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Pigmaleoa
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PIGMALEOA de Millr Fernandes
(A ltima Casa)
Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, em 1955, tendo como atores prin-
cipais Rubens Corra e Ivan Albuquerque. Direo de Adolfo Celi.
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PERSONAGENS
ISMNIA SCHERZZO: Mulher de pouco mais de quarenta anos.
JLIA SCHERZZO FIORE: Sobrinha de Ismnia, dezoito anos, bonita e extraordinari-
amente simptica.
EVANDRO SCHERZZO: Filho de Ismnia, inteligncia, cultura e inutilidade.
REGINA SCHERZZO FIORE: Irm de Ismnia, um pouco mais velha do que ela.
JOSU EPSTEIN: Playboy, pouco mais de trinta anos.
LUSADA: Criada de Ismnia, mulata jovem, muito simptica, no pernstica na
maneira de dizer, mas no que diz.
PADRE ANSELMO DA ANUNCIAO: Entre quarenta e cinquenta anos. Levssimo
sotaque, no se distingue se de italiano ou castelhano.
JOS SILVA: Delegado, entre quarenta e cinquenta anos.
ROCHA (CORRETOR): Pouco mais de trinta anos. Tipo de nortista atarracado e mo-
reno escuro.
CARREGADOR, figuras que aparecem ao fundo, etc
POCA: 1952. A casa deve contrastar com os mveis, tendo sido construda uns cin-
qenta anos antes.
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CENRIO: Living. Casa antiga, construo slida, com poro habitvel e sto. Os
mveis contrastam com o estilo da construo: so modernssimos. Telefone, a um
canto do largo corredor que conduz ao interior da casa. Televiso em algum lugar.
Duas janelas largas se abrem direita, tendo no meio uma porta de duas folhas que
d acesso ao living. Na parede do fundo, outra janela, deixando ver, a certa distncia,
galhos de rvore. Mais ao fundo, parte de servio de um arranha-cu, na qual apare-
cem, durante a representao, a critrio da direo, moradores do edifcio fazendo v-
rias coisas: uma empregada que molha um pano, no tanque; uma mulher enrolada em
toalha, que tira da corda uma roupa de baixo; um sujeito que vem e fuma cachimbo
algum tempo; uma velha que chama um garoto na rua; um gordo seminu correndo
atrs de empregada; etc.
As janelas, devido ao plano elevado em que est o living, ficam mais ou menos altu-
ra da copa das rvores. Havendo no exterior uma pequena escada que d acesso
casa, as pessoas antes de entrar sero vistas (ou no) critrio da direo. No corre-
dor, porta esquerda, dando para um quarto de dormir. Janela em frente, igual s ou-
tras, tambm dando para o jardim. Relgio de parede, o corredor continua ao fundo
dobrando esquerda. No prprio living, outra porta de quarto de dormir, esquerda.
Escada esquerda, conduz para o quarto no sto. V-se, da plateia, a porta que d
para esse quarto. Muitos quadros nas paredes dos mais variados estilos. Pequeno
bar. Jogada sobre o brao de uma poltrona, uma cala de smoking. Nas costas de
uma cadeira, o palet do mesmo. Pendurada num lustre de parede, uma gravata
black-tie. Jogada noutro lado, uma camisa. Capa de chuva noutro lado. Copos em v-
rios lugares, usados. Balde de gelo. Garrafa de usque vazia. Cinzeiros, etc. Jornais
espalhados no cho. Pedaos de um copo partido. Mais ou menos debaixo da escada,
fica o escritrio de Ismnia. Uma escrivaninha, mquina de escrever IBM eltrica,
muitas revistas e jornais, numa grande mistura. Na parede, embaixo da escada, por
trs de um quadro, h um pequeno cofre embutido. Estreo, etc. ...
(Projeo enorme: COPACABANA 1952.)
CARLOS LACERDA: (off) Esses, que nunca entenderam a intangibilidade do poder
moral da imprensa livre, que pretendem me botar na cadeia, on-
de eles que deveriam estar, so os tubares do desfalque. Lu-
tero Vargas, um badameco, Samuel Wainer, um brasileiro da
Bessarbia. Se fingem de nacionalistas quando so apenas ba-
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nanistas. Foram imaginados e criados dentro de um plano sinis-
tro de poder do caudilho Getlio Vargas, o Pai dos Pobres. Isto ,
pai de milhes de brasileiros miserveis e analfabetos gerados
por ele prprio em 20 anos de desgoverno. Milhes que por cau-
sa dele morrem de fome. Pai dos Pobres, ah! o que Getlio , de
pleno direito, a Me dos Ricos. Esses abutres da rapina, que
devoram at as guias do Palcio do Catete.
(Ouvem-se rudos de rua. Martelos de obras, carros que passam, espaadamente,
uma serra de construo, um prego de amolador, estridente: Amooooolaaaaaaato-
re! quando comea a ao esses rudos devem ser diminudos ou desaparecem, a
critrio da direo. Esses rudos podem ser intercalados tambm durante a ao da
pea, nos lugares indicados, ou quando a direo os achar convenientes, sempre com
a necessria reao dos atores, se os rudos forem fortes. Ao comear a pea o living
est vazio. Ouve-se o cantar de um passarinho. So duas horas da tarde de um dia de
sol, em fins de agosto. Um automvel para, batida de porta, som de mala posta no pa-
tamar, l fora. A campainha da porta toca. Lusada atravessa a cena, saindo da cozi-
nha ao fundo, limpando as mos no avental. Apanha algumas revistas que esto no
caminho, recolhe vrias outras coisas e joga-as sobre a mesa, abre a porta.)
JLIA: (Por trs da porta, ainda no vista.) Boa tarde. Dona Ismnia
est?
LUSADA: Est, sim senhora. (Afasta-se, dando passagem a Jlia. Jlia en-
tra, simplesmente bem vestida, como quem vem de viagem, com
grande mala, pesada, na mo. Lusada pega a mala, pe-na a
um canto do corredor.) A senhora Dona Jlia, no ?
JLIA: (Sentando-se) Sou.
LUSADA: Sua tia s esperava a senhora amanh de manh. Nem arrumei
seu quarto.
JLIA: Pois ; tive que antecipar a viagem.
LUSADA: (Aproxima-se da porta esquerda. Bate.) Dona Ismniaaaaaaa!
(Espera. Bate.) Dona Ismniaaa!
ISMNIA: (De dentro.) Ahn?
LUSADA: Tem uma pessoa aqui que deseja falar com a senhora. (Ri,
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cmplice, para Jlia. Jlia sorri. Lusada, em tom mais baixo.) Ela
vai ter uma bruta surpresa.
ISMNIA: (De dentro.) Manda esperar um instante.
LUSADA: Sim senhora. (Comea a arrumar as roupas espalhadas. Para
Jlia.) A senhora desculpa o desarrumo, mas o tempo no d pa-
ra nada. A senhora no acha que o tempo passa cada vez mais
depressa? Noutro dia li na revista um artigo...
JLIA: Onde eu moro o tempo no passa nunca...
LUSADA: meeeesmo? Aqui o tempo passa assim... (Estala os dedos.) A
senhora no v? 1952 comeou ontem e j estamos no fim...
JLIA: Isso .
LUSADA: A senhora mora no interior, no ?
JLIA: Em Minas.
LUSADA: Eu sou daqui mesmo. Nasci em Cascadura. (Pausa) Mas fiz to-
dos os meus estudos na Rocinha. (Pausa.) Seu quarto aquele
do sto. Tem uma vista linda. Se v toda a favela.
JLIA: timo. Ser que a titia vai ficar aborrecida por eu chegar hoje?
LUSADA: Dona Ismnia aborrecida? Eu nunca vi ela aborrecida. A melhor
patroa que eu j tive. s um pouquinho... (Faz sinal de malu-
ca), distrada. (Junta os cacos no cho, pe-nos na bandeja.) A
senhora muito parecida com o filho dela, o Dr. Evandro.
JLIA: mesmo? Eu no conheo ele.
LUSADA: No conhece seu primo? Que coisa! (Pausa) O Dr. Evandro
igualzinho me dele. Tambm, no liga para nada. Olha a.
(Mostra em volta. Pega a carteira cada num canto.) Depois so-
me... de quem a culpa? (Abre a carteira.) Tambm, s tem dez
mil cruzeiros. (Joga a carteira numa gaveta da pequena estante,
junto janela, ao fundo.) A senhora tambm assim?
JLIA: Um pouco mais, um pouco menos.
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LUSADA: Oh, eu tambm! Falo, falo e nem me apresentei. Meu nome
Lusada.
JLIA: Muito prazer. (Estendendo a mo. Lusada a aperta depois de
limpar no avental.) O meu Jlia Scherzzo Fiore.
LUSADA: Bonito nome.
JLIA: Italiano. O seu nome tambm bonito. Simples e bonito.
LUSADA: Meu pai era portugus. O sonho dele era ter vrios filhos e botar
em todos o mesmo nome para poder dizer: Aqui esto os meus
Lusadas. Mas s nasci eu, coitado. (Noutro tom.) A senhora j
leu os Lusadas? (Jlia assente, sorrindo, como quem diz natu-
ralmente.) Para mim, o maior pico portugus. (Pausa)
JLIA: (Acenando com a cabea.) Ela sempre levanta a essa hora?
LUSADA: (Faz que sim.) No trabalho dela tem mesmo que ir dormir de
madrugada... tanta festa. (Acaba de pr as coisas na bandeja.)
Um momento, fique vontade. (Sai, levando a bandeja, dobra o
corredor ao fundo. Jlia fica olhando a sala que a cerca, numa
curiosidade natural. O pssaro canta l fora. De repente o olhar
de Jlia se detm sobre a estante. Abre a gaveta, com movimen-
to quase de sonmbulo, tira a carteira e, de dentro dela, a nota
de dez mil cruzeiros. O telefone toca. Ela se assusta. Surge Is-
mnia ao fundo do corredor. Veste um robe alinhadssimo.)
ISMNIA: (Para dentro.) Eu atendo, Lusada. (Pega o telefone, do ngulo
em que est no v Jlia. Esta, nervosa, pe o dinheiro no bolso
do casaquinho.) Al? 46-6666. Oh, my dear. How glad to hear
you! When did you arrive? I never expected you would be back
so soon! (Pausa) How long? So much? How lovely. Right. Pergo-
la do Copa? Ok! Ill meet you there in the afternoon, its a deal.
Five oclock. Right. Byyyyye! (No meio do telefonema, Jlia se
deixa ver. Ismnia faz cara de espantada e satisfeita. Meno
para que ela se aproxime. Abraa a sobrinha enquanto fala,
aperta-a carinhosamente, beija-a. Larga o telefone.) Jlia, minha
querida, voc!? (Afasta-a para v-la melhor.) Que beleza! Uma
moa!
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JLIA: Tambm, tia, j estou com dezoito. Maior.
ISMNIA: , estou ficando velha...
JLIA: (Beija-a.) Velha? Deus castiga! Moa, bonita e elegantssima.
ISMNIA: (Vaidosa) Mesmo? (Noutro tom.) Qual, isso bondade. Inda
mais com essa vida!...
JLIA: Acho sua vida infernal! Todo dia festas, jantares, estreias...
Guardo todas as suas colunas. uma profisso divina!
ISMNIA: (Ri) O mal de sua gerao esse: no distingue o que divino
do que infernal. (Jlia encabula.) Minha profisso chata como
qualquer outra. E ainda tenho que jantar trs vezes por noite. Pe-
lo menos fingir.
JLIA: um sonho estar aqui com a senhora... E que casa bonita. Es-
tava olhando.
ISMNIA: Ah, isto j foi bom. Em 1945 esses mveis eram a ltima pala-
vra. (Riem) A casa sim, continuo achando uma beleza. Slida,
elegante. Os portugueses sabiam fazer casas, mas acabaram
com todas. Esta a ltima casa de Copacabana!
JLIA: No diga. No tem mais nenhuma?
ISMNIA: (Faz que no)Perto de dois milhes de pessoas moram aqui,
umas empilhadas em cima das outras. (Abrange as vrias jane-
las num s gesto.) Edifcios, edifcios, apartamentos e aparta-
mentos. Um pombal gigantesco. Temos um ttulo que ningum
discute a maior promiscuidade do mundo.
