Luana, 13 anos

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4 | ESPECIAL | SALVADOR, DOMINGO, 10/12/2006

EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL ❚

MARINEIDE OLIVEIRA

"Fizeram aquela menina deescrava. Quando a encontrei,ela estava sentada nacalçada, em frente ao prédioonde moro, chorando.Perguntei o que havia.

Ela contou que tinhaacabado de fugir de uma casade massagem onde eraobrigada a se prostituir. E erauma menina tão bonita...

Então eu disse: ´Nada vai tefaltar não, se você quiser vemmorar comigo. Aqui você nãovai passar fome, nem vai serfeita de escrava. Vou lhe acolher

como se fosse a filha que eusempre quis ter. Não precisater medo de nada´.

Fomos a uma loja e compreiroupas novas para ela nuncamais ter de voltar naquele lugar.

Depois de uns dias, fomosaté o Juizado da Infância eJuventude, onde contamostoda a história. O negóciofoi parar na Justiça, tive de irlá testemunhar depois.

Fui mãe dela por uns seismeses. Dei conselho, falei paravoltar a estudar. Ela tinha 16anos e era muito boa emmatemática. Mas não pareciamuito interessada em escola. Ela

O QUE PODERIA SER FEITO PARA EVITAR A EXPLORAÇÃO

DEPOIMENTO ❚

“Você não vai ser feita de escrava”REJANE CARNEIRO

ABANDONO ❚ Em Barreiras, apenas esteano, 23 adolescentes engravidaram

Vítimas deexploração egrávidas aos14 anosRICARDO MENDESr i c a rd o m e n d e s @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Um metro e meio de altura, 13anos e aparelho celular pré-pagonas mãos. “Acabei de vir do postoonde fiz teste de gravidez”, contaLuana*. De janeiro a setembrodeste ano, 23 meninas engravida-ram em Barreiras, a 850 quilôme-tros de Salvador. Todas têmmenos de 14 anos e parte delasvai dar à luz porque foi exploradas e x u a l m e n t e.

Pais, vizinhos, amigos, autori-dades, uma cidade inteira, pode-riam ter evitado isso. Mas Barrei-ras convive em silêncio com histó-rias como a de Daniele*.

Ela teve sua primeira relaçãoaos 11 anos e depois passou a fazersexo em troca de até R$ 50. “Eutento parar e não consigo”, diz. Pe-la legislação, ela também é vítimade estupro presumido.

Dados do SISPrenatal, sistemadesenvolvido pelo Ministério daSaúde dentro do Programa de Hu-manização no Nascimento, reve-lam que o número de crianças eadolescentes grávidas na cidade,nos primeiros nove meses desteano, é 11,5 vezes maior que em to-do o ano de 2005.

“Não sei mais que providênciadar. Amo minha filha, mas se tiveralguém para tirar ela desta situa-ção, eu entrego”, lamenta a mãe deLuana. Se o combate àexploração sexual é prioridadede prefeituras, governos estaduale federal – como freqüentementeanunciado –, o que explicaria asituação?

“Só vai preso quem é pobre”,

Denunciar é a única forma de pressionar autoridades para que vítimas sejam protegidas e exploradores acabem processados, julgados e presos. Veja o que pode ou poderia ser feito nos casos abaixo

Marineide acolheu uma adolescente de 16 anos explorada na capital

não fazia nada, só ficava emcasa o dia inteiro. Era muitoquerida e educada.

De repente, foi embora e nãome deu mais notícias. Deve tervoltado para a cidade natal, noSul. Não sei o nome de seuspais, nem de parentes.

Fiz minha parte. Torço paraque, se ela estiver passando porisso de novo, em qualquer lugardo Brasil, encontre alguém combom coração que a ajude semesperar nada em troca".

MARINEIDE OLIVEIRA tem 50 anos, édona-de-casa e testemunhou no caso,ocorrido em Salvador em 1997.

Luana, 13 anosTeve aprimeirarelação aos11 anos deidade comum homemde 22 anos.

