecimento, importantes mudanas
foram introduzidas no sistema de produo de cincia em decorrncia da revoluo
informacional. No ensaio aqui apresentado, aponta-se para o fato de que converso de
conhecimento em mercadoria gera o desenraizamento da cincia. O conceito de
enraizamento, proposto por Simone Weil (2000), discutido e analisado a partir da
antropologia filosfica de Martin Buber. Procura-se demonstrar a consonncia entre as
perspectivas de Martin Buber e Simone Weil, e conceituar o enraizamento a partir de ambos.
10
Buber (1977) afirma que o homem um ser relacional: ele somente se realiza como homem
no encontro dialogal face-a-face, que requer alteridade e vulnerabilidade, e que est para alm
dos limites de cognoscibilidade da razo. Ele resgata o princpio dialgico, um princpio
negligenciado pela modernidade industrial, que pretendeu definir o homem a partir de seu
atributo racional. Afirma que a vida humana plena deve estar assentada na realidade do
encontro dialgico entre dois entes, e que a tica autntica vigente somente no seio desse
modo de relao inter-pessoal. Simone Weil (2000) argumenta que a modernidade industrial
provocou o desenraizamento dos operrios, e que a revoluo agrcola provocou o
desenraizamento dos camponeses, ao impor mudanas radicais em seus modos de vida, e
torna-los como imigrantes em seus prprios domiclios. O desenraizamento por ela
caracterizado como a morte do passado, que ocasiona a perda de autonomia das pessoas
comuns, que ficam vulnerveis tutela de novas instituies implantadas. O enraizamento
requer o resgate da vida comunitria, em que vigente o princpio dialgico de que nos fala
Martin Buber (1987).
A partir da conceituao de enraizamento, o ensaio procura caracterizar o
desenraizamento da tecno-cincia contempornea. Considerando que a transformao que
transcorre na atualidade, em decorrncia da mercantilizao do conhecimento, anloga
Grande Transformao descrita por Karl Polanyi (2000), que ocorreu em virtude da
Revoluo Industrial e da mercantilizao do trabalho, da terra e do dinheiro, o processo de
desenraizamento da tecno-cincia contempornea pode ser analisado a partir de analogias com
o processo de desenraizamento operrio, que aconteceu na ocasio da Revoluo Industrial.
Hans Freyer (1965) analisa as mudanas na sociedade causadas pela Revoluo Industrial a
partir da anlise das tendncias vigentes poca. Constri um cenrio a partir da exacerbao
das tendncias ao seu mximo possvel. As mesmas tendncias identificadas por ele para o
contexto da Revoluo Industrial podem ser apontadas como presentes no sistema de
produo de tecnocincia contemporneo. So elas: a possibilidade de fazer coisas, a
possibilidade de organizar o trabalho e a possibilidade de civilizar o homem. A exacerbao
dessas trs tendncias conduz ao desenraizamento da cincia. Considerando que elas j se
encontram em grande parte estabelecidas na contemporaneidade, pode-se afirmar que o
processo de desenraizamento da cincia encontra-se em pleno curso.
A possibilidade de fazer coisas refere-se ao potencial de interveno na realidade que
possui a tecnocincia, e que tende a aumentar, transformando-a em uma espiral cumulativa de
poderes que possibilitam, inclusive, a destruio de toda a humanidade pela mo do prprio
11
homem. A eliminao da vigncia do princpio dialgico na produo de tecnocincia,
exacerbada no contexto de um saber mercantilizado, cujo critrio de verdade apia-se
somente no utilitarismo e no sucesso preditivo, cria a iluso de uma neutralidade tica. Assim,
no h limitaes valorativas para as possibilidades de interveno da cincia na realidade.
A possibilidade de organizar o trabalho referida diviso do trabalho. Do mesmo
modo como a organizao fabril permitiu, na Revoluo Industrial, a diviso do trabalho em
suas partes mais elementares, tendncia anloga pode ser observada na produo de
tecnocincia. A burocratizao da cincia permite uma superespecializao que conduz
mxima diviso da produo de conhecimentos cientficos, de forma que cada grupo de
cientistas produz somente uma parte nfima do total da produo de cincia, e no toma
conhecimento das demais partes do sistema. A burocratizao gera alienao do cientista em
relao ao seu prprio trabalho, e a conseqncia mais grave desse processo a
desresponsabilizao do cientista, pois o seu fazer determinado por um sistema burocrtico
superdimensionado. Assim, o cientista perde autonomia, torna-se funcionalizado, e criado
um ambiente de opresso.
A possibilidade de civilizar o homem refere-se possibilidade da cincia de engendrar
realidades conforme suas descries, explicaes, ou previses. Principalmente quando o
objeto de estudo da cincia o prprio homem, ela pode pretender definir o homem em sua
inteireza a partir de seus critrios explicativos. Caso o homem tome por verdade as asseres
da cincia a seu respeito, esta pode converter-se em uma profecia auto-realizvel, tornando o
homem imagem de suas proposies, e limitando-lhe a liberdade e a autonomia de sua
vontade.
O quarto ensaio desse trabalho trata da possibilidade e da necessidade de se produzir
uma cincia enraizada. Conforme aponta Bartholo (2003), Buber, ao formular sua
antropologia-filosfica, pretendeu mostrar que a plenitude da vida humana requer que esteja
assentada na realidade dialgica. Desse modo, todas as suas obras e criaes devem ter no
princpio dialgico, sua orientao e fonte de sentido. Todavia, o modo cientfico de
conhecimento pressupe a conceituao e a generalizao, e isso pode implicar a instaurao
da posse do Outro e a anulao da alteridade. O ensaio discute, ento, sobre a possibilidade de
se construir um conhecimento cientfico, que no prescinda da objetividade e do formalismo
que caracterizam a cincia como modo de conhecimento, ancorado na realidade dialgica,
uma realidade que est para alm dos limites de apreenso pela cincia e pela prpria razo.
12
Emmanuel Levinas (2000) aponta para o fato de que a verdade cientfica no pode estar
assentada somente em sua capacidade explicativa ou preditiva; ela requer o reconhecimento
da alteridade como valor maior, a que tudo o mais deve estar subordinado. Em sntese: a
verdade cientfica requer a objetividade universalizante do conceito, mas esta ltima no deve
ser sua nica fonte de inteligibilidade.
A fonte de inteligibilidade primeira da verdade cientfica referida verdade de um
discurso, no importando seu tema. E o discurso necessariamente proferido por algum. A
verdade cientfica , portanto, referida pessoalidade de um sujeito que profere um discurso.
