Isto não é uma mala: versão-livro

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Um livro-memória de texto, de foto, de cena.

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isto não é uma mala

Paula LiceSaulo MoreiraMarcelo Sousa Brito

João Milet MeirellesNilson Rocha

Tiago Lima[textos] [fotos]

[versão-livro]

Recuperação da adolescência

É sempre mais difícilancorar um navio no espaço

Ana Cristina Cesar3

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I. Intro. | Você me fala em descompasso. Será que ela perdeu essa aula? E eu te digo: não. Não importam acordos univer-sais, compromisso com unidade, apenas com desejos de identificações. A quem interessar possa. Não cobre rotina, você nem precisa vir. Mas se vier, chegue per-to. Abra os ouvidos e escute. A conversa é baixa. Sussurrada ao pé do ouvido. Não há nada por trás disso. Não existem entre-linhas. Nada por trás de nenhum texto. Só esta carne exposta em veias, sangue-que--corre-anti-água-parada. É sem curva, é sem clímax. Não espere. Nada vai acon-tecer. Mas vou existir por alguns minutos na sua frente. E, quando acabar, talvez você se pergunte o que aconteceu. Mas ninguém poderá te explicar. | Paula Lice

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II. Para Ana C. | É a primeira vez que falo sobre ela. Por favor, ouçam. É ou-tra coisa o que vai por dentro. Tem um aguaceiro que não anda. Água represa-da. Funda. Ela pensa que tudo poderia ser mais simples. Mas a poeira dos livros não permite. Ela me disse que ofereceu um jantar para três personagens: Tho-mas, Heathcliff e Raul, da Homicídios. Só homens, você pensa. Vinho, charutos e a cartola. E coelhos voando em passarada. Falo pouco; encontre; esquina de Con-centração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta. | Paula Lice

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III. Para Etta James | Eu não quero palco. Não tolero plateia. As pessoas me cansam. Síndrome de Fantasma. Invisível, não sei se prefiro ser gari ou ser Jaime. Hoje de manhã eu espirrei no metrô, mas o metrô não existe, e as pessoas me condenaram. Em protesto, limpei a mão de catarro na boca. As pesso-as do mundo se chocam com tudo que corre no corpo. Elas limpam. Sêmen, catarro, sali-va, suor, sangue: nada que mela é bem-vindo fora do corpo. Eu não quero fazer mais nada. Acho que já fiz tudo. Esse é o problema. E não quero tomar banho. Quero me manter suja. Cada partícula de poeira no corpo é um frag-mento de história. Deixem a sujeira impreg-nar meu corpo. Conservo a sujeira para me manter limpa. Eu não vou tomar banho. Água agride. Só hoje. Mas não sei se o hoje passa. Eu sempre penso antes de abrir a janela. Não dou ousadia nenhuma ao mundo, quando sou obrigada a estar no mundo. Dentro de minha casa, quero pouco mundo. O bastável para eu ver o que preciso. E mais nada. Como é jovem e vazia a juventude... A vida é mesmo cheia de nada. Eu fui à rua pra ver se existia alguma forma interessante de vida. Perdi meu tempo. Eu não quero ser acusada de não ter tido pa-

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ciência com a vida ou de não ter dado tempo a ela. Para que ela se tornasse mais viva. Trouxe mais uma folha hoje. Verde nova. Verde bandeira. Des-sa vez, sem leite de parede. Eu tenho um vizinho. Tenho alguns, mas tenho este. Que não sabe de mim e é por isso que eu gosto dele. Não recebo cartas há um mês. Só contas. Preciso comprar co-mida. Fumar não alimenta, mas arde. Não faz a ví-tima, você diz. Faço. É meu melhor desempenho. Vou pedir uma pizza. Acabou a coca-cola também. O meu vizinho tem uma caixa branca. Como eu vi Tieta, penso que é o pênis do marido dele que morreu na guerra, mas ele é casado com a mãe. Reunião de condomínio. As pessoas insistem em ser simpáticas comigo. Trouxe uma folha com lei-te para casa. A mãe dele é uma vaca. Olhou para mim da janela. Sento com os pés para fora da jane-la. I’m loving you more everyday, na vitrola. Tem o corpo de uma mulher estendido lá embaixo. Ela sou eu. | Paula Lice e Marcelo Sousa Brito

