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setembro de 2017UMin
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Karin Noemi Rühle Indart
Políticas de Educação, Políticas de Língua,Identidade Nacional e a Construção doEstado em Timor-Leste
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Universidade do MinhoInstituto de Educação
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Trabalho efetuado sob a orientação doProfessor Doutor Manuel António Ferreira da Silva
Tese de Doutoramento em Ciências da Educação
Especialidade em Sociologia da Educação
setembro de 2017
Karin Noemi Rühle Indart
Políticas de Educação, Políticas de Língua,Identidade Nacional e a Construção doEstado em Timor-Leste
Universidade do MinhoInstituto de Educação
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Timor-Leste e meus amigos timorenses, cujo sonhos de pátria, de desenvolvimento e de disseminação do “português timorense” são a razão e a inspiração deste trabalho.
Agradeço à Universidade do Minho pela oportunidade de fazer um doutoramento de qualidade sem sair de Timor-Leste e deixar meu contexto de pesquisa e minha querida família ‘quase timorense’ que reside em Díli.
Agradeço especialmente ao meu orientador, Doutor Manuel António Ferreira de Silva pela paciente e constante orientação e pelos artigos e livros que sistematicamente trouxe de Portugal para aprofundar minha investigação. Também agradeço por ter me concedido generosamente de seu tempo em todas as deslocações a Timor.
Agradeço a Afina e Adina minhas alin sira timorenses que cuidaram da minha casa e minha família nos momentos em que estava ocupadíssima com os estudos.
Agradeço a Junior, meu marido e Ian, Noah e Naomi, meus filhos, que foram compreensivos em todo o tempo que dispensei para os estudos nestes anos e por me apoiarem continuamente no meu desejo de aperfeiçoamento académico e profissional.
Finalmente e principalmente, agradeço a Deus que me deu força, saúde, capacidade e oportunidade para terminar mais essa etapa de vida. Soli Deo Gloria!
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RESUMO
Políticas de Educação, Políticas de Língua, Identidade Nacional e a Construção do Estado em Timor-Leste
Esta investigação situa-se de forma mais ampla no campo da sociologia da educação, campo que permite construir um olhar crítico construtivo das escolhas coletivas feitas ao longo dos anos de autonomia política e de gestão na sociedade timorense e consequências das mesmas dentro da sociedade. Todas as grandes mudanças políticas em Timor-Leste representaram mudanças de língua oficial e instrucional. Portanto, não há como ignorar as questões relacionadas com as políticas linguísticas no país e suas implicações práticas na sociedade mais ampla e no sistema educativo em particular. Este trabalho propôs-se a analisar as consequências destas decisões políticas após a independência no processo de reintrodução da Língua Portuguesa e sua relação com um contexto multilíngue como o timorense. As línguas coexistentes em Timor constituem claramente modelos sociais de identificação (e de interpretação e de conceptualização do mundo) que no momento podem ser bastante fluídos, uma vez que os movimentos políticos em Timor-Leste foram frequentes e intensos nessas últimas décadas e modelos sociais de identificação linguística ou se renovaram ou se tornaram cada vez mais irrelevantes em dado momento. Pretendemos aqui observar como essas transições de língua instrucional impactam a sociedade e o sistema educativo; como a hierarquia interna de línguas afeta a identidade nacional e a própria construção do Estado; e como as línguas – oficiais - relacionam-se com o mito de origem da nação e a narrativa mitológica governante, para ao final, analisar o grau de assimilação e acomodação da sociedade timorense atual à ideologia e identidade linguística nacional intencionada pelos fundadores da nação, assim como à própria mitogênese dominante do Estado-nação timorense. A perspectiva desta análise está focada em executores particulares dessas políticas definidas na Constituição, a saber: os ex-Ministros da Educação e alguns diretores do Ministério da Educação responsáveis pela capacitação dos professores e gestão do sistema educativo, ex-reitores e ex-Decanos da Faculdade de Educação, Artes e Humanidades da Universidade Nacional Timor Lorosa’e. As informações foram categorizadas e organizadas via análise de conteúdo e posteriormente interpretadas através da análise do discurso, entendida esta como o estudo das atitudes das fontes relativamente ao objeto que incide sobre os juízos formulados pelo locutor. Concluímos que Timor-Leste se configura claramente como um rico e dinâmico contexto multilíngue em que, apesar da Língua Portuguesa constituir a mais alta posição na hierarquia de línguas, nunca se imaginou uma nação ou mesmo um Estado monolíngue. Os gestores da política linguística do novo Estado não reagem à manutenção do multilinguísmo nativo ou do plurilinguísmo pragmático, pelo contrário a defendem para o desenvolvimento pleno da identidade nacional e até mesmo a utilizam para o panorama mitológico atual. Contudo, opõem-se à mobilidade hierárquica das línguas em questão, uma vez que consideram esta mobilidade artificial, idealizada por agentes externos e não pertencente ao imaginário local de Estado-nação.
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ABSTRACT
Policies of Education, Language Policies, National Identity and State Building in East Timor
This research is located more broadly in the field of sociology of education, field with a constructive critical eye of the collective choices made over the years of political and management autonomy in Timorese society and the consequences of them within society. All major political changes in East Timor accounted for changes in official and instructional language. So there is no way to ignore the issues related to language policies in the country and its practical implications for teaching and learning. This proposed work to define concepts and analyse consequences of policy decisions after independence in the process of reintroduction of the Portuguese language and its relationship in the multilingual context of the country. Coexistent languages in Timor clearly constitute social models of identification, who at the time can be quite fluid, as political movements in East Timor were frequent and intense in recent decades and social models of linguistic identification or renewed or have become increasingly irrelevant at some point. We intend here to observe how these instructional language transitions impact the society and the educational system; how the internal hierarchy of languages affects national identity and the actual construction of the state; and how official languages are related to the nation's origin myth and the ruling mythological narrative; and finally, analyse the degree of assimilation and accommodation of the current Timorese society ideology and national linguistic identity intended by the founding fathers, as well as the very dominant myth genesis of the Timorese nation-state. The perspective of this analysis is focused on executors of these policies defined in the Constitution, namely the ex-Ministers of Education and some directors of Ministry of Education responsible for the training of teachers and management of the education system, and ex-rectors ex-deans of Faculty of Education, Arts and Humanities of the Universidade Nacional Timor Lorosa’e. The information was categorized and organized via content analysis and then inferred through discourse analysis as a study of the source attitudes towards the object that focuses on the judgments made by the speakers. We conclude that Timor-Leste is clearly set in a rich and dynamic multilingual context, where, despite the Portuguese language constitute the highest position in the hierarchy of languages, never was imagined as a monolingual nation or a monolingual state. The managers of the new language policy of the State, did not react to the maintenance of native multilingualism or pragmatic multilingualism, on the contrary defend it to the full development of national identity and even use it to view current mythscape, however, are opposed to the hierarchical mobility of the languages in question, since they consider it an artificial mobility, created by external agents and not belonging to the native imaginary of the nation-state.
