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7/23/2019 Luiza Leite Tese
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educao e Humanidades
Instituto de Letras
Luiza Ferreira de Souza Leite
Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados
Rio de Janeiro
2013
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Luiza Ferreira de Souza Leite
Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados
Tese apresentada, como requisito parcialpara obteno do ttulo de Doutor, aoPrograma de Ps-Graduao em Letrasda Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao: LiteraturaComparada.
Orientador: Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause
Coorientadora: Prof. Dra. Maria Jos Cardoso Lemos
Rio de Janeiro
2013
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CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese desdeque citada a fonte.
__________________________ __________________Assinatura Data
L533 Leite, Luiza Ferreira de Souza.Modos de ler e ser: a poltica dos livros ilustrados / Luiza Ferreira
de Souza Leite. 2013.216 f.
Orientador: Gustavo Bernardo Krause.Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Livros ilustrados para crianas Teses. 2. Literaturainfantojuvenil Ilustrao de livros Teses. 3. Sentidos e sensaesem crianas Teses. 4. Percepo nas crianas Teses. I. Bernardo,
Gustavo, 1955-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Instituto de Letras. III. Ttulo.
CDU 82-93:655.533
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Luiza Ferreira de Souza Leite
Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados
Tese apresentada, como requisito parcialpara obteno do ttulo de Doutor, aoPrograma de Ps-Graduao em Letrasda Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao: LiteraturaComparada.
Aprovada em 30 de abril de 2013.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause (Orientador)
Instituto de Letras - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dra. Maria Jos Cardoso Lemos
Instituto de Letras - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr..Washington Dias Lessa
Escola Superior de Desenho Industrial - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dra. Gabriela Lrio Gurgel MonteiroEscola de Comunicao - UFRJ
_____________________________________________
Prof. Dr..Lus Claudio de SantAnna Maffei
Instituto de Letras - UFF
Rio de Janeiro
2013
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DEDICATRIA
Dedico esta tese a Tatiana Podlubny, que me ensina a ver melhor, e a minha av, Maria Izabel
de Araujo Souza Leite, que sempre inicia nossos dilogos dizendo conta!.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Gustavo Bernardo, pela disponibilidade e encorajamento ao longo
deste percurso, com doses precisas de delicadeza, rigor e bom humor. A sua dedicao, em
medidas equivalentes, ao pensamento crtico e fico serviu-me de inspirao constante.
minha coorientadora e amiga, Mas Lemos, que me acompanha desde a elaborao
do projeto para ingressar no Doutorado, compartilhando seu tempo, entusiasmo e
sensibilidade. Agradeo em especial a sua participao na banca do meu exame de
qualificao e a leitura criteriosa do texto apresentado na ocasio.
Ao Ricardo Benevides, por ter integrado a banca do meu exame de qualificao,
quando me transmitiu generosamente o seu conhecimento sobre livros ilustrados e me deu
sugestes de leitura valiosas.
Aos professores Ana Lcia Machado de Oliveira, Slvia Regina Pinto, Mas Lemos e
Gustavo Bernardo, que ministraram cursos fundamentais para a formulao de algumas das
questes apresentadas neste trabalho.
Aos professores Lus Maffei, Washington Lessa, Gabriela Monteiro e Mas Lemos,
pela participao da banca examinadora desta tese.
Aos meus pais, Silvia Ferreira e Joo de Souza Leite, pelo amor e apoio, e o
imensurvel entusiasmo que demonstram pela vida.
Ao meu irmo, Sukho Gomes, por ser quem , sagaz e bem humorado, meu personal
mestre zen desde que ramos pequenos.
s queridas moas Carolina e Mariana Ferman, e Evelyn Grumach, outra me da
minha vida, pelo convvio com gosto de casa.
minha av, Maria Izabel, e s minhas tias queridas, Marinha e Rosrio, pelo apoio
amoroso de sempre.
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Tatiana Bacal, a mais doce amiga e companheira de trabalho, com quem
compartilho o riso, as belezas e as agruras da vida, bem como o encanto pelas intersees
entre arte e antropologia.
Tatiana Altberg, com quem tive o privilgio de constatar o potencial libertador da
narrativa no projeto Mo na Lata, por toda fora, inspirao e imensa alegria que me d
continuamente.
famlia do meu corao, Karen Akerman (desde sempre comigo), e seus meninos,
Miguel e Tontom, que deixam meus dias mais coloridos, amorosos e risonhos.
Manoela Zangrandi, Isabel Napolitani, Vernica DOrey, Raquel Tamaio, Marina
Fraga, Rodrigo Linares, Terncio Porto e Adriana Nolasco, infinitamente queridos, por me
acompanharem de perto e de longe, rindo comigo em horas mais que precisas.
Glaucia Saad, por cuidar da minha sade com tanta delicadeza e senso de humor.
Tatiana Podlubny, pela presena, parceria e diverso de todos os dias, e por terdiagramado esta tese.
Aos amigos queridssimos e insubstituveis, em especial Marcus Reis, Flavia Hasky e
Amir Geiger, que ao longo desse tempo, cada um a seu modo, fizeram perguntas essenciais,
sugeriram leituras e leram esboos de captulos.
Claudia Bastos e Tania Lopes, da secretaria do Programa de Ps-Graduao emLetras da UERJ, por terem sempre se prontificado a solucionar os problemas de ordem
prtica, mesmo aqueles aparentemente sem soluo.
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RESUMO
LEITE, Luiza Ferreira de Souza.Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados. 2013.216f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) Instituto de Letras, Universidade do Estadodo Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
Esta tese prope uma abordagem do livro ilustrado (em geral associado ao pblicoinfanto-juvenil) que considera as diferentes modalidades de relao entre a imagem e o textoverbal, bem como sua conexo indissocivel com o suporte. O livro ilustrado entendidocomo objeto esttico, polissmico, capaz de convocar a capacidade sensvel do leitor,expandindo tanto sua noo de si como sua viso de mundo. Busca-se problematizar aespecificidade desse gnero literrio por meio da imbricao de categorias como as de
visibilidade e legibilidade, pensadas a partir da reflexo de Vilm Flusser sobre o conflitoentre a imagem e a palavra escrita ao longo do tempo. Discute-se tambm a linguagem dolivro ilustrado luz do pensamento de Giorgio Agamben e Gilles Deleuze, que preferem anoo de intensidade em vez de etapa cronolgica para compreender a infncia. O livroilustrado considerado um devir-criana (ou devir-outro) do autor e/ou ilustrador capaz dedesestabilizar o leitor, fazendo aflorar sensaes que reconfiguram modos de sentir e estar nomundo.
Palavras-chave: Livro Ilustrado. Infncia. Visibilidade. Legibilidade. Literatura Infanto-
juvenil. Imagem.
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ABSTRACT
LEITE, Luiza Ferreira de Souza.Modes of reading and being: the poetics of picture books.2013.216f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) Instituto de Letras, Universidade doEstado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
This thesis proposes an approach to the picture book (that is usually associated withyoung readers) which considers the different modalities of relationship between the image andthe written text as well as their non-dissociable connection with the support itself. The picture
book is understood as an aesthetic and polysemic object that is able to engage the readerscapacity for sensation, expanding his or her notion of self and worldview. There is anintention to problematize the specificity of this literary genre through the imbrication of
categories such as visibility and legibility and Vilm Flussers reflection on the conflictbetween the image and the written word throughout time. This thesis also presents adiscussion about the picture books way of communicating in light of the thinking of GiorgioAgamben and Gilles Deleuze, both of whom prefer the notion of intensity instead ofchronological stage in order to comprehend childhood. The picture book is considered a
process of becoming-child (or becoming-other) of the author and/or illustrator, which candestabilize the reader, making sensations surface and reshaping modes of feeling and being inthe world.
Keywords: Picture Book. Childhood. Visibility. Legibility. Childrens Literature. Image.
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................ 9
1 O LIVRO ILUSTRADO E SUA RELAO COM O SUPORTE ............. 14
1.1 Os componentes do livro ilustrado ................................................................. 16
1.1.1 Formato .............................................................................................................. 17
1.1.2 Capa, guarda e folhas de rosto ............................................................................ 30
1.1.3 Papel e encadernao .......................................................................................... 39
1.2 Aspectos da ilustrao tomada isoladamente ................................................. 39
1.2.1 Cor ...................................................................................................................... 40
1.2.2 Estilo ................................................................................................................... 46
1.3 A imagem e o espao da pgina dupla ............................................................ 60
1.4 O desenho da letra e a letra-desenho .............................................................. 69
2O LIVRO ILUSTRADO E O REGIME CONTEMPORNEO DE
VISUALIDADE ..............................................................................................76
2.1 Aprender a ver as noes de alfabetizao ou letramento visual ............. 77
2.2 De onde vm as imagens? ................................................................................ 87
2.3 O livro ilustrado objeto legvel, objeto visvel ............................................ 90
2.4 As culturas orais e sua relao com a imagem .............................................. 96
3DA ILUSTRAO INTERDEPENDNCIA ENTRE TEXTO E
IMAGEM .........................................................................................................106
3.1 Livro ilustrado objeto esttico .................................................................... 115
3.2 O livro com ilustraes ................................................................................... 120
3.3 Texto e imagem uma relao indissocivel ................................................ 133
3.4 A parceria entre escritor e ilustrador ........................................................... 1463.5 Quando o escritor ilustrador ....................................................................... 149
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3.6 Livro-imagem .................................................................................................. 155
4A INFNCIA COMO INTENSIDADE E OS PROCEDIMENTOS DE
CRIAO ........................................................................................................162
4.1 A potncia do devir minoritrio .................................................................... 165
4.2 Mapas de memrias, sujeitos impessoais ...................................................... 169
4.3 Modos de desestruturao do tempo e do espao ......................................... 172
4.4 A linguagem das sensaes, da intensidade e das foras ............................. 177
4.5 Viajar sem sair do lugar a linguagem de dois livros ilustrados .............. 180
CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 195
REFERNCIAS .............................................................................................. 197
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Introduo
Qualquer livraria hoje, pequena ou grande, reserva um espao para a
literatura infanto-juvenil, em grande parte constituda de livros ilustra-
dos, publicaes em que a visualidade uma caracterstica marcante,configurando um gnero que Martin Salisbury e Morag Styles deno-
minam literatura visual (2012, p. 7). Os livros ilustrados so em geral
associados infncia, especialmente como ferramentas para facilitar
os processos de alfabetizao. J as publicaes com linguagem visual
ou temas no considerados adequados para as crianas acabam deslo-
cados nas livrarias uma vez que se diferenciam de outros gneros lite-
rrios que conjugam imagem e texto, como as histrias em quadrinhos,
que transpem para o espao da pgina as convenes da linguagemcinematogrfica (como o close, o plano geral, etc), os romances grficos,
que constituem tradues intersemiticas de obras literrias (fazendo
ou no uso dos recursos empregados nas histrias em quadrinhos), e o
livro de artista, um objeto esttico, plstico e/ou conceitual, na inter-
seco das artes plsticas e do livro, no necessariamente compromis-
sado com a sequencialidade narrativa e nem sempre reproduzido em
srie como a maioria dos livros.