Romano Guardini (1963) fornece as bases para o entendimento do conceito de pessoa. Para
ele, importante caracterstica da pessoa sua liberdade, sua capacidade de executar atos
livres. Um ato livre jamais poder ser explicado pelo encadeamento de causas e efeitos, pois
ele no tem uma causa, mas somente um autor. a pessoa o autor do ato livre. Guardini
(1963) discorre tambm sobre o carter inapreensvel da pessoa, afirmando que o corpo, a
alma, a inteligncia, a vontade, a liberdade, o esprito so apenas os materiais de que
composta, mas a pessoa radica no fato de que este material existe na forma de uma pertena
a si mesmo (Guardini, 1963, p. 160). Para ele, a condio de possibilidade da existncia da
pessoa sua abertura ao encontro dialgico, conforme concebido por Martin Buber (1977).
Tanto Guardini (1963) quanto Buber (1977) apontam para o papel fundamental que a
linguagem desempenha como veculo de interlocuo entre pessoas, de forma que o prprio
encontro dialogal acontece por meio da e na linguagem. O conhecimento cientfico
verdadeiro, ento, aquele que resulta de um genuno dilogo travado com o real. Esse modo
de conhecimento , portanto, enraizado, pois se vincula indissociavelmente realidade
pessoal daquele que profere o discurso cientfico.
O conhecimento cientfico enraizado no necessita dos regulativos ticos que abundam
em nosso tempo, pois possui uma orientao eticamente verdadeira em sua essncia. A
organizao do trabalho, no mbito da cincia enraizada, no pode dar-se por meio dos
dispositivos burocrticos que gera a super-especializao dos saberes. Todo o conhecimento
cientfico tem uma base filosfica e volta-se sobre ela, e a filosofia torna-se o ponto de
encontro de todas as reas da cincia. A cincia enraizada tampouco pretende capturar a
totalidade do real em seus esquemas conceituais, descritivos e explicativos, pois capaz de
aceitar que partes importantes do mundo e da vida humana encontram-se na esfera do
ininteligvel, e reconhece o enraizamento da condio humana no mistrio. Desse modo, no
13
corre o risco de converter-se em potncia tutelar, no colocando em risco, por conseguinte, a
autonomia e a liberdade humanas.
O quinto ensaio desse trabalho tem como base o pensamento de Leopoldo Zea,
filsofo mexicano cujos escritos tratavam da histria, realidade e pensamento latino-
americanos. Procura-se, ento, discutir as possibilidades e impossibilidades de enraizamento
do pensamento, da filosofia e da cincia na Amrica Latina e no Brasil. Zea afirma que toda a
filosofia produzida na Amrica Latina traz a marca da condio de dependncia que parte de
sua histria e realidade. uma filosofia que surge, em decorrncia disso, com a dvida se
ou no uma filosofia autntica, dado que constantemente se defronta com referncias impostas
de filosofias e pensamentos estranhos sua realidade. O pensamento de Zea aponta para
aspectos importantes para o enraizamento da produo intelecutal da Amrica Latina.
Conforme afirma Simone Weil (2000), se a organizao industrial do trabalho e da sociedade
conduz ao desenraizamento por si s, a condio colonial, em que se encontram inmeros
povos, alm dos latino-americanos, produz desenraizamento na segunda potncia, ao adotar
modelos de organizao da sociedade exgenos. Por isso, conforme podemos depreender das
anlises de Leopoldo Zea, a condio de possibilidade do enraizamento da filosofia e da
cincia latino-americanas o enfrentamento de sua condio de dependncia, visando sua
superao, sem, contudo, tentar imitar os padres dos pases colonizadores, negando a
realidade que lhe prpria.
Zea (1990) afirma que a diferenciao entre civilizao e barbrie remonta grcia
antiga, e passou por vrias adaptaes ao longo da histria das civilizaes. Atualmente, o
discurso da civilizao versus barbrie traduz-se na diferenciao entre desenvolvimento e
subdesenvolvimento. Brbaro significa, etimologicamente, balbuciante, ou aquele que no
consegue falar, ou, conforme aponta Zea (1990), aquele que no domina o logos. Na Grcia
antiga, aqueles que no dominavam o logos grego eram reduzidos condio de brbaros
balbuciantes. Atualmente, brbaros so os que no atingiram o desenvolvimento econmico,
cientfico e tecnolgico dos civilizados. A existncia de um discurso que afirma a civilizao
e a barbrie gera uma assimetria entre os homens: supe-se que uns sejam superiores em
relao aos outros. Essa assimetria, que reduz os homens condio de sub-humanos,
comprime e elimina os espaos de vigncia do dilogo inter-humano, conforme concebido por
Martin Buber (1977). Zea (1990) afirma que o brbaro pode assimilar o logos de seu
dominador, mas jamais alcanar fluncia, pois trata-se de um logos que no lhe prprio.
Todavia, ao assimilar o logos dominador, o dominado tem a possibilidade de dele se apropriar
14
para levantar-se contra a dominao a que submetido. Assim, ele instaura a possibilidade de
acontecimento do dilogo genuno.
Zea (1978) afirma que a condio de dependncia marcou a histria dos fatos e das
idias na Amrica Latina. Identifica projetos de colonizao para seus povos, e, aps a
independncia das colnias, projetos de estruturao e construo de seus pases. Os projetos
de colonizao visavam catequizar os ndios, convertendo-os em simulacros dos europeus,
com a inteno de transformar a Amrica Latina no quintal da Pennsula Ibrica. Os projetos
de construo dos pases apresentavam algumas diferenas entre si, que so discutidas em
detalhes ao longo do quinto ensaio desse trabalho. O projeto libertrio, representado pelo
pensamento de Simon Bolvar, visava criar uma unidade na Amrica Latina, com o intuito de
fortalecer a regio em relao s potncias europias e grande potncia norte-americana que
despontava. O fracasso do projeto bolivariano deu-se devido aos embates de interesses
regionalistas, que impossibilitaram a unio dos pases latino-americanos. O projeto
conservador procurou criar aqui uma ordem semelhante ordem ibrica; seus representantes
afirmavam a importncia da herana ibrica, e tentaram criar aqui a unidade entre os pases
que permitiria que a Amrica Latina possusse a mesma fora dos pases ibricos. Todavia,
esses no reconheceram a condio de igualdade de suas ex-colnias; alm disso, tal projeto
foi rejeitado pelos ndios e mestios, que se recusavam a aceitar uma ordem que os exclua. O
projeto civilizador representa a entrada dos ideais positivistas e industriais na Amrica Latina.
Sua base era uma utopia civilizatria, a crena de que a Amrica Latina poderia chegar a ser
como a Amrica do Norte, caso adotasse fidedignamente seu modelo de organizao social.
