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O ACENTO PRIMÁRIO NO LATIM CLÁSSICO E NO LATIM VULGAR:
O TRATAMENTO DA MUDANÇA NA PERSPECTIVA
DA TEORIA DA OTIMALIDADE
Roberto Botelho Rondinini
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Rio de Janeiro Março de 2009
Roberto Botelho Rondinini
O ACENTO PRIMÁRIO NO LATIM CLÁSSICO E NO LATIM VULGAR:
o tratamento da mudança na perspectiva da teoria da otimalidade
Volume Único
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alexandre Gonçalves
RIO DE JANEIRO 2009
Rondinini, Roberto Botelho. O acento primário no latim clássico e no latim vulgar: o tratamento da mudança na perspectiva da Teoria da Otimalidade/ Roberto Botelho Rondinini. – Rio de Janeiro: UFRJ; 2009. xiii, 160 fl: il.; 31 cm. Orientador: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves Tese (Doutorado) – UFRJ/ Instgraduação em Letras
ituto de Letras/ Programa de Pós-Vernáculas (Língua Portuguesa), 2009.
Referências Bibliográficas: f. 174 – 182. 1. Teoria da Otimalidade. 2. Mudança. 3. Acento. 4. Latim. I. Gonçalves, Carlos Alexandre Victorio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. O acento primário no latim clássico e no latim vulgar: o tratamento da mudança na perspectiva da Teoria da Otimalidade.
O ACENTO PRIMÁRIO NO LATIM CLÁSSICO E NO LATIM VULGAR:
o tratamento da mudança na perspectiva da teoria da otimalidade
Roberto Botelho Rondinini Orientador: Professor Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Tese de Doutorado submetida ao Programa e Pós-graduação em Letras
Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Examinada por:
_______________________________________________________________ Professor Doutor Carlos Alexandre V. Gonçalves (UFRJ – Vernáculas), Presidente
_______________________________________________________________ Professora Doutora Carmem Tereza Dorigo (Museu Nacional – UFRJ)
_______________________________________________________________ Professora Doutora Myrian Azevedo de Freitas (UFRJ – Lingüística)
_______________________________________________________________ Professor Doutor João Antonio Moraes (UFRJ – Vernáculas)
_______________________________________________________________ Professora Doutora Mônica Maria Rio Nobre (UFRJ – Vernáculas)
_______________________________________________________________ Professora Doutora Christina Abreu Gomes ((UFRJ – Lingüística)
_______________________________________________________________ Professora Doutora Maria Lúcia Leitão (UFRJ – Vernáculas)
Rio de Janeiro
Março de 2009
SINOPSE Estudo sobre o acento primário. Caracterização dos diversos aspectos do acento. Origens do latim e de suas variedades. Análise do acento primário em não-verbos do latim clássico e do vulgar. Mudança lingüística. Análise segundo a Teoria da Otimalidade.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a Deus, sempre presente em meu
coração, em minha mente e em tudo o que faço.
A Lorenzo e Carmen, in memoriam, meus exemplos de
vida.
A Camila, Victor, Lucas, Sandra, Emília e Lourenço,
minha sempre amada família.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Carlos Alexandre pela orientação e amizade. Não tenho palavras
para expressar minha admiração e respeito.
As professoras Maria Lúcia Leitão, Christina Abreu e Aparecida Lino pela
formação do período inicial.
Aos professores Afrânio Barbosa e João Moraes pelos valiosos comentários e
sugestões, além dos livros gentilmente cedidos.
Ao CNPq pela concessão da Bolsa de Fomento à pesquisa por três anos.
A minha família pelo incentivo constante e por serem as pessoas maravilhosas
que são. Agradeço, especialmente, a Camila pelo apoio indispensável nos
últimos meses.
Aos muitos amigos que estiveram ao meu lado nesta longa e árdua caminhada.
RESUMO
O ACENTO PRIMÁRIO NO LATIM CLÁSSICO E NO LATIM VULGAR:
O TRATAMENTO DA MUDANÇA NA PERSPECTIVA DA TEORIA DA
OTIMALIDADE
Roberto Botelho Rondinini
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), Instituto de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa.
Esta Tese analisa o acento primário em não-verbos nas variedades
clássica e vulgar do latim e evidencia como a Teoria da Otimalidade (TO)
compreende e trata a questão da mudança lingüística. A análise dos dados
fundamenta-se no pressupostos da TO, nos moldes de Prince & Smolensky
(1993), modelo que substitui a noção de regras em favor de restrições que
podem ser violadas sem, no entanto, gerar elementos agramaticais. A
mudança baseia-se nos estudos de Holt (1997) e Hutton (1996) e, por meio da
delimitação de diferentes sincronias, verificamos que a demoção de restrições
é o fator responsável pela efetiva mudança na aplicação do acento primário em
não-verbos latinos.
Palavras-chave: Teoria da Otimalidade, Acento, Latim, Mudança Lingüística
Rio de Janeiro
Março de 2009
ABSTRACT
THE PRIMARY STRESS ON CLASSIC LATIN AND ON VULGAR LATIN:
THE TREATMENT OF THE LINGUISTIC CHANGE IN THE PERSPECTIVE OF
THE OPTIMALITY THEORY
Roberto Botelho Rondinini
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), Instituto de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa.
This thesis analyzes the primary stress on non-verbs in the classic and
vulgar varieties of latin and demonstrate how the Optimality Theory (OT)
comprehends and treats the linguistic change. The analysis of data is based on the
assumptions of OT, in the patterns of Prince & Smolensky (1993), model which
substitutes the notion of rules in favor of constraints that can be violated without,
however, generating ungrammatical elements. The change is based on the studies
of Holt (1997) and Hutton (1996) and, through means of delimitation of different
synchronies, we verify that the demotion of constraits is the responsible factor for
the effective change in the application of the primary stress on latin non-verb.
Key-words: Optimality Theory, Stress, Latin, Linguistic Change.
Rio de Janeiro
Março de 2009
RESUMEN
EL ACENTO PRIMARIO EN EL LATÍN CLÁSICO Y EN EL LATÍN VULGAR:
EL TRATAMIENTO DEL CAMBIO EN LA PERSPECTIVA DE LA TEORÍA DE LA
OTIMALIDAD
Roberto Botelho Rondinini
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa), Instituto de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa.
Esta tesis analiza el acento primario en formas no verbales pertenecientes
a las variedades clásica y vulgar del latín y demuestra como la Teoría de la
Otimalidad (TO) comprende y trata la cuestión del cambio lingüístico. El análisis
de los datos se fundamenta en los presupuestos de la TO, en los moldes de
Prince & Smolensky (1993). En ese modelo, se sustituye la noción de reglas por
restriciones que se pueden violar sin que se generen elementos agramaticales. El
cambio se basa en los estudios de Holt (1997) y Hutton (1996). Por medio de la
delimitación de diferentes sincronías, se verificó que la democión de restriciones
es el factor responsable del efectivo cambio en la aplicación del acento primario
en formas no verbales latinas.
PALABRAS CLAVE: Teoría de la Otimalidad; Acento; Latín; Cambio Lingüístico.
Rio de Janeiro
Março de 2009
SUMÁRIO
Página
1. INTRODUÇÃO 14
2. ASPECTOS GERAIS DO ACENTO 18
2.1. Sobre o domínio de aplicação do acento primário 19
2.2. Hipóteses para a descrição do acento em português 23
2.3.A Abordagem da gramática tradicional 24
2.4. Breve caracterização do acento em português 26
2.4.1. A visão de Camara Jr. (1970) 28
2.4.2. As funções do acento 31
2.4.3. O acento no modelo gerativo 34
2.4.4. Análises do acento primário segundo 36
modelos não-lineares
2.5. Sobre os correlatos fonéticos do acento 43
2.6. Resumo do capítulo 46
3.FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 47
3.1. Conceitos básicos da Teoria da Otimalidade 47
3.1.1. Universalidade 53
3.1.2. Ranqueamento e Violabilidade 54
3.1.3. Inclusividade 55
3.1.4. Paralelismo 56
3.2. Outras questões relevantes 56
3.2.1. Conflito de restrições: Fidelidade e Marcação 57
3.2.2. Riqueza de Base e Otimização do Léxico 63
3.3. Mudança na Teoria da Otimalidade 64
3.3.1. Promoção de restrições 66
3.3.2. Demoção de restrições 67
3.3.3. Criação de novas conexões entre restrições 68
3.3.4. Dissolução de conexão entre restrições 69
3.3.5. Alteração da relação de dominância entre 71
duas restrições
3.4. Resumo do capítulo 72
4. AS ORIGENS DO LATIM 74
4.1. Um pouco de história 74
4.2. Variedades do latim 76
4.2.1. O latim arcaico 77
4.2.1.1. O acento no latim arcaico 79
4.2.1.2. Provável causa da mudança 79
4.2.2. Breves questões acerca da natureza 80
do acento latino
4.2.3. Latim clássico e latim vulgar 82
4.3. Resumo do capítulo 85
5. O ACENTO NO LATIM CLÁSSICO 88
5.1. A natureza do acento no latim 88
5.2. O Acento no latim clássico 91
5.3. Análise do acento no latim clássico segundo a 98
Fonologia Métrica
5.4. Análise do acento no latim clássico segundo a Teoria da 101
Otimalidade
5.5 Resumo do capítulo 125
6. O ACENTO NO LATIM VULGAR 126
6.1. Análise do latim vulgar segundo a Fonologia Métrica 135
6.2. Análise do acento no latim vulgar segundo a Teoria da 138
Otimalidade
6.3 Resumo do capítulo e sistematização da proposta 164
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS 169
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 174
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva analisar a mudança na aplicação do acento
primário em não-verbos no latim. Para tanto, nossos estudos serão
direcionados para a aplicação do acento latino em suas variedades clássica e
vulgar. Fundamentamos nossa análise nos princípios da Teoria da Otimalidade
(TO), nos moldes de Prince & Smolensky (1993). Tal modelo teórico apresenta
avanços em relação aos modelos derivacionais não-lineares, como a
Fonologia Lexical e a Fonologia Métrica, os quais pretendemos referenciar ao
longo de nossa pesquisa.
A Teoria da Otimalidade propõe a análise dos fenômenos lingüísticos
por meio de restrições e não por meio de regras, sendo possível violar
restrições sem, contudo, fadar um candidato à agramaticalidade. Tal fato é
impossível em propostas anteriores à TO, também de fundamentação gerativa,
uma vez que os modelos precedentes são baseados na aplicação de regras e
a não conformidade com essas implica, obrigatoriamente, agramaticalidade.
Através de um levantamento dos aspectos lingüísticos que agem sobre
determinado fenômeno, o modelo da TO propõe a constituição de uma
hierarquia de restrições universais. Tais restrições traduzem, ou melhor
dizendo, representam tais aspectos e atuam em conjunto e em paralelo, sem a
existência de níveis abstratos intermediários de análise. Além disso, são
motivadas por princípios bem conhecidos na literatura fonológica e refletem
tendências lingüísticas gerais.
15
Embora já existam estudos realizados a partir de outras abordagens
teóricas de base gerativa sobre o acento primário, não somente em latim como
também em português, tais como Lee (1995), Bisol (1992), Massini-Cagliari
(1999) e Quednau (2000), dentre outros, destacamos a relevância e
originalidade de nossa pesquisa, uma vez que focalizamos nossa atenção no
tratamento dado pela Teoria da Otimalidade ao processo de Mudança na
aplicação do acento. Fundamentaremos a análise da Mudança lingüística nos
propostas de Hutton (1996) e Holt (1997), já utilizadas na descrição do
português por Rodrigues (2007), em estudo sobre o desfazimento de hiatos, e
verificaremos, desse modo, questões relativas à alteração do input, ao re-
ranqueamento da hierarquia de restrições e aos mecanismos de alteração da
mesma.
Do ponto-de-vista metodológico, elaboraremos uma pesquisa de cunho
interpretativista, em que realizaremos releituras de trabalhos já apresentados
sobre o acento primário a partir de abordagens derivacionais e otimalistas. Os
dados a serem utilizados na pesquisa serão coletados a partir de fontes
secundárias, tais como dicionários e gramáticas latinos, gramáticas históricas,
manuais de filologia e artigos sobre o tema. Como fonte primária, utilizaremos
o Appendix Probi para o latim vulgar e citações de autores latinos. Desse
modo, configuramos uma pesquisa de fundamentação qualitativa e, como já
dissemos, interpretativa. Estruturaremos nosso trabalho da seguinte maneira:
No capítulo 2, traçaremos um painel sobre o acento, apresentando
conceitos e características gerais sobre o mesmo. Num âmbito mais
específico, verificaremos como o estruturalismo (cf. CAMARA JR, 1970), a
gramática tradicional (cf. CUNHA, 1972 e ROCHA LIMA, 1972) e o modelo
16
gerativo (cf. BISOL, 1992 e LEE, 1995) compreendem e definem “acento” em
suas análises para o português. Consideramos tal língua, na exemplificação
das análises, não somente pela diversidade de estudos já existentes, mas
também, e principalmente, pela origem latina do português, que reflete muitos
aspectos do padrão latino de acentuação.
Verificaremos, ainda nesse capítulo, as funções desempenhadas pelo
acento lexical primário, além de verificarmos os seus correlatos fonéticos (cf.
MASSINI-CAGLIARI, 1992 e LLORENTE, 1972 e MORAES, 1998). Com isso,
esperamos montar um amplo quadro que nos auxilie na análise dos aspectos
do acento lexical de não-verbos latinos nas sincronias por nós estudadas.
Após definirmos nosso objeto de estudo, abordaremos, no capítulo 3, os
aspectos que fundamentam e caracterizam o modelo otimalista, buscando (a)
evidenciar o modelo de gramática da TO e verificar como esse funciona; (b)
apresentar e discutir os princípios que regem tal modelo; (c) apresentar a
metodologia de análise e as suas especificidades e (d) estudar como a TO
compreende e analisa a mudança lingüística. Basearemos os estudos
otimalistas em Prince & Smolensky (1993), Cagliri (2002), Gonçalves (2004),
Costa (2001), Abaurre (1999), dentre outros. Em relação à mudança
lingüística, abordaremos aspectos relevantes das propostas apresentadas por
Hutton (1996) e Holt (1997), como já dissemos. Buscamos na Teoria da
Otimalidade (TO) uma fundamentação teórica que nos permita analisar o
fenômeno lingüístico tanto em bases sincrônicas quanto em bases diacrônicas.
17
A partir da existência de diferentes abordagens possíveis no que se
refere não somente ao tratamento do acento em língua latina nas suas
variedades culta e popular, mas também à própria definição conceitual dos
termos clássico e vulgar, apresentaremos, no capítulo 4, a visão de filólogos e
gramáticos históricos (MAURER, JR, 1959; SILVA NETO, 1977 e 1976;
BUNSE, 1943; ILARI, 2006, dentre outros) a respeito das origens do latim.
Para tanto, iniciaremos nossa pesquisa com o latim arcaico, delimitando suas
características principais em relação à aplicação do acento e às influências
sofridas ao longo dos séculos. Desse modo, pretendemos caracterizar o
ambiente lingüístico e social em que, tanto o latim clássico quanto o latim
vulgar, surgiram, para, então, definirmos tais variedades e apresentarmos o
ponto-de-vista teórico por nós adotado na presente pesquisa.
Os dois capítulos seguintes apresentarão a análise de nossos dados
para o latim clássico e o latim vulgar, respectivamente. Buscaremos, em cada
um desses capítulos, descrever as regularidades e irregularidades existentes
na aplicação do acento primário de não-verbos e apresentaremos uma análise
proveniente de Modelos teóricos não-lineares, com ênfase na Fonologia
Métrica, segundo Hayes (1995). Tal procedimento servirá como ponto de
partida para a aplicação da Teoria da Otimalidade ao tratamento (a) do acento
primário lexical e (b) da mudança fonológica.
