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GT MITO, IMAGEM E CENA - DRAMATURGIA EXPANDIDA NAS
ESTÉTICAS DESCOLONIAIS
O CARNAVAL E O TERREIRO: O SAGRADO FESTIVO NA
CONSTRUÇÃO DRAMATÚRGICA DE “TRÊS MULHERES DE XANGÔ
PAULO EDUARDO CECCONELLO, GRÁCIA NAVARRO
Zora Seljan é uma das poucas dramaturgas presentes na história do
teatro brasileiro. Apresentamos a peça “Três mulheres de Xangô” fruto de seu
trabalho, que primava em descortinar as tradições mitológicas africanas
estabelecidas nas liturgias cerimonias do candomblé.
PALAVRAS-CHAVES: Zora Seljan: dramaturgia: Candomblé:
RESUMEM
Zora Seljan es uno de los pocos autores presentes en la historia del teatro
brasileño. Aquí está la obra "Tres mujeres de Xango" fruto de su trabajo, que
se destacan en las tradiciones mitológicas africanos revelando establecidos en
las liturgias ceremonias de Candomblé.
PALABRAS-CLAVES: Zora Seljan: dramaturgia: Candomblé
ABSTRACT
Zora Seljan is one of the few playwrights present in the history of Brazilian
theater. Here is the play "Three women of Xango" fruit of his work, which excel
in unveiling African mythological traditions established in the liturgies
ceremonies of Candomblé.
KEYWORDS: Zora Seljan: dramaturgy: Candomblé
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A benção a todas e todos! (É deste modo que os filhos de santo se apresentam
nos terreiros).
São poucas as mulheres que enveredaram seu trabalho na literatura
dramatúrgica, um universo quase dominado pelos homens, porém, Zora Seljan
galgou seu espaço como grande dramaturga.
Pioneira, suas peças tratam sobre temas que rodeiam a cultura afro-brasileira,
o universo mítico dos orixás e a realidade dos descendentes de negros
africanos no Brasil.
Ao buscarmos informações sobre sua biografia e sobre sua produção
dramatúrgica, descobrimos pouquíssimas referências. Investigamos o mundo
virtual da Internet e encontramos os dois pilares fundamentais que compõem
referências bibliográficas para nosso trabalho. O primeiro é uma entrevista que
Seljan concedeu ao jornal “Cruzeiro da Manhã” intitulada de “A Terra da Lenda
Fascina Zora”, publicada em primeiro de dezembro de 1963, e a segunda, uma
página, uma comunidade do Facebook, com apenas dezessete curtidas, criada
pelo seu neto, Daniel Braga, a qual contribui com informações importantíssimas
sobre nossa dramaturga desconhecida por grande parte do público brasileiro.
A dramaturga Zora Seljan nasceu na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, em
sete de dezembro de 1918, filha de pai croata, o engenheiro Stevo Seljan, e
mãe mineira, a professora Aracy Lessa Seljan. Iniciou seus estudos ainda em
Ouro Preto. Foi no ginásio mineiro que Zora começou a se interessar por
jornalismo e a experimentar a literatura. Flertou com a poesia, mas a
abandonou. Mudou-se para Belo Horizonte, onde cursou magistério. Nesse
período aproximou-se de um grupo de jovens escritores, como Fernando
Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Rubem Braga, com
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quem se casou. O casal residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo e teve um
filho.
Nesse período, Zora ligou-se aos ideais de esquerda, influenciada por amigos
como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Candido Portinari. Chegou a ser presa
pelo DOPS. Após a Segunda Guerra Mundial, Zora separou-se de Braga e
mudou-se para a Europa. Esteve nos países da cortina de ferro, os que
compunham a antiga União Soviética, como Rússia, Armênia, Azerbaijão,
Bielorrússia, Estónia, Geórgia, Cazaquistão, Lituânia, Letônia, Moldávia,
Ucrânia e os estados-satélites, Alemanha Oriental, Polônia, a ainda
Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária e Romênia.
Também conheceu líderes de países africanos e, quando voltou ao Brasil,
publicou o primeiro livro sobre a temática do pós-guerra em território nacional
com o título “Eu vi as Democracias Populares”. Trouxe consigo a enorme
importância que os países recém-criados davam ao folclore, assim passando a
se interessar definitivamente por esse tema dentro da esfera cultural brasileira.
