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“VALEI-ME!”a construção do espetáculo sob o olhar semiótico.
KLEBER DÜMERVAL GUIMARÃES DE OLIVEIRA
Universidade da AmazôniaBelém-PA
2013
KLEBER DÜMERVAL GUIMARÃES DE OLIVEIRA
“VALEI-ME!”: A construção do espetáculo sob o olhar semiótico.
UNAMA Belém-PA
2013
KLEBER DÜMERVAL GUIMARÃES DE OLIVEIRA
“VALEI-ME!”: A construção do espetáculo sob o olhar semiótico.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado de Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre sob a orientação do Professor Dr. Erasmo Borges de Souza Filho.
UNAMA Belém-PA
2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819
792.8
Oliveira, Kleber DüMerval Guimarães de. “Valei-me!”: a construção do espetáculo sob o olhar
semiótico. /Kleber DüMerval Guimarães de Oliveira. – Belém, 2013.
144f. il.; 21 x 30 cm. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,
Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagem e Cultura, 2013.
Orientador: Profº. Dr. Erasmo Borges de Souza Filho. 1. Dança. 2. Linguagem gestual. 3. Performance.
4. Dança contemporânea. 5. Semiótica. I. Souza Filho, Erasmo Borges de. II. Título.
O48v
KLEBER DÜMERVAL GUIMARÃES DE OLIVEIRA
“VALEI-ME!”: A construção do espetáculo sob o olhar semiótico.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado de Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre sob a orientação do Professor Dr. Erasmo Borges de Souza Filho.
Banca Examinadora: ----------------------------------------------------------- Prof. Dr. Erasmo Borges de Souza Filho Orientador– Universidade da Amazônia ----------------------------------------------------------- Prof. Dra. Bene Martins Universidade Federal do Pará ----------------------------------------------------------- Prof. Dra. Lucilinda Ribeiro Teixeira Universidade da Amazônia
Apresentado em: ____ / ____ /_____.
Conceito: ____________________.
UNAMA Belém-PA
2013
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que mantida a referência autoral. As imagens contidas nesta dissertação, por serem pertencentes a acervo privado, só poderão ser reproduzidas com a expressa autorização dos detentores do direito de reprodução.
Assinatura _________________________________
Local e Data _______________________________
À minha mãe, Joana d’Arc G. Oliveira, pelo exemplo em todos os sentidos da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente ao meu bom Deus, por me guiar nessa etapa da minha vida. Aos meus familiares, especialmente, minha mãe, sempre se mostrando a melhor das companheiras, por todo apoio, acolhimento e compreensão. Ao meu orientador Erasmo Filho, por ter acreditado neste trabalho quando todas as forças para concluir o mesmo já tinham acabado. Ao meu melhor amigo Girleno Ávila que, ao aparecer no meio desse caminho com seu apoio e motivação, me fez recuperar a energia para seguir nesse objetivo. Ao amigo Cary John, que colaborou com seu conhecimento na hora da revisão do texto, como também sempre esteve presente para ajudar nos momentos mais difíceis. À coordenação deste curso, que mostrou paciência e possibilitou a continuidade dos estudos nos últimos passos da conclusão do mestrado, ao elenco de “Valei-me!”, que sem a participação e a alegria, não seria possível a realização deste trabalho. A todos que, de alguma maneira, estiveram presentes nesse caminho e à dança, com a qual não sei definir o limite de onde ela se inicia e onde eu termino.
“Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma gargalhada!”
(F. NIETZSCHE)
RESUMO
Este trabalho propõe um estudo e análise da construção do espetáculo, enquanto narrativa numa perspectiva textual, e os aspectos da produção de sentido relacionado ao processo criativo, com referência na semiótica discursiva. Um espetáculo por si só constitui-se como uma performance em ato, mas que sofre interferências à medida que se presentifica a cada apresentação. Nesse sentido, a narrativa é dinâmica e processual, embora a sua estrutura seja a espinha dorsal na concretização do discurso espetacularizado. A pesquisa qualitativa, proposta por Bogdan e Biklen (1992), e referendada no estudo de caso, constitui-se no aporte metodológico, que tem na semiótica a principal referência teórica. Assim, "Valei-me!" é o resultado da construção intertextual no qual cada sujeito envolvido contribui no resultado da produção de sentido, na significação, resultando em uma produção coletiva.
Palavras-chave: Dança. Semiótica. Linguagem Gestual
RESUMEN Este trabajo propone un estudio y análisis de la construcción de la muestra, mientras que la perspectiva narrativa textual, y los aspectos de la producción de significado relacionado con el proceso creativo, con referencia a la semiótica discursiva. Un espectáculo en sí mismo se constituye en un acto de ejecución, pero sufriendo interferencias, ya que se hace presente a cada presentación. En este sentido, la narración es procesual, aunque su estructura es la columna vertebral del discurso para lograr espectacularizada. La investigación cualitativa, propuesta por Bogdan y Biklen (1992), y se hace referencia en el estudio de caso, constituye el enfoque metodológico, que es la principal referencia en la teoría semiótica. Por lo tanto, "Valei mí!" es el resultado de la construcción inter-textual en el que cada sujeto implicado contribuye a la producción de resultado en sentido significado, lo que resulta en una producción colectiva. Palabras clave: Danza. Semiótica. Lenguaje de signos
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Ilustração do teaser; campanha provocadora do espetáculo
“Se as cabeças fossem quadradas” veiculada no Facebook. ....................... 35
Figura 2 - Ilustração do fórum de discussão do processo de criação do espetáculo
“Se as cabeças fossem quadradas” veiculada no Facebook.. ..................... 36
Figura 3 - Espaços de interação na construção do espetáculo “Valei-me!”. ............. 82
Figura 4 – Processo de ressignificação do movimento por Leidiana Ribeiro. .......... 91
Figura 5 – Processo de ressignificação do movimento por Priscilla Nascimento
e Andréa Torres. ............................................................................................... 92
Figura 6 – Cena “A porca do reduto” ........................................................................... 94
Figura 7 – Quadrado semiótico ..................................................................................... 100
Figura 8 – Fotos e cena do espetáculo “Valei-me!”. .................................................... 106
Figura 9 – Fotos e cena do espetáculo “Valei-me!”. .................................................... 107
Figura 10 – Fotos e cenas do espetáculo “Valei-me!”. ................................................ 108
Figura 11 – Cena “Matinta”. ............................................................................................ 110
Figura 12 – Desenhos de Otoniel Oliveira para a cena “Matinta” ............................. 110
Figura 13 – Cena “Homúnculo da Sé” .......................................................................... 111
Figura 14 – Cena “A porca do reduto” .......................................................................... 112
Figura 15 – Cena “A moça sem rosto” .......................................................................... 114
Figura 16 – Cena “A mulher do taxi” ............................................................................ 115
Figura 17 – Cena “Libera-me” ........................................................................................ 116
Figura 18 – Cena “Aurora” .............................................................................................. 117
Figura 19 – Cena herdada de “Matinta” ........................................................................ 119
Figura 20 – N. Sra. da Piedade (Pietá) em mármore feita por Michelangelo ........... 119
Figura 21 – Cenas de “Homúnculo da Sé” .................................................................... 123
Figura 22 – Desenhos em arte sequencial de Otoniel Oliveira para a cena
“Homúnculo da Sé”. .................................................................................... 125
Figura 23 – Cena de “Homúnculo da Sé”. .................................................................... 126
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Relação de elementos criadores no processo de construção
de “Valei-me!”. . ........................................................................................... 85
Quadro 2 – Relação de espaços de criação central no processo de construção
do espetáculo “Valei-me!”. ......................................................................... 86
Quadro 3 – Relação de espaços de criação artística no processo de construção do
espetáculo “Valei-me!”. ............................................................................... 89
Quadro 4 – Níveis do percurso gerativo de sentido. ................................................... 99
Quadro 5 – Níveis narrativos e discursivos do espetáculo “Valei-me!”. ................... 104
Quadro 6 – Os principais tipos de manipulação no nível narrativo. ........................ 122
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 12
1 DESBRAVAR O SABER: A DANÇA CONTEMPORÂNEA
EM BELÉM SOB O OLHAR DA COMUNICAÇÃO. ............................. 17
1.1 Comunicação, linguagem e dança: uma breve história. ..................... 17
1.2 Primeiras reflexões: a dança e a comunicação ...................................... 21
1.2.1 O limite e a quebra de paradigmas .............................................................. 26
1.2.2 O caminho metodológico percorrido ......................................................... 28
1.2.3 Curiosidades encontradas ............................................................................. 32
1.2.4 Repensar conceitos ........................................................................................ 34
1.3 Diálogo com o discurso e a análise semiótica ....................................... 40
1.4 O corpo midiático: a dança, a cultura e a comunicação. .................... 47
2 DANÇAR AMPLIA OS HORIZONTES .................................................. 53
2.1 O corpo que dança ........................................................................................ 53
2.2 Relação: o corpo, intérprete e criador. ..................................................... 58
2.2.1 A ontologia do corpo que dança ................................................................. 58
2.2.2 O corpo dançante do intérprete .................................................................. 61
2.2.3 O bailarino/intérprete entre técnica e a expressão ................................... 64
2.2.3.1 A técnica ...................................................................................................... 64
2.2.3.2 O “carão” .................................................................................................... 66
2.3 A gestualidade e a comunicação semiótica na dança. ........................ 70
2.3.1 Uma breve diferenciação estética ................................................................ 71
2.3.2 A dança contemporânea e a gestualidade em Greimas ............................ 72
3 VALEI-ME!: A MITOPOÉTICA E CORPORIFICAÇÃO DO FANTASMAGÓRICO. ...................................................................................... 76
3.1 Processos de criação e concepção. ........................................................... 76
3.1.1 A crítica genética e os espaços de interação identificados no processo
de construção do espetáculo. ...................................................................... 79
3.1.1.1 O arquivo: ................................................................................................... 82
3.1.1.2 Os fatores elementares .............................................................................. 84
3.1.1.3 O eixo cênico .............................................................................................. 86
a) Ensaio x estado de graça .................................................................... 87 b) Representação x estado de graça ....................................................... 87 c) Texto coreográfico x estado de Graça ............................................. 88 d) Interpretação x estado de Graça ....................................................... 88
3.1.1.4 Os espaços de criação artística ................................................................. 89
3.2. Ressignificação das narrativas e materialização no corpo ............... 91
3.3 A semiótica entra em cena .......................................................................... 97
3.3.1 Semiótica discursiva: uma breve introdução .............................................. 97
3.3.2 A semiótica em “Valei-me!”. ........................................................................ 102
3.3.2.1 A estrutura do espetáculo .......................................................................... 103
3.3.2.2 A construção das cenas ............................................................................. 105
a) Família .................................................................................................. 105 b) Sereno ................................................................................................... 106 c) Procissão das almas ............................................................................. 108 d) Matinta .................................................................................................. 109 e) Homúnculo da Sé ................................................................................ 111 f) Porca do reduto ................................................................................... 112 g) A moça sem rosto ............................................................................... 113 h) A mulher do taxi .................................................................................. 114 i) Libera-me ............................................................................................. 116 j) Aurora ................................................................................................... 117
3.3.3 Análise semiótica de Homúnculo da Sé ..................................................... 118
3.3.3.1 Homúnculo da Sé em cena ........................................................................ 118
3.3.3.2 A linha que conduz o sentido ................................................................... 120
3.3.3.2.1 Nível fundamental ................................................................................... 121
3.3.3.2.2 Nível narrativo ......................................................................................... 122
3.3.3.2.3 Nível discursivo ....................................................................................... 124
3.3.4 A autonomia e ressignificação do texto ..................................................... 130
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 133
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 137
INTRODUÇÃO
Sentado defronte à porta de uma casa localizada no balneário de Mosqueiro,
uma ilha que é um distrito administrativo do município de Belém (PA) e situada às
margens do braço sul do Rio Amazonas, na Baía do Guajará, um grupo de meninos
contava histórias de fantasmas. Era costume isso ocorrer, quando faltava energia elétrica,
evento comum no início da década de 80 (séc. XX).
O cenário era uma casa de férias, palco para narrativas e muitas outras
histórias que deixavam atentos os ouvidos dos jovens que adentravam a noite acordados
ao redor da luz de uma lamparina.
Essa é a descrição de um momento muito marcante da minha infância e,
posteriormente, sempre que eu tinha contato com algumas daquelas narrativas escutadas,
minha memória afetiva retornava para aquele lugar.
Por volta de janeiro de 2011, já adulto, e com muitos pensamentos na cabeça,
tive a ideia de retratar aquelas histórias em um espetáculo de dança contemporânea, uma
vez que, já vinha trabalhando com essa linguagem há muitos anos na capital paraense.
Percebi, que apesar de estimar muito aquele período, havia um distanciamento
progressivo daquele hábito, pois notei que, a partir da metade da década de 90 do século
passado, com o surgimento da internet, o hábito de se sentar nas calçadas ficava cada vez
menos comum.
O aumento da violência urbana, em parte, contribuiu para a diminuição da
quantidade de grupos de pessoas em frente às casas conversando, cujo ambiente era cheio
de narrativas imaginárias, de causos e contos que, até então, eram passados de geração em
geração.
Percebi que o repertório de histórias fantásticas estava desaparecendo ou
ficando cada vez menos presente no repertório dos jovens de hoje. Isso também
motivado pela alteração dos hábitos dos paraenses. Atualmente, os espaços de convívio
social tendem a se concentrar em clubes, cinemas e shopping centers.
Impulsionado por essas questões, parti em busca de material teórico para a
criação de um espetáculo que abordasse essas narrativas. Propus-me, naquele momento,
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uma mudança de olhar, uma modificação de toda a forma de construção coreográfica
antes feita por mim, que, nesse estudo, se modifica, abrindo-se às novas formas de pensar
e de ver como se dá o processo de construção de um espetáculo.
Assim, de forma didática e usual, a partir da pesquisa realizada, o processo
evolutivo da minha dança resultou na formação de uma nova tendência na
experimentação de movimentos. Isso se ampliou ainda mais, a partir do momento em que
fui contemplado com uma Bolsa de Experimentação e Criação Artística do Instituto de
Artes do Pará (IAP), em 2011, no mesmo ano em que iniciei a minha pesquisa no
Programa de Mestrado e Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da
Amazônia (Unama).
Minha paixão aflorou ainda mais com essa temática. E faz-se necessário
explicar que essa investigação também se apoia na experiência vivida ao longo de vinte
anos na área de criação coreográfica em danças populares, parafolclóricas e
contemporânea. Daí nasce essa intenção de inventariar e documentar o processo de
criação dessa produção, mais especificamente o espetáculo intitulado “Valei-me!”, que se
corporifica como um processo de experimentação coreográfica realizada e dirigida por
mim.
No desejo de recuperar o material teórico produzido, assim como o repertório
adquirido com essa experimentação, é que esse tema tornou-se o objeto de pesquisa da
minha dissertação, apesar dos vários temas propostos no mestrado de maneira empírica e
impulsionados pela paixão ou pelo desejo de registrar a vivência nos palcos ou em
espaços alternativos.
Com esse propósito, procurei manter a expressão da arte e também das
tradições que fizeram parte da minha memória e trajetória artística vivenciadas em Belém,
convertendo-se essa busca numa forte referência pessoal e de satisfação em compreender
melhor a minha dança e o meu processo criativo.
Ao mesmo tempo, parte dos resultados aqui apresentados é também uma
compilação dos vários textos produzidos em artigos nas disciplinas cursadas no mestrado.
Era uma forma de ampliar a discussão sobre o meu objeto de pesquisa, a partir da
interação com os conteúdos estudados nas disciplinas.
Além de tentar servir como material de referência para a pesquisa dos
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processos criativos em relação às produções artísticas, “Valei-me!” se consolida como
objeto desta pesquisa, cuja problemática é a seguinte: de que forma a narrativa do
espetáculo se constrói na interseção entre as várias ações textuais, a partir do processo
criativo do roteiro, do coreógrafo e do intérprete, em um processo de reiteração, cujas
intertextualidades também evocam do público a própria ressignificação da obra?
Nesse sentido, os objetivos compreendem o estudo, a análise e a reflexão em
torno dos processos de criação, da construção narrativa do espetáculo em cena, com seu
caráter sincrético, multilíngue e polissêmico, principalmente no que diz respeito ao
processo de recepção na ressignificação da obra.
A valorização do momento da recepção e as interações com o público no final
do espetáculo vêm sendo consideradas e vivenciadas pelos grupos de dança
contemporânea da Região Metropolitana de Belém. Nesse sentido, essa prática não
sistematizada e variável entre companhias de dança merece um estudo à parte,
considerando-se não só a função desses grupos na comunidade e o ambiente artístico no
qual executam suas performances, mas, principalmente, a reafirmação de uma identidade
nesse processo de criação e recriação de suas próprias coreografias. A vivência desse
processo deu a “Valei-me!” novas referências e uma forma inédita de se construir um
espetáculo.
Para dar conta desse processo de investigação, é que esta dissertação apresenta
a seguinte estrutura: no primeiro capítulo, estão a apresentação e descrição do percurso
teórico-metodológico, de como a pesquisa foi desenvolvida, trazendo em questão os
aspectos peculiares da análise qualitativa, já que ao se falar de ato de comunicação, isso
envolve, conforme nos apresenta Diana Barros (2011), um fazer persuasivo1 e um fazer
interpretativo2.
No segundo capítulo, são apresentados os conceitos de dança e de como ela se
estabelece como uma linguagem polissêmica, híbrida ou mais precisamente como um texto
1 O fazer persuasivo é denominado pelos semioticistas como o percurso da enunciação de codificação. Compreende as etapas da percepção, conceptualização, semiologização, semiotização, leximização, semiose, texto. 2 O fazer interpretativo parte da produção do texto que é percebido pelo enunciatário que reconhece a semiótica objeto, o código utilizado e identifica os objetos manifestados para logo reconstruir o texto completo e sua significação.
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sincrético3. O texto é o objeto de estudo da semiótica e é:
[...] definido por sua organização interna e pelas determinações contextuais, pode ser tanto um texto linguístico, indiferentemente oral ou escrito - uma poesia, um romance, um editorial de jornal, uma oração, um discurso político, um sermão, uma aula, uma conversa de crianças - quanto um texto visual ou gestual - uma aquarela, uma gravura, uma dança - ou, mais frequentemente, um texto sincrético de mais de uma expressão - uma história em quadrinhos, um filme, uma canção popular. (BARROS, 2011, p.12).
E com cargas notáveis de significações, dando a ela uma característica extremamente
importante para os estudos de semiótica.
Como aporte teórico da semiótica, esta pesquisa está referendada em Greimas
(2008), Fiorin (2013), Diana Barros (2011) e outros autores com abordagens nas
diferentes manifestações estéticas da dança, bem como no campo da gestualidade e alguns
conceitos de análise do discurso e de recepção.
Na continuidade desse capítulo tem-se ainda o estudo do corpo em si, da
gestualidade, e de como ele se comporta no processo criativo a partir da narrativa da obra,
além das possibilidades de materialização de sentido que o corpo está apto a oferecer. Isso
envolve a análise sobre as questões da corporeidade, as mudanças que ocorrem a respeito
do corpo na cena e a maneira como esse corpo se afirma ontologicamente.
Para o terceiro capítulo tem-se uma análise da obra “Valei-me!”, as
descobertas vivenciadas no processo de criação do espetáculo até chegarmos à cena
propriamente dita; os estudos e experimentações coletivas entre o coreógrafo e os
bailarinos. Ainda neste capítulo, são abordados os espaços de interação, entre a obra e o
público, descobertos e identificados em relação aos destinadores e destinatários do
discurso que participam do processo de criação de “Valei-me!”, ou seja, o roteirista, o
coreógrafo, o intérprete e o público.
Também são apresentadas as considerações finais destacando-se a análise
semiótica das cenas e o processo de recepção do público, cujo fazer interpretativo nem
sempre é considerado na maioria dos espetáculos e no seu processo de ressignificação.
3 Os textos sincréticos utilizam-se de mais de um recurso de expressão, uma peça teatral, uma canção, uma história em quadrinhos, um espetáculo de dança.
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Esse aspecto é observado na fala dos sujeitos envolvidos na construção do
espetáculo, entre a forma tradicional de montagem e o que foi proposto com o espetáculo
em questão, ampliando horizontes e estabelecendo o acúmulo de novas competências.
1 DESBRAVAR O SABER: A DANÇA CONTEMPORÂNEA EM BELÉM SOB O OLHAR DA COMUNICAÇÃO.
Foi assim, como ver o mar Foi a primeira vez que eu vi o mar
Onda azul, todo azul do mar Daria pra beber todo azul do mar
Foi quando mergulhei no azul do mar [...]. (Todo Azul do Mar, Flávio Venturini).
Foi exatamente assim que me senti ao ver o tanto de caminho que eu iria percorrer
no desvelamento do meu objeto de pesquisa. Como diante de um “oceano de ideias” e um
"mar" de muito trabalho a fazer. Arregacei as mangas e então “naveguei” em busca de material
de estudo. Comecei pelo local mais familiar possível. Primeiro os espaços comunicacionais, no
caso, ligados à formação acadêmica, pois possuo graduação em Comunicação Social, e, logo em
seguida, busquei nos espaços das artes, pois desde jovem participo de produções em dança na
cidade de Belém.
1.1 Comunicação, linguagem e dança: uma breve história.
O conceito de comunicação é tão amplo que nem sempre é simples de se
compreender o processo em si. Em particular, a comunicação da espécie humana, que, desde
os primórdios, se comunica tanto quanto os demais seres viventes na terra, no qual, pela
biodiversidade das espécies, repassam informações uns para os outros. São complexas redes
transmitindo mensagens para se defender contra os predadores. Essa é uma capacidade
instintiva necessária para a perpetuação da espécie. São mensagens como encontrar parceiros
ou obter alimento.
Existem variadas formas dos seres vivos se comunicarem. De bactérias quase
invisíveis até os maiores animais viventes, a capacidade de se comunicar, geralmente, determina
18
a sobrevivência da espécie. O mais bem adaptado sobrevive, e, para isso, todos os seres
viventes usam a comunicação para transmitir informação. Nesse contexto, eles contam com
um complexo sistema de códigos, por meio visual, químico, sonoro, gestual e, no caso do ser
humano, o verbal também.
Remontando esse processo histórico, é de conhecimento dos estudiosos de
comunicação que o ser humano, em dado momento de sua evolução, sentiu a necessidade de se
comunicar, não somente com esse caráter de sobrevivência, mas também por motivos sociais.
Viver em grupo torna-o um ser sociável e, assim, a comunicação também evoluiu a esses
estágios através de gestos, sinais, desenhos, a fala e a escrita.
Partindo desse raciocínio e dessa capacidade de comunicação, é que Rousseau no
seu Ensaio sobre a origem das línguas (1973) pondera que a linguagem nasceu da percepção do outro
como um ser semelhante. Assim que o ser humano percebeu e reconheceu no outro a
sensibilidade, a capacidade de pensar e encontrou semelhança nele próprio; a vontade e
necessidade de se comunicar com o outro começou a fazer parte de seus sentidos de existir,
então o ser humano foi em busca de uma rota para isso.
Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas. (ROSSEAU, 1973, p.170)
O nascimento da linguagem, na sua interação sociocultural e com a natureza,
proporcionou a eclosão da capacidade criativa do homem. Foi assim que ele adquiriu a
capacidade de se referenciar e se representar no seu ambiente, no mundo vivente ao qual ele
estava inserido, e que o podemos representar como um ser consciente.
Desde então, o ser humano estabeleceu tarefas e crenças manifestadas de maneira
indissociável com o que denominamos atualmente como arte, dando a ela um status de sagrado.
Tudo aquilo que era natural ao homem adquire contexto fenomenológico.
Desse modo, as manifestações da arte se estabeleceram por milhares de anos, com
19
um elo ritualístico-religioso quase que inseparável. Também, por séculos, para as civilizações
greco-romanas, muitas das vezes, a arte não se distinguia da ciência ou da filosofia. No entanto,
se diferenciava em alguns momentos entre as artes livres, atribuídas ao homem livre, como a
arte expressiva: a lógica, a matemática, a astrologia, a retórica, a música e a dança. Também as
artes laborais ou mecânico-servis, aquelas características do trabalhador manual, artesanal,
muitas vezes produzidas por serventes, tais como a caça, pesca, agricultura, curandeirismo,
pintura, escultura, marcenaria, tecelagem, entre outras. A arte, até então, não se estabelecia
como um campo de saber independente.
Com a chegada do Renascimento, elevou-se o estado das artes à condição de área
de conhecimento humano, dado a forte batalha de valorização das artes,
[...] nelas não havia apenas a aplicação rotineira de regras de fabricação manual de objetos, mas conhecimentos teóricos para a invenção e construção de instrumentos e para a realização de atividades como a medicina, a engenharia, a arquitetura, a balística, a pintura e a escultura (CHAUÍ, 2003, p.276).
Paul Bourcier, em História da dança no ocidente (1987, p.64), numa referência à
manifestação da dança naquela época, fala que é nesse instante que “[...] toma-se consciência
das possibilidades de expressão estética do corpo e da atitude das regras para explorá-lo”.
Ainda na Renascença, surge o “primeiro tratado de dança”: De arte saltendi et choreas ducendi 4
escrito por meados do século XV, pelo elementar e notável mentor Domenico da Piacenza. Lá,
aparece a palavra balleto, que dará origem ao termo balé, gênero até então não definido
completamente, pois era uma mistura de música, canto, dança, mimos, poesia e até equitação.
Essas manifestações, no geral, eram proporcionadas por dias de festejos nas cortes
renascentistas, onde a coreografia era o apanhado de movimentos realizados pelo coro dessas
apresentações.
O segundo período de valorização das artes ocorre no término do século XVII e
adentra por todo século XVIII, quando, no caso, a dança se dissocia da corte e começa a ter um
público próprio.
4 Em tradução literal significa: “Da arte de dançar e conduzir coros”
20
Gombrich (1988) explica que, ao final do século XIX, se dá o momento em que se
definiram os desígnios das artes mecânicas, ou seja, aquelas que são de utilidade do cotidiano
dos homens, como o artesanato, a tecelagem, a marcenaria; e se diferenciam das artes que
tinham por finalidade a produção do pensamento, de representar a estética, desenhando, mais
ou menos, a estrutura de arte que vemos hoje: as artes plásticas (pintura e escultura), a literatura,
a música, as artes cênicas (dança e teatro). Essa separação das artes úteis e belas artes gerou a
dissociação entre técnica/utilidade versus arte/beleza.
A partir daí, a arte adquire um caráter independente que surge do pensar e do
imaginar criativo de um sujeito. Criador, ele torna-se o materializador de uma ideia e a
corporifica através do instrumento escolhido: a pintura, o corpo que dança, as notas musicais,
etc., tornando-se o destinador5 de uma informação, um enunciado6, dispondo para recepção
de um destinatário7, o público espectador. Isso ocorre com o intuito de provocar uma reação
no público, e que, por sua vez, recebe, avalia, analisa, interpreta e filtra a informação (a
narrativa) convertendo-a em um discurso, concretizado no objeto artístico. Dessa relação entre
criador, obra e público, surge uma nova concepção filosófica: a estética.
Porém, em meados do século XIX e começo do século XX, muitas mudanças
sociais, de comportamento e de investigação intelectual ocasionaram ligeiramente um turbilhão
nessa divisão entre a técnica e a arte, o útil e o belo. Tudo se modificou fazendo com que o
olhar sobre a estética também fosse questionado.
Muitas foram as questões levantadas e, como resultado, a estética tornou-se campo
autônomo do saber. A arte converge-se para uma linguagem autônoma e autoral. Com isso, a
arte da dança acompanha todas essas transformações. A partir daí, a dança vê-se livre para criar
e partir em busca de uma ruptura estética. Rompe-se com o belo estruturado e promovem-se
conceitos abstratos. Assim começa a circular uma linguagem já denominada moderna e
5 Destinador: é o actante narrativo que determina os valores em jogo e que dota o destinatário-sujeito da competência modal necessária ao fazer (destinador-manipulador) e o sanciona, recompensando-o ou punindo-o pelas ações realizadas (destinador-julgador) (BARROS, 2011, p. 85). 6 Enunciado: é o objeto-textual resultante de uma enunciação(BARROS, 2011, p. 86). 7 Destinatário: é o actante narrativo manipulado pelo destinador, de quem recebe a competência modal necessária ao fazer, e é por ele reconhecido, julgado e punido ou recompensado, segundo as ações que realizou (BARROS, 2011, p. 85).
21
contemporânea.
Alguns questionamentos aparecem nesse momento devido a essa ruptura com a
estética tradicional. Porém, sob determinado ponto de vista, essa nova maneira de fazer arte foi
absorvida pelo campo comunicacional, enquanto uma sofisticada rede de significações.
Alguns dos especialistas da cognição avaliam que a linguagem é a capacidade de
utilizar signos aparentemente arbitrários e combiná-los para um modo legítimo de se
comunicar. Para Katz (2005, p.229) “sem a habilidade de categorizar ações e representações
mentais, provavelmente, o homem não teria conquistado a linguagem”. A linguagem é
mediadora na compreensão do mundo, interpretando-o e simplificando as suas relações de
acordo com a possibilidade de compreensão humana.
Portanto, ao se reconhecer a dança e sua função artística, busca-se refletir, sob a
perspectiva greimasiana, a maneira como essa linguagem artística surge, isto é, sua origem ou
suas matrizes linguísticas; sua estrutura como forma de pensamento e o que a difere das outras
manifestações corpóreas, ou seja, o que a caracteriza como movimento estético.
1.2 Primeiras reflexões: a dança e a comunicação
No intuito de teorizar a respeito dos processos comunicacionais em “Valei-me!”,
coletei material teórico nos estudos de comunicação, particularmente no campo da semiótica,
para verificar a similaridade dos processos comunicacionais com o de recepção, mais
precisamente de interpretação em cena.
Percebi, até então, que todo material de pesquisa encontrado, sobre a própria
comunicação, se caracterizava, em um primeiro momento, e, na maioria das vezes, entre as
opiniões dos que acreditavam que as empresas de transmissão (os veículos) eram os
responsáveis por gerar uma espécie de significação social através da comunicação; tudo
adquiria um significado através da informação veiculada pelos meios.
Isso implicava na minha compreensão de que os veículos tornavam-se, por assim
22
dizer, responsável por criar um tipo de indústria cultural8, ou seja, os veículos personificavam
os meios de comunicação de massa e se intitulavam como uma espécie de fonte única de
formação de opinião.