Zea (1978) afirma que o projeto civilizador, que vendia essa utopia, partia tambm do
pressuposto que era preciso negar todo o passado colonial da Amrica Latina para que fosse
possvel comear uma nova histria partindo do zero. Zea (1978) denuncia a postura servil
inerente ao projeto civilizador, que se disps a seguir as diretrizes da Europa e dos Estados
Unidos da forma mais eficaz possvel. Um servilismo to exacerbado que buscava anular o
prprio ser para tentar realizar algo absolutamente estranho. O projeto civilizador partia de
um sentimento de inferioridade da Amrica Latina em relao Europa e aos Estados Unidos
e, por isso, pretendia mudar a raa e a mente de seu povo, e mudar tambm a condio de
dependncia. A raa poderia ser modificada pela imigrao de europeus, que poderiam gerar
aqui um povo semelhante ao norte-americano; a mente poderia ser modificada pela imposio
dos ideais positivistas, que moveram, de fato, o projeto civilizador. E a dependncia seria
modificada pelo imenso progresso tcnico e industrial que haveria de ser logrado aqui.
15
importante ressaltar que o projeto civilizador foi o modo como a Grande Transformao de
Karl Polanyi (2000) atingiu os pases latino-americanos. O moinho satnico foi vendido a
esses povos como um sonho de grandeza para o futuro. Todavia, o projeto civilizador nunca
trouxe a grandeza prometida; antes, trouxe todo o sofrimento inerente organizao social
com base na produo industrial em massa, que se somou ao sofrimento gerado pela opresso
da condio colonial. A implantao dos ideais positivistas no converteu os pases latino-
americanos em grandes potncias, mas somente acentuou sua dependncia em relao aos
Estados Unidos e Europa, evidenciando que a instaurao do industrialismo e de uma
economia de mercado no possibilitam uma melhor insero na hierarquia global de poder.
O fracasso do projeto civilizador, cuja implantao somente acentuou a condio de
dependncia da Amrica Latina, fez surgir aqui um modo de pensar que repudiava os
pressupostos da modernidade industrial, e que pregava que o pensamento latino-americano
deveria voltar-se para sua realidade prpria, a fim de criar um pensamento e uma filosofia
autnticos, que servissem de base para mudanas sociais e estruturais capazes de anular a
condio de dependncia. Zea (1978) denominou esse ideal para a Amrica Latina de projeto
assuntivo. Tal projeto no negava o passado colonial, mas o considerava prprio e afirmava
ser necessrio partir dele para a construo de um projeto que libertasse a Amrica Latina da
condio de dependncia. O projeto assuntivo visava criar uma organizao social capaz de
refletir a realidade, a identidade e a histria de seu povo. Negava a imitao de modelos
prontos, e negava algo ainda mais importante, pois se recusava a assumir os pressupostos e os
objetivos dos pases considerados hegemnicos. O projeto assuntivo no pretendia
converter os pases latino-americanos em superpotncias econmicas, mas sim instaurar um
modo de governo e administrao que respondesse aos anseios e s necessidades de seu povo.
Por isso, era necessrio conhecer a realidade prpria e voltar-se para ela; por isso, era
necessrio tambm repudiar os Estados Unidos, que afirmavam sua dominao sobre a
Amrica Latina, reduzindo os espaos para o estabelecimento de uma realidade scio-poltica
autonomamente determinada. Segundo Zea (1978), seu representante mais importante foi o
cubano Jos Mart.
Embora a realidade das ex-colnias espanholas guarde inmeras semelhanas com a
realidade brasileira, o prprio Zea (1978) afirma que a histria do Brasil apresenta
peculiaridades que o tornam diferente dos demais pases Latino-Americanos. A realidade
brasileira, nesse trabalho, analisada a partir do pensamento de Srgio Buarque de Holanda
(1995) e Darcy Ribeiro (2001). Aponta-se para a grande desigualdade que marca a realidade
16
brasileira, que cria um abismo entre sua elite e seu povo. Tais diferenas encontram-se no s
na renda, mas tambm na cultura, no modo de vida e nos valores. Aponta-se para a forma
como o projeto civilizador foi implantado no Brasil. interessante notar que, no caso do
Brasil, a adoo dos ideais positivistas que caracterizaram o projeto civilizador foi realizada
somente pela elite brasileira; o povo, mestio e pobre, no comprou a utopia civilizatria
vendida por ele. A postura de imitadores no parte da cultura popular brasileira, que foi
capaz de criar uma identidade prpria a partir das enormes diferenas que aqui se encontraram
em razo da colonizao e da escravido, que puseram a conviver juntas etnias e culturas
diferentes.
O projeto assuntivo, no Brasil, inicia-se quando parte da intelectualidade brasileira
volta-se para a realidade e para a identidade criada por esse povo racial e culturalmente
mestio. Todavia, a emergncia do projeto assuntivo no enterrou o projeto civilizador;
ambos coexistem at os dias de hoje, representando dois modos antagnicos de pensar e dois
projetos diferentes para o mesmo pas. Enquanto parte da produo intelectual brasileira
ocupa-se da imitao dos modelos europeus e norte-americanos, outra parte aponta para a
necessidade do pensamento, da filosofia e da cincia brasileiras voltarem-se para sua
realidade prpria. Enfatiza-se, nesse trabalho, que a condio para o enraizamento da filosofia
brasileira a assuno de sua realidade prpria, e que tal assuno afirmada por inmeros
pensadores brasileiros, como Darcy Ribeiro, Alberto Guerreiro Ramos, lvaro Vieira Pinto,
entre outros. Portanto, o enraizamento da produo intelectual, cientfica e tecnolgica no
Brasil no requer a criao de um novo modo de pensar, mas o resgate do pensamento desses
autores aqui denominados representantes do projeto assuntivo.
No livro Filosofia Latinoamericana como Filosofia sin Ms, Leopoldo Zea (1969)
discute o problema da autenticidade e da originalidade da filosofia e do pensamento latino-
americanos. Procura demonstrar que a filosofia da Amrica Latina, para ser autntica, no
necessita igualar-se de forma alguma filosofia europia. Segundo ele, a filosofia
latinoamericana inicia-se com a indagao se ou no uma filosofia autntica. Essa a
indagao de uma filosofia que se debate com a questo do colonialismo e da dependncia. E,
segundo o prprio Zea (1969), autntica a filosofia que emana dos problemas concretos
vividos por aqueles que a produzem. Portanto, considerando que a realidade em que se
encontram os povos latino-americanos essencialmente diferente da realidade europia,
sobretudo pela dependncia, mas tambm pela miscigenao racial e cultural, sua filosofia ir
tentar responder a questes que emanam dessa realidade, que so diferentes das questes que
17
a filosofia ocidental se props. Em outras palavras, Zea (1969) afirma que a originalidade da
filosofia requer seu enraizamento em uma realidade concreta e vivida. Zea (1969) discute
tambm a questo da universalidade dessa filosofia, e afirma que, considerando que qualquer
filosofia, para ser filosofia, necessita ser universal, e que a filosofia latino-americana no deve
ser a filosofia do homem latino-americano para esse mesmo homem latino-americano; mas
uma filosofia que, embora tenha sua origem na realidade desse homem, realmente uma
filosofia sem mais, do homem para o homem.