O QUE PODERIA SER FEITO: os pais poderiam terdenunciado o homem por estupro presumido, de acordocom o Código Penal. Luana teve relação sexual com idadeinferior à definida como sendo a "de consentimento". Paraa lei, não tinha discernimento ao decidirfazer sexo, nem maturidade para avaliar as implicações doseu ato. A pena para o adulto pode variar de 6 a 10 anos.

Dos 11 anosaos 13 anos,Luana mantevere l a ç õ e ssexuais emtroca ded i n h e i ro .

O QUE PODERIA SER FEITO:Entre outros, o crime é de corrupção de menores,de acordo com o Código Penal, com pena de 3 a 8anos. Qualquer pessoa pode denunciar o caso. Jápelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o crimeé submeter jovem à exploração sexual, artigo244-A. Pelo ECA, a pena é maior, de 4 a 10 anos.

Hoje,aos 13anos deidade,Luananão estáestudando.

O QUE PODE SER FEITO:os pais podem ser responsabilizadospor abandono intelectual, deacordo com o artigo 246 do CódigoPenal. Pai e mãe estão sujeitos apena de 15 dias a um mês dedetenção ou pagamento de multa.

Passados 2 anos, a famíliade Luana continua sendonegligente com ela semconseguir impedir que aadolescente seja explorada.

O QUE PODE SER FEITO:a qualquer tempo, pessoainteressada em ter a guardade Luana e cuidar da suaeducação e desenvolvimentopode entrar com processo naJustiça pedindo a destituiçãode pátrios poderes. Os paispodem perder a guarda dafilha se for comprovado quehá negligência, mas este é umprocesso demorado e apenasa falta de condições materiaisnão é motivo suficiente paraque pais biológicos percam odireito de educar seus filhos.

Aos 13 anos de idade,Luana fez teste de gravidezem posto de saúde.

O QUE PODERIA SER FEITO:o médico que a atendeupoderia denunciar estupropresumido, alertando asautoridades, queprocederiam investigação eacionariam programas sociaispara dar acompanhamentoe assistência à joveme à família dela.

A mãe de Luana não se sentecapaz de cuidar da filha.

O QUE PODE SER FEITO: elapode abrir mão dos pátriospoderes, no Juizado da Infânciae da Juventude, oferecendo afilha para adoção. O pai efamiliares serão consultadossobre a situação. Serãoentrevistados por assistentesocial, psicóloga e terãoaudiência com juiz. Ele decidiráo destino da jovem com basenos critérios estabelecidospela legislação brasileira.

Luíza, 14 anosLuíza é exploradasexualmente desde os 12anos. Ela é abordada paraencontros sexuais em um barda cidade, onde consomecerveja e convive com outrasjovens na mesma situação.

O QUE PODE SER FEITO:O dono do bar pode serdenunciado por qualquerpessoa como facilitador deexploração sexual. A penavaria de 4 a 10 anos e perdado alvará de funcionamento.

O padrasto de Luíza tentaabusar sexualmente da jovem,que já denunciou a situaçãoà mãe, mas não obtevesolidariedade e solução.

O QUE PODE SER FEITO:a própria Luíza pode procuraruma delegacia ou um serviçode proteção à infância, comoConselho Tutelar, ProgramaSentinela ou Juizado daInfância e Juventude.

Joana, 16 anosEla alicia colegas para aexploração sexual e foiexpulsa da escola.

O QUE PODE SER FEITO:a diretora da escola ouprofessora pode conversarcom os pais da menina parasaber o que está acontecendo.Mesmo contra a vontade dospais, o caso pode serdenunciado às autoridades,que vão investigar e ofereceracompanhamento à criança.

responde Leni Almeida, coorde-nadora do Programa Sentinela(criado pelo governo federal paracombater a exploração). A TARDEpesquisou os livros de registros deinquérito da Polícia Civil, na Dele-gacia Circunscricional de Barrei-ras. Em dois anos, de janeiro de2004 a novembro de 2006, há cincocasos de crimes que se enqua-dram no artigo 244-A do Estatutoda Criança e do Adolescente. En-tre os indiciados, apenas pessoasde baixo poder aquisitivo.

“As meninas dizem que os ex-ploradores têm carro de luxo e tra-balham no centro. Quem vai atrásdeles? Quem denuncia?”, pergun-ta Almeida. “O que chega de de-núncia, nós apuramos”, afirma odelegado regional Vinicius MorBra n d ã o.