Imediatamente levantei questionamentos de como esses processos
comunicacionais poderiam ser analisados de forma a traçar um paralelo e um comparativo com
a maneira de se comunicar através da dança.
Por assim dizer, passei a olhar todos os textos de comunicação com um prisma
comparativo com a dança, no meu caso a modalidade contemporânea, já que foi nela que
vivenciei boa parte de minhas funções profissionais nessa área.
De início, criei certa empatia com o pensamento daqueles que acreditavam que o
público era livre para interpretar o que assistia, da forma que mais lhe convinha, associado com
o seu repertório cultural.
E quanto mais mergulhava nesse universo teórico, mais a minha visão, de estudante
da área de comunicação, se desenvolvia num olhar crítico em relação à dança contemporânea.
Fato esse que me faz perceber a importância de se estar em contínuo processo de aprendizado.
Sobre as divergências entre os que pensam que as empresas de transmissão eram os
responsáveis por gerar uma espécie de “significação social” através da comunicação e os que
acreditam que o receptor (destinatário) era livre para interpretar o que assistia da forma que
mais lhe convinha, associado com o seu repertório cultural, verifiquei que, segundo Rocha
(2011), essa divergência acabou por favorecer novas formas de pensamentos e métodos
científicos específicos de análise.
Com o caminhar da pesquisa e no decorrer das descobertas no campo
comunicacional, a partir da semiótica, e seguindo a Escola de Frankfurt9, por meio de um
8 A indústria cultural é um conceito, onde o papel da arte veiculada por ela, que seria o de alcançar uma autonomia e poder crítico em sua oposição à sociedade, recebe um valor inverso, por não mais ser possível a contestação dela, já que sua relação com as obras artísticas provou ser facilmente assimilável pelo mundo comercial, capaz de atingir um grande número de indivíduos, de transmitir um conhecimento ou de alienar. 9 A Escola de Frankfurt surge em 1924, em uma quinta etapa atravessada pela filosofia alemã, depois do domínio de Kant e Hegel em um primeiro momento; de Karl Marx e Friedrich Engels em seguida; posteriormente de Nietzsche; e finalmente, já no século XX, após a eclosão dos pensamentos entrelaçados do existencialismo de Heidegger, da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Hartmann. A produção filosófica
23
pensamento crítico-social, compreende-se a comunicação, segundo Fiorin (1988), como um
“complexo jogo de manipulação”, que, em última instância, tem como propósito mais do que
informar, persuadir o destinatário sob o que está sendo comunicado.
“A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite”. (FIORIN, 1988, 52).
Nessa relação entre destinador e destinatário, existem várias nuances no qual a
comunicação ganha contornos na reafirmação do discurso presente na narrativa textual, no
caso, o espetáculo. Portanto, esses mesmos aspectos se aplicam ao modo de se comunicar
dançando. Isso levou alguns pesquisadores a pensarem em um processo mais complexo, em
que a memória e o repertório cultural adquirido ao longo da vida são fatores determinantes no
fazer interpretativo da informação.
O primeiro raciocínio (destinador/destinatário) se estabelece de forma teórica e,
a partir do processo de construção do texto, nem sempre é capaz de fornecer uma
comprovação na prática do processo interpretativo. Já na recepção, portanto nas resultantes do
fazer interpretativo, dada a sua complexidade e subjetividade, tornou-se um desafio na sua
definição e mensuração a partir da manifestação do público, por ele ainda ser considerado uma
espécie de “receptor mudo”.
Essa conformação apresentada anteriormente ainda é permeada pelo pensamento
sobre a discussão dos males que a massificação da informação provoca e influencia no
pensamento do público, além de que, tradicionalmente, a pesquisa empírica sobre os efeitos
psicológicos que os meios ocasionam direcionou a discussão para outro viés.
Portanto, mensurar o processo de recepção ainda é um desafio, principalmente em
se tratando de espetáculo, por ser um processo empírico muito difícil de ser comprovado
cientificamente. De maneira geral, esse tipo de abordagem acaba esbarrando no processo de
germânica permaneceu viva no Ocidente, com todo vigor, de 1850 a 1950, quando então não mais resistiu, depois de enfrentar duas Guerras Mundiais. Fonte: http://www.infoescola.com/filosofia/escola-de-frankfurt/
24
fruição da obra, ainda vista como um ente revestido de uma “aura intocável” para o público.
Um dos focos da pesquisa corresponde ao processo de recepção em ato, ou seja, o
momento em que tão logo o espetáculo é apresentado, em que o espectador ainda encontra-se
revestido das sensações, das estesias que a obra provoca e que se diferencia de pessoa para
pessoa.
A questão que se apresentava nessa relação era a de como promover os estudos e a
pesquisa do ato de recepção da comunicação, do discurso veiculado no espetáculo. Semelhante
ao que ocorre no ato de ver televisão, ouvir rádio, ver um filme, assistir a um espetáculo em si;
geralmente feita em ambiente isolado, controlado e artificial; num processo de televivência, num
pseudo processo de interatividade com o ambiente real de onde é originada a comunicação,
onde o destinatário é exposto a várias demandas e situações, sendo capaz de se projetar no
discurso. Rubim (1994) acrescenta que ao:
[...] construir a realidade tendo como origem e suporte a experiência vivenciada em presença pelos indivíduos e suas circunstâncias já aparece como obsoleto e não satisfatório. Situações não experimentadas in loco, mas tão somente comunicadas a distância [telecomunicadas] tornam-se, em especial quando acontecidas em simultaneidade, vividas, ou melhor, televividas, em novas modalidades de vivência, sem que isso a rigor signifique experiência. (RUBIM, 1994, pp.36 e 37).
Assim, o autor aponta que “a realidade hoje se constrói então através de complexa
mesclagem de perceptos provenientes da vivida experiência e da contemporânea televivência,
no sentido do conceito”. Em contrapartida, as abordagens etnográficas levaram em
consideração um complexo conjunto de elementos que incluem o momento de resposta social
e os contextos específicos da audiência. Este estudo provocou inquietação nos métodos
empíricos positivistas e deu crédito à pesquisa qualitativa. Assim como os estudiosos ligados
aos estudos culturais seguiram também o mesmo caminho e método de estudo.
Vale citar que os estudos culturais também colaboraram com uma visão ampla do
funcionamento do pensamento e do comportamento cultural, e não se pode pensar em
analisá-lo como uma ciência estática ou exata, como podemos ver em “Coisas Ditas”, de Pierre
Bourdieu (2004). O autor fala sobre essa tendência de imitar as ciências avançadas, nas quais
25
possuem objetos de pesquisa bem definidos, no qual o seu pensamento fica claro quanto à
percepção que se opõe a esse tipo de especialização exacerbada, exaltada pelo modelo
positivista. Completa Bourdieu (2003, p.276) “[...] é absurdo separar, por exemplo, a sociologia
da cultura. Como é possível fazer sociologia da literatura ou sociologia da ciência sem
referência à sociologia do sistema escolar?”.
Observa-se, nessa visão, uma certa tendência ao pensamento holístico de como
observar e analisar o campo social, sem o pensamento cem por cento exato que costumamos
analisar nas ciências naturais. O autor ainda sentencia a metodologia científica como
representação ideológica da maneira legitimada de fazer ciência, que, em muitos dos casos, não
é um recorte preciso da realidade prática da ciência.
Nessa linha de pensamento, ao observar-se a dança com seu caráter empírico e
experimental, embora construída a partir de uma narrativa previamente definida, não se pode e
nem se deve vê-la em sua unilateralidade. Isso se deve ao fato de se tratar de uma performance
em ato, com forte influência sobre o espectador, e cujo processo criativo da própria obra pode
ganhar contornos significativos a partir da compreensão do processo de recepção, também em
ato. Então, essa foi a proposta na concepção, montagem e continuidade do espetáculo
“Valei-me!”; a de identificar o público como elemento ressignificador da obra.
Em se tratando do meu objeto de pesquisa, vale lembrar que o momento da
recepção em dança se dá na hora da apresentação final, que o difere de sua performance nos
ensaios ou ainda se diferencia de uma apresentação para outra, visto que, cada mostra é única,
ainda que guarde uma relação de similaridade. Assim, cada apresentação é um texto único, cuja
significação também tornar-se única, porém as recorrências discursivas e o próprio discurso
permanecem condutores das significações e ressignificações.
Nessa perspectiva, o estudo se apropria de métodos etnográficos e se corporifica
com os relatos dos processos de criação e posteriormente com os relatos pós-apresentação,
sempre referendado na semiótica discursiva, que será melhor apresentada adiante.
Paralelamente, outro ponto a ser discutido é o processo de construção do
espetáculo, na maneira de como é conduzido no seu processo criativo. Como fazer uma
abordagem dessa dimensão sob o olhar da ciência? Ou mais precisamente na área da
26
comunicação? Essas questões tornaram-se preocupantes e presentes quando me propus fazer
o estudo e análise do “Valei-me!”, pelo seu caráter multidisciplinar, envolvendo várias
linguagens no processo de criação, e essa diversidade também influencia no processo de
recepção.
Guillermo Orozco Gomez (1991) explicita possibilidades de aproximação do
objeto, apesar de ser criticada a partir da análise. Nessa mesma direção, pergunta-se a respeito
da dificuldade que se tem tido nas pesquisas de recepção comportar também a da produção, o
que se estabelece também da perspectiva original de Martín- Barbero (1984), visto que se trata
de um processo e a ausência de atenção a respeito dos meios e pode parecer que o espectador
possui poder ilimitado, o que não é verdadeiro. Assim, ao longo do curso de mestrado,
“dançando” entre uma disciplina e outra, pude adentrar no universo polissêmico da dança, no
caso, a contemporânea, a mais multifacetária, a partir das várias possibilidades de abordagens
do ato comunicacional, o que me levou a optar pelos estudos semióticos, mais precisamente a
semiótica discursiva.
1.2.1 O limite e a quebra de paradigmas
No limiar do pensamento a respeito de como se coreografar, dado meu longo
percurso na área de atuação em dança, se fez necessário que eu rompesse com a antiga forma
de criar uma coreografia. O que antes era pensado como um discurso próprio, aqui a figura do
criador se abstrai para a visão de que toda criação em dança é polissêmica, a partir do momento
em que se necessita de um intérprete para corporificar o texto-coreográfico; e também, no
universo da recepção do público, a obra ganha significação distinta. Cada um dos espectadores
interage com ela de maneira diferenciada e única.
Na busca por linguagens já instituídas em grupos de dança contemporânea
encontrei pesquisas de caráter experimentativo em andamento em outros espaços, a exemplo
dos trabalhos da Companhia Tribos Ballet Teatro, Cia. Moderno de Dança, Cia. Sesc em Cena
e Cia. Experimental Waldete Brito.
27
As companhias “Waldete Brito”, “Moderno” e “Sesc em cena” são ligadas a
instituições físicas e desenvolvem um trabalho experimental pautado na pesquisa do corpo
dentro e fora dos espaços acadêmicos. Quase todos os espetáculos produzidos têm por trás
uma pesquisa teórica acadêmica em desenvolvimento. O espetáculo é um resultado compilado
das descobertas. Todas elas têm a prática de debater pós-cena com o público para tratar dos
conceitos transmitidos durante o espetáculo.
Já a “Tribos Ballet” tem uma característica peculiar, posto que essa companhia não
existe com a mesma estrutura das outras, já que não possui um espaço físico definido e nem
elenco estruturado. São artistas, bailarinos, coreógrafos, atores, cantores e outros que,
geralmente, já são integrantes de outras companhias estruturadas e que se reúnem para dar vida
à criação de espetáculos novos.
O processo criativo se dá de maneira coletiva e, após apresentação, há um estudo
experimental do que foi vivenciado na cena. Muitas das coreografias de “Tribos Ballet” são
experimentações realizadas no ato. São cenas materializadas pelo improviso.
Então, como forma de compreender a diversidade de linguagens presentes na
narrativa da dança, a visitação a outros espaços de criação serviu como referência por
observação à aplicabilidade de métodos semelhantes no processo de criação de “Valei-me!”.
As investigações científicas em se tratando do processo de criação em dança
contemporânea, em específico no momento da recepção, como vimos, têm-se multiplicado
inclusive em Belém. Observações importantes foram feitas nos trabalhos vistos no Instituto de
Ciências da Arte, na Universidade Federal do Pará (UFPA), espetáculos e pesquisas da
professora doutora Ana Flávia Mendes10 e do professor doutor Paulo Paixão11, que são apenas
10
Ana Flávia Mendes é doutora e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduada em Licenciatura Plena em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É professora efetiva da Universidade Federal do Pará (Instituto de Ciências da Arte/ Escola de Teatro e Dança/ Programa de Pós-graduação em Artes). É autora dos livros Gesto Transfigurado e Dança Imanente e organizadora do livro Abordagens Criativas na Cena. 11 Doutor e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC\2002-2009), especialista em Coreografia (UFBA\1997), licenciado em Dança (UFBA\1996) e técnico em Dança (FUCEB-BA\1990). Tem experiência nas áreas da dança com ênfase na performance, ensino, criação e política da dança, além da história, teoria e crítica de dança. É professor adjunto da Universidade Federal do Pará.
28
alguns dos nomes inspiradores desse trabalho científico.
Entretanto, a partir de observações e da interação com o público após o espetáculo,
percebe-se a priori no perfil ativo do espectador nos espetáculos de dança contemporânea, que
o mesmo não se relaciona sozinho com a obra, no caso, o texto coreográfico, e sim, com a sua
própria leitura a partir do que experimenta nas cenas e na relação com a memória do que já
experimentou em suas vivências.
1.2.2 O caminho metodológico percorrido
A principal linha de entendimento desse estudo desenvolve-se através da pesquisa
qualitativa, considerando-se os referenciais teórico-metodológicos estabelecidos para o estudo
e análise das relações que envolvem o ato de comunicação na dança.
A abordagem qualitativa está referendada em Bogdan e Biklen (1994, p.134), que
consideram a pesquisa qualitativa como meio de captação de informações de determinada
fonte ou pessoa, dados relevantes para a pesquisa. Segundo eles, a entrevista é empregada para
angariar dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, “permitindo ao investigador
desenvolver intuitivamente ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do
mundo”. Além da entrevista, foram usados como instrumentos de dados também os relatórios
do processo de experimentação criativa construídos em conjunto com o grupo de artistas
envolvidos no espetáculo “Valei-me!” e enviados para a Gerência de Artes Cênicas do Instituto
de Artes do Pará (IAP).
Para melhor organizar as informações, foi utilizada a análise textual discursiva. Essa
forma de análise, segundo Moraes (2003), “pretende aprofundar a compreensão dos
fenômenos que investiga a partir de uma análise rigorosa e criteriosa desse tipo de informação,
isto é, não pretende testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final da pesquisa; a
intenção é a compreensão”. Adotou-se ainda a pesquisa bibliográfica, além das apreensões
resultantes da abordagem empírica no que se refere aos primeiros estudos de utilização de
ferramentas de criação coreográfica, com entrevistas e diálogos com bailarinos e comparativos
29
com alguns grupos de dança de Belém dos quais também fiz parte em minha carreira de
trabalho.
Esses estudos nos grupos eram uma primeira ideia de abordar somente a relação
dança e comunicação nos espaços dos grupos de dança contemporânea em Belém, mas logo se
converteram também na pesquisa experimental de criação do espetáculo “Valei-me!”, próximo
da concepção de Lüdke & André (1986), quando afirmam que “não existe um método que
possa ser recomendado como o melhor ou mais efetivo, mas a natureza do problema é que o
determina”.
Em face disso, com a finalidade de delimitar esses conceitos como inteiramente
relacionados às formas de expressão artística, de linguagem e como intimamente conectados,
lancei uma hipótese de aproximação entre os processos de comunicação, a semiótica; e o uso
desses através das criações de peças artísticas que se dediquem a estudar também a relação com
o público no momento da apresentação.
Em virtude da ideia de que é possível considerar conjuntamente os pressupostos
teóricos, os empíricos e os práticos, apliquei uma metodologia de análise que contempla, na
compreensão da linguagem em uso, o eixo comunicação, recepção, dança, processos de
criação, produção de sentido, enunciação e semiótica discursiva.
O percurso metodológico de análise baseou-se no percurso gerativo de sentido, que
Fiorin (1999) estabelece como um “simulacro metodológico” que nos possibilita, de forma
efetiva, fazer a leitura e interpretação de um texto, a partir da sua apreensão.
Em razão disso, esse estudo se torna um apanhado de toda experiência vivida antes
de eu entrar no programa de mestrado. Da mesma forma, que também é permeado pelo
conhecimento adquirido ao cursar as disciplinas do programa e das leituras efetivadas, em
especial as disciplinas “Análise do discurso” e “As interfaces da linguagem: visual, sonora e
verbal”.
Então, tornou-se imperiosa a compreensão de alguns conceitos de análise do
discurso da escola francesa, bem como, a investigação aprofundada nos estudos da semiótica
do espetáculo.
Todo esse suporte teórico, até então, teve a finalidade de auxiliar no entendimento
30
dos processos de criação sob o olhar da comunicação e da semiótica discursiva no espetáculo
“Valei-me!”, por mim coreografado, se transforma em uma experiência única que dividiu águas
na minha forma de criar espetáculos. Tornei-me um pesquisador mais holístico, mais
heterogêneo e mais multidisciplinar.
Maingueneau (1998), representante da escola francesa de Análise do Discurso
temporizado da segunda geração, que se iniciou em meados dos anos 80 (séc. XX), evidencia as
teorias enunciativas, considerando a discursividade relacionada com a heterogeneidade,
apresentando uma definição do quanto abrange a complexidade de seus procedimentos.
Segundo o linguista Roman Jakobson (2000), “a transposição intersemiótica pode
ser definida como transmutação de signos”, o signo de um sistema semiótico pode ser
transposto para outro sistema adquirindo outra significância. Umberto Eco (2007, p 268)
destaca que:
[...] “uma considerável dificuldade quando se trata de tradução intersemiótica refere-se à comparação possível de se fazer entre sistemas semióticos muito distintos, com componentes, estruturas e histórias próprias, o que pode gerar dúvidas ao fato de se tratar como tradução (grifo nosso).
Já que a dança é também uma forma de linguagem e se inscreve no âmbito da
gestualidade, busquei identificar algumas proposições em relação a ela, teorias a favor da linha
de pesquisa escolhida e algumas citações de outras correntes, para se traçar um contraponto.
A análise crítica do uso da linguagem na comunidade artística tem características
peculiares. Vemos o uso de uma linguagem específica aplicada à dança contemporânea, que
também propõe como metodologia a análise de textos nos processos criativos, localizando o
uso da análise gestual como importante recurso para descrever e interpretar as relações sociais
nas companhias de dança.
Através dos referenciais fundamentados nessa abordagem, busquei encontrar
meios de descrever como os valores sociais estão intrincados no modo de se retraduzir uma
informação ou mais precisamente de ressignificar. Já com os pressupostos do uso da
linguagem, em suas variadas dimensões, vale dizer que os textos, já coreográficos, apresentados
para a plateia, para essa teoria específica, são formas concretas da produção de sentido e
31
contêm pistas dos processamentos cognitivos e de criação de uma identidade de determinado
momento dentro de um grupo.
Para refletir sobre essa condição teórica do estudo, coloquei-me frente à trajetória
de discussões e à prática da expressão corpórea e análise desenvolvida. Foi possível visualizar
como o processo de integração conceitual, no enunciado, funciona na construção de
identidades sociais nessas comunidades, que, por sua vez, se articulam a partir de determinadas
crenças e conhecimentos de mundo partilhados, presentes no contexto das comunidades em
que estão inseridos os grupos.
Os espaços mentais integrados são organizados no processo de produção de
sentido, de forma a conduzir um resultado, onde determinados valores sociais resistem ao uso
de uma linguagem específica, assim como o meio de propagação dessa informação.
Sob essa perspectiva, estudei também o modo como se reestabelecem e se
rearticulam nos domínios cognitivos para a compreensão de objetos ideologicamente
representados, dando ênfase tanto à constituição social da dimensão cognitiva na organização
do enunciado quanto às relações sociais e culturais envolvidas nas práticas enunciativas.
Entendo a discussão abrangendo o contexto atual da luta pela legitimidade e
reconhecimento científico dos saberes das sociedades e culturas. Esta discussão tem hoje uma
dimensão mais ampla do que pensava antes. Está nos espaços típicos das áreas política e
econômica que envolvem diretamente a sociedade na qual estamos inseridos.
Assim, optei também como questão fundamental para esse estudo que o olhar no
social não elimina os outros aspectos da linguagem, assim como os elementos cognitivos
também são articuladores do processamento discursivo.
Neste trabalho, o elemento cognitivo é tão importante quanto o social em um
conceito de enunciado, onde o sujeito não é uma figura específica representada como também
não é o centro da atenção, principalmente ao falarmos de discurso12, mas um elemento
12 Discurso: é o plano do conteúdo do texto, que resulta da conversão, pelo sujeito da enunciação, das estruturas sêmio-narrativas em estruturas discursivas. O discurso é, assim, a narrativa “enriquecida” pelas opções do sujeito da enunciação que assinalam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia (BARROS, 2011, p. 85).
32
integrante de todo um complexo contexto linguístico.
Fiorin (2010, p. 41) revela que “a categoria de pessoa é essencial para que a
linguagem se torne discurso. Assim, o eu não se refere nem a um indivíduo nem a um conceito,
ele refere-se a algo exclusivamente linguístico [...]”.
Consideremos que os membros de comunidades têm acesso a certos recursos e
conhecimentos, que podem se internalizar e fazer parte da interpretação de textos e de
produção de sentidos, atributos cognitivos que se organizam socialmente e se correspondem
ao próprio saber linguístico, ao que se acredita, aos valores e às representações de mundo nos
quais os sujeitos estarão inseridos. Então, cabe-nos pensar, que no processo de criação
coreográfica, por mais abstração que o criador (coreógrafo) queira atingir, sempre haverá uma
manipulação do mesmo. Assim como ao atravessar o bailarino (nesse momento destinatário)
inevitavelmente haverá um desvio de sentido na mensagem original, como também, no
momento da recepção propriamente dita, o público absorverá sua própria informação,
resultando num discurso completamente polissêmico.
Por fim, essa pesquisa se utiliza, em um primeiro momento, de teorias e pesquisas
bibliográficas para se conceituar e também traçar um caminho norteado pelos teóricos de
comunicação e linguagem, bem como pelo levantamento dos registros feitos no processo de
criação do espetáculo “Valei-me!” (vídeo, fotos, a memória dos intérpretes criadores,
depoimentos e narrativas).
A análise empírica seguirá os procedimentos já propostos acima, sob a perspectiva
das reflexões do corpo e gestualidade, a partir dos resultados observados. Os procedimentos de
coleta de dados foram: a leitura de obras sobre a temática proposta, resenhas, fichamentos,
resumos, anotações de reflexões de pesquisa e a análise sistemática dos resultados coletados.
1.2.3 Curiosidades encontradas
Ao determinar os sujeitos da pesquisa, quis tentar me abstrair dos processos e
caminhos já conhecidos por mim. Isso se dá devido a minha familiaridade com o meio da
33
dança. Mas busquei, de certa forma, estar no lugar de um leigo. Claro que foi apenas uma
tentativa. Mas só em tentar ver com outro olhar, pude perceber, já no papel de comunicador,
algumas curiosidades na forma dos grupos se relacionarem com seus públicos e com a plateia
em geral.
Observei o uso de redes sociais da internet como elemento principal de divulgação.
A utilização das novas mídias se faz presente na maneira de se manifestar dos grupos, além de
existir alguma estratégia de comunicação voltada para as grandes mídias, mas essa feita de
maneira isolada, só para algumas apresentações, sem de fato atingir um grande público de
forma abrangente. Mas isso leva o debate para o momento atual, onde as novas mídias dão ao
receptor um papel nunca antes atingido, capaz de alcançar grandes proporções, onde até um
país se levanta para protestar questões sociais através de convites e chamadas realizadas por
esse meio.
Outro aspecto interessante observado é a crescente prática de um pequeno debate
entre criadores, intérpretes e público. Logo após as apresentações que foram analisadas,
percebeu-se que o debate funciona mais como uma troca de opiniões, mas poderia ser usado
também como ferramenta de promoção da comunicação. Para a pesquisa esse momento foi
fundamental para perceber como se aplicam esse registro e interação com os receptores. É
nesse momento que vemos a interferência do receptor no processo de criação, visto que, a obra
acaba sofrendo alterações em razão desse contato.
Por outro lado, foi fácil observar também a tendência dos grupos em usar uma
linguagem voltada para a criação autoral, onde, muitas das vezes, pode-se ver certa
inexperiência quanto ao uso de comunicações funcionais; tudo é muito experimental e transita
no limiar da relação “tentativa, erro e acerto”. O que de certa forma, cria divergências no
âmbito da arte, entre os que acham que a arte deve tomar grandes proporções o os que se
contentam com a situação atual, onde os espetáculos circulam em pequenos grupos,
condicionando as obras e produções locais a um ostracismo, onde apenas a camada
pesquisadora de dança e o universo acadêmico ou mesmo um público específico acabam por
fim sendo os únicos espectadores usuais. Percebi que de um modo geral a plateia é sempre
composta por pessoas com gostos afins em sua maioria.
34
Mas o foco da nossa pesquisa, aqui, recai sobre a tal prática dos debates
pós-apresentações, que colocam o público em uma nova perspectiva, onde o mesmo se torna
agente debatedor tanto ao utilizar as redes sociais como veículo como em ter voz ao fim do
espetáculo. Fica claro que em relação ao estudo da recepção, buscando um sentido negociador,
a comunicação, por sua própria natureza, é assim.
Vê-se que o destinatário (receptor), segundo Martín-Barbero (1989), não é
onipotente, nem é mero espectador, como é de costume nesse tipo de manifestação artística. A
comunicação se estabelece entre as partes envolvidas. Existe uma valorização da experiência e
também da competência comunicativa entre os sujeitos envolvidos.
1.2.4 Repensar conceitos
Para dar referência a este estudo foram utilizados como sujeitos os grupos de dança
contemporânea da Região Metropolitana de Belém, como a Cia. Tribos Ballet Teatro, a Cia.
Experimental Waldete Brito, a Cia. Sesc em Cena e Cia. Moderno de Dança, Cia. Compassos
da Dança, dentre outras. O estudo inicialmente seguiu com uma abordagem teórica e de
observação das mídias utilizadas para divulgação de produções locais.
Em busca de material de pesquisa nos grupos de dança de Belém, percebi que
algumas companhias abriram espaços de interação com a plateia seja pelo debate após as
apresentações ou por promover a interatividade nas redes sociais, em que algumas pessoas até
sugeriam textos para serem aplicados na cena.
Na construção do espetáculo “Se as cabeças fossem quadradas?” a Companhia
Compassos da Dança abriu um debate via redes sociais para levantar questionamento acerca da
temática preconceito, como se pode ver na figura 113 na página seguinte.
É interessante destacar que ao se criar espaço para o público interagir através das
redes sociais e também, através de debate pós-apresentação, toda estrutura antes unilateral,
13 Extraído da internet em 23/05/2013 (https://www.facebook.com/ photo.php?fbid= 338112512957228&set=a.336306913137788.57014.336293383139141&type=1&theater)
35
típica da dança clássica e moderna, se modifica, criando um espaço dialético para construção de
novas produções e, até mesmo, alterações nas produções apresentadas.
Figura 1 - Ilustração do teaser; campanha provocadora do espetáculo “Se as cabeças fossem quadradas” veiculada no Facebook. (Fonte: Perfil de facebook da Cia. Compassos da Dança).
A participação do público em espetáculos de dança é um conceito relativamente
novo e vem em favor de toda a tendência que o põe como elemento ativo na relação destinador
e destinatários da comunicação. Posteriormente, vemos que o debate é provocado, e na figura
214, observamos um fórum exclusivo para que o espectador dê enunciação para alguma cena a
ser construída.
14
Extraído da internet em 23/05/2013 (https://www.facebook.com/ photo.php?fbid= 338112512957228&set=a.336306913137788.57014.336293383139141&type=1&theater)
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Figura 2 - Ilustração do fórum de discussão do processo de criação do espetáculo “Se as cabeças fossem quadradas” veiculada no Facebook. (Fonte: Perfil de facebook da Cia. Compassos da Dança).
Quando grupos e coreógrafos abrem espaço para o público se manifestar cria-se
uma ligação com a proposta coreográfica que passa a ser uma pequena representação de um
pensar coletivo, visto que as apresentações se tornam acessíveis e mutáveis. De fato, a obra
nunca está acabada, podendo sempre ser alterada a partir dos resultados dos bate-papos com a
plateia e as modificações se tornam uma variável aceitável.
Esse processo de criação faz com que a identidade coletiva deste grupo se manifeste
37
nas produções em dança e se preserve. Sem perder o contexto, essa interação se mistura com
novas tendências, culturas, ambientes, dando um significado diferente à experimentação em
dança, abandonando os antigos padrões de apresentação, comumente vistos nas modalidades
de balé clássico.
Após observação com todos os grupos de dança estudados, constatou-se que
todos os trabalhos se baseiam ou se apoiam na palavra “experimento”, vista sob o ângulo de
renovação contínua e como uma forma de promover o desenvolvimento sociocultural.
Wagner (1980) diz que a tradição é uma ideia que se limita se não for levada pela
perspectiva de renovação constante. E que não se apresenta pela simples reprodução de
tradições e costumes, mas que pode - e até deve - se modificar de maneira criativa pelos
indivíduos e vivida socialmente, sujeita às transformações.
Também se pôde observar que embora o grupo de um determinado momento e
falando de um local específico, e representando uma comunidade cultural peculiar, seja
representado nas coreografias realizadas, o olhar estético, as experiências de vida e profissional
do criador interferem e mediam no resultado final, tornando o coreógrafo uma espécie de
editor.
Os grupos de dança têm seus próprios sistemas de codificar as interferências dos
espectadores e modificam suas obras de acordo com os resultados tanto das experimentações
dos processos criativos como também das interações com a plateia, adaptando para seus
conhecimentos e pesquisa por intermédio da dança seja pela forma de se movimentar ou pelos
signos colocados em cena.
São práticas que ressignificam no presente as interferências do público que
incorporam novos símbolos e valores que vão montando outras identidades. Identidade aqui
entendida como um processo cultural em constante movimento entre os ambientes públicos e
privados.