Mudou-se para a Bahia, e iniciou seus estudos sobre candomblé e a diáspora
africana. Em 1955, conheceu seu segundo marido, Antônio Olinto. Começou a
colher material e inaugurou sua obra dramatúrgica com inspiração na cultura
afro-brasileira. Em 1958 publicou a trilogia “Três Mulheres de Xangô”,
contribuindo para a visibilidade da religiosidade negra no Brasil.
Na década de 60, viveu com Olinto na Nigéria, onde ele foi embaixador, e pôde
confrontar as influências culturais africanas que o Brasil experimentou após o
tráfico transatlântico. De volta ao Brasil, fundou o Conjunto folclórico Oxumaré
e passou a ocupar um solene cargo religioso na casa de candomblé Ilê Opô
Afonjá em Salvador.
Seu teatro foi muito importante para a divulgação da cultura iorubana em
território nacional e internacional. Publicou outras obras sob esta temática,
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como: “Festa do Bonfim”, “História de Oxalá”, “Iemanjá e suas lendas”,
“Iemanjá, mãe dos Orixás”, “Exu, Cavaleiro da Encruzilhada”, obra traduzida
para inglês. Morreu em 26 de abril, no Rio de Janeiro, deixando um legado
importante sobre a cultura afro-brasileira. “Como se vê, os caminhos propostos
por Zora Seljan ainda estão à espera de uma grande divulgação e projetos à
altura de sua importância para nós, brasileiros.”(COELHO, 2006).
Para a dramaturga Zora Seljan, a fonte festiva de inspiração para sua obra é a
mitologia iorubana. Sendo assim, no culto aos orixás, encontramos um mito
que destaca Olodumarê, como o deus supremo, o senhor do mundo, e que
está no Orum (céu) longe demais do Ayê (terra) para se diligenciar pela
humanidade, porém, repleto de benevolência, criou entidades sagradas com a
incumbência de gerar e reger o mundo, foi conferindo a elas poderes mágicos
e domínios sobre todos os elementos naturais (água, fogo, terra, ar, pedras,
metais), abrangendo suas manifestações (os rios, as cachoeiras, o mar, o
vento, a lama, o trovão, o raio, a chuva, o arco-íris), incluindo os reinos
vegetais e animais. Os orixás ainda são responsáveis por todas as etapas da
vida humana, como o nascimento, o crescimento, as atividades sexuais, as
enfermidades e a morte (PRANDI, 2001).
Esses seres sagrados, os orixás, são forças vívidas que se manifestam no
tempo presente, simbolizam o despertar para a atemporalidade das virtudes
humanas, os únicos a interceder nos anos de escravidão pela vida dos negros,
órfãos de terra e liberdade.
Os orixás possuem características definidas, arquétipos com particularidades
que lhes asseguram campos de atuações no plano terreno. São deuses cheios
de vivacidade, com predileções e ascos, nem bons nem maus, mandatários de
poderes que podem ser invocados através do conhecimento ancestral pelos
que rogam por auxílio. Podemos ressaltar as considerações de Martins (2008,
p.28):
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Assim, o Candomblé exercita o equilíbrio e a harmonia
com os elementos naturais do Universo. Cada Orixá
representa suas qualidades específicas e próprias da sua
história ancestral através dos seus atributos, da sua
dança, da sua música, da sua indumentária, das suas
folhas, da sua comida, das suas cores, dos seus símbolos
e de suas contas.
Desse modo, a dramaturgia de Zora Seljan descortina as divindades iorubanas,
suas páginas cinzelam um universo onírico e cheio de magia. O interesse de
seu trabalho não é simplesmente representar as festas de santo realizadas nos
terreiros em cada canto do Brasil: o palco das cenas criadas por Zora se
desenrola “no inconsciente mítico do povo” (SELJAN, 1958, p.15), no desejo de
desvendar a tradição ancestral africana, de como ele, ampliando e aguçando
seus sentidos, expande sua condição humana para se fundir com a natureza.
Assim, tal sacralidade é a marca sobre a qual se edifica o comportamento
religioso dos fieis aos orixás, reflete o fascínio que a divindade conjura nos
mortais, é um poder que não se define, um força sobrenatural e descomedida,
pujante além da imaginação, alça qualquer um para fora da razão. Tal
desconhecimento fascina e inebria, é foco de respeito, veneração. Desse jeito,
o culto sagrado aos orixás carrega de validade simbólica gestos, pessoas,
espaços e tempos, considerados intercessores para o encontro com o divino.