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ÍNDICE AGRADECIMENTOS....................................................................................... v RESUMO............................................................................................................ vii ABSTRACT....................................................................................................... ix ÍNDICE............................................................................................................... xi LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS......................................................... xv I. INTRODUÇÃO.....................................................................................…… 17 ENQUADRAMENTO DA TEMÁTICA........................................................... 17 ANTECEDENTES.......................................................................................….. 22 PROBLEMATIZAÇÃO........................................................................………. 23 OBJETIVO GERAL........................................................................................... 26 OBJETIVOS ESPECÍFICOS............................................................................. 26 JUSTIFICATIVA............................................................................................... 26 ESTRUTURA DA TESE................................................................................... 27 II. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............................................. 31 PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA..................................................................... 31 OBJETO E AMOSTRA..................................................................................... 34 ABORDAGEM METODOLÓGICA................................................................. 34 RECOLHA DE INFORMAÇÕES..................................................................... 37 ANÁLISE DE INFORMAÇÕES....................................................................... 41 III. A MITIFICAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA................................. 45 CULTURA E SOCIEDADE TIMORENSE....................................................... 45 PROCESSO DE SACRALIZAÇÃO EM TIMOR-LESTE................................ 51 MITIFICAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO DISCURSO DOS GESTORES........................................................................................................ 55 Uso de Termos Religiosos................................................................................. 55 Língua da Resistência e dos Heróis Mortos.................................................... 59 Tradição Ancestral............................................................................................ 62 Tabu.................................................................................................................... 63 Fatalismo............................................................................................................ 64 Exotismo.............................................................................................................. 66 IV. IDENTIDADES LINGUÍSTICAS E A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E ESTADO TIMORENSE................................................................................... 69 IDENTIDADE COLETIVA................................................................................ 69 TRADICIONALISMO E CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO................................... 84 ESTADO E NAÇÃO............................................................................................ 91 A NAÇÃO E O ESTADO TIMORENSE............................................................ 99 IDENTIDADES LINGUÍSTICAS E A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E ESTADO TIMORENSE NO DISCURSO DOS GESTORES............................................. 119 Identidade Nacional........................................................................................... 119 Mentalidade........................................................................................................ 124 Geração e Camadas da Sociedade.................................................................... 126 Sistema Educativo e Formação Indonésia....................................................... 136 Nacionalismo, Patriotismo e Cidadania........................................................... 140 Construção do Estado Timorense..................................................................... 146
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V. A RESISTÊNCIA DOS PROFESSORES................................................... 149 IDENTIDADE PROFISSIONAL....................................................................... 149 CLASSE, ESTADO, CASTA E ESCRAVATURA........................................... 154 MUDANÇA SOCIAL......................................................................................... 156 LIBERDADE E PODER DE DECISÃO............................................................. 163 TEORIA CRÍTICA EM EDUCAÇÃO............................................................... 165 TEORIA DA RESISTÊNCIA............................................................................. 170 CRÍTICA À TEORIA CRÍTICA........................................................................ 176 A RESISTÊNCIA DOS PROFESSORES NO DISCURSO DOS GESTORES.. 183 Resistência......................................................................................................... 183 Manifestação..................................................................................................... 192 Protesto.............................................................................................................. 193 Perturbação....................................................................................................... 198 Campanha Contrária, Contestação................................................................. 198 Contra-Política................................................................................................... 199 Oposição............................................................................................................. 200 Críticas............................................................................................................... 200 Interferências Externas..................................................................................... 201 Pressão e Ameaças............................................................................................. 202 Grupo.................................................................................................................. 202 Rejeição.............................................................................................................. 203 Reação................................................................................................................. 204 Queixas................................................................................................................ 204 Autodefesa......................................................................................................... 205 Frustração........................................................................................................... 206 Não Querer.......................................................................................................... 206 Não Gostar........................................................................................................... 207 Não Estar Contente............................................................................................. 209 Desânimo.............................................................................................................. 209 Passividade........................................................................................................... 210 Falta de Vontade.................................................................................................. 211 Não Aplicar........................................................................................................... 211 Despreparo........................................................................................................... 212 Motivação............................................................................................................. 212 Aceitação Popular................................................................................................ 213 VI. RESPONSABILIZAÇÃO PELA IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS
LINGUÍSTICAS.......................................................................................... 215 DOMINAÇÃO PATRIARCAL........................................................................... 215 DOMINAÇÃO FEUDAL.................................................................................... 217 DOMINAÇÃO CARISMÁTICA........................................................................ 222 DOMINAÇÃO DO ESTADO............................................................................. 231 LEGITIMAÇÃO DA DOMINAÇÃO................................................................. 236 DIREITOS E DEVERES..................................................................................... 239 RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO............................................................ 244 RESPONSABILIZAÇÃO DOS PROFESSORES.............................................. 246 A RESPONSABILIZAÇÃO PELA IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS NO DISCURSO DOS GESTORES........................................ 254 Eu......................................................................................................................... 254
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Nós....................................................................................................................... 266 Eles...................................................................................................................... 287 os professores...................................................................................................... 287 o INFORDEPE, a universidade........................................................................ 294 cooperações internacionais................................................................................ 297 governo, poder executivo................................................................................... 301 funcionários públicos......................................................................................... 307 organizações internacionais.............................................................................. 307 imprensa............................................................................................................. 308 veteranos............................................................................................................. 309 estudantes........................................................................................................... 309 VII. ALFABETIZAÇÃO E MISTURA DE LÍNGUAS................................ 313 LÍNGUAS DE INSTRUÇÃO............................................................................. 314 CONCEITOS DE ALFABETIZAÇÃO.............................................................. 318 ALFABETIZAÇÃO E LÍNGUA........................................................................ 323 ALFABETIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO.......................................................... 341 ALFABETIZAÇÃO E CURRÍCULO................................................................ 344 EDUCAÇÃO E CAPITAL CULTURAL........................................................... 351 ALFABETIZAÇÃO MULTILÍNGUE............................................................... 359 ALFABETIZAÇÃO E MISTURA DE LÍNGUAS NO DISCURSO DOS GESTORES......................................................................................................... 373 Língua Indonésia................................................................................................ 373 Tétum, Línguas Maternas, Línguas Nacionais................................................ 377 Ensino de Conteúdo e Deficiência Linguística dos Professores...................... 387 Alfabetização Política, Alfabetização de Adultos............................................. 390 VIII. RESSURREIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA................................. 397 MITO DE ORIGEM............................................................................................. 397 IDEOLOGIA......................................................................................................... 411 POVOS E ESTADOS........................................................................................... 414 A RESSUREIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO DISCURSO DOS GESTORES.......................................................................................................... 424 Bom Padrão, Fluência, Aquisição, Fala da Língua Portuguesa..................... 424 Aumento de Interesse da Nova Geração........................................................... 425 Batalha Ganha, Luta Perseverante, Marcha para Frente.............................. 426 Convicção, Esperança, Espírito e Sentimento.................................................. 427 Evolução, Natureza, Desenvolvimento.............................................................. 428 Reavivou, Viva, Ressuscitou............................................................................... 429 IX. CONCLUSÃO................................................................................................ 431 X. BIBLIOGRAFIA............................................................................................. 469 APÊNDICE
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BI Bahasa Indonésio CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNRT Conselho Nacional da Resistência Timorense CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa FALINTIL Frente Armada de Libertação Nacional de Timor-Leste
FEAH Faculdade de Educação Artes e Humanidades
FRETILIN Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente
FUP Fundação das Universidades Portuguesas
INFORDEPE Instituto Nacional de Formação de Docentes e Profissionais de Educação
INL Instituto Nacional de Linguística LI Língua Inglesa LM Línguas Maternas LP Língua Portuguesa LT Língua Tétum ME Ministério da Educação ONG Organização Não-Governamental ONU Organização das Nações Unidas PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa RDTL República Democrática de Timor-Leste UDT União Democrática Timorense UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNICEF United Nations Children’s Fund
UNTAET United Nations Transitional Administration for East-Timor
UNTL Universidade Nacional Timor Lorosa’e
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I. INTRODUÇÃO ENQUADRAMENTO DA TEMÁTICA
Esta investigação situa-se de forma mais ampla no campo da sociologia
da educação, campo que pretende desenvolver um olhar crítico construtivo das
escolhas coletivas e consequências das mesmas dentro de uma sociedade. “A
sociologia [é] uma prática disciplinada, dotada de um conjunto próprio de
questões com as quais aborda o estudo da sociedade e das relações sociais”
(Bauman & May, 2010, p. 11). As “figurações , rede de dependência mútua,
condicionamentos recíprocos da ação e expansão ou confinamento da liberdade
dos atores estão entre as mais preeminentes preocupações da sociologia.” (id.,
ibid., p. 17). Sua pergunta central é, “como os tipos de relações sociais e de
sociedades em que vivemos têm a ver com as imagens que formamos uns dos
outros, de nós mesmos e de nosso conhecimento, nossas ações e de suas
consequências” (id., ibid., p. 17).
Afirma Bauman (1999, pp. 14-15), ainda, que “nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte
caia em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem – certamente não antes que seja tarde demais e quando as respostas, ainda que corretas, já se tornaram irrelevantes [...] É aí que a sociologia entra em cena; ela tem um papel importante a desempenhar e não teria o direito de se desculpar se não assumisse essa responsabilidade.”
Cremos que é responsabilidade da sociologia da educação assumir o
papel de auxiliar do questionamento das escolhas educativas que vêm sendo
feitas ao longo dos anos de autonomia política e de gestão na sociedade
timorense e pretendemos contribuir com uma reflexão que permita a
emergência de uma perspetiva de educação mais crítica e menos puramente
pragmática, como foi teorizada por Freire já desde a década de 70. Mais
envolvido com a alfabetização de adultos, em seus escritos, defende uma
alfabetização politizante, em que professores e alunos aprendem juntos a ler o
mundo e não somente as palavras e seus significados mais óbvios. Para ele, “O analfabetismo não só ameaça a ordem econômica de uma sociedade, como
também constitui profunda injustiça. Essa injustiça tem graves consequências, como a incapacidade dos analfabetos de tomarem decisões por si mesmos, ou de participarem do processo político. Desse modo, o analfabetismo ameaça o caráter mesmo da democracia. Solapa os princípios democráticos de uma sociedade” (Freire & Macedo, 2011, p. 7).