Segundo Bauman (2005, p.19), “nossas identidades e registros, sejam eles culturais,
sociais, religiosos e outros aspectos que podemos ter, estão em constante modificação e esse
processo de renovação é transformado em uma espécie de líquido da modernidade em que
estamos imersos”. Ele usa o termo líquido em razão da fluidez, característica peculiar desse
38
estado da matéria, sua capacidade de se adequar e ocupar os espaços. Bauman acrescenta “que
as identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas
pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras
em relações às últimas”.
Para Serres (2004), a investigação e questionamentos em torno da comunicação se
faz presente em sua epistemologia, que, segundo ele, é “menos sólida” e mais fluida, se
baseando nos fluxos. Mudamos, nesse momento, o olhar para o que é dinâmico, vivo, mutante,
em transformação. São as relações, as comunicações, os fluidos. Serres apresenta um conceito
particular de comunicação, que se mistura com as negociações e as relações de maneira geral.
Ele se refere ao momento em que se deixa de lado a estabilidade do pensamento como
elemento abstrato e estático, e a partir de uma motivação inicial surge uma interatividade, um
“desvio”.
O desvio é o princípio da vida, do existir, “antes de ser algo que assinala a
estabilidade, a permanência, a fixação, é um desvio do equilíbrio; se há coisas, se há um mundo
é porque eles são divergentes em relação ao (ponto) zero”, diz Serres. É preciso disjuntar,
separar, “dissidir”. Ou seja, a existência é “declinação”; existir é diverso do estável e fixo, é um
desvio do equilíbrio. Então, se as coisas são existentes, então são finitas, mortais, logo, o termo
“declinar”, assume aqui também outra definição, a de aproximar-se de um fim, do declínio,
daquilo que abandona a regularidade.
A criação de um “sentido” forma-se pelo “ruído”, pelo abandono da regularidade; é
uma bifurcação do discurso estável e único, e constitui-se antes que ganhe uma definição, um
nome, ou seja, ele é prelinguístico. Ele é o novo, o inusitado, a instância do inesperado nas
premissas, nas proposições, na discussão filosófica.
Para Serres (2004), nossa ideia de mundo vem de nosso corpo; ainda que a
civilização tenha dado uma atenção mais abrangente sobre o conhecimento acumulado através
dos registros escritos durante séculos, mesmo assim, o corpo, detém sua posição primeira e
determinante. O corpo é o primeiro arrimo da memória e da transmissão, absolutamente nada
na área da cognição adquire uma significação, sem antes passar pelos sentidos. O corpo foi
nosso primeiro instrumento de percepção. “Eu sinto, vejo, saboreio, ouço cheiro, toco, e daí eu
39
falo (...). Deslocam-se para emitir e o aparelho sensorial, a visão, o olfato, a audição são toques,
há um toque generalizado, o mundo torna-se tangível”, afirma Serres.
A comunicação, deste modo, tem sua realização plena na relação direta, da
experiência quase simbólica com o outro. Enfim, torna-se perceptível que no processo criativo
das peças artísticas, aqui representadas pelas apresentações de dança contemporânea dos
grupos e companhias pesquisadas, que em algum momento, a significação absorvida pelo
espectador, através do contato e negociação com seu repertório cognitivo, ela se torna parte do
processo criativo nas apresentações artísticas, visto que, o espectador tem voz ao opinar sobre
suas percepções a respeito do resultado apresentado.
Essas interações também servem de referencial para novas investigações, dando à
obra um caráter cíclico e inacabado, ela se torna um enunciado mais ligado ao status de “estar”
e não de fato “ser”. Muito semelhante aos processos observados pelas pesquisas teóricas a
respeito do comportamento da recepção em relação ao campo comunicacional e ao campo dos
estudos culturais vista anteriormente.
É muito comum em análises de obras artísticas encontrarmos questionamentos
com as premissas “O que o autor quis dizer com(...)?”. Aqui, nesse estudo, a atenção recai sobre o
que o autor disse em si, ao invés, de se tentar chegar ao que ele quis dizer. Ou seja, mesmo que o
enunciador queira alcançar uma determinada significação, é o enunciatário que irá conduzir a
mesma, sendo o enunciado um discurso vigente em ato, sem “donos determinados”.
Não se tem domínio sobre o que se quer dizer, fazemos o uso de argumentações e
manipulações em uso. O destinador é “usuário” da voz ativa vigente e passa essa capacidade ao
destinatário no momento do uso da ressignificação, tornando-se o “usuário” momentâneo
dela.
40
1.3 Diálogo com o discurso e a análise semiótica
Ainda na intenção de aproximar a dança e a comunicação, através da relação
discurso e semiótica, faremos uma passagem pelas teorias aplicadas à comunicação e a alguns
conceitos e saberes adquiridos em sala no Programa de Mestrado de Comunicação Linguagens
e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama).
A linguagem é uma força inseparável do convívio social, bem como a linguística. E
baseando-a na psicanálise, o escritor Jacques Lacan (2005) explica a maneira que a ordem
simbólica da linguagem constitui a sociedade. É pela linguagem que se dá a apreensão e
produção dos sentidos em que os indivíduos articulam suas experiências.
Isso pode ser melhor estudado quando a análise da semiótica começa usar a
linguagem do movimento, como a do cinema, por exemplo. É a cinesiologia do movimento
como objeto de observação, ou seja, quando, para se aprimorar o estudo, usa-se dessa
ferramenta para se melhor entender como se estabelece o sentido e a significância do mesmo.
Entretanto, é nos meios de massa que essa análise também ganha utilidade nesse
processo, ponderada como um sistema de códigos estabelecidos por uma convenção que torna
possível o estudo como uma fala representativa da cultura que se revela através da linguagem.
Desta forma, Williams (1989) indica que “as falas, o texto e a estrutura da
informação muito colaborariam com o estudo da estrutura social da comunidade como, por
exemplo, a ordem social a qual construímos”.
Partindo desse prisma, os teóricos se utilizam de várias ferramentas analíticas para
obter entendimento sobre a comunicação. No mundo, emergem variedades de sentidos e
significados, principalmente nas artes, variando também os discursos de acordo com a
intencionalidade dos sujeitos envolvidos. Assim como, na dança contemporânea, os elementos
que fazem parte do arcabouço cultural do intérprete acabam por atravessar o processo criativo
na relação coreógrafo/bailarino.
Van Dijk (1997), em sua teoria, fala sobre a dimensão cognitiva do discurso. Ele
defende uma concepção computacional do processamento entre o discursivo e cognitivo, e
aponta para o papel que a cognição exerce no controle e na reprodução de determinadas
41
representações sociais acerca do mundo, sustentando estruturas de poder e de dominação. Ele
entende que, ao se controlar o modo de produção dessas representações, pode-se manipular o
acesso ao conhecimento e o processo de apreensão do mundo pelos grupos sociais – o que atua
na reprodução do controle social. Desde o nascimento, a educação acontece por meio desses
sentidos e significados nas mais diversas práticas culturais, sejam elas corporais ou de outra
natureza.
Para Smolka (2004, p. 35), significar é humano: “É impossível ao homem não
significar. A significação faz parte da vida humana”. Ainda que não percebamos, estamos
significando todo o tempo. Significar e ressignificar não são simples elementos do processo de
comunicação, é também uma peculiaridade do ser humano, o “signo, a significação, e a
linguagem adquirem importante destaque quando tentamos compreender o estatuto humano”.
Buscando entender “ressignificação” ou “retradução”, localizei o conceito de
conversão semiótica, segundo Loureiro:
A conversão semiótica significa o quiasma de mudança de qualidade simbólica em uma relação cultural no momento em que ocorre essa transfiguração. Ela pode ser observada, por exemplo, na criação artística […]. Propomos a denominação de conversão semiótica a essa passagem de mudança de qualidade de signos, que resulta do cruzamento e da inversão das funções situadas no alto e no baixo de um fenômeno cultural determinado, parte do movimento dialético de rearranjamento das funções (LOUREIRO, 2001, p. 51).
Em contrapartida a esse conceito de conversão semiótica agora exposto, penso
que minhas reflexões se aproximam mais das considerações que apontam que essa conversão
se dá através de recursos discursivos na concretização do enunciado os quais são
determinados pelo sujeito da enunciação, quando instaura o discurso no texto por meio da
narrativa. Assim, o texto coreográfico funciona como uma espécie de “vocabulário” na
escritura do espetáculo, o qual ganha força na expressão e emoção que o bailarino põe em cena,
e assim por diante.
Para Loureiro, a “transformação” das funções aponta para a recontextualização
(mudança de contexto cultural) que exige reelaborações dos usos, dos papéis e, por fim, dos
42
significados. Sobre as reelaborações promovidas a partir de recontextualizações, o autor explica:
A conversão semiótica também é possibilitada por esse estado de pensamento simbólico, veículo de recepção da realidade através de significações que são decorrências da recepção dos objetos e sua transformação em formas compreensivas para o pensamento humano. Essa capacidade humana de elaboração e reelaboração de símbolos a partir da realidade do mundo permite que algo percebido simbolicamente sob uma determinada função passe a ser recebido de outra forma e por estímulo, evidenciando outra função, se for modificada sua inserção cultural, uma vez que as funções são qualidades percebidas/ atribuídas aos objetos. A sua recepção sob outra configuração simbólica, culturalmente legitimada, converte o objeto no outro de si mesmo (LOUREIRO, 2007, p.15).
O autor, aqui, usa palavras como “ressignificar” ou “retraduzir” no sentido de
“convergir” ou “conversão semiótica”. Na semiótica francesa ou discursiva, esse termo
“retradução” ou “conversão” não é utilizado e sim ressignificação.
Na corrente semiótica americana, Haroldo de Campos (1972, p.109) usa
diferenciadas afirmativas como transcrição e transposição criativa para designar uma prática
determinada como criativa, de possibilidade de tradução, e nos chama a ver o conceito de
“materialidade” do signo traduzido.
Nos sentidos restrito e abrangente, Paz & Campos (1986, p. 64) afirma que “a
tradução é uma operação com signos, um ato crítico”. O autor também salienta que a tradução
é um processo semiótico, participando do jogo de revezamento de participantes que Pierce
descreveu como uma “série infinita” e Umberto Eco (2007) repensou no plano dos
encadeamentos culturais como uma “semiose ilimitada”.
Na corrente francesa o que se tem é um processo de semiose, no qual os recursos
que constróem a narrativa são reiterativos, recorrentes as tematizações presentes. O que é
chamado de “conversão semiótica” é o que corresponde ao semi-simbolismo na francesa, ou
seja, a passagem do nível narrativo ao nível discurso, no procedimento de análise a partir do
percurso gerativo de sentido.
Nesta pesquisa, esse sentido é aplicado na percepção e interage com o elemento
“movimento”. Os movimentos são percebidos e experimentados por meio de um olhar de um
43
coreógrafo e dos bailarinos.
Vale lembrar que é com o gesto, no caso “movimento” que se compõe o texto
gestual, que é uma das modalidades textuais apresentadas por Greimas, e como tal, tem a sua
especificidade de linguagem. E nesse sentido, é justamente com essa linguagem, ou pelo menos
com uma delas, que a narrativa do espetáculo é concretizada em discurso.
A potencialização do corpo no bailarino e, como efeito, a integração dos
movimentos da coreografia e da emoção realizada no momento da cena no processo de criação
em dança apontam esse “rearranjamento” das funções dos movimentos num outro contexto,
principalmente o observado na dança contemporânea.
O processo criativo nasce no pensamento a partir das experiências com o mundo
na instauração do discurso que será enunciado, para logo ser materializado em uma ou mais
linguagens.
Nessa perspectiva da ressignificação, os “corpos” estão potencializados nos
“bailarinos”, modificando os movimentos, e também a significação coreográfica. Nesse
processo, surgem outros elementos, relacionados aos movimentos corporais e à
ressignificação: as singularidades e a criatividade.
Na concepção deste estudo, o movimento corporal é um processo que envolve
criatividade, individualidade e ressignificação. Aqui, a criatividade é inerente à perspectiva dinâmica na
lida com o corpo na realização dos movimentos. A individualidade emerge nesse processo
criativo por meio da busca dos movimentos singulares a cada indivíduo.
A ressignificação emerge no processo do trabalho criativo e singular dos movimentos
corporais, que transformam ou metamorfoseiam os significados dos movimentos em dança
contemporânea.
As individualidades e particularidades surgem quando os bailarinos concretizam
através de seus corpos as ações descritivas de movimentos na dança em si, despontando as suas
formas de criação e ressignificação, como se percebem e sentem os movimentos provocados
pelo coreógrafo e a metodologia de criação em dança a partir dessas movimentações.
Na construção de células textuais coreográficas, neste estudo, tem sido de real
importância a captação das diversas formas de criar, ainda que nelas se preserve a
44
particularidade de cada intérprete-criador. Isto não quer dizer que todo trabalho seja 100%
coletivo. Há o momento da relação isolada entre coreógrafo e a criação/obra; mas em
“Valei-me!” predominam os momentos coletivos que integram o coreógrafo e os bailarinos. É
importante salientar que, se as individualidades surgem no campo da ressignificação, ela pode
ser percebida tanto no campo individual como no coletivo.
Segundo Loureiro (2007, p. 15), a ressignificação é particular porque baliza a
afinidade do indivíduo com a sua própria realidade. E, simultaneamente, é coletiva porque
ocorre, ou pode ocorrer, entre sujeitos conectados pela mesma conjuntura cultural.
No entanto, a criatividade surge da imaginação, da sensibilidade e curiosidade, da
procura pelo diferencial ao compreender, concretizar e criar movimentos. Ostrower percebe a
criatividade como um atributo intrínseco ao ser humano.
As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos de atividade humana. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam (OSTROWER, 1993, p.1).
Através de suas particularidades criativas, os “intérpretes-criadores” abarcados
nesta pesquisa foram ressignificando os movimentos na dança. Deste modo, já não são
somente bailarinos, mas parte da voz ativa na construção do espetáculo, porque tomam parte
do processo de criação e interpretação.
No processo, estiveram abrangidas as experiências, vivências e percepções não
apenas do corpo na dança, mas também uma abordagem discursiva onde se pode analisar que
a estrutura de criação de sentido se aproxima também do momento da recepção.
Podemos pensar de forma resguardada que ao olharmos para Análise do Discurso
Francesa, que se posiciona de que não há discurso sem língua, e não há língua sem discurso,
vemos que atualmente os receptores não são mais meros seguidores das indústrias culturais e o
convívio social não é mais apenas um conglomerado de mídias, ou seja, existem vários outros
aspectos a serem analisados e observados para a formação da mediação.
45
É importante olhar com atenção para a fala de Santaella (2003, p. 24 e 25), quando
diz que as mídias (no nosso caso as apresentações de dança) são simplesmente os meios, isto é,
suportes materiais, canais físicos, os quais as linguagens se corporificam e pelos quais transitam
outras concepções também se colocam diante dessa questão.
Na perspectiva da semiótica francesa, por exemplo, as mídias são os elementos de
concretude da materialidade dos discursos, ou seja, recursos discursivos utilizados na
concretude da narrativa que se converte em discurso no texto.
Assim como Maingueneau (1998, p. 43), que diz que discurso é como “certo modo
de apreensão da linguagem”. O autor enfatiza que tanto os discursos se misturam em redes
complexas de sentidos, quanto às condições de produção podem ser difusas.
O que é mostrado no momento da apresentação da dança é, de certa forma,
conceituado como manifestação artística. Deste modo, o discurso se dá teoricamente no ato de
residir no momento da apresentação. Sem, portanto, chegar-se a uma posição extremista, mas
tentando destacar que o processo de comunicar costuma ser totalizador, tanto nas culturas
supremas quanto nas alternativas que são difundidas pelos meios e elas também se encontram
à margem deles. Muito embora essa comunicação adquira várias faces somando possibilidades
de troca de sentido, ela não é o único elemento formador de opinião.
Portanto, pretendemos entender, e concordando com Baccega (1998) que
“discurso, então, não é apenas um complemento ou um simples uso da língua, mas tudo isso
mais a interpretação dos sujeitos que produzem sentido – e que é um processo sempre em
aberto, em construção”.
Pêcheux (1997a, p. 82) fala que o discurso não é essencialmente uma transmissão de
informação entre os sujeitos, mas um “efeito de sentidos” entre eles. É por essa razão, vale
dizer, que os sentidos, em Análise do Discurso, nunca se efetivam em definitivo.
No palco, a dança materializa enunciados, mesmo que se abranjam diversas ideias e
de prismas diferentes, isso não é o bastante para que se tenha uma “democratização” deles.
Não bastam as ideias estarem lá depositadas; é preciso que elas circulem e que tomem corpo,
que reverberem. Foucault (1970) fala que “qualquer coisa que é dita – seja ela em que meio for
– representa um acontecimento discursivo, uma prática social”.
46
Segundo Foucault (1996, p. 57), como “conjuntos de acontecimentos discursivos”
são séries regulares – mas descontínuas umas em relação às outras –, então a unidade elementar
de um discurso é um enunciado. Note-se que o sujeito de Foucault é o “da ordem do discurso”
– ser sujeito é ocupar uma posição enquanto enunciador, isto é, consiste “em determinar qual é
a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito” (1996, p. 109).
Então, quase tudo aqui, se tratando de discurso, segundo Foucault, está imerso em
relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades,
textos e instituições. Para Fisher (1994), falar e ver constituem práticas sociais por definição
permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as atualizam.
Entretanto Pêcheux (1969) afirma que o discurso é definido “como efeito de
sentido entre interlocutores”, efeito esse que desliza entre diferentes posições-sujeito, segundo
diferentes condições de produção. Efeitos de sentido são os diferentes sentidos possíveis que
um mesmo enunciado pode assumir, de acordo com a formação discursiva na qual é
reproduzido.
Para Orlandi (2009, p. 77), os procedimentos da Análise do Discurso têm a noção
de funcionamento como central, levando o analista a compreendê-lo pela observação dos
processos e mecanismos de constituição de sentidos e sujeitos. Processo este que se deu, de
acordo com Nestor Canclini (1997, p. 170), como uma “síntese metafórica sofrendo constantes
seleções e “transposições” de traços e características que vão sendo selecionados ao longo dos
tempos”.
Segundo as filósofas Helena Katz e Christine Greiner (2005), baseadas em
Foucault, “o corpo midiático acontece a partir de uma construção cultural onde discurso e
poder se inscrevem, possuindo algumas consequências políticas. Estas como a construção de
identidades e as que se inserem na proposta de entendimento de que o corpo não é, mas o
corpo está”.
As autoras também trazem um entendimento da mídia não como um meio de
transmissão de informações, mas de que é a informação que fica no corpo e se torna corpo.
47
1.4 O corpo midiático: a dança, a cultura e a comunicação.
Também busquei me apropriar das teorias de comunicação e cultura estudadas
durante o curso de mestrado. Observei que para melhor entender como a dança, o corpo e a
mídia estabelecem uma relação no momento da recepção, há um variado repertório que se
refere à cultura e à comunicação.
Ao olhar sobre a ligação entre cultura e comunicação, abstraí o olhar ora exclusivo
dos meios de comunicação, para dar mais privilégio às interposições típicas da recepção,
destacando o aspecto do cotidiano e da cultura, considerando-se que os processos de
comunicação e cultura transitam também nos espaços de apresentações artísticas.
Existe uma quebra com as análises pragmáticas que enxergam o espectador, ou
fruidor da obra, como elemento sem defesa e, muitas vezes, conformado perante o poder
colossal das mídias de massa, no qual de forma costumeira se apresenta como constituinte de
uma gama específica de cultura.
Deste modo, ratifico que os espectadores não são mais meros seguidores das
indústrias culturais e o convívio social não é mais apenas uma porção de mídias, ou seja,
existem vários outros aspectos a serem analisados e observados para a formação da mediação.
Martín-Barbero (1985), ao falar das mediações que envolvem a recepção e por
tabela a definição de realidade, retira da mídia a responsabilidade de única formadora de
opinião e de balizadora da maneira de ser e de agir dos indivíduos, deixando de lado as
proposições que sugerem sua influência direta sobre as pessoas. Isso sinaliza um avanço no
entendimento desse fenômeno como parte de um processo globalizado e não de um aspecto
limitador. Este avanço aumenta a divergência à posição radical de tratar a comunicação que a
limita a um produto, veículo ou a um meio.
Pensar os processos de comunicação a partir da cultura implica deixar de pensá-los desde as disciplinas e os meios. Implica a ruptura com aquela compulsiva necessidade de definir a „disciplina própria‟ e com ela a segurança que proporcionava a redução da problemática da comunicação à dos meios. [...] Por outra parte, não se trata de perder de vista os meios, senão de abrir sua análise às mediações, isto é, às instituições, às organizações e aos sujeitos, às diversas temporalidades sociais e à multiplicidade de matrizes culturais a partir
48
das quais os meios-tecnologias se constituem (MARTÍN-BARBERO, 1985, p. 10).
A verdade é que, o que é veiculado pelos meios de comunicação, é de certa forma,
conceituado como cultura, deste modo, a cultura também está na mídia. Nos espaços artísticos
é comum a observação de que em alguns estágios os conceitos de arte e de cultura se misturam,
onde um olhar mais desavisado acaba por trocar uma pela outra.
Sem, portanto, chegar-se a uma posição extremista, mas tentando destacar que
tanto as culturas consideradas supremas quanto as alternativas são difundidas pelos meios e
elas também se encontram à margem deles.
É relevante salientar que os espaços de apresentação artística, aqui, no caso, de
apresentação de dança, também se tornam uma espécie de espaços midiáticos, dando ao corpo
o papel de desempenhar o instrumento de propagação da mensagem.
Muito embora essa comunicação adquira várias faces somando possibilidades de
troca de sentido, ainda assim, ela não é o único elemento formador de opinião.
Para isso, precisa-se erguer o campo comunicacional ao status de cultura sem dar
poderes extremos e acreditar nele como solucionador de todas as questões de significação.
Assim, nós pesquisadores buscamos entendimento a respeito do corpo midiático a
partir do olhar de suas audiências. Por essa razão, essa audiência recebe a mensagem como um
texto que produz sentido, prazer e contexto social e no ambiente que está inserido e segundo
cada comunidade, e como eles são absorvidos pelas rotinas das suas audiências.
Podemos ver isso melhor, ao acompanhar o pensamento de Louis Althusser (1985)
em sua obra que fala sobre os “Aparelhos Ideológicos do Estado”. Para o autor, a ideologia é
uma prática social dinâmica, que se reproduz constantemente no funcionamento da ordem de
produção.
Também encontrada nos níveis mais subjetivos, ou seja, no nível individual.
Althusser fala que todos nós somos constituídos como um sujeito na ideologia amparada pelos
Aparelhos Ideológicos do Estado.
O sujeito é constituído por uma estrutura social e não inata. Já o sujeito como
49
espectador é visto por Fiske (1987, p. 17) como “um produtor de textos, um produtor de
sentidos e prazeres”, o que abrange sua subversão no que ser refere a seu posicionamento
quanto às representações predominantes.
Mesmo que alguns textos ofereçam alguns sentidos “mais vigorosamente do que
outros”, ainda assim o espectador tem o poder supremo de decisão, mesmo que atravessado
por todo repertório e arcabouço cultural e experiências vividas.
Os estudos feitos segundo este prisma colaboraram para que se estabeleça uma
pesquisa etnográfica como metodologia aceitável para os estudos da audiência. O objeto fica à
disposição da maneira pelo qual os sujeitos vivenciam essa troca. Reconhecem-se as
divergências entre as pessoas, apesar de sua constituição social em determinadas vezes
semelhante, contradizendo teorias que se direcionam para a generalização dos sentidos e dos
sujeitos.
Todas essas direções estabelecem diferenças entre espectadores, a forma como eles
assistem recebem uma mensagem, no caso os textos coreográficos, e como são produzidos os
sentidos e os prazeres dessa audiência.
Outro ponto capaz de ser observado por essa análise etnográfica, se refere ao grau
de atenção que é dispensado a um espetáculo de dança, que para Hartley (1982) é chamado de
regimes de assistência. Em outras palavras, é quando o fato de assistir a um espetáculo, em
que há uma suspensão momentânea de tempo e espaço, faz com que o imaginário, o sensorial
e o emotivo, estejam ativados, diferente dos estados cotidianos do espectador.
Torna-se indispensável à atenção sobre a pesquisa em torno da produção de
sentidos feita pelos sujeitos quando expostos ao conteúdo dançado. As pesquisas sobre as
audiências se concentram nos processos de negociação entre os telespectadores e os sentidos
textuais absorvidos.
John Fiske e de John Hartley (1978) propuseram falas sobre o poder do espectador
ativo sem abandonar a investigação que visa decifrar os códigos e convenções das mensagens.
Muito se pode ver em relação à problemática de produção de sentidos. Uma, que
podemos salientar, é a premissa em que se pode acreditar que os espetáculos são cheios de
sentidos em potencial, contudo, a significação depende de quem o assiste levando em questão
50
a ideologia predominante de onde esse enunciatário está inserido. Ainda que depois esse
posicionamento seja questionado.
Para analisarmos o texto coreográfico na sua totalidade teríamos que compreender
os incontáveis códigos que estão sendo utilizados. Eles são os seguintes: o elemento de ligação
entre os criadores, intérpretes, produtores, o objeto em si, os textos, a recepção, os elementos
influenciadores na produção de sentido em uma teia de significação com uma interposição
hierárquica e complexa quase que impossível de ser desenhada.
Fiske (1987) parte da ideia que a realidade já é codificada. Ele explica que a maneira
que conhecemos e fazemos a produção de sentido trata-se de uma operação realizada através
dos códigos que pertencem a nossa cultura.
O que Fiske explica é que quando uma parte da realidade vira uma mensagem, nesse
momento os códigos técnicos e as convenções representacionais do ambiente entram em ação,
assim podem se apresentar de tal maneira que faz com que a mensagem que é
tecnologicamente transmissível, se torne um segundo elemento: o texto adequado para seus
receptores. Ele descreve esses códigos em três níveis, embora inter- relacionados entre si.
No primeiro nível temos o conceito visto como “realidade”, que são as
convenções culturais, as aparências. Exemplo: o modo como as pessoas se vestem, se
maquiam, os cenários ambientais, a maneira de se comportar, como falam, a gestualidade, as
expressões faciais etc. Esses elementos são codificados no próximo nível pelos “códigos
técnicos”.
Isso se pode ver no próximo momento já característico de um segundo nível, denominado
“figurativização15”. Segundo Diana Barros (1988), “a tematização refere-se à formulação
abstrata de valores e a disseminação destes valores em percursos temáticos. É ela que assegura
a transformação da semântica narrativa do discurso em semântica discursiva. Enquanto isso, a
figurativização é o investimento figurativo que reveste os percursos temáticos no nível
discursivo”, estes são os aparelhos de iluminação, o figurino, elementos visuais, trilha sonora,
15 Figurativização: é o procedimento semântico pelo qual conteúdos mais “concretos” (que remetem ao mundo natural) recobrem os percursos temáticos abstratos (BARROS, 2011, p.87).
51
sendo através destes códigos que são definidas as representações convencionais de narrativa
textual.
E enfim o terceiro nível, a “ideologia” que é a orientação e organização dos
códigos em um pensamento coerente e com aceitação social que emergem conceitos e
discursos ideológicos que espelham a fala de determinado grupo.
A relação dos dois primeiros por serem mais tangíveis, podem ser estudadas e
analisadas sem maiores problemáticas, mas a relação dos dois últimos, por sua grande
complexidade, necessita de um olhar crítico mais minucioso. Os códigos ideológicos cogitam a
organização de outros códigos dentro da produção de um texto, e seu arcabouço de sentidos se
revelam o senso comum.
Para a semiótica discursiva, dado elemento ideológico pode ser desconstruído em
unidades naturalmente definidas, o entendimento de uma fala ideológica, vem da análise de
seus elementos construtivos, e dentro dos textos coreográficos essas composições podem ser
analisadas mesmo que venham de um trecho ou amostra.
Para Fiske (1987) é exatamente isso que torna possível uma análise criteriosa da
leitura textual. Muito embora, essas escolhas não nos deixem falar de forma mais geral.
Voltando às questões acima, o autor nos leva a iniciar a análise através do olhar sob os
conceitos da semiótica para que, posteriormente, possamos questioná-la segundo o olhar que
sugere que o texto coreográfico, seja uma força de sentidos, que pode ser absorvida de
diferentes e variadas formas.
Isso faz com que a maneira como o espectador processa a mensagem também seja
uma forma de criação de sentidos que emergem articulados na negociação ou na resistência,
segundo o grau de atenção e a tipologia dos receptores.
Por essa razão, o autor tenta caracterizar esse texto como um momento de
negociação entre forças, em tensão para o acabamento de uma determinada ideia em formação,
que vão a favor de uma linha de pensamento preferencial, como também, uma gama possível
de variáveis.
Ainda, segundo o autor, é preciso ir mais além ao que se refere a essa análise, como
observar alguns dos recursos textuais que levem o receptor a ver um conjunto de leituras
52
polissêmicas, que tentam sempre atingir uma forma acabada de pensamento ideológico.
Porém, essa força se dá de forma dinâmica e não estática. Tais forças podem ser
vistas, na forma de dançar, na velocidade, na intenção, nos planos de espaço, na gestualidade,
etc. Mas esta polissemia não é de maneira nenhuma desorganizada; pelo contrário, os sentidos
seguem uma estrutura, ora pelo poder de seu texto, ora pela maneira como é distribuído, assim
como pelo grupo social a qual pertence.
Os sentidos não são idênticos, nem de fácil circulação, mas todos estão
inevitavelmente submetidos à subordinação ou oposição de uma ideologia dominante peculiar.
2 DANÇAR AMPLIA OS HORIZONTES
2.1 O corpo que dança
O corpo é um instrumento maravilhoso. Com ele, nós podemos dar significação a
incontáveis textos, visto que ele é produtor de enunciados. O corpo pode ter a capacidade de
nos identificar e dizer quem somos. Também é capaz de transmitir informações. É improvável
que exista um corpo capaz de neutralidade. Afinal, todo corpo é carregado de valores culturais,
estéticos, sociais e políticos, além de possuir uma gama de direcionamentos em que uma ou
combinadas direções haverão de lhe apresentar um significado.
O corpo formaliza as investigações humanas num âmbito prático e também
filosófico. Ele se comporta como ambiente de reflexão de cultura e espaço de interações
sociais. Isso pode nos levar além dos limites do debate. Mas proponho aqui continuar na
reflexão do corpo ligado à arte da dança.
No momento da manifestação da arte na dança, o corpo se torna a expressão de si.