18
1. TRS CAMINHOS PARA A SERVIDO
1.1. Apologias do Moinho Satnico
Karl Polanyi (2000), em A Grande Transformao, descreve e analisa os processos de
mudanas sociais, polticas e econmicas que possibilitaram a emergncia e o
estabelecimento de uma economia de mercado, primeiramente na Inglaterra, no sculo XVIII,
e depois no restante do mundo. Ele defende a idia de que o grande progresso tcnico dos
instrumentos de produo, que aconteceu na Revoluo Industrial, foi acompanhado de uma
catastrfica desarticulao nas vidas das pessoas comuns (Polanyi, 2000, p. 51). Concede o
nome de Moinho Satnico a essa transformao que triturou os homens, transformando-os em
massa (Polanyi, 2000, p. 51).
A quase completa devastao da vida das pessoas comuns, evidenciada nas favelas
que insistiam em se multiplicar nas chamadas cidades industriais, verdadeiros centros de
desolao humana, em que as sobras das antigas famlias, trituradas e cuspidas pelo Moinho
Satnico, se amontoavam na tentativa desesperada de sobrevivncia, foi sem dvida a
principal conseqncia da Grande Transformao. Esse fato cinicamente negligenciado
pelos apologistas do liberalismo econmico, que ingenuamente acreditavam e, mesmo depois
de alguns sculos de desgraas, continuam acreditando que o desenvolvimento da tecnologia
ser a salvao da humanidade. Polanyi (2000) afirma que a filosofia liberal no teve
capacidade de compreender completamente a mudana, porque julgou os acontecimentos
sociais a partir de um ponto de vista econmico, e, assim, aceitava prontamente as
conseqncias sociais do progresso, quaisquer que fossem elas.
Para Polanyi (2000), o progresso tcnico, o surgimento das cidades fabris, a mudana
no regime de trabalho, a presena de carvo e ferro, a concentrao das indstrias, entre
outros tantos fatores que comumente so apontados como causas, nicas ou mltiplas, da
Revoluo Industrial, so apenas incidentais em relao a uma mudana bsica, que foi o
estabelecimento da economia de mercado. A compreenso do impacto que o uso de
mquinas provoca em uma sociedade comercial , contudo, fundamental para que se entenda
a natureza dessa mudana. No foi a mquina a causadora da mudana, mas sua utilizao foi
crucial para a emergncia e a consolidao da idia de um mercado auto-regulvel e da
economia de mercado.
19
Polanyi (2000) caracteriza como agrria comercial a sociedade pr-industrial, pois ela
consistia de agricultores e mercadores que compravam e vendiam o produto da terra. A
insero das mquinas nesse sistema de produo agrria forou nele algumas mudanas:
primeiramente, a quantidade de mercadorias produzidas teve de ser ampliada, para que a
produo fosse rentvel, tendo em vista o alto custo das mquinas; alm disso, a produo (e a
venda) de mercadorias deveria ser contnua, pois a produo por mquinas somente opera sem
prejuzos se a sada de mercadorias for minimamente garantida. Sendo assim, a produo no
pode parar em decorrncia de nenhum fator como, por exemplo, falta de matria-prima ou de
mo-de-obra. Isso significa, em ltima anlise, que matria-prima e mo-de-obra so
elementos que devem estar sempre disponveis nas quantidades necessrias para a produo.
Em conseqncia disso, e em segundo lugar, segue-se uma importante mudana nas relaes
de produo: o mercador, que antes comprava as mercadorias prontas do agricultor e as
vendia para quem delas necessitasse, passa a comprar a matria-prima e o trabalho
necessrios produo da mercadoria.
A idia explicitada na ltima frase do pargrafo anterior repleta de implicaes. A
partir dela conclui-se que, no momento histrico em questo, todas as transaes sociais se
converteram em transaes monetrias. Nesse novo tipo de organizao da produo, todas as
rendas devem derivar da venda de alguma coisa, e qualquer que seja a verdadeira fonte de
renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda (Polanyi, 2000, p.60).
Alm disso, ocorreu uma inverso na motivao das aes por parte dos membros da
sociedade: a motivao do lucro passa a substituir a motivao da subsistncia (Polanyi,
2000, p.60). Dizendo a mesma coisa de outra forma: o sistema produtivo, que antes se
orientava para a produo de valores de uso, passa a ser orientado para a produo de valores
de troca. Nessa inverso consistem o sistema de mercado e a economia de mercado, o moinho
satnico de homens, cuja emergncia resultou nas mais profundas e malficas modificaes
nas relaes humanas.
A economia de mercado definida por Polanyi (2000) como sendo um sistema auto-
regulvel de mercado, ou seja, uma economia dirigida pelos preos do mercado e nada alm
dos preos do mercado (Polanyi, 2000, p.76). Ele defende que o surgimento e o
estabelecimento de tal sistema no pde ter acontecido e no aconteceu de forma espontnea,
e houve necessidade de um firme controle (pelo brao do Estado) dos extraordinrios
pressupostos subjacentes a tal sistema (Polanyi, 2000, p. 62).
20
Um desses pressupostos a existncia de uma sociedade de mercado, uma sociedade
modelada de forma tal a possibilitar que o sistema econmico funcione segundo as leis de
mercado. Dessa forma, em vez de a economia estar embutida nas relaes sociais, so as
relaes sociais que esto embutidas na economia (Polanyi, 2000, p.77). A transformao de
que nos fala Polanyi (2000), que deu origem nossa poca, no consiste na emergncia dos
mercados: eles existiram em muitas sociedades e durante muitos anos, mas subordinados a um
sistema social que os regulava. Foi crucial a transformao dos mercados isolados em uma
economia de mercado, e dos mercados regulveis em um mercado auto-regulvel.