2
Em uma sociedade ainda muito apegada a crenças tradicionais, e
animistas, como é o caso da sociedade timorense, ainda muito ruralizada e que
se encontra num processo acelerado de funcionarização de uma parte
significativa da sua população (muito ligada à construção de uma burocracia
estatal), é necessário ponderar as duas tendências mais comuns: glorificação
das práticas e experiências locais (anulando a necessidade de análise crítica
sobre as mesmas) ou sua total desconsideração, adoptando um sistema de
educação reproduzido (mimetizado) do mundo ocidental. Em situações
semelhantes ao apego ao tradicional, Freire defende que “procurar eliminar a
crença supersticiosa simplesmente ridicularizando o pensamento mágico não só
é impossível como contraproducente. O pensamento pré-crítico é, ainda assim,
pensamento; não deve ser simplesmente rejeitado, mas pode e deve ser
transformado” (Berthof, 2011, p. 18). Ainda segundo Berthof (2011, p. 22),
“os professores que dizem ‘respeito os alunos e não sou diretivo; e como são
indivíduos que merecem respeito, devem determinar sua própria direção’,
acabam por ajudar a estrutura de poder.” Assim sendo, por uma perspectiva
sociológica a educação escolar deve ser intervencionista, não no sentido de
impor uma visão e sim de empoderar os envolvidos nesta educação a serem
críticos a ponto de poderem ser ativos politicamente e só então terão, de facto,
poder para influenciar as escolhas sociais locais e as do Estado, ou seja, as
políticas centrais e as localmente produzidas. Esse é com certeza um conflito
presente em Timor-Leste: “Com o decorrer da experiência formativa ministrada aos professores autóctones,
tem-se vindo a constatar o progressivo desajustamento entre o tipo de conhecimento construído nas sessões – de índole europeizante e de cariz pragmatista que acentua a centralidade da experiência e/ou de índole construtivista que convida à interação sujeito-objeto – e aquele que esquece, se não raras vezes entra mesmo em tensão, a via preferencial de aprendizagem que caracterizava o ensino tradicional timorense que é a de memorização e da repetição. Este facto, aliado ao estatuto de autoridade inquestionável de que o professor goza no contexto cultural asiático, este desencontro no modo de construir o conhecimento impede o professor timorense de se apropriar de forma autónoma, descentrada – enfim, crítica -, do conhecimento transmitido e de o traduzir nas metodologias e estratégias de ensino mais consentâneas com a realidade local com que se confronta diariamente” (Gonçalves, 2010, p. 131).
Ainda em consonância com Freire e Berthof, Giroux afirma que:
“a alfabetização não se relaciona apenas com os pobres, ou com a incapacidade dos grupos subalternos de ler e escrever adequadamente; relaciona-se, também, de maneira fundamental, com formas de ignorância política e ideológica que funcionam como uma recusa em conhecer os limites e as consequências políticas da visão de mundo de cada um. [...] O importante a reconhecer aqui é a necessidade de reconstruir uma visão
3
radical da alfabetização que gire em torno da importância de nomear e transformar as condições ideológicas e sociais que solapam a possibilidade de existirem formas de vida comunitária e pública organizadas em torno dos imperativos de uma democracia crítica. Este não é um problema associado apenas aos pobres ou aos grupos minoritários, mas também é problema para aqueles membros da classe média ou alta que se retiraram da vida pública para dentro de um mundo de absoluta privatização, pessimismo e ganância (Giroux, 2011, pp. 40-41)”
As responsabilidades por uma educação crítica (de que muito se fala nas
sociedades ocidentais, mas que só muito poucos tiveram a possibilidade de
vislumbrar algumas das suas características) não serão apenas de uma classe
política que a planeia (de um modo sincero ou meramente retórico), nem só dos
professores que possuem o poder (e a tarefa) de educar. A sociedade, de modo
geral e não apenas um grupo, seja minoritário ou não, tem a tarefa de
transformar-se pela educação, caso este seja o seu desejo, e para isto se “obriga
[a] uma compreensão mais profunda de como as condições mais amplas do
Estado e da sociedade produzem, negoceiam, transformam e se abatem sobre as
condições de ensino de tal modo que possibilitam ou impossibilitam que os
professores ajam de modo crítico e transformador” (Giroux, 2011, p. 56). E
para tanto é necessário evitar “uma divisão de trabalho em que os teóricos que
produzem conhecimento estão restritos à universidade, os que simplesmente o
reproduzem são encontrados como professores de escolas básicas e os que
passivamente o recebem, sob a forma de migalhas, em todos os níveis de
escolaridade, desempenham o papel de alunos (Giroux, 2011, p. 62).”
Todas as grandes mudanças políticas em Timor-Leste representaram
sempre mudanças de língua oficial e instrucional (como referimos antes).
Portanto, não há como ignorar as questões relacionadas com as políticas
linguísticas no país e suas implicações práticas no ensino e na aprendizagem de
adultos. Este trabalho propôs-se a definir conceitos e analisar consequências
destas decisões políticas no decorrer dos anos após a independência no
processo de ensino e aprendizagem do Português. De acordo com MacCarty,
Romeiro, Warhol e Zepeda (s.d., pp. 607-618) a identidade linguística de
alunos bilíngues sempre influenciará o aprendizado de uma determinada língua
oficial, que acabará por ter mais um carácter instrumental e prático do que
identitário. Nesta mesma linha de pensamento, Hornberger e Johnson (2007, p.
528) advertem que “as políticas linguísticas estabelecem limites para o que é
educacionalmente possível e podem ser inimigos formidáveis para a educação
4
multilíngue, mas também podem ser aliados”. Segundo os mesmos autores,
sempre há interferência à política linguística estabelecida na macrodimensão
pelos decisores. Esta interferência pode acontecer no nível institucional, ou
seja, cada escola interpreta e implementa a política de uma forma distinta
(Hornberger e Johnson, 2007, pp. 509-513), mas acontece especialmente na
microdimensão – a sala de aula, da parte dos professores (Hornberger e
Johnson, 2007, p. 516; Cray e Haque, s.d., pp. 634-635) ou do desempenho dos
alunos (Parmar, s.d., pp. 557-560; Fernandes, 2008). Taylor-Leech (2007),
traça a ecologia linguística atual de Timor-Leste e os enormes desafios que o
país terá que enfrentar para que a política linguística pós-independência seja
levada à prática. Segundo a autora, “This was a courageous policy decision, not only politically, but also because of the
immense resources that will be required to bring about such an extensive change in the language ecology. A list of the tasks facing language policy-makers and planners in Timor-Leste reveals the enormity of the challenge. Such radical modification of the linguistic environment involves, at the minimum: • Convincing people to learn or relearn Portuguese. • Bringing about the standardization of Tetum and encouraging people to accept and
implement the new standard. • Abolishing Indonesian as the medium of instruction. • Introducing two new languages of instruction, Tetum and Portuguese, across all
educational sectors. • Enabling the development of bilingualism in Tetum and Portuguese. • Making language reform work across all sectors. • Delivering on the promise in the Constitution to protect and develop the national
languages. • Balancing the demands for, and the place of, English and Indonesian in the
language ecology, with actual needs1” (Taylor-Leech, 2007, pp. 1-2).
Justamente por causa da dimensão deste desafio enfrentado por todos os
cidadãos, mas especialmente pelos professores (que, efetivamente, são os
implementadores, executores das políticas educativas, sem que para tal sejam
consultados, isto é, detenham um mínimo de participação no processo de
concepção de políticas educativas), é relevante considerar nesta investigação o
1 “Esta foi uma decisão política corajosa, não só politicamente, mas também por causa dos imensos recursos que serão necessários para realizar uma mudança tão ampla na ecologia da linguagem. Uma lista das tarefas que está diante dos decisores políticos e planejadores linguísticos em Timor-Leste revela a enormidade do desafio. Essa modificação radical do ambiente linguístico envolve, no mínimo:
- Convencer as pessoas a aprender ou reaprender Português. - Realizar a padronização do Tétum e incentivar as pessoas a aceitarem e aplicarem o novo padrão. - Abolição do Indonésio como meio de instrução. - Introduzir dois idiomas de instrução, Tétum e Português, em todos os sectores da educação. - Viabilizar o desenvolvimento do bilinguismo em Tétum e Português. - Generalizar as reformas linguísticas a todos os sectores. - Cumprir a promessa constante na Constituição de proteger e desenvolver as línguas nacionais. - Equilibrar as procuras de e o lugar do Inglês e Indonésio na ecologia da linguagem, com as necessidades reais”
5
fator resistência à política educativa, pois é uma realidade muito presente em
Timor-Leste. Assim como também é conhecida a reação política a essa
resistência. Podemos exemplificar ambas com relação à oficialização da Língua
Portuguesa em 2002, que até hoje é objeto de crítica por parte dos professores
do sistema educativo público (Indart, 2011, pp. 115-116) e, mais recentemente,
ao programa de alfabetização em línguas maternas, que enfureceu alguns na
capital e causou reação por parte de muitos pais das áreas rurais (Nunes, 2012,
pp. 64-65 ). Tanto a resistência popular, quanto a reação dos executores
políticos tem muito a dizer e devem ser ponderados em uma análise
sociológica. Quanto à resistência Giroux diz: “É importante também que se enfatize, uma vez mais, que, como ato de resistência,
a recusa a ser alfabetizado pode constituir menos um ato de ignorância por parte dos grupos subalternos do que um ato de resistência. Isto é, os membros da classe trabalhadora e de outros grupos oprimidos podem, consciente ou inconscientemente, recusar-se a aprender os códigos e competências culturais específicas sancionados pela visão da alfabetização e da cultura dominante. Essa resistência deve ser vista como uma oportunidade para investigar as condições políticas e culturais que justificam essa resistência e não atos incondicionais de recusa política consciente (Giroux, 2011, pp. 53-54).