18
2. ASPECTOS GERAIS DO ACENTO
O presente capítulo tem como objetivo apresentar questões gerais sobre
o acento, de modo a construir um painel com informações, reflexões e
exemplos de diversas línguas e do português, em especial. Para tanto,
verificaremos (a) os tipos básicos de acento; (b) os domínios de aplicação do
acento primário; (c) o conceito que diferentes modelos teóricos e as gramáticas
tradicionais apresentam sobre o tema; (d) a visão estruturalista do acento em
português, na perspectiva de Camara Jr. (1970); (e) a visão dos modelos
gerativos, na perspectiva de Bisol (1992) e Lee (1995) e (f) os aspectos
fonéticos do acento em geral e os relacionados ao português, em especial.
Iniciaremos o capítulo com a caracterização dos três tipos básicos de
acento, conforme descrição proposta em Collischon (2007: 196):
a) Acento primário – é o acento mais proeminente em uma palavra e
incide sobre a sílaba tônica. É caracterizado por uma maior duração dessa
sílaba, considerando-se todos os elementos que a compõem (consoantes,
vogais e glides) e não somente a vogal (cf. MASSINI-CAGLIARI, 1992), em
relação às demais sílabas da palavra. É o nosso objeto de estudo;
b) Acento secundário - é o acento mais proeminente existente em um
vocábulo, considerando somente as sílabas que não carregam o acento
primário. No português, é pré-tônico e pode ser caracterizado pela variação na
freqüência fundamental, sendo difícil estabelecer um correspondente fonético
principal (COLLISCHON, 2007);
19
c) Acento frasal – é o acento mais forte em uma seqüência de palavras.
É caracterizado por uma variação da freqüência fundamental, que destaca a
sílaba acentuada em relação ao resto do enunciado.
2.1. Sobre o domínio de aplicação do acento primário
A respeito do domínio de aplicação do acento primário, que constitui o
foco de nosso estudo, Gonçalves (1995) apresenta, segundo o modelo da
Fonologia Lexical (KIPARSKY, 1982), dois possíveis lugares: o nível lexical e o
nível pós-lexical.
Caso o acento seja uma informação completamente aleatória, não
seguindo regras para sua aplicação, como acontece com o russo, ele fará
parte da representação lexical da palavra. É, dessa maneira, uma informação
dada na própria constituição do vocábulo, da mesma forma que os fonemas.
Por outro lado, se o acento apresenta alguma regularidade, de tal
maneira que possa ser analisado por meio de regras, ele pode, ainda segundo
o mesmo autor, estar no léxico ou no pós-léxico. Como exemplo do primeiro
caso, temos o português brasileiro; do segundo caso, temos o latim clássico.
Para ser considerada uma regra pertencente ao componente lexical, o
acento deve apresentar as seguintes características (cf. GONÇALVES, 1995):
(a) depender de informações como Radical, Tema ou Afixo; (b) não se
modificar em construções prosódicas maiores que a palavra (grupo clítico,
frase fonológica) e (c) não ser inteiramente previsível.
20
Alguns argumentos favoráveis à presença do acento na língua
portuguesa em nível lexical são: (a) o fato de o acento primário no português
ser aplicado na palavra, uma vez que a colocação de clíticos não altera a
localização da tônica, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o latim
clássico, como exemplificaremos a seguir, em (01); (b) regras de sândi e
haplologia, consideradas de modo unânime como pós-lexicais, necessitam de
informação acentual prévia para serem aplicadas, o que nos leva à suposição
de que o acento precede tais processos e, por isso mesmo, se localiza no
léxico, e (c) há propostas teóricas em que “o acento inspeciona a estrutura
inteira da palavra, reconhecendo primitivos morfológicos, como base e afixos”
(op. cit: 2), como realiza Lee (1995) em seu estudo sobre o acento no
português brasileiro atual.
Verificamos em (01), alguns exemplos, retirados de Gonçalves (1995),
que ilustram tais observações:
(01) a) dísse VS. dísse-lhe légis VS. legísne
avistéi VS. avistéi-o árma VS. armáque
b) casa azul = casazul beberá água = beberá-água | \ / | | | | | \ / | +ac. | |
+ac. \/ | | | -ac. | +ac. | +ac. | -ac.
21
Em (01) a), percebemos que o acréscimo do clítico às formas verbais no
português não altera a posição da sílaba tônica, sendo o acento insensível à
presença do mesmo. Já no latim clássico, os clíticos –ne e –que provocam o
deslocamento do acento para a sílaba imediatamente anterior aos mesmos. Já
em (01) b), verificamos a ocorrência da crase entre o <a> átono final de
<casa> e o <a> átono inicial de <azul>. Essa fusão (no caso, uma
degeminação) ocorre devido ao caráter átono dos elementos contíguos. Se
tivéssemos a presença de vogais tônicas no encontro vocálico intervocabular,
o processo de sândi não se realizaria, tendendo o português do Brasil à
formação de um hiato (cf. CAVALIERE, 2005: 127), como ocorre em <beberá
água>. Isso evidencia que a regra de aplicação do acento ocorre em um nível
anterior à de aplicação do sândi, ou seja, ocorre em nível lexical e seu domínio
é a palavra fonológica.
Já em relação ao latim clássico, há argumentos favoráveis à presença
do acento1 em nível pós-lexical (sintático), diferentemente do que acontece
com o português. Destacamos, dessa maneira: (a) a total previsibilidade do
acento latino a partir de sua constituição prosódica, sendo sensível ao peso
silábico; (b) o deslocamento do acento ao se adicionar um clítico e (c) o fato de
o acento não ter qualquer relevância gramatical2.
1 Faremos uma análise detalhada sobre a aplicação do acento primário latino nos capítulos 5.e 6. 2 Em latim, o acento, diferentemente da quantidade vocálica, não distingue palavras (não tem função distintiva) e não serve para expressar categorias gramaticais, como o caso.
22
Vejamos os exemplos apresentados em (02), também retirados de
Gonçalves (1995):
(02) a) légis (lei), mulíere (mulher).
b) legísne, muliéreve
Em (02) a), temos os vocábulos acentuados em <lé> e <lí>
respectivamente. Ao adicionarmos os clíticos <–ne> e <–ve>, como
exemplificado em (02) b), ocorre o deslocamento do acento em direção a
essas partículas inertes prosodicamente (sem acento). Em realidade, a regra
do acento latino é aplicada sobre essa construção, considerando o novo
elemento acrescido à palavra. Essa é uma das evidências de que o domínio de
aplicação do acento latino está no grupo clítico (C) e não na palavra prosódica
(ω)3, como ocorre com o português, estando, portanto no nível pós-lexical
(sintático). O grupo clítico é, dessa maneira, uma extensão da palavra
prosódica e constitui uma unidade de analise fonológica quando ocorre uma
estrutura do tipo clítico + hospedeiro. Sai do âmbito da palavra e entra no
âmbito do sintagma.
3 Estamos fazendo referência aos domínios propostos pela Fonologia Prosódica (NESPOR & VOGEL, 1986) como relevantes, entre outras coisas, para a aplicação de regras fonológicas segmentais.
23
2.2. Hipóteses para a descrição do acento em português
Segundo Ferreira Neto (2001, p. 171), há três hipóteses para se
descrever o acento lexical na língua portuguesa:
a) Hipótese do acento livre – presente nas abordagens de caráter
estruturalista, como a de Camara Jr. (1970), em que o acento é definido no
léxico;
b) Hipótese do molde trocaico – presente nas abordagens de caráter
gerativista, como as realizadas por Massini-Cagliari (1999) e por Bisol (1992),
baseadas na Fonologia Métrica.
c) Hipótese do acento morfológico – presente em abordagens que
definem o acento pela qualidade do morfema portador, como as realizadas por
Cagliari (1999) e Lee (1995), baseadas na Fonologia Lexical.
Além dessas três hipóteses, destacamos, ainda, a possibilidade de se
analisar o acento sob a ótica da Teoria da Otimalidade, em que os fenômenos
lingüísticos são avaliados segundo a interação, o conflito e o ranqueamento de
um conjunto de restrições, em paralelo, sem a utilização de estratos
derivacionais, como fazem as abordagens gerativas anteriores. Poderíamos,
ampliando o conjunto de hipóteses sobre o acento levantado por Ferreira Neto
(2001), considerar esse caso como:
d) Hipótese da Atuação de Restrições – essa é a maneira de encarar o
acento que privilegiaremos em nossa pesquisa e que também foi adotada para
o estudo do acento primário por Lee (2007) e para o acento secundário, por
Collischon (2002) e Sândalo & Abaurre (2007), dentre outros.
24
Apresentaremos, a seguir, alguns aspectos da abordagem estruturalista
de Camara Jr. (1970), a fim de iniciarmos a formação de um painel sobre o
tema em questão para, em seguida, verificarmos as propostas de análise do
acento, segundo Bisol (1992) e Lee (1995), fundamentadas nos modelos de
base gerativa. Nos capítulos referentes às análises de dados, apresentaremos
uma abordagem gerativa de caráter não-linear, a Fonologia Métrica, nos
moldes de Hayes, (1995), como ponto de partida para nossa análise baseada
na Teoria da Otimalidade (TO). Destacamos, mais uma vez, que a TO é um
modelo teórico que abandona o conceito de regra, usado pelos modelos
anteriores, e adota uma análise de restrições em paralelo, sem recorrer a
estratos derivacionais. Antes, porém, veremos como a gramática tradicional
apresenta o tema.
2.3. A abordagem da gramática tradicional
Ao analisar a Gramática Tradicional, encontramos o acento tônico
(primário) definido em função de uma maior dosagem de “certas qualidades
físicas”, com predomínio da intensidade (ou força expiratória), tom (ou altura
musical) e quantidade (ou duração), além do timbre (ou metal de voz) (cf.
CUNHA, 1972:63).
Rocha Lima (1972:28) faz a mesma afirmação de Celso Cunha e, além
disso, define o acento, “em sentido estrito”, “como a maior força expiratória
com que uma sílaba se opõe às que lhe ficam contíguas no corpo dos
vocábulos”.
25
Podemos identificar no português três tipos de palavras quanto à
posição da sílaba acentuada – oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas – que
representam, respectivamente, a posição do acento primário na última,
penúltima e antepenúltima sílaba. Há línguas em que o acento recai sempre
sobre a mesma sílaba, como ocorre com o Turco e o Francês, em que o
mesmo se encontra na última sílaba dos vocábulos.
Llorente (1971:39) comenta sobre a denominação, até hoje utilizada
pelas línguas modernas, de sílabas e vogais como “tônicas” ou “átonas” e
também sobre a denominação de palavras “oxítonas”, “paroxítonas” e
“proparoxítonas” para indicação de palavras agudas, graves ou exdrúxulas.
Comenta o autor que esses termos são adequados para sistemas de acento
musical, como era o grego, que, segundo os alexandrinos, consistia numa
espécie de canto, de uma sucessão de tons mais ou menos altos, em que a
sílaba acentuada teria um “acento agudo” em relação às demais sílabas que
se pronunciariam num tom mais baixo, um “acento grave”. Tal terminologia
grega seria imprópria quando aplicada a línguas de acento intensivo, como as
línguas modernas.
A utilização desses termos tem sua origem na própria estruturação e
desenvolvimento da gramática latina que, em muito, representou uma cópia da
gramática grega. Em relação ao acento, os latinos refletiram as teorias dos
gramáticos gregos e aplicaram a terminologia do acento grego, essencialmente
musical (LLORENTE, 1971:39).
26
2.4. Breve caracterização do acento em português
O acento é considerado um supra-segmento, uma vez que não aparece
disposto linearmente entre os segmentos que compõem uma palavra, mas se
superpõe a eles. Apresenta caráter distintivo em línguas de acento livre, por
não ter posição fixa e não ser possível prever a posição em que ele recairá a
partir somente dos segmentos que constituem as palavras. Essa perspectiva
poderia nos levar a considerar o acento na língua portuguesa, por exemplo,
como uma informação idiossincrática, que já faria parte da representação
subjacente das palavras. No entanto, essa idéia não se sustenta, devido a
inúmeras regularidades que a distribuição do acento apresenta.
A primeira regularidade, como já evidenciamos, diz respeito ao fato de o
acento do português recair apenas nas três últimas sílabas (Restrição da
Janela de Três Sílabas, cf. BISOL, 1992). A segunda regularidade que
podemos apontar está no fato de a maioria das palavras ser acentuada na
penúltima sílaba, independente da classe gramatical a que pertençam, como
em ‘pátoN’, ‘panélaN’, ‘fáloV’, ‘falámosV’.
As proparoxítonas representam um pequeno grupo constituído por
empréstimos, muitos deles, gregos e latinos. Segundo Collischon (1996:133), o
que evidencia o caráter não-nativo dessas palavras é o fato de que há uma
tendência a regularizar o acento na posição paroxítona através do apagamento
de penúltima sílaba, como em ‘abóbora’ > ‘abobra’; ‘xícara’ > ‘xicra’4. Dessa
4 “Abóbora” possui origem duvidosa, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss. Alguns autores indicam sua origem ou no latim hispânico, ou no latim tardio. Já “xícara”, tem provável origem espanhola (1540).
27
forma, podemos considerar o acento proparoxítono como marcado, por ser
menos usual.
Um outro grupo de palavras é o das oxítonas, dividido entre as que
possuem consoante final e as que não possuem, sendo um grupo bem maior
que o anterior. Segundo Bisol (1992), 78% das palavras terminadas em
consoante são oxítonas e 22% são paroxítonas.
O segundo grupo das oxítonas (Collischon, 1996) constitui-se de um
pequeno número de palavras do nosso léxico terminadas em vogal (‘avó’) e de
um grande número de empréstimos do francês (‘crochê’) e de línguas
indígenas (‘jacaré’) e africanas (‘banzé’). Há, dessa maneira, uma preferência
pela posição paroxítona em palavras terminadas por vogal.
No que se refere à qualidade da vogal que recebe o acento no
português, Lee (1995) observa que há paradigmas diferentes, dependendo do
acento – na sílaba tônica podem figurar sete tipos de vogal (sete vogais podem
receber o acento primário), enquanto nas sílabas átonas só se verifica a
presença de cinco ou três tipos de vogais, respectivamente nas posições
pretônica e postônica.
Os casos marcados no Português do Brasil (PB) são os proparoxítonos
(empréstimos); paroxítonos terminados em consoante e oxítonos terminadas
em vogal (empréstimos).
28
2.4.1. A visão de Camara Jr. (1970)
Camara Jr. (1970: 63) define o acento como sendo a “maior força
expiratória, ou intensidade de emissão, da vogal de uma sílaba em contraste
com as demais vogais silábicas”. Destaca o autor que o acento demarca o
vocábulo fonológico, podendo incidir sobre a última, penúltima ou
antepenúltima, ou mais raramente sobre a quarta última vogal de um vocábulo
fonológico. Assim sendo, define uma pauta acentual para cada vocábulo,
construída a partir do contraste entre as vogais com proeminência acentual,
conforme o seguinte esquema:
(03) ...(1) + 3 + (0) + (0) + (0)
Em (03), temos o acento, ou tonicidade, designado pelo número 3. Isso
significa que a vogal tônica do vocábulo tem uma proeminência acentual três
vezes maior do que aquelas designadas pelo número 1, que indica as vogais
presentes em sílabas pretônicas. Já as vogais postônicas têm proeminência 0
(zero). Os parênteses indicam a possível ausência de sílaba átona nos
monossílabos tônicos e as reticências, um número indefinido de sílabas
pretônicas. A pauta acentual também pode ser aplicada a grupos de força, ou
seja, a uma seqüência de vocábulos pronunciados sem pausa e, desse modo,
temos uma reavaliação da designação da(s) sílaba(s) tônica(s) que precede(m)
o último vocábulo.