A despeito de suas linguagens visuais singulares, os diferentes
tipos de publicaes que conjugam imagem e texto so demarcados
por fronteiras nada rgidas. Cada um desses campos influencia-se
mutuamente, revelando recursos visuais hbridos. O livro de artista
com frequncia se mistura com a ilustrao, o livro ilustrado por vezes
faz uso da linguagem dos quadrinhos. Experimentos como os Libros
illeggibiles(Livros Ilegveis, 1949/2009), de Bruno Munari, constitudos
de folhas de papel coloridas sem texto algum, sugerem a permeabili-
dade entre objeto de arte e publicao editorial. J o trabalho de Shaun
Tan, The Red Tree(2000) e The Arrival(2007), que investiga o potencialpolissmico da sequncia imagtica, e o livro Quando meu pai encon-
trou com o ET fazia um dia quente (2011), do autor e quadrinista Lou-
reno Mutarelli, revelam o amplo espectro de possibilidades narrativas
do livro ilustrado, fruto do entrecruzamento de linguagens grficas e
visuais diferentes como a ilustrao, a pintura, os quadrinhos e assim
por diante. Mutarelli criou imagens em tinta acrlica para seu livro,
classificado pela prpria editora que o publicou como histria em qua-
drinhos (HQ). Mas segundo o autor, trata-se de um livro ilustrado emque ele busca a disjuno entre imagem e texto. Esse tipo de livro, dire-
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cionado sobretudo a um pblico adulto no encontra um lugar espec-
fico nas livrarias, pois no exclusivamente histria em quadrinhos,
livro infanto-juvenil ou obra de artes plsticas.
Muitos livros em que a imagem predominante podem interessar
a pessoas de qualquer idade apesar das categorias infantil ou infanto--juvenil s quais so atrelados. Como resposta a isso, a editora indepen-
dente Media Vaca, situada na Espanha, imprime a seguinte frase na
contracapa de seus livros: LIBROS PARA NIOS... NO SLO para nios!
(LIVROS PARA CRIANAS... NO APENAS para crianas!). O livro-ima-
gemRobinson Crusoe: Una novela en imgenes inspirada en la obra de
Daniel Defoe (2009), de Ajubel, editado pela prpria Media Vaca, um
exemplo de livro que se destina a pessoas de qualquer idade, embora
constitua uma narrativa visual, sem texto verbal algum.Dos primeiros desenhos feitos nos espaos mais recnditos das
cavernas profuso de pixels produzidos pelas mquinas digitais, a
imagem sempre esteve acompanhada de um regime de visualidade
especfico, relativo ao status da imagem em si e s noes de realidade,
verdade e subjetividade vigentes. A atual produo e reproduo mas-
siva de imagens tecnolgicas nos impem um questionamento sobre
os diferentes graus de realidade, como indica inclusive parte da produ-
o documental brasileira recente, como Jogo de Cena (2007), de Edu-
ardo Coutinho, que suscita uma discusso sobre as fronteiras tnues
entre narrativa, encenao, verdade e fico, ou Santiago (2007), de
Joo Moreira Salles, que problematiza a natureza construda do gnero
documentrio, entre outros temas.
Ao longo da histria, as diferentes formas de representao sus-
citaram sentimentos os mais diversos, do fascnio averso. Durante
toda a Idade Mdia europeia, a representao tem uma dupla condio.
Carlo Ginzburg rastreia os significados da palavra mostrando que, se
por um lado a representao alude ausncia da realidade represen-tada, como no caso do costume da realeza de estender um lenol mor-
turio para representar o morto, por outro convoca a presena dessa
realidade, fazendo as vezes desta como, por exemplo, as pequenas
rplicas em madeira, couro ou cera em forma humana que eram usa-
das para substituir os corpos dos soberanos falecidos (Ginzburg, 1998, p.
85). O jogo entre a substituio e a evocao teria persistido at o sculo
XIII, quando a imagem deixa de ser entendida por sua conexo com o
objeto ou fenmeno representado e ganha um sentido mais prximodo moderno em que no mais considerada substituta da realidade
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mas imitao desta. O que importa para o propsito desta introduo
no expor o complexo debate sobre a representao mas ressaltar o
carter controverso da noo e o modo como esta definiu em momen-
tos diferentes atitudes especficas em relao s imagens.
Esta pesquisa tem como objeto o livro ilustrado, um gnero depublicao que em geral contempla a relao entre as imagens, o texto
verbal e o prprio suporte. Uma srie de questes perpassam os cap-
tulos deste estudo. De que modo os livros ilustrados podem, apesar de
lineares por terem o formato de cdice, contribuir para uma maior fami-
liarizao com os diferentes aspectos da linguagem visual to impor-
tante em uma poca em que as imagens so produzidas e veiculadas
massivamente? Como a leitura desse gnero de narrativa afeta o leitor
e contribui para reconfigurar modos de percepo de si e do mundo?No captulo O livro ilustrado e sua relao com o suporte,faremos
uma exposio dos principais componentes do livro ilustrado, res-
saltando a importncia do suporte como arquitetura que organiza o
percurso do leitor. As camadas de sentido desse tipo de livro no so
apenas depreendidas a partir da relao entre imagem e texto, mas
tambm de componentes especficos, como as guardas e as folhas de
rosto, reveladores de detalhes que prenunciam a atmosfera da narra-
tiva que est por vir. Diferente de um livro s de texto verbal, o livro
ilustrado apresenta imagens que podem ser contempladas de um
modo no linear, de acordo com o tempo de cada leitor. Por outro lado,
o projeto grfico (que implica escolhas como o formato, a tipografia, o
papel etc) e a composio das imagens em cada pgina estabelecem
um determinado ritmo em consonncia com a narrativa em questo.
No captulo O livro ilustrado e o regime contemporneo de visu-
alidade, busca-se compreender, embora parcialmente, as relaes con-
flituosas entre a palavra escrita e a imagem a partir do pensamento
de Vilm Flusser. A expresso plstica e as linguagens visuais vo pro-gressivamente desaparecendo dos currculos escolares medida que
as crianas crescem justamente em um momento em que a internet, os
jogos de videogame e outras imagens tecnolgicas tornam-se cada vez
mais presentes. Se os procedimentos de aprendizagem no Ocidente so
acentuadamente logocntricos e vo aos poucos substituindo a pala-
vra oral pela escrita, com isso desvalorizando a imagem em favor do
discurso propositivo, essa tendncia se reflete de modo contundente
na escola, que desvaloriza o que chamaremos de alfabetizao visual,noo definida por Kate Raney como (...) a histria de como se pensa
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sobre o significado das imagens e dos objetos, como so compostos,
como ns reagimos a eles ou os interpretamos, como podem funcionar
como meios de pensamento, e como se situam dentro das sociedades
que os engendram (apudSalisbury; Styles, 2012, p. 77).
Embora a pintura e outras linguagens visuais no sejam decom-ponveis em elementos isolados de acordo com um esquema de regras
convencionais (afinal, so expresses estticas), ainda assim possvel
compreender alguns aspectos de sua linguagem plstica como a cor, a
composio, o estilo e assim por diante, pois a familiarizao com esses
elementos possibilita que o leitor se torne no s mais crtico como
mais permevel experincia de leitura do livro ilustrado como das
imagens que fazem parte do nosso cotidiano. Essencial alfabetizao
visual a compreenso da especificidade da leitura do livro ilustradoem um mundo cuja histria calcada nos processos de transmisso de
conhecimento legitimados pelos documentos e pela escrita, segundo
aponta Michel de Certeau. Terminamos com uma breve anlise sobre
a linguagem imagtica, polissmica e potica, caracterstica de certas
produes orais xamansticas e indgenas, e sua relao com as ima-
gens como meios imprescindveis de obteno de conhecimento.
No captulo Da ilustrao interdependncia entre texto e ima-
gem,voltamos propriamente discusso e anlise dos livros ilustrados,
primeiro os compreendendo como objetos estticos cuja experincia
de leitura implica a conexo entre a narrativa e o suporte. s diferen-
tes modalidades de relao entre texto e imagem no espao da pgina
correspondem momentos especficos da histria do livro ilustrado
moderno, que comeou a ser produzido mais sistematicamente no
fim do sculo XIX, quando a infncia se firmou como categoria social.
Embora no se pretenda criar categorias rgidas para classificar os tipos
de relao entre texto e imagem, apontamos uma diferena fundamen-
tal entre os livros com ilustraes, os livros ilustrados propriamenteditos, em que imagem e texto so concebidos como uma unidade indis-
socivel, e os livros-imagem, cujas imagens no vm acompanhadas de
texto verbal. Fazer a distino entre esses gneros de livro nos interessa
apenas na medida em que nos permite ver como suas caractersticas se
mesclam e so intercambiveis em um nico livro.