Finalmente, é procurando reconhecer o papel de questionamento
construtivo das escolhas educativas do período pós-independência que teremos
em conta a análise dos ajustes sociais enfrentados na educação em Língua
Portuguesa – língua reintroduzida no sistema educativo desde 2001 e que
constitui, de um ponto de vista formal-legal, a principal língua de instrução
no sistema educativo, se levarmos em conta os níveis superiores de educação.
Novamente a sociologia tem um papel importante na interpretação do contexto
atual, pois “nem as pessoas vivem as suas vidas como se fossem indivíduos
isolados, nem as suas vidas são completamente determinadas pelos Estados
nacionais” (Giddens, 2013, p. 29). Apesar da construção do Estado timorense
consistir em um dos aspectos discutidos nesse trabalho, outras perspectivas de
estruturação social são deveras igualmente importantes, visto que “é sempre de maneira um tanto ou quanto tangencial, que o Estado se apresenta no
interior do debate sociológico. Ou seja, raramente o Estado é central para o pensamento do sociólogo. Talvez, porque a Sociologia se ocupe de objetos aparentemente mais nobres como relações sociais, a ação social, as estruturas sociais, a revolução social, a divisão do trabalho, a identidade coletiva, a estratificação social, entre tantos outros” (Ferraz, 2012, p. 25).
6
ANTECEDENTES
Timor-Leste tem uma história antiga e recente de transição de línguas
oficiais e instrucionais. Todas as grandes mudanças políticas em Timor-Leste
representaram mudança de língua oficial, que afetaram diretamente as políticas
educativas e o funcionamento do sistema educacional. Diferente de Portugal ou
Brasil, onde essa realidade é muito mais antiga e a competição por maior
estatuto acontece entre variantes regionais ou sociais e não entre línguas
distintas, em Timor-Leste ainda coexistem 16 línguas nativas vivas (Hull, 2001,
p. 38)2 com as línguas trazidas de fora e que têm grande significado na sua
história, tal como o português, que foi ensinado às elites timorenses durante os
450 anos de colonização portuguesa e tem uma relevância central como
elemento de afirmação cultural diferencial entre Timor-Leste e as outras
nações sudeste asiáticas (Gunn, 2000, pp. 18-19); a língua indonésia, que foi
amplamente difundida e obrigatória em todos os ambientes formais no período
da ocupação indonésia (Hull, 2001, p. 32) e, mais recentemente, o inglês, que
tem sido utilizado como língua de comunicação e de trabalho nas grandes
Organizações Não Governamentais e Agências das Nações Unidas, não só entre
os internacionais, como também com e entre os funcionários timorenses, tendo
para tanto recebido novo estatuto (Constituição da RDTL, artigo 159º). Este
multilinguismo leste timorense torna o ambiente cultural e educativo muito
rico, mas também imensamente complexo e algo babeliano. A concorrência de
estatuto das línguas é um exemplo da concorrência de identidades que
influenciam a construção do próprio Estado-Nação, constituindo também um
poderoso instrumento de luta política.
As diferentes fases de políticas educativas em Timor-Leste também têm
acompanhado seus períodos históricos mais marcantes. Segundo Gonçalves
(2010, pp. 126-127): “A primeira fase colonial portuguesa até 1975 compreendeu a introdução da
Língua Portuguesa e do currículo ocidental; era uma educação de caráter elitista, pois não havia educação pública e massificada, persistindo o analfabetismo em 90% da população até essa data. Seguiu-se a ocupação Indonésia (1975-1999), em que a Indonésia investiu substancialmente na educação pública. Mesmo assim, em 1999, Timor ainda estava muito atrás de outras províncias da Indonésia em termos de
2 Se bem que haja divergência quanto ao número de línguas locais em Timor-Leste e de quais são línguas distintas e quais são dialetos de uma língua comum. O número apresentado pelos linguistas fica entre 15 e 32 grupos linguísticos. Ver, por exemplo, Babel Loro Sa’e de Thomaz (2002, p. 22).
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número de estudantes matriculados e de requisitos nacionais de educação básica obrigatória de nove anos para crianças de idade compreendida entre os sete e os 15 anos. O sistema era ineficiente e sem qualidade. O terceiro período da UNTET (United Nations Transitional Administration for East-Timor), de 1999 a 2002, encontrou o sistema educativo totalmente destruído: 90% das escolas não funcionavam e 80% dos professores (não-timorenses) de todos os níveis de ensino deixaram o território. Só em 2001 a maioria das escolas voltou à normalidade 3 com professores voluntários, normalmente de idade mais avançada e que ainda falavam português.”
As línguas coexistentes em Timor constituem claramente modelos
sociais de identificação que, no momento, podem ser bastante fluidos, uma vez
que os movimentos políticos em Timor-Leste foram frequentes e intensos
nessas últimas décadas e modelos sociais de identificação linguística ou se
renovaram ou se tornaram cada vez mais irrelevantes em dado momento. Assim
sendo, “Nada é mais importante para a análise sociológica do que localizar os
movimentos que afetam os modelos sociais de identificação, isto é, os tipos identitários pertinentes. Estes não podem ser assimilados às categorias sociais existentes oficialmente num dado momento, que estão sempre ameaçadas de uma relativa obsolescência, nomeadamente em período de crise” (Dubar, 1997, p. 111).
PROBLEMATIZAÇÃO
Já antes dos portugueses chegarem a Timor há evidências de que o
Tétum ocupava o espaço de língua vernácula na parte oriental da ilha e, aos
poucos, com o estabelecimento da Igreja Católica e a posterior colonização de
fato, o Português se estabeleceu como língua oficial. No curto período da
descolonização houve uma tentativa de que se tornasse também nacional com o
aumento de escolas e alunos no sistema educacional. Como um dos símbolos de
identidade leste timorense a língua portuguesa foi acolhida e utilizada pela
resistência armada e cultural no período da ocupação indonésia e, justamente
por reconhecer a importância desse fator identitário, o governo indonésio não
apenas contentou-se em mudar a língua oficial para o indonésio, mas também
fez todos os esforços para extinguir a Língua Portuguesa no solo timorense.
Esses esforços conseguiram restringir quase que totalmente os falantes de
português à geração adulta educada no tempo colonial. Conquistada a
3 Dizer que as escolas voltaram à normalidade em 2001 é bastante otimista da parte do autor, pois apesar de o sistema educativo ter reiniciado suas atividades muitas escolas ainda estavam destruídas, o currículo era de carácter emergencial e os professores voluntários não tinham na maioria nenhuma formação para a tarefa que desempenhavam. Esta situação continua a ter um enorme impacto no modo de funcionamento do sistema educativo de Timor-Leste, estando longe de poder considerar-se como ultrapassada.
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independência mais uma vez há mudança de língua oficial e instrucional. O
Português, desta vez, tem a companhia do Tétum como cooficial.
Mas, afinal, o que está por trás da necessidade de mudança de língua
oficial a cada novo e diferente período político em Timor? Como essas
transições de língua instrucional impactam a sociedade e o sistema educativo?
Como a hierarquia interna de línguas afeta a identidade nacional e a própria
construção do Estado? Como as línguas - oficiais ou não - relacionam-se com o
mito de origem da nação e a narrativa mitológica governante?