Além de intérprete, ele transmuta-se em instrumento a serviço da arte. O olhar a respeito dessa
experiência do corpo vai muito além dos conceitos sobre o que é corporal. Essa reflexão é
também, um modo de ver a estética da enunciação, abrangendo também a relação do
espectador com o criador. É uma fala que vai em favor do que Nietzsche acenou em seu
terceiro ensaio da Genealogia da moral, dizendo “que falta por completo a experiência
pessoal”:
Kant julgou honrar a arte quando, entre os predicados da beleza, fez ressaltar os que constituem a honra do conhecimento: a impessoalidade e a universalidade. Não vou examinar aqui se isto foi um erro capital; quero apenas indicar que Kant, como todos os filósofos, em vez de estudar o problema estético baseando-se na experiência do artista, não meditou acerca da arte e da beleza senão como espectador no conceito beleza. (NIETZSCHE, 1997, p. 86-87, grifo do autor).
54
Aqui, Nietzsche indica questionamentos sobre a necessidade de se ter um olhar
dinâmico que aporte tanto o olhar do artista como também de seu espectador. Em geral, o
corpo é espaço de enunciação, comunicação, discurso e memória. Enunciação que se modifica
a cada movimento corporificado ou até mesmo os introjetados.
Nessa corporificação material, a gestualidade ganha formas e figuras no espaço e no
tempo que possibilitam o entendimento de todo um complexo processo de formação de
códigos. A gestualidade se apresenta na forma de faculdade de persuasão, depositando nessa
toda sua capacidade do sentir, não somente do executante (intérprete), mas também daquele
que vê (público).
Por observação vemos que o que acontece no ato da cena é a fusão entre o corpo e
a consciência. Nesse momento, corpo e pensamento se unem, o físico e o psíquico são um só,
isto é, qualquer que seja a movimentação, o gesto ou a própria intenção dele se iguala à sua
manifestação cognitiva; o gesto é tal qual seu processo mental. Ao olhar alguém sentar; e se
estamos também sentados, em nosso pensamento, sentamos mentalmente junto com o sujeito
da ação. Ou também ao ler, por exemplo, o trágico fim do clássico casal Romeu e Julieta16, nossas
emoções e pensamentos também vivenciam a experiência narrada através da escrita. Existe
uma empatia nesses traços dinâmicos apontados por Deleuze e Guattari (1992).
Justamente, por essa singularidade do corpo projetar sentimentos, essa capacidade
de poder absorver e enunciar vários discursos, além da capacidade de mutação de sua forma,
que o corpo se torna objeto de estudo de muitas ciências, possibilitando ser atravessado por
variadas linhas de pensamento.
“Ao longo da história da humanidade, o ser humano construiu inúmeros saberes sobre o corpo; das Ciências às Artes. O corpo é tematizado pela Religião, pela Filosofia, pela Ciência, pela Educação e pela Arte, apresentando-se de diversas formas no pensamento e na cultura, de modo geral” (NÓBREGA,1999).
16 De William Shakespeare, “Romeu e Julieta” é uma tragédia escrita entre 1591 e 1595 sobre dois adolescentes cujas mortes acabam unindo suas famílias, outrora em pé de guerra. O relacionamento dos dois jovens é considerado como o arquétipo do amor juvenil.
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Segundo Andréa Torres, bailarina independente, integrante do elenco de
“Valei-me!”:
[…] em algumas cenas, na ocasião em que, apesar que eu esteja parada, pois o foco da dança não está sobre mim, mas estou presente fisicamente na cena, quando outros bailarinos estão em execução de movimentos, teoricamente, esse seria a oportunidade de eu relaxar e “respirar” (descansar). Eu não consigo. Eu continuo dançando em minha mente junto com os que estão executando movimentos, me sinto parte da cena, e como tal, continuo nela. (Torres, 12/10/2011. Depoimento).
Assim, o “corpo artístico” vai muito além de ser apenas um corpo em cena; ele é um
corpo que se comunica, que carrega um discurso polissêmico e traduz as falas do coreógrafo,
do intérprete e também se “metamorfoseia” naquilo que o espectador percebe, ou seja, muito
além das transmutações sofridas por meio da dança, o corpo se instrumentaliza em canal de
uma mensagem materializada.
Esse paradoxo se estabelece com uma coexistência de um corpo treinado com
aquele que se comunica. O corpo treinado se personifica através da técnica – essa é um
conjunto disciplinar abrangente – e o corpo que se comunica é o que, abarrotado de
possibilidades de criação artística, é condutor de vários outros corpos imaginários intrínsecos a
ele.
O corpo dançante do intérprete sempre vivenciará essa dicotomia do ser e estar. O
“corpo que é” é o conjunto de toda experiência vivida carregada de valores subjetivos. Já o
“corpo que está” é o do momento da apresentação. Ali, ele é composto de múltiplos
enunciados vigentes, é atravessado pelas falas de todos em contato com a cena.
É um corpo em estado de graça, é fundido pela atividade corpórea usual, invadido pela
estética, pelo fenômeno, virando-se um espaço de intencionalidades que se amplia e ultrapassa
em si próprio, criando um ambiente suspenso no tempo, no qual artista e plateia atingem este
dito estado de graça.
O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente. No estado de graça, vê-se às vezes a profunda beleza, antes
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inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Na verdade, o mundo é impalpável. (LISPECTOR, 1999).
Após a passagem desse momento, jamais teremos os mesmos elementos
novamente, apenas a nostalgia impressa na memória dos que compunham a cena. É dado que,
em reprises, nem intérprete, nem público, nem coreógrafo e nem a própria cena serão
exatamente os mesmos, sempre haverá uma sutil mudança, o que vai diferenciar uma cena da
outra.
Pensar a dança a partir desse raciocínio é pensar no fenômeno, no estado de graça;
é fazer uma reflexão sobre a nossa própria existência. Deste modo, esse é um campo de estudo
em que se pode refletir de tal maneira que podemos ter olhares voltados para a comunicação
como também pelos estudos teóricos da arte. Bem como um estudo que poderia abranger o
processo educacional, lúdico ou terapêutico.
Há muitos espaços onde se aplicam os resultados da dança, inclusive os religiosos.
Nesse estudo nos limitamos a refletir sobre suas funções artístico-culturais e também como
linguagem artística, vamos em direção de suas matrizes originais, o hibridismo, multilingual da
gestualidade, sonoridade e visualidade.
Igualmente a todas as linguagens, a da dança também se inicia no pensamento. O
do filósofo francês René Descartes - “se penso logo existo” -, me faz parafrasear que: “logo, se
danço, transito no limiar da existência”. Esse processo se dá por meio da disposição de signos,
como uma forma de organização de informações através da ação.
De tal modo, que se tratando de dança, a coordenação dos elementos do texto
coreográfico, dos movimentos e da gestualidade se estabelece semelhante à formação de um
pensamento.
É o procedimento típico da semiose, uma rede complexa de significação. Ela
abrange a relação entre o signo, o objeto (a obra propriamente dita) e o intérprete. A dança
como manifestação artística manipula textos coreográficos que transitam entre a
experimentação de movimentos originais que se misturam a elementos do repertório corpóreo
57
do interpretante, nesse processo sempre surge uma releitura sequencial do movimento
materializado, se abrindo aos espaços da criatividade.
Logo, nessa representação, há uma ligação ao signo estético típico da linguagem da
dança, muito embora encontremos em alguns grupos de dança contemporânea de Belém, a
procura pela ruptura desse laço. É uma busca tão grande pela transgressão de se romper este
elo estético, um processo investigativo de não representar o que já foi representado, espaços
etéreos e inéditos. É uma espécie de não-dança, coletada no espetáculo “Os de 40” 17 de
artistas independentes concebidos por Lindemberg Monteiro 18 e Paulo
Paixão. Notadamente, sua abordagem era repleta de ambiguidades e contradições, podendo,
desta maneira, propor uma recolocação de códigos ou uma transgressão.
É importante dizer que nesse momento tratamos o ato de dançar como a dança
contemporânea, investigativa e experimental, e nos abstemos de suas formas mais generalizadas.
Visto que o conceito dela abrange muito mais que somente a modalidade contemporânea dada
suas mais variadas formas e manifestações. A dança em seus vários enunciados, lugares e
falantes e de momentos distintos: um conjunto de todas as danças, incluindo-se suas
características transcendentais manifestadas em rituais, espaços populares e eruditos.
Todas essas modalidades, distintas entre si, representam um tempo específico, uma
comunidade, um grupo cultural, uma sociedade, um período histórico distinto, uma fala
política e uma situação econômica característica de cada uma dessas apresentações.
A aceitação da pluralidade da dança nos estreita à compreensão dela como
representatividade de uma fala de um grupo. Porém, neste capítulo, além de considerarmos sua
generalidade, nossa observação se direciona para sua característica artística materializada pela
17
O espetáculo “Os de 40” foi um resultado da pesquisa de Lindemberg Monteiro, que desenvolveu um estudo coreográfico e investigação em linguagem de dança. Onde três bailarinos com média de quarenta anos de idade, encenariam um inventário de suas experiências individuais, relacionando-as com as dos demais, tendo sempre em perspectiva o jogo que cada sujeito estabelecia com as determinações impostas por regras sociais e culturais. Essa pesquisa se propôs a verificar como as experiências vividas podem ser visualizadas no corpo, como essa visibilidade pode se tornar performativamente interessante e de que maneiras elas podem enredar-se para construir uma dramaturgia da passagem do tempo. O espetáculo foi dirigido por Paulo Paixão e ficou em cartaz em junho e agosto de 2011. Em cena, os bailarinos faziam experimentação cênica em ato, assim como eram atravessados por depoimentos pessoais em áudio tocados como trilha incidental, bem como imagens projetadas de algumas performances de dança que eles mesmos realizaram durante todo o percurso artístico deles. 18
Lindemberg Monteiro é bailarino e professor de dança, amigo e referência na minha carreira artística. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
58
dança espetáculo. De tal modo que a dança será observada como arte, com seu hibridismo, sua
personificação como narrativa, sua polissemia e sua manifestação semiótica.
2.2 Relação: o corpo, intérprete e criador.
Ao perceber que no processo de construção de “Valei-me!” determinados
elementos fugiam completamente ao meu controle, algumas manifestações artísticas surgiam
de espaços até então não alcançados por mim, assim como umas materializações de
significados passavam a existir na leitura de intérpretes e de público. Percebi que uma obra é
quase que como um organismo vivo. Em dado momento, temos a sensação de que ela ganha
vida própria.
Então tentei me abstrair como membro interino desse processo e busquei
encontrar e catalogar esses espaços criativos. Como veremos a seguir.
Para isso propõe-se uma passagem pela análise do corpo em relação a si mesmo em
“A ontologia do corpo que dança”. Posteriormente, colocaremos o olhar sobre a relação
técnica x expressividade baseado nas aspirações do bailarino/intérprete em “O corpo dançante
do intérprete” (item 2.2.2).
2.2.1 A ontologia do corpo que dança
Ao integrar-se a uma linha de pensamento filosófico onde se vê o corpo através de
uma ontologia, ou seja, é a parte da metafísica que trata o corpo como parte da natureza,
realidade e existência dos entes. O filósofo Baruch Spinoza questiona-se: “O que pode um
corpo?”. Através desse pensamento, integra-se a ontologia que trata do ser enquanto ser, isto é,
ele é concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos os outros e a cada um
deles individualmente.
59
Por séculos, o estudo do ser (ontologia) e a metafísica (tudo que é além do ser)
foram consideradas palavras que remetiam ao mesmo significado, quando na era romântica se
estabelece o fim desse pensamento, tornando esses substantivos antagônicos, em razão do
aparecimento da necessidade de diferenciar o ser metafísico, aquele que se transcende, do ser
que está compreendido na própria essência do todo. Sendo o ser ontológico aquele que é
imanente e o metafísico aquele que é eterno e sem modificações.
Para os ocidentais, o corpo sempre se manifesta como uma problemática
metafísica, que assume por si um raciocínio que tudo é verdade, eterno, sem tempo específico,
imutável, mas sem se ater às questões que abrangem o fenômeno em si e se foca numa
realidade específica, em que há a valorização da alma, do ser abstrato e “perfeito” em
contrapartida da deterioração do corpo, o ser “imperfeito”. Esses ideais platônicos encontram
reverberação principalmente nas construções culturais judaico- cristãs, onde a verdade pura e
plena só é alcançada com a aproximação do espírito divino e distanciamento da carne (o
corpo).
A “negação” do corpo é levantada em meados do século XIX, bem aproximadas
dos pensamentos darwinianos, já que em sua “Teoria da Evolução” o estudioso põe em
questão a existência da alma humana, visto que se o homem descende do animal (que evoluiu)
e animais não possuem alma, logo, o ser humano também haveria de ter essa alma dita imortal.
Assim, o corpo em seu todo traz as mutações e a efemeridade à tona e se contrapõe
à metafísica, já que carrega as mudanças sofridas no decorrer de suas transformações e
existência.
Segundo uma corrente de pensamento filosófico chamada de “filosofia do devir”,
que possui uma visão materialista, em que se propõe a pensar o ser como um ente livre de
estruturas metafísicas e determinado por suas propriedades de mudanças, imanente e
possuidor de uma singularidade própria, inata, sendo assim, mais próximo do devir. Nesse
pensamento, temos estudiosos como: Friedrich Nietzsche, Rudolf Von Laban, Spinoza, Karl
Marx, Michel Foucault e muitos outros.
O corpo só vai assumir sua significação positivista com a chegada do Romantismo,
onde ele passa a ser enxergado como ontologia. Segundo Almeida (2006), com a virada do
60
século XX, no auge do Romantismo, a arte como um todo e também na dança existiu uma
recuperação do estado original do homem, tendo o corpo como principal ferramenta na
possibilidade de se acessar esse retorno, em contraposição do corpo moderno, maquinário,
alienado e anatômico, que surgiu principalmente com a era industrial.
Assim, no Romantismo, nascem três ontologias ligadas entre si: ontologia da arte,
ontologia do trabalho e ontologia do corpo. Quando cresce o reconhecimento pelo processo
da realização, do fazer, as práticas artesanais que dão valor e identificação do ser, surge uma
identidade se contrapondo à gestualização automática das máquinas.
Vários artistas acabam por se tornar marxistas, se questionando a princípio o que
enfim se deseja do corpo, que finalidade se dará ao corpóreo. Isadora Duncan, grande
estudiosa na área da dança moderna, é um excelente exemplo, já que era uma mulher a frente de
seu tempo e aplicou estudos na busca de se recuperar esse corpo livre e original. E não alterado
pelas tendências clássicas típicas do balé.
“Dancei desde o momento em que aprendi a ficar de pé. Dancei toda a minha vida. O homem, a humanidade, o mundo inteiro precisa dançar. Assim já foi, e assim há de ser sempre. É de todo inútil haver gente que a isso se queira contrapor sem compreender que a dança é uma necessidade natural que nos foi dada pela natureza... Et voilá tout” (DUNCAN, 1985)
O corpo se torna centro das atenções e principal executor das ações. Daí que
encontra forças intensas na conceituação de que ele prima pela ação central. Dá-se o olhar mais
relevante a ele e então ele adentra as artes plásticas como podemos ver no happening que é uma
forma de expressão das artes visuais que, de certa maneira, apresenta características das artes
cênicas. E legitima também a dança como modalidade artística. O corpo ganha status de
linguagem e se torna registro de suas experiências através de suas marcas adquiridas.
Merleau-Ponty (1999) propõe o conceito de corporeidade como significação e
produtor de sentido ao corpo e através dele que se busca o sentido existencial. O autor afirma
que por essa percepção é que reaprendemos a observar o mundo, assim pela apropriação
intelectual podemos dar forma a nossa ideia de verdade.
61
É pelo corpo, espaço, motricidade, tempo, sexualidade, linguagem, visão e emoção
que formamos uma consciência individual que se relaciona com a consciência coletiva. Ou
ainda nas palavras de Nietzsche (2000, p.31): “Há mais razão no teu corpo do que na tua
melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor
sabedoria?”
2.2.2 O corpo dançante do intérprete
Podemos dizer que o corpo, sem dúvida, é um dos objetos mais estudados no
campo das pesquisas acadêmicos em dança, mais que até o próprio movimento, dado a sua
relevância ao ser utilizado como instrumento prático ao se dançar.
Segundo Bernard (1990), o corpo é “um laboratório da percepção”. Para Foster
(1997), “o corpo dançante é descrito como um corpo treinado, modelado, construído um
corpo fenomenológico e sensível”. Para Katz (1994), é “um rizoma plástico, sensorial, motor,
pulsional e simbólico”. Já para Fraleigh (1987), possuímos “um corpo virtual e paradoxal”. Gil
(2004) completa que o corpo é “um sistema aberto de troca de informações”.
Temos aqui as afirmações de vários teóricos a partir de seus estudos. Mas e os
bailarinos? O que pensam seus corpos instrumentalizados? Seu corpo sendo usado para o texto
coreográfico de outro sujeito, no caso, o criador. Será que não pensam algo? Não dizem algo
nas entrelinhas? Não narram também elementos expressivos em um texto misto entre criador e
intérprete/criador?
São justamente esses questionamentos os pilares que deram suporte às análises dos
processos criativos do espetáculo “Valei-me!”. Ao promover reflexões teóricas sobre o corpo
dançante do intérprete na prática coreográfica contemporânea buscou-se identificar e analisar
concepções de corpo vividas.
Por isso, foi utilizada a etnografia como metodologia de investigação na concepção
coreográfica de “Valei-me!”, instrumentalizada pela coleta de informações, a entrevista e a
62
observação participante, já que criador, coreógrafo, um dos intérpretes e pesquisador são o
mesmo sujeito, no caso, eu.
Notoriamente, percebeu-se a presença do corpo dançante do intérprete como um
corpo treinado, energético, engajado e passional, visto a familiaridade dos intérpretes com as
narrativas de visagens e assombrações de Belém, coletadas no processo de construção do
espetáculo. Essa passionalidade foi percebida pela emoção empregada nos textos
coreográficos.
Segundo Charles Wanzeler (bailarino da Cia. de dança Tribos Ballet Teatro), a
temática recuperou memórias de sua infância no bairro da Pedreira, em Belém, onde se
contavam essas histórias em meados dos anos 80 do século passado. Essa correspondência
com a memória afetiva e a obra coreográfica traz, para esse projeto de construção, elementos
pessoais; exatamente o que essa obra pretendeu suscitar. O elemento expressividade como
forma de produzir um discurso próprio no intérprete.
A expressividade entre as relações de continuidade entre a dança e vida, a memória
se revelando nos bailarinos que agregam na sua práxis artística as vivências mais pessoais e
íntimas, resultando num produto legítimo: a estrutura coreográfica na qual dão forma.
Diego Jaques (bailarino da Cia. Tribos Ballet Teatro) revela que, a seu ver “os
bailarinos constroem em seus corpos textos a partir da incorporação de diferentes experiências,
repetição do que se observa, nos vários ambientes em que transitou na vida” e reelabora da sua
memória os elementos para a sua construção coreográfica ou intenção de movimento
ressignificando seus gestos à temática solicitada pelo coreógrafo.
Eles refletem assim suas diversidades de formações como bailarinos de uma mesma
companhia, bem como as múltiplas referências presentes na formação de cada um.
Há indícios que os bailarinos fazem escolhas e se responsabilizam pela sua
formação técnica. Seu percurso de formação está mais ligado às experiências vividas em cena
do que de fato nas salas de aula. Nesse percurso, são adquiridas capacidades peculiares e
individuais sempre levando em consideração o seu próprio bem-estar artístico. Outro aspecto
observado nos corpos de Charles e Diego é que ambos mostram a capacidade de se fragilizar,
se emocionar e transpor essa emoção em expressividade para melhor servir à obra.
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Isso mostra que podem posicionar suas memórias, convicções e seus desejos em
função do texto coreográfico criado para eles, mostrando-se prontos a se inserir na proposta
coletiva.
Além disso, essa concepção do corpo dançante do intérprete como corpo
expressivo indica que o sensorial e o emotivo são componentes importantes da construção do
texto coreográfico de “Valei-me!”.
No entanto, esses momentos são difíceis de captar, registrar e de se tornar elemento
sólido da atuação em cena, dado a subjetividade da expressividade, tornando todas as
apresentações levemente diferentes, no entanto únicas; vividos pelos bailarinos em ocasiões
excepcionais. Eles estão talvez mais próximos das experiências de “estado de graça”
(LESAGE, 1998; LEDUC, 2006).
Então se pode assim dizer, que quando o corpo dança na cena, o intérprete se
transmuta num espaço suspenso no tempo, momentâneo, onde se corporificam passado
(memória), presente (estado de graça) e futuro (o fenômeno, o acaso).
É importante dizer que o corpo dançante do intérprete, em dado momento, se
assemelha ao corpo objeto, principalmente quando se observa a vontade de manifestar perfeição e
virtuosidade estética, ele retorna a um estágio de controle, a emotividade e a expressividade
momentaneamente entram em segundo plano, ele se rende à vontade do coreógrafo.
A relação entre o corpo dançante do intérprete e o corpo objeto faz parte do momento da
apresentação cênica em “Valei-me!”. Existem momentos que se objetiva a aplicação do corpo
dançante do intérprete nos processos de construção dos textos coreográficos. Em
contrapartida, não imagino que essa construção especialmente no espetáculo “Valei-me!” seja
feita somente voltada para o bailarino como único sujeito na busca desse corpo.
Assim como o corpo dançante do intérprete é aplicado também como corpo social que é
aquele que traz à tona seus valores estéticos, morais e sociais, um corpo representativo de uma
determinada comunidade.
Para Fortin e Trudelle (2006), os bailarinos interiorizam as normas de
produtividade e os sacrifícios necessários para serem capazes de construir e de oferecer aos
coreógrafos um corpo dançante ideal. Mesmo que os bailarinos de “Valei-me!” sejam, quase
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sempre, os sujeitos construtores de seus próprios corpos, dando ao coreógrafo, na maior parte
das vezes, o papel de editar os textos coreográficos manifestados no processo de criação.
Desta forma, o corpo de “Valei-me!” consegue galgar outros estados corpóreos de
consciência, para poder se ressignificar e materializar novas possibilidades, e assim transmutar
seu repertório original, tornando-se um corpo mais diversificado, heterogêneo e polissêmico.
Percebi que as experiências vividas em processos criativos em dança
contemporânea, especificamente na construção de “Valei-me!” permitiram que bailarinos
assimilassem novas percepções corpóreas e “saberes” intuitivos. Desta forma, a criação
compartilhada e a ressignificação dos textos coreográficos exigem que os intérpretes busquem
seu arcabouço cultural, artístico e a memória afetiva na tentativa de se distanciar seus hábitos
técnicos, valorizando suas habilidades interpretativas e criativas, proporcionando que
resignifiquem seus corpos em função da estrutura coreográfica de “Valei-me!”.
2.2.3 O bailarino/intérprete entre técnica e a expressão
2.2.3.1 A técnica
Um dos elementos relevantes na dança de maneira geral, e principalmente entre os
bailarinos mais exigentes, é o elemento técnica. Essa quase que se apresenta como uma
entidade separada do corpo dos bailarinos.
Muitos deixam se encantar com o vislumbre dos movimentos virtuosos e travam
verdadeiras odisseias em busca da perfeição do movimento. Quanto mais técnico é o
espetáculo do movimento mais respeitado aos olhos dos bailarinos se torna a obra e, por
consequência, mais “audível” se torna o discurso vigente nos textos coreográficos
apresentados. Muito embora a dança contemporânea tenha a tendência de romper com esse
quesito e se libertar da “ditadura” da técnica.
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Entretanto, se faz necessário explorarmos esse elemento, no intuito de expandir
nossas possibilidades e enxergar polêmicas que circulam em torno do ensino da dança.
Podemos encontrar o uso da técnica em todas as áreas do conhecimento, como a maneira
manifestada mais comum de se atingir um resultado.
Ao longo da história humana, o acúmulo de conhecimento fez com que o homem
fosse um ser capaz de empreender aprendizados e, tão logo, capaz de desenvolver tecnologias
que facilitassem a manifestação de resultados distintos. Com o tempo a prática se torna mais
eficiente em direção a um resultado específico, e mais e mais a perfeição é buscada.
Na dança, a técnica se apresenta como o elemento que norteia a qualidade de
determinado movimento. Quanto mais próximo da perfeição e da virtuosidade estética mais
técnico é atribuído o movimento, uma clara sobreposição à experiência estética,
remetendo-nos a um conceito limitado desse elemento que o torna raso, dado o universo que a
palavra técnica pode significar.
Para Mauss (apud Saraiva Kunz et all, 2005, p.120), “[...] o primeiro e mais natural
objeto técnico, ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo”. Porém, ainda vemos
que, na dança, o conceito “técnica” compreende ao esforço de se chegar a um determinado
fim, um jeito controlador de como fazer algo, abdicando momentaneamente do objetivo final
da obra que é o de produzir sentido. Heller (2003, p.100) exemplifica: “... movo meu corpo de
uma forma tal e qual para que o público veja uma determinada expressão em meu corpo”.
Heller quis dizer que “nesse agir, onde a técnica está a serviço de uma representação
de um movimento, reina a instrumentalidade e o princípio de causalidade”.
Como dito antes, hoje quando a técnica do corpo dançante é citada, refere-se à
qualidade do controle e beleza estética dos movimentos; esvaziando o conceito antes
empregado pelo termo derivado do grego Techné o fazer artístico. Técnica nos espaços de dança
se torna apenas a ação mecânica que leva a uma relação de causa e efeito.
Para Abbagnano (1999), “o significado mais antigo desse termo indica que o
sentido geral da mesma coincide com o sentido geral de arte, compreendendo qualquer
conjunto de regras apto a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Significando também
criar, produzir, artifício, engenhosidade, habilidade”.
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Conforme Fensterseifer in Fensterseifer e González (2005, p.396), a noção de
técnica para os gregos era a união do teórico prático das técnicas intelectuais, corporais e fabris.
Então, o que se entendia de “técnica” era uma ideia do que permitia uma extensão “reveladora”
que também seguia os limites da “physis” a qual envolve a noção de totalidade orgânica que
incluía a “unidade, indivisível, indissolúvel de todas as coisas, de todas as dimensões e
aspectos”.
Heidegger (2002, p.18) diz: “o decisivo da técnica não reside no fazer e manusear,
nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento”. aqui o autor levanta dimensões deste
conceito que se referem a um ato de fazer humanizado e de uma maneira para se chegar a um
fim. Para ele, essas aplicações não podem ser descartadas. Entretanto, somente elas não são
capazes de mostrar toda a sua plenitude.
Então, vamos considerar que essa ideia de técnica aplicada aqui seja assertiva.
Contudo, sem totalizar cem por cento de verdade; e tentando definir um conceito válido,
Brüseke (2001,p.61) afirma que; para Heidegger “[...] a técnica não é algo meramente passivo,
ela influencia de forma decisiva a relação que o homem tem com seu mundo, ela participa desta
forma na fundamentação do mundo”
Assim, podemos ver que esse fenômeno se materializa em alguns processos
tomados na composição coreográfica de “Valei-me!”, quando ignoramos a individualidade do
processo de criação, ou seja, equiparando as experiências dos sujeitos, suas diferenças e
propomos movimentos em conjunto desprovidos de significados pessoais.
Enfim, a desconstrução da significância da palavra técnica caminha para explorar a
experimentação do coreografar e repartir, interligar e coexistir com o fenômeno, assim como,
com os indivíduos que o compõem.
2.2.3.2 O “carão”
No ambiente de dança é muito comum algumas expressões idiomáticas se
estabelecerem como um vocabulário representativo daquele grupo. Entre muitas gírias dos
67
grupos de Belém e expressões escutadas, uma em especial sempre me chamou a atenção: “O
carão”.
Sempre que um bailarino ou intérprete é muito bom em cena, com características
de atuação como presença de palco ou com vigor na expressividade, mas não é tão bom com a
execução de movimentos virtuosos, nem tão perfeito na execução de movimentos; ou, até
mesmo, razoavelmente bom, no quesito “técnica”, aqui empregada, como termo relacionado
com o item anterior, diz-se que o bailarino tem “o carão”.
Alguns bailarinos têm a técnica e “o carão"; esses são considerados muito
talentosos. Outros só possuem o “carão” e obtém determinada admiração, sendo também
considerados talentosos tanto quanto os tecnicamente virtuosos. Já os que possuem só a
técnica são admirados pela habilidade física, mas tendem a ser menos prestigiados. E os que se
classificam como não possuidores de nenhuma dessas características são ditos como
detentores de "dois pés esquerdos", ficam à margem do processo, "viram árvore" como os
próprios bailarinos afirmam numa referência a quem tem participações pequenas em
espetáculos e, geralmente, sempre ocupam os segundos planos.
Notadamente, percebe-se que há uma supervalorização da técnica como elemento
estético, mas visivelmente também existe um reconhecimento bem significante da
expressividade. Visto que esse bailarino é recebido e tem participação tolerável no grupo, ele é
aquele elemento que até possui limitação técnica, mas sua presença se justifica se esse elemento
“funciona no palco”, se “resolve em cena”, então ele é aceito de tão bom grado no grupo
como se “técnica” ele tivesse.
Então notamos que a expressão “o carão” nada mais é do que a capacidade de ter
voz, de tornar “audível/visível” o discurso que compõe o texto coreográfico. Merleau-Ponty
(1999) mostra que “a expressividade dos gestos representa a possibilidade discursiva do
contato imediato com o mundo da percepção”.
Ao nos apropriarmos do termo “carão” estamos nos referindo à capacidade de se
expressar um discurso através do texto coreográfico; essa habilidade “dá corpo” a
interpretação do bailarino, ou seja, materializa uma intenção de transmitir uma significação.
68
Então, para que o sujeito adentre pelo universo de dançar, não é suficiente que ele
apenas reproduza mecanicamente e “tecnicamente” as sequências coreografadas, em razão de
que é muito importante que outras percepções e sentidos sejam ativados, a fim de transbordar
o repertório de movimentos e dar ao texto coreográfico uma estrutura significativa,
materializando no movimento o discurso vigente na cena.
Ali, naquele momento, naquele espaço, daquele sujeito teremos a manifestação do
estado de graça artístico; o momento de quando é possível se expressar artisticamente. A
expressividade é elemento vivo do comportamento humano. Entretanto, é necessário darmos
atenção a esse fenômeno no contexto das artes, em especial no processo de criação
coreográfica, nos perguntando sobre: qual a relevância do uso da expressão do intérprete no
momento de criação coreográfica? Como esse fenômeno se relaciona na coreografia em
detrimento da supervalorização da técnica? Como expandir o olhar até então subestimado dos
termos “expressão” e “técnica”? Como conseguir que o intérprete chegue a esse estado de
graça no momento da construção coreográfica e reter esse mesmo estado durante os ensaios
até que ele se reproduza na cena?