No candomblé as ações rituais são os arbítrios para a realização do sagrado, é
por eles que o crente acredita manter comunhão com a divindade, pois o
homem coloca sua dependência no sagrado para poder superar suas
limitações.
É com o batuque dos atabaques, ao som do agogô, entoando cânticos em
línguas antigas e rodopiando, no frenesi do transe, que a ligação com o
sagrado se realiza em uma cerimônia de culto aos orixás. Assim, mergulhar no
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universo da religiosidade afro-brasileira será sempre um caminho encantado
por símbolos, ritos, vestimentas, danças, músicas, comida e muita alegria.
A arte e a cultura, influenciadas pela ancestralidade africana, refletem a
congregação dos saberes necessários para o equilíbrio entre o homem e a
natureza, transformando o conhecimento primal, ou arquetípico, em sagrado,
aglutinando o passado e o presente, unido grupos sociais, produzindo
conhecimentos nos campos ético, estético, filosófico e religioso, traduzindo as
experiências materiais concretas em campos simbólicos e expressões
artísticas.
Como ressalta Silva e Calaça (2006), esteticamente a arte ancestral africana
expressa-se na cotidianidade, na pintura, na escultura, na dança, ou em
qualquer linguagem artística, resultam transbordamentos de aspectos
ordinários. Assim, ao se materializarem em arte, passam a ser fonte
inesgotável da tradição e da cultura, afirmando e reafirmando, interpretando e
reinterpretando as regras estabelecidas de comportamento e agrupamento
social.
Contudo, como observa Nascimento (2006, p.40),
Nessa volta às fontes originárias da arte africana, não
tenciono cometer o suicídio de um regresso histórico. Não
advogo a reprodução de uma forma existencial pretérita.
Meus orixás estão longe de configurarem deuses
arcaicos, petrificados no tempo e no espaço do folclore ou
perdidos nas estratosferas da especulação teórica de
cunho acadêmico. São presenças vivas e viventes.
Habitam tanto a África como o Brasil e todas as Américas,
no presente, e não nos séculos dos mortos. Surgem na
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vida cotidiana e nos assuntos seculares, legados pela
história e pelos ancestrais. [...].
Nesse contexto, e no que diz respeito à especificidade da dança originária
dessa tradição, podemos entendê-la associada à origem, cultura e a história de
um povo. Ela aparece como algo representativo de seus mitos, com
movimentos executados na finalidade de sacralizar a relação estabelecida
entre o homem e seus deuses, sendo postuladora da fé. Nesse cenário, o
intuito é de afirmar uma religiosidade, louvando, agradecendo, enaltecendo,
saudando. E o corpo e seus movimentos se organizam como parte da
experiência litúrgica.
Essa noção estético-religiosa chegou ao Brasil, junto dos grilhões que
prendiam os negros escravizados das mais diferentes regiões africanas, pois,
como observa Verger (2000, p.20), “[O] tráfico dos negros, cujos braços iriam
substituir os dos índios [...]” tornou-se o ponto de ligação entre a nova terra
inóspita e a ancestralidade deixada além-mar.
Ainda de acordo com Verger (2000), aliados ou inimigos, a infelicidade do
convívio em cativeiro forçou os escravos a organizar hábitos comuns. Nesse
sentido, deuses que eram superiores para alguns não tinham o mesmo respeito
para outros, mas passaram a fazer parte de uma reorganização que deu nova
forma aos conhecimentos trazidos da África. Assim, os dominadores brancos
não puderam impedir a realização dos batuques das casas de santo ou terreiro,
aceitando a realização dos rituais religiosos. Nesse novo contexto, negros de
diversas regiões da África tiveram que se “reagrupar” e permitir a multiplicidade
de culto às diversas divindades dentro do mesmo espaço físico. “A adversa
condição compartilhada da escravidão e a comunalidade de orientações
cognitivas africanas teriam levado os negros a uma solidariedade interétnica de
caráter ‘pan-africanista’.” (PARÉS, 2007; p. 126)
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Envolta nas conjunções estéticas e éticas religiosas do universo iorubano, em
1958, compilando seu trabalho no desejo de divulgar ao público suas
pesquisas no continente africano e enaltecer a ancestralidade negra que
compõe a identidade e a cultura brasileira, Seljan publicou a peça “Três
mulheres de Xangô”, reeditada em 1978 com outras peças inéditas, mas sob o
mesmo título.