Calvet (2007, p. 11) afirma: “A intervenção humana na língua ou nas situações linguísticas não é novidade:
sempre houve indivíduos tentando legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da língua. De igual modo, o poder político sempre privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa língua ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria.” Para a política a língua é um instrumento de poder. Em si, é um
instrumento neutro, nada tem de mau ou bom, mas em um contexto multilingue
como o de Timor-Leste os governos sempre favoreceram o uso de algumas
línguas em detrimento de outras, mas as opções políticas muitas vezes tem
efeitos pragmáticos contraditórios, como exemplifica Gonçalves (2010, p. 126), “persistem os problemas na implementação da Língua Portuguesa dentro da
própria Universidade Nacional de Timor- Leste4, em Díli, onde decorre a formação de professores com vista a substituir a Língua Indonésia pela Portuguesa em todo o sistema de ensino. [...] Num quadro de avisos na entrada do Campus, há catorze recados deixados por professores. Oito escritos em Tétum, quatro em Indonésio e dois em Inglês. Nenhum está escrito em Português.”
Para lembrar-nos de que a dificuldade de legislar sobre línguas não é
exclusiva em Timor-Leste, diz Castilho (s.d., p. 5): “Aprendeu-se que em
matéria de política linguística uma legislação mesmo que informal não molda a
realidade”, se bem que tal se aplica sobretudo à legislação formal. O autor
ainda complementa que “apesar da impossibilidade de legislar sobre matéria
linguística, o Estado uma vez ou outra decide gerir a língua oficial por meio de
leis, e aqui temos desde as ‘leis que quase pegam’, como as dos acordos
ortográficos, até as ‘leis que não pegam de jeito nenhum’, como aquelas que
pretendem defender a pureza de idioma pátrio[...](ibid., p. 6).
Uma das questões que esta investigação pretende levantar é se a
oficialização da LP no País e no sistema de ensino como língua de instrução
4 O autor referiu-se à Universidade Nacional Timor Lorosa’e, única universidade pública no país.
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está longe de surtir os efeitos satisfatórios por resistência política dos
professores ou por que é o tipo de lei à qual é impossível obedecer
imediatamente, mesmo que se queira. Afinal, “os cerca de 4150 professores do
ensino primário possuem ainda hoje apenas um domínio básico da língua
portuguesa e os 1176 professores do ensino pré-secundário, em outubro de
2005, não sabiam comunicar em português, a língua a ser usada na leccionação
das suas respectivas disciplinas” (Gonçalves, 2010, p. 127). Porém, antes de
avaliar a existência real de resistência à política, ainda mais crucial é analisar o
grau de assimilação e acomodação da sociedade timorense atual à ideologia e
identidade linguística nacional intencionada pelos fundadores da nação, assim
como à própria mitogênese dominante do Estado-nação timorense.
Todo esse processo de criação mitológica, ideológica, nacionalista em
Timor-Leste está, é claro, em pleno desenvolvimento. As negociações entre o
governo e os agentes escolares, o Estado e o povo são constantes e é provável
que o país esteja enfrentando um processo de evolução de política linguística, já
em andamento em outras nações que, como explica Hamel (1999, p. 189) tem
três etapas: “(i) o monoculturalismo, que nega a diversidade e busca a inclusão
social das comunidades, uma tendência colonial; (ii) o multiculturalismo, que
reconhece como um ‘problema’ a diversidade, mas persiste uma política de
inclusão; e (iii) o pluriculturalismo, em que se assume a diversidade como um
recurso enriquecedor da sociedade em seu todo, valorizando-se a base cultural
própria”.
Finalmente, após colocarmos as questões apresentadas acima pensamos
que estamos em condições de formular a nossa tese que, ao longo do texto,
procuraremos apresentar e discutir: Existe, em Timor-Leste, um processo
histórico, sempre contínuo (que procuraremos demonstrar através da
teoria da equilibração de Piaget, centrando-nos nos conceitos de
assimilação e de acomodação tal como Claude Dubar no-los apresenta) de
construção da identidade nacional que toma a Língua Portuguesa como
instrumento privilegiado, conduzido por parte da(s) elite(s) timorense(s).
OBJETIVO GERAL
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• Contribuir para um conhecimento mais aprofundado sobre o
grau de penetração da Língua Portuguesa nas estruturas de educação
e na(s) sociedade(s) timorense(s) em geral, de modo a estabelecer o
grau de articulação entre as políticas relacionadas com a
reintrodução da Língua Portuguesa e a construção do Estado de
Timor-Leste. Este trabalho será realizado a partir das
representações de atores privilegiados no contexto leste timorense
sobre o ponto de vista político, académico e cultural.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Observar o papel da Língua Portuguesa na mitologia nacional.
• Descrever as diferentes identidades linguísticas que concorrem com
a identidade nacional oficial idealizada.
• Analisar as reações dos agentes do sistema de educação à política de
educação que favorece a Língua Portuguesa como língua de
instrução e formação docente.
• Averiguar a relação entre os tipos concorrentes de governação e a
responsabilização pela gestão e implementação da política de
línguas.
• Expor e discutir as constantes mudanças de interpretação e execução
das políticas linguísticas no sistema de educação.
JUSTIFICATIVA
Especialmente pelo fato de ter-se escolhido o português e o tétum como
línguas oficiais e o primeiro também como língua de instrução, Timor-Leste
precisa urgentemente melhorar o ensino/aprendizagem da língua no sistema de
educação. É sabido que o governo traçou um plano de alfabetização bilíngue a
partir de 20005 que previu, ano a ano, a introdução da língua nas diferentes
séries acompanhando o desenvolvimento educacional das novas gerações. Após
os anos de implementação, porém, nota-se que a maioria dos professores foram
formados no tempo indonésio e não têm domínio satisfatório da língua
portuguesa para usá-la no ensino de sua matéria, o que pode prejudicar a
5 Em Indart (2011) podemos ver que a implementação da LP no sistema educativo antecedeu a sua oficialização na Constituição e a própria autonomia governativa, que só ocorreu a partir de maio de 2002.
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formação da geração pós-independência. Se os professores das escolas pré-
secundárias, secundárias e das universidades não dominarem o português
satisfatoriamente, o conteúdo por eles ensinado ficará comprometido e os
alunos se formarão sem um conhecimento adequado das matérias6 . Esta
situação, a manter-se, poderá constituir um importante factor de seleção social e
de agravamento das desigualdades. A análise dos problemas enfrentados na
educação de adultos, em especial de professores, em LP é importante para que
o processo educacional em andamento não seja fracassado, sendo necessário
pensar em uma inclusão maior da geração jovem/adulta educada no tempo
indonésio. Há consequências sociais decorrentes do sentimento de exclusão da
camada da sociedade que tem pouco ou nenhum acesso aos programas de
português ou simplesmente não o aprendem como deveriam mesmo
participando destes programas. Essa geração tem dificuldade de encontrar
emprego, de ter acesso a informações oficiais e de identificação com a língua
oficial adotada pelo governo. Por essas razões é preciso avaliar e, se necessário,
corrigir a gestão das políticas de educação em Língua Portuguesa para a
realidade social atual e tendo em atenção o desenvolvimento das futuras
gerações. Assim sendo, este trabalho tem como foco os gestores políticos
educacionais e sua perspectiva sobre o sistema de educação e seus principais
executores – os professores. Duas classes profissionais de suma importância
que se relacionam e interagem na construção da nova sociedade timorense e,
eventualmente, da sua nova identidade (alegadamente em desenvolvimento).
Como afirma Dubar (1997, p. 14), “Entre as múltiplas dimensões da identidade dos indivíduos, a dimensão profissional adquiriu uma importância particular. Porque se tornou um bem raro, o emprego condiciona a construção das identidades sociais; porque sofreu importantes mudanças, o trabalho apela a subtis transformações identitárias; porque acompanha intimamente todas as mudanças do trabalho e do emprego, a formação intervém nas dinâmicas identitárias muito para além do período escolar”.
ESTRUTURA DA TESE No capítulo seguinte explicaremos a abordagem adotada e a
metodologia de recolha e análise das informações, assim como o objeto e
perspectiva da investigação. Os seis capítulos subsequentes tratam, então, das
6 Importaria também saber se esses professores dominam, efetivamente, as disciplinas que lecionam, independentemente da língua que melhor dominam, para avaliar se o problema é apenas linguístico.
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categorias analisadas escolhidas a posteriori associadas com a proposta central
do trabalho, que constitui a relação entre a política de língua pós-independência
e a construção do Estado-nação timorense – mais especificamente a política de
oficialização da Língua Portuguesa e sua relação com a natureza do Estado-
nação emergente.
A Mitificação da Língua Portuguesa explana o processo de sacralização
por que a língua passou através dos séculos de sua introdução na vida e crenças
da elite timorense. Essa sacralização teve início com a cristianização do
território decorrente do processo de colonização, predominantemente realizada
via Igreja Católica nos primeiros séculos da presença dos padres portugueses e
sua língua, mas foi gradativamente absorvida nos ritos e mitos animistas das
populações timorenses. Tomamos como fundamento teórico Dubar (1997) e
Bauman (2010) para analisar o desenvolvimento da identidade primária e a
base cultural para tal desenvolvimento.