Dado à observação anterior de que o momento da cena é único, então como
construir, reter e transitar nesse limiar de significação e oscilar mais ou menos sobre o mesmo
discurso vigente?
Conforme Müller (2001), Merleau-Ponty objetivando ir ao embate com a diplopia
cartesiana, sugere o conceito de “expressividade da experiência”, essa, se apresentando como a
forma espontânea onde o contato com ela designa significação ou fenômenos (p.15). Assim
Müller (2001 p.26) cria expressão como “a operação primordial na forma da qual nossas
experiências gestuais induzem fenômenos ou significações simbólicas”. Vale lembrar que
Descartes derruba seus valores cognitivos, levando assim a expressão para o patamar
filosófico, sendo que esse fenômeno se torna incapaz de se desconectar da existência humana,
principalmente em relação à interatividade do próprio corpo do indivíduo com o ambiente e
com os outros. O autor diz que “podemos considerar que „Merleau-Ponty propôs uma nova
ontologia eminentemente realizada sob a forma de uma descrição do mistério da expressão
inerente nas experiências, sejam elas perceptivas ou simbólicas‟”. (2001, p.13)
69
Para Merleau-Ponty (1999), a simbologia de nossas experiências e vivências vão
além de um grupo ocasional de movimentos. Por conseguinte de caráter causal, também não
dependem de excitações externas, mas elas constituem um aparelhamento espontâneo,
instituindo uma relação independente e trazendo significação na experiência principal do
sujeito.
Muito relevante colocar que o corpo do intérprete no momento da criação se
comporta como um espaço de manifestação da expressividade, pois num primeiro momento
ele é instrumento de manifestação do fenômeno. Ali se vivencia a manifestação da expressão
através do corpo e essa se torna capaz de transcender o instrumento corpóreo de cada
intérprete, [...] “cujo alcance perpassa esses dispositivos, num sentido de afirmar a totalidade”
(1999).
Ainda explorando o termo expressão, Merleau- Ponty menciona a ação como o ato
propositado, a operação da intencionalidade como conceito de expressão, sendo essa ideia de
totalidade aplicada ao fenômeno expressivo, um tipo de cooperação interativa expressada pelos
elementos que a compõe, da vivência e da percepção.
Heller (2003) fala de representação do corpo próprio e diz que ainda que seja
possível que representemos em nossas ações como na fala ou na gestualidade simbólica, essas
representações não precisam acontecer ao mesmo tempo, por um pensamento em torno delas,
“[...] o corpo não representa a si mesmo previamente o movimento a ser executado- não há
algo como uma” pré-estruturação “do movimento, mas uma sinergia das partes envolvidas”
(Heller 2003, p.51).
Nesse momento podemos diferenciar tanto o intérprete que se liquefaz nos textos
coreográficos e vivencia o momento deixando-se invadir pelo discurso corrente no ato de
dançar, daquele que momentaneamente compartimenta as sequências de movimentos no
intuito de raciocinar e o executar corretamente, como fora combinado anteriormente durante
os ensaios. Esse momento se torna divisor de águas para a análise das cenas de “Valei-me!” que
se seguirá no último capítulo desse estudo.
O intérprete se torna, momentaneamente, parte do processo criativo, elevando-o
ao estágio de intérprete-criador, dado que o material que ele imprime nos textos coreográficos
70
surge da então vivência dele, particular e íntima, que é compartilhada com o
criador-coreógrafo.
Deste modo, podemos observar que o fenômeno expressivo necessita de análise
diferenciada, imprescindível para ir além de determinadas afirmativas genuinamente subjetivas
e com princípios dicotômicos.
Avaliando que, na vivência mundana do existir humano, há inevitavelmente esse
fenômeno, que também está presente na expressão artística.
É importante, nesse momento, dar atenção para não se extrapolar em nossos
pensamentos em outras direções, visto que é comum que se observem alguns enganos na
equiparação e generalização dos conceitos de auto-expressão e expressão da dança, confundir
emoção pessoal com forma significativa; essas são coisas distintas. Porém, ao se avaliar as
intricadas redes de relações que a dança verdadeiramente tem com nossos sentimentos e seus
sinais despontados nas nossas vivências; imediatamente, se tornará mais simples essa
compreensão.
2.3 A gestualidade e a comunicação semiótica na dança.
A proposta deste tópico é apresentar uma reflexão que objetiva traçar um paralelo
entre a gestualidade e a comunicação na dança. Isso servirá de alicerce para a reflexão semiótica
do espetáculo “Valei-me!”, abordada mais adiante, este que foi o resultado de transposições
intersemióticas narrativas fantasmagóricas da cidade de Belém.
Assim, esse estudo discorre, principalmente, sobre a relação entre a dança, a
gestualidade, além de expor alguns espaços de interação entre os elementos: coreógrafo,
intérprete, público e obra, como uma via de acesso junto à análise das narrativas propostas logo
a seguir. A opção metodológica se justifica por estar assentada tanto na linguística como na
comunicação.
71
2.3.1 Uma breve diferenciação estética
Entender como se dá a apreensão estética é de grande importância para a nossa
pesquisa, já que ajudam na maneira de compreender a dança como uma manifestação da
gestualidade, e também permite que possamos ver com mais clareza, a diferenciação entre os
três estilos de dança-espetáculo - a clássica, a moderna e a contemporânea. Essa última é a
modalidade do espetáculo “Valei-me!”.
O discurso da dança torna possível que possamos ver a diferença entre os estilos e
modalidades de dança, Isso é melhor percebido quando nos utilizamos do estudo da sinestesia
como elemento produtor de sentido.
A dança clássica se apoia no belo, na estética da perfeição, cheia de movimentos
virtuosos que favorecem aos olhos à admiração pelo belo.
A dança clássica cria a estética da graça, que se valoriza pela contemplação da obra.
Para Greimas (2002), “a estética da graça situa-se sobre o plano onírico, trata o imaginário
como uma potencialidade de construção do objeto e, exaltando a beleza da espera, considera a
espera como objeto da apreensão estética [...]”.
Já a dança moderna se direciona para a origem do movimento, vai à essência da
gesticulação. Não se trata mais de observar corpos suaves e movimentos virtuosos, mas de
interagir com ele, tentar fazer o público pensar, refletir, sentir o que se vive em cena.
O intérprete criador na dança moderna propõe a seu receptor uma conjunção com
a obra, ao ponto que oferece novas texturas de cenário, de figurino, de luz, de espaço e de
gestualidade que se aproximam mais da práxis cotidiana em contraponto à estética da graça que
propõe ao receptor uma audiência mais passiva.
E, finalmente, a dança contemporânea - com a qual mais tive contato nos meus
anos de trabalho em dança - conduz as proposições da dança moderna ao extremo, na
esperança mesmo que remota que a recepção chegue até as camadas íntimas do contato do
espectador com a mensagem proposta pelo intérprete-criador, como se ambos dividissem o
mesmo pensamento, claro que é apenas uma tentativa. Para Greimas (2002, p. 30), “trata-se de
uma inversão no curso do tempo que se explica como o remontar em direção à nascente, do
72
barroco ao clássico”. De um lado a estética da perfeição buscada pelo clássico. Do outro, as
modalidades moderna e contemporânea buscando na imperfeição remontar às nascentes do
fenômeno, desembocam na decomposição completa do que inicialmente foi percebido como
uma totalidade constituída (idem. 2002, p. 51).
2.3.2 A dança contemporânea e a gestualidade em Greimas
Para Greimas, a gestualidade ou linguagem gestual consegue resultar em dois
aspectos diferenciados entre si. Um deles produzido pela práxis gestual e o outro resultado de
comunicação gestual. Essa diferenciação determinada pelo autor é determinada: noção de sentido;
basicamente, os sentidos são definidos no primeiro caso como direção e o segundo como
semiose.
No primeiro momento, no caso, a práxis gestual, o gesto se apresenta sem função
semântica, e exatamente por não ter essa função, ela é mais descartada da memória. Já no
segundo, o gesto é um conjunto de significações do ato de comunicar.
Por exemplo, um sujeito ao ir beber água, faz uma sequência de movimentações no
corpo, desde o levantar do seu estado inerte até concluir sua ação ao terminar de beber a água
e repousar o copo na pia. Toda essa movimentação se apresenta sem função semântica e serve
apenas para o cumprimento de sua missão, a de beber água. “Trocando em miúdos”, os gestos
em suas estruturas intermediárias não conservam sentido, apenas fazem sua função.
Dito isso, observamos que, na práxis gestual, a gestualidade é aprendida e se converte
logo, em seguida, no âmbito da gesticulação automática. Assim, pode-se dizer que ela não
possui função semântica.
Dentro da práxis gestual, Greimas (1968, p.72) nos apresenta dois tipos de
gestualidade: prática e mítica. O autor exemplifica “que uma mesma figura gesticular que
comporta, por exemplo, inclinação da cabeça e movimentação do busto com flexão anterior,
pode significar agachar-se no plano prático e louvar no plano mítico”.
73
Assumindo essa linha de pensamento, e aceitando essa dualidade e antagonismo
mítico prático, podemos visualizar a possível interseção de ambas e convertê-las em formas
mistas de gestualidade, em que um se torna o outro, ou pelo menos se dilui no outro e
vice-versa. É relevante dizer que “a gestualidade mítica não é uma simples conotação das
atividades práticas e não deve ser confundida com a gestualidade comunicativa” (idem, 1968,
p.73). Gestualidade prática e gestualidade mítica, ambas são utilizadas pela dança com a condição de
que elas se tornem comunicação.
Se levarmos em consideração que a gestualidade na dança se origina e se estabelece
genericamente da gestualidade em geral, a ambivalência do que é mítico em contraponto do
que é prático pode se encontrar aplicabilidade na dança, desde que se leve em consideração que
essa oposição apenas não é suficiente, já que a dança vista como espetáculo realiza a fusão de
ambas as modalidades de gestualidade.
A gestualidade em razão do ato de “resignificar” seus movimentos, adquire função
semântica, portanto, seus processos e gestos intermediários, passam a ser uma linguagem
estética e se transformam na linguagem da dança. Logo, a gestualidade na dança é uma
modalidade estética de gestualidade. A sensibilidade como maneira de abordar a significação,
também é uma preocupação atual dos estudiosos de semiótica, em especial, aqueles que se
focam no objeto estético como o centro das atenções.
A busca pelo contato com as qualidades sensíveis do mundo
[...] favorece o aparecimento de outra semantização, seja do mundo percebido, seja do sujeito que percebe. Se esta vivência sensível opera transformações, é porque o arranjo estético produz quebras de estereótipos e de simulacros pré-constituídos. (GREIMAS, 2002, p.11).
Para aprimorar nossa investigação em busca de perceber como a gestualidade na
dança-espetáculo transforma-se em uma gestualidade estética, vamos nos apropriar de
questões sugeridas por Greimas, no livro “Da Imperfeição”, onde se discutem possibilidades
de imanência estética.
Para Achcar (1980), ao se falar de dança, é necessário perceber que há a
materialização sinestésica do movimento instrumentalizado pelo corpo. E, sendo o corpo
74
humano o instrumento da dança, é necessário adquirir disciplina e desenvolver o movimento a
fim de que o mesmo atinja, através da harmonia e coordenação, uma plasticidade, pureza de
linhas e expressões possíveis. A beleza corporal, a visão, a precisão, a coordenação, a
flexibilidade, a tenacidade, a imaginação e a expressão são a essência do ensino da dança.
Assim, Greimas nos faz perceber a relevância do dia-a-dia na construção do
sentido. A experiência estética se torna o componente emocional e sensível da experiência
usual. A captação dos sentidos estéticos é concebida por Greimas como uma relação particular
estabelecida entre um sujeito e um objeto de valor.
Essa relação é diferenciada; sua peculiaridade é a retirada do mundo real, uma
espécie de parada no tempo, uma ruptura do mundo lá fora para uma realidade representativa
no momento da exibição dos gestos na dança-espetáculo.
Trata-se da fratura de que fala Greimas (2002, p.26): “Não se trata aqui, então, de
uma simples troca de isotopia textual, mas de uma verdadeira fratura entre a dimensão da
cotidianidade e o momento de inocência”. Ao se partir essa ligação com a realidade, o artista,
nesse caso criador e intérprete, pode dizer o que não se consegue dizer, desenhar o não
desenhável; no caso da dança, gesticular o não gesticulável.
Ao conseguir representar o que não se é possível representar, pelo menos não de
maneira direta, o criador e intérprete proporcionam que o público se deslumbre com o que vê,
ouve e sente de forma que se torna impossível fazer essa linha direta discursiva, é quase
impossível dizer de maneira direta o que se passa em cena ou a mensagem objetivada.
O público é exposto ao objeto, e é separado dele logo em seguida. O momento
seguinte é nostálgico, mesmo que se assista à outra sessão de apresentação, aquele momento
peculiar jamais será repetido em sua íntegra. Ali será oculto por variáveis imprevisíveis. “Todo
parecer é imperfeito: oculta o ser; é a partir dele que se constroem um querer-ser e um
dever-ser, o que já é um desvio do sentido. Somente o parecer, enquanto o que pode ser - a
possibilidade -, é, vivível”. (idem, 2002, p. 19).
Segundo Greimas, os constitutivos da apreensão estética levam em consideração,
entre outros aspectos, a inserção na cotidianidade, a espera, a fratura, a oscilação do sujeito, o
75
estatuto particular do objeto, a relação sensorial entre ambos, a unicidade da experiência, a
esperança de uma total conjunção por advir.
A apreensão estética aparece como um querer recíproco de conjunção, como um
encontro, no meio do caminho, entre o sujeito e o objeto, no qual um tende rumo ao outro.
3 VALEI-ME!: A MITOPOÉTICA E CORPORIFICAÇÃO DO FANTASMAGÓRICO.
3.1 Processos de criação e concepção.
O espetáculo “Valei-me!” foi desenvolvido como resultado de uma pesquisa
de criação e experimentação artística realizada pelo Instituto de Artes do Pará, através da
Gerência de Artes Cênicas. Em cena, um grupo de artistas pesquisadores e
independentes deu vida às narrativas coletadas em Belém com a temática voltada para
contos fantasmagóricos. No elenco estavam: Kleber Dümerval, Lindemberg Monteiro,
Charles Wanzeler, Leidiana Ribeiro, Diego Jaques, Andréa Torres e Priscilla Nascimento.
O espetáculo foi inspirado no imaginário popular de Belém e arredores,
composto por oito estórias de assombrações, mitos e lendas, narradas por moradores da
cidade. O trabalho se iniciou com a coleta dessas narrativas através de entrevistas
realizadas nos bairros da Cidade Velha, Guamá, Pedreira e com moradores da estrada da
Ceasa e estudiosos do espiritualismo na União Espírita Paraense (UEP). Também houve
coleta na Ilha do Mosqueiro e no distrito de Icoaraci. Após as entrevistas partimos para o
levantamento bibliográfico e pesquisa de imagens, fotos de estátuas tiradas no cemitério
Santa Izabel, no bairro do Guamá, em Belém, e desenhos criados inspirados nas
narrativas.
A dança contemporânea se tornou o fio condutor, cujas narrativas também
foram transformadas em arte sequencial, projetadas no palco, durante o espetáculo. O
resultado do material coletado foi analisado pelo grupo e interpretado a partir da memória
dos bailarinos. Foi um processo de debate e compilamento de movimentos coreográficos,
para então, partirmos para a construção dos textos-coreográficos.
Várias histórias foram levantadas (algumas delas já bem conhecidas),
identificadas e traduzidas para a linguagem da dança. A escolha das tematizações a serem
abordadas, de acordo com as histórias coletadas, foi definida de maneira coletiva, no qual
se elencaram oito histórias mais marcantes: “As materializações fotográficas na casa de
77
Ana Prado”, “A procissão das almas”, “Mati-taperê”, “O homúnculo da Sé”, “A porca do
Reduto”, “A moça sem rosto”, “A mulher do táxi” e “A novena das almas”.
Os primeiros estudos com o grupo de bailarinos, para ressignificação de
movimentos e início do processo coreográfico, foram feitos justamente na forma de
coleta de imagens no cemitério Santa Izabel, em Belém, para que os mesmos servissem de
aporte inicial para a movimentação proposta no corpo.
A partir desse material, foram construídas de maneira coletiva, a narrativa
central, as cenas, as escolhas de materiais cênicos e a trilha sonora. Tudo sob a direção e
edição de um coreógrafo, personificando a figura do editor de cenas, no caso, sob minha
responsabilidade.
A importância das narrativas orais na criação do espetáculo consiste no fato de
ser a cultura oral um patrimônio de conhecimentos e competências, valores e símbolos
constituídos ao longo de gerações e característicos de uma comunidade humana particular
que são representadas por valores étnicos. No que se refere à etnia, Stuart Hall (1997,
p.67) define-a “pelas características culturais – língua, religião, costumes, tradição,
sentimento de lugar – que são partilhados por um povo”.
Em todos os países existe a tradição oral. A cultura da oralidade tem sido a
base de transmissão dos saberes populares, nem sempre valorizada pelo saber científico.
O intérprete é, na tradição oral, a fonte de circulação vigente dessas narrativas, tratam-se
de povos, na sua maioria, acostumados a ouvir e a contar histórias, em que a cultura oral
predomina sobre a escrita.
Sabe-se que o homem é, em parte, resultante do meio cultural em que foi
socializado. Ele é o herdeiro de um longo processo acumulado de conhecimento e
experiências adquiridas pelas gerações que o antecederam.
A identidade de um intérprete manifesta-se com evidência tão logo abre a boca: ele se define em oposição às outras identidades sociais, que com relação à sua são dispersas, incompletas, laterais e as quais assume, totaliza, magnífica. (ZUMTHOR, 1993, p. 68)
Na Amazônia, essa tradição é extremamente rica, povoando o imaginário de
seus habitantes muito antes da própria colonização, por meio dos mitos e lendas, com
forte presença nas manifestações culturais, que são ressignificadas de tempos em tempos.
78
Esse processo criativo fez com que, ao longo da história do povo amazônico, os seres
encantados no caso, fossem se constituindo numa espécie de porta para o irreal, ou seja,
um vetor mitológico que se destaca esteticamente e que brota no universo imaginário do
amazônida.
Abordar esse assunto, por meio da dança, através de um texto sincrético foi
um grande desafio, concorrendo para um intenso movimento de busca e de compreensão
da diversidade de linguagens envolvidas no processo de criação do espetáculo. De um
lado, pelo desejo de construir um discurso que vem da narrativa de textos comuns à nossa
comunidade e, de outro, pela tradição corporal de um discurso narrativo polifônico típico
da dança contemporânea.
O principal objetivo de “Valei-me” foi o de chegar ao público com uma
reflexão das narrativas amazônicas de maneira diferenciada, não somente como forma de
registro, mas, também, como forma de valorizar e explorar novas linguagens da dança
contemporânea. Isso implicou na busca de novos referenciais de pesquisa através do
corpo, e inovar suas variáveis, valorizando a cultura paraense, encenada num misto de
imagem entre histórias em quadrinhos e a dança contemporânea, de forma a facilitar o
entendimento do público.
Este espetáculo apresenta, exatamente, esses reflexos gerados por essa nova
forma particular de fazer dança. Ele permite a fusão ou a parceria com outra linguagem,
neste caso, a das histórias em quadrinhos, sem ferir a originalidade ou deixar de mostrar
as características inovadoras da criatividade da construção coreográfica, cujo nome do
espetáculo “Valei-me!” foi inspirado na expressão do caboclo paraense, quando colocado
em situação de temor.
O espetáculo instigou o grupo de artistas em uma nova tendência neste
universo de criação, formado pela dança em diálogo com um trabalho de pesquisa de
imagens fotográficas e de criações de desenhistas paraenses.
O tripé formado pela dança contemporânea, arte sequencial e narrativa de
seres “encantados”, assombrações e visagens, da Região Metropolitana de Belém, foi o
ponto referencial para a construção do repertório de imagens, de movimentações
corporais e do roteiro artístico do espetáculo desenvolvido.
79
3.1.1 A crítica genética e os espaços de interação identificados no processo de construção do espetáculo.
Muitos questionamentos surgiram no momento de começar a trabalhar com a
“criação compartilhada”. Como se constrói uma obra desse tipo? Essa foi apenas uma
das perguntas que surgiram no longo processo de construção do espetáculo. Nossa
capacidade de relacionar conhecimentos fez com que parte deste processo se apoiasse na
crítica genética e em sua visão de construção.
A crítica genética se dedica ao estudo do processo criativo, investigando uma
obra a partir de seus processos de desenvolvimento. Nessa construção de um espetáculo,
que envolve a criação de uma obra artística, fez-se imprescindível o uso de ferramentas
que auxiliassem o processo criativo da mesma. Consequentemente, na busca por um
melhor entendimento de todo esse processo, criaram-se relações entre os vestígios
deixados pelo coreógrafo e o próprio “Valei-me!”.
Esse estudo buscou compreender o ato do processo criativo, situando os
bailarinos em meio às criações coletivas. Segundo Salles (1998), essa compreensão
proporciona grande entendimento da genealogia do processo, apoiado na crítica genética,
já que não é possível ter uma compreensão total sobre ele. O espetáculo também se
utilizou de uma metodologia própria dentro do processo de criação. Salles (1992, p. 13)
exemplifica que “a crítica genética veio com um forte desejo de penetrar na razão do
processo criativo e encontra-se, certamente, em pleno estado de metabolismo e
crescimento[...]”. O uso de um método no processo de criação no desenvolvimento de
“Valei-me!” se fez muito importante, para que houvesse, por exemplo, um melhor
entendimento de como atingir o produto final e sua documentação.
Para Salles (1998, p. 60), o sugerido uso do método “[...] não está ligado única
e simplesmente ao conceito de ordem, em oposição à „bagunça‟, nem à ideia de rotina
rígida e fixa”. Ao definir as etapas de criação, seguimos ordenadamente os métodos.
Munari (1981) cita que “as pessoas estão tão focadas em seguir métodos que se sentem
bloqueadas no campo da criatividade”. Criatividade não se aplica necessariamente sem a
utilização de uma metodologia.
O improviso não se faz necessariamente sem um método; serve para auxiliar
no processo. Quanto mais preparo eu adquiro, com conhecimento e técnica, em torno de
80
um fazer artístico, mais próximo eu fico da corporificação e manifestação da arte no meu
fazer.
Para fazer aflorar a criatividade, utilizei o método da provocação, de
questionamentos, em exposição das narrativas coletadas. E propus uma construção
corporal que ressignificasse a emoção vivida pelo bailarino, que, ao entrar em contato
com a narrativa, encontrava caminhos alternativos em busca de movimentos, em vez de
apenas criar as movimentações que eu já tinha em mente.
Na metodologia utilizada, os bailarinos utilizaram estratégias e ferramentas
próprias que influenciam no seu corpo o processo criativo individual, o que aperfeiçoou o
caminho no objetivo de alcançar uma construção baseada em particularidades
experimentais. Os momentos de experimentação ou até mesmo de “insights” são
elementos característicos de “Valei-me!” e transbordam nele.
O artista conhece a fugacidade desses momentos e encontra seu modo de resguardar esses instantes frágeis, porém férteis. Surgem, assim, os diários, cadernos de anotações ou notas esparsas que acolhem essa forma sensível no primeiro suporte disponível. Sensações que carregam ideias ou formas em estado germinal. (SALLES, 1998, p. 58).
A subjetividade foi bastante ponderada, uma vez que, o processo de criação e
a construção do significados são mais valiosos nesse estudo, do que a própria
apresentação final do espetáculo em si.
Para Salles (1992, p. 22), o anseio pelo conhecimento da criação se apresenta:
“[...] desde que o homem se entende por homem, a questão da origem desperta nele uma
curiosidade visceral: origem da vida, sua própria origem e, aqui, origem de uma criação
que nasce de sua própria mente”.
“Valei-me!” é o fruto de um processo contínuo e cíclico. Este fica pronto e o
processo continua, pois, segundo Salles (1998), “é impossível identificar o início do
processo e seu término. É uma sequência. Uma obra é criada a partir de outra. Esta teve
um significado, pois outra já existiu, sendo esta uma discussão dos críticos”.
Ostrower (1990; p.33) ressalta: “A criação é um movimento que surge na
confluência das ações da tendência e do acaso”. As ideias, pensamentos, erros e acertos e
experimentações estão juntos em uma grande teia de construção textual. Essa pode ser
81
considerada como a fundação do processo de criativo, onde as experiências pessoais são
conjecturadas.
Segundo Salles (1998), “o processo de criação é contínuo já que sempre se está
passando por novas vivências e pensamentos”. O ato criador resulta de uma trajetória de
experimentações, ou seja, “a criação como processo de conhecimento”.
Para Langendonck (1998, p. 15), pesquisadora que, em seu método, utiliza a
crítica genética como aporte para os estudos da criação em dança.
[...] a gênese bíblica, os estudos cosmogênicos da física e os estudos genéticos da biologia dizem respeito às questões do nascimento, da emergência e da elaboração de algo que necessita de leis para seu desenvolvimento e ao seu caráter de transmissibilidade.
A autora compara teorias como a do Big Bang, que sugerem a criação do
universo e se espalham em várias áreas do conhecimento, com pensamentos dos estudos
genéticos da criação artística. Equipara as explosões e expansões do instante do Big Bang
com o estado pré-criativo do pensamento do artista criador. E, para a autora, o início, a
gênese e a memória como procedimentos de investigação em dança, têm acepção na
proporção em que pondera-se que o corpo é um instrumento que transita no limiar do
movimento e a sua relação com o futuro e o passado. O corpo é um condensador de
memórias recuperadas do passado e materializador da memória aplicada ao futuro.
O processo criativo como um todo é construído por quem o fez e por quem o
recebe. Todo esse levantamento possibilitou pistas para realizar um estudo sistematizado
que auxilia a compreensão da estrutura do texto vigente em “Valei-me!”. Ao conduzir a
pesquisa, paralelamente ao desenvolver o processo de criação do espetáculo "Valei-me",
pude observar vários espaços interativos na relação: coreógrafo, intérprete, objeto (a
obra propriamente dita) e o público.
Em cada uma dessas interações, pude encontrar algumas manifestações de
conceitos estudados anteriormente, bem como, algumas descobertas pessoais foram
experimentadas. Embora existam inúmeras possibilidades de combinações entre os
elementos identificados, faremos, aqui, um apanhado das interações que foram julgadas
como as de maior relevância. Os elementos são: o arquivo, os fatores elementares, o
82
eixo cênico e os espaços de criação artística; que podem ser observados na ilustração
a seguir. Vejamos na figura 3.
Figura 3 - Espaços de interação na construção do espetáculo “Valei-me!” (Arte: Kleber DüMerval)
E, partindo da construção do esquema “espaços de interação na construção do
espetáculo „Valei-me!‟”, farei, adiante, a desconstrução de seus elementos formadores.
3.1.1.1 O arquivo:
Pensar o universo de constituição de um indivíduo é se relacionar com a
infinidade de experiências vividas por ele. Os acontecimentos acumulados em sua vida
83
são armazenados no que chamamos de memória, seja ela num nível consciente ou
inconsciente.
O espetáculo “Valei-me!” nasce, justamente, da recuperação dessas memórias
nos bailarinos, que são reconstruídas a partir de uma espécie de arquivo. Fica perceptível
de que toda recuperação se dá de maneira reelaborada, com “enxertos” de fatos não
muito claros no momento de seu recobramento. Bem como o enunciador, no momento
da apresentação dos fatos recuperados do arquivo, se utiliza de cifras para se livrar de
possíveis censuras, ou de juízo de valores do enunciatário.
No esquema da figura 3, observamos que o arquivo interage primeiramente
com os nomeados fatores elementares: coreógrafo, intérprete, público e obra. Ele está
localizado nas bordas do processo de criação, no limiar da imaterialidade.
Ao iniciar a nossa percepção nos espaços transitados, durante a concepção de
“Valei-me!”, se fez necessário que se abstraísse de todo nosso repertório imaterial, ou seja,
no momento de criação, percebemos que estávamos lidando com muito mais do que com
simples discursos materializados em textos-coreográficos. Sendo assim, emprestamos
conceitos do teórico Michael Foucault no que se refere ao termo “arquivo”.
Arquivo vem do latim archívum. É o espaço onde se guardam documentos. O
termo tem sido entendido em diversos sentidos, mas, de maneira geral, traçou-se, no
decorrer da história, uma forma simples de se compreender o que viria a ser um arquivo.
Isso pode ser percebido quando encontramos na grande parte das definições, os conceitos
de arquivo, que sempre se referem ao termo pelas suas características físicas, lugar onde se
guardam documentos, cartas e/ou fotografias sobre determinado conteúdo.
Assim, o arquivo, pode ser abarcado como um local de armazenamento e
acesso às informações e, dessa maneira, está comumente conectado às questões de
preservação da memória. Funciona como um depósito de dados e fatos.
Foucault aborda, em Arqueologia do saber, conceitos a respeito do campo de
ação da análise arqueológica. É, em princípio, o histórico que consente entender os
discursos.
Então, podemos concordar que arquivo (para o autor) “é o conjunto de
discursos efetivamente pronunciados” (FOUCAULT, 2005, p. 145). E, segundo sua visão,
o arquivo não reflete uma realidade material ou institucional; não é um espaço físico onde
84
se retiram fatos de maneira referencial. O arquivo toma parte de um procedimento, pelo
meio, e do qual se “atualizam as configurações de enunciados”.
Para Foucault, “ele é aquilo que pode ser enunciado, que pode ser dito, na
maneira de ser possível, de surgirem enunciações que se estabelecem como
acontecimentos”. Assim,
[...] por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequências, por mais facilmente esquecido que possa ser após sua aparição, por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos, um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente (FOUCAULT, 2005, p. 31).
Logo, ao entendermos esses conceitos, percebeu-se, inicialmente, que tanto o
coreógrafo, no momento da criação; o intérprete, no momento da construção cênica; e
o público, no momento da recepção, acessam seus arquivos, suas vivências, seu arcabouço
cultural e seus signos previamente configurados em suas memórias. E, ao acessarmos esse
arquivo, o fazemos de duas formas, como visto na figura 3 (p. 83): consciente e inconsciente. A
maneira consciente é aquela que podemos identificar de onde recuperamos essa memória. Já
a inconsciente é aquela que não nos é possível identificar a localidade de onde foi retirada
aquela memória, no limiar da intuição.