Nessas peças, a autora se preocupa em criar um capítulo introdutório
meticulosamente detalhado, caracterizando exatamente como a montagem
teatral deverá ser executada e elucidando a natureza de cada personagem,
suas características físicas e emocionais, cada dança, música e cenários
atribuídos a eles.
Dessa forma, pelas propostas da autora, podemos analisar sua dramaturgia
através de elementos nutridos de uma “força criadora, cultura folclórica,
sensibilidade musical, coreográfica e plástica” (SELJAN, 1958, p.10), que
ultrapassam as palavras escritas e evocam a cultura ancestral africana.
Assim, em “Três mulheres de Xangô” a autora reuniu três peças que se
enveredam pelo universo das Yabás: Oxum, Iansan e Obá, orixás femininas
que, como indica o título da peça, foram desposadas pelo orixá da justiça. A
dramaturga nomeou as peças assim: “Oxum Abalô”, “Iansan, a mulher de
Xangô” e “Orelha de Obá”.
“Meus personagens são deuses que se manifestam
dançando. Não somente a palavra, também a música e os
bailados são indispensáveis à ação dramática da ‘Oxum
Abalô’ (deusa ‘que brinca com o leque’) (...) Que se veja,
no ‘machado de Xangô’, por exemplo, não apenas uma
lasca de pedra, mas a origem do fogo, o símbolo dos
trovões” (SELJAN, 1958, p.10).
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As personagens dessas peças são mulheres marcantes, elas enfrentaram o
mundo pela existência do feminino em singularidade, três mulheres, três
guerreiras, três amantes, três esposas... Que avançam sobre poderes pré-
estabelecido.
Não obstante, o feminino como tema esta presente nas narrativas ao longo da
história da humanidade, ele sempre retorna com formatos novos, é
imprescindivelmente constante, recorrente, suscita novas buscas sobre as
representações mitológicas das feminilidades como arquétipos. Pois, as
imagens arquetípicas (JUNG, 1985b) representam as manifestações do
inconsciente coletivo, sua natureza é constitutiva através dos motivos
mitológicos arcaicos, e por serem primordialmente umbrátil repete-se nos
tempos e culturas produzidas pela humanidade. Deste modo, temos a
presença das Yabás mitológicas nos textos de Zora Seljan.
Assim, ao desenvolver sua obra, Seljan remonta tais imagens arquetípicas,
revelando os elementos estruturais e formadores do inconsciente que dão
origem tanto às fantasias individuais quanto às mitologias de um povo, ou seja,
as imagens ou motivos mitológicos que representam os arquétipos (JUNG,
1985a). Frequentemente as bases arquetípicas correspondem a temas
mitológicos presentes em contos e lendas populares de épocas e culturas
diferentes, permitindo “uma possibilidade de representação de figuras que
reaparecem no decorrer da história, sempre que a imaginação criativa for
livremente expressa” (BRENTAN, 2009, p. 51).
Portanto, o arquétipo representa em sua essência o conteúdo inconsciente,
porém ele se modifica através de sua conscientização e percepção,
caracterizando matrizes que variam de acordo com cada consciência individual
que se manifesta (JUNG, 1985a). Com linguagem própria de seu momento, o
artista, pode a acessar as estruturas inatas que servem como modelo para a
expressão e desenvolvimento da psique, ou seja, o arquétipo.
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Este é o ponto que temos a significação social da obra de arte, reafirmando no
tempo presente as necessidades aprendidas com o passado. Trabalhando
assim o espírito da época na busca da imagem primitiva, obtendo respostas
para uma insatisfação atual. Portanto, a obra de arte representa uma
“autorregulação espiritual” dentro das esferas sociais no qual ele está inserido
(JUNG, 1985b). Quando invocado esse estado criativo provocado pelas
imagens primordiais ou arquetípicas, deparamo-nos com uma força emocional
muito intensa, pois com ela vem à tona toda experiência humana armazenada
desde os primórdios, deixando de ser um para serem todos, para sermos uma
unidade. “Em tais momentos em que se é tocado por estas imagens, não
somos mais indivíduos, mas uma espécie, pois a voz de toda a humanidade
ressoa em nós” (JUNG,1985b).