29
Se, anteriormente, considerando somente um vocábulo, o acento era
marcado por 3, agora, em um grupo de força composto, por exemplo, de dois
vocábulos, a primeira tônica é rebaixada a uma intensidade 2, como vemos no
exemplo a seguir (cf. CAMARA JR.: 63):
(04) a) hábil idade - /abilidade/ 2 01 3 0
b) habilidade - /abilidade/ 1 11 3 0
Por meio desse mecanismo de construção da pauta acentual, um
vocábulo fonológico é percebido pela presença de tonicidade 2 ou 3 em um
grupo de força e tem sua delimitação pelo contraste entre 0 e 1. Em (04) a), a
sílaba tônica de <hábil> passa à tonicidade 2 dentro do grupo de força com
postônica 0, enquanto <idade> apresenta tonicidade 3 para a tônica, 1 para a
pretônica e 0 para a postônica. Já em (04) b), verificamos que há somente uma
marca de sílaba tônica, demarcando a existência da apenas um vocábulo
fonológico, além de ter sua delimitação marcada pela presença de 1 e 0 nas
bordas da pauta acentual. Além de apresentar o valor demarcativo do acento,
responsável por criar uma juntura supra-segmental, Camara Jr (1970)
acrescenta o valor distintivo do acento, uma vez que esse pode distinguir
palavras devido à sua posição, como vemos em (05):
(05) jaca (fruta) e jacá (cesto)
cáqui (cor) e caqui (fruta)
30
Em (05), o acento marca uma diferença no significado de palavras que
pertencem a uma mesma classe gramatical – no caso, todas pertencem à
classe dos substantivos. Além dessa distinção semântica, a posição do acento
também pode provocar a distinção entre formas nominais e verbais, como
vemos nos exemplos abaixo:
(06) rótulo (substantivo) e rotulo (verbo)
fábrica (substantivo) e fabrica (verbo)
intérprete (substantivo) e interprete (verbo)
A partir dos vocábulos exemplificados em (06), podemos depreender
que a posição do acento primário estabelece um padrão que diferencia
substantivos de verbos, esses como paroxítonos e aqueles como
proparoxítonos.
Camara Jr. (1970) afirma que o acento é “livre no sentido de que a sua
posição não depende da estrutura fonêmica do vocábulo”, não havendo, em
português, terminações de fonemas que imponham uma dada acentuação,
mas apenas uma maior freqüência, fonologicamente indeterminável, para uma
dada terminação (op. cit. p. 65). Na sub-seção seguinte, em que trataremos
das funções do acento primário, ampliaremos um pouco mais a noção de
acento livre, verificando a existência de outras possibilidades.
31
2.4.2. As funções do acento
Para os usuários de diversas línguas, como o português, o acento é um
fenômeno consciente na prática diária. Entretanto, há línguas de acento fixo,
como o francês, em que os falantes, segundo Garde (1972), não têm
consciência de sua existência até o momento em que estudam outras línguas.
Garde faz um interessante cotejo, que apresentaremos em seguida, entre a
pronúncia do termo bravo feita por um italiano e por um francês, em que tenta
evidenciar o papel do acento nessas línguas. Interessante notar que as duas
línguas são oriundas do latim vulgar, porém, nos seus processos de formação,
o acento tornou-se livre no italiano e fixo no francês. Já o latim é considerado
uma língua de acento semifixo, devido à atuação dos clíticos que alteram a
posição do acento nos vocábulos a que se ligam.
Segundo Garde (1972:6,107-151) e Moraes (1998:10), podemos afirmar
que uma língua apresenta acento fixo quando esse está situado sempre em
uma determinada sílaba em relação ao início ou ao final da palavra. Dessa
maneira, temos o acento francês sempre na última sílaba: amí, bravó. Em
Tcheco, temos a sílaba inicial acentuada: nédorozumeni. Em polonês, a
penúltima sílaba: rospráwa, odpówiedz. Em latim, o acento recai sobre a
penúltima sílaba se essa for pesada ou na antepenúltima se não for pesada:
diúrnus, no primeiro caso, e ásinus, no segundo.
Por outro lado, há também línguas de acento livre, ou seja, aquelas em
que não há regras que determinem a posição do acento no interior do
vocábulo. É o caso, por exemplo, do português, do russo e do espanhol.
Nessas línguas, muitas vezes, apenas a posição do acento é capaz de
32
distinguir o significado de duas palavras, como já afirmamos anteriormente, é o
caso do célebre exemplo sábia, sabía e sabiá, para o português, ou de outros,
como múka, “tormento” e muká, “farinha”, para o russo; ou gébet, “dais” (verbo
dar) e Gebét, “oração”, para o alemão.
Moraes (1998:10) afirma que tal fato caracteriza a função distintiva do
acento nessas línguas, uma vez que opõe semanticamente palavras de
mesma constituição fonemática. Apresenta, ainda, um desdobramento dessa
função ao considerar que, nos casos acima exemplificados, em que há
imprevisibilidade da posição do acento em termos gramaticais, teríamos uma
função propriamente lexical (op. cit: 11). Já em casos como comerá e comera,
para o português, em que há uma previsibilidade gramatical, teríamos uma
função morfológica ou gramatical. Tal previsibilidade ocorre porque as regras
gramaticais determinam que o futuro é uma forma oxítona, em que o acento
recai sobre a “desinência temporal, o que não ocorre com as formas do mais-
que-perfeito, onde o acento está na vogal temática” (op. cit: 11). Destaca,
ainda, que essa função distintiva ocorre, também, em nível sintagmático,
podendo estar presente tanto em línguas de acento fixo quanto em línguas de
acento livre.
Considerando, novamente, o termo bravo, em português “bravo”,
pronunciado por um italiano e por um francês, verificaremos que as distinções
entre ambas as pronúncias não se limitarão apenas ao conjunto de
particularidades dos cinco fonemas que o compõe. A diferença, antes de tudo,
se situa na distribuição da energia expiratória entre as duas sílabas da palavra.
No caso do italiano, a palavra recebe um incremento de intensidade e
elevação da altura musical na sílaba bra, o que, para um francês, soa
33
absolutamente insólito e difícil de reproduzir. Já a pronúncia francesa leva a
um acréscimo na força expiratória, ou seja, um aumento de intensidade, na
sílaba vo, a qual, por sua vez, recorda a um italiano a palavra bravó, “desafio”,
significado esse diferente de brávo, “bravo”.
Assim como um italiano tem a capacidade de perceber auditivamente
essas diferenças na posição do incremento de intensidade e altura, falantes de
línguas de acento livre ou semifixo também a têm. Um francês,
espontaneamente, não teria consciência da existência de um acento em sua
própria língua (cf. GARDE, 1972:3-4). Sob essa exemplificação, verificamos
que todas as definições de acento (primário) se aproximam dessa capacidade
de dar realce a um único segmento silábico no interior de cada palavra.
Moraes (1998:10) destaca que, em línguas de acento fixo, como o
francês, a função básica do acento seria demarcativa, uma vez que esse recai
sempre sobre uma mesma sílaba, permitindo que se estabeleçam as fronteiras
entre as palavras. Observa, ainda, que o acento apresenta uma função
genérica que é justamente a de caracterizar formalmente as palavras na
cadeia da fala. Desse modo, a cinco acentos lexicais corresponderiam cinco
vocábulos numa cadeia de fala, configurando uma função culminativa em
línguas de acento livre.
Uma característica muito própria do acento (primário) se situa no fato de
que cada palavra, obrigatoriamente, possui apenas uma sílaba portadora
dessa proeminência e sua presença pressupõe que todas as outras sílabas
devem ser inacentuadas. Essa característica diferencia o acento de fonemas e
traços distintivos, que podem se manifestar mais de uma vez numa mesma
palavra, e até mesmo de morfemas, considerando a constituição da palavra.
34
Diferentemente dos fonemas que podem ser comutados produzindo diferentes
significados, o acento não pode ser analisado sob uma ótica comparativa entre
elementos formadores de um vocábulo, mas apenas entre diferentes
vocábulos de um plano sintagmático. Garde (1972:11) destaca que essa
característica confere ao acento uma função tipicamente contrastiva,
diferentemente da função oposicional que traços como sonoridade e
nasalidade apresentariam.
2.4.3 O acento no modelo gerativo
A teoria fonológica gerativa foi apresentada por Chomsky e Halle, em
1968, com a publicação do The Sound Pattern of English (SPE). Esse modelo
gerativo se diferenciou do modelo estruturalista principalmente por tornar a
relação entre a representação fonológica e a produção fonética mais abstrata
e por eliminar o “nível fonêmico”, um nível separado para a relação entre
fonema e suas variantes contextualmente especificadas. Para o modelo
gerativista, o “traço” é a unidade mínima que tem realidade psicológica e valor
operacional, não reconhecendo uma entidade como o fonema.
O modelo gerativo clássico passou por uma série de desdobramentos e
diferentes abordagens foram propostas nas décadas seguintes, havendo um
aprimoramento da teoria fonológica. Apresentaremos, de modo sucinto, duas
correntes teóricas relevantes para o estudo do acento e, em seguida, as
exemplificaremos com as análises de Bisol (1992), para a Fonologia Métrica, e
de Lee (1995), para a Fonologia Lexical.
35
A Fonologia Métrica, diferentemente do que ocorria no SPE, não vê
mais o acento primário como um traço atribuído a vogais; passa a considerá-lo
como o resultado de um jogo de proeminências entre constituintes métricos:
sílabas (σ), pés (Σ) e palavras fonológicas (ω) (cf. MASSINI-CAGLIARI,
1999:76; MATZENAUER, 2005:70) Em outras palavras, o acento é visto como
uma proeminência relativa decorrente de uma estrutura hierárquica e a sua
localização passa pela segmentação das palavras em constituintes métricos. É
objetivo da Fonologia Métrica estabelecer o inventário de pés possíveis, bem
como o seu papel na caracterização do acento e do ritmo de uma língua.
Na fonologia lexical, desenvolvida inicialmente por Kiparsky (1982) e
Mohanan (1982), a interação entre os componente fonológico e morfológico
dá-se por meio da inter-relação das regras de diferentes domínios. As regras
fonológicas aplicam-se à saída de toda regra morfológica, criando uma nova
forma que é então submetida a uma outra regra morfológica. Ao se aplicarem
regras fonológicas e morfológicas nas representações subjacentes, surgem as
representações lexicais, provenientes da atuação de regras lexicais. As regras
pós-lexicais se aplicam fora do léxico.
Apesar de as regras de atribuição de acento serem cíclicas tanto no
SPE quanto na Fonologia Lexical, o modelo lexical trata melhor de tal
particularidade, pois permite que tais regras interajam com as regras de
formação de palavras no léxico, aplicando-se reiteradas vezes após cada
operação morfológica. Sem dúvida, a grande e mais importante
contribuição da fonologia lexical foi incorporar o nível morfológico à análise do
componente fonológico.
36
2.4.4. Análises do acento primário segundo modelos não-lineares
Bisol (1992) e Lee (1995) apresentam duas propostas para o tratamento
do acento de palavras em português que passamos a analisar nesta seção.
Para Bisol, o acento possui apenas uma regra fundamentada em dois
dispositivos: sensibilidade quantitativa (SQ) e formação de constituintes
prosódicos (FCP). Em SQ, verifica-se o peso silábico e em FCP, verifica-se o
pé métrico das palavras prosódicas. A regra é, portanto, insensível à categoria
lexical das palavras.
O domínio em Bisol é a palavra morfológica, havendo diferenciação
entre verbos e não-verbos. Nos verbos, a regra aplica-se de maneira não-
cíclica, operando apenas quando a palavra já está completamente pronta,
enquanto nos não-verbos a regra é cíclica, partindo do radical + vogal
temática, e opera sempre que um morfema derivativo é acrescido.
A regra proposta por Bisol (1992) é a seguinte:
i. Atribua um asterisco (*) à sílaba pesada final, i.é, sílaba de rima
ramificada.
ii. Nos demais casos, forme um constituinte binário (não-
iterativamente) com proeminência à esquerda, do tipo (* .), junto
à borda direita da palavra.
37
Dessa forma, a partir da leitura da proposta de Bisol, podemos
considerar o pé básico do português do Brasil (PB) o troqueu moraico5. O
acento sempre recairá na segunda sílaba contada da borda direita para a
esquerda, desde que a primeira não seja pesada. Caracteriza-se, assim, o
acento das paroxítonas terminadas em sílaba leve (ii), como evidenciado em
(07):
(07) /kaz+a/ léxico
Ka za silabação
(* .) FCP
(* ) Regra Final (RF)
[káza] saída
Sendo a regra sensível à silaba pesada final, caracteriza-se o acento
das oxítonas terminadas em consoante ou ditongo (i), o que é evidenciado em
(08):
(08) /pomar/ /trofEu/ léxico
Po mar tro fEu silabação
(*) (*) SQ
( *) ( *) RF
[pomár] [trofEw]
5 Apesar de Bisol (1992) não fazer referência explícita ao tipo de pé métrico envolvido nas regras de acento que propõe, sem dúvida o troqueu moraico aparece na formulação, já que esse tipo de pé pode envolver uma única sílaba pesada, como acontece em SQ (a regra de sensibilidade quantitativa), ou ser formado por duas sílabas, sendo a primeira a proeminente, como em FCP (formação de constituintes prosódicos). Por isso, falamos em leitura do trabalho de Bisol (1992).
38
A proposta de Bisol apresenta um número significativo de casos que
não se submetem à regra, sendo resolvidos por meio da extrametricalidade6,
que opera de maneira distinta em verbos e não-verbos, tomando forma de uma
regra para aqueles e incidindo sobre exceções nestes.
A extrametricalidade permite que um elemento não seja visto pela regra
do acento, resultando no recuo do mesmo. Nos não-verbos proparoxítonos, o
elemento extramétrico é a sílaba final; nos não-verbos terminados em
consoante ou ditongo com acento não-final, o elemento extramétrico é a coda
silábica, como demonstrado em (09) e (10) a seguir:
(09) Proparoxítonos:
/fOsfor+o/ léxico
fOs fo ro silabação
<ro> Ex (sil)
(* .) FCP
(* . .) ASP (adjunção da sílaba perdida)
[fOsforu] saída
Percebemos que, após a silabação e a retirada da sílaba final, entra em
ação a regra em seu item (ii) para a formação do constituinte binário com
proeminência à esquerda. Feito isto, a sílaba extramétrica é recolocada,
aparecendo na forma de superfície. A regra de Adjunção da Sílaba Perdida
(ASP) não constrói sílaba; apenas anexa a sílaba extraviada como membro
6 Como definiremos melhor na seção 5.3, a extrametricalidade é um recurso que possibilita considerar determinadas sílabas “invisíveis” à aplicação da regra de acento.
39
fraco de um pé adjacente. Isso se realiza após a construção dos pés métricos,
se ficarem sílabas avulsas.
(10) Não-verbos terminados em consoante:
/util/ léxico
u til silabação
< l > Ex (coda)
(* .) FCP
(* ) RF
[útil] saída
Verificamos que, com a coda invisível à regra, a sílaba final não pode
ser considerada pesada e o acento recairá sobre a segunda sílaba a partir da
borda direita.
Não-verbos oxítonos terminados em vogal com acento final têm
acrescidos uma consoante final abstrata na forma lexical, apagada por
convenção e que passa a receber, por ressilabação, interpretação fonética nas
palavras derivadas. Isso pode ser verificado a partir da análise de palavras
como café e chá, as quais apresentam formas derivadas possuidoras de tais
consoantes em posição de onset: café > cafeteira; chá > chaleira.
Nas palavras não-derivadas, tais consoantes, abstratas, ficam em
posição de coda silábica e não recebem interpretação fonética na forma de
superfície, como demonstramos em (11):
40
(11) Derivação de café e cafeteira
kafεC kafεC Forma subjacente
ka fεC ka fεC Silabação
( * ) ( * ) Acento
______ kafεC + eira Derivação
______ ka fε Cei ra Ressilabação
______ ( * . ) Acento
kafεC ______ Apagamento de C
[ka’fε] [kafe’tejra] Forma de Superfície
Apesar de não descrevermos a atuação das regras em verbos, já que
nosso foco são os não-verbos, é importante destacar que a extrametricalidade,
na proposta de Bisol, propicia a utilização da mesma regra para verbos e não-
verbos, uma vez que, retirados os elementos extramétricos nos verbos, a regra
aplicada é a mesma para não-verbos.