No caso da relação arquivo x obra, o primeiro se apresenta de maneira
diferenciada. Habita entre o espaço físico e o imaterial, sendo que é o primeiro é toda a
forma de registro, fotos, gravações de vídeo, registros textuais, etc. Já no âmbito imaterial,
ele se armazena na memória dos sujeitos.
3.1.1.2 Os fatores elementares
O termo elementar, aqui, se apropria de sua significação usual; tudo o que é
pertencente a algo maior que ele mesmo é um elemento. Os fatores elementares são a
soma dos sujeitos do processo de criação de um espetáculo e a obra, propriamente dita.
São eles: coreógrafo, intérprete, objeto (a obra propriamente dita) e o público. Vejamos
no quadro a seguir:
85
Quadro 1 – Relação de elementos criadores no processo de construção de “Valei-me!”.
Gerador da ideia inicial do espetáculo, provocador e instigador das descobertas cênicas. É ele que tem o poder de decidir o que entra ou sai de cena.
O coreógrafo de "Valei-me!" funciona como editor das descobertas realizadas no momento de construção da cena.
Ele é o materializador do texto-coreográfico. É através dele que o coreógrafo transmite sua enunciação cênica. Funciona como um elemento auxiliar no momento da criação, visto que, por mais abstração que ele possa tentar oferecer ao coreógrafo, ainda assim, o enunciado será composto por elementos criados por ele. Seu repertório cultural também incide influência na enunciação.
É o elemento espectador do espetáculo; é a audiência, o enunciatário. Ele, através da experimentação da cena em ato, processa a enunciação e a transforma em material significativo. Nesse processo, o arcabouço cultural, a memória e a vivência do enunciatário, também são fatores que influenciam na significação.
É o objeto materializado, a enunciação em si, que ganha forma no momento da cena, mas sofre contínuas transformações nos seus estágios de retransmissão. Sempre haverá pequena diferenciação entre uma apresentação ou outra, ainda que a estrutura principal seja mantida. Com ele, o arquivo da obra funciona de maneira diferenciada; se dá, de maneira física (fotos, textos, registros, vídeos etc.) e também, de maneira imaterial, a memória dos sujeitos.
86
3.1.1.3 O eixo cênico
São os espaços identificados a partir do centro da figura 3. São as relações dos
estados em que a cena se dá, com ou sem a presença de um público. Vejamos o quadro 2:
Quadro 2 – Relação de espaços de criação central no processo de construção do espetáculo “Valei-me!”.
Localizado no núcleo da figura, são os momentos difíceis de captar, registrar, e de se tornar elemento sólido na atuação em cena. Muito subjetivos, em função de sua expressividade latente. Eles estão, talvez, mais próximos das experiências de completude de uma manifestação artística. Tão logo, se convertendo em um estado nostálgico, pois aquele momento, como uma impressão digital, jamais será replicado completamente, sempre haverá minúsculas modificações.
É o momento de repetição, de criação contínua, é o momento da interação criativa entre coreógrafo, intérprete e obra, sem a interferência do público, já que a presença deste último caracterizaria o ato, a cena.
Texto-coreográfico: É a coreografia em si, inscrita no texto gestual, segundo a visão semiótica francesa, ou seja como um conjunto de códigos estruturados para a materialização de uma fala, um discurso, um pensamento, que se faz, em forma de movimento, de dança. O texto coreográfico está localizado no gráfico acima na intercessão entre obra, coreógrafo e público.
É a relação ativa entre a obra, público e o intérprete, com interferência passiva do coreógrafo. É a representação de um enunciado. O momento em que o intérprete se coloca como meio de materialização de uma fala de outrem, o coreógrafo. Quando o intérprete se apropria do texto e se torna, ele mesmo, o sujeito da enunciação.
Interpretação é o espaço onde o intérprete pode inserir elementos próprios na enunciação, ainda que, o coreógrafo seja o provocador do enunciado, sempre haverá, aqui, a interferência e manipulação do intérprete, já que, ele é a ligação entre criador, enunciação e espectador. A interpretação é a própria transmissão dada ao público.
87
As relações do eixo cênico foram observadas a partir de cada extremidade
(ensaio, texto-coreográfico, representação e interpretação) em direção ao estado de
graça.
a) Ensaio x estado de graça
Essa relação se define pela manifestação do estado de graça durante os
ensaios. Aqui somente há a interação dos sujeitos coreógrafo e intérprete. É o momento
em que o intérprete personifica a dança no corpo. Sem pensar tecnicamente, ele deixa
fluir a emoção e a expressividade como se na cena estivesse, ainda que não esteja. É a
materialização da arte no momento da repetição.
Na vivência como coreógrafo e bailarino, em algumas companhias de dança de
Belém, esse momento é comumente denominado “valendo ingresso”, uma projeção ao dia
da apresentação, ao dia do ato. É o fazer “pra valer”, sentimento, sentidos e falas agindo de
fato, simulando a cena.
b) Representação x estado de graça
É a relação em que o intérprete se apropria da obra; ela ganha vida em seu
próprio corpo e faz dele um pouco “dono” da enunciação. Nessa relação se faz necessária
a presença do público, logo, essa interação se dá no ato, na cena propriamente dita.
Muitas vezes em conversas com os bailarinos pude observar esse sentimento.
Para o bailarino Diego Jaques, que integrou o elenco de “Valei-me!”, esse é momento em
que a obra se torna coletiva. “Eu consegui sentir a emoção da plateia” 19, afirma Diego,
referindo-se ao momento em que a consciência do bailarino se apropria da enunciação e
se torna ele mesmo enunciado, ou seja, é quando o pensamento se manifesta mais
propriamente sob a forma de um corpo.
19
Depoimento registrado logo após a estreia de “Valei-me!”. Diego Jaques afirmou ter se sensibilizado com a reação emotiva de algumas pessoas na plateia.
88
c) Texto coreográfico x estado de graça
É a relação entre o enunciador20 (coreógrafo), enunciatário21 (público) e a
enunciação22 (concretizada na obra) que se apresenta como texto-coreográfico. O texto
alcança significação própria, ele carrega uma fala, um discurso vigente na coreografia, se
materializa em movimentos, a sequência coreográfica instituída. Mesmo que haja a
mudança do elemento intérprete, ainda assim, ela alcançará a mesma finalidade de
enunciação, ocorrida em momentos distintos, podendo haver, nesse caso, não a ausência
do intérprete, visto que ele é um elemento de ligação necessário, mas a substituição por
outro intérprete. Exemplo: os textos instituídos seriam os mesmos ainda que se alterem
devido à interpretação particular de cada bailarino. Aqui a obra ganha espécie de vida
própria, significação e a corporeidade dela mesma.
d) Interpretação x estado de graça
O estado de graça se manifesta no momento em que o bailarino usa a
“interpretação” como instrumento de criação em cena. É o improviso; o momento de
criação que flui durante o ato. O intérprete se torna destinador, enquanto sujeito da
narrativa, embora também exerça o papel de sujeito da enunciação, uma vez que participa
do processo criativo da obra. A interpretação é o momento típico da experimentação em
cena.
20
Desdobramento do sujeito da enunciação, ele cumpre os papéis de destinador do discurso e está sempre implícito no texto, nunca nele manifestado. (BARROS, 2011, p. 86). 21
Uma das posições do sujeito da enunciação, ele cumpre de maneira implícita os papéis de destinatário do discurso (BARROS, 2011, p. 86). 22 É o objeto-textual resultante de uma enunciação (BARROS, 2011, p. 86).
89
3.1.1.4 Os espaços de criação artística
São os espaços próprios de cada um dos fatores elementares (coreógrafo,
intérprete, público e obra) e somados ao seu “eixo cênico” correspondente. Apelidamos
de “a flor da criação” devido à semelhança gráfica com uma flor (ver fig. 3), onde cada
“pétala” obedece o padrão de intercessão da relação entre os fatores elementares e as suas
conexões com os espaços do eixo cênico. São divididos em espaço de criação, espaço de
criação compartilhada, espaço de empatia (improviso) e espaço de recepção.
Vejamos a seguir:
Quadro 3 – Relação de espaços de criação artística no processo de construção do espetáculo “Valei-me!”.
Espaço de criação: é aquele em que o coreógrafo interage consigo mesmo e com a obra. É aqui que ocorrem a abstração e o nascimento do pensamento primeiro na mente do coreógrafo. Com isso, a obra ganha “corpo” manifestando-se de maneira artística. Vale lembrar que no conjunto formado pelo coreógrafo estão contidos seus “arquivos” consciente e inconsciente e sua relação com sua vivência de mundo.
Chamamos de criação compartilhada o espaço em que ocorre uma clara interação entre o intérprete e o coreógrafo. É no corpo do intérprete que surgem materiais coreográficos que são selecionados para compor a obra. Cabem ao coreógrafo e ao intérprete, a experimentação e investigação das sequências, movimentos e a gestualidade. Ambos dão vida ao texto gestual, já ressignificados por dois seres pensantes.
90
Aqui se empresta do termo empatia, a tendência de sentir a situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa, se no lugar dela se estivesse. Aqui, o público compartilha emoções, projeta-se para a cena e divide os sentimentos com o intérprete. Assim, o público interage com o intérprete ao significar os textos em sua mente em que o intérprete deixa-se invadir pelo momento criativo. Nesse espaço, eles se conectam como se fossem um só pensamento, também denominado de espaço de improviso, pelo fato da criação se dar em cena, no momento da apresentação.
Esse estado se caracteriza pela recepção. É o momento de se relacionar com a audiência. Aqui, o público entra em processo de fruição com a obra artística, realizando uma espécie de tradução. O público absorve o enunciado a partir do que ele evoca sob a influência de seu repertório cultural, sua vivência e seu arcabouço cognitivo.
Nos espaços de “empatia e improviso”, identificamos dois tipos de improviso:
o inesperado e o manipulado. O primeiro é aquele no qual o bailarino é completamente o
criador no ato da cena, como, por exemplo, em momentos que ele esquece a coreografia
ou algo de inesperado acontece, e o artista se permite criar novas soluções em cena. Já o
segundo é aquele induzido por uma orientação prévia; o texto-coreográfico não é
definido, mas há uma sequência lógica de significação a ser seguida. Por exemplo, em
“Valei-me!”, haviam três cenas (Matinta, Homúnculo da Sé e A porca do reduto) em que se
deixou o bailarino livre para criar. Essas cenas foram concebidas assim. Informou-se para
o intérprete apenas uma provocação narrativa, coube a ele enunciar em cena. A criação
das sequências era materializada em ato.
91
3.2. Ressignificação das narrativas e materialização no corpo
O método de ressignificação do movimento e da narrativa, a partir da imagem
fotográfica, em texto coreográfico, se deu por meio da experimentação e coleta de
narrativas, que eram posteriormente expostas aos bailarinos, para então, conduzi-los ao
processo de materialização no corpo.
Figura 4 – Processo de ressignificação do movimento por Leidiana Ribeiro. A foto (A) é o registro de uma estátua numa sepultura do Cemitério Santa Izabel (Belém-PA). A foto (B) é Leidiana Ribeiro em processo de ressignificação do movimento baseado na estátua da foto 4-A. A foto (C) é o movimento ressignificado. (Fonte: Acervo pessoal de Lindemberg Monteiro).
Na figura 4, tem-se o registro do instante da construção coreográfica e o início
do processo de criação de movimentos corporais a partir da fotografia. Vê-se a bailarina
iniciando a ressignificação dos primeiros movimentos no processo de criação,
fundamentadores da composição coreográfica do espetáculo “Valei-me!”, no qual, a
imagem da estátua da sepultura do cemitério Santa Izabel serviu de inspiração.
Nesse processo de criação, o movimento proposto, visualizado nas figuras 4-B
e 4-C, assemelha-se ao da figura 4-A, especificamente, o “olhar para baixo”, pois, ao
imaginar-se a intenção melancólica da figura, criou-se uma intenção corporal do
movimento já na bailarina.
Desse modo, por meio de conexões com as imagens, foi possível remeter-se a
várias figurativizações23. Em a “Mulher do Táxi” observa-se um dos momentos em que a
23
Figurativização é o procedimento semântico pelo qual conteúdos mais “concretos”(que remetem ao mundo natural) recobrem os percursos temáticos abstratos (BARROS, 2011, p. 87).
92
temática melancólica da morte apresentada no espetáculo foi intensamente captada pelos
bailarinos nas visitas ao Cemitério Santa Izabel.
Nesse sentido, muitas são as interseções ou mais precisamente as relações de
intersemioses, como a que foi descrita acima, assim como a que é mostrada a seguir:
Figura 5 – Processo de ressignificação do movimento por Priscilla Nascimento e Andréa Torres. A foto (A) é o registro de uma estátua de um anjo numa sepultura do Cemitério Santa Izabel (Belém-PA). A foto (B) são as bailarinas Priscilla e Andréa em processo de ressignificação do movimento baseado na imagem da foto 5-A. A foto (C) é o movimento ressignificado (Foto: Raimundo Santos).
Na figura 5-A, a imagem do anjo de braços cruzados nos sugere um estado
emocional, no qual o corpo expressa tristeza e introspecção. Na ressignificação do
movimento, há uma inversão desse sentimento, reproduzindo os braços, também
cruzados, porém com movimento de elevação dos cotovelos, apontados para o alto,
conforme as figuras 5-B (nos ensaios) e 5-C (em ato), expressando clamor imerso em dor
e desespero.
A imagem sugere várias conexões no espaço de criação compartilhada, onde se
verifica, por meio dos desenhos corporais, uma relação com as imagens registradas no
Cemitério de Santa Izabel. No momento de apreciação da foto do anjo, acompanhada da
narrativa correspondente à cena do espetáculo, os intérpretes simulavam movimentos
corporais, que se conectavam aos sentimentos de cada elemento exposto, porém de forma
ressignificada em sua singularidade e criatividade.
Esse momento exige concentração e imersão na cena, para que o bailarino
possa incorporar o sentimento da personagem, e não mais o do intérprete e muito
menos o do coreógrafo, ou, o que esse gostaria de enunciar.
Ao estimular os bailarinos a imprimir no corpo as sensações que lhes são
particulares, ocasionadas pela exposição da temática proposta na cena, objetivava-se o
93
surgimento de movimentações que fossem capazes de dar significado ao que o espetáculo
se propunha mostrar, assim como propor que os bailarinos trabalhassem o deslocamento
pelos pontos do espaço da cena, explorando níveis, planos baixos (ao chão), planos
médios (de pé) e planos altos (saltos).
A memória (o arquivo) foi essencial para a geração de sensações e imagens
internas, imprescindíveis para as ações do próximo momento, de onde viriam a emergir e,
assim, revelar as singularidades dos corpos dos intérpretes. As ações envolvidas nesse
momento compreenderam os atos básicos de repetição do movimento que concretizaram
a ressignificação deles. A captação de imagens e sensações no corpo do bailarino, embora
tivesse como ponto de partida a memória, o “arquivo” de cada um, foi nas lembranças
dos intérpretes que se estimularam ainda mais o processo criativo.
Isto revela que, o processo de criação, tal como concebido em “Valei-me!”,
não é linear, na direção coreógrafo–intérprete, mas uma espiral em busca de sensações,
que transita entre o “arquivo” consciente e inconsciente do intérprete-criador, bem
como, ciente de que toda recuperação da memória, se materializa editada e reelaborada
pelo mesmo.
Imagens corporais eram geradas a partir do conhecimento sobre o processo da
narrativa em questão, da cena trabalhada naquele momento, respondendo-se com
imagens mentais. Foram utilizadas provocações e perguntas como “De que modo você
enxerga a forma do corpo do personagem tal?” ou “Como seria a sensação vivida pelas
pessoas ao entrar em contato com histórias fantasmagóricas naquela época?”.
Os intérpretes conectavam suas imagens e sensações ao, mentalmente,
responderem a essas e outras perguntas, interpretando-as em movimentos corpóreos já
ressignificados e potencializados em seus corpos. Sobre esse processo, a intérprete
Leidiana Ribeiro comenta as suas emoções durante as pesquisas feitas no cemitério:
É um sentimento muito intenso, nem sei como explicar. É algo misterioso. Chega a dar medo me imaginar e me transportar para aquela sepultura. As estórias contadas por você (Kleber) me lembraram aquelas que eu tinha medo de ouvir quando eu era uma criança e tive a sensação de estar vivenciando aquele momento de novo. Quando fomos ao cemitério foi muito forte, pode ser por motivo do ambiente, mas senti como se aqueles fantasmas estivessem comigo, eu fechava os olhos e os
94
via[...]. Teve até um momento em que fiquei toda arrepiada! (Ribeiro, 04/05/2011. Depoimento).
Priscilla Nascimento, outra intérprete, comenta sobre as mesmas sensações,
mas em pesquisa na sala de ensaio:
No primeiro momento senti uma entrega, senti o peso do meu próprio corpo sobre o chão. Naquele ambiente escuro, eu me projetei para o passado. Me concentrei bastante nas histórias contadas e como elas passavam de geração em geração. A orientação dada por você (Kleber) ajudou bastante para que eu encontrasse o corpo do personagem (matinta). Criei uma imagem na minha mente que figurou aquela mulher. Então, os movimentos foram surgindo como se eu estivesse me transformando. (Nascimento, 04/05/2011. Depoimento).
Os estímulos foram materializados no texto-coreográfico sobre o contexto das
narrativas por meio do corpo. Os intérpretes-criadores deram seus depoimentos sobre
as suas sensações. Na cena “A porca do reduto”, ao experimentar o figurino, que era
parte da proposta dar a sensação de que se tratava de um ser disforme, tentando
encontrar um corpo definido, duas bailarinas - Andréa Torres e Leidiana Ribeiro - eram
colocadas em dois macacões presos entre si e sem visibilidade, com a cabeça toda coberta.
Nessa cena, a proposta era levar as bailarinas a buscarem por movimentações antagônicas
em direções opostas, conforme a figura 6, a seguir.
Figura 6 – Cena “A porca do reduto” (Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos).
95
Andréa Torres, outra intérprete, afirma em seu depoimento:
[...] Sufoquei! A sensação era ruim, parecia a de um bicho preso, enlameado. Tentei me libertar daquelas roupas, que sufocavam. Cada orientação que era dada, montava uma imagem na minha cabeça. O peso da “Leide” me puxando para o outro lado me gerou desconforto. Eu acabei criando várias imagens ao mesmo tempo, improvisando movimentação e, assim, o meu corpo não parava, eu estava sempre aumentando a velocidade, tentando sair dali. Para mim, cada momento aumentava essas sensações, e era cada vez mais cansativo e intenso. Era como se eu estivesse sentindo a dor dos ossos daquele bicho tentando se transformar. Cada tentativa era uma busca de me soltar da “Leide”, mas a cada tentativa, eu acabava sempre me machucando, nada grave, mas eu imaginava que aquela dor era maior. Então, quando veio o fim da cena tive a sensação de estar liberta, leve, senti um alívio, mas ao mesmo tempo um cansaço físico e mental por estar presa. Parecia uma eternidade, vivendo em um corpo que não era meu. (Torres, 04/05/2011. Depoimento).
Para conduzi-los à criação, houve a provocação desses corpos no intuito de
experimentar a percepção, o sentimento, a exploração do espaço, o questionamento, etc.
Sobre o processo de criação:
Quando se indaga sobre os aspectos da criação artística, deve-se levar em conta a crença nas possibilidades criadoras do homem, aquela consciência que o artista tem de que pode executá-la. Além disso, ressalta-se a consciência da capacidade de julgar presente no ato criador (LOUREIRO, 2002).
Dessa forma, lançamos um olhar crítico sobre o que se está criando e não
apenas ver no artista, sua capacidade de criar isolada. Os espaços de criação artística estão
marcados pelas quatro potências do ato criador: inspiradora, plasmadora, inventiva e
iniciadora.
[...] Espera-se que a inspiração seja entendida no sentido atual, isto é, como algo decorrente de uma disposição humana para executar a obra, em que o autor se crê na necessidade de criar e em condições humanas para realizá-la. [...]. Plasmar significa “dar forma”. É, portanto, a fase essencial da criação artística, pois, nela é que se configura a obra. [...]. Potência inventiva – é a capacidade de realizar de modo “singular e inédito” a obra de arte. Significa que a obra, uma vez realizada, revela-se
96
inédita e original. [...]. Potência iniciadora – é uma qualidade que a obra revela ao se completar, sendo, portanto, qualidade inerente à obra enquanto arte. A obra provocará sensações estéticas sempre renovadas (LOUREIRO, 2002, p. 34).
O pensamento desse autor me leva a reflexões sobre a presença de tais
potências do ato criador no meu processo de criação de movimentos.
Durante a “conversa” e narração nos espaços de criação compartilhada, o
intérprete-criador permaneceu sentado e concentrado num estado agradável e de olhos
fechados. Fiz um convite, por meio de uma narração, para que o intérprete se deixasse
envolver por esta, e, por conseguinte, fossem desencadeadas sensações, ou seja, imagens
que motivaram as movimentações de modo que se relacionassem com a primeira
movimentação a ser realizada.
Nesse processo, surgiram ações criadas pelo intérprete-criador, que
emergiam diferentemente a cada narração sugerida. As ações criadas neste ponto foram
induzidas pelas ressignificações dos movimentos, causadas pelas sensações internas dos
intérpretes-criadores.
Essas pressuposições não foram definitivas. Não era intencional a pretensão
de “criar corpos” e, sim, possibilitar uma nova forma de criação de movimentos, diferente
da que utilizávamos em criações anteriores. Portanto, foram bases, com as quais, os
bailarinos intérpretes-criadores puderam experimentar.
A busca da conexão entre as narrações propostas por mim com as abstrações
dos intérpretes, assim como, com os desenhos coreográficos, foram fundamentais para o
surgimento dos movimentos corporais, das sequências de movimento, sobretudo,
induzidos pelas narrativas coletadas, como também, pelas imagens expostas.
97
3.3 A Semiótica entra em cena
3.3.1 Semiótica discursiva: uma breve introdução
A análise discursiva do espetáculo “Valei-me!” leva em consideração a interseção
de várias linguagens, gêneros do discurso, enquanto texto sincrético, cujas bases teóricas
foram traçadas brevemente a respeito do olhar semiótico que o envolveu.
Nesse sentido, os gêneros do discurso, segundo a corrente bakhtiniana da
linguagem, são os tipos de enunciados relativamente estáveis, usados em cada uma das
esferas da atividade humana (BAKHTIN, 2003, p. 262).
Assim, no instante em que nos comunicamos e interagimos no ambiente
social, utilizamos, sempre, algum desses gêneros do discurso de acordo com a necessidade
de comunicação. Por essa razão é que existe uma variação incontável deles, no qual não
controlamos e nem dominamos na sua totalidade.
Eles estão conectados à maneira pela qual uma organização social se expressa.
E, como a sociedade é dinâmica e mutável, o uso da linguagem também o é,
acompanhando essas modificações e alterando também os seus gêneros.
Segundo Bakhtin (2003, p. 262),
[...] a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.
Dessa forma, “falar” algo não está ligado apenas ao ato de tornar uma
enunciação concreta, mas, também, de corporificar todo um complexo aparato verbal e
não verbal da capacidade humana no uso das mais diversas linguagens.
Já a semiótica discursiva, denominada inicialmente, de Semântica Estrutural,
por Algirdas Julien Greimas, ao desenvolver-se teoricamente passou a chamar-se assim.
Atualmente, também é conhecida como Semiótica Greimasiana devido ao seu fundador
ou também de Semiótica de linha francesa, onde ganhou maior profundidade.
98
Segundo Fiorin (1999), a intenção de Greimas foi a de designar uma teoria
gerativa, com um elo determinado e outro determinante, na relação de poder entre os
discursos que se preocupa, não só com o conteúdo, mas com o texto em geral, que
contém e abrange o seu elemento expressivo; possui característica generalista porque se
preocupa e envolve qualquer tipo de texto, corporificado em qualquer que seja o meio.
A teoria é gerativa porque idealiza o processo de produção de sentido de um
texto, como um percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e
concreto. Portanto, o procedimento metodológico de análise de um texto constitui-se em
um “simulacro metodológico, para explicar o processo de entendimento, em que o leitor
precisa fazer abstrações, a partir da superfície do texto, para poder entendê-lo” (FIORIN,
1999. p.179).
Então, primeiramente entendamos, na visão da semiótica discursiva o que
denominamos por texto. É uma proposição que envolve não só os textos verbais, ou, mais
precisamente, textos linguísticos, tanto nas suas formas orais quanto escritas, mas,
também, textos visuais (desenho, pintura, escultura, fotografia, ou uma imagem qualquer);
textos sonoros (sons, música instrumental, etc.); e textos gestuais (mímica, movimento,
gesto).
Quando o texto envolve mais de uma linguagem, é denominado de texto
sincrético, com mais de uma manifestação textual (filme, clipe musical, espetáculo de
dança, cartaz envolvendo texto linguístico e imagem, etc.).
Um texto pode se apresentar tanto “linguístico, indiferentemente oral ou
escrito, quanto visual, olfativo ou gestual, ou, ainda, um texto em que se sincretizam
diferentes expressões como nos quadrinhos, nos filmes ou nas canções populares”.
(BARROS, 2003, p. 188).
A Semiótica Discursiva não se atém mais pelo signo de Saussure (significante +
significado), mas pela significação. Se preocupa com “a arquitetura textual que produz o
sentido” (FIORIN, 2008, p.122).
O simulacro metodológico denominado Percurso Gerativo de Sentido, que a
semiótica francesa ou greimasiana propõe, parte em linhas gerais de que todo enunciado
tem necessariamente um sujeito da enunciação, um enunciador, alguém que diz algo a um
enunciatário (a quem o enunciado se destina).
99
Ressalta-se de que, quando falamos de sujeito da enunciação na semiótica, seja
ela, pela perspectiva do enunciador ou pela do enunciatário, estamos falando de uma voz
que provém do texto e não, necessariamente, de pessoas específicas.
Um exemplo rápido desse processo é a temática fantasma, como no caso
espetáculo “Valei-me!”, pelo fato de que o texto carrega em si as “marcas” que nos
indicam que o enunciatário tenderá a ser envolvido por uma aura de mistério, em
detrimento da realidade, independentemente, de sabermos ou não, os dados do enredo ou
os fatos circunstanciais que envolvem a obra.
Na semiótica discursiva, o texto, ao ser abordado pelo percurso gerativo de
sentido, o é feito por níveis de análise (fundamental, narrativo e discursivo), estruturados
da sua forma mais simples e abstrata, a mais complexa e concreta.
Cada um desses níveis tem uma semântica própria. No que se refere ao
enunciado, a semiótica indica uma divisão de três níveis de análise que compõem o
percurso gerativo do sentido. São eles:
Quadro 4 – Níveis do percurso gerativo de sentido (Fonte: FIORIN, 2013, p.21-44).
Nível fundamental Nível narrativo Nível discursivo
É o nível mais abstrato. Nele se definem o eixo semântico sobre o qual o texto se cons-trói. Através de um qua-drado semiótico, representa-se graficamente a polaridade sumária das transformações que ocorrem entre os ter-mos de uma categoria semântica. Ela se estabelece em relações de contrarie-dade, contradição e implica-ção, que são as responsáveis pelas articulações mínimas de uma narrativa.
O nível narrativo é mais abstrato que o primeiro, em que se situa a sintaxe narrativa. Esta sintaxe adianta os atributos de valores que o enunciado produz. É no nível narrativo que há a atribuição dos processos de relação de manipula-ção entre enunciatário e enunciador.
É o nível mais “à mão” e o de maior tangibilidade, onde se situam as estratégias da enunciação esco-lhidas pelo sujeito, especialmente no que tange à projeção das categorias semânticas e as escolhas de pessoa, espaço, tempo, objetos etc. É nesse nível que devem ser enqua-dradas as relações entre temáticas e figuras deter-minadas pelo texto.
No nível fundamental, mais especificamente na semântica fundamental, a
significação se apresenta por uma oposição semântica fundamental, por meio de
estruturas fundamentais que se opõem. Para Barros (2003), os termos dessa oposição são
100
determinados pelas relações sensoriais do ser vivo com esses conteúdos, que podem ter
um valor positivo (eufórico) ou negativo (disfórico).
Tais termos são negados e afirmados por meio de operações de sintaxe
elementar e podem ser representados por meio de um modelo lógico de relações,
chamado quadrado semiótico (fig. 7).
No nível fundamental se estabelecem as relações sintáticas, que podem ser de
contrariedade, contraditoriedade e implicação. No quadrado semiótico mostrado a seguir,
os termos “A” vs “B” mantêm entre si uma relação de contrariedade, assim como
ocorre com os termos “não-A” vs “não-B”. Entre “A” e “não-A” e “B” e “não-B” existe
uma relação de contradição ou contraditoriedade. Além disso, “não-A” mantém com
“B”, assim como “não-B” com “A”, uma relação de implicação ou
complementaridade:
Figura 7 – Quadrado semiótico (Arte: Kleber DüMerval)
Esses termos “A” e “B” podem ser “representados” por categorias semânticas
fundamentais em oposição tais como vida versus morte, como é o caso de “Valei-me!”,
“vida” vs morte” e/ou “real” vs “imaginário”. Este último o de maior predominância nas
narrativas que compõem o espetáculo.
Falando de disforia ou euforia de uma categoria semântica, observamos que
elas não se dão previamente; elas se constroem no texto e pelo texto,
[...] o ser vivo não se relaciona com [...] categorias semânticas sem nelas imprimir sua marca sensível. [...] de acordo com o contexto de exame,
101
todo microuniverso semântico contém um índice axiológico [...], portador de valores considerados atraentes ou repulsivos. (TATIT, 2006, p. 199).
No quadrado semiótico, “A” não se converte em “B” sem antes passar pela
negação do próprio estado “A”. Euforia e disforia são, de acordo com o autor,
articulações da categoria foria, que significa “força que leva adiante”.
Os conteúdos do nível fundamental são figurativizados em “objetos”, quando
passam para o nível narrativo.
Esses conceitos da semiótica podem ser entendidos da seguinte forma: há
sempre um sujeito que se coloca em relação ao objeto pela busca do valor que nele se
encontra revestido.