No captulo final,A infncia como intensidade e os procedimentos
de criao, partimos do pensamento de Giorgio Agamben e de Gilles
Deleuze para questionar a noo cronolgica de infncia, muitas vezesempregada para justificar a produo de livros ilustrados simplistas,
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destinados s crianas, tendncia, alis, condenada com veemncia
por Walter Benjamin, um grande admirador dos livros de imagem e
texto. Agamben e Deleuze consideram a infncia como intensidade,
qualidade cambiante e instvel, caracterstica tambm dos processos
criativos e mais especificamente da literatura. Pensamos o trabalho doautor e ilustrador de um livro ilustrado como aquele feito a partir de um
processo de devir-criana ou devir-outro, isto , empreendido por um
sujeito poroso o suficiente para se deixar desestabilizar, fundamental
para fazer aflorar as sensaes, sensaes estas importantes para qual-
quer processo criador. E um processo criador feito a partir de um devir-
-criana tambm capaz de provocar desestabilizaes no outro, neste
caso o leitor, promovendo a cada leitura aberturas que engendram
novas maneiras de sentir e enxergar o mundo. Terminamos o captulocom a leitura de dois livros ilustrados,Desertos (2006), de Roger Mello
e Roseana Murray, e Viagens para lugares que eu nunca fui (2008), de
Arthur Nestrovski e Andrs Sandoval, obras que no por acaso recriam
percursos de viagem, metfora da experincia do sujeito sensvel, sem-
pre em vias de deslocar seu ponto de vista.
importante ressaltar que os livros que fizeram parte deste tra-
jeto de pesquisa foram escolhidos no por terem linguagens homog-
neas mas porque, independente dos seus estilos, dos mais figurativos
aos mais abstratos, a maioria foi concebida como projeto, ao mesmo
tempo legvel e visvel, capaz de propiciar ao leitor uma experincia
esttica. No se pretendeu tampouco fornecer um modelo terico espe-
cfico de leitura, como o da semitica (embora esta tenha sido mencio-
nada), presente em grande parte das dissertaes e teses mais recentes
sobre o tema do livro ilustrado devido ao seu imenso valor instrumen-
tal. Tampouco contemplamos as teorias relativas recepo dos livros
ilustrados pelo pblico infantil, aos processos de mediao de leitura
em ambientes escolares e s anlises simblicas e ideolgicas dos sig-nificados das narrativas. Ao contrrio, buscou-se entender a especifici-
dade do livro ilustrado enquanto objeto esttico, cujo conjunto de ele-
mentos capaz de convocar a capacidade sensvel do leitor, que, ao se
aproximar e se distanciar das narrativas, se pe a caminho, disponvel
para se deixar afetar.
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Captulo 1
O livro ilustrado e sua relao com o suporte
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1. O livro ilustrado e sua relao com o suporte
Quando eu era criana, os livros ilustrados
constituam meu espao particular, s meu.Eu passava horas virando as pginas,
sentindo o cheiro do papel.
Eles me faziam sonhar.
Beatrice Alemagna
O livro ilustrado um objeto esttico caracterizado pela relao entre o
texto e a imagem inscritos no espao de pginas encadeadas. O signifi-
cado de um livro ilustrado decorre portanto do modo como o texto e a
imagem so dispostos em um suporte especfico dotado de uma tem-
poralidade. Mesmo quando se trata de um livro s de imagens, estas
em geral guardam uma relao com a narrativa. As mltiplas possibi-
lidades de ilustrao, diagramao e formatos fazem dessa forma de
expresso um vasto campo de experimentao grfico-narrativa.
O termo livro ilustrado em geral empregado no Brasil como tra-
duo de picture book, palavra usada nos Estados Unidos e na Ingla-terra para designar esse tipo de publicao. A traduo literal depicture
book poderia ser algo como livro de figura, livro-imagem ou livro-dese-
nho, o que ressaltaria o fato de que se trata de uma narrativa em que
a imagem desempenha uma funo to importante quanto a do texto
verbal1. Embora seu uso seja amplamente difundido no Brasil, o termo
livro ilustrado talvez no d conta da plasticidade do gnero, uma vez
que pode dar a entender tratar-se exclusivamente dos livros em que a
imagem tem funo ilustrativa ou decorativa e portanto seria redun-dante e at mesmo dispensvel. preciso ressaltar ento que tal cate-
goria inclui uma ampla gama de relaes texto-imagem. Diz respeito
aos livros em que as ilustraes acompanham textos no original-
mente concebidos para serem publicados com imagens (mas que no
obstante ganham novos sentidos uma vez ilustrados), como tambm
inclui as publicaes que apresentam uma relao de interdependn-
1 Quando empregarmos a palavra texto a partir deste captulo ser sempre para designaro texto verbal. Essa ressalva faz-se necessria uma vez que no livro ilustrado h tambm umtexto visual ligado s imagens.
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cia entre texto e imagem e aquelas em que as imagens no vm acom-
panhadas de texto.2
1.1 Os componentes do livro ilustrado
O livro ilustrado composto primordialmente de pginas duplas que
se sucedem. Por isso o leitor deve levar em considerao o suporte e
todos os seus componentes para a apreenso do(s) sentido(s) da nar-
rativa. A criao de um livro ilustrado requer um projeto que contem-
ple as relaes entre todos os elementos texto, imagens, diagrama-
o, tipografia, capa, guardas, formato do livro, papel, encadernao e
impresso. Roger Chartier ressalta a importncia do suporte na produ-o de sentido do texto:
Os textos no existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem)
de que so os veculos. Contra a abstrao dos textos, preciso lembrar que
as formas que permitem sua leitura, sua audio ou sua viso participam
profundamente da construo de seus significados. O mesmo texto, fixa-
do em letras, no o mesmo caso mudem os dispositivos de sua escrita e
de sua comunicao (2002, p. 61-62).
Pretende-se neste captulo apontar alguns dos principais compo-nentes de um livro ilustrado. Ressaltamos, no entanto, que o potencial
expressivo de cada um desses elementos decorre de sua inter-relao,
isto , do conjunto que resulta do trabalho colaborativo entre autores,
ilustradores, designers e editores. Diz Odilon Moraes:
Da mesma maneira que um projeto de uma casa no se limita a uma ideia
de casa, mas sim ideia de um morardentro de uma forma particular de
disposio de espaos e ambientes, assim tambm o projeto grfico de um
livro prope seus espaos, compostos por textos e imagens, e constri umambiente a ser percorrido (2008, p. 49, grifo original).
2 Embora em ingls picture bookdesigne toda sorte de livros com imagem e texto, Lawren-ce Sipe (2001b) faz uma distino entre picture books e illustrated books.Os livros ilustradosseriam aqueles em que as imagens cumprem uma funo ilustrativa. Os picture books, porsua vez, apresentariam uma relao to estreita entre texto e imagem que seria praticamen-te impossvel desmembrar seus elementos sem prejudicar o sentido mais amplo da obra. No
captulo 3 discutiremos essas categorias mais detalhadamente. Ressaltamos, no entanto, queo termo livro ilustrado quando empregado ao longo deste estudo, contemplar quaisquer pos-sibilidades de relao entre texto e imagem.
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1.1.1 Formato
Raramente nos damos conta de que o formato do livro possibilita uma
determinada relao do leitor com a narrativa e seus personagens. O
formato diz respeito s dimenses do livro, isto , ao seu tamanho eforma (quadrada ou retangular, vertical ou horizontal etc).
Livros pequenos, fceis de segurar e de transportar, tendem a
aproximar o leitor da narrativa, apresentando temas delicados e per-
sonagens sensveis, possivelmente envolvidos em situaes que sus-
citam a empatia do leitor. A princesinha medrosa (2008), de Odilon
Moraes, um livro ilustrado de 16 x 20cm. Trata-se de uma fbula
em que uma princesa tenta controlar os eventos em funo dos seus
medos. O confinamento da princesa e a sua tentativa de mandarem tudo e em todos ordenando inclusive que o sol passe a brilhar
durante vinte e quatro horas no so capazes de aplacar seu pavor
da solido, do escuro e da pobreza.
A despeito de suas expectativas, a personagem encontra a soluo
para seus temores num lugar bem afastado do castelo, na companhia
de um menino desconhecido que sabe contar as estrelas e apreciar o
A princesinhamedrosa (2008),
Odilon Moraes
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burburinho de um riacho. As tardes na companhia do amigo, quando
ela se liberta do peso das vestimentas de veludo para mergulhar no
riacho, revelam-se o melhor antdoto para o medo.
O livro de formato pequeno acolhe aquarelas delicadas de cenas
que traduzem a fragilidade, fazendo do leitor cmplice dos receios maisntimos da princesa. Em uma entrevista, Moraes relembra uma anedota
narrada por um amigo, que o inspirou a criar o livro. Quando acusada
pelo terapeuta de no ter medo de nada, uma menina teria declarado:
eu tenho medo puro (Moraes, 2012). Os medos da princesa seriam tra-
dues possveis desse medo puro, talvez o medo de estar viva.
Mame zangada (2008), de Jutta Bauer, tambm tem o formato 16
x 20cm. A primeira pgina j apresenta o problema do personagem, um
pinguim que recebe uma bronca da me. Diante da ferocidade materna,o filho literalmente se despedaa e as diferentes partes do seu corpo so
lanadas nas mais diversas paisagens. As pginas com ilustraes feitas
em aquarela revelam uma srie de lugares cuja geografia produz sen-
saes de estranhamento e solido: o universo, o fundo do mar, a selva,
uma cadeia montanhosa, um cenrio urbano agitado espao da impes-
soalidade, da multido e do anonimato. O pinguim tenta se recompor, e
suas patas percorrem territrios pouco convidativos, vazios, os confins
ermos do mundo. O personagem s consegue sentir-se inteiro nova-
mente com a ajuda da me que costura as partes do corpo, finalizando
com um pedido de desculpas.
Os livros que apresentam paisagens com frequncia tm forma-
tos grandes, por meio dos quais possvel produzir um efeito de ampli-
tude. Aqui, no entanto, os territrios despovoados esto circunscritos
dentro do espao de um livro pequeno. Embora o leitor esteja diante
de paisagens (aparentemente) exteriores, o que est em jogo a sensa-
o subjetiva e ntima da fragmentao. A fragilidade e a desproteo
so vertidas em imagens de lugares inspitos, frios, distantes, desertosou inundados. Restrita pgina, a paisagem assinala por contraste a
extensa dimenso sentimental que acompanha todo pequeno corpo,
todo corpo de criana.
Se emMame zangadaa me recolhe e recompe o filho, conce-
dendo-o um afago caloroso, emEl globo (2002) Isol cria uma persona-
gem que d uma soluo bem diferente para o problema da me brava.
O livro de 15 x 17,5cm tambm aproxima o leitor da narrativa, mas pela
via da ironia e do humor nonsense. Camila deseja que a me que gritademais se transforme em um balo bonito, vermelho e brilhante.