A questo primordial que o funcionamento do mercado como entidade auto-regulada
exige que todo o tecido social opere segundo as leis de mercado. Toda a produo deve estar
voltada para a venda no mercado, e todos os rendimentos devem derivar de tais vendas. Por
isso, no somente os bens, servios e componentes da indstria devem ter um preo no
mercado, mas tambm o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preos chamados,
respectivamente, salrios, aluguel e juros. Essas trs coisas passaram a funcionar como
mercadorias, e sem isso, seria impossvel o estabelecimento da sociedade de mercado, da
economia de mercado e do mercado auto-regulvel.
Ocorre que elas no so mercadorias, pois como afirma Polanyi (2000, p. 93): o
trabalho e a terra nada mais so do que os prprios seres humanos nos quais consistem todas
as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Ento, para que a empreitada do
estabelecimento da economia de mercado (e, com ela, o sistema capitalista industrial) tivesse
xito, foi necessrio que o trabalho, a terra e o dinheiro, que no so mercadorias, fossem
convertidos em mercadorias. E isso no foi (e nem poderia ter sido) um processo espontneo.
Foi deliberadamente promovido pelo Estado ingls, por meio de leis que asseguravam a
criao das mercadorias fictcias: trabalho, terra e dinheiro. A interveno do Estado foi,
ento, crucial para que a sociedade capitalista de mercado tivesse origem na Inglaterra do
sculo XVIII.
Para demonstrar como a interveno estatal foi fundamental para o estabelecimento de
um mercado auto-regulvel, Polanyi (2000) faz uma minuciosa anlise da legislao inglesa
da poca, e mostra como a vigncia de uma legislao que protegia a vida das pessoas,
(Speenhamland Law, de 1795 a 1834 na Inglaterra) garantindo-lhes uma renda mnima a
despeito das oscilaes do mercado, impossibilitou o pleno estabelecimento de uma economia
de mercado e, com isso, o desenvolvimento do capitalismo industrial. Somente com a
21
Reforma da Lei dos Pobres, em 1834, que abolia o direito de viver e possibilitava a
presena de um mercado de trabalho competitivo, foi possvel que o capitalismo industrial
efetivamente se estabelecesse na Inglaterra.
O que Polanyi (2000) nos mostra que a Revoluo Industrial trouxe uma inverso na
organizao da sociedade: o mercado, que antes estava imerso na sociedade, que o regulava,
passou a ser seu regulador. A conseqncia mais grave de tal inverso foi o empobrecimento
da populao causado, principalmente, pelos efeitos desarticuladores da economia de mercado
na sociedade. Tal desarticulao aconteceu primeiramente no campo, pois, conforme afirma o
prprio Polanyi (2000), a Revoluo Agrcola antecedeu a Revoluo Industrial. A
racionalizao agrcola, necessria ao estabelecimento da economia de mercado, destruiu a
segurana social dos trabalhadores rurais. Sua sobrevivncia, que antes era garantida no
somente por rendimentos monetrios, mas tambm por rendimentos familiares e pela
produo de subsistncia das terras comuns ou privadas, se tornou totalmente dependente dos
rendimentos monetrios. Nas cidades, o carter flutuante dos novos empregos nas indstrias
iria desestruturar para sempre o modo de vida dos artesos, que diante do desemprego e das
incertezas quanto s condies de trabalho, em vo retornavam para suas aldeias, pois o tipo
de trabalho manual que realizavam no tinha mais lugar na nova sociedade.
Os benefcios tcnicos e tecnolgicos trazidos pela Revoluo Industrial no foram
maiores do que as mazelas que a acompanharam. No se poderia justificar a desestruturao
de modos de vida, a humilhao, a misria e o desespero a que foram submetidas mais de uma
gerao em nome do progresso tcnico. A inverso do lugar ocupado pela economia na
sociedade subordinou a vida das pessoas a uma lgica fria e impessoal. As pessoas se
transformaram em tomos dispensveis, partes de uma grande mquina a que estavam
condenadas a servir.
Sale (1999) aponta para a rapidez com que esse processo aconteceu. Em uma nica
gerao, entre 1785 e 1830 o nmero de pessoas empregadas nas manufaturas excedeu o
nmero das que lidavam com a terra, com atividades agrcolas. A Revoluo Industrial
provocou mudanas profundas no carter da civilizao britnica, e com tamanho sucesso que
tais modificaes foram posteriormente impostas Europa e ao restante do mundo. Segundo o
historiador E. Thompson, a grande transformao remodelou a ndole e as necessidades
humanas (apud Sale, 1999, p. 36).
22
O que torna as anlises de Karl Polanyi (2000) e Kirckpatrick Sale (1999)
particularmente interessantes que elas trazem tona a dimenso da catstrofe que a Grande
Transformao produziu, evidenciada na desgraceira que provocou na vida cotidiana das
pessoas, devido ao depauperamento em massa e profunda mudana que imps em seus
modos de vida. A questo que a grande maioria das anlises, que representam o pensamento
hegemnico desde o sculo XVII at nossos dias, simplesmente ignoram essa catstrofe
subjacente transformao, pois apontam a liberdade do mercado e o progresso tcnico como
os bens maiores, a que nada pode se interpor.
A filosofia liberal ignora no s a catstrofe, como tambm todo o ajuste legal
necessrio ao estabelecimento da economia de mercado e do mercado auto-regulvel. Ela o
faz no toa, pois esses dois fatos simplesmente pem no cho uma das premissas bsicas
da ideologia liberal: a infundada e estpida idia de que a competio por recursos o
comportamento natural dos homens. Se isso fosse verdade, no seriam necessrias a
interveno do Estado e a criao de leis visando ao estabelecimento de uma economia e uma
sociedade baseadas no princpio competitivo. Negligenci-los , ento, fundamental para que
tal ideologia permanea em p, mesmo que constantemente cambaleando (levando-se em
conta a sua debilidade congnita) e tendo que ser amparada por mecanismos cnicos e desleais
como esse. Istvn Meszros (2002) aponta, sem nenhuma piedade, para as fraquezas da
ideologia liberal, desqualificando-a como pseudo-cientfica, visto que construda tendo por
base analogias vazias arbitrariamente extradas da biologia (Mszros, 2002, p.190). O que,
de fato, possibilitou a aceitao da filosofia liberal como vlida, e mais, o que possibilitou que
ela se convertesse em ideologia hegemnica no foi nem sua fora terica (que no existe),
tampouco sua capacidade de explicar e/ou representar a realidade, mas sim o fato de que,
conforme aponta Meszros (2002), seu carter eminentemente reacionrio sempre agradou os
governos dos pases capitalistas e as elites dominantes.