Desta forma, em “Oxum Abalô” a primeira peça da trilogia “Três mulheres de
Xangô”, Oxum serve como medida para a personificação do feminino, ela
origina-se do símbolo da fecundidade, é a senhora que se dedica a
manutenção da fertilidade em cada ser humano. Protetora dos casamentos. A
mais bela entre as belas. Oxum é a própria menstruação, ela ostenta suas
“regras”, se em algum momento elas representaram vergonha ou inferioridade
nas mulheres, ela exalta-a como o real poder feminino, ela proclama sua
capacidade de gerar filhos. Oxum é a abundância, a fartura em essência,
contribui também para a opulência da humanidade no campo das ideias
estimulando sua criatividade possibilitando seu desenvolvimento. Dona da
riqueza, senhora do ouro. Alegre e risonha, rica de dengos, muito inteligente e
ardilosa, menina, mulher e sábia, generosa e compassiva, nunca exacerbada.
Oxum é elegante, adornada por joias, soberana que nada rejeita e tudo oferta.
Encarna o amor, a mansidão atraente, a sedução irremissível. Todos querem
saborear seu gosto doce, de seu encanto e para isso oferecem perfumes,
adornos para fartar sua vaidade.
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[...] Entram a Ebomim e a Iaô carregando uma bacia
fantástica, dentro da qual trazem duas cestas com pétalas
de rosas e um tapete enrolado.
Elas colocam a bacia no chão, desenrolando o tapeta,
apanham as cestas e se ajoelham ao lado das Iaôs de
Oxum, enquanto as duas filhas cantam.
Entra equede, com um vidro de perfume, finge que joga
na bacia e ajoelha-se depois. Entram a Dagã e a Sidagã
carregando vasos, fingem que jogam na bacia e se
ajoelham junto de Oxum, uma de cada lado. Enquanto
isto, só os atabaques tocam.
Entram: filha 1 carregando vestido, filha 2 uma toalha
rendada, filha 3 uma cesta de objetos de toilette, filha 4
outra cesta com joias.elas dançam mostrando a oxum
suas prendas. As duas filhas cantam.
Oxum aprova a escolha das prendas coma cabeça e
levanta-se. A Dagã apanha sua escova de cabelos, a
Sidagã o espelho de mão. Oxum dança por todo o palco,
acompanhada pelas duas olhando-se no espelho e
escovando os cabelos. (ibidem, 1958, p. 43 e 44 grifos da
autora)
Orixá da beleza utiliza-se da astucia e do chame para apoderar-se dos
prazeres da vida, apaixonada pelo poder e pela sumptuosidade da fortuna,
Oxum com ânsia busca por conseguir seus quereres, enfrentando todos que
por ventura atrapalhassem seu caminho. Seu completo desejo é ser amada, a
mais reverenciada. Exerce respeitável papel no jogo de búzios, pois é Oxum
quem formula as perguntas que Exu irá responder.
Dessa maneira, Zora Seljan começa a peça, que é dividida em três atos,
retomando a uma lenda que compõe o vasto conjunto de mitos que são
atribuídos a Oxum, ela se sente abandonada pelo primeiro marido, senhor das
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matas, Oxóssi, que se ocupava muito caçando e não a prestigiava com a
atenção que lhe achava necessária. Após um trato feito com Exu, para que o
orixá mensageiro mantivesse seu marido Oxóssi para longe com sua caçada,
para que a senhora do Ouro recebesse sozinha a visita de um rei vindouro de
outros domínios, o rei Xangô.
“OXUM – Não zombes, Exu. Queres alguma coisa?
EXU – tive uma ideia...
OXUM – qual foi?
EXU – Oxóssi e precisa levar uma lição
OXUM – Dizes bem, mas o que posso fazer?
EXU – Ele não foi buscar um carneiro?
OXUM – Foi.
EXÚ – Se quiseres, toco o rebanho para mais longe.
OXUM – O que ganho com isso?
EXU – Assim receberás Xangô... A Honra da festa caberá
somente a ti. Dirão que és uma grande rainha, que tua
casa é magnifica e que Oxóssi é... um selvagem...”
(ibidem, 1958, p.42)
Oxum adora aventuras, torna-se guerreira para enfrentar sua sorte,
determinada, usa de malicia para iludir seus inimigos e doçura para com seus
amigos. Oxum é acima de tudo a divindade do amor, elimina qualquer
concorrência, pois todas as atenções são para ela. Nas artimanhas amorosas
ninguém consegue ser melhor que Oxum. Ela se rende totalmente ao seu
amado quando apaixonada, nutre-se de romantismo.
De volta à peça, após a chegada de Xangô, que faz sua visita no intuito de
convocar a todos para lutarem contra invasores em seu reino, Oxum, lhe
oferece um farto jantar com todas as especiarias que o grande senhor do
trovão aprecia, ambos vão dormir, pois ela está sempre preocupada com o
conforto das pessoas que a cerca, querendo atender a suas necessidades. Um
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quarto é separado há Xangô que prefere dormir nos pés da cama de Oxum.