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Mame zangada(2008), Jutta
Bauer
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El globo (2002),Isol
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Seu desejo instantaneamente satisfeito por ningum em particular.
O balo vermelho gritante uma transmutao sbita do berro em
silncio. Tudo ocorre com muita naturalidade. No h indcios de que
se trata de um delrio da personagem e ningum desmente essa ines-
perada transformao.No parque a menina brinca e protege o seu balo caladinho. Uma
criana elogia: Que lindo balo!. Camila retribui: Que linda mame!.
E cada menina segue para casa pensando: Bom... s vezes no se pode
ter tudo. A narrativa termina suspensa, pois a me de Camila no volta
a ser o que era antes. O livro parece ter a medida exata. Pginas grandes
talvez produzissem um balo grande demais para ser suportado.
s vezes a opo pelo formato pequeno pode ser fruto da necessi-
dade de desafiar de um modo bem humorado a suposta grandeza dospersonagens. EmBob & Co. (2006), de Delphine Durand, personagens
como o cu, o sol, a Terra, a gua, Deus e a prpria histria disputam
o espao em branco da pgina. A interao dos personagens bojudos
no formato quadrado do livro de 17 x 15cm desencadeia uma srie de
conflitos cmicos.
O tamanho inusitado de certos personagens (supostamente)
grandiosos Deus, por exemplo, uma pequena esfera cor de rosa e
as situaes improvveis que retardam o incio da narrativa criam uma
atmosfera irreverente e meta-ficcional: Todos esto atrasados. O cu
ainda est no chuveiro e a terra est arrumando os cabelos, e a gua,
que est nas nuvens e no chuveiro ao mesmo tempo, forada a espe-
rar tambm. E o VAZIO bate o p impacientemente. E a histria espera;
a histria gostaria de comear....
Os livros de formato grande so capazes de exercer um fasc-
nio sobre o leitor. Essa sensao muitas vezes decorrente das ima-
gens que ocupam as pginas duplas, compondo paisagens extensas
e imponentes. o caso de Lampio & Lancelote (2006), de FernandoVilela, um livro em versos semelhantes aos de um cordel, com ilustra-
es inspiradas nas xilogravuras, feitas a partir de matrizes em bor-
racha. A histria narra o encontro do cavaleiro Lancelote, impresso
na cor prata, com Lampio, cujo universo visual da cor do cobre e do
couro. Os dois personagens se enfrentam produzindo um jogo grfico
que toma a pgina dupla. Em seu pice, a batalha se expande numa
pgina dupla que se desdobra em mais duas, criando um efeito de
exploso no livro cujas dimenses j so bastante grandes e inco-muns (18,5 x 26,5cm):
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Bob & Co. (2006),Delphine Durand
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Apesar da narrativa do livro girar em torno de dois personagens,
tanto o estilo das ilustraes como a escolha das cores reforam o per-
tencimento de cada um deles s paisagens concretas por onde pas-
sam e s suas respectivas heranas culturais. A batalha armada logo
se transforma em enfrentamento musical. Lancelote se encanta com a
sanfona e aprende a danar o xote. Mais do que conhecer os persona-
gens em si, reconhecemos paisagens distintas: as sombras dos manda-
carus no nordeste, as silhuetas dos castelos nos romances de cavalaria.
A dimenso individual dilui-se na dimenso coletiva, a escrita do autor
mescla-se com a tradio das narrativas populares.
Em Abrindo Caminho (2003), de Ana Maria Machado, Elisabeth
Teixeira tambm utiliza a amplitude da pgina para compor suas pai-
sagens em aquarela. Nesse livro de 19 x 23cm, a autora estabelece um
jogo intertextual que faz referncia vida de trs clebres desbrava-dores, Cristvo Colombo, Santos Dumont e Marco Polo, e trs artistas,
Lampio &Lancelote (2006),
Fernando Vilela
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Tom Jobim, Carlos Drummond e Dante Alighieri, diante de uma selva,
uma pedra e um rio, metforas condensadas de suas respectivas obras
e impasses criativos. O texto extremamente sinttico apenas faz alu-
so histria dos personagens: No meio do caminho de Marco tinha
inimigo e deserto. E tinha muita lonjura pelo caminho de Alberto. Asilustraes de Teixeira so fundamentais para revelar os percursos de
cada personagem, situando-os geografica e temporalmente.
Outra propriedade dos livros grandes permitir ao artista a repro-
duo de figuras humanas numa escala semelhante a de um retrato.
Abrindo Caminho(2003), Ana
Maria Machado eElisabeth Teixeira
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Em vez de apresentar personagens que se perdem numa paisagem
impessoal, O que uma criana? (2008), de Beatrice Alemagna, produz
retratos sangrados nas pginas de 18 x 24cm, que acompanham textos
com definies da infncia:
As crianas tm coisas pequenas como elas mesmas: uma cama pequena,
pequenos livros coloridos, um guarda-chuva pequeno, uma cadeira peque-
na. Mas elas vivem num mundo muito grande; to grande, que as cidades
no existem, os nibus se erguem no espao e as escadas no tm fim
(Alemagna, 2008).
Se por um lado, o texto diz que a criana pequena diante do
mundo, por outro, ela parece imensa na pgina. Em vez de ser compa-
rada ao tamanho do adulto, a criana sua prpria medida na ilustra-
o. O jogo entre texto e imagem nos lembra trechos de outras histrias
em que as variaes de tamanho traduzem os formidveis problemas
de adequao enfrentados pela criana, como Alice no Pas das Mara-
vilhas (2009), de Lewis Carroll, em que a personagem troca de tama-
nho uma dzia de vezes, eRosa Maria no Castelo Encantado (2003),de
rico Verssimo, em que uma criana de um ano enfrenta as dimenses
imponentes de um castelo.
A Grande Questo (2006), de Wolf Erlbruch, um livro comprido e
estreito, cujo formato de 13 x 21,5cm, apresenta em cada uma de suaspginas duplas um personagem que se dirige ao leitor, por meio da
palavra voc. Embora o ttulo faa referncia grande questo, esta
no formulada diretamente mas indicada logo na primeira pgina:
para festejar o seu aniversrio que voc est aqui na Terra, responde
o irmo (Erlbruch, 2006). Em seguida temos uma srie de respostas de
diferentes personagens um gato, uma pedra, um marinheiro, um sol-
dado, um boxeador, um cego e at a prpria morte que explicam por-
que esto aqui na Terra, revelando o quanto a experincia de estar vivo de certa forma singular e intransfervel. L-se nas entrelinhas a difi-
culdade de estabelecer seja um cdigo de conduta extensvel a todos e
a qualquer coisa, seja um significado unvoco para a experincia.
Alm das respostas que variam segundo cada personagem, h
a meno variao de significados de acordo com a passagem do
tempo. Nada fixo. No h significados pr-definidos a serem depre-
endidos do livro. A ltima pgina pautada e traz as palavras Datas e
Respostas impressas no topo. Na pgina ao lado, o texto diz: Quandovoc crescer, vai encontrar outras respostas para a grande questo.
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O que umacriana? (2008),
BeatriceAlemagna
A GrandeQuesto (2006),
Wolf Erlbruch
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Embora o formato do livro quando fechado seja estreito, as ilustraes
so compostas no quadrado formado pela pgina dupla. impossvel
compreender o sentido da ilustrao a partir da pgina isolada.
Mais do que apenas se relacionar com a narrativa, o formato do
livro muitas vezes determinante para estabelecer a dinmica de lei-tura e a direo do ato de virar as pginas. A experincia de folhear
livros comoBalano(2007), de Keiko Maeo, eIsmlia(2006), de Alphon-
sus de Guimaraens, com ilustraes de Odilon Moraes, estreitamente
relacionada ao suporte escolhido.
Balano um livro de 16,5 x 25cmque narra uma histria para
ser lida na vertical, de modo que as pginas so viradas de baixo
para cima, como se a costura entre a pgina dupla fosse o eixo de um
balano. Trata-se de um texto conciso, semelhante ao de um poema.Podemos ler na pgina de cima: A noite se aproxima. Na pgina de
baixo vemos a silhueta de alguns prdios e casas com as janelas colori-
das, iluminadas. Com exceo dos prdios, ambas as pginas so toma-
das de um azul claro, que poderia ser entendido como o amanhecer no
fosse a presena das palavras. Na dupla seguinte, percebe-se que a cor
azul intensificou-se levemente. O texto insiste: Olhe as luzes, a noite
cintila!. Vemos outra paisagem urbana. Alguns prdios aparecem ao
longe, menores e desfocados, pontilhados amarelos sugerem reflexos
imprecisos de luz citadina. A luminosidade natural, instvel, escoa
vagarosa ou apressada pela fresta entre o dia e a noite a velocidade
dessa passagem determinada pelo ritmo do leitor ao contemplar as
pginas. Na terceira pgina dupla, temos a paisagem panormica de
um parque, sem texto algum, onde h pessoas desfocadas na penum-
bra e luzes acesas um momento de suspenso.
A pgina seguinte comea a dar sentido ao formato do livro. Um
menino aparece em primeiro plano, sentando-se num balano, no centro
da pgina branca: Oua o suave assobio da brisa, l-se na pgina infe-rior. O menino comea a balanar ... como um pndulo azul azul. Seu
casaco, tambm azul, simula a cor do cu. Uma srie de pginas duplas
vai revelando a brincadeira do menino, que ora aparece de cabea pra
cima, ora de cabea pra baixo. O movimento de passar as pginas a
prpria cadncia, o vaivm do balano: Pra l e pra c... Pra l e pra c....
O texto tambm nos remete a outros aspectos, externos ao menino, que
acompanham a experincia de balanar: As rvores se mexem de um
lado para o outro.... Os pssaros viram sombras, a brisa sopra, a cidademergulha no cu que escurece escurece escurece, ... enquanto deixamos
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Balano (2007),Keiko Maeo
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Ismlia (2006),Alphonsus deGuimaraens e
Odilon Moraes
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pegadas no cu. Como um pndulo azul azul...(Maeo, 2007).
A progresso do tempo concretizada pelo passar das pginas
e pela mudana do tom de azul ao longo do livro. Numa das ltimas
pginas duplas, o cu, antes aceso, cede escurido, exceto pelas luzes
mnimas, distncia. E o silncio circunda a paisagem da cidade, assi-nalado pela ausncia de texto na pgina.