Um dos expoentes do pensamento hegemnico, caloroso defensor do liberalismo
econmico, Frederich A. Hayek. Como Polanyi, Hayek austraco, e publicou seu livro O
Caminho para a Servido (Road to Serfdom) em 1944, no mesmo ano em que Polanyi
publicou A Grande Transformao (The Great Transformation). Pouco mais de dez anos
separaram o nascimento de Polanyi e Hayek, ambos em Viena, em 1886 e 1899,
respectivamente. Ambos serviram no exrcito do Imprio Austro-Hngaro na I Guerra
Mundial e, por motivos diversos, migraram para a Gr-Bretanha na dcada de 30. Hayek foi
23
conferencista na London School of Economics de 1931 a 1940, quando emigrou para
Cambridge, onde escreveu O Caminho da Servido.
Polanyi viveu na Inglaterra empregando-se como tutor para a Workers Educational
Association, um programa das Universidades de Oxford e Londres para a educao de
adultos. Em 1935 recebeu um convite do International Institute of Education para proferir
palestras em Universidades Americanas, em vista do que conheceu quase todos os estados
norte-americanos. Em 1940 foi convidado para uma estada na Bennington College, Vermont,
onde escreveu A Grande Transformao. Em 1947 assumiu o posto de Professor Visitante na
Columbia University em Nova York, onde permaneceu at 1953, quando se aposentou.
Enquanto a vida de Polanyi foi marcada por altos e baixos profissionais, sem
que conseguisse estabilidade, altos postos e reconhecimento, Hayek foi o autntico
representante do que se poderia chamar de acadmico bem sucedido. Sua carreira culminou
em um prmio Nobel de economia em 1974. Hayek sempre fez parte da elite pensante da
Inglaterra, e sempre ocupou os melhores postos nas universidades. Segundo Meszros (2002),
que o apelidou carinhosamente de o cavaleiro de honra de Margaret Tatcher, todo o
reconhecimento e o status alcanados por Hayek devem-se sua capacidade de dizer
exatamente o que o governo ingls queria ouvir, pois sua argumentao se caracteriza por
declaraes e premissas arbitrrias, ao lado de tautologias que mereceram o prmio Nobel
(Mszros, 2002, p.280). Do outro lado, o pensamento e a obra de Polanyi receberam
reconhecimento e tornaram-se conhecidos do grande pblico somente nas ltimas dcadas,
quando alguns dos problemas relacionados economia de mercado tornaram-se muito
evidentes no contexto scio-econmico-poltico mundial.
Em O Caminho para a Servido, Hayek (1990) parte de uma crtica ao socialismo
(que define como um regime em que a economia planificada) para tentar demonstrar que o
liberalismo econmico a melhor e nica forma de garantir a liberdade s pessoas. Afirma
que a planificao e a centralizao de poder propostas no socialismo consistem nos mesmos
mtodos utilizados pelos regimes totalitrios (nazismo e fascismo), e levam ao mesmo tipo de
escravido. A diferena entre socialismo e nazismo/fascismo seria quanto aos fins
almejados: enquanto nos ltimos esto relacionados ampliao de territrio e a razes
ligadas eugenia, no primeiro caso, o fim seria maior justia e eqidade. Todavia, Hayek
(1990) afirma que a planificao e a centralizao de poder so as reais causas da servido,
e que, mesmo que o objetivo almejado seja louvvel (como no caso do socialismo), os meios
24
para atingi-lo so equivocados. Hayek afirma que uma verdade que muitos relutam em aceitar
que:
A ascenso do nazismo e do fascismo no foi uma reao contra as tendncias
socialistas do perodo precedente, mas o resultado necessrio dessas mesmas tendncias.
[...]. Em conseqncia, muitos dos que se julgam infinitamente superiores s aberraes do
nazismo e detestam com sinceridade todas as suas manifestaes trabalham ao mesmo
tempo em prol de ideais cuja realizao levaria diretamente tirania que odeiam. (Hayek,
1990, p. 33)
A crtica que Hayek (1990) faz ao socialismo (particularmente ao stalinismo)
pertinente em vrios aspectos, notadamente porque aponta a centralizao de poder como um
fator que reduz e at mesmo elimina a liberdade, da mesma forma como nos regimes
totalitrios. A grande questo em sua linha argumentativa est no que vem adiante: sendo o
socialismo um regime que elimina a liberdade, esta somente pode ser garantida por meio da
aplicao da doutrina liberal. Ento, para ele, somente existem duas possibilidades de
organizao da sociedade e do estado: socialismo de economia planificada ou liberalismo.
Polanyi (2000) nos mostra que esse raciocnio falacioso, pois, segundo ele, qualquer
servido advm da subordinao da vida das pessoas a uma lgica alheia prpria vida, no
importando se essa lgica representada pelo Estado ou pelo mercado. Alm disso, criticar o
socialismo no exclusividade da doutrina liberal, embora Hayek (1990) no faa meno a
essas crticas. Os socialistas utpicos e libertrios (Saint Simon, Fourier, Owen, Proudhon,
Kropotkin, Landauer) apontavam tambm para os mesmos problemas ligados ao socialismo
cientfico, principalmente no que se refere centralizao do poder, mas tampouco
acreditavam ser o liberalismo o caminho para a liberdade, e propunham outras formas de
organizao social, baseadas principalmente nas livres associaes e no princpio federativo
(Buber, 1996). Segundo Landauer, o socialismo jamais poderia ser alcanado por meio do
Estado: ele se tornar realidade no no Estado, mas fora dele, sem o Estado (apud Buber,
1996).