Para observarmos a construção de uma identidade coletiva e secundária
no contexto timorense sustentamo-nos novamente nos textos de Dubar (1997) e
de Bauman (2003, 2005 e 2010). No capítulo Identidade Linguística e
Construção do Estado discutimos sobre os diferentes grupos linguísticos
coexistentes na atualidade e como essa heterogeneidade identitária afeta o
desenvolvimento da identidade nacional necessária para a edificação do Estado
timorense.
Em Resistência dos Professores procuramos demostrar como a
identidade profissional em Timor também está ligada com a identidade
linguística dos professores responsáveis por reintroduzir a Língua Portuguesa
no sistema de educação. Igualmente, observamos que estes docentes são
geridos por administradores pertencentes a outro grupo linguístico e ensinam
alunos identificados com um grupo distinto de ambos. Para tal análise
utilizamos principalmente Giroux (1997), mas também Dubar (1997), Morrow
& Torres (1997), Enguita (2007) e Giddens (2013).
Em sequência, examinamos, através da tipologia de dominação de
Weber (2004) como a manutenção da Língua Portuguesa é legitimada pelas
diferentes formas de poder que ainda atuam simultaneamente em Timor-Leste.
Essa legitimação nos leva ao capítulo de Responsabilização pela
Implementação da Política Linguística e de qual é o dever do Estado (Melo,
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Lima & Almeida, 2002) e, por inerência, qual é a obrigação dos professores
(Giroux, 1997 e Caldas, 2012) na governação (burocrática e/ou democrática) do
novo Estado timorense.
As identidades linguísticas e as novas pressões externas trazem para o
sistema de educação novas exigências de reconhecimento linguístico, o que
gera uma pluralidade de usos e práticas de língua na sala de aula. Alfabetização
e Mistura de Línguas apropria-se dos conceitos de alfabetização para o
empoderamento de Freire (2011, e Freire & Macedo, 2011) e Apple & Buras
(2008) para avaliar a significância da língua de instrução para a educação
crítica, assim como do conceito de capital cultural de Bourdieu (1999) para
refletir sobre as desigualdades inerentes à sociedade que afetam o uso ou
desuso de línguas instrucionais em Timor.
De seguida, em Ressurreição da Língua Portuguesa, exploramos os
conceitos de memória coletiva, mito dominante e panorama mitológico de Bell
(2003) para o progresso do nacionalismo timorense e da disseminação da
identificação com a Língua Portuguesa e a comunidade lusófona, assim como a
tipologia de Estado e povos de Breton (1998) para compreender a demanda de
reconhecimento sociolinguístico complexo que Timor-Leste apresenta, agora
como Estado.
Finalmente, apresentamos, no capítulo de conclusão, uma reflexão
derradeira sobre a relação entre a Língua Portuguesa e a mitologia de origem, a
identidade nacional e a construção do Estado timorense, exercício que tomará
como principal referência os discursos dos entrevistados.
14
15
II. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
“A diferença entre o olho treinado e o inexperiente é manifestada no poder de discernir e pesquisar metodicamente” (Bauman & May, 2010, p. 280)
PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA As políticas de língua e de educação, assim como a reintrodução da
Língua Portuguesa já foram objeto de pesquisa de outros investigadores: alguns
as analisaram do ponto de vista político, outros a partir de uma ótica linguística.
Queremos, nesta tese, prover uma reflexão sociológica sobre estes objetos, pois
esta fornece uma interpretação do contexto social onde tais políticas e tal
reintrodução se dão. Este contexto é de grande valor para desenvolver teorias
de soluções para os desafios apresentados na implementação das políticas, pois
como sustenta o pressuposto culturalista, “a teoria só é importante na medida
em que vai além das tipologias abstratas e volta ao concreto” (Giroux, 1986, p.
170). Ou ainda, segundo afirma Vecchi (in Bauman, 2005, p. 8), “colher a
‘verdade’ de todo o sentimento, estilo de vida e comportamento coletivo (...) só
é possível quando se analisam os contextos social, cultural e político em que
um fenômeno particular existe, assim como o próprio fenômeno”.
Por essa razão, servimo-nos especialmente de autores de referência na
área da sociologia geral e da sociologia da educação como fundamento teórico
da nossa análise.
Os sociólogos e antropólogos funcionalistas contribuíram para produzir “categorias e modelos de análise que servem para analisar fatos da socialização.
Esse instrumentos permitem, simultaneamente, compreender os limites de qualquer teoria ‘geral’ da socialização e discernir os problemas com que se deve confrontar a sociologia empírica para fazer avançar o conhecimento dos mecanismos concretos da produção social das personalidades” (Dubar, 1997, p. 39).
Estas análises sociológicas tratam do “efeito que o viver em sociedade
tem sobre o que fazemos, como nos vemos e como vemos os objetos e os
outros, e o que acontece em consequência disso tudo” (Bauman & May, 2010,
p. 157). Tanto que “a sociologia, embora não possa corrigir os defeitos do
mundo, é capaz de nos ajudar a compreendê-los de modo mais completo e, ao
fazê-lo, permite-nos atuar sobre eles em busca do aperfeiçoamento humano”
(id., ibid., p. 186). Estes autores igualmente atentam que
16
“o grande serviço que a sociologia está preparada para oferecer à vida humana e à coabitação dos homens é a promoção do entendimento mútuo e da tolerância como condição suprema da liberdade compartilhada. Graças à forma de entendimento que disponibiliza, o pensamento sociológico promove necessariamente o entendimento produtor de tolerância e a tolerância que viabiliza o entendimento” (id., ibid., p. 286). É em busca deste alvo que “a arte de pensar sociologicamente consiste
em ampliar o alcance e a efetividade prática da liberdade. Quanto mais disso
aprender, mais o indivíduo será flexível diante da opressão e do controle, e
portanto menos sujeito a manipulação” (id., ibid., p. 26). Porém, o olhar
sociológico traz do mesmo modo o desconforto, pois, “em face do mundo considerado familiar, governado por rotinas capazes de
reconfirmar crenças, a sociologia pode surgir como alguém estranho, irritante e intrometido. Por colocar em questão aquilo que é considerado inquestionável, tido como dado, ela tem o potencial de abalar as confortáveis certezas da vida, fazendo perguntas que ninguém quer se lembrar de fazer e cuja simples menção provoca ressentimentos naqueles que detêm interesses estabelecidos” (id., ibid., p. 24). Assim que,
“nesse processo de revisão, as formas estabelecidas de ver o mundo podem ser questionadas por novos conjuntos de condições que demandem outros modos de pensar. Para alguns, isso parece ameaça, para outros, oportunidade de satisfação. Contudo há uma urgência estabelecida por aquelas condições, e elas exigem disposição para mudança. Naturalmente não mais do que a humanidade tem mudado no curso de sua história” (id., ibid., p. 198).
Os autores asseveram que o binômio problema-solução constitui a
característica da condição humana e, portanto, “o que deve ser perguntado do
ponto de vista sociológico, é: para quem isso é um problema? Por que é um
problema para alguém e quais são as consequências dessa problematização e de
suas correspondentes soluções?” (id., ibid., p. 197). Ademais, “a própria maneira como pensamos um problema e o analisamos originará as
soluções que serão consideradas a ele adequadas. Por esse ponto de vista, pensar diferente não é atividade complacente. Pelo contrário, costuma ser o primeiro passo para a construção de soluções mais práticas e duradouras para as questões que enfrentamos no mundo contemporâneo” (id., ibid., 2010, p. 201).
Optamos por sondar o objeto de pesquisa do prisma dos gestores das
políticas educacionais e linguísticas, o que constitui uma representação da visão
da elite política, e portanto, de indivíduos específicos e não da sociedade em
geral, porém, “Atores individuais tornam-se objeto das observações de estudos sociológicos à
medida que são considerados participantes de uma rede de interdependência. Por isso, e porque, não importando o que façamos, somos dependentes dos outros, poderíamos dizer que a questão central da sociologia é: como os tipos de relações sociais e de sociedades em que vivemos têm a ver com as imagens que formamos uns dos outros, de nós mesmos e de nosso conhecimento, nossas ações e suas consequências?” (id., ibid., p. 17).
17
E ainda,
“podemos dizer que a sociologia se distingue por observar as ações humanas como elementos de figurações mais amplas; ou seja, de uma montagem não aleatória de atores reunidos em rede de dependência mútua (dependência considerada o estado no qual a probabilidade de que a ação seja empreendida e as chances de seu sucesso se alterem em função do que sejam os atores, do que façam ou possam fazer)” (id., ibid., p. 16).