JLIA: Fiquei tonta com a cidade. Estou acostumada com Vitiligo, e co-
nheo Belo Horizonte. Nunca tinha visto nada igual ao Rio. Qua-
se morri quando o avio foi descendo. Meu corao ficou assim.
ISMNIA: Voc viu aquela confuso de trfego ali na Glria? No im-
pressionante?
JLIA: Pensei que nunca mais fosse sair. O txi levou quase uma hora.
(Riem)
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ISMNIA: Eles esto planejando aterrar toda a baa pra resolver o proble-
ma.
JLIA: O monumento ao Ibrahim Sued novo tambm, no ?
ISMNIA: Ele no merecia uma coisa assim. (Ligeira pausa) o melhor da
nossa profisso. (Mostra o jornal.) A inaugurao foi ontem.
ISMNIA: Oh! (Olha) Uma bela festa. Pena voc no ter chegado a tempo.
JLIA: (Olhando o jornal.) A senhora est elegantssima! um modelo
fantoche?
ISMNIA: (Vaidosa) No, palhacinho. Eu adoro essa nova linha trs-pra-
frente. (Ri) (Telefone toca.) Al? 46-6666. Pierre! quel joli. Non...
Pas encore! Oui... Mais non... Ma tante a perdu sa plume... Oui,
dans le jardin de mon oncle... son chapeau, aussi... Non, cela
cest entre nous... Toi et moi... Nous avons, vous avez, ils ont. Eh
bien... Oui. Bye, Bye... (Desliga o telefone.)
JLIA: (Mostrando o aparelho.) uma televiso?
ISMNIA: Acabaram de inaugurar. (Liga)
JLIA: Eu sei.
CARLOS LACERDA: (Na televiso.) inegvel, imprescindvel. Demolirmos a cana-
lha, arrombar a porta da corrupo e do crime. O crime mora no
Catete!
ISMNIA: o Carlos Lacerda. Um jornalista formidvel. Fala o dia inteiro.
(Tenta outro canal, desliga. L fora o passarinho canta.) V esse
passarinho? Passa o dia inteiro cantando nessa rvore a fora.
Se resolvermos vender a casa ele est perdido _ no tem pra
onde ir. (Jlia ri.)
JLIA: A senhora est pensando em vender?
ISMNIA: Mais dia menos dia, sou obrigada. (H um baque no telhado.)
Ouviu? Tudo quanto lixo atiram em cima da casa. Todo ms
tenho que mandar trocar uma poro de telhas. Depois, os la-
dres... Nesses vinte anos em que estou aqui j assaltaram trs
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vezes. Mas me conte mais sobre voc...
JLIA: Sobre mim, titia?... Que que eu posso contar? Em Vitiligo no
acontece nada, nunca. Os dias so brancos e as noites so pre-
tas... tudo.
ISMNIA: Mas vocs tm uma manso, com todo o conforto moderno.
JLIA: Todo conforto moderno! Piscina, luz eltrica, grandes salas... tu-
do a cento e vinte quilmetros de Pouso Novo, a cidade mais
prxima. Todo o conforto moderno... nem televiso tem. Titia, eu
quero o Rio, eu quero gente, quero conhecer esse Ibrahim, ouvir
esse Lacerda. Eu quero o Rio.
ISMNIA: Vai ter tudo, conhecer tudo, ouvir tudo. Em dois meses vai im-
plorar por silncio e solido.
JLIA: Eu? Nunca! (Entra Lusada.)
LUSADA: Dona Ismnia, telefonaram de Minas antes da senhora acordar...
ISMNIA: Quem foi?
LUSADA: uma prima sua, Dona Ricarda. Tomei nota. Disse que liga s
quatro horas.
ISMNIA: (Para Jlia.) Ela sabe da sua vinda?
JLIA: (Meio nervosa.) No. Acho que no. S se mame falou com
ela. (Ismnia olha-a espantada.)
ISMNIA: Alguma coisa errada?
JLIA: No, nada. (Pausa. janela.) Eu podia dar uma volta pra ver a
cidade?
ISMNIA: Faz o que quiser, menina. Voc aqui livre. Vou pedir ao Evan-
dro para lhe acompanhar, t? Ainda d pra aproveitar a tarde.
Pede a ele pra te levar ao Arpoador. um pouco longe, mas vo-
c vai adorar.
JLIA: A senhora um anjo.
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ISMNIA: ( Lusada.) Evandro j acordou?
LUSADA: No senhora. Vou chamar. (Bate na porta do quarto de Evan-
dro.) Dr. Evandro! Dr. Evandro! (Bate)
EVANDRO: (De dentro.) Ahn, que foi?
LUSADA: J mais de trs horas, Dr. Evandro. (Sai)
ISMNIA: (Pausa. Fuma um cigarro.) E tua me?
JLIA: Aquilo! (Diz aquilo como quem diz aquilo mesmo.) To dife-
rente da senhora!
ISMNIA: Voc.
JLIA: Voc?
ISMNIA: Me chama de voc.
JLIA: To diferente de voc. Nem parecem irms.
ISMNIA: natural. Eu sou a ovelha negra da famlia. (Pausa) Por que ela
no veio? o que eu mais desejava na vida; fazer as pazes com
ela.
JLIA: difcil algum viver bem com ela... sempre ranzinza, sempre
achando que as coisas no esto direito. Nem papai aguentou.
(Entra Lusada. Liga o aspirador de p e comea a pass-lo no
corredor com um barulho ensurdecedor.)
ISMNIA: Lusada, j no basta os barulhos l de fora? (Lusada obedece.
Sai)
JLIA: Adoro esse barulho. (Refere-se cidade.) L em casa, mame
sempre diz: Isto que paz. Pode-se ouvir o zumbido de uma
mosca. Jamais fui f desse zumbido.
ISMNIA: Mais tarde voc vai gostar. (Sonhando) No tinha mais esperan-
as de reatar com ela... Uma eternidade!
JLIA: Mas eu me lembro de ver a senhora... vocs juntas...
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ISMNIA: Em reunies de famlia s quais era impossvel sua me deixar
de ir. Mas nunca me dirigia a palavra... Enfim... (Suspira) Sempre
dura, sempre reta na sua posio. Eu tinha errado, ela no per-
doava. No era mulher. Era a tbua da lei.
JLIA: Nem queira saber o que eu tive de fazer para poder vir. Como
mais cedo ou mais tarde a senhora vai saber, eu vou lhe contar
logo... Estou muito envergonhada, mas...
ISMNIA: Que foi? (A campainha toca. Ismnia abre a porta.) Padre An-
selmo da Anunciao! Que prazer v-lo aqui.
PADRE: Boa tarde, Dona Ismnia, venho mais uma vez incomod-la com
a minha presena. Sirva-lhe isso como uma pequena ajuda para
entrar no cu. (Ismnia beija-lhe a mo.)
ISMNIA: No vou pra l, Padre. S vou onde sou convidada. Oh, seu Ro-
cha, o senhor tambm? Boa tarde. (Entra o corretor Rocha tra-
zendo pasta embaixo do brao. Vestido de terno branco. Beija a
mo de Ismnia, cafajeste querendo bancar alinhado.)
ROCHA: Boa tarde, Dona Ismnia. Cheguei em hora imprpria ou indevi-
da.
ISMNIA: Digamos incmoda, seu Rocha. Padre, esta minha sobrinha
Jlia, de quem eu lhe falei. Jlia, Padre Anselmo.
PADRE: Opinio de um leigo: muito bonita! (Vendo Rocha.) Se a se-
nhora quiser resolver algo com o cavalheiro, no se incomode
por minha causa. Eu fico conversando com sua bela sobrinha.
ROCHA: Oh, senhor Padre, por favor. (Se abana. Abre a pasta. Se aba-
na.) Est um calor danado (olha o padre), quer dizer infernal
(olha o padre), digo, um calor tremendo. (Padre sorri.) Trouxe os
papis para a senhora assinar.
ISMNIA: O senhor vai ficar furioso comigo, seu Rocha, mas voltei atrs.
(Determinada) No vou vender a casa!
ROCHA: Dona Ismnia! No compreendo como... Ontem mesmo...
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ISMNIA: Passei duas noites sem dormir, angustiada por ir embora. No
consegui imaginar... O senhor vai me perdoar. Pago tudo que
gastou, todas as despesas...
ROCHA: No s isso, evidente. H um compromisso com a construtora,
j...
ISMNIA: Eu sei que no agi muito bem, mas no assinei nada: a deciso
essa. Prefiro me arrepender agora, do que depois.
ROCHA: Mas so trezentos milhes de cruzeiros! A senhora no acha
proposta melhor.
ISMNIA: No se trata de dinheiro.
ROCHA: uma loucura ficar com essa casa! Sabe quanto lhe est cus-
tando o aluguel mensal? Seis milhes de cruzeiros! o que a
senhora est pagando. Todo ms!
ISMNIA: T. Mas eu ficaria doida se tivesse que morar numa dessas es-
talagens. Num apartamento. Padre Anselmo, preciso distncia
para amar o prximo.
PADRE: . Nem a Torre de Babel deu certo.
ROCHA: (Meio chateado.) A senhora quem sabe. Eu no posso for-
la, tem meu telefone. Boa tarde, Padre, boa tarde, madame.
PADRE E JLIA: Ao mesmo tempo.) Boa tarde.
ISMNIA: Boa tarde, seu Rocha.
ROCHA: (Na porta, sorri.) Mas eu no desisto...
ISMNIA: (Fechando a porta.) Uns corvos! Derrubaram uma cidade linda,
levantaram isso! Que ganncia!
PADRE: A ambio no conduz a nada, Dona Ismnia. (Humorstico)
mais fcil um camelo passar no furo de uma agulha...
ISMNIA: Eu sei, Padre; os ricos no entram no reino do cu. Mas no lar-
gam o da Terra. Nossa campanha continua fraca. At agora s
conseguimos dez milhes de cruzeiros. Se continuar assim, a ca-
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tedral de Copacabana no fica pronta at 1960. (Vai at o quadro
escondido embaixo da escada, afasta-o, abre o cofre escondido
por ele.)
PADRE: Ah, a pobreza terrvel e ameaadora. Os ricos sentem que ca-
da mil cruzeiros que do ficam mil cruzeiros mais perto dos po-
bres.
ISMNIA: Dois, Padre. Mil que perdem e mil que o pobre ganha.
PADRE: (Ri) E pobreza pega!
ISMNIA: (D ao Padre um bolo de dinheiro e um cheque.) Dois milhes
em dinheiro e um cheque de duzentos mil.
PADRE: (Conta o dinheiro, molhando o dedo na lngua.) Precisa recibo?
ISMNIA: (Acena que sim.) Esse pessoal desconta a generosidade do im-
posto de renda. (Padre escreve o recibo.)
PADRE: Quando quer que eu volte?
ISMNIA: Amanh, Padre. Se for incmodo, se preferir, eu passo na igreja.
PADRE: Eu passo aqui. Preciso manter contato com o mundo mundano.
(Grandiloquente) bom saber com que armas conta o inimigo.
Boa tarde, Dona Ismnia. (Ismnia beija-lhe a mo.) Boa tarde,
minha filha. (Beija Jlia no rosto. Epa!)
JLIA: Boa tarde, Padre. (Um pouco espantada com os beijos, no co-
muns. O Padre sai.)
ISMNIA: Agora vamos cuidar de voc. Prometo que voc vai se divertir.
JLIA: J estou me divertindo. costume beijar o rosto das moas, no
Rio?
ISMNIA: costume do Padre. J j, pega. Voc deve estar doida pra to-
mar um banho e trocar de roupa. Seu quarto aquele. Lusada!
Vai ficar no mesmo quarto em que dormiu o comissrio Vasile-
vich.
JLIA: Que honra, tia, que emoo! Era bonito como nas fotografias?
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ISMNIA: Um po! Mas mais exigente do que um nobre. (Para Lusada
que entra.) Leva a mala de Dona Jlia. O quarto est arrumado?
LUSADA: Vou arrumar.
ISMNIA: V toalhas tambm. (Lusada sobe, carregando a mala.)( Jlia)
Enquanto voc se prepara vou escrever minha coluna. Ah, eu
preciso arranjar um par pra voc de noite. Que tipo de rapaz vo-
c gosta?
JLIA: Deus do cu, tia! (Telefone toca.)