Quando falamos em objeto não estamos necessariamente nos referindo a algo
palpável, mas sim à meta do sujeito, que é aquilo que ele deseja alcançar. Não importa se
estamos contando a história de uma moça que deseja dar uma volta de táxi estando viva
ou morta, de uma mulher que vira bicho ou de um humanoide que tenta tirar um
penitente de seu objetivo de rezar.
Todas essas narrativas têm em comum um sujeito que busca um objeto-valor.
Da mesma forma, não importa se a narrativa está sendo contada em um livro, em uma
canção ou em um espetáculo de dança, pois esse esquema geral do quadrado semiótico
vale para qualquer tipo de texto.
O antissujeito, que ainda não mencionamos, representa os obstáculos que cada
um desses sujeitos vai encontrar em seu caminho de busca. Assim, o antissujeito pode ser
um demônio que tenta impedir o homem de ir à novena ou pode ser uma mulher que
impede a passagem de um homem a caminho de sua casa.
Em suma, apesar das narrativas “contarem” histórias específicas, elas possuem
esquemas de organização comuns – uma lógica geral nos textos – que instituem o nível
narrativo, em cada uma delas, e na narrativa maior que traduz o espetáculo.
No nível narrativo, as polaridades propostas pelo nível fundamental oferecem
valorações que conduzem o sujeito por categorias semânticas específicas e, através delas,
optar por estratégias de manipulação a ser adotada no texto.
102
Não devemos esquecer, conforme citado anteriormente, que todo ato de
comunicação compreende um fazer persuasivo e um fazer interpretativo, entre enunciador e
enunciatário, uma vez que está em jogo na relação um fazer-crer.
O nível discursivo, por sua vez, é o responsável pela concretização desse
esquema geral em suas especificidades, ou seja, partindo do nível fundamental, converter
a narrativa em discurso.
Entretanto, apesar de sua concretude, detalhamento e individualidade, ele
também contará com estratégias gerais de produção de determinados “efeitos de sentido”
ou recursos discursivos na construção dos efeitos de sentido, a partir da exploração de
estratégias discursivas de que o sujeito da enunciação lança mão.
Em suma, o importante é percebermos que nesse simulacro metodológico há uma
interligação entre os níveis na garantia da coerência textual, a partir dos recursos
discursivos que se concretizam em isotopias24.
3.3.2 A semiótica em “Valei-me!”.
Quase todas as cenas de “Valei-me!” foram baseadas nas narrativas coletadas
nas redondezas de Belém, cujas manifestações das histórias em muito se assemelham as
de outras localidades do país, o que nos leva a crer tratar-se de mito-poéticas que circulam
em vários espaços do território nacional.
Existe variação entre as histórias, porém, na maioria das vezes, se mantém o
mesmo eixo narrativo. No processo criativo, o grupo propôs uma profusão dessas
narrativas na construção das cenas.
Tão logo as narrativas foram selecionadas, iniciou-se um processo de
construção de imagens, referendadas nas fotografias, tanto nos corpos dos bailarinos
como também na arte sequencial que foi projetada na cena. Embora as imagens tivessem
sua origem nas mesmas narrativas, o processo criativo ocorreu de maneira isolada. E
algumas das imagens desenhadas só foram vistas pelos intérpretes em cena.
24
Isotopia é a reiteração de quaisquer unidades semânticas (repetição de temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua linha sintagmática e sua coerência semântica (BARROS, 2011, p. 87).
103
3.3.2.1 A estrutura do espetáculo
Para o estudo semiótico do espetáculo, a partir do seu processo criativo, foi
realizado em duas etapas. Na primeira, neste item, é descrita, de maneira breve, a estrutura
do espetáculo em geral, sua construção de sentido e o percurso gerativo nos níveis
discursivo, narrativo e fundamental. Posteriormente, é apresentada uma análise mais
detalhada de um recorte do espetáculo (item 3.3.3), uma das narrativas que o compõe, no
caso, a cena do “Homúnculo da Sé”, por sua característica mista, e por ser a mais sujeita
às interferências em cena.
O espetáculo possui dez cenas interligadas, como uma viagem através da
narrativa que adentra a madrugada, e retrata uma família antiga que se reúne para
“representar” histórias de fantasmas. A cena se passa da noite até o amanhecer, quando,
teoricamente, todos os fantasmas voltam aos seus lugares. No caso de “Valei-me!”, os
próprios personagens são os fantasmas.
Do ponto de vista semiótico a análise do espetáculo, em relação a sua
estruturação, segue o que foi proposto no percurso gerativo de sentido para
compreendermos como as dez cenas, embora aparentemente díspares, estão interligadas
criando um todo.
No nível fundamental de “Valei-me!” nada mais é do que a síntese da classe
semântica principal responsável pela estruturação e organização do texto. Nesse sentido,
seguindo o percurso gerativo de sentido, a oposição semântica no nível fundamental é real
versus imaginário. Essas categorias são a antítese; os polos contrários nos quais as
narrativas se desenvolvem e as demais categorias semânticas que estão na base de
construção do texto são apresentadas no quadro 5.
No nível narrativo, a oposição semântica e as suas categorias que estão na base
de construção do texto compreendem, respectivamente, o tema central que conduz o
espetáculo e as tematizações concretizadas nas histórias sequenciais, no caso, as com
temáticas fantasmagóricas e de assombrações encenadas uma após a outra. As mesmas
ocorrem na interseção de cenas, já que ao final de uma delas, tem-se a fusão com a
próxima, resultando num efeito de profusão de cenas interligadas, dando coerência cênica
104
à narrativa. Esses aspectos podem ser melhor observados no espetáculo, conforme o
quadro a seguir:
Quadro 5 – Níveis narrativos e discursivos do espetáculo “Valei-me!”.
Cenas sequenciais
Categoria Semânticas
Tematizações Nível discursivo
Família
Materialização
(O fato ou fenômeno)
Uma família interage com fotografias (imagens) de materializações de fantasmas.
Fotografias
Roupas de época
Tons em preto e branco.
Sereno Anoitecer
O início de tudo. Durante o anoitecer é encenado uma espécie de sinopse do espetáculo.
Desenhos não acabados; desconstrução da coreografia; bailarinos sem o figurino.
A procissão das almas
Aparição Mulher curiosa recebe lição de moral
Janelas, lençóis, fantasmas e ladainhas.
Matinta Metamorfose Transmutação – lenda de pássaro agourento
Poesia de Fernando Pessoa, mulher com rosto coberto pelo próprio cabelo e homem temeroso.
O homúnculo da Sé
Aparição Espécie de demônio atrapalha a oração (bem e mal)
Canção Stabat Mater, homem e criatura, movimentos de oração.
A porca do Reduto
Metamorfose Transmutação de humana em animal
Ser disforme.
A moça sem rosto
Aparição Fantasma seduz homens e os conduz à cova
Ambiente fúnebre, mulher e três homens.
A mulher do táxi
Aparição Alma apegada à vida. Aparição no seu aniversário.
Vultos brancos, pneus, relação mulher e homem.
Libera-me Libertação Libertação das almas do purgatório
Imagem de fósforo acendendo, almas cansadas.
Aurora Amanhecer Contrição Ladainha, saída pela frente do palco em direção à porta.
105
3.3.2.2 A construção das cenas
Na construção das cenas foram usados vários recursos que resultaram no
texto-coreográfico, que, no nível discursivo, se manifesta como texto sincrético resultante
das coreografias em cena. Várias linguagens são integradas para que a narrativa fosse
convertida em discurso na apresentação do espetáculo.
No nível discursivo, as cenas se desenvolvem através de vários elementos
cênicos, que, nessa vertente semiótica, são selecionados pelo sujeito da enunciação que faz a
escolha de pessoa, espaço, tempo, objetos etc., convertendo a narrativa em discurso,
concretizado no texto.
Houve a opção em não apresentar um enredo cronológico e sim de as cenas
serem apresentadas misturadas, aleatoriamente, mas dialogando entre si, e desembocando
no texto seguinte. Esse processo apresenta um sentido de fruição durante a apresentação,
embora cada cena possua o seu próprio fio condutor. Vejamos a seguir como cada cena
do espetáculo foi constituída:
a) Família
A cena “família”, a primeira do espetáculo, se baseia na narrativa coletada e
inspirada em um núcleo familiar tradicional que se reúne para contar “estórias de
fantasmas”. A cena se inspira nessa temática devido ao antigo costume dos paraenses de
sentar à porta de casa durante a noite para conversar. Era o ambiente propício para as
narrativas fantasmagóricas.
A cena foi construída a partir de depoimentos coletados na União Espírita
Paraense (UEP). Lá, na UEP, nos foi narrado que, na década de 20 (Século XX),
estranhos fenômenos paranormais incomuns agitaram a capital paraense, provocando
espanto e repercussão dentro e fora do Brasil. Na casa da “médium” Ana Prado
ocorreram alguns fenômenos, desde efeitos luminosos até a materialização de espíritos.
Alguns deles foram registrados através de fotografias.
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Na figura 8 (abaixo) têm-se as fotos da família de Ana Prado (fig. 8-A e 8-B) e
o registro da cena que foi criada para o espetáculo (fig. 8-C). Na fig. 8-B é nítida a
materialização de um espírito feminino atrás da mulher do casal.
Figura 8 – Fotos e cena do espetáculo “Valei-me!”. A foto (A) é da família Prado (acervo da UEP). A foto (B) é o registro do fenômeno de materialização de espíritos (acervo da UEP). A foto (C) é o momento da criação coreográfica da cena correspondente a esse tema (foto: Raimundo Santos).
Na cena, a família Prado foi caracterizada como um grupo tradicional, com
vestes de época em tonalidades de cinza (fig 8-C), como marcador de tempo que não o
atual. A cena se passa em preto-e-branco, onde são projetadas algumas das fotos tiradas
na casa de Ana Prado (fig 8-A e 8-B).
b) Sereno
Na mitopoética de “Valei-me” a noite é o elemento mais recorrente por se
apresentar nas histórias dos narradores paraenses como o espaço da abordagem de
aparições de entidades fantasmagóricas que circundam o imaginário do povo amazônida.
Afinal, tudo acontece na “boca da noite”, como afirmaram alguns dos entrevistados.
Por essa razão existe a construção da cena “sereno”, retratando o anoitecer e
tudo de misterioso que esse período simboliza. Observamos que este ambiente vive na
imaginação do caboclo. Existe uma relação de mistério com a noite. O período entre 18
horas de um dia e 6 horas do outro é sempre envolvido de muito mistério.
107
Para aumentar ainda mais o imaginário popular com a sensação de mistério,
tem-se a colaboração da vastidão da floresta colabora, com uma fértil difusão de sons. De
alguma forma, ela contribui para o aparecimento desse devaneio, que transborda e
percorre essa relação entre o real e o imaginário. O povo entrevistado acredita que, no
período noturno, seres estranhos aparecem; o mundo se enche de seres encantados,
místicos e poderosos.
Nas narrativas coletadas entre os belenenses, há um elemento comum: a
“representação” da noite associada a um momento do fantástico, do sobrenatural. Por
esse motivo escolheu-se a noite para se retratar na cena “Sereno”.
A cena funciona como uma sinopse do que vai ocorrer, um breve resumo de
todas as narrativas que estão por vir. Um “trailer”, na forma como é visto na linguagem
do cinema em uma prévia do filme, com elementos desconstruídos, trechos coreográficos
incompletos, imagens inacabadas, que, posteriormente, ganham total legibilidade. Esse
aspecto é mostrado na figura 9 a seguir.
Figura 9 – Fotos e cena do espetáculo “Valei-me!”. A foto (A) é o desenho inacabado de Otoniel Oliveira feito inicialmente para a cena “Procissão das almas” e utilizada na cena “Sereno”. A foto (B) é o desenho já finalizado usado na cena “Procissão das Almas”. A foto (C) é a cena da projeção da foto 9-A (foto: Raimundo Santos)
Portanto, é no ambiente noturno que aflora na imaginação seres que vivem
nas águas, nas matas e até mesmo nos centros urbanos, e que se transfiguram, surgindo
ora para assustar, ora para seduzir.
É durante a noite que se observam fantasmas, almas penadas, sons e assobios,
grunhidos, gemidos e até risadas macabras. Na noite, o visível e o invisível se juntam no fértil
imaginário desses narradores.
Nas fig. 9-A e 9-B tem-se o processo criativo do desenho, e que é projetado
durante a apresentação dessa cena, no espetáculo, conforme aparece na fig. 9-C.
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c) Procissão das Almas
Contam os mais antigos moradores que, em torno da Cidade Velha, vivia uma
mulher que morava só. Muito curiosa, não tinha muito o que fazer a não ser dar conta da
vida alheia e praguejar devido a sua solidão, manifestando inclusive o desejo de não mais
viver.
Ela passava o fim da tarde e parte da noite observando o movimento da
vizinhança pela janela. Certo dia, quando já era bem tarde e ela ainda não havia se
recolhido, viu passar uma procissão. Todos estavam vestidos com túnicas brancas e com
velas nas mãos. Muito curiosa, ela tentou reconhecer alguém, mas não conseguiu. Logo,
achou aquilo estranho, mas pôs-se a observar a procissão passar.
A procissão seguia o seu curso quando, de repente, uma das pessoas parou
diante da janela e pediu-lhe que guardasse uma vela que era muito grande e ela só poderia
vir buscar no dia seguinte. Ao fim da procissão, a mulher da janela guardou a vela para a
andarilha e se recolheu.
No outro dia, ao acordar, a mulher foi verificar a vela e no local onde ela
guardou, para seu espanto, havia um fêmur humano. Trêmula, a mulher se prostrou a
rezar, acreditando que algum mal iria lhe acontecer.
O dia foi longo. Pouco antes da meia-noite alguém bateu na janela. Petrificada
de medo, ela foi atender, devolvendo o osso para a mulher de túnica, da noite anterior
(fig. 10-A). E, para a sua surpresa, o osso converteu-se em vela novamente.
Foi então que a mulher de túnica lhe disse: “Que isto lhe sirva de lição! A
Procissão das Almas não é para ser vista por ninguém que vive. Largue de curiosidade e
deixe de rondar a morte”. Em seguida, a mulher sumiu na escuridão da noite.
Figura 10 – Fotos e cenas do espetáculo “Valei-me!”. A foto (A) é o desenho de Otoniel Oliveira para a cena “Procissão das almas”. As fotos (B) e (C) são os registros da cena correspondente (foto: Raimundo Santos).
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No espetáculo, essa cena foi concretizada por uma mulher entre o vão de duas
janelas, onde uma ladainha é tocada ao fundo. Na cena, tem-se a travessia de sujeitos
vestidos com uma túnica branca, como é visto na fig. 10-B. Observa-se ainda na fig. 10-C
a bailarina Andréa Torres em interação com a imagem projetada em cena.
d) Matinta
Mati-Taperê, também conhecida como Matinta, é uma lenda comum na
Amazônia e também em algumas regiões vizinhas. Trata-se da metamorfose de uma
mulher que sai à noite mendigando tabaco e, ao mesmo tempo, agourando os mais
desavisados. Em sua forma de pássaro, ela é popularmente chamada de rasga-mortalha,
uma coruja característica da região que emite sons durante o voo.
Segundo a lenda, por onde ela sobrevoa, provavelmente morreu ou morrerá
alguém. Para se livrar do agouro há uma troca, uma negociação. Ela retira o agouro se o
caboclo oferecer fumo ou café para ela em sua forma humana, que vai buscar no dia
seguinte.
Há relatos que, nas imediações do bairro do Umarizal, na capital paraense, um
caboclo caminhava na rua até ouvir o grito da “Matinta”. Ele não se intimidou porque
sabia como prendê-la. Ele conhecia uma mandinga que aprendera com o seu avô.
A mandiga consistia em fincar cruzado no chão uma tesoura, uma chave e um
terço. E assim ele fez a mandinga. Pela manhã, no local da mandinga, havia uma mulher
de uma morada distante se contorcendo no chão, pedindo para que a soltassem.
Chamaram a polícia que logo a soltou, pois não havia uma acusação formal contra ela. E
como não havia provas de que era ela que virava o bicho, não pode ser levada presa.
Da mesma forma como a história é contada, a narrativa em cena também é
retratada, incluindo-se na cena do espetáculo o diálogo com o poema de Fernando
Pessoa, denominado “Cruz na porta da tabacaria”.
A cena (Fig.11) é conduzida por uma mulher que nunca mostra o rosto e um homem que demonstra medo o tempo inteiro.
110
Figura 11 – Cena “Matinta” (foto: Raimundo Santos).
A mulher é interpretada pela bailarina Priscilla Nascimento e o homem pelo
bailarino Charles Wanzeler. Ambos “representam” o agouro da Matinta.
Figura 12 – Desenhos de Otoniel Oliveira para a cena “Matinta”. (fonte: acervo pessoal do autor).
Ao fundo da cena são projetadas imagens em arte sequencial (fig. 12). E elas
também conduzem a narrativa.
111
e) Homúnculo da Sé
Conta-se que, por volta de 1930, um cidadão se direcionava para a novena de
Nossa Senhora da Piedade, que ocorria na Igreja da Sé, localizada no bairro da Cidade
Velha, em Belém.
Na ocasião, o cidadão estava atrasado e já pensava em desistir quando de
longe avistou as portas da igreja entreabertas. Ao atravessar a rua com o propósito de
ainda adentrar a novena, o homem foi atacado por uma forma humanoide e peluda, que o
arranhou todo e tentava arrastá-lo para o bueiro (Fig.13-A).
O rapaz conseguiu se desvencilhar da criatura e correu. Tão logo a vizinhança
chegou para socorrê-lo, a criatura havia desaparecido misteriosamente em direção ao
bueiro.
Figura 13 – Cena “Homúnculo da Sé”. A foto (A) é o desenho de Otoniel Oliveira para a cena “Homúnculo da Sé”. A foto (B) é a cena correspondente (foto: Raimundo Santos)
Em “Valei-me!” essa cena se passa em diagonal, onde, de um lado está a
criatura, e do outro, o devoto. A cena é cantada ao vivo e os textos coreográficos da
criatura não são definidos, uma vez que se estabeleceu entre o intérprete e coreógrafo que
a criação se daria em ato (Fig. 13-B).
Na figura 13 tem-se as duas sequências: a desenhada e projetada durante o
espetáculo e a interpretação dos bailarinos em cena, em movimentos coreográficos dentro
do ato.
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f) Porca do Reduto
Em um determinado período de tempo não definido, no bairro do Reduto, em
Belém, sempre que a vizinhança se juntava para conversar em grupo, aparecia uma porca
que cruzava o caminho das pessoas derrubando canecas, garrafas e jogos de cartas.
Enfim, tudo o que compunha a cena festiva do grupo. Ela sempre aparecia de maneira
inesperada, saindo de um matagal para outro, cujos grunhidos estridentes atrapalhavam a
todos.
Certa vez, a população se armou e esperou a aparição do animal. Após
ouvirem os primeiros roncos em direção ao grupo, surraram a porca até a morte. No dia
seguinte, o corpo da porca havia desaparecido e, no mesmo lugar, havia o cadáver de uma
mulher que morava nas redondezas. Vendo a mulher inerte, a população começou a
desconfiar e a afirmar que se tratava da mulher que se metamorfoseava no animal morto
na noite anterior.
Figura 14 – Cena “A porca do Reduto” (fonte: acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos).
Em “A porca do Reduto” a cena se passa em diagonal ao palco, no qual duas
mulheres se misturam em um ser amórfico, com movimentações experimentais e sempre
realizadas em direções opostas entre elas (Fig. 14).
Na cena, observa-se, ao fundo, a projeção dos desenhos relacionados à
história, que reiteram a narrativa construída no palco.
113
g) A moça sem rosto
Segundo relatos dos moradores do bairro do Guamá, por volta da década de
40, um funcionário da estação de trem localizada próximo de onde hoje é o Terminal
Rodoviário de Belém, voltava pra casa sempre pela avenida José Bonifácio na direção São
Braz – Guamá.
Sujeito muito paquerador, certa vez seguia em direção à sua casa quando
encontrou com uma mulher, segundo “ele” muito formosa de corpo. Ela caminhava
segurando uma sombrinha e usava um véu que lhe cobria o rosto.
Galanteador, o rapaz aproximou-se da dama e começou a puxar conversa. A
moça, no entanto, mantinha-se lacônica, respondendo quase sempre com frases curtas e
monossilábicas.
Ao longo do trajeto, ele pedia, insistentemente, para ela para retirar o véu, pois
gostaria de ver o seu rosto. Mas ela não atendeu ao pedido dizendo que se ele visse seu
rosto, jamais iria encontrar o caminho de sua casa novamente. Acreditando tratar-se de
uma desculpa esfarrapada para livrar-se dele, o homem prosseguiu com perguntas
inconvenientes.
Em um dado momento, como que tomado por um impulso, ele arrancou-lhe
o véu, constando para seu espanto que ela não tinha rosto. No lugar dos olhos, da boca e
do nariz, não havia nada. Ainda paralisado pelo susto, ele foi atacado por ela, mas
conseguiu desvencilhar-se e escapar correndo pela via pública.
Há relatos de versões de que ela seduzia os homens e costumava levá-los até o
seu túmulo, fazendo-os adormecerem para que acordassem no dia seguinte sobre sua
lápide. Outros relatos, porém, afirmam que alguns dos homens que foram levados até o
seu túmulo, jamais foram vistos novamente.
No espetáculo, essa cena se desenvolve pela interação da figura feminina,
vivenciada pela bailarina Priscilla Nascimento e de mais três figuras masculinas, pelos
bailarinos Diego Jaques, Charles Wanzeler e Kleber DüMerval.
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Figura 15 – Cena “A moça sem rosto” (Fonte: acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos)
A figura 15 mostra um momento da cena em que os três homens estão
paralisados, enquanto a bailarina Priscilla Nascimento (à esquerda) faz um solo ao som de
Sonata ao Luar, de Beethoven. Sua coreografia é composta por movimentações bem
sedutoras e convidativas, contudo o seu rosto nunca é revelado pelo véu preto que o
encobre.
h) A mulher do táxi
Essa é uma narrativa encontrada em algumas cidades do Brasil, cujos relatos
referem-se a diferentes tipologias femininas, ou seja, a uma “mulher-aparição”, a “loura
do banheiro”, a “mulher de branco”. No caso de Belém, é a “mulher do táxi”.
Segundo relatos, uma jovem chamada Josefina ganhava, em todos os dias de
seu aniversário, um passeio de táxi pelas ruas da cidade. Como no século passado, possuir
um carro era um luxo somente possível para as classes mais abastadas, e nem sempre
acessível aos outros grupos sociais, e pelo fato da moça gostar muito de automóveis, ela
ganhava de seu pai o tal passeio.
Essa história ganha aura de mistério quando um motorista de táxi afirma ter
conduzido uma jovem do bairro de Nazaré em direção ao Cemitério Santa Izabel, no
bairro do Guamá, na mesma data de nascimento de Josefina. Lá, a moça desceu e
115
solicitou que o motorista cobrasse a corrida de seu pai, no mesmo endereço onde
embarcou.
Ao retornar ao endereço, o motorista desce do carro, bate à porta e explica
que veio cobrar a corrida. O senhor que atende a porta afirma que estaria havendo algum
engano, pois sua única filha já era falecida há algum tempo. Assim que o motorista recebe
a notícia ele não acredita porque ela parecia tão real. Em seguida, reconhece a jovem em
um “retrato” na parede, para espanto de todos.
Há variações também na forma de como essa história é contada. Ora o trajeto
é cemitério-casa, ora casa-cemitério. Em comum nas narrativas, só sabemos que a
população afirma que, no túmulo de Josefina, apareceu um broche em formato de carro
(táxi). Segundo relatos de familiares, o objeto não existia de fato, nem na foto onde era
reconhecida pelos taxistas.
No espetáculo, na narrativa da “Mulher do táxi”, as cenas se desenrolam com
um “duo” entre uma moça e um rapaz, vivenciando os personagens. Em volta, há figuras
que “representam” estátuas dos túmulos do Cemitério Santa Izabel, com pneus aos seus
pés. As cenas se passam entre quatro pneus pintados de branco, conforme é observado na
figura 16.
Figura 16 – Cena “A mulher do táxi” (fonte: acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos)
Ainda na figura 16, tem-se a imagem da cena no momento em que o bailarino
Lindemberg Monteiro faz movimentações que remetem ao ato de dirigir um veículo
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automotor, pisar no acelerador, guiar um volante etc. No chão se encontra a bailarina
Leidiana Ribeiro “representando” a “mulher do táxi” com movimentações de sedução.
Na foto, ela “puxa o pé” do “motorista”.
i) Libera-me
Essa cena não retrata uma narrativa em específico. É uma apresentação
poética, resultado de uma produção coletiva, de como pode ser compreendido o que é ser
um fantasma, ou seja, algo que é um “quase ser”, real, mas não material, embora se
corporifique substancialmente. O grupo o definiu como sendo “algo que pensa ser o que
não é mais”, um ser e não-ser transitando entre a dimensão da vida e a da morte (Fig. 17).
Figura 17 – Cena “Libera-me” (Fonte: acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos)
Nesse processo de ressignificação, a cena apresenta os bailarinos em estado de
torpor, olhar perdido e um descontentamento com a situação corrente. Na cena, há o
apelo pela libertação. A melancolia e o cansaço são visíveis nos corpos em cena (figura
17). Ao fundo, imagens de fósforos, riscando fogo, figurativizam o ato de acender uma
vela, o clamor divino para os mortos; ao mesmo tempo em que os olhares para o alto
reiteram as súplicas como a pedir suas libertações.
117
j) Aurora
Como em toda a mitopoética do espetáculo, a narrativa “sereno” se conduz
na premissa de que os mistérios são lançados à vista ao anoitecer. Assim, na finalização do
espetáculo, buscou-se um comparativo com o amanhecer, um contraponto noite-dia, o
momento em que se desperta para a vida real (Fig.18).
Figura 18 – Cena “Aurora” (Fonte: acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos)
Para que essa cena reiterasse o discurso instituído na narrativa do espetáculo,
partiu-se das narrativas coletadas na vizinhança do Cemitério Santa Izabel. Verificou-se de
mais importante que existe uma novena nas imediações do cemitério, todas as segundas-
feiras pela manhã, em intenção das almas presas no purgatório. A novena é em favor dessas
almas para que as mesmas se libertem.
Alguns momentos da novena foram gravados e incorporados à cena “Aurora”,
cuja sonoridade de vozes serviu de trilha, conduzindo os bailarinos para fora do palco. É
o momento da retirada do corpo do espaço cênico, de desconstrução dos elementos ao ato
(Fig.18), para reiniciar um “novo dia”, após cumprido o ato de fé e de caridade para com
essas almas. Nesse momento é projetada ao fundo a ficha técnica, reiterando o final do
espetáculo.
118
3.3.3 Análise semiótica de homúnculo da Sé
O objetivo da semiótica discursiva é o de estudar a significação em seus
mais variados suportes textuais e diversidade de linguagens, ou seja, como o sentido
converte-se em significado e as estratégias discursivas para isso. Em “Valei-me!”, o
texto de “Homúnculo da Sé” envolve em si uma corporificação e materialidade
discursiva de caráter sincrético, por conter textos: gestual, imagem, fala e
sonoridade. Por essa particularidade, essa é a cena do espetáculo que será analisada
mais detalhadamente, seguindo o preceito metodológico da semiótica discursiva,
denominado de percurso gerativo de sentido.
3.3.3.1 O homúnculo da Sé
Como já citada anteriormente, essa parte do espetáculo apresenta
cenicamente a narrativa coletada na cidade de Belém (PA), sobre a história de uma
pessoa atacada por uma criatura, espécie de humanóide, no momento em que ia
para a novena de Nossa Senhora da Piedade, na Igreja da Sé, no bairro da Cidade
Velha.
A cena se passa em palco italiano25. O clima é levemente tenso, devido à
continuidade na sequência em profusão com a da anterior “Matinta”, que se funde,
em dado momento, com “Homúnculo”, como podemos ver nos quadros da figura 19.
Ao fundo há a exibição das imagens narrativas em plano sequencial, ao
som de um coro de música sacra, remetendo a cena ao sagrado, reiterada pela
imagem da igreja ao fundo, situando o enunciatário no local onde o discurso se
concretiza.
25
Formato de apresentação onde os espectadores ficam apenas de frente para os artistas, que atuam em um espaço cênico semelhante a uma caixa envolta de panadas, nas laterais e atrás. O espaço é retangular fechado nos três lados, com a quarta parede visível ao público frontal através da boca de cena, possui as formas retangular, semicircular, ferradura ou mista. (CAMPOS, 1989, p.42).
119
Figura 19 – Cena herdada de “Matinta” . Na foto (A) a “matinta” se contorce no centro do palco. Na foto (B) a cena “Homúnculo da Sé” se inicia. (Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos).
A cena se conduz através de elementos sacros; homem e criatura em
ângulos oposto numa diagonal cênica da direita para esquerda, do fundo para frente.
A personagem humana segue em diagonal em direção ao centro da cena, e, no foco
central, canta “Stabat Mater Dolorosa”, que significa "A mãe permaneceu cheia de
tristeza". Esse hino medieval narra o sofrimento de Maria, a mãe de Jesus, durante a
crucificação, uma referência à novena de Nossa Senhora da Piedade, que é
figurativizada pela imagem de Maria com o filho morto nos braços.
Figura 20 – Nossa Senhora da Piedade (Pietá) em mármore feita por Michelangelo em 1499 (Fonte: acervo da Basílica de São Pedro, Vaticano).
A composição musical escolhida para a cena foi a de Antonio Vivaldi,
respeitado compositor italiano do movimento barroco tardio. A letra é atribuída ao
Papa Inocêncio II e diz o seguinte:
120
“Stabat mater dolorosa
juxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius”.
Cuja tradução é a seguinte:
“De pé, a mãe dolorosa
junto da cruz, lacrimosa,
via o filho que pendia”.
Durante o hino, a criatura se contorce no canto esquerdo do palco,
quando então, ao final do canto, ataca o homem no foco central, reproduzindo a
mesma posição corporal da imagem projetada ao fundo.
3.3.3.2 A linha que conduz o sentido
Segundo Fiorin (1997), o percurso gerativo de sentido é um “simulacro
metodológico”, ou seja, é um procedimento que nos auxilia na leitura e
interpretação de um texto, uma aproximação do significado daquilo que se
apreende, assim como nos auxilia no processo criativo da comunicação, na
elaboração de um texto, substancialmente pelos elementos que o compõem.