Pois, a graça e as boas maneiras são suas particularidades, é muito dedicada
ao próximo. Não resiste ao ardor da paixão e então vai embora com Xangô,
abandonando seu reino e seu marido. Oxum dedica-se na buscar ao prazer.
“OXUM – Em cada espelho vejo outro rosto. Neste, bem
triste, naquele, alegre. Danço graciosa... balanço o
corpo... meus olhos brilham, tremem os lábios... sou a
noiva que vai casar... Um passo à frente e me transformo.
Eis a rainha de olhar sereno e face altiva! Gosto de me
olhar nestes espelhos quando todos dormem. O luxo
realça a beleza e o silêncio a enobrece. Em casa de
Oxosse era tudo rústico... Ah, caçador descuidado,
perdeste para sempre a tua ovelhinha” (ibidem, 1958,
p.55)
Após a chegada de Oxum ao reino de Xangô, a deusa do ouro convence sua
irmã Iansã a se tornar também esposa do senhor do trovão. A luta contra os
invasores se intensifica todos vão para guerra e Oxum se nega, pois ela é um
dos poucos orixás que não se interessa por guerrear, porém, ela é convencida
por Exu a lutar ao lado de seu novo marido juntamente com seu séquito. O
inimigo é vencido, e uma grande festa se instaura para a honra dos deuses
iorubanos, a peça termina recheada de muita música e muita dança.
Oxum é a mais bela do panteão Afro-brasileiro, no candomblé dança
segurando em uma das mãos um espelho, o abebé, em sua dança mítica ela
se banha nas aguas dos rios, penteia seus longos cabelos, adorna-se com
suas magnificas joias, seduzindo a todos com movimentos lentos e
provocantes.
Agora, Iansan não é uma mulher passiva. Ela luta! Luta com as armas que têm
disponíveis, seja sua espada de bronze, seja com sua sexualidade. Ela se
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constitui de seus “sábios” instintos, ela é visceral. Ela sabe que causará
reações a cada palavra que profere. Enlouque e se faz enlouquecer quando
tem um desejo não realizado. Como suas paixões são permanentemente
intensas, assemelha-se a vulcões a explodir. É a deusa da espada de fogo,
senhora das paixões, rainha dos raios, é uma orixá ligada ao fogo.
Ela é a própria ventania, ou a brisa que alivia o calor, sabe ser intensa e
mansa, Oyá, o outro nome atribuído a Iansan, é a beleza do raio reluzindo no
céu tempestuoso, é a eletricidade, enérgica, pulsante, vibrátil. Deusa dos
deslocamentos coloca tudo em movimento, é desaforada, provocadora e muito
ciumenta. Iansan é feita de paixões violentas, daquelas que come a vida dos
que sofrem de amor, gera delírios, enlouquece de desejo sexual. É o gozo. Ela
é o anseio impulsivo, o desejo impetuoso que tripudia da razão, o encanto
adoidado, a inveja deleitável, ela é o sinônimo de paixão.
Iansan é o jogo de sedução. É a suspensão do medo no campo de batalha
entre desejo e a sensatez. O alvitre da traição, o querer amar livremente. Em,
“Iansan – mulher de Xangô”, a segunda peça, publicada juntamente com
“Oxum Abalô”, dividida também em três atos por Zora Seljan, já nas primeiras
ações da peça o animal Carneiro (mitologicamente, tem repulsa do animal
carneiro que lhe traz mau agouro e quizila, brigas) esta contanto para os
humanos que os orixás estão reunidos em conselho, todos eles representando
os reinos, do ar, da terra, das águas e do fogo. Deste conselho, Iansan sai
enraivecida, foi ofendida, estão fazendo julgamentos morais sobre seu
comportamento inclusive o sexual. Dona de seus desejos, ela não se
arrepende de seus atos: só não quer que suas aventuras caiam na boca de
todos e nem nos ouvidos de seu marido Xangô, e por este motivo vai descontar
sua ira em toda a humanidade.