Passaremos agora à análise do acento primário em português, segundo
Lee (1995), fundamentada nos pressupostos da Fonologia Lexical.
Apresentaremos apenas as considerações do autor a respeito da aplicação do
acento em não-verbos por ser esse o nosso foco principal de estudo.
Lee afirma que as regras do acento principal nas palavras do português
são sensíveis à categoria lexical, havendo diferenças significativas entre as
regras de acento do verbo e do não-verbo, tais como: (a) a mudança de
categoria lexical em função da posição do acento, como ocorre em fórmula,
não-verbo, e formúla, verbo; (b) a presença dos sufixos flexionais que podem
interferir na posição do acento em verbos e não interferem em não-verbos,
41
como em mésa – mésas (número) e áma – amámos (número/pessoa) e (c) o
acento não cai na última sílaba pesada dos verbos, com exceção do infinitivo,
contrariamente ao que ocorre no não-verbo, cujo acento na última sílaba
pesada constitui o caso não-marcado, como podemos ver em fálam, falámos e
rapáz, amór.
Lee (1995) utiliza estes e outros argumentos para demonstrar que,
embora Bisol (1992) tenha conseguido uma generalização para a regra do
acento, uma série de questionamentos podem ser realizados, levando-se à
conclusão de que a regra de acento para o não-verbo deve ser tratada
diferentemente da regra de acento para o verbo. Propõe, portanto, duas regras
para o acento do português, sendo estas, ao contrário da proposta de Bisol,
insensíveis ao peso silábico.
A regra do acento para o não-verbo em Lee é a seguinte:
(12) Regra do não-verbo
Domínio : Nível α.
a. Casos não-marcados: constituinte binário, cabeça à direita, direção:
direita para esquerda, não-iterativo.
b. Casos marcados: constituinte binário, cabeça à esquerda, direção:
direita para esquerda, não-iterativo.
42
O acento não-marcado para o não-verbo sempre cai na última vogal do
radical derivacional. O domínio é o radical derivacional, considerando-se a
vogal temática como o marcador da palavra, invisível no domínio de aplicação
da regra, sendo, portanto, extramétrica. Em (13) e (14), exemplificamos a regra
para os casos não-marcados e marcados, respectivamente:
(13) Casos não-marcados
café almoço tonel
(. *) (. *) (. *) Regra do não verbo (a)
( *) ( * ) ( *) Resultado final
(14) Casos marcados
Túnel último
(* . ) (* .) Regra do não-verbo (b)
(* ) (* ) Resultado final
Para Lee, o pé básico da língua portuguesa é o iambo, uma vez que a
sílaba tônica fica sempre à direita do domínio em casos não-marcados. Nessa
análise, postula-se a extrametricalidade do marcador de palavra (vogal
temática) no nível α, considerando-se que a regra do acento se aplica no
radical derivacional. Se for admitida a extrametricalidade morfológica, podem-
se eliminar vários tipos de extrametricalidade postulados por Bisol (1992).
Além disso, o acento oxítono pode também ser tratado como caso não-
marcado. O foco dessa abordagem é, portanto, morfológico, diferentemente da
abordagem de Leda Bisol.
43
2.5. Sobre os correlatos fonéticos do acento
Segundo Llorente (1971:37-39), podemos distinguir nas sílabas de uma
palavra quatro elementos variáveis, que são: (a) duração ou quantidade; (b)
intensidade, que depende do esforço muscular, expiratório; (c) altura, ou grau
de elevação da voz, e (d) articulação, que depende da disposição dos órgãos
fonatórios ao emitir a voz. O acento estaria relacionado à altura e à intensidade
em todas as línguas. Para o autor, o esforço intencional que realça uma sílaba
sobre outras sílabas de uma mesma palavra (o acento) pode afetar a
intensidade, o tom ou a quantidade, ou, ainda, os três juntos e define os
diferentes tipos de acento como musicais ou intensivos.
O acento é considerado musical, cromático ou de elevação, quando a
sílaba acentuada for pronunciada elevando-se a voz a um tom musical mais
alto. Essa elevação da altura musical se realiza pela maior tensão das cordas
vocais. Em outras palavras, quando a pressão do ar aumenta, a altura também
aumenta. Como exemplo desse tipo de acento musical, temos o latim clássico
e, na atualidade, o servo-croata.
O outro tipo de acento é denominado expiratório, intensivo ou dinâmico
e se caracteriza pela pronúncia mais forte da sílaba acentuada. Resulta da
amplitude das vibrações das cordas vocais, que por sua vez dependem da
pressão do ar expelido pelos pulmões. Todas as línguas românicas,
descendentes do latim, apresentam esse tipo de acento. Ele é caracterizado
basicamente por essa intensidade física, porém, destaca Llorente (1971:38),
outros elementos entram em jogo na sua produção, tais como altura,
44
modulação, timbre, quantidade vocálica, qualidade da consoante, ação da
glote, natureza da aspiração, etc.
Também o latim arcaico apresenta esse tipo de acento, e consideramos,
em nossa pesquisa, que também o latim vulgar apresentaria o acento
intensivo. De modo semelhante ao que ocorria no latim arcaico, as línguas
germânicas apresentam forte acento expiratório, que quase sempre recai na
primeira sílaba dos vocábulos, o que ressalta a debilidade das sílabas átonas.
Um aspecto relevante em relação aos tipos de acento é o fato de que
não há um sistema acentual exclusivamente tonal ou exclusivamente intensivo.
Segundo Llorente (1971:38), tom e intensidade caminham sempre juntos e
nenhum dos dois tipos de acento existe unicamente, mas apresenta um matiz
predominante. O sueco é exemplo de língua que apresenta intensidade e
altura quase em mesmo grau de importância.
Passaremos, em seguida, a apresentar os resultados da pesquisa de
Massini-Cagliari (1992) para o acento do português brasileiro e suas
considerações sobre os aspetos fonéticos envolvidos.
Os Modelos fonológicos não-lineares definem o acento como uma
relação de proeminência entre sílabas (MASSINI-CAGLIARI, 1992: 9), em que
são consideradas tônicas ou acentuadas aquelas mais proeminentes e átonas,
aquelas menos proeminentes. Tais proeminências fonológicas apresentam
correlatos em nível fonético, podendo se atualizar de diferentes maneiras em
diferentes línguas. Em outras palavras, no nível fonológico, acento é definido
em termos de proeminência silábica, sendo atualizado no nível fonético por
saliências fônicas que definem a sua posição no contínuo da fala.
45
No mesmo estudo, em que trata dos correlatos físicos, ou marcas
acústicas do acento em português, Massini-Cagliari (op. cit.: 31) afirma que o
acento lexical apresenta como principal marca uma maior duração da sílaba
tônica, acompanhada, na maioria das vezes, por uma queda de intensidade
na(s) sílaba(s) postônica(s). Além de tais fatores, destaca, ainda, a relevância
da qualidade vocálica na caracterização do acento. Dessa maneira, a autora
afirma que os principais correlatos físicos do acento em português seriam (em
ordem decrescente de importância), duração, intensidade e qualidade vocálica.
Moraes (1998:24), ao analisar os correlatos acústicos do acento lexical
no português brasileiro, afirma que esses variam em função da posição do
vocábulo no enunciado e, menos significativamente, em função do seu padrão
acentual. Assim sendo, segundo ele, quando um vocábulo se encontra em
posição interna em um grupo prosódico, a proeminência acentual se manifesta
pela combinação de intensidade e duração. A intensidade, no entanto, se
manifestaria por uma queda na sílaba postônica e não por um aumento sobre
a sílaba tônica. Já em posição final de um grupo prosódico, isto é, em posição
forte, o acento frasal se sobreporia ao acento lexical e, desse modo, a
freqüência fundamental se combinaria à intensidade e à duração na
manifestação do acento.
Ainda considerando os estudos de Massini-Cagliari (1992), destacamos
a adoção da sílaba como suporte dos correlatos físicos do acento lexical, uma
vez que uma análise fonológica deve considerar a representação material do
fenômeno ao representá-lo em níveis abstratos. Assim sendo, estudos
fonológicos sobre o acento em português, segundo a mesma autora, devem
46
considerar modelos teóricos que privilegiem a sílaba e não os segmentos
(consonantal ou vocálico) como contexto de aplicação do acento lexical.
2.6. Resumo do capitulo
Evidenciamos, neste capítulo, os principais aspectos sobre o acento que
julgamos relevantes para a presente pesquisa. Buscamos estabelecer como o
acento é definido em diferentes modelos teóricos, bem como verificamos as
hipóteses para a descrição do mesmo. Passamos, em seguida, a ilustrar as
definições apresentadas com as análises de fundamentação estruturalista e
gerativista para o acento no português brasileiro. Vimos, ainda, as funções que
o acento desempenha em línguas de acento fixo, semifixo ou livre e,
finalmente, verificamos os correlatos físicos que constituem o acento primário.
Com isso, concluímos esse breve estudo.
Na próxima parte do trabalho, descreveremos os principais pontos do
modelo teórico utilizado na descrição da mudança no acento latino – a Teoria
da Otimalidade. Objetivamos, com isso, instrumentalizar o leitor para a análise
do acento a partir de restrições universais organizadas numa escala de
relevância em cada variedade da língua, pilar de sustentação do paradigma
adotado.
47
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Na sua apresentação, em Prince e Smolensky (1993), a Teoria da
Otimalidade (TO) é aplicada à fonologia. Desde que o trabalho de Prince e
Smolensky foi divulgado, desenvolveu-se uma vasta quantidade de trabalhos
de aplicação desse modelo teórico na resolução de problemas da fonologia.
Os trabalhos produzidos dividem-se entre os que pretendem mostrar que esse
quadro teórico permite analisar aspectos da fonologia já analisados noutros
modelos, e os que mostram que, só com um modelo que contempla
violabilidade e conflito de restrições, é possível analisar determinados aspectos
da fonologia. É acerca da análise de problemas fonológicos que têm sido feitas
propostas relativamente ao formato do modelo teórico; por exemplo, o papel
desempenhado pelas restrições de Fidelidade é enfatizado e desenvolvido em
trabalhos sobre fonologia prosódica.
Apresentaremos, nesse capítulo, aspectos relativos à TO, tais como: (a)
a estrutura desse modelo teórico; (b) os princípios básicos que fundamentam a
Teoria e (c) a formalização de uma análise na linha da Otimalidade. Em relação
ao estudo da Mudança, apresentaremos de que maneira a TO entende e trata
do assunto.
3.1. Conceitos Básicos da Teoria da Otimalidade
A Teoria da Otimalidade (TO) constitui quadro teórico gerativo que tem
na fonologia o principal foco de atenções. A TO elimina o uso de regras e
propõe a utilização de restrições universais que medeiam o mecanismo input-
48
output de modo que, mesmo havendo violação de alguma dessas restrições,
possa emergir um output ótimo a partir de um input determinado. Os dados
fonéticos utilizados na TO são fornecidos pelo uso comum da língua, sendo
que o input representa a estrutura da língua em sua forma mais básica (nível
subjacente) e o output representa os usos dessas estruturas (nível de
superfície).
Um mecanismo denominado GEN (gerador – generator) cria possíveis
outputs a partir de um input e os submete a um mecanismo de avaliação
denominado EVAL (avaliador – evaluation). Tal mecanismo tem como objetivo
associar um output ideal a um input e excluir o que não for aceitável. Dessa
maneira, o conjunto de dados fornecido por GEN é confrontado com relação à
aplicação ou violação de restrições, e se estabelece qual dos dados é o melhor
candidato e quais não são admissíveis na língua. GEN é limitado por condições
de FIDELIDADE e a geração de candidatos não é aleatória ou indiscriminada,
já que geraria um número quase infinito de possibilidades.
Ao conjunto de restrições denomina-se CON (constraints) e são elas que
definem a estrutura das línguas, havendo restrições que definem estruturas
fonológicas das línguas em geral e outras que definem o caráter particular de
determinadas línguas. O que diferencia uma de outra é a ordenação particular
ou as relações de dominância que se estabelecem entre tais restrições.
As restrições são, desse modo, ordenadas e podem ser violadas de
modo suportável ou fatal. Nesse último caso, o candidato será eliminado da
avaliação por formar enunciados agramaticais. No ranking que se estabelece
entre essas restrições, aquelas cuja violação for mais suportável estarão num
nível inferior àquelas que não podem ser violadas. Dessa maneira, uma
49
determinada forma de superfície (output) pode falhar em satisfazer todas as
restrições de uma língua e, mesmo assim continuar sendo gramatical e
preferível em relação a outros candidatos que violam restrições mais altas no
ranking e que, por isso, são eliminados dessa competição para a emergência
do Candidato ótimo. Em outras palavras, candidatos que violam restrições mais
altas hierarquicamente são eliminados dessa competição para emergência da
forma gramatical no nível de superfície da língua, no nível do uso. Para maior
aprofundamento em relação aos tipos de restrições existentes, podemos
encontrar, em Cagliari (2002), uma série delas, tais como restrições de
fidelidade, de alinhamento, fonotáticas, segmentais, métricas, prosódicas e
lexicais.
A seguir, apresentamos três formalizações para análise de dados, em
que exemplificamos como se realizam as avaliações dos Candidatos em
relação a um determinado input:
(01)
Input RESTRIÇÃO 1 RESTRIÇÃO 2
Candidato a output 1 **
Candidato a output 2 *!
(02)
Input RESTRIÇÃO 1 RESTRIÇÃO 2
candidato a output 1 *
candidato a output 2 * *!*
50
(03)
Input RESTRIÇÃO 1 RESTRIÇÃO 2 RESTRIÇÃO 3
candidato a output 1 *
candidato a output 2 * *!
Antes de realizarmos nossa análise, vamos apresentar as convenções
utilizadas em TO e seus significados. A leitura de uma tabela7 deve, dessa
maneira, considerar as seguintes formalizações:
1. A forma subjacente (input) é dada na célula da primeira linha à esquerda.
2. Nas demais células da linha superior, estão as restrições ordenadas da
esquerda para a direita, de acordo com a hierarquização, também chamada
ranqueamento, de cada língua. À esquerda ficam as mais relevantes
lingüisticamente – aquelas que, quando violadas, geram candidatos
agramaticais.
3. A primeira coluna contém as formas potenciais de output, apresentadas
como Candidatos a serem avaliados.
4. As outras colunas contêm os resultados das avaliações.
5. marca o candidato gramatical ou ótimo, isto é, aquele que representa
a correta forma de superfície da língua.
6. * marca cada violação de restrições.
7. *! indica o ponto em que uma dada violação é fatal para o candidato,
eliminando-o da disputa.
7 A tabela de análise em TO é denominada convencionalmente de tableau, tendo o seu plural tableaux.
51
8. As partes sombreadas das tabelas indicam que, no momento em que os
candidatos estão sendo avaliados pelas restrições acima, esses já
violaram fatalmente alguma restrição anterior. Isso faz com que essas
avaliações sejam irrelevantes para a seleção do candidato ótimo.
9. Restrições separadas por uma linha sólida, como vemos no tableau em
(01), são estritamente ordenadas, ou seja, a restrição à esquerda
domina a restrição à direita. Caso o tableau apresente restrições
separadas por uma linha pontilhada, como em (03), essas não
apresentam uma dominância entre si e, portanto, não há um
ranqueamento crucial entre elas. Isso significa que não há evidências de
que uma restrição é mais altamente hierarquizada do que a outra e,
dessa forma, os candidatos são avaliados em conjunto por elas.
Feitas essas observações, verificamos, em (01), que o Candidato 2 viola
uma vez a RESTRIÇÃO 1 mais altamente hierarquizada e, portanto, comete
uma violação fatal (marcada por *!). Isso o retira da disputa e faz com que o
Candidato 1 seja o candidato ótimo, gramatical. Vemos que mesmo infringindo
duas vezes a RESTRIÇÃO 2, esse candidato é gramatical, uma vez que essas
violações são menos graves para a língua do que a violação da RESTRIÇÃO
1. Nesse ponto, como a avaliação não é mais relevante, a coluna encontra-se
sombreada.