ISMNIA: Al? 46-6666. (Jlia vai subindo a escada.) , Josu? No, ma-
druguei hoje. Esto. Dezesseis fotos. Pode passar. Espera um
momento. (Tapa o fone, para Jlia, ainda subindo a escada.) Vo-
c gosta do tipo alto, moreno, simptico, inteligente e rico? (Jlia
ri, concordando naturalmente.) (Ao telefone) Voc faz um favor
para mim? No, um favor muito agradvel... Mostrar um pouco a
cidade a uma sobrinha minha! Que Paris, rapaz, do interior de
Minas. No fala assim, no! (Ri) Espera... (Tapa o fone, para J-
lia.) Quatro horas?( Jlia olha o relgio na parede do corredor.
Acena que sim.)
ISMNIA: Est bem, quatro horas, tchau. (Desliga, atira um beijo para Jlia
que sobe e desaparece no quarto. Senta-se para escrever sua
crnica, prepara a mquina, papel. Pe os culos, pega vrios
recortes. Ouve-se mais um baque no telhado. Ela olha. Evandro
sai de seu quarto, pega um cigarro, acende. Est de robe e mo-
cassins. O passarinho canta l fora. Evandro vai janela, imita o
canto, assobiando.)
ISMNIA: (Voltando-se, levanta-se, tirando os culos.) No se d mais
bom dia?
EVANDRO: Boa tarde, mezinha. (Beija-lhe o rosto. Assobia o primeiro
acorde do Hino Nacional. O passarinho l fora comea a imit-
lo.) Viu? Ouviu bem? Esse acorde ele no erra mais. J sabe
quase todo o Hino Nacional. (Assobia mais um pedao. O passa-
rinho imita. Mais outro. Idem. Em tom imponente.) Dona Ismnia,
seria pedir muito que nesta casa no se fizessem barulhos, nem
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houvessem pancadas, nem gritos, nem assassinatos enquanto
estou dormindo?
ISMNIA: (Tira o relgio do pulso, d-lhe corda, olha o relgio da parede,
acerta-o enquanto fala.) Teve insnia?
EVANDRO: Insnia!!! Durmo como uma pedra. (Fingindo irritao.) Mas nem
as pedras dormiriam aqui. (Uma serra de edifcio em construo
vibra, para depois de pouco tempo.) um tinir, zunir, serrar, latir,
mugir... (Imita os rudos que se ouve ao fundo, mas com bastante
mais fora. Fon-fon-fon, au au au au, etc. Termina com um ber-
ro:) aaaaaahhhhhhh! (depois bem calmo, diz:) S reagindo al-
tura.
ISMNIA: (Deixa o relgio sobre a escrivaninha, senta-se numa poltrona.)
No era hoje o seu exame?
EVANDRO: (Beija-a no rosto.) Ah, deixa. A cultura espera: a segunda poca
uma inveno genial. Como o mundo vai, a qualquer momento
nossos estudos podero ser inteis. No futuro os computadores
faro tudo por ns.
ISMNIA: Vai confiando nisso que o computador te come.
EVANDRO: Voc bem sabe que para triunfar como psiquiatra no preciso
me esforar muito. No meio em que vivo tudo cliente. (Lusada
desce, sai pelos fundos.) A voz feminina que ouvi tinha um tom
menos patolgico do que o normal... Era uma criatura humana
que pisou esta sala pela primeira vez, ou?...
ISMNIA: Sua prima.
EVANDRO: A matuta?
ISMNIA: Matuta? Hoje elas vm do interior pra ganhar concurso de bele-
za.
EVANDRO: Deixa eu concentrar. (Concentra-se, pondo as mos no rosto.)
Previso: vejo uma moa bonita, assim como a Marta Rocha.
ISMNIA: Bonita, mas no exagera. D pro gasto.
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EVANDRO: Prevejo: bonita, trar desunio a esta famlia em que todos eu
e voc foram sempre to unidos.
ISMNIA: Como pitonisa voc no ia ganhar pro caf.
EVANDRO: Proventos materiais no me preocupam _ sou amador. Prevejo
um lar desagregado, um filho que repudia a me e outros deta-
lhes terrveis que no momento ainda aparecem obscuros. (Fala
de olhos fechados.)
ISMNIA: E quem patrocina a novela?
EVANDRO: O seu jornal. Para a imprensa toda a desgraa lucro.
ISMNIA: Voc me cansa com seu brilho. Como deve ser bom ter um filho
burro!
EVANDRO: Nenhuma me tem filho burro. um erro tradicional de perspec-
tiva. Deus privou as mes de julgamento para que elas no es-
trangulassem essa coisa (Nojo. Arrepio) que um recm-
nascido. Se os pais dessem luz nenhum recm-nascido sobre-
viveria a seu esprito crtico. Prevejo mais: voc pretende intro-
duzir a bela matuta na sociedade, pra que ela conquiste o cora-
o de um milionrio. Voc ser um novo Pigmaleo, uma Pig-
maleoa. (Ismnia ri, entra Lusada.)
LUSADA: Madame, o homem do aougue veio cobrar de novo.
ISMNIA: Quanto ?
LUSADA: A senhora deve dois quilos de alcatra. Setenta e seis mil cruzei-
ros.
ISMNIA: Voc no tem? Depois eu dou.
LUSADA: No senhora. Com meus ltimos dez mil cruzeiros comprei o
Correio da Manh, hoje de manh.
ISMNIA: No meu tempo, com dez mil cruzeiros se comprava toda a em-
presa. Diz a ele pra passar mais tarde.
LUSADA: Eu j disse. Ele falou que mais tarde a senhora nunca est.
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ISMNIA: (Aborrecida) Me d a bolsa a. Lusada executa. Ismnia tira to-
do o dinheiro, em pequenas notas. Conta.) Ser que ele no
aceita quatrocentos cruzeiros por conta? Amanh eu pago o res-
to.
LUSADA: Acho que no. Est com uma cara!...
ISMNIA: Pergunta!
LUSADA: Ele a mim responde muito mal. Acho melhor ir a senhora mes-
mo.
EVANDRO: Espera: se esse dinheiro a no foi tirado do meu bolso, talvez
eu possa dar um jeito. (Evandro vasculha nos bolsos.) Mame,
no finja uma susceptibilidade que no tem razo de ser. Pobres,
sim. Mas honestos tambm... Ah, aqui est. (Exibindo uma nota.)
Cinqenta, mais vinte, mais cinco mil, mais cem, duzentos, qua-
trocentos e dez, quatrocentos e vinte, quatrocentos e setenta, e
sete, e nove, e oitenta e um, e dois. Cinco mil, quatrocentos e oi-
tenta e quatro cruzeiros. Quanto a senhora tem?
ISMNIA: Quatrocentos e setenta e sete cruzeiros.
EVANDRO: So...( Tenta fazer a conta de cabea, no consegue.) Assim
no vai... (Pega lpis e papel, faz a conta.) Faltam s cinqenta e
um cruzeiros. ( Lusada) Voc no tem?
LUSADA: (Tira do bolso do avental um bolinho e alguns nqueis.) tudo
que eu tenho. (Me e filho contam ansiosamente.)
EVANDRO: (Decepcionado) Onze cruzeiros. Faltam ainda quarenta cruzei-
ros. Mame, quando que a senhora se resolve a vender a
bomba dessa casa?
ISMNIA: Voc acha que eu vou vender uma casa de trezentos milhes
por causa de quarenta cruzeiros? (L fora o pssaro canta o Hi-
no Nacional.)
EVANDRO: ( janela) E se vendermos o Duque Estrada?
ISMNIA: Evandro, isto srio!
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EVANDRO: Srio mesmo. (Pausa) Um dia destes eu no agento mais e
vou trabalhar.
ISMNIA: O homem da hipoteca esteve aqui ontem. O da eletricidade veio
antes de ontem. O da geladeira vem amanh. (Evandro a olha
como se ela estivesse louca. Ela o olha firme.)
EVANDRO: E que que voc vai fazer?
ISMNIA: (Suspira) No sei: espero a ajuda de Deus.
EVANDRO: Oh, me, todo mundo sabe que Deus no empresta dinheiro,
apesar de sua origem.
LUSADA: Madame...
EVANDRO: Tenho aqui minha carteira uma nota, mas essa eu... (Procura a
carteira, no encontra.) Qued minha carteira?
LUSADA: Guardei ela a na gaveta. O senhor tinha jogado no cho. (Apa-
nha-a, d a Evandro.)
EVANDRO: (Batendo com a carteira na mo.) Infelizmente, minha me, esta
nota eu no posso gastar porque foi autografada ontem pela mi-
nha querida, especial amiga, j falamos nela, Marta Rocha. (So-
nhador beija a carteira.) Ela linda! (Como no anncio de
Ponds)
ISMNIA: Deixa de sentimentalismo e me d a nota.
EVANDRO: Mame, guardar as coisas da mulher amada ador-la como se
fossem ela prpria, no sentimentalismo fetichismo.
ISMNIA: Sou muito inteligente, mas pouco culta. Paga o aougueiro.
EVANDRO: L se vai um pedao do meu ser. (Abre a carteira.) Me, qued
o dinheiro?
ISMNIA: Evandro!
EVANDRO: Mame!
ISMNIA: Evandro, por favor, desta vez no! (Evandro olha para Lusada.)
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LUSADA: Dr. Evandro! Desta vez eu vou embora mesmo!
ISMNIA: Voc tambm deixa tudo por a jogado! Quanto era?
EVANDRO: (Repete) Dez mil cruzeiros. Esteve mais algum aqui?
LUSADA: Ningum no senhor. S o Padre Anselmo, (pensa) o corretor e
Dona Jlia.
EVANDRO: Bem, no acredito que o Padre... O corretor... Mame, essa mo-
a!... (Senta-se deixando os sapatos no cho, pe os ps sobre a
poltrona.)
ISMNIA: Evandro, voc bem sabe que sua prima rica... Algum lhe tirou
essa nota por causa da assinatura. Quem que ia roubar dez mil
cruzeiros? E por falar nisso no quero que essa moa perceba
a nossa situao.
LUSADA: (Afirmativo) Quando eu guardei a carteira os dez mil cruzeiros
estavam ai. (Evandro e Ismnia se olham sem entender. Voa l
fora, incompreensivel: Compra roupa usada. Compradooore.
Compra-se terno velho.)
ISMNIA: A voz da Providncia.
EVANDRO: No o comprador de roupa velha? (Voz)
ISMNIA: Deus escreve certo por linhas tortas. Na eternidade no h pa-
pel pautado. (Tira os mocassins de Evandro que est sentado.)
EVANDRO: Eh, que isso?
ISMNIA: ( Lusada) Venda a na frente e pague l nos fundos. (D-lhe o
resto do dinheiro. Lusada sai.) Voc tem treze pares de sapatos.
Isso d azar.
EVANDRO: (Ergue os ps) Sinto-me um simples. (Telefone toca.) No aten-
de mame, por favor. Esse telefone uma tirania. No atende.
ISMNIA: Resistir ao telefone uma prova de carter que os gregos no
exigiram dos esticos. (Tenta atender. Evandro agarra-a pelo
pulso.)
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EVANDRO: Eu resisto. Se vivesse entre os gregos seria um dos dez mais
esticos do ano. (O telefone toca bem diferente na quinta vez.)
ISMNIA: interurbano.
EVANDRO: Bem, interurbano entre os gregos s tinha a maratona. Atende.
(Solta-lhe o pulso.)
ISMNIA: (Ao telefone) Al? 46-6666. Sim. Ela mesma. Ricarda? Sim!
Bem, bem. No, no me diga! (Olha para Evandro.) Mas a me
dela no estava de acordo? Falou comigo? De modo algum. Eu
nem sabia. Regina que a culpada, prendendo a filha desse
jeito. Bem, verdade me me. ( parte) A pequena fugiu de
casa. Regina est louca atrs dela. (Ao telefone) Minha querida
irm. Voc no sabe como eu sinto isso. Voc no tem noo
para onde ela podia ter ido? E claro. Sim... sim... compreendo...
no, praqui no... compreendo... No, no chore. (Pega um len-
o, limpa o telefone comicamente como se o telefone chorasse.)