Assim sendo, “figurações, redes de dependência mútua,
condicionamentos recíprocos da ação e expansão ou confinamento da liberdade
dos atores estão entre as mais preeminentes preocupações da sociologia” (id.,
ibid., p. 17) e são ao mesmo tempo a matéria-prima para a investigação
sociológica. “Pensar sociologicamente é dar sentido à condição humana por
meio de uma análise das numerosas teias de interdependência humana” (id.,
ibid., p. 24). Conforme referem estes autores, “Vivemos em companhia de outras pessoas e interagimos uns com os outros. Nesse
processo, demonstramos extraordinária quantidade de conhecimento tácito, que nos permite lidar com os desafios do dia a dia. Cada um de nós é um ator habilidoso, mas o que conseguimos e o que somos depende do que fazem as outras pessoas. Afinal, a maioria de nós já viveu a angustiante experiência de ruptura da comunicação com amigos e desconhecidos. Segundo esse ponto de vista, o assunto da sociologia já está embutido em nosso cotidiano, sem o que, aliás, seríamos incapazes de conduzir nossa vida na companhia dos outros” (id., ibid., p. 19).
Apesar de ocupar-se com assuntos que não fogem de forma alguma aos
temas mais diversos do cotidiano, a sociologia é oposta ao senso comum, pois
“empenha-se em se subordinar às regras rigorosas do discurso responsável”: “O discurso responsável tem também de se relacionar com outras afirmações a
respeito do mesmo tópico e, desse modo, não pode dispensar ou passar em silêncio por outros pontos de vista que tenham sido verbalizados, por mais inconvenientes que eles possam ser para o argumento. Dessa maneira, a fidedignidade, a confiabilidade e, finalmente, também a utilidade prática das proposições que se seguirem a esse argumento serão bastante ampliadas” (id., ibid., p. 21).
O senso comum detém um tamanho de campo muito reduzido e se
resume a nossos próprios “mundos da vida”. Contudo, para a sociologia, “essas questões só podem ser examinadas se as colocarmos juntas e compararmos
experiências prospectadas a partir de uma multiplicidade de mundos.” (...) O resultado global de tal ampliação de horizontes será a descoberta da íntima ligação entre biografia individual e amplos processos sociais. É por essa razão que a busca dessa perspectiva mais ampla efetivada pelos sociólogos faz uma enorme diferença – não só quantitativamente, mas também na qualidade e nos usos do conhecimento” (id., ibid., p. 22).
À vista disto,
18
“a sociologia se opõe tanto ao modelo que se funda na particularidade das visões de mundo, como se elas pudessem, sem problema algum, dar conta de um estado geral das coisas, quanto ao que usa formas inquestionáveis de compreensão, como se elas constituíssem um modo natural de explicação de eventos, como se eles pudessem ser simplesmente separados da mudança histórica ou das localidades sociais de que emergiram” (id., ibid., p. 23).
Objetivando, então, uma análise sociológica e não um eco do senso
comum, esse trabalho começa “não com uma observação, mas com um quadro
de referência teórico que situa a observação dentro de regras e convenções que
lhe dão significado, enquanto que simultaneamente se reconhece as limitações
de tal perspectiva ou quadro de referência” (Giroux, 1986, p. 37). É a exposição
das regras e convenções aqui utilizadas, assim como a apresentação das
limitações e potencialidades da tese, que realizamos a seguir.
OBJETO E AMOSTRA
Esta investigação identifica e observa os desafios enfrentados na
implementação das políticas de reintrodução da Língua Portuguesa no sistema
educativo de Timor-Leste e analisa-os no quadro de uma abordagem
sociológica. A perspectiva desta análise está focalizada em executores
particulares dessas políticas definidas na Constituição, a saber: os (Ex-)
Ministros da Educação e alguns diretores do Ministério da Educação
responsáveis pela capacitação dos professores e pela gestão do sistema
educativo, (ex-) reitores e (ex-) decanos da faculdade de educação da
Universidade Nacional Timor Lorosa’e (única universidade pública do país) .
ABORDAGEM METODOLÓGICA
Este presente trabalho enquadra-se em uma investigação na área de
ciências sociais da educação em que se privilegia a compreensão e possível
explicação dos fenómenos sociais estudados e, portanto, a investigação se
propõe a seguir uma metodologia qualitativa seguindo uma tendência nas
investigações no campo da educação emergente nos anos 60: “Grande número de investigadores educacionais começaram a sentir que as
promessas da investigação quantitativa relativamente às suas possibilidades (os problemas que conseguia resolver) tinham atingido o limite. Os métodos quantitativos, baseados no paradigma científico tradicional, não tinham cumprido (...) Desta forma, a investigação qualitativa explodiu em educação” (Bogdan & Biklen, 1994, p. 40).
19
Essa abordagem tem a vantagem de se propor mais descritiva e menos
positivista. Está preocupada com a profundidade e pluralidade de informações e
fontes e não com a objetivação e quantificação das situações estudadas. Os
números só serão aqui relevantes na medida em que revelem tendências
coletivas de respostas às entrevistas para auxiliar-nos na descrição e
classificação das informações recolhidas. Explicam Bogdan & Biklen (ibid., p.
45): “Durante o modernismo, tentava-se explicar a condição humana e o progresso pela
crença nas virtudes do racionalismo e da ciência, pela ideia de um ‘eu’ estável, consistente e coerente e pelo recurso a abordagens positivistas do conhecimento – crenças que se tinham mantido firmes no Ocidente desde a ‘época das luzes’. Por sua vez, os pós-modernistas defendem que este tipo de fundamentos já não faz sentido. A era nuclear afastou a possibilidade do progresso humano baseado no racionalismo e levou as pessoas, em muitas áreas da vida humana, a questionar a integridade do progresso” (id., ibid., p. 45).
Estes autores (id., ibid., pp. 47-51) ainda enumeram características que
identificam uma investigação como qualitativa, as quais podem ser constatadas
nesta tese:
· “Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal”. Esta pesquisa foi
conduzida como investigação de campo uma vez que trabalhamos, convivemos,
observamos e participamos do contexto pesquisado diariamente. A relação com
alguns dos principais entrevistados é estreita, anterior e posterior às entrevistas.
· “A investigação qualitativa é descritiva”. A base de análise das informações é
o discurso dos entrevistados e sua própria descrição sobre as políticas
linguísticas e educacionais e sua relação com o desenvolvimento da nação e a
construção do Estado timorense. Reafirmando aqui o papel da nossa
interpretação contida na análise desta descrição, o que também é uma
característica da pesquisa qualitativa.
· “Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que
simplesmente pelos resultados ou produtos”. Visto que nem o desenvolvimento
da nação, nem a construção do Estado são realidades finalizadas e o contexto
social aqui analisado nunca é acabado ou definitivo, a ênfase do trabalho não é
no resultado das políticas de língua e sim no processo de viabilização do
Estado-nação associado à Língua Portuguesa.
20
· “Os investigadores qualitativos tendem a analisar os dados de forma
indutiva”. Apesar de estreita ligação entre autora e objeto de pesquisa, todas os
temas específicos de análise foram estabelecidos após as entrevistas e os títulos
dos próprios capítulos vêm a ser expressões encontradas nos discursos dos
entrevistados. Portanto, os resultados obtidos foram quase que inteiramente
indutivos.
· “O significado é de importância vital na abordagem qualitativa”. A ótica dos
entrevistados e o sentido que os mesmos davam ao objeto de investigação foi
de suma importância neste trabalho. As informações são obtidas dentro de uma
perspectiva participante das autoridades envolvidas com a gestão da política
linguística e das políticas educacionais aqui analisadas.
Existem, porém, alguns cuidados a serem tomados para que a
investigação qualitativa tenha validade científica. Temos, portanto, consciência
das dúvidas que podem vir a surgir em relação aos resultados obtidos, uma vez
que a autora é professora e capacitadora de professores de Língua Portuguesa
em Timor-Leste há treze anos e poderia parecer tendenciosa a reflexão sobre a
centralidade desta língua no estabelecimento da nação e do Estado. Essa
implicação pessoal do trabalho está prevista na investigação qualitativa, como
explicam Bogdan e Biklen:
“Os investigadores em educação são oriundos de diversidade de posições e têm interesses diversos. (...) De igual modo, as perspectivas teóricas que os orientarão implicarão que os modos de estruturar o respectivo trabalho serão diferentes. Nos estudos qualitativos os investigadores preocupam-se com o rigor e abrangência dos seus dados. A garantia é entendida mais como uma correspondência entre os dados que são registrados e aquilo que de facto se passa no local de estudo do que como uma consistência literal entre diferentes observações” (id., ibid., p. 69).