Com efeito, o iderio anarquista, assim como o comunista, busca encontrar formas de
organizao social alternativas ao capitalismo, e se diferencia radicalmente da proposta
comunista pela negao da autoridade e da necessidade de centralizao de poder. Woodcock
(2002) afirma que poucos movimentos foram to mal-entendidos e mal-interpretados como o
anarquismo, comumente associados ao niilismo ou ao terrorismo. Todavia, ele afirma que o
anarquismo um sistema de filosofia social, que busca a substituio do Estado por formas de
25
cooperao no-governamental entre indivduos livres. Embora as idias dos muitos
pensadores anarquistas apresentem divergncias drsticas entre si, todas elas partem das
idias bsicas da liberdade como valor maior, da crtica propriedade (e ao sistema
capitalista) e da capacidade de auto-organizao da sociedade, sem necessidade de uma
autoridade reguladora. Proudhon foi o criador da alternativa federalista de organizao
social, e acreditava que a vida em sociedade era uma necessidade humana, e na organizao
anarquista da sociedade baseada na idia de justia imanente. Proudhon criticava duramente
as posies de Marx, e por isso tornou-se um de seus grandes inimigos ideolgicos. Ao se
recusar a participar de um grupo de correspondncia de socialistas de vrios pases, liderados
por Marx, ele afirma em correspondncia ao prprio Marx:
Aplaudo de todo o corao a idia de fazer vir luz todas as opinies; vamos dar ao
mundo o exemplo de uma tolerncia esclarecida e sagaz, mas no permitamos que o
simples fato de encabear um movimento nos torne lderes de um novo tipo de intolerncia;
no nos faamos passar por apstolos de uma nova religio, mesmo que seja a religio da
lgica e da razo. Vamos reunir e estimular todos os tipos de protesto, estigmatizar a
exclusividade e o misticismo. No consideremos jamais que uma questo est esgotada e,
quando tivermos utilizado o nosso ltimo argumento, recomecemos outra vez se
necessrio com eloqncia e ironia. Sob essas condies, ingressarei com prazer na sua
associao. Do contrrio no! (apud Woodcok, 2002, p. 135-136)
Kropotkin criticava veementemente a idia de competio como algo natural, e, no
livro Ajuda Mtua, demonstra, com exemplos extrados de observaes no campo, que a
cooperao o comportamento natural dos seres vivos. Ele afirmava que existia uma
diferena entre a relao baseada no princpio do comando e da disciplina e aquela baseada no
princpio do entendimento mtuo, e que somente a ltima possibilita a liberdade. Todavia,
alm de criticar o ideal liberal, criticava tambm a centralizao de poder proposta no
socialismo cientfico. Na dcada de 20, Kropotkin escreveu uma Carta aos trabalhadores do
mundo, em que criticava a Revoluo Russa, e propunha a construo de uma Rssia
anarquista baseada na unio federal de comunidades, cidades e regies livres. Nessa carta, ele
criticava o governo central da Revoluo Russa, afirmando que a Revoluo Social deveria
basear-se no poder construtivo de uma massa de foras locais e especializadas, e que
desprezar essa colaborao e confiar nos ditadores a maneira de no fazer a Revoluo, ou
de torn-la impossvel.
Podemos dizer que os anarquistas, assim como Polanyi, recusavam-se a aceitar a
subordinao da vida das pessoas s instituies, quaisquer que fossem elas. Alguns, como
26
Bakunin, propunham a destruio radical e violenta dessas instituies; outros, como Tolstoi e
Gandhi, eram adeptos do pacifismo. Tolstoi afirmava que a grande arma da mudana social
era simplesmente a recusa a obedecer, e desprezava o progresso social como valor, afirmando
que este deveria estar subordinado a outros valores. O fato de Hayek (1990) no levar em
conta o pensamento dos anarquistas em seu livro, notadamente no que tange questo da
liberdade, tem um motivo: as crticas anarquistas ao sistema capitalista e ao liberalismo
seriam muito duras e difceis de refutar.
As tentativas de encontrar uma argumentao consistente que aponte as razes pelas
quais o liberalismo garante a liberdade na obra de Hayek so vs. Ele simplesmente afirma
que a livre concorrncia a nica forma de garantia de liberdade:
[A doutrina liberal] considera a concorrncia um mtodo superior, no somente por
constituir, na maioria das circunstncias, o melhor mtodo que se conhece, mas sobretudo
por ser o nico mtodo pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas s outras sem a
interveno coercitiva e arbitrria da autoridade. Com efeito, umas das principais
justificativas da concorrncia que ela dispensa a necessidade de um controle social
consciente e oferece aos indivduos a possibilidade de decidir se as perspectivas de
determinada ocupao so suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a
acompanham (Hayek, 1990, p. 58)
interessante notar que Hayek (1990) reconhece que a livre concorrncia e o
liberalismo no so formas naturais da organizao social, ou seja, no surgem
espontaneamente na sociedade. Para que elas se estabeleam, preciso interveno do Estado.
Ele afirma que a doutrina liberal enfatiza que, para que a concorrncia funcione de forma
benfica, necessria a criao de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, (...) e nem
as normas legais existentes, nem as do passado, esto isentas de graves falhas. (Hayek, 1990,
p.58). Hayek, ento, admite que o uso da concorrncia como forma de organizao social
exclui certos tipos de interveno na vida econmica, mas necessita de outros para garantir
seu bom funcionamento.
Dessa forma, Hayek (1990) justifica a interveno estatal somente para manuteno da
concorrncia e do livre mercado, que, segundo ele, so as nicas formas de garantir a
liberdade. Ele afirma que as aes humanas so realizadas visando ao nico objetivo de
satisfao de necessidades individuais, e que h uma constante concorrncia entre os homens
pela posse dos recursos. Os fins sociais seriam, ento, objetivos idnticos para muitos
indivduos ou, em outras palavras, o somatrio dos fins individuais. Dessa forma, somente
27
tem liberdade quem tem possibilidade de satisfazer suas necessidades individuais; aqui, nesse
ponto, ele chega ao cmulo da hipocrisia, ao apontar o dinheiro como um fantstico
instrumento de liberdade:
Seria muito mais certo dizer que o dinheiro um dos maiores instrumentos de
liberdade j inventados pelo homem. o dinheiro que, na sociedade atual, oferece ao
homem pobre uma gama de escolhas extraordinariamente vasta, bem maior do que aquela
que h poucas geraes se oferecia aos ricos (Hayek, 1990, p. 99).
Hayek (1990) admite que injustias sociais so produzidas em decorrncia da
implantao do livre mercado, porm afirma que tais injustias so menos perniciosas do que
a opresso causada pela planificao da economia. Em outras palavras, ele defende que o
liberalismo necessrio porque o socialismo no presta. Assim, todos os problemas causados
pelo liberalismo devem ser tolerados e aceitos, tendo em vista que a planificao da economia
resulta em problemas ainda maiores. Nesse ponto, Mszros (2002) est coberto de razo ao
afirmar que o que move o pensamento de Hayek um dio patolgico ao projeto socialista,
que o impede de assumir uma postura crtica em relao s conseqncias injustas e
destrutivas da aplicao dos preceitos do liberalismo.
A ideologia liberal, conforme defendida por Hayek, corresponde ao pensamento
hegemnico em praticamente todo o planeta. a ideologia adotada e reforada pelos EUA, e
que, aps a diviso da URSS e o fracasso do socialismo real, passou a ser adotada por
praticamente todos os Estados. Todavia, h um aspecto na obra de Hayek (1990) que muito
chama a ateno quando analisamos a organizao poltico-econmica mundial atual: a
caracterizao que ele faz dos regimes totalitrios aplica-se quase totalmente aos EUA, a
grande potncia liberal, a prova de que o liberalismo d certo.