Claro, ela vai aparecer! Morta? No, ela no faria isso com voc,
voc a educou to bem... Est bem... Tudo que voc precisar...
uma emoo ouvi-la depois de tantos anos... Sim... sim...
adeus... (Desliga) das arbias, essa minha sobrinha. (Olha pa-
ra cima.) Eu bem que estava estranhando a carta de minha irm:
foi a pequena mesmo que escreveu, sondando o terreno.
EVANDRO: E agora? Vai mand-la embora?
ISMNIA: (Ri) Eu, hein? Minha irmzinha precisa sofrer um pouco.
EVANDRO: S h um detalhe: ela vai chamar a polcia.
ISMNIA: Se a coisa se complicar, ns devolvemos a moa. Se no, va-
mos nos divertir.
EVANDRO: (Beija-a) Eta, aprendizinha de feiticeira! (Pega as roupas, entra
no quarto.)
LUSADA: (Surge pela porta da frente, trazendo o par de sapatos.) Disse
que no compra. Disse que homem no usa sapato trinta e cin-
co.
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ISMNIA: Evandro cala trinta e cinco? Est bem, eu vou falar com o cara.
(Saem. Desce Jlia, excepcionalmente bem vestida; fica olhando
pela janela, vai depois at a mquina no outro canto da sala, mo-
ve o carrinho para ver se Ismnia escreveu. Pega o pequeno re-
lgio de Ismnia que ficou em cima da mesa: entra Lusada com
um enorme rdio vermelho a tiracolo, e aspirador na mo. Jlia
pe o relgio na bolsa, rapidamente.)
JLIA: Bonito rdio, esse!
LUSADA: (Colocando o rdio em cima de um mvel.) porttil. Tem um
som formidvel. Quer ver? (Liga. Uma esttica terrvel. Afinal ou-
ve-se a voz de Lacerda.)
CARLOS LACERDA: E, enquanto isso, enquanto crianas morrem pelas ruas, escolas
fecham sem professores, que faz o prefeito? Rouba. Apanhado
com uma fortuna que no pode explicar, ele explica: sempre jo-
guei pquer admiravelmente. Ganho sempre. Ganhei fortunas no
pquer. Mentira? No, senhores, o prefeito no mente. S es-
queceu de dizer que joga com os empreiteiros. Esses mesmos
empreiteiros que construram o Maracan, o maior estdio do
mundo, onde atletas tsicos atiram discos de papelo.
LUSADA: (Desliga) o Carlos Lacerda. o homem mais honesto do Bra-
sil. (Liga o aspirador. Comea a trabalhar.) (A porta do quarto de
Evandro se abre. Ele est de roupo.)
EVANDRO: Deixa eu adivinhar: voc Jlia! (Faz sinal a Lusada pra parar e
sair. Ela sai.)
JLIA: (Mesmo tom) E voc no. (Riem) Evandro?
EVANDRO: (Concorda) Beija o primo, beija o primo. (D-lhe a face. Ela o
beija.) Menina, voc uma hecatombe.
JLIA: Que que quer dizer isso?
EVANDRO: Isso, uma hecatombe. Na antiguidade, a morte de cem bois. No
sei traduzir a palavra pro sentido moderno.
JLIA: No entendo como voc pode ver em mim um matadouro mode-
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lo.
EVANDRO: Vou me apresentar, sou dado a previses. Tenho o sentido do
futuro. Voc veio para passar uns tempos aqui, certo?
JLIA: Quanto me deixarem.
EVANDRO: Ento no tem salvao: primeiro cai nas mos de minha me, e
logo nos braos de seu filho.
JLIA: Infelizmente, de fsico e de jeito, voc extremamente parecido
com meu pai. E embora ele fosse um homem irresistvel, ser pa-
recido com ele no ajuda ningum a ser amado por mim, exceto
no sentido fraternal.
EVANDRO: (Didtico) Resistncia inconsciente ao clich do amor paterno.
JLIA: No, apenas sade fsica e mental. Resistncia consciente a se
meter em encrenca.
EVANDRO: (Estende a mo.) Toque. Mens sana in corpore sano, o meu
lema. Nada de problemticas, s solues. O homem a quem ti-
ram a liberdade mais livre do que os outros porque perde a tor-
tura de ter que escolher. O paraltico mais feliz do que os ou-
tros porque pode concentrar-se numa obra sem a necessidade
da movimentao que a desgraa do pedestre. (A campainha
toca. Lusada passa para abrir.)
JLIA: Cem por cento! Toque. (Aperta-lhe a mo.)
EVANDRO: Entre ns, jamais tragdia alguma. Juramos aqui, neste primeiro
encontro que, acontea o que acontecer, ns somos persona-
gens de comdia. (Abraa-a)
JOSU: (Entra de roupa esporte.) Parece que cheguei num momento in-
conveniente.
EVANDRO: Nenhum momento altera a sua inconvenincia.
JOSU: Vim a servio. Ismnia me pediu pra mostrar a cidade a uma so-
brinha. Uma provinciana. Espero que no seja pau-de-arara.
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EVANDRO: Est vendo essa a? toda ela.
JOSU: Perdo, perdo, perdo. Esperava que uma moa vinda do inte-
rior mudasse bastante em contato com um meio social mais adi-
antado. No to depressa.
JLIA: O mundo... marcha.
EVANDRO: (Apresentando) Jlia Fiore, minha prima. Dispensa adjetivos!
Josu Epstein, vinte e nove anos, brasileiro mas no advoga-
do, bebe demais, fuma demais, pai rico, infelizmente com uma
sade de ferro. Ignorante como todo mundo, mas, como todo
mundo, fala que todo mundo ignorante. Representante perfeito
do seu meio social e econmico.
ISMNIA: (Entra) No tenha medo Jlia. O diabo no to feio quanto se
pinta. Toda a falta de atrativo do inferno vem da falta de um bom
maquilador. Voc est bom?
JOSU_: timo, Ismnia. Entrei aqui muito deprimido, certo de que minha reputao
andava irremediavelmente boa. Evandro me eleva o moral com
tantas desatenes.
ISMNIA: Confio em voc. Deus me livre de entregar minha sobrinha nas
mos de um rapaz de bem. Ele entenderia que mostrar a cidade
lev-la ao Jardim Zoolgico. Mostre-lhe tudo que no esteja ao
nvel do solo. Uma grande cidade feita de terraos e subterr-
neos. (Noutro tom) Jlia, um instantinho.
JLIA: (Ressabiada) Sim senhora.
JOSU: J vi que eu sou demais aqui. Estou com o carro em fila dupla.
(Sai)
ISMNIA: Jlia, me telefonaram agora mesmo de Vitiligo. (Jlia abaixa a
cabea. Evandro percebe o assunto e tambm sai.)
JLIA: A senhora, voc, me perdoa. Eu ia lhe contar tudo, mas no tive
jeito. Eu tinha que fugir! Voc conhece minha me melhor do que
eu. Voc, no fundo, tambm uma vtima. (Longa pausa) E de-
pois, eu no agentava mais. Titia, eu queria tanto conhecer meu
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irmo!
ISMNIA: (Completamente aturdida.) Quem... te... contou?
JLIA: Mame. Quando eu fiz dezoito anos, mame me contou.
ISMNIA: Voc ficou muito chocada?
JLIA: Eu? Encantada! Mas desde ento fiquei louca pra vir pra c. Ela
nunca deixou. O Rio um antro de perverses, cheio de mulhe-
res seminuas e homens tarados. Ela muito antiga, titia! (Pausa)
Que que voc vai fazer: me devolver?
ISMNIA: Vou ligar pra sua tia Ricarda, e ver se sua me aceita o fato
consumado. Vai. Vai. No deixa Josu esperar. Conversamos na
volta.
JLIA: Titia, voc um amor! Se mame fosse assim... T j. (Sai)
ISMNIA: At j. (Silncio. Ismnia pensa um pouco. Depois senta na m-
quina para fazer sua crnica. De novo pega pedaos de papel,
guardanapos, etc... onde tomou nota de tudo que acontece na
cidade. Evandro entra.)
EVANDRO: Falou com ela? (Ismnia faz que sim. Pega um pequeno micro-
fone comea a ditar. A mquina funciona automaticamente)
ISMNIA: Bomba! Bomba! Dentro de trs meses a cegonha visitar o lar
da senhorita Zilka Nonelli. (A mquina datilografa sozinha)
EVANDRO: Que que ela disse?
ISMNIA: Nada. (Lusada entra na sala.)
EVANDRO: A camisa est pronta, Lusada?
LUSADA: Est esfriando, Dr. Evandro. J trago. (Sai)
EVANDRO: Gosto desse doutorado. bom ir me acostumando. boa, essa
empregada?
ISMNIA: Mais ou menos. (Fala) Outra grande personalidade que vem ao
Rio para o carnaval Marlon Gable, a mais nova descoberta de
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Hollywood. Marlon interpretou o papel de Clepatra no filme Julio
Cesar, seguindo a nova moda do cinema americano: os homens
interpretam os papeis femininos e as mulheres, os masculinos.
a ltima tentativa de salvar economicamente o cinema america-
no. Essa experincia conhecida como neo-artificialismo. (A
mquina bate, agora Ismnia j est de p.)
EVANDRO: Achei Jlia uma simpatia, mame. E o que pior _ inteligente.
ISMNIA: Mais um astro famoso comprar terrenos em Gois para fugir
ao terror da bomba de hidrognio: Bob Hope. (Mquina escre-
ve.)
EVANDRO: ( janela) bonita tambm. Elegante! Um bom banho de loja...
(sonha)
ISMNIA: (L) O secretrio geral da ONU, o ex-ditador Fidel Castro, de-
clarou que dentro de um ano aquela organizao internacional
estar definitivamene instalada em Moscou.
(A mquina continua escrevendo muito tempo depois que Ismnia acabou de falar.
Ismnia se aproxima da mquina, l, diz:)
ISMNIA: , assim ficou melhor.
EVANDRO: (Agora direto.) Por que voc no me chamou pra levar ela a
passeio? O Josu no homem que...
ISMNIA: E agora a notcia mais importante da...
EVANDRO: Ismnia, estou falando com voc!
ISMNIA: (Bem lentamente, tira os culos.) Filhinho de mamezinha, voc
est achando essa moa muito bonita, muito interessante, muito
tudo. Eu tambm. Mas antes que esses seus sentimentos avan-
cem para um desenvolvimento incestuoso vou lhe fazer uma re-
velao: (Quase gritando, silabando.) Jlia tua irm! Voc fi-
lho de teu tio!
EVANDRO: (Um baque. Tudo de cmico a que tiver direito. Senta, levanta.)
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(Depois de um minuto boquiaberto.) Mas... que... bem...
ISMNIA: (Cabea baixa.) Aproveito o solene momento pra elogiar os seus
vinte e cinco anos de discrio filial no indagando jamais a sua
origem. Sem nunca ter visto um pai nesta casa. Mas, apesar dis-
so, de nossa compreenso e identidade, de nossa mtua capaci-
dade de no complicar as coisas, eu nunca tive jeito de lhe falar
do que voc no perguntava. Mas tinha que dizer a qualquer
momento. (Grita) Claro que eu tinha que dizer...
EVANDRO: Bem, mame, eu sempre achei que era um filho geral, sabe co-
mo : um amlgama. Uma combinao de efeitos. Estou at de-
cepcionado com a simplificao da minha origem. Mas no pre-
cisa justificar nada. J justificou toda a sua vida com afeto e com,
assim, uma proteo a mim, de que, sei, poucos a julgariam ca-
paz.
ISMNIA: Sempre procurei no me derramar muito em carinhos. Detesto
me maternal. (Pausa) Quando Jlia me escreveu que vinha
passar uns tempos comigo, achei timo; queria que voc a co-
nhecesse, queria uma oportunidade de contar tudo a voc e que-
ria ter oportunidade de fazer as pazes com minha irm. H exa-
tamente vinte anos que Regina no fala comigo.
EVANDRO: Tanta raiva assim?
ISMNIA: Voc no a conhece!
EVANDRO: No. Eu a vi s, o qu? Trs vezes, em casa de tia Ricarda, em
Bel.
ISMNIA: Ela completamente diferente de mim. Alis, toda nossa famlia
assim metade sinistra, metade alegre. O que me aconteceu,
me aconteceu. Acontece at na famlia do Papa, e voc nasceu
como qualquer criana nasce. Sou tambm uma me biolgica.