Ismlia (2006) uma edio ilustrada do poema homnimo do
poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens. A capa, revestida com tecido
cor de vinho, semelhante ao tom das aquarelas dentro do livro, e o ttulo
impresso na cor prata, transmite uma certa sobriedade. Logo na primeira
pgina, entendemos que no ser uma histria qualquer: Quando Ism-
lia enlouqueceu, Ps-se na torre a sonhar.... A segunda pgina dupla
mostra o porqu da opo pelo formato sanfona, que tambm deve serlido na vertical: Viu uma lua no cu, / Viu outra lua no mar (...). A enca-
dernao recria o jogo de reflexos entre o que est no alto e o que est em
baixo, mencionado ao longo do poema. O formato impe uma direo
leitura, icnica do olhar da prpria personagem encarapitada na torre:
Queria a lua do cu, / Queria a lua do mar (Guimaraens, 2006).
As aquarelas de Odilon Moraes conferem personagem uma fra-
gilidade ao mesmo tempo macabra e luminosa. No se pode ver com
nitidez o seu rosto. Ismlia um sopro, etrea, lmina de luar, uma apa-
rio em seu vestido branco luminoso. Os olhos e a boca so abismos
negros num corpo mido. Nas ltimas pginas, a personagem se lana
ao mar, parece que j era, antes do derradeiro salto, menos humana
porque mais prxima da morte.3
1.1.2 Capa, guarda e folhas de rosto
Diferente do que muita gente imagina, a leitura de um livro ilustradono comea na primeira pgina. A capa indica a atmosfera da histria
que o leitor est prestes a conhecer, alm, claro, de apresentar o ttulo.
Muitas vezes a capa, a guarda (que a face interior da capa, que pode
3 Ismlia um livro que faz parte do catlogo infanto-juvenil da editora Cosac Naify. No entan-to, a esttica sbria, a capa revestida de tecido, sem ilustrao, a suntuosidade das aquarelas eos temas ali suscitados podem muito bem despertar o interesse dos adultos, mas o livro muitasvezes passa despercebido. o caso deA tabuada da bruxa(2006), de Goethe, ilustrado por WolfErlbruch, que apresenta uma visualidade nada convencional e um poema bastante enigmti-co. Livros como esses muitas vezes ficam perdidos nas sees dos livros ditos infanto-juvenis,uma vez que nem todo adulto tem o hbito de passar por ali.
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ser impressa com uma cor ou com alguma ilustrao) e as folhas de
rosto (que apresentam o ttulo, o autor, ilustrador e a editora) ofere-
cem indcios dos personagens ou podem at revelar antecipadamente
algum objeto ou personagem fundamental na histria.4
A capa estabelece a estrutura grfico-editorial do livro. Todas aspossibilidades so levadas em conta na criao do projeto da capa, pois
se trata de uma espcie de porta de entrada para narrativa. Carto ou
capa dura? Laminado, fosco ou brilhante? Com ou sem orelha? Guarda
impressa ou no? vazada, como no caso de O guarda-chuva do vov
(2008), de Odilon Moraes, em que h uma janela recortada, e dePsiqu
(2010), de Angela Lago, em que pequenos furos nos deixam entrever
brilhos prateados? Que ilustrao escolher para a capa? Como a tipo-
grafia do ttulo se relaciona com aquela encontrada dentro do livro?Todos esses elementos so postos em relao para cativar o leitor.
Mame grande como uma torre(2003), de Brigitte Schr e Jacky
Gleich, tem a capa dura e uma ilustrao da personagem principal,
que ironicamente est sempre ausente do ponto de vista da narradora,
4 Na Europa e nos EUA, comum os livros ilustrados terem tambm uma sobrecapa, especial-mente os de capa dura. s vezes capa e sobrecapa tm composies grficas diferentes, pro-pondo um jogo ldico. No Brasil a sobrecapa no comum uma vez que encarece a publicao.
Mame grandecomo uma torre
(2003), BrigitteSchr e Jacky
Gleich
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O guarda-chuvado vov (2008),Odilon Moraes
Psiqu (2010),Angela Lago
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uma criana. Na ilustrao da capa, a me est curvada para caber den-
tro dos limites do formato do livro, revelando um aspecto sobre essa
personagem que s ser devidamente compreendido aps a leitura do
miolo. A imagem da me grande como uma torre, como indica o ttulo,
uma representao grfica de como sua ausncia sentida pela filhae pelo pai, que, ao contrrio da me, parece sempre pequeno.
Elementos ou personagens da histria so com frequncia esco-
lhidos para a capa e contracapa, mas de um modo que no revelem
detalhes importantes sobre a narrativa. Todos os patinhos (2009), de
Christian Duda e Julia Friese, traz na contracapa um dos personagens
principais do livro que, a despeito do que sugere o ttulo, uma raposa.
O fato de a raposa estar na contracapa de um modo praticamente irre-
conhecvel pode ser lido como um indcio de que sua participao nahistria ser surpreendente.
Muitas vezes o mesmo desenho escolhido para a capa estende-se
at a contracapa. Em Amazonas, no corao encantado da floresta
(2007), a silhueta de um barco compe uma paisagem noturna e
misteriosa. Em O que uma criana? (2010), de Beatrice Alemagna,
a capa apresenta uma srie de crianas, como se fossem pequenas
fotografias, antecipando os retratos que tomam todo o espao das
pginas pares dentro do livro. Contos para crianas impossveis(2007),
de Jacques Prvert, e ilustraes de Fernando Vilela, apresenta na capa
o mesmo jogo entre as cores amarela e preta encontrado dentro do
livro impresso em duas cores. A tipografia do ttulo na capa tambm
usada como ilustrao, pois as palavras so dispostas de modo que
formam as meias de um garoto.
Bili com limo verde na mo (2009),de Dcio Pignatari e Daniel
Bueno, se assemelha a um livro-objeto, pois apresenta uma capa que
se desdobra em quatro partes. Quando fechada, a capa revela um dese-
nho moderno geomtrico e uma orelha/sobrecapa que envolve o livro.Para ler o ttulo inteiro preciso abrir essa sobrecapa. Uma vez desdo-
bradas, as orelhas da capa e da contracapa, que isoladas apresentam
desenhos geomtricos, formam uma imagem nica em que se l em
letras grandes o nome da personagem do livro: Bili.
Outros componentes tambm do indcios da atmosfera que
o leitor encontrar dentro do livro. A guarda uma folha de papel
resistente dobrada para formar duas pginas, uma das quais colada
capa dura para junt-la com o miolo do livro. Quando ilustrada, aguarda estabelece um jogo ldico com o leitor, preparando-o para a
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Amazonas, nocorao encan-
tado da floresta(2007), Thiago de
Mello e AndrsSandoval
O que umacriana?,Beatrice
Alemagna
Todos os pati-nhos (2009),
Christian Duda eJulia Friese
Contos paracrianas impos-
sveis (2007),Jacques Prvert e
Fernando Vilela
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Bili com limoverde na mo(2009), Dcio
Pignatari eDaniel Bueno
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Pedro e Lua(2004),
Odilon Moraes
O meninomaluquinho
(1980), Ziraldo
Joo Teimoso(2007), Luiz Raul
Machadoe Graa Lima
Acidente celeste(2006), Jorge
Lujn e PietGrobler
Onde vivem
os monstros(1963),de Maurice
Sendak
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histria que est por vir. Apesar da encadernao em capa flexvel
no precisar tecnicamente de uma folha de guarda, muitos livros
simulam esse efeito.
No livro Pedro e Lua, de Odilon Moraes, a orelha desempenha a
funo da guarda. s vezes, em vez da guarda, h uma dupla de pgi-
nas iniciais que fica entre a capa e as folhas de rosto. Essas pginas
assemelham-se s cortinas de um espetculo uma vez que oferecem
um espao de transio, em geral sem palavras, da capa para o miolo
do livro.Psiqu estabelece uma atmosfera de encantamento que ante-
cipa uma narrativa mitolgica sobre Eros e Psiqu. De um lado, a corprata nos incita a aproximar o rosto como se estivssemos diante de
um espelho que nos devolve uma imagem difusa, pouco definida. Do
outro, a escurido com pontos brancos mnimos nos transporta para
uma dimenso csmica. S depois de virar essas duas primeiras pgi-
nas e as folhas de rosto que se seguem (uma das quais traz impressa a
imagem imprecisa de uma rvore), chegamos epgrafe que reafirma
o sentimento inicial: Esta histria de encantamento. Traz vida longa
e boa sorte a todos que a escutam ou a leem (Lago, 2010).Em Oh no, George! (2002), de Chris Haughton, as pginas iniciais
e finais do livro fazem meno histria de um modo indireto, reve-
lando os mveis arrumados no incio e revirados no fim, aps a pas-
sagem do personagem principal que, apesar de querer ser bonzinho,
acaba fazendo o que no deve na ausncia do dono. Muitas vezes essas
pginas oferecem comentrios visuais sobre a narrativa por meio de
imagens-sntese, como no caso do livro de Haughton.
Nas folhas de rosto conhecemos os nomes do autor e editor, alm dottulo do livro. Com frequncia h nessas pginas pequenos elementos
Psiqu (2010),
Angela Lago
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Cabelos (2006),Jeffrey Fisher
No alto: Viagenspara lugares que
eu nunca fui(2008), Arthur
Nestrovski eAndrs Sandoval
Oh no, George!(2002), Chris
Haughton
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ilustrados que oferecem pistas a respeito da narrativa: um personagem,
um objeto importante para a trama e assim por diante. A tipografia e as
cores escolhidas, bem como a composio grfica, revelam-nos muito a
respeito no s da histria mas tambm do estilo das ilustraes.
1.1.3 Papel e encadernao
O projeto grfico tambm inclui a escolha do papel e a gramatura em
funo do efeito que se pretende provocar. Papeis brilhosos tendem
a impor uma distncia entre o leitor e a narrativa, como no caso de
Psiqu (2010)ou deLampio e Lancelote (2006), duas publicaes que
fazem uso das cores prata e dourada. Papeis com as superfcies porosase opacas convidam ao toque e aproximam o leitor.