O sexo dessas crianças explora-das é comprado até por um pratode comida, negócio intermediadopor agenciadores que recebemR$ 50 por menina. “Tem uma mu-lher que arruma os homens e avisaas garotas por telefone. Liga nocelular delas”, explica Juliana, de19 anos, que já foi atendida peloSe n t i n e l a .

Lugar para os encontros tam-bém não faltam. Há dezenas depousadas espalhadas na cidade,sem alvarás nas paredes. O pri-meiro contato acontece, geral-mente, em bares como o Topázio eo Barril, que ficam ao lado de umBatalhão da Polícia Militar, na pra-ça de Barreirinhas, um dos bairrosdo município.

“Tem um monte de meninasque saem daqui, somos mais dedez”, disse Luíza, 14 anos, fre-

qüentadora do Topázio. Ela foi ali-ciada por uma colega de escolaque tem 16 anos e acabou expulsade colégios três vezes só nestea n o.

O comandante do 10º Batalhãoda Polícia Militar de Barreiras, co-ronel Batista Reis, concorda que asituação é grave. “Temos 470 po-liciais para fazer o trabalho pre-ventivo e repressivo em 13 muni-cípios. É pouco.”

Quando questionado sobre afalta de ação da 2ª Companhia daPM, que fica em frente ao bar To-pázio e do lado do bar Barril, ele re-conhece que é preciso intensificaras ações, mas sinaliza com algomais grave: “O Barril, por exem-plo, é de um policial civil. Estamosinformando o delegado regional”.Vinicius Mor Brandão, titular da11ª Coordenadoria da Polícia Ci-vil, diz que não tem conhecimentode que um agente policial seja do-no de bar na cidade. “Estou sendoinformado disso agora. Se houvera denúncia, nós apuramos”.

SOFRIMENTO – “A vida é difícil”,sussurra Luíza, depois de contarque a mãe não acredita quandodiz que o padrasto é um abusador.“Ele fica tentando me ver nuaquando estou no quarto emcasa”. Por causa da denúncia feitaà mãe, a adolescente acabou sen-do proibida pelo padrasto de par-

ticipar de um projeto social quetenta resgatá-la da situação de ris-co. Passa o dia perambulando pe-las ruas da cidade.

“Ela foi chamada de prostitutapelo padrasto na frente de ummonte de gente”, conta o educa-dor social e vice-presidente doCentro de Defesa da Criança e doAdolescente (CDCA) em Barrei-ras, Edvaldo da Silva Costa.

Luíza é amiga de Letícia*, 18anos, desde os 10 explorada se-xualmente. “A gente apanha mui-to dos caminhoneiros”. Quandonão estão no bairro de Barreiri-nhas, as duas vão de carona, nasboléias de caminhões, até a cidadede Luís Eduardo Magalhães, 900km de Salvador e a uma hora deBa r re i ra s.

O posto Lameirão, na BR-242que dá acesso a Luís Eduardo, éonde fazem sexo com os caminho-neiros. Lá, os frentistas informamque meninas de 13 e 14 anos po-dem ser encontradas no Bar daHelô, nos fundos. O estabeleci-mento estava fechado no dia emque A TARDE foi ao local. Mas noboteco vizinho, enquanto ajeitavauma mesa de sinuca, um pai ofe-receu a filha que tinha acabado deacordar. “Minha menina levan-tou. Vá lá dar uma olhada nela”.

Como os responsáveis por essajovem, os pais de Letícia, em Barrei-ras, sabem que ela ganha dinheiroem troca de sexo, mas não admitemfalar sobre o assunto. Ao contrário,se mostram indignados com ques-tionamentos. “É melhor você sumirdaqui”, ameaçou o pai.

* NOMES FICTÍCIOS

1 | Patrícia, de 12anos, recebe presentesdos exploradores2 | Luíza denunciouabuso do padrastro3 | Luana abandonoua escola4 | Mãe de Luana: chorodiário e negligência5 | O bar Topázio eLuíza no primeiro plano6 | Criança consome cerveja

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FOTOS: RICARDO MENDES