Em (02), apresentamos uma outra situação, em que os dois Candidatos
infringem a RESTRIÇÃO 1 mais altamente hierarquizada. Dessa maneira, a
decisão sobre o Candidato ótimo passa para a seguinte, a RESTRIÇÃO 2. No
caso, o Candidato 2 a viola duas vezes, sendo que já na primeira violação é
52
eliminado da disputa, como evidenciado pela marca *!. Não há sombreamento,
uma vez que a avaliação de todas as restrições foi relevante para a escolha do
Candidato ótimo.
Já no tableau em (03), a linha pontilhada evidencia que a dominância
entre essas restrições não pôde ser estabelecida e a posição entre elas na
hierarquia é irrelevante. No caso, a violação do Candidato 1 à RESTRIÇÃO 1 e
a do Candidato 2 à RESTRIÇÃO 2 têm a mesma relevância e a decisão recai
na avaliação feita pela RESTRIÇÃO 3. Como o Candidato 2 a viola, é
eliminado da disputa nesse ponto da avaliação.
A fim de melhor ilustrar o funcionamento da TO, apresentamos, a seguir,
um esquema (cf. ARCHANGELI, 1997)8 que reproduz a estrutura gramatical da
teoria:
(04)
Entrada (input) /absorb-to/
GEN
Candidatos: ab.sor.to ab.sorb.to ab.sor.be.to ab.sor.b.to
EVAL
CON (restrições)
Saída (output) ótima [absorto]
8 Exemplo adaptado de Silva (1998).
53
O exemplo apresentado em (04) refere-se a um termo espanhol
constituído de base verbal + morfema de particípio. Prefere-se, nessa língua, o
apagamento da sonora em coda. Verifica-se que é melhor um apagamento do
que um acréscimo, como ocorre com *absorbeto.
Se, para outros modelos formais, a desobediência a regras ou princípios
leva à agramaticalidade de formas, para a TO a violação pode implicar um
resultado gramatical, como afirmamos anteriormente. Nesse sentido, a TO
trabalha com seleção de formas e não com transformações e/ou regras. Isso
quer dizer que a análise da forma subjacente para chegar à respectiva forma
de superfície é realizada num único estrato, não passando por estágios
intermediários até chegar a essa forma final.
Uma vez evidenciados a metodologia de análise e o mecanismo de
funcionamento da Teoria a Otimalidade, passaremos à apresentação das suas
premissas (GONÇALVES, 2004; HOLT, 1997). São elas:
3.1.1. Universalidade
Segundo essa premissa, as restrições estão presentes em todas as
línguas, uma vez que refletem tendências universais.
Para a TO, o que é de conhecimento inato e compartilhado, dividido por
nós, seres humanos, caracterizando as propriedades universais da linguagem
e a variação tolerada entre determinadas línguas específicas, compõe a
gramática universal (GU). Aos lingüistas, cabe encontrar evidências para
postular a existência de um certo padrão a ser estudado e formular a natureza
54
de tal padrão. Em outras palavras, a premissa da Universalidade afirma que a
GU é formada por um conjunto de restrições presente universalmente em toda
e qualquer gramática. Segundo Holt (1997:15), os componentes da GU são:
(a) CON: o conjunto de restrições a partir do qual as gramáticas
são constituídas;
(b) GEN: a função que define, para cada input, um conjunto de
candidatos lingüisticamente relevantes para a análise e;
(c) EVAL: a função que avalia comparativamente o conjunto de
formas em relação à dada hierarquia de restrições ou ranking.
3.1.2. Ranqueamento e Violabilidade
A partir de tais premissas, formaliza-se a idéia (i) de que restrições violáveis
são ordenadas hierarquicamente e (ii) de que o grau de violação deve ser
necessariamente mínimo para, nas palavras de Colina (1996: 1202),
“assegurar a aquiescência com restrições de nível mais alto”;
O conjunto de restrições, como vimos, está presente em todas as
gramáticas das línguas, respeitando, dessa forma, a premissa da
Universalidade. No entanto, o que diferencia uma língua da outra é justamente
a atuação de tais restrições contidas dentro de uma hierarquia, de um
ranqueamento. Isso equivale a dizer que uma língua se diferencia da outra
devido ao diferente ranqueamento de restrições. Esse, por sua vez, justifica
uma diferenciação no modo como se encara a violação de restrições. Ou seja,
violar restrições mais altamente hierarquizadas (ou ranqueadas) numa língua é
55
mais relevante (e, portanto, fatal) do que violar outras menos importantes.
Dessa maneira, justifica-se a premissa da Violabilidade.
Em TO, violar uma restrição não implica tornar um candidato
agramatical. Restrições são violáveis e a avaliação em relação à otimalidade
dos candidatos se faz em paralelo, ou seja, considerando todas as violações
ocorridas ou não em relação a todas as restrições presentes na hierarquia. O
Candidato gramatical ou ótimo será aquele que violar minimamente as
restrições.
3.1.3. Inclusividade
Segundo a Inclusividade, a hierarquia de restrições avalia um conjunto
de expressões candidatas proporcionadas por GEN, que constrói formas
possíveis que a seqüência input poderia apresentar. Essa premissa refere-se,
especificamente, aos tipos de candidatos que podem ser gerados para
avaliação. Expressões lingüísticas que não respeitem condições de boa-
formação não podem figurar entre os Candidatos à otimalidade. Em outras
palavras, apenas expressões aceitáveis do ponto-de-vista lingüístico podem
ser geradas. Isso faz com que o número de expressões a serem analisadas
não seja infinito, o que torna a análise certamente mais econômica.
56
3.1.4. Paralelismo
O paralelismo é um princípio a partir do qual a melhor satisfação é
considerada levando-se em conta, lado a lado, toda a hierarquia de restrições e
o total de candidatos a output, sem derivação serial, isto é, o conjunto de
candidatos é confrontado com o conjunto de restrições da hierarquia.
Isso equivale a dizer que a TO é um modelo teórico paralelista, em que
não há níveis intermediários de representação, como ocorre nos Modelos da
Fonologia não-linear. Nesses casos, a saída de uma regra pode ser analisada
e se tornar a entrada para a aplicação de uma nova regra. Há uma possível
aplicação cíclica de regras e, portanto, o resultado final pode ser obtido através
do estabelecimento de diferentes estratos. Em TO, cada restrição (inserida
numa hierarquia) avalia os candidatos de modo independente e paralelo, uma
única vez.
3.2. Outras questões relevantes
Vimos até o momento os princípios fundamentais e o modo como devem
ser apresentadas e analisadas as informações lingüísticas, segundo o modelo
otimalista. Iremos agora ampliar esses dados, verificando, mais
especificamente, a relevância das restrições de Fidelidade e Marcação, o
conflito entre restrições, o Princípio de Riqueza da Base e a Otimização do
Léxico.
57
3.2.1. Conflito de restrições: Fidelidade e Marcação
Abaurre (1999:75) afirma que “toda gramática pode ser vista como um
sistema no interior do qual atuam forças em permanente conflito”. Essa tensão
é representada na TO pelas restrições, que se dividem em dois grupos
principais: Fidelidade e Marcação. Sabemos que um candidato pode violar
restrições para que outras possam ser atendidas e isso, por si só, já caracteriza
a existência do conflito no modelo otimalista. É por intermédio do conflito
existente entre essas restrições hierarquizadas que é possível a seleção do
candidato ótimo. Passaremos a apresentar as principais famílias de restrições
responsáveis, na maioria dos casos, pela definição de um output ótimo.
A família de restrições de Marcação atua sobre os outputs no sentido de
manter os padrões estruturais gerais, não-marcados da língua. Dessa maneira,
temos restrições, como as formuladas a seguir, em que são apresentados
aspectos relevantes para a configuração de determinada estrutura silábica:
A - ONSET: sílabas contêm ataques (onsets).
B - PEAK: sílabas contêm uma vogal no núcleo.
C - NOCODA: sílabas não contêm codas.
D - NOCOMPLEXonset: sílabas não podem ter onsets complexos.
Podemos perceber que essas restrições de marcação atuam no sentido
de manter um padrão silábico geral; porém, isso não irá impedir que existam
outros padrões silábicos além do obtido pela total satisfação a essas demandas
– o padrão CV. Mais detalhadamente, verificamos que a restrição A atua no
sentido de gerar sílabas com posição de ataque preenchido, evitando-se,
assim, estruturas do tipo (V) ou (VC). A restrição B atua no sentido de gerar
58
sílabas constituídas por núcleo vocálico, impedindo formações como (C) ou
(CC). A restrição C procura impedir que haja travamento silábico, rejeitando
formações como (VC) e (CVC). Já o restritor D atua no sentido de impedir que
haja ramificação no onset silábico, atuando, portanto, contra formações do tipo
(CCV). Notemos, por exemplo, que muitas dessas restrições atuam no
português, mas isso não impede que se formem estruturas silábicas mais
complexas do que o padrão não-marcado (CV).
Propomos, no tableau em (05), analisar a formação silábica de uma
língua hipotética, que proíbe estruturas (CVC) e possui o padrão não-marcado
(CV), utilizando somente as restrições de Marcação. Consideraremos apenas a
forma de input (CVC) com o objetivo de ilustrar a atuação das restrições de
Marcação e Fidelidade, bem como o conflito entre as mesmas. Não é objetivo
realizar uma análise exaustiva e completa e, portanto, iremos focalizar nosso
estudo apenas nos aspectos mais relevantes para o presente propósito:
(05)
{CVC} PEAK ONSET NOCODA
☞ a. {CV.CV}
b. {CVC.V} *! *
c. {CVC} *!
d. {CVCC} *!*
☞ e. {CV∅}
59
As seguintes formalizações foram utilizadas nos tableaux (05) e (07),
referentes a essa análise:
a) As chaves delimitam a palavra fonológica;
b) O núcleo silábico encontra-se em negrito;
c) O ponto delimita as silabas;
d) ∅ representa um segmento que foi apagado;
Podemos notar que as restrições mais bem cotadas são PEAK e ONSET
uma vez que é importante para a língua estabelecer um padrão silábico que
contenha um núcleo vocálico e um onset. Como codas são proibidas,
NOCODA vem imediatamente após na hierarquia. Contudo, notamos que a
existência dessas restrições não impede a emergência de mais de um
candidato, no caso a e e emergem como candidatos ótimos. Isso ocorre porque
essas restrições não atuam no sentido de estabelecer uma relação de
identidade entre input e output e, com isso, inserções e apagamentos são
aceitos na constituição dos candidatos, que passam sem problemas pela
hierarquia de restrições de marcação. Há, então, a necessidade de se
adicionarem restrições que dêem visibilidade a apagamentos e acréscimos nos
candidatos e que permitam a emergência à superfície do candidato adequado.
Antes, contudo, de incluí-las em nossa análise, vamos verificar suas
características e como atuam tais restrições.
A família de restrições de fidelidade formaliza uma necessária identidade
entre as formas de input e output. Se o foco das atenções das restrições de
marcação está voltado para o output, como vimos, as restrições de fidelidade
estão voltadas para a manutenção da identidade entre as formas subjacentes
60
(input) e as formas de superfície (output). Tais restritores buscam, desse modo,
manter as propriedades presentes no léxico da língua. Isso não quer dizer que
formações que não correspondam fielmente ao input sejam eliminadas de
qualquer disputa. Isso porque restrições de fidelidade podem dominar
restrições de marcação e, com isso, fazer emergir candidatos mais marcados.
A respeito da dominância entre esses grupos de restritores, utilizamos o
seguinte esquema, retirado de Gonçalves (2005):
(06)
FIDELIDADE >> MARCAÇÃO: padrões lexicalmente especificados.
MARCAÇÃO >> FIDELIDADE: padrões menos marcados
estruturalmente.
Em outras palavras, quando restrições de fidelidade dominam restrições
de marcação, os outputs que emergem tendem a ser formas menos gerais,
menos usuais, mais específicas da língua. Por outro lado, quando as restrições
de marcação dominam fidelidade, ocorre a emergência de elementos mais
gerais, menos marcados. É por esse motivo que crianças em fase de aquisição
apresentam esse último tipo de dominância (SMOLENSKY, 1996), uma vez
que tendem a repetir os padrões informados pelos pais e que vêm a constituir
os seus próprios inputs. Com o tempo, a relação de dominância entre as
restrições vai se flexibilizando, havendo a emergência de elementos mais
marcados e também uma modificação nos respectivos inputs.
61
Como exemplo de restrições de fidelidade, temos:
MAX-IO: traços/segmentos do input devem ser mantidos no output.
DEP-IO: traços/segmentos do output devem ter correspondentes no input.
Mais especificamente, MAX-IO atua impedindo apagamentos de traços
ou segmentos presentes no input, sendo considerada um restrição anti-
apagamento, e DEP-IO atua contra acréscimos de traços ou segmentos às
informações já contidas no input, sendo considerada uma restrição anti-
epêntese. Podemos observar de que forma essas restrições atuam, analisando
a nossa língua hipotética. O input dos tableaux em (05) e (07) apresenta a
estrutura (CVC). A restrição MAX-IO atua contra qualquer apagamento de
elementos de tal input e, dessa forma, candidatos como (C∅C), (CV∅) e (∅VC)
violarão uma vez essa restrição por apresentarem um apagamento de
elemento contido no input. Cada elemento apagado representa uma violação a
essa restrição.
Já DEP-IO atua contra candidatos a output do tipo (CCVC) ou (CVCC)
em que ocorre a epêntese de segmentos nas formas candidatas. Para cada
acréscimo, há uma violação a essa restrição. Desse modo, a seguinte
hierarquia estaria atuando em nosso caso hipotético. Lembramos que o padrão
silábico não-marcado em nossa língua é o CV, porém, a fim de ilustrar a
atuação das restrições de fidelidade, o input apresentará o padrão CVC:
62
(07)
{CVC} PEAK ONSET NOCODA DEP-IO MAX-IO
☞ a. {CV} *
b. {CVC} *!
c. {CCC} *! * * *
d. {CVCC} *!* *
e. {VC} *! * *
f. {CV.CV} *!
Em (07), verificamos que a restrição DEP-IO atua no sentido de evitar
epênteses e, dessa forma, o candidato f é eliminado por apresentar um
segmento vocálico acrescido à seqüência CVC original, formando,
obrigatoriamente, uma segunda sílaba. Já os candidatos b, c, d e e são
eliminados pela atuação das restrições de marcação. Temos o candidato a,
emergindo como ótimo, uma vez que apresenta a constituição silábica mais
geral da língua.
Vimos, assim, o conflito existente entre as restrições de marcação e
fidelidade, uma vez que as restrições de fidelidade foram necessárias para a
seleção do candidato ótimo. Devido ao caráter de generalidade da formação
silábica de nossa língua hipotética, Marcação dominou Fidelidade, com a
emergência do padrão silábico não-marcado (CV) para um input hipotético
(CVC). Mais especificamente, os restritores de Marcação PEAK, ONSET e
NOCODA dominam as restrições de Fidelidade MAX-IO e DEP-IO e garantem,
63
com isso, a escolha de formações não-marcadas, mais gerais e usuais na
língua em questão. No caso específico, nossa língua tende a formar sílabas CV
por apagamento, em lugar de gerar uma sílaba extra pelo acréscimo da vogal.
3.2.2. Riqueza de Base e Otimização do Léxico
Um outro aspecto que diferencia a TO dos modelos teóricos baseados
em regras refere-se à escolha do tipo de material contido nas representações
subjacentes (inputs). Nos modelos anteriores, as representações subjacentes
somente podiam conter fonemas da língua. Informações relativas à atribuição
do acento ou à divisão silábica, por exemplo, jamais poderiam estar nesse nível
representacional. Somente por meio de regras é que tais informações poderiam
ser atribuídas.