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IV. Para Tom Zé | Ela entra na rua, alcança as escadas, sobe com dificuldade e uma mala, que dispensa num canto qualquer, enquanto articula com os dedos a localização das cha-ves. Respira de cansaço e já se ouve o ruído dos passos e de toda a bebida consumida na-quela noite. Não há, na verdade, mais nada a fazer, a não ser seguir a sequência aborrecida dos passos. Tatiana, Verônica, Roberta, Jéssi-ca, não há nome. Ela não se chama, nem nin-guém. Segue pela sala escura sem coragem, em casa, overhomeless. Da sala, pode-se ob-servar a silhueta bem vestida de uma mulher emoldurada pela portantiga. Segue, em escu-ro, antessala, ruído de notícia na TV, não há necessidade de luz. Barulho machucado de cacos. Agora: meia luz. A sequência é simples. Breve luz, passos, cadeira, livro no chão, pé-rolas, lento descalçar de pés e Bob Dylan, es-colhido entre muitos vinis. Som de disco no copo de vidro. Cozinha, barulho de xícaras, algum café na sala, amargo, com conhaque. Movimentos estranhos na cadeira da sala. Se-quência dura na parede sombria. Ela vai abrir a janela. Ela vai se debruçar na janela. Ela vai alcançar o chão da janela? Senta e pergunta sem voz, meia dúzia de questões sem respos-

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ta. Interessa dizer, não interessa ser ouvida. Gosto pelo balbucio, pelo comentário. Janela, bandeja de desejos infames, cigarro, acendido no ar, o primeiro trago é do sol. Definitivamen-te. Ela vai engasgar. Don’t. O cansaço debruça suas nádegas, sua bunda, seu atrás no tape-te manchado. Não é qualquer dor. É Aquela. Sobre o travesseiro de whiskey Tatiana-Verô-nica-Roberta-Jéssica-Ninguém debruça tor-mentos de sequilho e sono. Johnnie Walker. São segundos de síncope. Refeita, bate com o telefone no gancho três vezes. Três vezes. Três é um número mágico. Mais um trago, mais uma dose de café, mais uma xícara de conhaque. Outra canção, Pablo Milanés and partner. Ela vai procurar uma cadeira para mais balbucios. Só não rói as unhas porque a atriz já comeu todos os medos. Dedos. Pensa sobre a procedência desta última sentença e balbucia-comenta: É sempre mais difícil an-corar um navio no espa ço. Pede a algum es-pectador próximo que, por favor, acenda seu cigarro. Ela não vai a lugar algum. Levanta-se em direção à sala, à mala. Atravessa o corre-dor e a portantiga, retorna com o peso de uma mala muito leve. É ritual, Tatiana, Verônica, Roberta, Jéssica, Ela, colocar a mala no centro

da sala, de tudo, abrir lentamente seu compar-timento superior, criar espaço para as penas, reposicionar o relógio, sem tempo, sem hora, sentar na cadeira, mais uma dose, é claro que eu tô afim, engatinhar para a marcha final. É Tom Zé, desta vez, que coloca, e se despede, e se anuncia, para o que talvez seja ela, ou um sono, o som de um disco arranhado, a felicida-de só dói se, ou muito, apenas muito café com conhaque. | Paula Lice

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Isto não é uma malaIsto não é uma poesiaIsto não é PaulaIsto não é ElaIsto não é teatroNão é nadaUm turbante, uma janela,um choro-hiato,barulho de caféNãoNadaIsto só aconteceQuando acontece Tudo é vão |Saulo Moreira

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Titling | Por onde andará Bill? / Entre a esquizofrenia e a poesia / Os cigarros foram trocados / A mala pode ser re-formulada / Vamos suar o sutiã / Lilás / Na casa preta /A porta que não fecha / É mais fácil ancorar um navio no es-paço / Desde 1983 / Sem título / A teus pés: um soluço / Ainda há uma palavra não falada / Quando os silêncios acon-tecem têm outro peso | Saulo Moreira

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Eu sempre a penso escorregadia dentro de uma cartografia escorregadia. A cena não re-presenta uma mulher deprimida, uma catás-trofe, uma melancolia, uma poesia. Mas suge-re. Sugere também abismos. Em uma casa é possível vê-los. E a caligrafia A teus pés tão perto. É muito íntimo olhar para Paula. Eu me lembro de uma outra mulher numa London vitrine under. Eu penso em um filme antigo. Eu penso em um travesti chorando de alegria. Eu, às vezes, quero fazer perguntas débeis. Qual sua cor preferida, quando você escolheu solidão, há sobriedade em alguma marca do seu rosto, você chora quando lava o cabelo, você se arrepende, você é a favor do aborto, você frequenta redes sociais e centros espí-ritas, qual o próximo século, qual o corpo da sua mãe, quem era o pai da primeira criança abortada, o seu nome, o seu país, o seu nome, o seu escuro. É importante dizer que Ana Cris-tina César se matou dezessete meses depois que eu nasci. Paula tinha pouco mais de dois anos. É preciso dizer sobre a dispersão cria-dora das duas artistas. Da última vez, houve um jantar. Arrotamos parênteses, a morte de todo dia, o amor ausente tão presente, os encontros-despedidas, os fantasmas, os aves-

sos, o teatro, o recalque. No final, eu sempre encontro uma pluma lilás. A pluma que fica é outro rastro. Da próxima vez, quando ela vol-tar sem turbante, saberei de todos adeuses. | Saulo Moreira