Para analisarmos um texto é necessário que levemos em consideração
dois aspectos importantes da semiótica: o plano de expressão e o plano de conteúdo. O
primeiro aspecto corresponde à apreensão imediata do texto, naquilo em que ele é
“reconhecível” ao mundo natural, num processo de iconização. O segundo aspecto
apresenta-se, a partir da materialização do plano de expressão, na construção do
significado do texto, que vai do nível mais simples e abstrato, ao mais complexo e
concreto, cujo movimento é denominado percurso gerativo de sentido.
A rigor, é no plano de conteúdo que se encontra o significado do texto,
porém, não se localizam os sentidos sem passar pelo plano de expressão. Há uma
121
correspondência recíproca. Expressão e conteúdo são inter-relacionados, um
pressupõe necessariamente o outro.
Para análise de “Homúnculo da Sé” tomamos como referência o percurso
gerativo de sentido, a partir dos seus níveis fundamental, narrativo e discursivo.
Na instância semio-narrativa do percurso de geração de sentido são os níveis
fundamental e narrativo que determinam a sua construção. Em um só plano de
análise posterior a elas, a semiótica delibera o nível discursivo, que é o da
concretização das instâncias anteriores.
3.3.3.2.1 Nível fundamental
Cabe aqui apresentar uma diferenciação entre o nível fundamental do
espetáculo como um todo e o da cena, enquanto um recorte do espetáculo.
No espetáculo, o nível fundamental se apresenta pela polaridade real
versus imaginário e, na cena aqui analisada, compreende uma das tematizações, a
religiosidade, aqui apresentada semanticamente pela oposição bem versus mal.
Partindo do princípio de que tudo o que é sagrado e religioso tem
previamente uma conotação de afirmação eufórica, a personagem humana, sujeito da
enunciação, representa a busca do bem, já que o mesmo deseja ir à igreja rezar; em
contraponto está a criatura que o impede do pleito, ganhando ela, assim, uma
afirmação disfórica relativa à maldade, o mal, o ser demoníaco. Assim, na construção de
sentido na cena, a categoria religiosidade e a busca do sagrado são o fio condutor da
narrativa.
De maneira geral, a cena ressignifica o que já está embutido no
pensamento do enunciatário, de que o mal apresenta-se feio, disforme, algo
semelhante ao “demônio”, assim como as coisas belas do sagrado remetem à
“representação” do bem.
Nessa cena há outras categorias semânticas implícitas como medo, luta,
morte, vida, beleza, feiura, tristeza, maternidade, etc.
122
3.3.3.2.2 Nível narrativo
Nesse nível, a oposição semântica e as categorias semânticas, que estão
na base da narrativa nessa cena, assumem valorações utilizadas pelo sujeito no texto
e que envolvem enunciadores e enunciatários em uma dinâmica textual.
Um objeto de valor é definido como meta a ser atingida por um sujeito,
e através do uso de manipulações especificadas ele vai à busca de seus objetivos.
Portanto, no nível narrativo, a manipulação é o processo pelo qual o
destinador conduz o sujeito na busca do objeto de valor, a partir de situações que
são criadas para esse fim. O protagonista dessa cena, por exemplo, pode ser
simultaneamente destinador e sujeito, tal qual um “herói” que obtém de si mesmo a
missão de conseguir algo que lhe é precioso.
O trabalho do destinador é dedicado em transformar o texto
coreográfico na expressão da busca dos objetos de valor pelas pessoas, lançando-os
na aventura da narrativa.
Na semiótica discursiva destacam-se quatro principais tipos de
manipulação, a saber: tentação, intimidação, sedução e provocação. Veja o quadro 6
a seguir.
Quadro 6 – Os principais tipos de manipulação no nível narrativo.
Tentação Intimidação Sedução Provocação
O destinador propõe ao sujeito uma recompensa (estímulo positivo) com a finalidade de induzir à situação em favor do texto.
O destinador envolve o sujeito a fazer uma ação através de ameaças.
É quando o destinador, objetivando uma reação, manifesta um juízo positivo sobre a jurisdição, capacidade ou característica do destinatário (elogio).
Quando a jurisdição, capacidade ou característica do destinatário é julgada negativamente pelo destinador, objetivando dele uma reação (ofensa).
Na coreografia, do ponto de vista dos enunciadores, temos a construção
de elementos religiosos nos movimentos da personagem humana, em que a
narrativa conduz a estória de alguém religioso que sofre ameaça física para que não
atinja o seu objetivo, orar.
123
Na primeira sequência de texto-coreográfico de “homúnculo” foram
utilizadas várias posições corporais que remetem a vários cultos indistintamente,
assim como, o “sinal da cruz” foi representado das mais variadas formas, como
pode ser visto nas imagens da figura 21.
Figura 21 – Cenas de “Homúnculo da Sé”. Na foto (A), os movimentos de braços abertos indicam a crucificação. Na foto (B), os braços desenham uma cruz. (Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos).
Os braços são elementos fortes nessa imagem, já que quase toda a
coreografia é realizada pelos membros superiores. Já que na imagem de Cristo
crucificado é muito forte a visão dos braços abertos, assim como, as hastes de
madeira em oposições verticais e horizontais.
A primeira parte da sequência do texto-coreográfico compreende a
religiosidade do humano, que, ao entrar em cena, “expulsa” a matinta ainda no palco,
e ele passa a incomodar a criatura antagônica, o homúnculo, que entra em cena na
medida em que a matinta sai.
Na segunda parte, ocorre o uso da provocação com o canto do hino “stabat
mater” no qual a criatura começa a se contorcer, definindo que não se trata de um
“ser do bem”. Ocorre inicialmente uma provocação, que resulta em uma
intimidação da música para a criatura, já que a “criatura” reage não se deixando
intimidar a princípio.
Na terceira parte, há o ataque da criatura ao homem. Ainda no uso da
intimidação, a narrativa diz que, se não orarmos direito ou nos momentos de
necessidade, estaremos sujeitos a sofrer uma punição (ser atacado por demônios e
ficarmos desprotegidos). Essa enunciação é projetada ao enunciatário, já que o
mesmo vê as consequências de se andar só à noite, e estar atrasado para a novena.
124
Já sob um olhar mais abrangente, e abstraindo-se da narrativa em si,
podemos dizer que o espetáculo cênico “Valei-me!”, como um todo, utiliza da
tentação e sedução para que o enunciatário embarque no encantamento promovido por
um espetáculo de dança. A tentação no sentido de despertar a curiosidade nos
desfechos das cenas e no espetáculo como um todo. E sedução, no sentido de
estabelecer uma possível identificação entre os sujeitos espectador e os que
vivenciam as histórias, ao mesmo tempo em que leva o espectador a refletir sobre o
discurso instaurado no texto, no caso o espetáculo.
Fora da narrativa, existem elementos estéticos agradáveis aos olhos e aos
ouvidos, como luz, figurinos, a sonoridade, a beleza, elementos que servem para
envolver o enunciatário num clima “mágico” e dar a ele uma experiência agradável e
de satisfação, uma recompensa. Aí consiste numa estratégia de sedução do espetáculo
para com o público.
3.3.3.2.3 Nível discursivo
Nesse nível, o sujeito da enunciação converte a narrativa em discurso, ou
seja, ele corporifica, faz uso de recursos discursivos através de escolhas, tais como, o
tempo, o espaço, a ambientação, a cronologia estruturada, a não cronológica, as pessoas, os
personagens, os objetos, as figuras, as imagens, etc., para converter a narrativa em discurso.
Na cena, podemos ver várias estratégias discursivas na materialização da
narrativa. Para torná-la concreta, são usados vários elementos em cena tais como a
arte sequencial projetada ao fundo, que conduz o espectador na sequência dos fatos,
na localização do discurso, conforme mostrado na figura 22, na página a seguir.
Na arte sequencial, podemos visualizar o fio condutor da história
proposta, assim como a escolha dos elementos da construção da imagem, os traços
em preto e a cor vermelha que remontam a um ar soturno e tenso. Observa-se que
o quarto quadro possui cor diferenciada, um rubro mais vívido, que resulta em criar
um efeito de maior tensão no momento retratado. A imagem da criatura em volta de
traços circulares formando um raio de movimentação imprime velocidade ao
quadro, caracterizando a rapidez no ataque.
125
Figura 22 – Desenhos em arte sequencial de Otoniel Oliveira para a cena “Homúnculo da Sé”. (Fonte: acervo pessoal de Kleber DüMerval).
Outro elemento é o figurino do homem, composto por calça social e
camisa branca, que, além de emprestar ao personagem uma determinada seriedade,
ainda acrescenta uma atmosfera de ser uma pessoa mais adulta. A criatura, por sua
vez, não possui figurino específico, e sim, apenas um tecido em volta do rosto para
que as expressões faciais do bailarino ficassem deformadas. Isso pode ser visto na
próxima imagem (fig. 23).
126
Figura 23 – Cena de “Homúnculo da Sé”. (Fonte: Acervo pessoal do autor. Foto: Raimundo Santos)
Outra estratégia discursiva foi o uso do foco central iluminando o
personagem humano. O foco procura criar uma ambientação divina, com a luz do
alto oferecendo uma espécie de separação entre o homem e a criatura.
Também as panadas e o chão na cor branca emprestam ao ambiente um
clima frio e mórbido, já que, ao ser projetada a luz azul, todo o espetáculo é
conduzido para uma ambientação noturna. Por último, a sonoridade realizada em
latim através do hino “Stabat mater”, ainda que não seja compreendida a sua
tradução pela maioria dos enunciatários, empresta para a cena uma característica
sagrada e religiosa, uma vez que é muito comum para as pessoas, a presença do
latim em eventos religiosos.
Outras estratégias espontâneas peculiares à apresentação “em ato”
podem ser observadas. Por mais ensaiada que a “peça” tenha sido, sempre existe a
ocorrência de algumas variações, que se manifestam no momento da materialização
do espetáculo.
Por exemplo, na apresentação de “Valei-me!”, em sua estreia no IAP, em
dezembro de 2011, tivemos que abrir mão do mapa de luz, visto que houve um erro
técnico que impossibilitou a operação das luzes de maneira isolada, como seria
127
proposto anteriormente. Tínhamos que optar por uma única cor. Na ocasião, foi
escolhida a cor azul, o que acabou por emprestar ao espetáculo um ar cianótico,
ainda mais mórbido e fantasmagórico. Essa alteração foi incorporada em definitivo
à cena, fazendo parte do espetáculo.
Outro aspecto extremamente importante ocorreu durante a apresentação
do espetáculo. Devido a apresentação acontecer na sala de dança do IAP, localizado
ao lado da Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, o badalar dos sinos do
templo às 21 horas, aconteceu, no exato momento, em que a cena “Homúnculo da
Sé” projetava a imagem da Igreja da Sé ao fundo. Isso provocou nos presentes uma
inquietude que foi automaticamente percebida por todos. Isso nos mostra que o
acaso também pode ser um dos elementos formadores da enunciação, como o
ocorrido nessa apresentação.
Tudo é realizado referendado em conceitos e valores “acumulados” pelo
público. Suas sensações, memórias e arquivos formam uma espécie de rede
complexa de significação.
Essa relação é que dá uma espécie de sentido de vida instantânea e de
aprendizado. Portanto, o simples fato de assistir a um espetáculo não é bastante para
comportar a multiplicidade de discursos vigentes nas cenas.
Em se tratando de dança contemporânea, em especial “Valei-me!”, não
há a tradução direta de um discurso formado, pronto e finalizado, e sim um discurso
em ato, vigente e altamente mutável, embora previamente estabelecido.
O grupo percebeu que não há uma finalização do espetáculo, não
terminamos sua construção, o máximo que podemos fazer é abandonar a temática e
escolher não mais manipular esse discurso em específico. Entenda-se a palavra
“manipular” como manusear, operar e interagir com esse objeto.
Isso ocasiona uma situação peculiar. “Valei-me!” objetiva, acima de tudo,
o entendimento de que tratando-se de dança contemporânea, o discurso não possui
um “dono” e sim “usuários” que, em dado momento, tem voz ativa ou passiva, mas
todos são elementos constituidores e modeladores de sentido.
Do espetáculo, “homúnculo” é a cena com mais referências religiosas em
torno da polaridade entre o bem e o mal, e sua inspiração contemporânea remonta ao
comportamento díspare entre homem e criatura.
128
Como o vídeo foi o ponto de partida para essa análise, a cena filmada
acaba se tornando um complicador, uma vez que é outro texto, diferente do
espetáculo em ato presenciado na vivência do aqui e agora.
No aspecto da filmagem, “essa coerção cria um ritmo que se sobrepõe
ao andamento pensado pelo coreógrafo. Closes permitem um contato com
expressões dos bailarinos que não têm o mesmo efeito no teatro”. (TROTTA &
HERNANDES, 2005).
A filmagem registra, assim, a narrativa sobre outro olhar, em tempo e
espaço, diferentes do ponderado pelo coreógrafo, que ocorre em toda a sua
tridimensionalidade, a análise se diferencia ao se concentrar na cena em si, aqui o
olhar se lança para dentro da sala de exibição.
Ainda em relação aos aspectos discursivos em cena, apresentamos uma
simbiose: a composição entre imagem, o figurino e o cenário. Sem esquecer que
determinados sentidos dessa simbiose foram acrescidas da língua (latim) utilizada no
hino em cena. A própria luz azul constrói culturalmente a ideia da madrugada. É
possível distinguir aí uma das marcas do enunciador para o reconhecimento do valor
artístico do espetáculo.
Ao analisar os movimentos dos bailarinos, em relação com a trilha e os
efeitos do sincretismo de linguagens, vamos ao que o texto-coreográfico nos fala.
Inicialmente, a movimentação em diagonal do homem em direção à matinta que
ainda se contorce no chão. O homem sozinho fala de religiosidade na disjunção que
está manifestada pela sonoridade do coro gregoriano.
Uma vez gerada no espectador a ambientação de uma catedral projetada
na imagem ao fundo, cria-se o clima para o “inesperado” – o público aguarda a
reação da criatura que se encontra na diagonal inversa da cena. Uma figura não
convencional. Ela surge com movimentos animalescos e contorcendo os pulsos,
movimentações típicas de incorporações vistas em rituais religiosos não cristãos.
Rolando no canto do palco, a sua aparência é mesmo deformada pelo tecido envolto
no rosto.
A cena, neste instante, passa a ser cantada e o badalar imprevisto do sino
da Basílica de Nazaré é incorporado à cena e à música. A coincidência acontece,
durante toda a parte coreografada, quando ela constrói momentos ou sensações de
129
conjunção, que são dadas pelo hino. A duração entre estrofes e silêncio favorece a
introspecção e, por consequência, uma valorização dos movimentos da criatura no
canto esquerdo do palco.
Os dois bailarinos se enfrentam em um único movimento, realizado em
uma gestualidade complementar. Se pensarmos novamente em relação à semiótica
sincrética como “todo de sentido”, veremos que, na coreografia, a música Stabat
mater recebe nova carga dramática.
A dupla citada não é qualquer dupla; é na cena a representação entre o
bem e o mal. A coreografia, por conseguinte, figurativiza a realidade do contexto
imaginário de “Valei-me!”.
Mesmo inspirado em narrativas populares, o espetáculo tenta subverter
as histórias impregnadas no imaginário popular. Nessa perspectiva, tem-se a
gestualidade em oposição à quebra de linha dos movimentos sistematizados.
Lindemberg Monteiro afirma que, ao improvisar sua sequência, é
“atormentador” o momento de criar em cena. O “medo é real” quando se há a
possibilidade de não conseguir uma continuidade e fluidez da movimentação
proposta.
Ao final da apresentação ocorre o debate com a plateia a respeito do que
foi experimentado. A troca se dá com o objetivo de descobertas e possíveis
alterações cênicas futuras, um processo contínuo de investigação, e não apenas um
momento de tentativa de explicação do espetáculo.
A identificação ou não de significados e de codificação de enunciados se
dá em razão da interpretação do público. Essa composição subjetiva é componente
do entendimento da semiótica, que se dá como uma espécie de “contrato
fiduciário”, ou de fé, entre enunciador e enunciatário, e que se fundamenta em
valores e expectativas de crenças entre os sujeitos e não de cláusulas firmadas em
papel.
Exemplificamos um tipo de contrato que admite ao espectador imaginar
uma criatura ao ver um rosto disforme dentro de um tecido, bem como a
imaginação de outro tempo (madrugada) só pela difusão de uma luz azulada. Barros
(1988) nos diz que “o enunciador coloca-se como destinador-manipulador,
130
responsável pelos valores do discurso e capaz de levar o enunciatário, seu
destinatário a crer e a fazer”.
Em “Valei-me!”, houve um acordo muito importante: o espectador tem
a valoração de aguardar e vivenciar experiências estéticas. E parte da intenção do
enunciador é fazer o enunciatário alcançar esse objetivo. Um exemplo disso diz
respeito ao uso de figurinos, que remetessem a um visual de época, com certo
aspecto clássico. É um figurino formal, encontrado no dia-a-dia, do tempo que se
quis reportar as narrativas.
Esse afastamento temporal beneficia uma leitura plurisotópica, portanto,
uma narrativa plurisotópica, ou seja, um todo significativo que se organiza em torno de
uma rede de isotopias hierarquizadas que, segundo Greimas 26 , “é a interação
sintagmática de membros significativos idênticos ou semelhantes que originam um
plano homogêneo de leitura textual”. Isso nos permite perceber de maneira clara o
significado do texto pela coerência que apresenta na condução da narrativa.
Quanto às isotopias de tempo e de espaço figurativizadas também na
narrativa pelas vestimentas e cores utilizadas no espetáculo, são elementos de
escolhas que o enunciador estabelece como recursos discursivos para a
concretização do espetáculo.
3.3.4 A autonomia e ressignificação do texto
Ao final do espetáculo o grupo iniciou uma conversa informal com a
plateia para a continuidade de nossas experimentações.
Quando questionamos algo à plateia a respeito do espetáculo, a resposta
nunca é tão simples e depende da interpretação individual de cada um, e suas
conclusões só se dão quando a exibição do espetáculo de fato termina.
Em outras palavras, cada movimento apresentado durante a
apresentação vai acumulando significações até que sua pluralidade de vários sujeitos
se materialize em um discurso vigente.
26
Isotopia. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consulta em. 07/07/2013]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$isotopia>.
131
Vimos durante toda a construção deste estudo que na criação de um
espetáculo como “Valei-me!”, o texto é formado por vários sujeitos “falantes”,
inclusive o próprio espectador. O que ocorre é que o enunciatário não é sujeito
passivo, uma vez que a sua participação opinando ao final do espetáculo pode
implicar na ressignificação das cenas ou mesmo nas formas de apresentação, sem
alterar o enredo ou a narrativa.
Ao final da apresentação, o elenco conseguiu perceber, que, em sua
maioria, o público alcançou o entendimento das narrativas apresentadas, pelo menos
as mais comuns, as que já faziam parte do repertório imaginário de cada um,
entretanto, outras narrativas surgiram em cenas que teoricamente não estariam lá,
mas se presentificaram da mesma forma.
Por exemplo, na cena “A porca do Reduto”, onde a representação era a
mutação de uma mulher em porco, o policial Luís Guerreiro, de 47 anos de idade,
viu ali a narrativa de Cobra Norato e Caninana27, ou ainda, a lenda da Cobra Grande
que repousa sob a cidade de Belém, que, ao se mexer, causa tremores de terra.
Conta-se que existem túneis embaixo da cidade onde vive a imensa cobra. Luís
encontrou semelhança no formato das bailarinas com as cabeças cobertas em
movimentações rasteiras e, assim, ressignificou a cena com sua própria leitura do
que viu.
A terapeuta ocupacional Lia Paiva, de 36 anos de idade, ao ver a mesma
cena pensou se tratar de um “demônio” que arrastava alguma alma para as trevas.
Em seu depoimento, Lia afirmou que chegou a ver e sentir a presença da criatura
que julgava “horrenda”, uma clara materialização de imagem em ato.
Posteriormente em uma publicação do IAP28, ao catalogar os resultados
das Bolsas de criação experimental de 2011, encontrei o depoimento de Waldete
Brito29 que também fez referência à Cobra Grande:
27 Lenda amazônica que fala de uma imensa cobra (boiúna), que cresce de forma sobrenatural. Ao
rastejar pela terra firme, os sulcos que deixa se transformam nos igarapés. Conta-se que uma índia engravidou da boiúna e teve duas crianças: uma menina que se chamou de Maria Caninana e um menino chamado de Honorato (Norato). Para que ninguém soubesse da gravidez, a mãe tentou matar os recém-nascidos jogando-os no rio. Mas eles não morreram e nas águas foram se criando como cobras. (BOOP, 1998, p. 18).
28 Instituto de Artes do Pará
132
“A pesquisa cênica do artista Kleber Dümerval nos convida a uma viagem fantástica pelas estórias do imaginário popular conhecidas como a Moça do Táxi, Cobra Grande Embaixo da Cidade e Procissão das Almas/Igarapé das Almas. O pesquisador encontra distintas bifurcações estéticas, visuais e sonoras, por onde se pode pressupor a lógica e o sentido de cada quadro coreográfico. Em sua obra artística explora a subjetividade criativa tanto pelos gestos e movimentos esteticamente coreografados quanto pelos recursos das histórias em quadrinhos. Para isso, seleciona algumas imagens da mitopoética do Valei-me!, as quais ganham semântica pelos desenhos projetados no tempo e no espaço da cena. Tal espaço é dilatado na memória do interlocutor que segue nutrindo-se dos mitos-fantasmagóricos que povoam a dramaturgia desta dança”. (BRITO, 2012. p. 45.)
O interessante desse depoimento é que ele pode captar a essência
propositiva do espetáculo, embora seja atravessado pelas narrativas vistas em cena,
assim como pela interferência das falas de outras pessoas presentes no ato.
Embora “Valei-me!” possua um condutor criador (coreógrafo), o
espetáculo se metamorfoseia em um texto autônomo, onde cada um dos sujeitos da
enunciação se torna voz ativa no seu processo de corporificação. É um espetáculo
que “vive” de maneira documental e metafísica, “vive” na memória de quem entrou
em contato com ele, seja em ato, via recursos audiovisuais, ou até mesmo na
memória de quem lê a sua pesquisa de construção. Cada uma dessas maneiras
presentifica “Valei-me!” e o materializa de maneira peculiar, mas todas são formas
legítimas, no que se refere ao seu processo de significação.
29 É fundadora e diretora da Companhia Experimental Waldete Brito. É graduada em Educação Física, pela Escola Superior de Educação Física do Pará, e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Bailarina, coreógrafa e pesquisadora da dança contemporânea, dirigiu e escreveu o roteiro de todos os espetáculos da sua companhia. É professora do curso de Licenciatura Plena em Dança e curso técnico em dança da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criação de “Valei-me!” não se limita ao seu enunciado coreográfico. Seus
discursos vigentes desvelam um arcabouço cultural e artístico que vão além dos espaços
geográficos em que se apresentaram como, também, passeia pelo campo epistemológico.
Isso pode ser visto na maneira como os intérpretes criadores foram
fundamentais para as descobertas relatadas nesse estudo. Foram investigações que
dialogaram em diferentes campos, como a arte, a história em quadrinho, as narrativas
populares, a dança e a semiótica. Nota-se, neste trabalho, a influência de distintos campos
do conhecimento, como a linguagem, a semiótica discursiva, a teoria da comunicação,
bem como a dança propriamente dita.
Por sua vez, refletindo sobre os procedimentos de análise adotados, tem-se
que a semiótica discursiva, enquanto via de acesso, solicita por um olhar tão atencioso
sobre o seu objeto de estudo que proporciona avanços e relações de saberes em
dimensões não pensadas inicialmente.
Nesse processo, a descoberta de sentidos vem em favor do conceito de
“corpomídia”, um corpo que se torna meio, veículo na produção de sentido, na
enunciação de um discurso. Compreendendo o corpo na dimensão em totalidade do
sujeito pensante (corpo e mente), e espera-se que a partir da análise semiótica proposta do
espetáculo “Valei-me!”, se chegue a um entendimento de que o discurso, ora
corporificado em um espetáculo de dança, não pertence ao sujeito de sua criação, e sim,
está vigente sobre a voz ativa de um usuário. É um processo evolutivo de criação e
significação do texto materializado na dança.
Nesse contexto, a linguagem coreográfica do elenco de “Valei-me!” foi se
emoldurando ainda que cada cena do espetáculo possua suas particularidades justificando,
assim, o possível empenho da análise de cada parte realizada.
Como primeiro elemento comum entre as cenas de “Valei-me!” pode-se
destacar a ideia de “colaboração” na criação, que surge a partir da forma como o conceito
134
de criação compartilhada. Estes sentidos se unificam para compor um “todo” de
sentido do espetáculo.
Nesse contexto, se dá também o diálogo que o elenco de “Valei-me!” busca
estabelecer com o caráter híbrido que constitui a obra. E, neste percurso, semiótico por
natureza e estabelecido pelo olhar a partir da instância comunicativa, percebeu-se a
incrustação das influências das teorias semióticas discursivas na construção do espetáculo.
Tais características são evidenciadas pelo jogo coreográfico que se relaciona com a cena
multi-lingual composta por figurinos, iluminação, cenografia, som e pelo próprio
desenvolvimento da coreografia, materializadas na tríade: dança, narrativas e imagem.
Esta estrutura pode ser conferida pelas relações entre as coreografias seja por
repetições ou semelhanças, como também pelas suas fragmentações ou rupturas
semânticas, mantidas por um fluxo gerador de sentido. Nesse contexto, este corpo, uma
vez produtor de sentidos e que entra em diálogo com seu meio ou com a cena, possui sua
instância comunicativa quando se movimenta.
A enunciação se dá pelas relações, ou melhor, inter-relações entre o espaço de
representação deste corpo, que se movimenta quando dança, e seu meio o qual se
constitui por cenário, figurinos, iluminação e som.
Este corpo estabelece uma rede de sentidos e discursos vigentes ou semioses,
onde, neste espaço cênico, as relações de sentido se constituem na instância sígnica e
estética da obra em ato.
Dessa forma, observa-se uma possível mutação permanente da própria leitura
sobre a dança analisada, bem como de sua relação entre distintas temporalidades inferidas
nesse caso.
Nesse contexto, incide a linguagem coreográfica do espetáculo “Valei-me!”,
não somente por suas características estéticas e criativas, mas pelo poder de
“ressignificar”, em forma de arte, ou melhor, de espetáculo de dança, a conjuntura
narrativa de discursos populares em torno da temática fantasmagórica da cidade de
Belém.
Os processos de criação de “Valei-me” envolveram diferentes referências
técnicas, poéticas e estéticas que pertenciam a estilos e tradições variadas. Da mesma
maneira que sua realização e ressignificação exigiram intensa participação dos bailarinos.
135
O comparecimento do corpo que dança como corpo preparado, livre,
heterogêneo, dedicado e apaixonado pela temática casou com a correspondência entre a
obra coreográfica e o projeto de corpo dançante do intérprete que esse tipo de processo
de criação proporciona.
Ela referencia de maneira semelhante às relações de vida e dança, em que
mostra que o bailarino traz à tona suas experiências e práticas artísticas na qual
experimenta em seu corpo a materialização de um enunciado proposto. Tudo converge a
um estado de latência de emoções que expõe memórias mais ordinárias e mais íntimas,
conduzidas por um projeto coreográfico do qual fazem parte.
Foi fundamental a criação de um elo de interação que permitiu discutir e
ampliar o conceito, antes limitado, dos elementos técnica, expressividade e movimento
humano, um discurso muito impregnado nas salas de aulas de dança e em composições
coreográficas. Em “Valei-me!”, houve a libertação da preocupação com o quesito técnica,
em favor da experimentação de movimentos coreográficos. A movimentação foi baseada
nas experiências emocionais do intérprete. Há, nessa construção, a busca pela inovação
estética e a aproximação da criação em ato. Muitas das cenas só possuem direcionamento
cênico e não expressam um texto-coreográfico definido.
Buscamos levantar questionamentos com o objetivo de ir além da “boa
formação técnica e profissional” que discute o entendimento de técnica segundo as
questões que já foram abordadas nesse texto.
Neste estudo, o fenômeno é tratado de maneira breve como um fazer
humano. A cena em ato é o momento da materialização de sentido e como ação
fenomenológica está submetida ao acaso, a manifestação de um estado de graça no
instante da apresentação do espetáculo.
Na composição coreográfica representar é um fundamento presente no
descobrimento dos movimentos na coreografia e, portanto, não se equivale a um meio
somente, mas em algo que se baseia num fazer artístico, no movimentar significativo.
Penso que a minha pesquisa nessa área ainda precisa se solidificar, necessita
encontrar formas mais precisas, de como se processa o relacionamento do público com
os espetáculos, observando quais mediações são preponderantes no ato de atingir um
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maior número de “usuários” ativos, e qual é a participação desses “usuários” na
composição dos hábitos e atitudes dos resultados produzidos.
É importante ressaltar que o olhar pelo viés de alguns princípios do
pensamento semiológico permitiu imaginar estes elementos, simulando uma possibilidade
de conversação com o mundo, no campo da comunicação.
Assim, novos desafios me são impostos a este eixo teórico. O ato de
experimentar novos conceitos me fez ver, de maneira diferente, o caminho de chegar a
um produto materializado, a criação de um espetáculo de dança, que, por isso, ainda se
apresentam em um contexto de adaptação e me põe em busca dessa nova forma, pelo
menos para mim, de se expressar, quebrando paradigmas e abandonando a antiga fórmula
de criar espetáculos e de interagir com o público. Muito embora se tratando de uma
manifestação artística, torna-se muito subjetivo o limiar da produção de sentido, dando ao
enunciado vigente, um prisma de olhares, textos e significações diferentes.
E foi pensando na edificação e na execução deste espetáculo, que foram
tomados diversos rumos, mas um em especial foi mantido: o de preservar o caráter de
pesquisa no processo de criação, deixando com que o espírito inquieto do homem, que
quer colaborar, vença os obstáculos impostos por nossa sociedade, principalmente para
quem vive exclusivamente da arte, no caso, a dança, mas buscamos novos horizontes para
nos manter na produção de manifestações artísticas de nossa terra. Basta buscar e querer a
alternativa.
Os sentimentos de contentamento que vemos nos olhos dos que
participaram dessa construção nos engrandece o espírito. E, de certa forma, procuramos
desenvolver um trabalho que promova a cultura do paraense através do nosso espetáculo.
E, ao convertermos em arte contemporânea esses esforços, cremos estar reforçando uma
ideia, como forma insubstituível de conhecimento dos nossos valores mais
transcendentes.
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ANEXO I
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