O tipo de encadernao determina como o livro vai ser apresen-
tado e tem a ver com o tipo de capa. A encadernao de um livro de capa
dura diferente daquela de uma publicao cuja capa de papel carto,
que permite um acabamento com grampo ou cola e costura. A encader-
nao com grampo mais simples. Por outro lado, como o livro fica sem
lombada, este tende a desaparecer na estante entre tantos outros.
Todas as decises que concernem o projeto grfico de um livro
devem levar em considerao o tipo de narrativa em questo. justa-
mente o estilo empregado pelo ilustrador e escritor que aponta na dire-
o de uma determinada atmosfera. A capa e os elementos de apre-
sentao constituem partes importantes do livro em vez de adornos
dispensveis. O livro deve ser concebido como uma unidade em que o
suporte parte fundamental da fabricao de sentido.
1.2 Aspectos da ilustrao tomada isoladamente
As ilustraes num livro ilustrado esto vinculadas ao formato cdice,
isto , dispostas em pginas encadeadas e em geral apresentadas em
relao com o texto. Mesmo nos ditos livros-imagem, em que no h
texto, as imagens guardam uma relao com a narrativa. Portanto, nos
livros ilustrados, a apreciao da imagem implica no s a apreen-
so da relao entre esta e o texto, como entre esta e o suporte. Como
aponta Rui de Oliveira: Sem pretender ser determinista, temos deaceitar que a ilustrao se justifica como linguagem prpria quando
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expressa uma narrativa. Uma viagem temporal (2008, p. 78). A ilus-
trao uma arte que se aproxima e se afasta da pintura, nutrindo-
-se de referncias estticas provenientes desses campos e ao mesmo
tempo propondo formas as mais variadas de entender a imagem no
dilogo com o texto: A origem de nossas imagens so as palavras e aliteratura (Oliveira, 2008, p. 83).
Mas justamente porque o livro constitui um conjunto arquite-
tnico de espaos que se sucedem, temos que visitar cada dupla de
pginas para fazer a narrativa avanar, o que torna possvel identificar
os elementos constitutivos da linguagem visual de cada imagem iso-
ladamente. Embora possamos apontar alguns princpios que regem a
composio da imagem na pgina, estes servem apenas como par-
metros gerais. Cabe lembrar que a ilustrao criada a partir de umdilogo com o texto e que este portanto capaz de ressignificar a pr-
pria imagem no jogo constitudo pela leitura. Por isso os elementos
apontados em seguida servem apenas de esquema geral. Rui de Oli-
veira afirma ser possvel
encontrar uma lgica na imagem, mesmo que parcial, apesar de sabermos
que os amplos significados metafricos da ilustrao no podem estar cir-
cunscritos, ou encerrados, em nenhum esquema, em nenhuma receita de
leitura (2008, p. 101).
1.2.1 Cor
Uma avalanche de cores perde a fora.
A cor s atinge sua plena expresso quando
organizada, quando corresponde intensidade emotiva do artista.
Henri Matisse
O uso da cor fundamental num livro ilustrado. O esquema de cores
proposto pelo ilustrador um dos meios privilegiados de transmisso
no verbal de significados. Nossa reao emotiva aos diferentes tons
em grande parte relacionada aos contextos culturais dos quais parti-
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cipamos. Cores similares podem suscitar sentimentos e reaes muito
diversos. Por isso so elementos expressivos fundamentais para produ-
zir o efeito esttico que se pretende obter das ilustraes e sua relao
com a narrativa. As escolhas da maioria dos artistas (...) so baseadas
no em uma representao naturalista dos objetos, mas nos efeitosemocionais que as cores geram (Sipe, 2001b, p. 6).
No livroMame zangada (2008), Jutta Bauer utiliza a cor para nos
oferecer uma traduo visual dos sentimentos do personagem. As pri-
meiras duas pginas tm o fundo branco, onde se destaca a cena da
bronca. Aps o despedaamento do pinguim, as paisagens onde cada
parte do corpo vai parar so azuladas (universo despovoado), esverde-
adas (selva profunda) e brancas (fria neve). A cor laranja aparece ape-
nas no fim da narrativa, quando acontece a reconciliao entre me efilho. As patas do pinguim chegam no deserto do Saara ao entardecer,
quando uma grande sombra se deitou sobre elas. Era a mame zangada
que tinha recolhido e costurado todos os meus pedaos (Bauer, 2008).
Aps um afago e um pedido de desculpas da me, que encontram tra-
duo visual no apenas no trao mas tambm nas cores calorosas do
poente, os dois navegam em direo ao sol.
Em um primeiro momento h apenas me e filho sobre a pgina
branca. Aps as pginas em que a me briga com o filho, surge uma
sucesso de paisagens. Estas so imagens do corpo-sentimento
fragmentado, que busca em vo se recompor. Nas ltimas pginas do
livro, as cores laranja e preto, que compem os corpos dos pinguins,
formam tambm um enorme barco cujo contorno se confunde com o
corpo da me. como se o espao de fora (barco) replicasse em outra
escala as formas do afago entre me e filho.
EmMame zangada o esquema de cor fundamental para trans-
mitir a reao emocional do pinguim bronca da me, mas as cores
em si no so personagens do livro como acontece em outro livro damesma autora e ilustradora, A rainha das cores (2003). No livro de
Bauer, uma rainha autoritria convoca o azul, o vermelho e o amarelo
para satisfazerem seus caprichos. Cada cor transmite um determi-
nado sentimento: O azul era suave e gentil. Cumprimentou Coralina
amigavelmente e tingiu o cu, o vermelho chegou com tanta fora
que quase a derrubou e o amarelo era quente e claro (Bauer, 2003).
As cores comeam a brigar entre si de modo que o reino fica coberto
de cinza. Coralina esbraveja, ordenando que a cor cinza v embora,mas esta insiste, fica. A rainha s consegue dissolver o horizonte
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A rainha dascores (2003),
Jutta Bauer
Mame zangada(2008), Jutta
Bauer
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monocromtico quando, exausta, comea a chorar de mansinho.
As lgrimas aos poucos lavam a paisagem cinzenta. O desfecho
da narrativa se d, contraditoriamente, sem palavras, quando a rainha
dana em meio a uma srie psicodlica de tons. Nesse caso, as cores
tm proeminncia como personagens, lembrando Flicts (1969), pri-meiro livro ilustrado de Ziraldo, feito a partir de formas geomtricas
coloridas, pioneiro em trazer uma linguagem sinttica para a produo
destinada s crianas no Brasil.
Em alguns livros h uma economia estratgica no uso das cores
ou mesmo a ausncia de certos tons.
A ilustrao em preto-e-branco possui um leque de significados at mes-
mo de ancestralidade na histria da ilustrao to importante quanto a
ilustrao em cores. Talvez at pelo grafismo e contragrafismo, ou seja, opreto e branco do papel que o ilustrador tem diante de si, sua aparente exi-
guidade de recursos apresenta uma dificuldade de resoluo muito mais
complexa do que quando o artista dispe da possibilidade da cor (Oliveira,
2008, p. 51).
Pedro e Lua(2004), de Odilon Moraes, um livro em preto e branco
que narra a histria de um menino e a morte de sua tartaruga. Moraes
mostrou os esboos iniciais ao editor, que j considerou o livro pronto.
O contraste entre o preto e o branco e os elementos que aparecemnos meios tons cinzentos criam uma atmosfera em que tudo parece
banhado na luminosidade da lua, que tambm o nome com o qual
Pedro batiza sua tartaruga: Uma noite, Pedro levava um punhado de
pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou o seu caminho. Pedro
logo descobriu que era uma tartaruga, mas como seu casco parecia
uma grande lua esverdeada, ele a chamou Lua (Moraes, 2004). O tom
cinzento do livro transmite a melancolia implicada na perda do bicho
de estimao.Pedro e Lua uma histria sobre a passagem do tempo esobre o luto, embora em nenhum momento estes temas sejam de fato
mencionados. A distncia entre a lua e a Terra, a distncia entre Pedro
e a tartaruga que se foi, so traduzidas visualmente pelos tons branco,
preto e cinza, que por sua vez transmitem os sentimentos de angstia
implicados nas despedidas.
Psiqu, de Angela Lago (2010), outro livro em que o preto, o mar-
rom e outros tons escuros preponderam. Para recontar essa histria
mitolgica de amor, a autora e ilustradora faz uso das sombras, dos
reflexos, dos indcios da passagem de Eros, que no pode, nem deve, ser
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Pedro e Lua(2004), Odilon
Moraes
Psiqu (2010),Angela Lago
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visto por Psiqu. Nenhum dos personagens aparece com nitidez nas
ilustraes, pois a beleza inexprimvel de Psiqu e a interdio desta
em relao ao rosto de Eros impedem que ambos sejam representados
por meio da imagem:
Ao se ver uma ilustrao, a cor no deve ser analisada a partir de seu prprio
significado isolado. Ela em si mesma no sustenta qualquer critrio de an-
lise. Somente quando se relaciona com a luz, com a sombra, com o momento
psicolgico dos personagens ou com o atmosfrico da cena representada,
ela realmente alcana sua plenitude expressiva. Logo, a cor deve ser analisa-
da a partir de sua relao com as outras cores (Oliveira, 2008, p. 51).
A narrativa comea com a capa do livro que, assim como a de
Pedro e Lua,revela o cu estrelado. com o olhar voltado para o infi-
nito que o leitor inicia ambas as histrias cujos eixos giram em tornode experincias da ordem do inefvel: a morte e o amor. O amor e a
morte esto no limiar de, como dizem os astrnomos, dois horizontes
opacos. Dois grandes vazios. Dois precipcios (Pina, 2013). Um texto
publicado no fim do livro menciona a relao entre o desejo da autora
de narrar histrias e sua lembrana do cu noturno de quando criana:
Parece-me que tudo o que eu escrever ou desenhar se remeter sem-
pre, de alguma maneira, a esta experincia, vi um cu cheio de estre-
las (Lago, 2010).Psiqu to bela que a ilustradora preferiu deixar o leitor ima-
gin-la. As primeiras pginas do livro revelam a silhueta da princesa
beira de um abismo, vagando enquanto aguarda o destino antecipado
pelo orculo de casar-se com uma fera que voa, queima e fere. Toda
noite ela visitada por Eros, que s chega quando est escuro e vai
embora antes do amanhecer. As portas douradas do palcio, entreaber-
tas, replicam-se formando uma imagem caleidoscpica e etrea, que
lembra os padres das asas da borboleta, um inseto ligado a esse mito.As paisagens contidas no livro esto sempre imersas na penum-
bra, com alguns focos de luz. O leitor passeia por essas formas mal
definidas, possivelmente enxergando monstros e perigos imaginados.