No acreditei em nenhuma desonra especial, nem pensei que
minha vida estava desgraada pra sempre. Mas Regina levantou
cus e terra, ps at meu pai contra mim, e quase todos os ami-
gos e parentes. Fez, em torno de um fato de uma certa dramati-
zao, uma tragdia grega. Tive que vir para o Rio sozinha, tra-
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balhar, lutar... voc deve se lembrar que nem sempre sua infn-
cia foi dourada.
EVANDRO: No, no me lembro... Eu estava na praia.
ISMNIA: Felizmente... quando papai morreu, h quinze anos, tudo que
me deixou foi esta casa, na qual, alis, ele nunca morou. Regina
conseguiu ficar com tudo mais. No por ambio, que a conheo
bem. Talvez at nem mesmo por vingana. H qualquer coisa
nesse tipo de gente que eu no consigo entender. Uma vontade
de cultivar e espalhar a amargura.
EVANDRO: Que anlise formidvel! Nem Freud falaria assim! (D-lhe um
beijo na testa.) Sabe? Eu no suportaria ter uma me ortodoxa.
(Anda) Que histria!!... Puxa!... Que histria... Estou impressio-
nado! Que coisa, seu. Mas genial!... (Ri) Mas fantstico... Vo-
c vai dizer a ela?
ISMNIA: (Senta-se mquina.) Ela j sabe.
EVANDRO: Ento, sou o ltimo a saber? (Pausa, pensa.) Ela estava zom-
bando de mim!
ISMNIA: Bem, deixa eu acabar isto que tenho que ir correndo ao Jornal
at s cinco horas pra arrancar um tutu. Hoje tem o coquetel do
Hotel Copacabana e estou com dois jantares marcados. (Vai
mquina. Evandro continua passeando.)
EVANDRO: D vontade de sair cantando: pessoal, mame deu pro titio! Es-
sas coisas acontecem, mas nunca... com a gente. E logo com um
estudante de psiquiatria. Fabuloso! Sou filho de meu tio... a se-
nhora j imaginou!... Filho de meu tio... irmo de minha prima ou
melhor, primo de minha irm. Por sua vez sou sobrinho de meu
pai...
ISMNIA: bom parar com essas divagaes seno vai acabar av de si
mesmo.
EVANDRO: Mas formidvel! Eu nunca lhe disse, mas sempre quis ter uma
irm. Acho alinhado ter uma irm. E essa bonita, seu! Vou es-
tudar melhor as origens do incesto. Espera a: como que voc
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deixou minha irm sair com esse cafajeste?
ISMNIA: Josu no cafajeste coisa alguma, voc sabe muito bem. E
quando saiu daqui Jlia ainda no era sua irm... bom ir deva-
gar com esse fraternalismo.
EVANDRO: T bem. Mas dagora em diante eu escolho as pessoas com
quem ela deve sair.
ISMNIA: Acho melhor deixarmos ela escolher. (Tira o papel da mquina,
cola alguma coisa, pe num envelope, d uma olhada no pulso.
Pergunta) Que horas so?
EVANDRO: (Olha na parede.) Quatro e meia.
ISMNIA: Estou atrasadssima. (Procura na mesa e em cima de uma me-
sinha.) Tch. (Muxoxo) Onde ser que meti meu relgio? (Vai
procurando naturalmente. Blecaute) (Enquanto a luz sobe lenta-
mente, ouve-se a voz de Carlos Lacerda, na proporo em que a
luz sobe.)
CARLOS LACERDA: Viver numa cidade que vive sob o flagelo de polticos venais co-
mo Mendes de Morais, e um pas em que o guarda-costas de
Getlio, Gregrio Fortunato, o Anjo-Negro, comanda a corrupo
dos polticos que chafurdam na lama dos pores do Palcio do
Catete, viver entre a fossa e a cloaca, entre Judas e Barrabs!
No se escapa crucificao! (Palmas infinitas, que vo dimi-
nuindo enquanto a luz sobe.) (Mesmo cenrio. Aproximadamente
dois meses depois. So mais ou menos trs horas da tarde, de
um dia cinzento de outubro. Vem entrando Jlia pela porta da
rua, acompanhada de Josu; vestem trajes de passeio, Jlia de
bolsa.)
JOSU: E quando a senhora perguntou ao Ibrahim Sued se ele aceitava
jantar certo dia em sua casa, o Ibrahim respondeu: Como no?
Essa idia no me repugna! (Riem)
JLIA: Um gentleman! (Ele se lana sobre uma cadeira. Ela vai ao pe-
queno bar, apanha um copo dgua. Bebe.) Quer beber alguma
coisa?
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JOSU: No. Senta a. (Puxa-a pelo brao. Beija-a.) Que que voc de-
cidiu?
JLIA: No fora, Josu. Tem acontecido tanta coisa, no sei! Eu gosto
de voc, acho voc formidvel, mas no posso casar com voc...
Eu tenho s dezoito anos. Voc um velho de trinta. (Beija-o)
JOSU: No quer?
JLIA: Agora no!
JOSU: No quer!!!
JLIA: No posso.
JOSU: Ento, est decidido.
JLIA: Olha, voc nem me conhece. Se conhecesse melhor no ia que-
rer casar comigo.
JOSU: Quem que voc matou?
JLIA: Ainda no. Mas matar a gente mata uma ou duas vezes. Jo-
su... eu sou uma mentirosa. E mentiroso mente todo dia, toda
hora.
JOSU: (Brinca) Bem, desculpa, mas tenho que analisar o que est di-
zendo. Voc mente sempre. Foi isso que disse?
JLIA: Foi.
JOSU: Ento quando voc diz que mentirosa, voc est mentindo: e
ento no mentirosa. E se voc diz a verdade dizendo que
mentirosa, voc est sendo verdadeira: onde est a mentirosa?
JLIA: Estou falando srio, Josu. Sou uma mentirosa, uma mitmana.
No aceito as coisas como elas so. Invento. Vejo diferente da
realidade. Uma pessoa assim no pode casar!
JOSU: Ah, voc complica demais! Todo mundo mente! Casa primeiro.
As mentiras vm naturalmente em qualquer casamento.
JLIA: E minha me?
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JOSU: Mas que coisa mais antiga! Me! Casa comigo. A velha se con-
forma. (Pssaro d uns pios breves l fora.)
JLIA: E seu pai?
JOSU: Esse eu conheo. Ele no gosta de Ismnia. Depois ele aceita
tambm.
JLIA: E de que viveramos enquanto a sua ou a minha famlia no re-
solvessem nos sustentar?
JOSU: (Levanta-se para sair.) Tchau, voc pessimista demais! Racio-
cinando assim, a espcie acabaria. T logo. (Sai. Ela tira um par
de sapatos de dentro da bolsa, experimenta. Ele surge de novo.
Ela esconde os ps embaixo da poltrona.) Passo s nove pra ir
ao Rian?
JLIA: Passa, est bem, s nove est bem.
JOSU: Nove em ponto? (Jlia faz um muxoxo. Ele sai, ela olha os sapa-
tos. Ismnia que vem por trs dela, d-lhe um beijo. Jlia leva um
tremendo susto. Esconde os sapatos, arqueja.)
JLIA: , que susto!
ISMNIA: No sou to feia assim.
JLIA: No, eu pensei que...
ISMNIA: Estava to encantada com seus sapatos novos...
JLIA: No so novos no, eu...
ISMNIA: (Pega os sapatos. V-se que so novssimos. Repe os sapatos
no cho.) Eu, hein? Voc est usando quatro, agora? (Mostra o
pulso.) Sabe que encontrei o relgio, afinal?
JLIA: Onde estava?
ISMNIA: No quarto da empregada. Numa caixa de sapatos em cima do
armrio. Bem que eu desconfiava dela. Foi logo depois que ela
comeou a trabalhar aqui que comearam a desaparecer as coi-
sas. (Pausa, mexe no relgio.) Estranho que estava sem corda.
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Nem foi usado...
JLIA: Ela tem uma aparncia to honesta.
ISMNIA: Se todo ladro tivesse cara de ladro no haveria ladres.
JLIA: Que que voc pretende fazer com ela?
ISMNIA: Nada. Tive pena, coitada. Despedi-a e pronto.
JLIA: (Suspira) E se no foi ela? Como que voc sabe que foi ela?
ISMNIA: Se no foi ela, quem poderia ter sido: Evandro, voc?
JLIA: Fui eu, titia.
ISMNIA: Claro, no sendo ela s podia ter sido voc.
JLIA: Pois , fui eu.
ISMNIA: Bem, o que passou, passou... Josu desistiu de atacar voc?
JLIA: Titia, estou falando srio. No vou deixar uma pobre coitada so-
frer por minha causa. Fui eu quem roubou seu relgio. (Ismnia
boquiaberta.) Titia, eu sofro disso um tique, uma represso,
um drama: eu sou cleptomanaca.
ISMNIA: Ai, meu Deus! Evandro j conseguiu meter essas besteiras na
sua cabea! No vem me dizer que vive reprimindo agressivida-
de! (Jlia move a cabea fortemente, afirmando que sim.) Deus
da bondade, livrai-me desta hostilidade inconsciente!__
JLIA: Acredite ou no, no posso ver uma coisa de valor sem ter von-
tade de roub-la. Fao com tal naturalidade que ningum perce-
be. V esse relgio; eu e Evandro procuramos por toda a casa.
Escondi sem saber onde.
ISMNIA: O Evandro sabe?
JLIA: Descobriu logo que eu cheguei. Fomos tomar um refresco e co-
mo ele no tinha dinheiro trocado, eu paguei. E paguei com a no-
ta autografada.
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ISMNIA: Foi voc tambm?
JLIA: Tudo fui eu _ o par de brincos, o peso de papel de prata, as ap-
lices de seguro, tudo. Evandro vem tentando me curar. Pe obje-
tos de valor em lugares visveis e me diz. Quando eu vou a uma
festa, ele descreve mais ou menos o que vou encontrar...
ISMNIA: Voc rouba nas festas tambm?
JLIA: (Acena que sim.) Evandro resolveu no dizer a voc para no
assust-la. Tem devolvido tudo, declarando que no pode dizer o
nome da pessoa que roubou, porque uma cliente. A primeira!
ISMNIA: E agora, o que que eu devo dizer?
JLIA: No diga nada, melhor. Eu j me digo tantas coisas. (Olha em
torno.) Estava me sentindo to bem aqui. Piorei de trs dias para
c, depois que mame me intimou a voltar imediatamente. On-
tem, em casa dos Marioneti, roubei um colar de prolas. Quando
cheguei em casa encontrei na bolsa.
ISMNIA: Um colar de prolas, filha? Onde est isso?
JLIA: Entreguei ao Evandro. (Curva a cabea entre as mos. Chuta os
sapatos com raiva.) Olha a, roubados tambm, agora mesmo,
na fbrica do pai de Josu. E Josu continua querendo casar
comigo, pensando que eu sou uma criatura normal. (Longa pau-
sa) J no tomo mais nenhuma deciso, seno as piores. Vivo
to confusa... E agora a senhora ainda complica tudo muito mais.
ISMNIA: Agora sou eu?
JLIA: voc, sim! (Noutro tom) Titia, voc vai deixar eu ir embora?
Vai deixar mame, quer dizer, titia, me levar? (Entra Evandro,
num salto, pela porta da rua.)
EVANDRO: Sua me, sua tia, sua irm, minha tia, est a!
ISMNIA: (Humorstica) Depressa! Ajudem-me a fazer uma barricada.
Venderei caro a minha vida.
EVANDRO: No tem perigo. Insisti pra que ela entrasse, mas ela disse que
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prefere a morte.
ISMNIA: (Olha na janela.) Onde que ela est? (Jlia chora.)
EVANDRO: Est com o carro mais na frente. Chapa de Minas, com chofer.
JLIA: (Choramingando) Titia, no deixe que ela me leve. Meu irmozi-
nho, me ajuda.
ISMNIA: Voc est exagerando! Afinal, ela sua me.
JLIA: (Corre para subir a escada.) Minha me? Ah, nem em voc eu
posso confiar. Nem em voc, nem em ningum. Pois est bem:
ela minha me. Eu vou embora... eu vou embora... para sem-
pre! (Bate a porta l em cima. Os dois sobem a escada atrs de-
la.)