Por conseguinte, buscou-se apresentar as críticas dos entrevistados tão
claramente quanto as defesas do papel, da assimilação e acomodação da Língua
Portuguesa em contexto timorense atual e a intenção principal foi descrever a
avaliação que os mesmos apresentaram, garantindo o contraditório. Bogdan e
Biklen ainda afirmam que uma investigação qualitativa não se propõe a
descobrir a verdade sobre o seu objeto, mas sim a apresentar uma perspectiva
específica acerca do objeto. E é justamente esta abordagem que pretendemos
utilizar no trabalho – uma contribuição ao tema construída a partir de um
21
determinado prisma específico, a saber: quais as causas e efeitos socioculturais
e políticos abordada(o)s pelos próprios gestores do processo de implementação
das políticas educativas referentes à educação e formação em Língua
Portuguesa e ao lugar que lhe reservam na sociedade timorense pós-colonial.
RECOLHA DE INFORMAÇÕES
A recolha de dados, no quadro de uma abordagem que definimos como
qualitativa, deve ser “ric[a] em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objetivo de investigar os fenómenos em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem investigação qualitativa possam vir a selecionar questões específicas à medida que recolhem os dados, a abordagem à investigação não é feita com o objetivo de investigar questões prévias ou de testar hipóteses. Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação” (id., ibid., p. 16). As estratégias mais utilizadas na investigação qualitativa são a
observação participante e a entrevista (semi)aberta e, “dado o detalhe
pretendido, a maioria dos estudos são conduzidos com pequenas amostras” (id.,
ibid., p. 17). Neste estudo foram utilizadas duas técnicas diferentes de recolha
de informações. A primeira delas foi a seleção de documentos e artigos locais
referentes às políticas e sua aplicação durante esses 15 anos de implementação
pós-independência para análise documental. É muito frequente o uso de recolha
de dados preexistentes em bibliografia juntamente com recolha de informação
via entrevista como uma forma complementar. No entanto, a bibliografia está
sempre sujeita a manipulação e “essa manipulação é sempre delicada, dado que
não se pode alterar as características de credibilidade” (Quivy & Campenhoudt,
1995, p. 204). Deve, ainda assim, ser usada sempre que possível, pois “as bibliotecas, os arquivos e os bancos de dados, sob todas as formas, são ricos
em dados que apenas esperam pela atenção dos investigadores. É, portanto, inútil consagrar grandes recursos para recolher aquilo que já existe, ainda que a apresentação dos dados possa não ser totalmente adequada e deva sofrer algumas adaptações” (id., ibid., p. 201).
A segunda técnica foi a entrevista. Foram administradas entrevistas a
gestores das políticas de educação e formação de adultos em LP. Segundo
Quivy & Campenhoudt (ibid., p. 191), “os métodos de entrevista distinguem-se pela aplicação dos processos
fundamentais de comunicação e de interacção humana. Correctamente valorizados, estes processos permitem ao investigador retirar das entrevistas informações e elementos de reflexão muito ricos e matizados.”
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Justamente pela possibilidade de adquirir informações mais detalhadas e
ricas a entrevista serviu como técnica de recolha de informações ideal para a
composição dos resultados da investigação. A entrevista é especialmente
apropriada para a investigação de “reconstituição de um processo de acção, de
experiências ou de acontecimentos do passado” afirmam Quivy &
Campenhoudt (ibid., p. 193). Entre os tipos de entrevista existentes, utilizamos
a entrevista semiaberta ou semidiretiva. Como semidiretiva compreende-se
uma entrevista que, “não é inteiramente aberta nem encaminhada por uma grande número de perguntas
precisas. Geralmente, o investigador dispõe de uma série de perguntas-guias, relativamente abertas, a propósito das quais é imperativo receber uma informação da parte do entrevistado. Mas não colocará necessariamente todas as perguntas pela ordem em que as anotou e sob a formulação prevista. Tanto quanto possível, ‘deixará andar’ o entrevistado para que este possa falar abertamente, com as palavras que desejar e pela ordem que lhe convier” (id., ibid., p. 192).
Um guião de perguntas (apêndice 1) foi preparado previamente, mas
novas perguntas e observações surgiram livremente no decorrer das entrevistas,
tanto da parte da entrevistadora, quanto dos entrevistados. A formulação do
guião foi articulada com uma interpretação prévia das polêmicas da gestão de
política linguística por parte da autora, baseada no conhecimento empírico que
detinha sobre o assunto. As perguntas iniciais foram sendo modificadas e
ampliadas à medida que as entrevistas foram sendo feitas com personagens
singulares, pois percebeu-se que obviamente os entrevistados tinham
experiências distintas relacionadas com responsabilidades específicas de seu
respectivo cargo, além disso tinham mais a dizer do que o guião sugeria. Esse
processo enriqueceu muito as entrevistas. Algumas entrevistas ocorreram de
uma forma muita mais aberta e uma pergunta inicial serviu apenas para
desencadear o assunto e despertar o interesse do entrevistado para falar
livremente. Pensamos que a forma como foram conduzidas as entrevistas se
enquadra inteiramente nas exigências da recolha de dados no quadro de uma
investigação qualitativa, como confirmam Bogdan e Biklen (1994, p. 135):
“Mesmo quando se utiliza um guião, as entrevistas qualitativas oferecem ao
entrevistador uma amplitude de temas consideráveis, que lhe permite levantar
uma série de tópicos e oferecem ao sujeito a oportunidade de moldar o seu
conteúdo”.
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Destacamos também que alguns dos gestores entrevistados não
costumam conceder entrevistas para investigações acadêmicas, mas o
consentiram para este trabalho. Cremos que isso ocorreu pelo fato de sermos
conhecidos tanto no Ministério de Educação, quanto da UNTL por muitos ex-
gestores ou mesmo gestores atuais. Fato que poderia comprometer a
objetividade da nossa análise, porém, acreditamos que a vantagem da
informação mais detalhada e de um ambiente mais natural de entrevista
resultante da existência de uma certa amizade profissional entre investigador e
gestores compensa o risco de subjetividade de análise. Porque a reintrodução da
Língua Portuguesa no sistema de educação trata-se de assunto politicamente
polêmico esse conhecimento mútuo prévio evitou atitudes defensivas dos
entrevistados e estes também não tinham motivos para modificar seus discursos
ou comportamentos na entrevista. Para exemplificar a familiaridade dos
entrevistados conosco citamos algumas expressões utilizadas durante a
entrevista que o demostram claramente: como sabe que...; como a doutora sabe;
não sei se a doutora sabe que; a senhora deve saber; talvez a senhora deve
também ter o conhecimento (E1); agora temos que ver uma subtileza aqui em
que queria compartilhar consigo... talvez nunca lhe ocorreu... (E3); porque sabe
muito bem que em TL ainda não valorizam a alfabetização; porque sabes muito
bem que essa em si é muito sagrada para nós; a senhora pode acompanhar na
televisão que as crianças estão a falar bem a LP (E5); desde 2006 quando fiz
[curso de LP com] a profa. Karin, antes de ir ao Brasil; eles já têm tudo isto
com a porcentagem de tudo isto, isto vai ajudar a [sua] análise; você sabe que; a
profa. Karin sabe que (E6); porque sabe que depois do referendo não havia
escola; eu não sei se a doutora pode pedir ao ME; a doutora pode depois falar
com o instituto sobre isso; como bem sabe esse foi um dos tantos assuntos
delicados que tive que lidar no meu mandato (E7); a Karin sabe perfeitamente
que de 2009 até 2012 praticamente não tem nada de bom para uma pessoa
começar; até você pode ver na obra de alguns governantes; você não estava cá
ainda; você não acha assim? (E9); a senhora estava cá? (E12); eu não sei se a
senhora sabe da história ou não; não sei, vocês é que podem avaliar, não sou eu;
como sabe os livros queimaram todos; vocês é que repararam naquele
momento; não sei se reparou aquilo; a senhora não sei se reparou; se a senhora
tiver esses dados; a senhora que está [lá]; como a senhora disse; não sei se a
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senhora sabe ou não; espero que o governo possa trabalhar com vocês que estão
aqui; a senhora viu que conseguimos levar os alunos para casa; só a senhora
que pode avaliar; durante esse tempo estava aqui, naqueles momentos difíceis;
a senhora pode perguntar ali na educação (E14).
Os entrevistados concederam a entrevista nos seus próprios locais de
trabalho, com exceção de E11 e E14, que preferiram realizar as entrevistas em
suas próprias casas e E9, que cedeu entrevista em nossa casa. E8 realizaria a
entrevista também em nossa casa, mas teve que se ausentar do país
repentinamente por motivos de saúde e acabou por enviar as respostas das
questões do guião de entrevista via correio eletrônico. Duas entrevist
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