Como, na abordagem otimalista, a atuação do conjunto de restrições é o
mecanismo responsável pela seleção da forma de superfície, o input pode
conter uma série de informações antes não admissíveis. Aquilo que não for
adequado e que não respeite as características gramaticais será eliminado por
infringir as restrições. Não há, segundo Collishonn &Schwindt (2003: 35),
proibição quanto à presença de segmentos ou propriedades prosódicas no
input. A essa ampla possibilidade de informações contidas no nível subjacente
– e que vai além da mera informação fonemática – é o que se denomina
Riqueza da Base. Nesse caso, Riqueza da Base é expressão sinônima de
Riqueza do Input.
Ao analisarmos as conseqüências de se admitir o princípio de Riqueza
da Base, identificamos a existência um número muito grande de possíveis
64
inputs para uma determinada forma de output. Como o falante, então, faz a
seleção do input adequado, se não há limites quanto ao tipo de informações
por ele portadas?
Há um último princípio que devemos considerar dentro do modelo
teórico da TO, nos moldes de Prince & Smolensky (1993), que se denomina
Otimização do Léxico e que serve para regular a escolha de inputs adequados.
Esse princípio nos diz que “diante da existência de formas subjacentes
alternativas para um mesmo output, os falantes pressupõem como input aquela
forma que é mais semelhante ao output” (COLLISCHONN & SCHWINDT,
2003:35). Em outras palavras, a Otimização do Léxico visa a regular, de certa
forma, a Riqueza da Base a fim de não gerar um elevado número de inputs
para um determinado output.
3.3. Mudança na Teoria da Otimalidade
É consenso entre os autores que a mudança lingüística se dá em TO
através da modificação da hierarquia de restrições, ou seja, ocorre pelo re-
ranqueamento dessas restrições (JACOBS, 1994 e 1995; HUTTON, 1996;
GESS,1996; HOLT, 1997). Já a variação é entendida como a coexistência de
ranqueamentos (rankings) parciais devido a restrições que ainda não
estabilizaram sua posição na hierarquia (ZUBRITSKAYA, 1994; ANTILLA,
1995). É justamente no momento em que essas restrições estabilizam sua
posição na hierarquia que ocorre a mudança. Em outras palavras, no momento
da variação, diversos candidatos emergem ao mesmo tempo devido à
maleabilidade no ranqueamento, a qual permite que hierarquias diferentes
65
coexistam sincronicamente. Com a predominância de uma dessas hierarquias
(ranking total) sobre as outras em coexistência (ranqueamento parcial),
teremos, obrigatoriamente, apenas um candidato vencedor emergindo.
Passaremos, a seguir, a uma breve apresentação de algumas dessas
propostas e veremos, mais detidamente, a abordagem teórica de Hutton
(1996), na qual o autor explicita os diferentes mecanismos relacionados à
mudança na hierarquia de restrições.
Jacobs (1994) caracteriza a lenição no Francês antigo como resultado
de um reordenamento da restrição PARSE com a família MARCAÇÃO, da
mesma forma que o faz em (1995), em que realiza um estudo sobre a mudança
na estrutura silábica e a ênclise fonológica, considerando haver um
reordenamento de restrições de PARSE e ALINHAMENTO. Gess (1996)
analisa certas mudanças no desenvolvimento da estrutura silábica do Francês
antigo e também adota o re-ranqueamento de restrições para o estudo de
mudança histórica. O autor demonstra que o que determina a perda da
consoante em sílaba final é o re-ranqueamento de uma restrição distribucional
de soantes em relação a restrições do tipo PARSE. Já Hutton (1996) apresenta
um estudo sobre a mudança numa perspectiva mais geral. Não busca explicar
mudanças internas um uma língua particular, mas avaliar questões teóricas
acerca do tema.
O autor apresenta a Hipótese de Base Sincrônica, na qual afirma que
todos os candidatos gerados por GEN são baseados em uma forma de output
corrente. Desse modo, formas mais antigas da língua não são avaliáveis como
representações subjacentes sobre as quais GEN opera. A assunção de tal
hipótese nos leva a considerar que formas historicamente antigas, não
66
podendo fazer parte do input, são eliminadas do léxico. A mudança, portanto,
não seria um fenômeno derivacional, mas sim um fenômeno baseado na
substituição de um input por outro mais atual e corrente. Formas correntes com
etimologia conhecida não teriam em seu input a correspondente forma
etimológica, uma vez que essa já estaria muito distante (já teria sido removida)
da representação moderna.
Holt (1997) adota essa hipótese em seu estudo, afirmando que ela é
necessária para uma compreensão satisfatória sobre vários processos de
mudança (op cit.: 33). Hutton (1996) afirma, ainda, que o estado de equilíbrio
da hierarquia de restrições não impede que possa ocorrer o re-ranqueamento
das mesmas. Esse re-ranqueamento, para o autor, não dirige a mudança
histórica, mas resulta dela e sugere, ainda, que os fatores externos, ligados às
condições do output, estão na base das alterações da hierarquia. As possíveis
alterações da hierarquia de restrições, que conduzem a uma mudança histórica
em determinada língua, são as seguintes:
3.3.1. Promoção de restrições
Uma restrição é promovida, quando fatores lingüísticos a tornam mais
relevante do que outra(s) restrição(ões) anteriormente mais bem cotada(s) na
hierarquia. Isso pode ocorrer no sentido de manter a tendência de emergência
do não-marcado, quando a língua passa a valorizar mais determinada condição
em relação a outra(s). Holt (1997), ao estudar a elisão de consoante em sílaba
final, evidencia que restrições de marcação são promovidas sobre restrições de
fidelidade.
67
3.3.2. Demoção de restrições
Um restrição é demovida de sua posição hierárquica quando não
apresenta mais papel decisivo na seleção do candidato ótimo. Em outras
palavras, sua relevância lingüística não é mais atestada como antes e passa a
ter um papel secundário. Hutton acrescenta que restrições individuais podem
ser demovidas se as condições fonéticas no output deixarem de ser relevantes.
Quando isso ocorre, tais restrições são relegadas à posição mais baixa da
hierarquia e são denominadas de “unranked occulted constraints” (restrições
ocultas não-ranqueadas). Holt (1997) exemplifica a demoção no estudo do
desenvolvimento da inicial ch- no Galego-português, em que argumenta sobre
a demoção de uma restrição que atua contra complexidade. Além disso, esse
autor não concorda com Hutton (op. cit.) sobre a existência de restrições não-
ranqueadas (op. cit.:35).
As próximas três alterações de hierarquia podem ser consideradas
subtipos das duas anteriores, desde que envolvam processos de promoção ou
demoção de restrições.
68
3.3.3. Criação de novas conexões entre restrições
O mecanismo de criação de novas conexões pode ser ilustrado como
em (08) abaixo:
(08) A , B A >> B
Em (08), A e B são restrições não-dominadas entre si e que passam a
apresentar uma relação de dominância, em que A se encontra ranqueada em
posição mais relevante na hierarquia do que B, ou seja, as restrições que
atuavam em conjunto passam a não mais fazê-lo, sendo mais relevante para a
língua respeitar a condição expressa pela restrição A do que a exigida por B. A
interpretação dos resultados que podem ser obtidos com esse tipo de alteração
será ilustrada nos tableaux a seguir:
(09)
Input RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO C
Candidato 1 *
Candidato 2 * *!
(10)
Input RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO C
Candidato 1 *!
Candidato 2 * *
69
Em (09), verificamos que a não-dominância entre as restrições A e B fez
com que a decisão sobre o candidato ótimo recaísse sobre a restrição
seguinte, C, já que ambos os candidatos violaram uma vez as restrições A e B,
que devem ser analisadas em conjunto. Como o candidato 2 violou uma vez a
restrição C, o candidato 1 foi selecionado como ótimo. Já com o re-
ranqueamento em (10), a restrição A passou a dominar a restrição B, criando-
se uma relação de dominância entre ambas. Isso faz com que qualquer
violação àquela elimine o competidor da disputa. Isso ocorre, como vimos, com
o candidato 1, emergindo, portanto, o competidor 2 como vitorioso da disputa.
Vimos, dessa forma, como o estabelecimento de uma relação de dominância
entre restrições pode impedir a emergência de determinado Candidato
anteriormente considerado ótimo por outro menos relevante em momentos
anteriores da língua. Isso fica ilustrado pela emergência do Candidato 1 no
tableau em (09) e pela emergência do Candidato 2 em(10).
3.3.4. Dissolução de conexão entre restrições
Podemos representar esse tipo de alteração de hierarquia com o
seguinte esquema:
(11) A >> B A , B
Verificamos que esse caso é o inverso do anterior. Agora, A e B são
restrições que possuíam uma relação de dominância (A >> B), em que era
mais importante lingüisticamente respeitar a condição de A do que respeitar a
70
condição de B. Desse modo, A dominava B. No entanto, essa relação de
dominância, em algum momento passa a não mais existir (A , B), fazendo com
que venha à superfície um outro Candidato. Essas restrições passam, então, a
ser analisadas em conjunto, evidenciando que a violação de uma ou outra
restrição tem o mesmo peso, a mesma importância para a língua em questão.
Ilustramos essas afirmações com os tableaux a seguir:
(12)
Input RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO C
Candidato 1 * *
Candidato 2 *!
(13)
Input RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO C
Candidato 1 * *!
Candidato 2 *
Em (12), o Candidato 2 viola fatalmente a restrição A, mais relevante na
análise que a restrição B, fazendo emergir o candidato ótimo 1. Com a
dissolução da dominância existente entre essas restrições, ilustrada em (13), e
a conseqüente atuação conjunta das mesmas, torna-se irrelevante a violação
do candidato 2, uma vez que o candidato 1 também viola a restrição B. Dessa
maneira, empatados em número de violações e na relevância das mesmas, a
decisão recai sobre a violação à restrição C. Do mesmo modo que no
71
mecanismo anterior, agora temos um re-ranqueamento que leva à escolha de
diferentes candidatos ótimos.
3.3.5. Alteração da relação de dominância entre duas restrições
Como fizemos anteriormente, ilustramos o mecanismo de alteração da
relação de dominância entre duas restrições da seguinte forma:
(14) A >> B B >> A
No esquema em (14), percebemos que duas restrições que
apresentavam uma relação de dominância em que A tinha precedência sobre B
(A >> B), em um segundo momento, têm essa relação invertida e B passa a
dominar A (B >> A), como vemos em (15) e (16) abaixo:
(15)
Input RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO C
Candidato 1 * *
Candidato 2 *!
(16)
Input RESTRIÇÃO B RESTRIÇÃO A RESTRIÇÃO C
Candidato 1 *! *
Candidato 2 *
72
Nos tableaux apresentados em (15) e (16), ambos os rivais violam uma
vez um dos restritores que se encontram em relação de dominância. A
alteração dessa relação de dominância leva à uma mudança na emergência do
Candidato ótimo: 1 em (15) e 2 em (16), ou seja, num segundo momento, não é
mais relevante para a língua respeitar a restrição A em relação à restrição B,
levando a uma alteração no resultado da avaliação dos candidatos.
3.4. Resumo do capítulo
Verificamos que a Hipótese de Base Sincrônica proposta por Hutton
(1996) nos leva a uma compreensão da mudança sob um enfoque não-
derivacional. A mudança em TO é vista como a atualização do inventário lexical
que vem a se manifestar por intermédio do re-ordenamento e do re-equilíbrio
da hierarquia de restrições atuantes. Disso resulta que a mudança não é
analisada como uma seqüência de estágios historicamente encadeados e
dependentes. Lembremos que a TO trata da relação input/output e dos
mecanismos que medeiam esses níveis representacionais. O foco, no entanto,
está no output e é esse que alimenta e determina a constituição do inventário
lexical que vem a constituir o input de uma dada língua. Conseqüentemente, as
representações subjacentes serão aquelas formas contemporâneas dos
falantes e não farão parte do inventario lexical formações antigas, já em
desuso, e que, etimologicamente, deram origem a novas representações
fonéticas. Elas vão gradativamente deixando de existir e a mudança vai se
consolidando até que o re-ranqueamento de restrições se estabilize e o input
73
se modifique. É justamente essa modificação do input que vai caracterizar a
mudança.
Vimos, desse modo, que a TO considera o uso pontual da língua em
diversos momentos históricos para caracterizar a mudança, capta as
modificações lingüísticas mais relevantes que ocorreram e as explicita por meio
da atuação (reordenamento) das restrições.
Terminamos, assim, o presente capítulo, no qual buscamos evidenciar
os principais aspectos da abordagem teórica que elegemos para fundamentar
nossa análise da mudança do acento primário em não-verbos. Vimos que a TO
apresenta avanços em relação às Fonologias Derivacionais, como a utilização
de restrições universais em lugar de regras, proporcionando uma análise
paralela pela ação conjunta de todas as restrições. Com isso, a proposta
otimalista diminui o grau de abstração das análises, evitando recorrer a
expedientes sem qualquer motivação empírica, utilizados para descrever casos
específicos. No capítulo seguinte, trataremos de aspectos gerais da história da
língua latina e, em seguida, analisaremos o acento em latim na variedade dita
“culta” (clássica), iniciando, então, as nossas análises segundo a TO.
74
4. AS ORIGENS DO LATIM
Neste capítulo, abordaremos questões relativas à constituição do latim
ao longo dos séculos, com o objetivo de definir e compreender as suas
variedades. Não nos aprofundaremos em aspectos controversos sobre a
denominação de tais variedades e suas características, uma vez que nosso
objetivo é evidenciar e justificar o referencial adotado por nós em relação ao
tema. Para tanto, fundamentaremos nossa posição em vários estudiosos do
assunto, tais como Bunse (1943), Silva Neto (1976 e 1977), Nunes (1975),
Maurer Jr. (1959) e Ilari (2006).
Em linhas gerais, verificaremos (a) como se processou a formação e
expansão do Império Romano e da língua latina, (b) as influências de outras
línguas sobre o latim, (c) aspectos relevantes sobre as variedades latinas e (d)
a cronologia da língua.
4.1. Um pouco de história
O Latim é considerado uma língua indo-européia do sub-ramo itálico do
ramo europeu (BUNSE, 1943: 1; SILVA NETO, 1977:126). Tal sub-ramo divide-
se, ainda, em dois grupos: o osco-umbro e o latino-falisco e é justamente a
esse último que pertencem os povos que habitavam a região do Lácio, território
situado na margem esquerda do rio Tibre. Nessa pequena região, delimitada
pelo mar, rios e montes, têm origem o latim e a cidade de Roma, capital do
Estado romano, fundada em 753 a.C.
75
Inicialmente habitada por lavradores, a cidade cresce em influência e se
torna, aos poucos, o centro da Itália, vindo a constituir o Império Romano. Entre
os séculos V a.C e II d.C ocorreram as conquistas desse Império e a sua
história é usualmente dividida em três fases, correspondentes às três formas
de governo (cf. ILARI, 2006: 41): Realeza (das origens a 509 a.C.), República
(de 509 a.C. a 27 a.C.) e Império (de 27 a.C. a 476 d.C).
Segundo Ilari (2006: 41 - 47), em pouco mais de 50 anos, os povos
vizinhos ao Lácio foram assimilados e a Itália peninsular foi dominada. Tal
conquista projetou politicamente o Império Romano, que se tornou um
importante rival de Cartago, colônia fenícia que explorava o comércio marítimo
no Mediterrâneo. Essa rivalidade levou Roma a três guerras contra Cartago,
denominadas guerras púnicas, e que se estenderam por mais de um século: a
primeira entre 264 a.C. e 241 a.C.; a segunda entre 219 a.C. e 201 a.C. e a
terceira guerra, que culminou com a derrocada de Cartago, em 146 a.C. Trinta
anos após a queda de Cartago, os romanos já dominavam toda a Europa
mediterrânea e alguns territórios da África do Norte e da Ásia Menor.
Suas conquistas ainda avançaram em direção à Gália e à Europa
Central e se expandiram na Ásia Menor e na África. Em seu apogeu, o Império
Romano foi da Britânia, ao Norte, até o Egito, ao Sul, da Lusitânia, ao
Ocidente, à Síria e Palestina, ao Oriente, constituindo um vasto e complexo
Império. O seu processo de decadência se iniciou a partir do século II d.C.,
com Trajano, e teve sua queda final em 476 d.C. com a invasão da Itália pelos
visigodos e a deposição do Imperador Rômulo Augusto.