ISMNIA: Jlia! Jlia! (Bate na porta, violentamente, vrias vezes.) Abra
essa porta, Jlia!
JLIA: Daqui s saio morta!
ISMNIA: Bem... (Desce a escada.)
EVANDRO: Jlia, querida, atende seu irmozinho.
JLIA: No quero saber de ningum. De ningum. Adeus. (Grito de
dor.)
EVANDRO: Jlia! Jlia! (Bate violentamente na porta. D com o ombro. Para
baixo.) Mame, me ajuda! Temos que arrombar essa porta. Ela
est se matando mesmo.
ISMNIA: (Sentada na poltrona.) Deixa ela. (Tem uma idia.) Olha: vai l
fora e diz a sua tia que a menina est se suicidando. (Os dois
cruzam na escada. Evandro sai.)
ISMNIA: Jlia! Jlia!
JLIA: No posso mais... falar... no tenho foras...
ISMNIA: (Cara preocupada. Olha pelo buraco da fechadura, como quem
se certifica de que no h nada.) Jlia, saia da. Tenho uma coi-
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sa importante para falar com voc...
JLIA: Agora... ... tarde...
ISMNIA: Jlia, vou mandar arrombar a porta. (Noutro tom) Tenho uma
proposta a lhe fazer... (Jlia abre a porta.(Ri). Vem escovando os
cabelos, como a coisa mais natural do mundo. Ismnia d-lhe
uma palmada. As duas descem as escadas.)
ISMNIA: Quero ver se consigo sensibilizar sua me. Mandei dizer a ela
que voc estava querendo se suicidar. (Dirige-se ao bar, abre a
geladeira. Pega um copo dgua.)
JLIA: No d mais resultado. Eu fazia isso toda semana l em casa.
S me suicidando mesmo. Voc quer?
ISMNIA: Eu quero resolver o seu problema, no o meu. (Pensa. Entra no
quarto de Evandro. Ouve-se o abrir e fechar de uma gaveta. Ela
volta com um pequeno revlver.) Voc vai ver se ela acredita em
suicdio ou no. (Caminha em direo sobrinha, sem dar ao
espectador a idia do que vai fazer, chega janela, aponta o re-
vlver para o jardim.)
JLIA: (Compreendendo) Titia, vai ser um escndalo!
ISMNIA: Escndalo comigo. Deita a e faz uma cena. (Jlia se deita
aborrecidssima. Ismnia vai at a janela, d o tiro. Ouve-se l fo-
ra um pequeno alarido; gente correndo, vozes confusas. Ismnia
se esconde.) Chi, juntou gente. Pensei que o barulho fosse me-
nor. (Pe o revlver sobre a mesa.)
JLIA: (Chateada. Sabe que aquilo no vai dar certo.) Voc tem cada
uma!
ISMNIA: (Olha) V, esto correndo pra fora em vez de vir pra c! (Esbu-
galha os olhos, sai correndo.) Meu Deus! Jlia, meu Deus! (Sai.
Jlia levanta, olha, se espanta, sai correndo tambm.)
MULHERES: (L fora) Deixa, deixa que eu pego. / Pela perna. Assim! / Cuida-
do com o degrau./ Levanta os braos! / Obrigado pela ajuda,
moo. / Pode voltar pro carro, Duarte. Voc o deixou aberto.
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HOMEM: (Fora) A senhora precisa mais alguma coisa?
OUTRA HOMEM: (Portugus) Quer que chame a assistncia?
ISMNIA: (Fora) No, no, muito obrigada pela ajuda, moo.
(Entram as trs, carregando o corpo de Evandro. Deitam-no no sof. A me de Jlia,
mulher de seus cinqenta anos, vestida completamente de preto. Tem no ouvido um
aparelho de surdez. Evandro geme.)
ISMNIA: (Segurando-lhe a cabea, para Jlia.) D alguma coisa pra ele
beber. (Assim que acomodam o corpo de Evandro, Regina se
pe a olhar em torno, curiosa, embora sempre serssima. Esta
uma casa que sempre teve desejo de conhecer.)
JLIA: Meu irmozinho, meu irmozinho! (Expresso da me, chatea-
dssima.) Que foi? Que foi?
ISMNIA: No foi nada de grave. Ele desmaiou. S.
EVANDRO: Onde... onde... estou...
ISMNIA: (Com carinho) Aqui... meu filho... em casa... com sua me.
JLIA: (Se levanta mais calma.) Como est voc mame? Tem passa-
do bem?
REGINA: (Olha a filha de alto a baixo.) Desde quando se trata os mais ve-
lhos de voc?
JLIA: Desculpe. Tenho sentido muito sua falta, mezinha. (Abraa-a)
REGINA: No precisa demonstrar carinhos que voc no sente. Detesto
fingimento. Arruma tuas coisas e vamos embora. Menos amor e
mais obedincia.
EVANDRO: (Levantando-se) Jlia, querida _ no lhe aconteceu nada? Voc
est viva? (Olha-a, aperta-lhe os braos, altura dos ombros.)
JLIA: No, no houve nada. Levei um susto foi com voc.
EVANDRO: (Pe a mo no corao.) Susto, hein? Susto foi o meu! Estava
tentando convencer a velha... tia Regina, quando ouvi o tiro. Sen-
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ti um frio na espinha e tudo ficou escuro. Imagina, perder uma
irm novinha em folha.
REGINA: (Falando para Ismnia, mas de costas para ela) Irmos, no ?
Ento j so irmos?
ISMNIA: E por acaso no so?
REGINA: Jlia, vou lev-la hoje, por bem ou por mal. No quero voc nem
mais uma hora nesta casa.
ISMNIA: Que que tem esta casa? feita de madeira e tijolo como qual-
quer outra.
REGINA: No estou falando com a senhora. Jlia, estou disposta a perdo-
ar tudo. Mas sou sua me, pretendo exercer meus direitos de
me. Voc vai comigo!
ISMNIA: Ah, me proprietria?! E a lei do inquilinato?
REGINA: J disse que no estou falando consigo.
ISMNIA: Falo quando bem entendo. Sou dona desta casa e pretendo
exercer os meus direitos de dona desta casa. Voc vai me ouvir.
REGINA: Jlia, vai buscar suas coisas. (Jlia sobe a escada.)
JLIA: Oh, mame, oh, mame! Voc quer a minha infelicidade. Ah, ah.
(Sobe as escadas chorando. Evandro vai atrs dela__.)__
REGINA: Pode falar o que quiser. Vou desligar meu aparelho... (Desliga o
aparelho de surdez.)
ISMNIA: Pois eu grito. (Grita, com o mximo de esforo.) Eu s quero que
voc seja razovel, uma vez na vida, Regina. Uma vez! (Desiste)
Ah, voc jamais me entender. (Bem baixinho.) Somos duas cria-
turas completamente diferentes.
REGINA: Todas as irms so diferentes.
ISMNIA: (Sorri, vitoriosa.) Ns mais do que ningum.
REGINA: (Liga de novo o aparelho.) No quero que voc tenha uma coisa
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a e depois diga que fui eu.
ISMNIA: Eu sempre procurei passar por cima das coisas desagradveis.
S por isso voc me acha leviana.
REGINA: Sua principal leviandade tem hoje vinte e cinco anos. (Com rai-
va.)
ISMNIA: Ah, esquece, pelo amor de Deus!
REGINA: Jlia, depressa! (Pega os culos da bolsa, fingindo
que olha um quadro na parede, enquanto Ismnia fala.)
ISMNIA: Ser que voc, em qualquer dia, na hora de dormir, no sente
um pouco de saudade minha?
REGINA: Moooooooorrro! (Vai guardar os culos na bolsa, deixa-os cair.)
Oh, quebrou! Que horror! (Procura pegar, ajudada por Ismnia.)
Que droga! Eu s trouxe esse par.
ISMNIA: Eu lhe dou um par meu. (Executa) V se serve.
REGINA: (Afasta os culos, determinada.) Deus me livre! Jlia, anda
da.
JLIA: (Surge porta do quarto.) J vou, tambm no posso juntar tudo
num minuto.
ISMNIA: Eu s queria saber que que voc pretende fazer da vida dessa
menina? O mesmo que fez da sua?
REGINA: Agora a minha vida que est errada?
ISMNIA: Voc se acha certa, bem, feliz, alegre, contente de viver?
REGINA: No quero viver bem, feliz, alegre. Quero viver decentemente. E
que minha filha seja uma moa direita. (Um olhar de desprezo
abrangendo a casa.) Se mame fosse mais enrgica com voc,
no teria sucedido o que sucedeu.
ISMNIA: Esquece, eu j disse. Foi uma coisa da juventude, um minuto de
loucura. E depois... eu tinha acabado de voltar da Sucia! Alm
disso, paguei pelo que fiz. Sofri mais do que voc. E no fiquei a
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pelos cantos me amaldioando, chorando e sobretudo chateando
os outros. (Pausa) Quer saber de uma coisa: se no fosse comi-
go era com outra. Ningum vive sempre bem com o marido, no.
Normalmente, no vive bem nunca. (Pausa) Voc tem uma filha
bonita, tem dinheiro, tem sade, tudo. No devia andar de preto,
devia andar de azul-rei!
REGINA: (Cheia) Ah! (Para cima) Jlia, eu vou sair, te espero l fora. Esta
casa me deixa sufocada. (Sai) (Ismnia joga-se no sof extenua-
da. Descem de l de cima Jlia e EVANDRO: Evandro car-
regando a mala.)
JLIA: Voc viu como ela ? No que eu no goste dela. Mas eu
posso viver l, trancada, s fazendo o que ela acha direito? A
gente s tem dezoito anos uma vez... Daqui a pouco estou com
trinta e a tarde...
ISMNIA: Convm no exagerar. Quando voc chegar aos trinta, ver que
ainda cedo. Depois dos trinta tem trinta e um. Eu j estou com
quarenta e... (Resolve no dizer), e ainda acho cedo. No sei pra
que no, mas ainda .
JLIA: Evandro, voc quer pr a mala no carro pra mim? (Evandro sai
com a mala.) Vou ligar para o Josu, me despedindo. (Pega o te-
lefone.)
REGINA: (Surgindo) Jlia, voc vem ou no vem?
JLIA: (Enquanto liga o telefone.) J vou! Hi titia, esqueci o capote l no
armrio, voc quer apanhar pra mim? (Ismnia sobe. Jlia larga
o fone, abre o cofre rapidamente e tira l de dentro o dinheIro.)
ISMNIA: (Surgindo em cima, sem ver Jlia.) No est aqui, no.
JLIA: Dentro do banheiro! (Fecha o cofre, pega o fone. Ismnia surge.)
ISMNIA: No est.
JLIA: Ah, tem razo, titia, eu botei na mala. No sei onde estou com a
cabea.
ISMNIA: (Desce) Falou com Josu?
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JLIA: No est em casa.
REGINA: (Aparecendo) Jliaaa!
JLIA: J vooooouuu! ( Ismnia) Quando ele aparecer aqui, voc diz
para esperar. Dou um jeito de ligar pra c. Adeus. Obrigado por
tudo. Desculpe os aborrecimentos que eu lhe dei. (Beija Ism-
nia.)
ISMNIA: (Beija-a) Voc s me deu prazer. At nos aborrecimentos. Sem
enredo a vida no vale nada. Adeus querida! Me escreva.
JLIA: (ltima tentativa.) Se voc quisesse, bem podia... Era s me
apoiar...
ISMNIA: Por favor, no me pea isso. Minhas relaes com sua me j
so to ruins... Voc volta no ano que vem.
JLIA: E ela vai deixar? (Jlia d de ombros, sai. Ismnia deita-se no
sof extenuada. Entra o delegado, olha para trs, como que
examinando Jlia que se afasta. Bate na parte de dentro da porta
para chamar a ateno de Ismnia. Extenuada, olhos fechados,
nem se volta.)
DELEGADO: (Tira o chapu, cumprimenta.) Boa tarde.
ISMNIA: (A custo) Boa tarde.
DELEGADO: (Sempre firme e seguro de si.) A senhora desculpe eu entrar as-
sim, mas a porta estava aberta. A senhora madame Ismnia
(Puxa papel do bolso) Scherzzo? (Pronuncia Isxerzo)
ISMNIA: Isquertzo.