Angela Lago traduz em cor uma sensao de queda iminente, dese-
nhando lugares onde o cho e os elementos ao redor de Psiqu no
so facilmente discernveis. As ltimas pginas contrastam com o res-
tante do livro como o dia se ope noite. A luz solar traduz uma ideia
de acalanto, embora Eros e Psiqu ainda apaream como silhuetas
sem muita definio.
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1.2.2 Estilo
O estilo de um livro ilustrado depende das preferncias e da formao
do artista, mas tambm do repertrio de imagens cujo reconhecimento
e leitura so possibilitados pelo regime (ou regimes) de visualidade deuma determinada poca. O regime contemporneo de visualidade, em
que proliferam as novas tecnologias, inclui formas hbridas de narra-
tiva que apresentam combinaes as mais variadas de imagem e texto:
(...) no podemos tratar a imagem como ilustrao da palavra nem o texto
como explicao da imagem. O conjunto texto-imagem forma um comple-
xo heterogneo fundamental para a compreenso das condies represen-
tativas em geral (Schollhammer, 2001, p. 33).
Embora esteja inscrito no cdice, um formato que remonta ao
sculo I da era crist, o livro ilustrado contemporneo uma forma
de narrar que se insere no regime de representao da alta moder-
nidade por ser constitudo justamente por essa interdependncia
entre texto e imagem.
Uma vez que texto e imagem so imbricados, necessrio que o
estilo visual do ilustrador esteja afinado com o texto. O estilo, por sua
vez, se relaciona diretamente com a tcnica empregada pelo ilustra-
dor, embora nem sempre seja possvel discerni-la, uma vez que muitosilustradores atualmente trabalham com tcnicas mistas. Sara Fanelli,
Andrs Sandoval e Beatrice Alemagna utilizam uma combinao de
tcnicas, como a colagem, tinta (leo, guache, aquarela) e lpis.
As ilustraes feitas por Daniel Bueno para o livro Bili com limo
verde na mo (2009), de Dcio Pignatari, traduzem os princpios de
composio propostos pelos poetas concretistas para os quais a cola-
borao das artes visuais, artes grficas, tipogrficas era fundamen-
tal (Pignatari, 2012). Texto e ilustrao encontram-se amalgamados naspginas para criar uma totalidade verbivocovisual, o que possvel
em funo de uma estreita harmonia com o projeto grfico. Os elemen-
tos tipogrficos evocam desenhos e os desenhos formam letras, como
na pgina em que a ilustrao sugere uma perna e ao mesmo tempo a
letra L. Bueno nos oferece uma releitura dessa totalidade verbivocovi-
sual, propondo um jogo em que os elementos grficos so como brin-
quedos. Os desenhos so feitos a partir da juno de alguns elementos
geomtricos fundamentais, tais como o crculo e o tringulo, que seequilibram e se desequilibram na pgina, traando o percurso instvel
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Bili com limoverde na mo(2009), Dcio
Pignatari eDaniel Bueno
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de Bili. O caminho da personagem at o stio do av, numa tarde em
que ela constata por tudo aquilo que eu sei e que eu no sei, com quase
treze anos, a minha vida no est legal, transformado em uma expe-
rincia plstico-sonora.
No caso deLampio & Lancelote,temos tambm uma adequaoentre o texto e o estilo que intensifica o efeito esttico do livro. As
gravuras feitas com carimbos por Fernando Vilela assemelham-se
tanto xilogravura popular do nordeste como s iluminuras
encontradas nos livros da Idade Mdia. O ilustrador foi buscar
referncia para as roupas de Lampio nos cordis e nos registros
fotogrficos e cinematogrficos do cangao, como o longa-metragem
Deus e o diabo na terra do sol(1964), dirigido por Glauber Rocha.
O estilo visual do livro dialoga com o texto em verso, que por suavez se relaciona com os registros literrios do nordeste brasileiro e
os romances de cavalaria espanhis. Vilela ainda agua a relao das
imagens com os personagens ao atrelar a cor prateada Lancelote
e o tom cobre Lampio, por lembrar o couro das bolsas, chapus e
sandlias do heri.
O que importa em relao ao estilo que este se mostre afinado
com a narrativa. preciso que o trao, a tcnica e o esquema de cores
estejam condizentes com o assunto ou tema do livro ilustrado, ressal-
tando o significado do texto. As possibilidades de criao para cada
livro ilustrado so imensas uma vez que novas ilustraes podem
reconfigurar o sentido da narrativa. Rui de Oliveira aponta que em vez
de buscar reproduzir o que est no texto, o ilustrador deve criar uma
interpretao prpria do mesmo. E aquilo que ele cria decorre de uma
apreenso dos significados que existem entre as palavras:
(...) a arte de ilustrar se localiza mais na sombra do que nos aspectos simb-
licos da palavra. O olhar pergunta mais para o que est na escurido do que
para o que est nos significados dos objetos representados luz. A ilustrao
no se origina diretamente do texto, mas de sua aura (Oliveira, 2008, p. 32).
A questo delicada pois pressupe um trabalho de leitura do
texto por parte do ilustrador que contemple o que est nas entreli-
nhas. O ilustrador desenha imaginando dar forma quilo que nem
sempre est dito. Trata-se de uma tarefa criadora, que pressupe uma
capacidade de apresentar imagens que de alguma forma no sejam
meros espelhos do texto, at porque muitas vezes o texto pode sercompreendido sem a imagem: (...) a ilustrao sendo arte no
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pode ser subordinada exclusivamente ao texto literrio, relao
texto-imagem (Oliveira, 2008, p. 101).
Embora a especificidade do ilustrador de livros seja criar uma
visualidade que esteja em dilogo com a palavra, seu trabalho est
inserido dentro de um contexto de referncias visuais e estticasespecficas provenientes no s do seu tempo como tambm da
sua trajetria. As preferncias estticas dos ilustradores acabam
influenciando os seus estilos. Rui de Oliveira, por exemplo, transpe
para muitos trabalhos os princpios do pr-rafaelismo e da pintura
medieval. Embora Oliveira seja defensor do ponto de vista de que o
ilustrador deve dominar as tcnicas clssicas de desenho para realizar
um trabalho de qualidade, ele tambm ressalta que o desenho tem
como funo tornar perceptveis os objetos, e no dar formas acabadasa eles (Oliveira, 2008, p. 118). Existe sempre a tenso entre o que o texto
sugere e a traduo visual realizada pelo ilustrador.
H muitos tipos de relaes possveis entre o texto e a ilustrao.
No caso dos contos de fada, e outras narrativas comoAlice no Pas das
Maravilhas, que ao longo do tempo foram ilustrados pelos mais diver-
sos artistas, o texto se sustenta por si s. Nesses casos, o estilo da ilus-
trao capaz de reconfigurar o significado do texto, traduzindo aquilo
que o ilustrador foi capaz de deduzir das entrelinhas: Justamente pelo
poder cristalizador da imagem, o ilustrador deve ser o mais aberto
possvel em seu trabalho (Oliveira, 2008, p. 50). A polissemia das ima-
Alice no Pasdas Maravilhas
(2009), LewisCarroll e Luiz
Zerbini
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gens fundamental para no reduzir o texto a um significado unvoco:
Penso que o ato de criao de imagens se origina no diretamente na
palavra, mas no entre palavras (idem, p. 149).
A percepo do que apenas indicado ou sugerido pelas pala-
vras depende da sensibilidade do ilustrador e do tipo de atmosfera queeste pretende criar com as ilustraes. Podemos tomar o conto popu-
lar Chapeuzinho Vermelho como exemplo de como a ilustrao pode
reconfigurar o texto. No caso de narrativas como essa, cuja transmisso
dependeu da tradio oral, a escolha das palavras por quem pretende
recont-la e das ilustraes responsvel pela criao de uma determi-
nada atmosfera.
Ao longo dos sculos XIX e XX, alguns detalhes da histria Cha-
peuzinho Vermelho foram progressivamente amenizados (ou omiti-dos) por serem considerados inadequados para o pblico infantil. Mui-
tas verses modernas do conto excluem a parte narrada por Charles
Perrault em que Chapeuzinho Vermelho se deita na cama com o lobo
e devorada por ele. Mas, independente dos detalhes da narrativa, os
diferentes tipos de estilos de ilustrao atribuem ao texto sentidos
muito singulares. As imagens de Gustave Dor (1867) revelam um lobo
assustadoramente realista. Beni Montresor (1991) (a partir do texto de
Perrault) e Rui de Oliveira, no livro-imagem Chapeuzinho Vermelho e
outros contos por imagem (Sandroni; Schwarz, 2002), oferecem verses
que dialogam com as imagens de Dor.
Oliveira nos apresenta imagens em preto e branco de um lobo
antropomrfico e ao mesmo tempo mitolgico. As pernas poderiam
pertencer a um homem forte enquanto o torso musculoso nos lem-
bra o minotauro. Alm disso, a folhagem da floresta assemelha-se
vegetao encontrada na mata atlntica, o que ancora a narrativa em
terras tropicais.
A verso de Montresor, alm de ser, segundo o ilustrador, umahomenagem ao trabalho de Gustave Dor, apresenta um elegante
lobo vestido de terno branco e chapu. Chapeuzinho claramente vive
em uma cidade vitoriana, fato atestado pelo estilo arquitetnico das
construes em uma das pginas duplas no incio do livro. A ilustra-
o do lobo literalmente devorando a menina, no entanto, desmente a
aparente civilidade da fera. A narrativa chega ao fim com uma srie de
trs pginas sem texto em que Chapeuzinho flutua dentro da barriga
do lobo como se fosse um beb em gestao. A silhueta de um caadorna ltima pgina apenas sugere a possibilidade de um resgate, coisa
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ChapeuzinhoVermelho (1867),
Gustave Dor
ChapeuzinhoVermelho e
outros contos porimagem (2002),
Luciana Sandronie Rui de Oliveira
ChapeuzinhoVermelho (1991),Beni Montresor
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que no acontece antes do
livro terminar.