76
4.2. Variedades do Latim
A política adotada por Roma em relação aos povos conquistados era
“bastante aberta para a época” (ILARI, 2006:48). Havia respeito à religião e à
língua materna dos povos, mas o direito romano era imposto e os territórios
eram explorados economicamente. O latim era utilizado pelo serviço público e
comunicações oficiais, mas no contato entre os habitantes era permitido o uso
dos falares locais. Certamente, a língua levada pelos conquistadores entrou em
contato com uma infinidade de línguas de diferentes famílias lingüísticas e essa
interação enriqueceu a língua latina ao longo do tempo. Segundo Ilari
(2006:49), esse latim apresentava duas variedades: uma popular e outra
erudita. A primeira era a falada pelo exército, pelos comerciantes e, em alguns
casos, por colonos assentados; já a segunda era a variedade escrita dos
magistrados, da jurisdição e da escola.
O conhecimento do latim abria melhores perspectivas de vida aos povos
dominados e muitos enviavam seus filhos para estudar na Itália, a fim de que
tivessem uma educação latina. Por volta do século III d.C., o latim já havia
suplantado os falares locais na Europa continental e no Mediterrâneo ocidental,
apesar de o bilingüismo ter perdurado por séculos em muitas regiões (ILARI,
2006; BUNSE, 1943; SILVA NETO, 1976). Na parte oriental do Mediterrâneo e
na Anatólia, o latim não suplantou o grego, língua falada nessas regiões e que
já havia suplantado as línguas indígenas locais quando os romanos lá
chegaram.
77
Antes de avançarmos em nossos estudos, nos determos nos aspectos
relacionados à variedade arcaica, pré-histórica, do latim e que serviu como
ponto de partida para a formação tanto do latim clássico quanto do vulgar.
4.2.1. O Latim Arcaico
Bunse (1943:19-26) afirma que diversos dialetos rurais influenciaram o
vocabulário latino arcaico, desde línguas pertencentes ao ramo itálico indo-
europeu até outras de origem desconhecida ou duvidosa, como é o caso do
veneziano, do líguro e do messápio, línguas faladas na Itália superior e no
sudeste da Itália inferior. Silva Neto (1977: 126 - 130) também nos fala sobre
as diversas influências dos dialetos locais, como o falisco e o prenestino, e
sobre a não uniformidade do latim falado por volta do séc. VII a.C. Será apenas
no III séc. a. C. que o latim dito clássico inicia a sua formação, com base no
latim falado à época em Roma, ou seja, no já referido latim arcaico.
Uma importante influência sobre esse latim arcaico ou pré-clássico9 foi
exercida pela língua e pelo povo etruscos, principalmente na onomástica latina,
com mais de 900 nomes próprios registrados. Influenciou, também, na
pronúncia aspirada de nomes latinos e teria sido, ainda, responsável pela
mediação na entrada de grande número de termos gregos (cf. BUNSE, 1943 e
SILVA NETO, 1977). Além da importante influência etrusca, nesse período,
9 Adotamos a denominação de Bunse (1943:38) que considera o latim pré-clássico ou arcaico como aquele falado por volta do 4º ao 2º séculos a.C., “período da evolução do latim, em que a língua, de século em século, apresenta modificações até chegar ao estado em que nós conhecemos como latim da época clássica”. Ilari (2006:64) data a existência do latim arcaico por volta do 6º ao 3º séc a.C. Consideramos as datações apenas como marcos históricos e destacamos que o fator principal para a denominação arcaica do latim é a existência de uma língua primitiva, multifacetada, que serviu de base para o surgimento das variedades culta e vulgar.
78
houve, também, influência gaulesa e grega, sendo, essa última,
indiscutivelmente, a mais relevante de todas.
Os gauleses foram um povo que se firmou no norte da Itália, em torno do
séc. VII a.C., tendo se espalhado pelo centro da península e tomado, em
épocas remotas, a própria cidade de Roma. Há indícios de termos de origem
gaulesa em nomes de armas, veículos e animais. No entanto, como já
afirmamos, dentre todas as influências sobre o latim por parte de línguas
estrangeiras, foi o grego a que mais se fez presente.
Os gregos fundaram, desde tempos remotos, ricas e prósperas colônias
na costa sul da Itália, como Nápoles e Siracusa. Essas colônias
representavam, segundo Bunse (1943:28), verdadeiros focos de civilização, e a
língua grega falada por esses povos teve considerável influência sobre as
outras línguas da antiga Itália, acentuando-se nos séculos IV e III a.C. Também
foi com os gregos que os romanos tiveram conhecimento da escrita, o que
explica os incontáveis termos latinos tomados do grego desde os primórdios da
formação da língua.
Na sub-seção seguinte, apresentaremos de modo breve, alguns
aspectos relevantes sobre o acento no latim arcaico, com o objetivo de ampliar
o nosso quadro de análise e tentar delimitar diferenças e semelhanças entre
essa variedade e as variedades culta e popular do latim.
79
4.2.1.1. O acento no latim arcaico
Consideramos, na presente pesquisa, o acento latino arcaico como
sendo de intensidade, recaindo sempre energicamente na primeira sílaba dos
vocábulos (BUNSE, 1943; LLORENTE, 1971; COUTINHO, 2005). Em outras
palavras, o acento era determinado pela intensidade do ar expelido na
pronúncia das palavras e recaia sempre sobre a sílaba inicial, diferentemente
do que acontecia no indo-europeu, que era musical e livre. Tal modificação
pode ser creditada à influência etrusca ocorrida no período pré-histórico sobre
a língua latina em formação.
Bunse (1943:49) apresenta, ainda, como principal característica desse
acento expiratório, a perda ou enfraquecimento das vogais postônicas como
acontece com tégmen (envoltório) ao lado de tégumen; válde (muito) ao lado
de válide.
4.2.1.2. Provável causa da mudança
Esse tipo de acentuação expiratória perdurou até o começo da literatura
latina, conforme acredita Bunse (op. cit. p. 57), quando a acentuação passou a
ser determinada pelo peso silábico. Desse modo, o acento recairá na penúltima
sílaba se essa for pesada (ou longa) e recairá na antepenúltima sílaba quando
a penúltima for leve (ou breve). Essa modificação na acentuação do latim
arcaico para o clássico também pode ter sido influência do grego, uma vez que
a métrica grega, adotada e adaptada para o latim, era fundamentada na
quantidade silábica e não na presença de um acento intensivo. Os versos
80
saturninos registrados em algumas inscrições do séc. II a.C. foram substituídos
pelo verso hexâmetro, uma forma métrica constituída sobre base rítmico-
musical, pela alternância de sílabas longas e breves.
Outro aspecto que diferencia a variedade arcaica do latim é o fato de o
acento intensivo ser fixo na primeira sílaba dos vocábulos. Tal fato não mais
existe no latim clássico nem no vulgar e, como acontece com o Grego, uma
das três últimas sílabas dos vocábulos passa a receber o acento tônico – a
denominada lei de três sílabas ou janela de três sílabas. Essa constitui outra
evidência da influência grega sobre o latim daquela época.
4.2.2. Breves questões acerca da natureza do acento latino
Llorente (1972:43-46) apresenta uma série de argumentos a favor e
contra a intensidade inicial do acento do latim arcaico. Isso porque, entre os
séculos XIX e XX, uma série de pesquisadores dividiu-se em dois grandes
grupos de pensadores, denominados escola “francesa” e escola “alemã”. A
escola francesa defendia um acento latino musical que teria mantido sua
característica desde o indo-europeu até os séculos II a.C a IV d.C. Portanto,
não teria havido nenhuma alteração na qualidade do acento desde a formação
do latim pré-histórico até a decadência do latim clássico.
Já a escola alemã defendia um acento latino apenas intensivo e
fundamentava sua opinião na teoria da centralização (hipótese desenvolvida
por A. Schmitt), segundo a qual o acento tem como função “centralizar” a
palavra, ou seja, pôr em relevo uma sílaba em relação às outras. Nas línguas
de acento forte, a sílaba acentuada se converte no centro da palavra, podendo,
81
inclusive, se converter em centro da frase. Por outro lado, o acento musical não
poderia ter esse efeito centralizador. Se o tom se unisse a um acento de
intensidade, seria a intensidade e não o tom que serviria para centralizar a
palavra. Segundo essa teoria, o acento musical não existe e, além disso, o
latim seria uma língua mais centralizada do que o próprio grego, o que equivale
a qualificá-lo de intensivo (LLORENTE, 1972:41).
Há, ainda, aqueles pertencentes à escola alemã que acreditam ter
havido a entrada, no século II a.C., de um acento tonal, além do já existente
acento intensivo no latim. Isso se explicaria devido a um forte movimento
helenizante cultivado pelas minorias romanas e à conservação, por parte das
camadas populares, do acento intensivo.
Independentemente da postura que se admita em relação à natureza do
acento latino, parece unânime entre os pesquisadores a relevância dada ao
peso silábico na determinação do acento no latim clássico e a perda da
distinção de quantidade silábica no latim vulgar. Essa questão, parece, para
nós, de maior relevância, uma vez que será determinante no processo de
aplicação do acento em ambas as variedades. Buscamos, no entanto, adotar
as posturas teóricas mais atuais em relação ao tema e nos basearemos,
principalmente, nos pesquisadores brasileiros que se dedicaram ao assunto e
que representam as fontes básicas sobre o tema, tais como Maurer Jr. (1959,
1962), Nunes (1975), Silva Neto (1976, 1977), Faria (1970), Coutinho (2005) e
Ilari (2006).
82
4.2.3. Latim clássico e latim vulgar
Coutinho (2005:29) afirma que a princípio existia apenas um latim, que,
posteriormente, sofreu uma série de modificações, transformando-se numa
língua literária. A língua latina passa, a partir desse momento, a apresentar
dois aspectos que se tornam cada vez mais distintos com o passar dos
séculos. São eles: o latim clássico e o latim vulgar, que receberam dos
romanos as denominações sermo urbanus e sermo vulgaris.
Coutinho define o latim clássico como a língua escrita, caracterizada
pelo apuro formal, pela correção gramatical e pela elegância no estilo. Criada
para a expressão literária latina, era uma língua artificial e rígida e permaneceu,
por isso mesmo, relativamente estável por longo tempo. Surgiu em Roma no
século III a.C. com o aparecimento dos primeiros escritores: Lívio Andronico,
Cneu Névio e Enio.
O latim vulgar, segundo Coutinho (2005:30), é o latim falado inicialmente
apenas pelas classes inferiores da sociedade e posteriormente passou a ser o
latim falado por todo o Império Romano. Quanto à utilização da palavra vulgar,
Silva Neto (1977:24) afirma ser inadequada, uma vez que “evoca noções
erradas, tais como vagabundo, ordinário, reles”. Para ele, o termo mais
apropriado em língua portuguesa para denominar o latim vulgar seria “latim
usual, corrente, cotidiano, de conversação” (op. cit. p.33). Ainda no que se
refere ao latim vulgar, o autor admite a existência de quatro matizes da língua
corrente: familiar (latim das classes médias); vulgar (latim dos escravos); gírias
(dos militares, gladiadores, marinheiros) e provincial (op. cit. p. 27).
83
Nunes (1975:5) entende o latim vulgar como sendo o latim falado pelas
camadas mais populares, também denominado de sermo vulgaris em oposição
a um latim falado pelas classes letradas, sermo urbanus ou sermo cotidianus.
Já Coutinho (2005:30) define o latim vulgar como a língua falada pela
população em geral, representando a soma de todos os falares das camadas
sociais mais humildes.
Ilari (2006:61) destaca que o latim vulgar e o clássico se constituíram ao
mesmo tempo, não tendo aquele surgido a partir da corrupção deste. Outro
ponto polêmico em relação a essas variedades se refere à correspondência
entre o latim vulgar com a língua falada e o latim clássico com a língua escrita.
Segundo Ilari, de fato, o latim vulgar faz raras aparições nos textos escritos,
mas é uma afirmação falsa em relação ao latim clássico, uma vez que o latim
literário também foi uma língua falada e teve “um suporte direto na expressão
coloquial da aristocracia romana”. A grande diferença entre essas duas
variedades do latim, ainda segundo Ilari (op. cit), não é cronológica, nem ligada
à escrita, é uma diferença social. Isso porque refletem “duas culturas que
conviveram em Roma: de um lado a de uma sociedade fechada, conservadora
e aristocrática” (patriciado) e, de outro, “uma classe social aberta a todas as
influências, sempre acrescida de elementos alienígenas, a partir do primitivo
núcleo da plebe”.
Outra diferença está na relativa estabilidade da língua clássica por ser
essa escrita e falada apenas em situações mais formais. O latim vulgar, por
sua vez, foi derivando ao longo dos séculos “para variedades regionais que, no
fim do primeiro milênio, já prefiguravam as atuais línguas românicas”. Por fim,
Ilari (op. cit) destaca que o latim vulgar exerceu alguma influência no latim
84
clássico pelo aparecimento de um número cada vez maior de vulgarismos na
língua literária.
Estabelecidas essas observações acerca das variedades arcaica,
clássica e vulgar do latim, reproduziremos em (01), com adaptações, a linha
cronológica apresentada por Ilari (2006:64) e que julgamos adequada para
nossa pesquisa:
(01) Cronologia do Latim
O quadro em (01) mostra a cronologia do latim e evidencia alguns
aspectos de seu desenvolvimento. Verificamos que todas as variedades do
latim são faladas em algum momento por alguma camada da população. O
latim arcaico tem suas origens por volta do século VI a.C. e vai até o século III
a.C. com o surgimento do latim clássico. Essa variedade latina, utilizada pelas
camadas mais escolarizadas, conviveu com o latim vulgar, utilizado pelas
camadas mais populares. O latim clássico escrito perdurou até o século V d.C.,
passando a ser denominado latim medieval, já muito distante do latim clássico
85
original desconhecido pelos escritores da época. O sermo urbanus e o sermo
vulgaris10 sobreviveram por mais alguns séculos até o surgimento do proto-
romance, que dará origem às línguas românicas entre os séculos VIII e XV d.C.
4.3. Resumo do capítulo
A partir do entendimento dos aspectos históricos relacionados à
formação do Império Romano, estudamos o latim no período denominado pré-
clássico, em que a língua ainda estava em seus estágios iniciais, sofrendo
grandes influências de dialetos locais e de diferentes povos e culturas,
principalmente a grega. Parece consenso entre os estudiosos (BUNSE, 1943;
NUNES, 1977, ILARI, 2006) que o latim falado nesse período era “rude e
grosseiro”, refletindo um povo constituído em sua base por lavradores muito
pouco ou não-escolarizados. Com o avanço do Império Romano, esse latim vai
se modificando e se aprimorando até culminar com a criação do latim literário,
que, mesmo artificial, representou um avanço em relação à língua em seu
estágio anterior.
Verificamos que o acento no latim arcaico apresentava caráter fixo na
primeira sílaba das palavras e vimos, ainda, que o peso silábico não era
relevante para o estabelecimento da sua posição nos vocábulos, fato esse
10 É pertinente esclarecer que a denominação sermo vulgaris pode ser utilizada como sinônima de latim vulgar sem gerar dúvidas, uma vez que a única forma de expressão dessa variedade é a falada. No entanto, ao nos referirmos ao sermo urbanus, não descuidamos, no decorrer de nosso trabalho, de que o termo se refere à forma falada do latim culto da época e que sua contrapartida escrita é denominada latim clássico. Identificamos essas diferenças e esclarecemos que, ao nos referirmos ao latim clássico, de modo geral, estamos considerando uma sincronia em que tais formas de expressão (falada e escrita) mantinham idênticas características no que se refere à aplicação do acento. Isso pode ser explicado pelo seu caráter pouco maleável e resistente às mudanças como atestam diversos autores estudados.
86
relevante no latim clássico, mas irrelevante no latim vulgar, conforme veremos
no próximo capítulo.