DELEGADO: (Mostra a carteira.) Eu sou o delegado do quarto Distrito, Jos
Silva, s suas ordens.
ISMNIA: (Levanta-se, preocupada. Olha a carteira.) Sim?
DELEGADO: Recebi queixa de que andaram dando uns tiros aqui. Como se
tratava da senhora, preferi no mandar um investigador. Vim
pessoalmente.
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ISMNIA: Ningum aqui deu tiro nenhum.
DELEGADO: A senhora vai me desculpar, mas h vrias testemunhas.
ISMNIA: Deve ter sido a perto. Eu ouvi qualquer coisa. O senhor descul-
pe, mas estou cheia de preocupaes agora. (Delegado v o re-
vlver. Apanha. Examina-o, cheira-o, tira as balas, ri, superior.)
Est bem, est bem: eu dei um tiro a no jardim. Isso crime?
DELEGADO: No crime, mas indcio. A senhora permite que eu d uma
olhada na casa?
ISMNIA: S com ordem judicial.
DELEGADO: No trouxe, madame. Estou pedindo amigavelmente. S aqui j
enquadro vrias proibies.
ISMNIA: proibido ter revlver em casa?
DELEGADO: (Bem lentamente.) No, madame. Proibido este tipo de bala.
(Bala na mo, examinando.)
ISMNIA: (Examinando) Que que tem essa bala?
DELEGADO: (Separando as slabas, lento) Dum-Dum.
ISMNIA: Dum-Dum?
DELEGADO: Entram no corpo e (faz mmica de exploso), explodem l den-
tro, esfacelando os orgos, os ossos. Dum-Dum.
ISMNIA: Eu sei, eu sei! Que horror!
DELEGADO: Gostaria apenas de verificar se no h mais dessas balas em
algum lugar...
ISMNIA: Acho que no... Mas o senhor faa como quiser. (Olha para o
quarto de Evandro. Procura desviar a polcia para outro lado do
corredor.) Por aqui.
DELEGADO: O quarto de sua sobrinha em cima, no?
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ISMNIA: (Desconfiada) sim. Como que o senhor sabe? (Delegado faz
ar superior. No responde.) Pode subir. (Ela olha para trs. Pre-
tende ficar para examinar o quarto do filho antes.)
DELEGADO: A senhora desculpe, mas vai ter que me acompanhar. O regu-
lamento no permite que se d uma busca sem a presena de
uma testemunha de casa. (Irnico) Devemos evitar tentaes f-
ceis e acusaes falsas. (Ismnia sobe a escada, acompanhan-
do o Delegado. Este para no meio da escada, olha em torno.)
Uma casa, madame! emocionante. H muitos anos que no
entro numa! (Entram no quarto. Ouve-se l fora o Hino Nacional.
Quem comeou a assobiar foi o passarinho. Mas logo depois,
Evandro pe-se a assobiar e ainda entra na sala assobiando. O
efeito humorstico deve vir de fato do pblico achar que o passa-
rinho est assobiando bem demais, ou que o efeito est mal
(muito bem) executado. Acompanha-o o Padre Anselmo. Quando
Evandro para de assobiar, o pssaro l fora ainda d uns acor-
des.)
EVANDRO: (V que Ismnia no est por ali. Grita para dentro do corredor.)
Mame!
ISMNIA: (Surge na porta em cima.) J vou. Oh, Padre Anselmo, um minu-
to s. J lhe entrego o dinheiro.
PADRE: vontade, Dona Ismnia. (Pega o revlver. Larga-o.)
EVANDRO: Sente-se um pouco, Padre Anselmo.
PADRE: Obrigado, estou bem de p. (Anda) Sua me fez uma campanha
admirvel. J conseguiu setenta milhes para a catedral.
EVANDRO: Tudo isso?
PADRE: E exatamente no prazo em que pretendamos encerrar a cam-
panha, completou hoje os ltimos dez milhes de cruzeiros, em
pequenos donativos. Conseguiu movimentar toda a imprensa em
favor da campanha. Um esforo!
EVANDRO: Espero que com isso reservem um lugar pra mim no cu, ao la-
do dela.
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PADRE: Infelizmente, meu filho, os lugares no cu no so entradas de
futebol. Mas se eu for na frente, conte comigo. (Ri. Descem Is-
mnia e o Delegado.)
ISMNIA: Padre, o senhor est com muita pressa?
DELEGADO: Boa tarde. Boa tarde.
PADRE: Nenhuma, Dona Ismnia. Boa tarde.
EVANDRO: Boa tarde.
ISMNIA: O Doutor Silva aqui delegado do quarto Distrito. (Noutro tom.
Como quem avisa Evandro) Est procurando balas Dum-Dum.
DELEGADO: (Estende a mo.) Muito prazer. Jos Silva.
EVANDRO: (Aperta a mo.) Que balas Dum-Dum?
DELEGADO: Seu revlver estava carregado com balas Dum-Dum! (Evandro e
o Padre se olham. Ambos olham o revlver sobre a mesa. Evan-
dro abre o tambor.) Eu tirei as balas. O senhor conhece bala
Dum-Dum?
EVANDRO: Em pessoa, no. J ouvi falar muito...
DELEGADO: , todo mundo j ouviu falar... (Mostra) Aparentemente igual.
Uma questo de ranhura. Com licena. (O delegado e Ismnia
entram no quarto de Ismnia.)
EVANDRO: Balas Dum-Dum? (Entra Josu.)
JOSU: (Bem vestido.) Qued Jlia?
EVANDRO: Foi embora!
JOSU: Embora pra onde? Ia comigo ao cinema!
EVANDRO: Lamento muito, mas a me a levou prum poeira no interior de
Minas, onde ainda est passando o primeiro filme de Clark Ga-
ble. (Ismnia e Delegado saem do quarto.)
JOSU: Mas nem se despediu de mim...
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ISMNIA: Ela teve que ir, Josu. No houve modo de... Pediu que voc
esperasse aqui. Vai dar um jeito de telefonar.
JOSU: (Acabrunhado) Sim senhor. Sim senhor. Mulher isso. Voc v,
Ismnia, logo agora que eu... (Ismnia bate-lhe nas costas.)
EVANDRO: (Para o Delegado.) Encontrou mais alguma?
DELEGADO: No senhor. Posso ver este quarto? (Evandro faz um gesto de
assentimento.) Com licena. (Entra o Delegado. Ismnia fica na
porta de modo que pode vigiar o Delegado e falar pra fora.)
PADRE: Dona Ismnia, se a senhora prefere eu volto amanh.
ISMNIA: No, Padre, j lhe dou seu dinheiro. Um minuto. (Olha para den-
tro e avana para o quadro da parede. Afasta-o. Vai abrir o cofre.
Delegado sai do quarto de Evandro com uma caixa de sapato na
mo, sorriso nos lbios. Evandro percebe o que vai acontecer.
Tenta tirar-lhe a caixa das mos.)
EVANDRO: Um momento! (Delegado repele-o.)
DELEGADO: Madame, aqui esto as balas Dum-Dum que eu estava procu-
rando. (Abre a caixa e mostra belssimo colar. Todos ficam bo-
quiabertos. Delegado tira um papel do bolso.) Colar com trinta e
duas prolas e fecho de platina cinzelado. Confere.
ISMNIA: Macacos me mordam se eu...
DELEGADO: Vrias vezes recebemos queixa sobre...
EVANDRO: Um momento! Eu posso explicar tudo.
ISMNIA: Acho melhor falarmos deste caso em particular, senhor Delega-
do. um assunto de famlia. (Olha para Josu. Josu contrafei-
to.)
DELEGADO: Como queira.
PADRE: Bem, eu me retiro...
ISMNIA: No, Padre. Pode ficar.
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JOSU: Bom, j que o nico demais aqui sou eu...
ISMNIA: Compreenda, Josu.
JOSU: Se eu for compreender tudo que se passa nesta casa, acabo es-
tourando de compreenso. (Sai)
ISMNIA: (Para o Delegado.) E ento?
DELEGADO: (Para Evandro.) E ento? (Pausa) Vrias pessoas deram queixa
dizendo que onde a senhora ia, sumiam objetos de valor.
ISMNIA: (Amargurada) Veja o senhor, Padre Anselmo. Essa gente... na
minha frente...
PADRE: Mas isso um absurdo! Essa senhora d tudo que tem. uma
santa.
DELEGADO: Desculpe, Padre, s posso julgar pelos elementos que possuo.
Como disse, recebi vrias queixas. Hoje apareceu-me a oportu-
nidade de revistar a casa quando o guarda foi me avisar que es-
tavam dando tiros aqui. Inventei a histria das balas Dum-Dum.
Sei por experincia, que nunca ningum viu bala Dum-Dum. Nem
eu mesmo...
EVANDRO: O caso simples, senhor Delegado.
DELEGADO: Simples no no.
EVANDRO: Eu explico. Minha me no tem nada com isso. Eu acabei de me
formar em medicina. E estou me especializando em psicanlise.
DELEGADO: Meus parabns.
EVANDRO: H uma cliente minha que sofre de cleptomania...
DELEGADO: Infelizmente, doutor, a lei ainda no considera essas sutilezas.
Para ns, quem rouba desculpe doutor ... ladro.
EVANDRO: Por favor, senhor Delegado, no complique o caso. Eu sei como
so essas coisas. Se comeam a ser arroladas as testemunhas e
cheias as folhas de papel, estamos perdidos. J vi que o senhor
um homem inteligente.
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DELEGADO: No adianta querer lisonjear-me, doutor, sou infenso a vaidade.
Narre o caso. Intelectualmente, confesso que tambm tenho o
maior interesse em psicanlise. Sou f de Freud e... (Olha em
volta, baixa a voz) de Marx.
EVANDRO: Na verdade no h maiores explicaes; essa minha cliente
rouba. insopitvel nela. rica, no precisa. Rouba por doena.
DELEGADO: (Irnico) Para quebrar a monotonia de uma vida inspida?
EVANDRO: (Sem atentar para a ironia.) Vou lhe dar uma prova de que estou
falando a pura verdade. Tomei minhas precaues. (Tira do bol-
so a carteira. Pega uma lista. D ao Delegado.) Esto a dez ob-
jetos que foram furtados e devolvidos depois. O senhor procure
essas pessoas e verifique se no fui eu quem devolveu os obje-
tos, declarando exatamente isso, que tinham sido roubados por
uma cliente minha.
DELEGADO: (Pega a lista.) Huuummm. Fcil, esse caso no . (Para Ism-
nia.) Como o nome todo da sua sobrinha?
ISMNIA: (Vencida, acena com a cabea.) As acusaes foram completas,
hein? Que gente!
DELEGADO: Eu lamento muito, mas ela vai ter que ser interrogada e os se-
nhores tambm. inevitvel.
ISMNIA: Cacilda! Que que eu fiz a Deus?
PADRE: Fique calma, Dona Ismnia, que tudo se resolve. Afinal de con-
tas, a senhora tem reputao.
ISMNIA: (Com desprezo.) Sei! (Noutro tom.) Evandro, meu filho, porque
voc no me contou logo? Eu talvez pudesse evitar isso.__
EVANDRO: Protegi Jlia o mais possvel. No quis preocupar voc. Nesses
casos basta, em geral, confiar na pessoa e ela se refaz. Se se
chama a ateno pro roubo, muito mais grave. A pessoa adqui-
re um terror de contatos humanos, s vezes at d para se en-
cerrar e no querer sair de casa. Jlia estava com tal confiana
em mim que, sempre que encontrava em seu quarto alguma coi-
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sa que no era dela, vinha me entregar. Ensinei-lhe at o segre-
do do cofre e ela nunca mexeu nele! (Pausa. Referindo-se ao co-
lar.) Isso deve ter sido consequncia da presso de titia sobre
ela, estes ltimos dias. (Telefone toca. Delegado faz um gesto,
ordenando que atenda. Agora j virou Gary Cooper. Ismnia vai
atender.)
ISMNIA: Al? 46-6666. Jlia? J querida, um momento! (Vai at a janela
e grita para o jardim.) Josu! Jlia. (Josu entra correndo e
atende.)
JOSU: Jlia? Josu. No, no. Claro que fiquei. Gosto, como no?! Oh,
meu amor, onde? (Espantadssimo) Me deem um papel a.