“Vulto de IANSAN – A honra de Iansan foi manchada. Os
homens espalharam histórias infames a meu respeito. Ai
deles! Desvirtuaram minha gloria, amesquinharam meus
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poderes, fazendo-me padroeira de degenerados e
canalhas que infestam os terreiros.” (ibidem, 1958, p. 145)
Retornando a peça, Sua luta se vira também contra seu esposo Xangô, que
não a protegeu das severas criticas que seu comportamento recebeu, evoca os
Eguns para compor seu exército contra todos os pernósticos que ousam
confrontar seu poder.
Oyá é mãe de todos os Eguns (espirito desencarnados), ela conduzirá todas as
almas que se soltaram do corpo físico para o outro mundo. Divide junto com
Obaluaê (Orixá da cura) o domínio dos campos santos, os cemitérios, como
deusa dos mortos, Iansã leva em sua posse um eruxin, instrumento feito de
rabo de cavalo, no qual ela braceja no ar para firmar o respeito sobre os Eguns.
“IANSAN – Fui derrotada no conselho dos Orixás, mas
hei de vencer minha demanda. Ah Xangô, meu esposo!
Tu não me apoiaste! Estás fugindo de mim! Não queres
me ouvir! Eu luto de peito aberto, pois não receio a força
nem me deixo intimidar. Vem prender o Martim Pescador,
se és capaz!
(Gritando) Xangô! Xangô! Iansan te desafia no céu e na
terra!” (ibidem, 1958, p. 148)
A rivalidade entre Iansan e Xangô já esta tramada, exércitos a posto para o
inicio do confronto, de um lado a dignidade da lógica feminina e do outro a
obstinação masculina, porém o senhor do trovão pede pela interseção do
grande Senhor Branco, Oxalá, senhor de todo o panteão iorubano, o mais
velho e o mais sábio, que acalme o incêndio que Iansã esta provocando no
mundo e o faça a mudar de ideia, e com toda a calma que é reservada ao
grande ancião ele consegue reverter à situação.
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OXALÁ – Aproxima-te. Dá-me teu manto e solta os
cabelos. (Iansan entrega-lhe o manto, a espada e o
capacete) Pronto! Estás linda e já podes fazer o gesto da
bonança, porque a tormenta não casa com a beleza.
IANSAN – Assim seja! (Acena para longe sorrindo)
OXALÁ – Teu esposo dorme naquela colina. Ao chegares
perto dele a brisa fará oscilar de leve as pétalas das rosas
que as iaôs te ofertaram. Relembra as glórias e os
amores passados. Xangô acompanhará em sonhos teu
pensamento. Quando ele acordar, tem cuidado, não
espantes o carinho.
IANSAN – Obrigado, meu pai! (beija-lhe a face)
OXALÁ – (levantando-se) – Vai e se feliz. (Sai) (ibidem,
1958, p. 152).
A figura de Iansan não se envolve com as outras protagonistas femininas do
panteão mitológico iorubano, seu enredo está sempre ligado aos campos
consagrados ao universo masculino, uma vez que é uma orixá que exibe-se
nos campos de batalha, nas lutas heroicas, no trilho do perigo. Nada nela é
medíocre. Iansã não é discreta, é dramática. É a orixá do arrebatamento.
No final da peça, Zora Seljan, reafirma o arquétipo vingativo de Iansan, sedenta
por castigar seus opositores, a quem lhe traiu, o Carneiro é entregue ao
babalorixá para que seja imolado em sacrifício e toda a paz possa voltar ao
reino dos humanos e dos deuses.
IANSAN – E pelos tempos afora, como lembranças do
meu aborrecimento pelos delatores e traidores, proíbo aos
homens e mulheres que se dediquem ao meu culto, de
comer carne de carneiro, de sentar-se em banco feito com
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couro de um carneiro e de usar qualquer objeto fabricado
com casco ou chifre dos carneiros.
BABALORIXÁ (Beijando-lhe a mão) – Assim seja!
TODOS – “Eparrei Iansan! Kauô Kabiecile!”
E por última Obá, a esposa mais velha de Xangô, tem um temperamento
apaixonante, é neurastênica e audaz, não tem medo de ninguém, mesmo
mulher, é temida por sua força, muito enérgica, celebrada como mais forte que
muitos orixás masculinos. Gosta de brigar. Muito misteriosa e tudo que está
relacionada a ela é envolto a uma área de segredo. Tem em sua mão uma
espada e um escudo pra atacar e se defender de seu oponente. Esta sempre
na defensiva.