Primeiramente, Hayek (1990) defende a tese de que, nos regimes totalitrios, somente
os piores chegam ao poder (Hayek, 1990, p. 134). Primeiro, porque os ditadores necessitam
de alto grau de uniformidade e semelhana de pontos de vista entre os indivduos, e isso s
possvel nas camadas em que os padres morais e intelectuais so inferiores, e prevalecem os
instintos mais primitivos e comuns (Hayek, 1990, p.137). Sendo assim, o ditador conseguir,
ento, apoio dos dceis e simplrios, que no tm convices fortes, mas aceitam um sistema
de valores imposto, desde que seja apregoado com bastante estrpito e insistncia.
H uma outra razo para a subida dos piores, ainda mais importante: o ditador
somente consegue criar um grupo homogneo de apoiadores quando suscita no povo o dio a
28
um inimigo ou a inveja dos que esto em melhor situao. Em suma, os piores chegam ao
poder porque somente chega ao poder quem capaz de criar uma inimizade entre o povo
dominado e um inimigo escolhido (judeus, kulaks, terroristas). A anttese ns e eles, a luta
comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer
ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando ao comum (Hayek, 1990, p. 137).
Outras caractersticas dos regimes totalitrios tambm nos remetem aos EUA do
sculo XX: a propaganda utilizada para minimizar o sentimento de opresso na populao e
produzir uma caracterstica de padronizao das mentes, e a criao de mitos para justificar os
atos do lder totalitrio, com a adoo de teorias que fornecem justificativas racionais para o
preconceito que o lder pretende disseminar (Hayek, 1990, p. 150). Tambm interessante
analisar o mecanismo de perverso da linguagem utilizado pelos lderes totalitrios, com a
deliberada mudana no sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes.
Hayek afirma que as palavras mais utilizadas por tais lderes so liberdade, justia, lei, direito
e igualdade, sendo que a primeira (liberdade) sempre a mais deturpada. Poderamos
atualizar essa lista a partir dos discursos de George W. Bush, acrescentando-lhe a palavra
democracia.
1.2. A globalizao imperial
Herman e Chomsky (2003) afirmam que a mdia de massa norte-americana, composta
por grandes empresas que controlam os mais diversos tipos de veculos de comunicao
(jornais, revistas, redes de televiso, canais a cabo, editoras de livros, somente para citar os
mais importantes), claramente um poderoso instrumento de propaganda do governo norte-
americano. A grande maioria dos canais da mdia funciona segundo um modelo de
propaganda, e esse modelo garante que somente a informao desejada aparea, de forma a
manipular a opinio pblica, de maneira semelhante aos regimes totalitrios e socialistas de
economia planificada. Todavia, quando a mdia est sob controle direto da burocracia estatal,
torna-se muito mais fcil identific-la como instrumento de propaganda da elite dominante
(inclusive porque submetida a sistemas de censura formal). Na contemporaneidade, a mdia
privada e no existe censura formal, h um ambiente de competio acirrada entre as vrias
empresas ligadas a ela, e freqentemente so veiculadas crticas a grandes empresas e s aes
governamentais e, mais importante, ela se pretende porta-voz da liberdade de expresso e do
interesse geral da comunidade. Todavia, no questionada a natureza limitada dessas
29
crticas, assim como a enorme desigualdade no domnio dos recursos, bem como seu efeito
tanto no acesso ao sistema de mdia privada quanto em seu comportamento e desempenho
(Herman e Chomsky, 2003, p. 62). Sendo assim, a relao que a mdia guarda com as elites
dominantes disfarada, no aparece com clareza, e assim torna-se mais difcil identific-la
como instrumento de propaganda.
Os autores apontam cinco tipos de filtros de notcias, que permitem que s as notcias
adequadas sejam veiculadas, marginalizando as opinies contrrias e garantindo que as elites
dominantes transmitam seus recados ao pblico. O primeiro desses filtros baseia-se no fato de
um empreendimento de mdia de massa requerer um investimento enorme. Dessa forma, a
propriedade da mdia est limitada a empresas ou grupos empresariais com capacidade de
realizar grandes investimentos. Alm disso, tais empresas esto fortemente integradas ao
mercado de aes, e sofrem presses constantes de grandes acionistas, diretores e banqueiros.
Soma-se a isso a grande centralizao dos canais da mdia em poucos grupos (somente 29
sistemas de mdia respondem por mais da metade da circulao de jornais e pela maior parte
do faturamento e do pblico de revistas, transmisses, livros e filmes). H uma clara
tendncia fuso de grupos de mdia, e criao de sistemas de monoplio cada vez maiores.
dessa maneira que a grande parte da informao veiculada concentra-se nas mos de um
pequeno grupo de empresas. Obviamente, essa informao no ir ferir os seus interesses.
O segundo filtro consiste no fato de que grande parte das receitas dos sistemas de
mdia advm da propaganda. Sendo assim, as demandas da populao em geral, que so os
consumidores dos servios oferecidos pela mdia (leitores de jornais, revistas, espectadores de
programas televisivos), no so os fatores decisivos na definio do tipo de notcia que ser
veiculada. O anunciante tem, a, um papel proeminente, visto que a prpria sobrevivncia do
sistema de mdia depende dele. Isso particularmente evidente no caso da mdia televisiva.
Como a televiso financiada pela propaganda, os anunciantes tm o poder de determinar a
programao da TV, e as redes de televiso fazem de tudo para seduzir os anunciantes, e isso
inclui buscar um pblico alvo com alto poder aquisitivo. Conforme salientam Herman e
Chomsky (2003, p. 75): A idia de que a corrida por grandes pblicos torna a mdia de
massa democrtica sofre da fraqueza inicial de que seu anlogo poltico um sistema de
votao ponderado pela renda!
O terceiro filtro est na fonte de notcias da mdia de massa. Ela tem uma espcie de
relao simbitica com as elites dominantes, em funo de uma reciprocidade de interesses. A
30
mdia tem uma grande demanda por acontecimentos dirios que tem que cobrir, e
evidentemente os custos da manuteno de equipes de reportagem nos quatro cantos do
planeta no baixo. Sendo assim, em funo de um imperativo econmico, a mdia se apia
em fontes de informao ligadas aos governos. Herman e Chomsky (2003) citam a Casa
Branca, o Pentgono e o Departamento de Estado em Washington como locais de obteno de
furos jornalsticos por reprteres. Os autores mostram que as instituies governamentais
gastam pores considerveis de suas receitas com a produo de notcias, ou com assessorias
de comunicao. Dessa forma, instituies como essas subsidiam a mdia de massa ao
produzir as notcias e fornec-las para a mdia. Fica, ento, difcil para os veculos de mdia
criticarem as autoridades, visto que so delas profundamente dependentes. Existem,
obviamente, fontes extra-of
Recommended