Walter Crane, um dos
pioneiros na concepo do
livro ilustrado como umaarquitetura em que a rela-
o entre a ilustrao, o
texto e o design so funda-
mentais, tambm desenhou
uma verso de Chapeuzi-
nho Vermelho(1875) com as
cores vibrantes que ele jul-
gava adequadas s crianas.O seu lobo se parece com o
de Gustave Dor, um ani-
mal que anda sobre quatro
patas, devora a av de Cha-
peuzinho e depois morto por um caador, como acontece em muitas
verses modernas do conto.
As verses de Chapeuzinho Vermelho inspiradas nos movimen-
tos modernos de pintura so muito diferentes dessas obras que apre-
sentam cenrios (Montresor foi afinal um cengrafo notrio) onde se
desenrola a ao. Kveta Pacovsk, por exemplo, apresenta um estilo gr-
fico que nos remete ao trabalho dos pintores Joan Mir, Henri Matisse e
Paul Klee. A ilustradora trabalha a partir da verso dos irmos Grimm
(2008) e o seu uso das cores e das formas geomtricas contrasta com a
economia cromtica e o estilo mais clssico de Dor e Oliveira. Tanto
o lobo quanto Chapeuzinho so personagens desenhados a partir de
quadrados. Pacovsk utiliza o espao da pgina em branco e nos ofe-
rece uma floresta feita a partir de pequenos riscos vermelhos. Todos oselementos ocupam o mesmo plano na pgina, desarticulando a noo
clssica de perspectiva. O lobo construdo a partir de traos minima-
listas: dois olhos, um trao colorido na vertical e os dentes ressaltados.
As formas geomtricas que no replicam o real acabam por convocar o
leitor a participar da fabricao de sentido de um modo ldico.
Os livros de Pacovsk apresentam linguagens grficas mais sin-
tticas, afastando-se dos modelos clssicos representacionais, segundo
os quais a ilustrao se apresenta como cpia das figuras no mundo:
ChapeuzinhoVermelho (1875),
Walter Crane
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ChapeuzinhoVermelho (2008),
Kveta Pacovsk
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A arte no reproduz o visvel, mas torna visvel. A essncia da arte grfica
conduz facilmente, e com toda razo, para a abstrao. O modo esquem-
tico e fabuloso do carter imaginrio se oferece e ao mesmo tempo ex-
presso com grande preciso. Quanto mais puro for o trabalho grfico, isto
, quanto maior a nfase sobre os elementos formais em que se baseia a
apresentao grfica, menos apropriado ser o aparato para a apresenta-
o realista das coisas visveis (Klee, 2001, p. 43).
Essa reduo a formas elementares relaciona-se com um pro-
cesso mais amplo, decorrente das transformaes no campo da arte
no comeo do sculo XX, em que o construtivismo um dos reflexos
mais radicais. Trata-se de um estilo em que as formas geram efeitos e
aludem s coisas do mundo em vez de represent-las. Essa nfase na
forma, na incompletude da imagem, que no se apresenta na pgina
como uma paisagem descritiva mas como fragmentos indiciais (no
sentido empregado por Pierce ao falar de ndice) tambm uma carac-
terstica do trabalho de designers que criaram livros ilustrados com
linguagens grficas apuradas e sintticas, como Bruno Munari (2007),
Paul Rand (2007), Leo Lionni (2005) e, mais recentemente, Katsumi
Komagata (1997).
Warja Lavater radicaliza a ideia de criar imagens no represen-
tacionais ao compor narrativas constitudas por um jogo de cones,
em que cada personagem ou cenrio representado por uma formageomtrica. Na sua verso sem texto de Chapeuzinho Vermelho (1965),
em formato sanfona, o lobo um crculo preto, o caador um crculo
marrom, a floresta crculos verdes e a Chapeuzinho, evidentemente, o
nico crculo vermelho.
Independente do estilo utilizado pelo ilustrador ao recontar a his-
tria de Chapeuzinho Vermelho, o que importa que a narrativa seja de
algum modo reconhecvel, mesmo que por meio de recursos como o da
ironia, que provocam estranhamento. Alis, o fato de ser uma histriamuito conhecida que possibilita ao ilustrador fazer um contraponto s
vezes cmico ou irnico s verses tradicionais. o caso de Uma Cha-
peuzinho Vermelho (2008), de Marjolaine Leray, em que Chapeuzinho
surpreende o lobo bem como o leitor. Primeiro, assim como em muitos
livros mais recentes, em que h uma economia formal na linguagem,
Leray trabalha com a sntese grfica. Ao longo do livro, v-se apenas o
lobo e Chapeuzinho, dispostos sempre, com exceo da primeira dupla,
na pgina par de cada dupla. O texto aparece na pgina mpar, comuma tipografia que parece ter sido manuscrita e assemelha-se grafia
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ChapeuzinhoVermelho (1965),
Warja Lavater
UmaChapeuzinho
Vermelho (2008),Marjolaine Leray
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de uma criana. As falas de Chapeuzinho so sinalizadas com uma tipo-
grafia vermelha. Quando o lobo se manifesta, temos letras em preto.
Alm do lobo e de Chapeuzinho, no h nenhum outro elemento
em cena exceto duas linhas pretas que sugerem a quina de uma
mesa. Como os cenrios em geral vinculados narrativa casa da me,floresta, casa da av, caador e assim por diante esto ausentes, toda
a emoo da histria provocada pelo trao preciso que caracteriza
os personagens. O lobo, que parece ter sido feito de grafite, esguio,
tem as patas longas (mesmo as dianteiras que parecem mos) e olhos
extremamente expressivos. Chapeuzinho, por sua vez, mida, prati-
camente um capuz ambulante, com pernas feitas com um risco fins-
simo, que lembram aquelas de um pssaro.
A narrativa apresenta um recorte da histria, ou seja, condensatoda a ao em apenas um encontro do lobo com Chapeuzinho, sem a
presena da av. Comeamos com o lobo pegando Chapeuzinho pelos
ombros e levando-a no colo at uma mesa. Comea ento uma srie de
ameaas enfticas por parte do lobo que pretende comer Um pedao
de carne bem vermelha e sangrenta!. Chapeuzinho reage situao
fazendo comentrios aparentemente casuais a julgar por sua postura
corporal e gestual: Ulal! Que orelhas enormes voc tm!, E tem uns
olhos bem grandes, sabia? ou Gente, que dentes!. A conversa mole de
Chapeuzinho posterga o momento em que ela ser devorada e desesta-
biliza o lobo em suas tentativas de assust-la. Ela apresenta seu ltimo
recurso, diz que ele no poder com-la porque tem mau hlito. Meio
constrangido, o lobo aceita uma bala, sem se dar conta de que se trata de
um doce fatal. Tolinho, resume Chapeuzinho na ltima pgina dupla.
Outra releitura contempornea da histria narrada por Perrault
Akazukin (2008), de Yukari Miyagi. Trata-se de um livro de imagem
com pouqussimo texto (em forma de breves dilogos). Akazukin
aproxima-se do livro de Marjolaine Leray na medida em que apre-senta um trao cujo estilo primeira vista lembra aquele dos dese-
nhos infantis. Mas as imagens parecem feitas por crianas s pri-
meira vista, pois o rigor da ilustradora na composio confere uma
fora singular s pginas. No h consenso entre os ilustradores em
relao ao que consideram uma ilustrao de qualidade. O ilustrador
Rui de Oliveira ressalta que o artista precisa conhecer as tcnicas cls-
sicas de desenho:
Pela prpria caracterstica de sua profisso interpretar textos diversos ,
o ilustrador tem que dominar corretamente a figura humana, ter noes
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seguras de anatomia, dominar a representao do espao, da perspectiva,
da luz, das sombras etc (2008, p. 39-40).
O livro de Miyagi contradiz a posio de Oliveira uma vez que
a autora e ilustradora faz uso de recursos na composio que no
incluem a representao clssica da figura humana, mas nem por
isso geram um resultado menos impactante. Nelson Cruz, por sua vez,
afirma que para um livro nascer, no se necessita da tcnica apurada
de ilustradores experientes, e sim de uma boa histria e fluncia para
cont-la (Cruz apud Oliveira, 2008, p. 189). Podemos entender por
fluncia a capacidade do ilustrador de engajar o leitor por meio de
uma coerncia esttica (mesmo que tal coerncia seja uma linguagem
visual aparentemente incoerente!), que no se reflete exclusivamente
na ilustrao virtuosa segundo parmetros clssicos do desenho, e muitas vezes inspirada na arte moderna que rompe com o imperativo
da representao e da perspectiva.
Miyagi reconta Chapeuzinho por meio de uma tcnica pouco
comum nos livros ilustrados, desenho com canetinhas hidrocor (geral-
mente usadas por crianas). A paleta de cores das ilustraes aquela
que se pressupe existir em um conjunto de canetas cor de rosa, azul
piscina, azul marinho, verde claro e escuro e assim por diante e as cores
no se misturam como fariam se a ilustradora empregasse aquarela ouqualquer outra tinta. O trao caracterstico da caneta hidrocor, falhado,
usado para criar diferentes texturas na imagem. O lobo, por exemplo,
aparece bem esmaecido em uma das ilustraes, como acontece com os
desenhos feitos com pilots velhos, praticamente sem tinta.
A histria comea antes mesmo da folha de rosto, com uma esp-
cie de guarda em que o ttuloAkazukinaparece mltiplas vezes dentro
de um desenho que sugere uma boca grande com dentes. Em seguida,
temos um prlogo, que tambm funciona como uma espcie de guardasolta, em que o lobo caminha em meio floresta. A folha de rosto na
dupla de pginas em seguida apresenta o ttulo mais uma vez em letras
garrafais manuscritas. H elementos da histria dispostos em torno do
ttulo, que parecem esmaecidos como se tivessem sido desenhados do
lado inverso do papel, por onde se entrev a sombra do pilot. No h
nenhuma tipografia sistematizada, o ttulo tem tipografias diferentes
na capa, na guarda e na folha de rosto. Alis, uma das caractersticas
singulares do livro que, apesar da aparente falta de p
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