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Para RinoPlus e JarbasPlus | Nosso Sapato Lilás. Nossa Ra-diola./ Toma essa canção como um beijo. / Vocês são as cere-jas desse bolo. | Saulo Moreira

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Sem título |# 1quantas coisas esquecidas e perdidasaguandotreparo bom e o mau gosto se acasalarama generosidade das pausasamorasua vista do mundoseu imponderável# 2hidebreakingmastake a bow# 3Por que A teus pés?Sétimo andar?Os poucos que viram você aqui.# 4O estímulo para estudar o texto é de alguém que lê enquanto escreveu.# 5Não é só Ana: é alice-cristina-marta-paula-mar-celo-quem-mais?A estrutura da cena é autoral – vale quanto pesa.# 6Segundo encontro.Você só começa a falar depois do primeiro trago.Como se tivesse caindo da janela.Lamber papel – nojo.

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Isso é palha. Quem não fuma cigarro fuma palha.Começa do mesmo jeito.# 7Madrugada.# 8I`m loving you more everyday.I`m gonna take what he`s got.I`d rather go blindMas a melodia é o mais importante, man.# 9Esquizofrenia. É uma viagem para dentro de casa. As pessoas estão ali e não estão. É uma viagem para dentro de casa. Chama alguém e esquece. É uma viagem para dentro de casa.# 10Descrição linear:Ela, de turbante, óculos. Entra, acende a luz, abre a janela. Pouca movimentação para abrir a janela. Aguarda, pausa, copo na mão. Respiração – como se os ombros pesassem.O fora. O dentro. O entre. As interferências.Os sonhos mais lindos, sonhei, canta o solo ao lado.Ela fala aquilo que escreveu enquanto es-creveu: a vida é mesmo uma coisa cheia de nada.Desde o primeiro encontro é sempre um primeiro encontro.Atenção com os pés. |Saulo Moreira

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Percorrer os espaços vazios de uma casa portando uma mala cheia de sonhos. Absorver a história guar-dada pelo tempo. Rastros de me-mória de alguém que viveu muito, que viveu tanto, que viveu tudo. Aonde chegar? Para onde ir? Entre a janela e a cozinha, essa mulher sem nome traça planos para outras vidas, prepara uma dose de café--conhaque e dá goles de saudade. Vasculhar as lembranças de quem vê o mundo de outro ângulo é sem-pre doloroso. Fazer balanços da vida vivida nos leva para mundos outros, o mundo de quem espera por novas sensações, novas dores, novas palavras, novas esperanças. Entre a janela e a cozinha ela en-contra forças para vasculhar livros, escutar a gritaria da vizinhança, li-gar a vitrola e escutar músicas da infância perdida. Perdida? Quando criança é bom que todos saibam, ela queria mudar o mundo, seu próprio mundo. Dentro da mala cheia de sonhos ela se sente em casa, protegida do mundo que ela

criou. Morrer ou dormir é quase a mesma coi-sa. PAUSA!

A vida é mesmo cheia de nada. Eu fui à rua pra ver se existia alguma forma interessante de vida. Perdi meu tempo. Eu não quero ser acusada de não ter tido paciência com a vida ou de não ter dado tempo a ela. Para que ela se tornasse mais viva. Com essas palavras ela fecha os olhos, apaga a luz, aumenta o som da vitrola, acende mais um cigarro e deixa o fim para ser contado por quem quiser contar. | Marcelo Sousa Brito

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SOBRE “ISTO NÃO É UMA MALA” | O solo “Isto não é uma mala”, de Paula Lice, estreou em 2010, como parte do espetáculo “Frag-mentos de um só” do Núcleo VAGAPARA. A dramaturgia e direção do trabalho foram con-cebidas em parceria com Marcelo Sousa Bri-to e contaram com a colaboração do artista Saulo Moreira. O trabalho foi apresentado no FIAC - BA, em 2010, integrando as apresenta-ções de “Fragmentos de um só”, no foyer do Teatro XVIII, e, de forma independente, no FILTE - BA, em 2011, através do Conexões Vi-dal, projeto do ator Fábio Vidal, no camarim do Teatro Gamboa Nova.