Sabia guerreira, anciã, amazona impávida, honrada sibila, poderosa. Defensora
dos injustiçados. Ela é uma mulher de meia idade, sem grandes atrativos
físicos, sem chame. Obá ignora o medo, não se acovarda diante de
contratempos, de uma praticidade impar e muito leal. Obá é a pororoca, o
encontro das águas do rio com a maré, uma enorme onda, um vagalhão que
produz um barulho agressivo, esta metáfora marca o relacionamento
eternamente bélico com sua irmã Oxum. Obá tem muito ciúme e rancor da
preferencia que Xangô manifesta pela companhia de Oxum.
É sob este perspectiva arquetípica que a Dramaturgia de Zora Seljan se inicia
ao contar o episódio mitológico que marca as duas orixás. Em apenas um ato
Oxum leva Obá a se mutilar em nome do amor. A orixá mais velha, enciumada
pelos encantos que Oxum lançava ao marido que elas dividiam, vai procurá-la
para descobrir como agradá-lo também, porém Oxum sugere que ela cozinhe
sua própria orelha para Xangô, como forma de sedução. Obá, desesperada,
decepa sua própria orelha e serve ao seu esposo, que a repudia.
“OXUM – Deixa minha comida em paz, mana.
- 3002 -
OBÁ – (debruçando sobre a panela) – Parece uma rosa,
parece uma nuvem do crepúsculo... Parece uma orelha
de mulher!
OXUM – Não é nada disso.
OBÁ – É orelha, sim, tem até brinco de pérola!
Agora não podes escapar. Sou tua irmã primogênita e me
deves obrigação. Conta o segredo!
OXUM – Pois bem, mana, já que és tão abelhuda...
OBÁ (Interrompendo-a) – ... é orelha, não é? Conta
depressa!
OXUM – É minha orelha direita. Cortei-a e coloco-a
sempre na comida. Deixo dar umas fervuras e guardo-a
novamente dentro do sal, para não estragar. (ibidem,
1958, p.204)
Xangô ao receber a comida, vê o alguidar (tigela ritual), as mãos e por baixo do
turbabte de Obá banhados por sangue que lhe causa repulsa, esbraveja
violentamente, Oxum que observa tudo de longe se aproxima da irmã mais
velha e debocha de sua credulidade. Obá ingenuamente fui ludibriada por
Oxum. Obá é a própria terra sentindo-se açoitada pela extração do ouro de
Oxum.
OXUM – Descobristes muito bem o meu segredo.
OBÁ (Avançando) – Se eu te pegar, corto-te o pescoço.
OXUM (Desviando-se) – Queres um brinco para enfeitar a orelha
cortada?
OBÁ (Correndo para Oxum) – Vou te dar uma argola de ferro e um
colar de sangue! (Oxum sai do palco perseguida por Obá)
XANGÔ (como se estivesse acordando do choque) – Mulheres!
Respeitai minha presença! (ibidem, 1958, p.206)
- 3003 -
Obá tem uma personalidade muito obstinada, deslinda de causas quiméricas,
ostenta um gênio difícil, ora velha queixosa ora intrépida amazona. Ela é sem
vaidades e nem predicados. Obá é, sobretudo, uma guerreira, lutava
simplesmente por guerrear. Obá é a própria guerra. Senhora dos segredos.
Feminista por vocação, seus compromissos militantes são consequências de
experiências desgostosas e dolorosas por ela saboreada. Sua agressividade
torna-se incompreendida. Deste modo, de volta a peça para finaliza-la, após o
episódio funesto entre a Yabá vaiososa e a Yabá aguerrida, temos a exaltação
de Obá como grande vencedora de demandas, narra a investida desta orixá
juntamente com seu exercito em uma batalha exaltando-a como grande
comandante.
. “OBÁ (Levantando-se) – Uso espada de cobre, escudo
de ferro e capacete de soldado. Vermelho e branco são
as cores do meu estandarte. Amanhã cantarei os meus
feitos no campo de batalha
Mas a guerra passa como ventania que estremece a
serena bonança da vida. Chegará o tempo do vinho e da
rosa. Borboleta que perdeu a asa jamais me será dada a
palavra de amorao pé do ouvido.” (ibidem, 1958, p.213)
Assim, finda as três peças que compõem a obra “Três mulheres de Xangô”,
três mulheres, três possibilidades diferentes do mistério que o feminino a ser
decifrado. três possibilidades de manifestação arquetípicas, três deusas. Um
desvelar de emoções e vicissitudes da natureza feminina,
E por fim, peço agô (licença/obrigado em ioruba), a você meu leitor e a
você meu ouvinte...
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- 3004 -
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