(Evandro d. Toma nota.) Avenida Novaes Cardoso, em frente
ao nmero 128. Est. (Espantado) Quanto? Puxa! Est bem. At
j. Vou voando! (Larga o fone, alegrssimo. Vai sair correndo. De-
legado barra-lhe o caminho.)
DELEGADO: Um momento!
JOSU: (Evita-o agressivo. Delegado resolve no insistir. Josu Ism-
nia.) Ah, Jlia mandou dizer que voc desculpe os dez milhes
de cruzeiros que ela tirou do cofre, mas que devolve assim que
puder. (Sai correndo. Todos ficam espantadssimos. Ismnia vol-
ta si, vai porta, grita.)
ISMNIA: Josu! Espera. (V que ele no escuta.) S essa me faltava!
(Abre o cofre, joga um bolo de papis na mesa, sem dizer nada.
Acena com a cabea, como quem diz: sim senhor.) S me fal-
tava essa! (Todos esto chateados, exceto o Delegado__.)__
DELEGADO: Se que entendi, roubaram dez milhes de cruzeiros por aqui.
(Para Evandro.) Eu quase que fui na conversa, doutor, mas o ca-
so complicado mesmo.
PADRE: E agora, que vamos fazer, Dona Ismnia? A congregao espe-
ra que eu entregue esse dinheiro amanh. Oh, meu Deus, esta-
mos no mundo cada vez mais cheio de pecado!
ISMNIA: Sorte sua, Padre, se fosse ao contrrio o senhor teria que andar
por a pregando a maldade. (Pausa. Sentada junto ao cofre.)
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Meu querido filho, infelizmente sua teoria deu em nada.
EVANDRO: Mas mame, voc no percebe? Isto diferente! Jlia deve ter
alguma ideia na cabea! (Empolgado pela ideia) isso, mame!
Meu tratamento est certo. Isso ela no roubou como cleptoma-
naca! Isso ela tirou conscientemen... (Percebe a chance que deu
ao Delegado.) (Para)
DELEGADO: (Sorri, superior.) O senhor v, doutor, a moa est em maus len-
is. Se roubou como cleptomanaca um caso para o senhor.
Se no, cai no meu departamento...
PADRE: (Ideia) Dona Ismnia, se for cheque, a senhora pode ligar pro
banco.
ISMNIA: (Abatida) Eram dez notas de um milho.
DELEGADO: Fique calma. Ns pegamos a moa.
ISMNIA: No quero isso. Desejo que ela seja feliz. Gostaria que realmen-
te ela tivesse ficado boa e fosse feliz. (Para Evandro.) o resul-
tado da presso dessa megera de minha irm. bom para ela
aprender de uma vez. A menina tem tudo para ser normal e... ex-
trovertida, mas com aquela matraca dia e noite em cima dela...
DELEGADO: (Excessivamente gentil.) No estou querendo compelir ningum,
no - mas ser que os senhores podiam me acompanhar para
prestar declaraes no Distrito? (Os trs ficam sem saber o que
responder, o Delegado embrulha o colar no leno. Entra Regina
esbaforida, debulhada em lgrimas.)
REGINA: Ismnia, Jlia fugiu! Fugiu! Ah, minha filha desapareceu! (Senta-
se numa cadeira, chora.) Me ajuda, Ismnia.
ISMNIA: Como foi? (Pe-lhe a mo no ombro.)
REGINA: Tanto pediu, tanto gritou que queria falar com esse namorado
dela, esse tal Epstein... Acabei deixando. Ela entrou num restau-
rante para telefonar. Quando dei por mim, ela no estava mais.
Foram o diabo desses culos. (Usa culos quebrados. Chora.)
Ismnia, que que eu vou fazer agora?
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ISMNIA: Sei l. Eu que pergunto: que que eu vou fazer agora? Ela le-
vou dez milhes de cruzeiros que estavam no cofre...
REGINA: Dez milhes de cruzeiros? Essa menina enlouqueceu! E voc
a culpada!
ISMNIA: De uma vez por todas: eu no sou culpada de porra nenhuma!
(Pe a mo na boca.) Shi! Essa expresso s vai ser possvel
daqui a muitos anos! No mandei que ela viesse aqui nem fui eu
que a forcei a ir embora. Voc que uma megera! Disse e repi-
to.
PADRE: Calma, calma... cuidado com as palavras. atravs delas que o
demnio se insinua.
ISMNIA: Padre Anselmo... sermo tem hora!
EVANDRO: Que pretende fazer, mame?
PADRE: (Meio ofendido.) Dona Ismnia, eu vou embora. Deixo que a se-
nhora resolva o caso como lhe parecer melhor.
REGINA: J sei! Eu vou at a casa desse rapaz, ter uma conversa com o
pai dele. (Levanta-se, autoritria.)
ISMNIA: Eu, por mim, vou telefonar para a imobiliria e vender a casa...
No me resta outra sada. Onde vou arranjar dez milhes de cru-
zeiros?
PADRE: melhor esperar. Quem sabe?
ISMNIA: Esperar pra qu? Mais cedo ou mais tarde tinha que acontecer,
vou viver enjaulada num apartamento como todo mundo. No
sou melhor do que ningum. (Zomba, triste, referindo-se irm.)
A no ser que algum queira arcar com o prejuzo... (Regina vira
o rosto como se no fosse com ela. Longo silncio. Corretor en-
tra. Para, espantado com o ambiente)
DELEGADO: Eu, c por mim, no entanto do entretanto, peo-lhes que se con-
siderem presos.
TODOS: Como? Como assim? Presos?
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REGINA: Que isso?
DELEGADO: No estou propriamente prendendo. Estou detendo. Ou melhor,
pedindo que se considerem detidos.
REGINA: Quem esse homem?
DELEGADO: Jos Silva, delegado do quarto distrito policial, s suas ordens,
madame. Como eu disse, gostaria que todos...
EVANDRO: O jeito irmos mesmo, mame. Acho que o doutor delegado es-
t decidido.
DELEGADO: O senhor compreende... se fosse um caso de famlia ia bem.
Mas h queixas... h o colar... h esse dinheiro...
ROCHA: (Como quem vai sair.) Oh, desculpe, Dona Ismnia, acho que,
como sempre, cheguei fora de hora.
ISMNIA: No, pela primeira vez o senhor chegou na hora exata. Ia justa-
mente lhe telefonar. Resolvi vender. Pode derrubar a ltima casa
do bairro. a sua hora.
ROCHA: Ambos temos nossa hora. E a senhora vai fazer o melhor neg-
cio de sua vida! No vai se arrepender. (Vai avanar, o delegado
barra-lhe o caminho.)
DELEGADO: O senhor, por favor, deixe esse negcio para depois.
ROCHA: Que que h? (Olha em torno, desconfiando para que algum o
esclarea.) No entendo.
DELEGADO: Nem eu, quanto mais o senhor.
ROCHA: Mas, um momento! Estou para fechar este negcio h mais de
dois anos. No posso deixar esta oportunidade.
DELEGADO: Eu no tenho nada com seus negcios. (Pensando melhor.) Se
quiser entrar, entre... (Forte) Mas est preso tambm!
ROCHA: Est certo, est certo. Prenda, mate, faa o que quiser. Eu que
no vou perder um negcio desses, ora! (O corretor entra. Surge
Lusada no fundo do corredor. Est meio bbada. Vem com uma
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mala na mo. Corretor tira papis da pasta e espalha na mesa
para que Ismnia assine.)
ROCHA: A senhora assine aqui, por favor, Dona Ismnia. Os papis j
esto at amarelados. Olha a. (Indica) So trezentos milhes.
Apenas como sinal dou-lhe um pequeno cheque de dez milhes.
(Entrega-o. Ismnia, sem olhar, passa o cheque ao padre. Co-
mea a assinar com mo firme enquanto os outros se preparam
para sair.)
LUSADA: Dona Ismnia!
ISMNIA: (Sem levantar os olhos.) Ahn?
LUSADA: Eu vou-me embora, Dona Ismnia. (Ismnia levanta a vista,
olha-a.)
ISMNIA: Ah, voc?
LUSADA: Sou, Dona Ismnia e vou embora. Fiquei muito sentida com o
que a senhora me disse. Eu nunca roubei nada em minha vida.
Eu gostava muito da senhora. Mas, antes de ir embora, bebi um
pouco para ter coragem... A senhora no vai achar falta de res-
peito, no... mas vou lhe dizer umas verdades.
ISMNIA: Dizer a verdade sempre falta de respeito. (Noutro tom.) J sei
que voc no tem culpa de nada. Est readmitida. No fique pa-
rada a feito boba. ( Lusada emocionada.) V buscar uma gar-
rafa de champanha. (Assina o ltimo papel.) Afinal, precisamos
comemorar o acontecimento. (Lusada obedece, emocionada. H
um instante de tristeza na sala. Ismnia caminha at perto da ja-
nela, olhando os edifcios que lhe cercam a casa. Para o corre-
tor.) Assim se vai a ltima pomba de Copacabana, no ?
ROCHA: Sim senhora, a ltima.
ISMNIA: (Gozadora) Meus amigos, sem querer ser importante, este o
fim de uma era... (Lusada vem com a bandeja, com taas e gar-
rafa de champanha. Ismnia suspira. Mais sria.) Gostaria de
possuir uma fora mgica que me desse o poder de fazer as coi-
sas voltarem atrs, para os tempos em que cada homem tinha
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um lar e no vivia em prateleiras de cimento armado. (Com rai-
va.) Gostaria que cada gesto meu pudesse fazer vir abaixo um
desses monstros de cimento armado. (Acompanha a fala com o
gesto em direo a um edifcio. Ouve-se o terrvel estrondo de
um edifcio que desaba. A casa e a luz tremem. Todos ficam es-
tticos e boquiabertos, numa incompreenso total do que acon-
teceu, horrorizados. Uma poeira de caligem vai entrando pelas
janelas. Ouve-se l fora alarido de vozes assustadas. Gente, no
edifcio ao fundo, espia o acontecimento. Ouve-se o piar do pas-
sarinho assustado, que se afasta.)
TODOS, EM CORO: Deus do cu! (O Padre se benze. Blecaute) (Voz de Carlos La-
cerda outra vez.)
CARLOS LACERDA: Chamam o gacho Batista Luzardo de centauro dos pampas. E
com razo. Ele metade cavalo e a outra metade tambm. Esse
jornal que chamam de Folha do Povo na verdade a Rolha do
Povo. Luto, mas no para matar nem para morrer. Minha profis-
so viver. Esse grupo ocupou o governo Dutra e o comprome-
te, e o envolve, e o aconselha e denigre. A culpa das elites que
temem, que se ausentam, que se esquivam, que se fartam e que
se furtam. Ou que se furtam e que se fartam.
(O mesmo cenrio. A luz sobe. So aproximadamente onze horas da manh de um
dia brilhante de dezembro. O cenrio est quase completamente sem mveis. Veem-
se, nas paredes, marcas de quadros e mveis, longos anos pendurados e encostados
nos mesmos lugares. Tapete enrolado no cho. L fora o pssaro canta. Ismnia ob-
serva-o pela janela. Ao fundo vizinhos espiam a mudana, ocasionalmente. Lusada
entra, vinda do interior da casa.)
ISMNIA: (Aponta para fora.) V se o Duque Estrada j entrou no alapo.
(Lusada olha um pouco pela janela, depois sai para o jardim.)
CARREGADOR: (Passando com uma cadeira, tirando um quadro da parede.)
Mais uma viagem e acabamos, madame.
ISMNIA: Est bem. ( janela) E agora! Entrou?
LUSADA: (Fora) Fugiu de novo!
ISMNIA: Eu acho que j percebeu o alapo.
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EVANDRO: (Entrando, vindo do quarto, est pondo gravata.) Nova casa, no-
va vida, novos amores.
ISMNIA: Quem saiu perdendo tudo no fim?
EVANDRO: A que melhor sabe perder. (Beija-a) Mas tudo lucro. (Grandilo-
quente) Nascemos nus. (Fatalista) Pior seria se perdssemos a
vida.
ISMNIA: Seria mais econmico.
LUSADA: Peguei, Dona Ismnia, peguei!
ISMNIA: Perco eu e perde o passarinho. Ambos s tm uma ambio
espao. Melhor assim, quem no voa, no cai... ( janela)
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