O trabalho parte da investigação de uma per-sonagem em um espaço-casa e das múltiplas reverberações desse encontro. Pelo caminho da experimentação, do laboratório, do im-proviso e da repetição, um fragmento dessa mulher se esboça a cada dia de uma forma diferente. O interesse central da proposta é in-vestigar maneiras diferentes de se relacionar com a espetacularidade, com a improvisação e com o público. Com poesia, esquizofrenia e boas doses de café com conhaque.

ISTO NÃO É UMA MALA: VERSÃO-JANTAR | Essa experimentação integrou o VAGAPARA-ÇÕES – Autonomia e Colaboração, projeto de manutenção do Núcleo VAGAPARA, subsidia-

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do pelo Edital de Manutenção de Grupos da FUNCEB. Nessa ação performativa, a perso-nagem se instala no ambiente criado para o solo e instaura uma atmosfera de intimidade com um pequeno público de cinco pessoas. Ao longo da experiência cênica, serve um jan-tar preparado por um artista convidado, que pode ou não estar presente durante o evento, e compartilha suas experiências, estimulando sua pequena audiência a conversar. A versão--jantar de “Isto não é uma mala” aconteceu em maio e junho de 2012, na Baluar7e – Casa de Arte e contou com a participação dos artis-tas-cozinheiros Alan Gonçalves, Lia Lordelo, Igor Epifânio e Kátia Najara. Juntos, celebra-mos o encontro com a plateia, experimentan-do outras formas de conexão através da comi-da e da cena-conversa.

ISTO NÃO É UMA MALA: VERSÃO- VISITA | Nessa versão-visita, o universo poético par-ticular, sustentado pela personagem, interage com outra dimensão cênica estabelecida pela personagem Alice, de Rodolfo Lima, em seu solo “Réquiem para um rapaz triste”. A estreia dessa versão aconteceu em junho de 2012, no Cine Teatro Solar da Boa Vista, através do pro-jeto Literatura em Cena – Conexão SP/BA, do artista Rodolfo Lima. A experiência continua sendo íntima, afetiva e à procura de estabe-lecer diferentes dinâmicas de conexão entre criação artística, improvisação e plateia.

ISTO NÃO É UMA MALA: VERSÃO-LIVRO | A versão-livro de “Isto não é uma mala” des-taca textos escritos desde o processo cria-tivo inicial, em 2010, por Paula Lice, SauloMoreira e Marcelo Sousa Brito. As fotos de JoãoMilet Meirelles, Nilson Rocha e Tiago Lima, produzidas entre 2010 e 2012, e a arte gráfica deVânia Medeiros, alinhavam esta produção, que condensa outra maneira de pensar o en-cadeamento criativo processual do projeto. A literatura, referência sempre presente na criação do solo, costura agora, outro modo de existência do trabalho que, assim como a versão cênica, não dá conta dos esforços de pesquisa que há dois anos garante vida e ca-ráter de processo a “Isto não é uma mala”, an-tes disso, recorta textualmente e fotografa, de maneira performativa, mais uma etapa criati-va do mesmo.

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FICHA TÉCNICA DO SOLO

Atuação e Criação:Paula Lice

Dramaturgia e Direção:Marcelo Sousa Brito e Paula Lice

Colaboração Artística:Saulo Moreira

Figurino:Rino Carvalho e Paula Lice

(Versão-jantar e Versão-visita)

Direção Musical:Jarbas Bittencourt

Trilha Sonora:Marcelo Sousa Brito e Paula Lice

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Fotografias por página

capa: João Milet Meirelles2/3 João Milet Meirelles/ Nilson Rocha (fragmento)4/5 Nilson Rocha6 Nilson Rocha7 João Milet Meirelles8 João Milet Meirelles10 João Milet Meirelles11 João Milet Meirelles12/ 13 João Milet Meirelles (fragmento) / Nilson Rocha15 João Milet Meirelles (fragmento) / Nilson Rocha (fragmento)16/17 Nilson Rocha18/ 19 Nilson Rocha (fragmento)/ Tiago Lima20 Tiago Lima (fragmento)/ Nilson Rocha (fragmento)23 Nilson Rocha24/ 25 Tiago Lima26/27 Nilson Rocha28 João Milet Meirelles32 Nilson Rocha33 João Milet Meirelles (fragmento)34 João Milet Meirelles (fragmento)35 Nilson Rocha36/ 37 Tiago Lima40/41 Nilson Rocha42/43 João Milet Meirelles45 Nilson Rocha46 Nilson Rocha48/ 49 João Milet Meirelles54/55 Nilson Rocha58/ 59 Tiago Lima61 Nilson Rocha62/ 63 Nilson Rocha

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outubro, 2012