Julgamos adequado definir nossa posição em relação ao que
denominamos latim clássico e latim vulgar com o objetivo de evitar dúvidas a
respeito do material lingüístico que efetivamente é considerado em nossa
análise. Isso porque o latim vulgar, por trazer consigo a noção de variedade
falada, pode ser confundido, de certo modo, com o latim arcaico, também
variedade somente falada. Verificamos, no entanto, que em relação ao tema
estudado, o acento, tal possibilidade não existe, uma vez que os aspectos
envolvidos na aplicação do acento primário no latim arcaico em muito diferem
dos envolvidos na aplicação do acento no latim vulgar, como verificaremos no
capítulo 6.
Ampliando a visão sobre esse ponto, poderíamos supor, inclusive, que o
latim vulgar sofre maior influência do latim clássico no que se refere à aplicação
do acento nos vocábulos. Nos capítulos referentes ao estudo do acento,
verificaremos que o acento no latim vulgar tende a manter a mesma posição do
acento no latim clássico. Há, dessa forma, um distanciamento do latim vulgar
em relação ao também falado latim arcaico de onde ambas as variedades,
clássica e vulgar, surgiram.
Ao realizarmos nossa análise otimalista, consideramos as variedades
culta e popular do latim como duas sincronias, dois momentos históricos
distintos, embora reconheçamos que ambas foram contemporâneas.
87
Consideramos, em nossa pesquisa, o latim clássico como sendo aquela
variedade do latim utilizada nos meios literários e falada pelas classes
escolarizadas e cultas. Supomos que a própria consideração da existência de
um padrão de aplicação de acento primário na língua nos indica a possibilidade
de que essa tenha sido utilizada para fins de comunicação oral.
Compreendemos, no entanto, que o padrão acentual musical poderia ter sido
criado apenas para permitir a utilização da métrica nos poemas latinos
conforme os padrões gregos. Entendemos, desse modo, que a variedade
clássica do latim possui duas modalidades: a escrita e a falada, essa última
denominada, em termos mais específicos, sermo urbanus.
Como latim vulgar, entendemos a variedade latina falada, de modo
geral, pelas camadas menos favorecidas da população e menos escolarizadas,
além de ser essa a língua levada pelos “romanos” às populações dos territórios
ocupados. A coexistência das variedades clássica e vulgar e sua formação
concomitante também são aspectos relevantes que consideramos em nossa
pesquisa.
Uma vez esclarecidos esses diversos pontos, passaremos, nos capítulos
seguintes, ao estudo em separado do acento primário em não-verbos do latim
clássico e do latim vulgar, respectivamente. Verificaremos todos os aspectos
relevantes para a aplicação do acento em cada variedade e retomaremos,
quando necessário para clareza da exposição, alguns aspectos já abordados.
88
5. O ACENTO NO LATIM CLÁSSICO
No presente capítulo, abordaremos as questões relativas ao acento
primário no latim clássico. Primeiramente, retomaremos e ampliaremos a
caracterização dos aspectos fonéticos do acento latino, tanto em sua
modalidade clássica quanto na vulgar, para, em seguida, estabelecermos as
generalizações acerca da aplicação do acento primário em sua modalidade
clássica. Feito isso, demonstraremos uma análise do fenômeno segundo a
Fonologia Métrica para, finalmente, realizarmos a análise nos moldes
otimalistas. Pretendemos, dessa maneira, apresentar um quadro sobre o
acento lexical primário em não-verbos latinos com ênfase na Teoria da
Otimalidade, que terá prosseguimento com estudos da modalidade vulgar do
latim, no capítulo 6.
5.1. Natureza do Acento no Latim
Diversos estudiosos tentam definir quais seriam os correlatos físicos do
acento tanto para o latim clássico quanto para o vulgar. Apresentaremos, a
seguir, as principais idéias sobre o tema segundo Maurer Jr. (1959) e Nunes
(1975).
Não há consenso entre os autores, como já vimos no capítulo anterior,
no que se refere à natureza do acento no latim clássico. Em relação ao latim
vulgar, entretanto, a maioria concorda quanto à sua qualidade intensiva, em
que a sílaba tônica das palavras era pronunciada com maior energia, maior
força articulatória, do que as demais. Uma forte evidência em favor dessa
89
posição é o fato de todas as línguas românicas apresentarem acento de
intensidade.
Maurer Jr. (1959: 65) acredita que o acento no latim clássico
apresentava predominantemente a característica de altura (musicalidade)11
associada a elementos de intensidade. Em favor de tal posição, o autor
apresenta os seguintes argumentos:
(a) A métrica latina possuía ritmo quantitativo. Não havia tratamento
diferenciado para sílabas tônicas e átonas;
(b) Os autores do período clássico aplicavam com correção o sistema
quantitativo de vogais latinas;
(c) A própria descrição do acento feita por autores da época o caracteriza
como predominantemente musical.
Cícero (apud MAURER JR., 1959: 66) afirma em Orator, 58: “Ipsa enim
natura, quase modularetur hominum orationem in omni verbo possuit acutam
vocem nec uma plus nec a postrema syllabacitra tertiam”12. Notemos que a
referência feita à “voz aguda” se refere à altura musical e não à intensidade,
como mostram outros comentários do mesmo autor (cf. Orator, 57 e De
oratore, 3, 216) em que relaciona ao canto o tom agudo e o grave, além de voz
aguda e forte.
11 No acento musical, todas as sílabas são pronunciadas com igual intensidade, sendo apenas uma delas emitida num tom mais alto. 12 “De fato, a própria natureza, como se pusesse em cadência a linguagem humana, colocou um acento agudo em cada palavra, mas só um, e este nunca além da 3ª sílaba a partir da última” (trad. do autor).
90
Ainda segundo Maurer Jr. (1959: 66 e 67), é difícil obter uma data
precisa que marque o surgimento do acento de intensidade no latim vulgar; ele
sugere que o mesmo tenha aparecido numa época em que predominava ainda
o acento musical. A respeito da coexistência dessas diferentes qualidades
acentuais, o autor nos apresenta evidências de que o acento no latim clássico,
quando falado, era entonado da mesma forma que o fazia o grego, cujo acento
era musical. Destaca, ainda, que isso ocorria em oposição à fala rústica
(vulgar) do entorno da cidade de Roma.13 Essa é uma evidência de que uma
diferenciação da fala urbana (culta) para a fala rústica (vulgar) se situava na
qualidade do acento: musical na primeira e intensiva na segunda.
Sobre o mesmo assunto, Nunes (1975: 32 e 33) afirma que todas as
palavras dissílabas ou polissílabas no latim apresentavam um acento de altura
ou tom, proferido com maior elevação da voz, em nota mais aguda ou alta em
relação às demais sílabas. Havia, ainda, outro tipo de acento, chamado de
intensidade, que representava um maior esforço na emissão da sílaba inicial
das palavras (CAMARA JR., 1970; COUTINHO, 2005: 102). Esse último veio a
cair no período literário, havendo indícios de sua existência no período pré-
literário latino.
Acreditamos, em consonância com a posição adotada por Maurer Jr.
(1959) e Nunes (1975), dentre outros autores já estudados, que o acento latino
clássico apresentava uma natureza predominantemente musical. Entendemos,
também, que o latim, em seu período pré-literário, possuía um acento fixo, de
natureza intensiva, na primeira sílaba dos vocábulos devido a prováveis
influências da língua etrusca ou mesmo pela própria evolução do latim desde a
13 A esse respeito, Maurer cita Cícero em De oratore, 3, 42, além de comentários de Devoto. G. (1944). Storia della Lingua di Roma. Bolonha.
91
sua origem no indo-europeu (BUNSE, 1943; LLORENTE, 1971). É fato que tais
pontos de vista são controversos, mas não comprometem a análise que
realizamos sobre a aplicação do acento primário, uma vez que não há
divergências, na literatura, sobre o modo como esse operava.
5.2. O Acento no Latim Clássico
Faria (1970: 134-161) aponta diversas referências de gramáticos latinos
que tratam da posição do acento; elas serão apresentadas ao longo de nossa
explanação. A tradução dos trechos selecionados também é do autor.
A atribuição do acento no latim clássico14 está estreitamente ligada ao
peso da penúltima sílaba dos vocábulos. É uma língua de acento semifixo, em
que não há palavras oxítonas. Podemos definir a posição do acento,
considerando os seguintes aspectos:
(a) em palavras de mais de duas sílabas, o acento recai na penúltima
sílaba, se essa for pesada. Se for leve, o acento recai sobre a antepenúltima
sílaba. Apresentamos, como exemplo, pepérci15 (parco) e gémitu (gemido),
respectivamente. Sobre as proparoxítonas, assim se pronuncia Donato (4º séc
d. C.): “in trisyllabis et tetrasyllabis et deinceps, si paenultima correpta fuerit,
acuemus antepaenultimam, ut Tullius, Hostilius; si paenultima...longa fuerit,
ipsa acuetur (4, 371)”.16
14 Destacamos que a nossa análise do acento no latim clássico está totalmente apoiada nos gramáticos latinos que se baseiam na análise métrica da poesia latina. 15 Ao longo do texto, as sílabas tônicas das palavras serão indicadas pelo acento ortográfico, ou seja, serão marcadas como o sinal ‘ sobre a vogal proeminente. 16 “Nos trissílabos, tetrassílabos e palavras de mais sílabas, se a penúltima for breve, acentuaremos a antepenúltima, como em Tullius, Hostilius; se a penúltima for longa, ela própria será acentuada”.
92
(b) em palavras dissílabas, a primeira sílaba é acentuada,
independentemente do peso silábico, como ocorre em: fáctu (fato) e lúpu
(lobo). A esse respeito afirma ainda Donato: “in dissyllabis...acuemos priorem
(sc. Syllabam) siue illa correpta fuerit, siue producta, ut nepos, leges (4,
371)”.17
Já no que se refere a vocábulos oxítonos, Quintiliano (1º séc d. C.)
afirma que “ultima syllaba nec acuta unquam excitatur nec flexa circumducitur
(12, 10, 33)”18, confirmando o fato de que a última sílaba latina nunca devia ser
acentuada.
No latim dito clássico ou literário, as vogais podiam ser pronunciadas
com duração breve ou longa. Havia um caráter distintivo na duração das vogais
(cf. ILARI, 2006: 72), o que possibilitava a distinção de palavras e morfemas.
Dessa forma, temos: ŏs (breve) – osso, ōs (longo) – rosto. A pronúncia em
ambas as palavras era exatamente a mesma em termos de timbre, ponto de
articulação, altura, arredondamento, etc; o que diferenciava os dois vocábulos
era justamente a duração da vogal. A quantidade também era responsável pela
expressão do caso, tendo, portanto, função morfológica, já que distinguia, por
exemplo, o nominativo do ablativo (cf. rosă (nom.) vs. rosa (abl.)).
Cabe destacar que a noção de peso silábico, na análise que realizamos,
está relacionada à quantidade silábica. Consideramos sílabas leves aquelas
que possuem uma vogal breve. Já as sílabas pesadas são aquelas que
17 “Nos dissílabos devemos acentuar a primeira sílaba, seja ela breve ou longa, como nepos, leges”. 18 “A última sílaba nunca é acentuada como aguda, nem terminada como tendo um acento circunflexo”.
possuem uma vogal longa, um ditongo ou uma consoante em posição de coda.
Dessa maneira, temos os exemplos apresentados em (01):
94
(01)
σ σ σ σ
O R O R O R O R
N N C N N
C V V C V C C V C V V
m a a g i s m e p o e
ămātŭm măgĭstĕr cŭmĕră pœnă
A partir dos exemplos em (01), podemos notar que, em cúmera (cesto
de junco), a vogal breve na penúltima sílaba faz com que essa se torne leve e o
acento, automaticamente, recaia sobre a sílaba anterior. Temos somente as
posições de onset (O) e núcleo (N) da rima (R) preenchidas.19
Em amátum (amado, querido, caro), o <a> é longo e,
conseqüentemente, o núcleo da penúltima sílaba encontra-se ramificado,
tornando-a pesada. Isso faz com que o acento recaia sobre ela. Em magíster
(diretor), temos também a penúltima sílaba pesada, mas, nesse caso, a rima é
que se ramifica, pois estão preenchidas as posições de núcleo e coda.
Também o acento recai sobre essa sílaba, conforme apresentamos
anteriormente. Já em pœnă temos um ditongo com núcleo (N) ramificado e,
19 Destacamos que a posição preenchida de onset não conta para a definição do peso silábico. Temos sílabas pesadas somente quando há núcleo ramificado ou rima ramificada. (cf. BISOL, 2005. p. 104)
95
conseqüentemente, uma sílaba igualmente pesada. Como se vê, todos os
casos de sílaba pesada apresentam rima com mais de uma mora, estejam
essas duas moras concentradas no núcleo (ămātŭm, pœnă) ou distribuídas
pelos dois constituintes da rima (núcleo e coda).
A divisão silábica no latim era realizada da mesma maneira que no
português atual. Assim sendo, apresentaremos a seguir exemplos de divisões
silábicas, a fim de permitir uma melhor visualização do peso das sílabas e
compreender o mecanismo de aplicação do acento latino (cf. FARIA, 1970:136
e 137):
a) A consoante entre duas vogais pertence à sílaba seguinte:
a-la, cau-as
b) Quando duas ou mais consoantes aparecem contíguas, a última pertence à
sílaba seguinte:
caus-ti-cus, cons-ta-re
c) Nas consoantes “dobradas” (geminadas), cada uma pertence a uma sílaba:
stel- la, car-rus
d) Oclusivas ou fricativas + líquidas acompanham a vogal seguinte:
dex-tra, re-pli-co
96
Reafirmamos que esta análise considera a atribuição do acento em
elementos lexicais plenos. Melhor dizendo, nosso corpus é constituído por
vocábulos nominais que apresentam conteúdo semântico, além do gramatical,
não envolvendo, assim, a presença de proclíticos e enclíticos. Também não
são analisadas as formas verbais. Os exemplos foram tirados do dicionário
latino-português de Saraiva (2006), dos gramáticos latinos e históricos, como
Coutinho (2005), Faria (1970), Maurer Jr, (1959), Nunes (1975), Silva Neto
(1976, 1977), além do Appendix Probi.
Cabe destacar que as principais palavras latinas átonas são as
proclíticas: preposições simples, advérbios monossilábicos, advérbios
interrogativos e relativos, pronomes relativos e interrogativos e algumas
conjunções, como demonstramos nos exemplos abaixo, todos retirados de
Furlan (1978):
(02) per angústa
ad augústa
non amát
tam Félix
et páter
dum tímeant
quem ámas
quale sít
cur ábes
97
Verificamos, dessa forma, que proclíticos não se caracterizam como
elementos lexicais plenos na língua e são em sua maioria monossilábicos e
átonos, não portando acento lexical. Isso justifica o fato de não contemplamos
tais partículas em nossa análise.
Há de se considerar, ainda, o caso dos monossílabos latinos e de como
se opera a acentuação nesse tipo de palavra. Uma vez que a acentuação latina
se baseia no peso silábico da penúltima sílaba, as palavras monossilábicas,
por natureza, não teriam a condição básica que permitiria a aplicação do
acento.
Quednau (2000) afirma que os monossílabos lexicais latinos sempre
apresentam sílabas pesadas e são acentuados, uma vez que vogais longas e
ditongos ocorrem sempre na posição final. Já as vogais leves somente ocupam
tal posição se estiverem seguidas de pelo menos uma consoante. Abaixo
listamos alguns exemplos retirados da mesma autora (op. cit, p.153):
(03)
a) spē (esperança)
b) bōs (boi), mās (macho), ōs (rosto), pēs (pé), sāl (sal), sōl (sol)
c) vĭr (varão, homem), mĕl (mel), fĕl (fel, amargor), cŏr (coração),ŏs
(osso)
No caso dos monossílabos lexicais, verificamos que a aplicação do
acento se dá pela presença ou ausência de sílaba pesada. Se essa única
sílaba for pesada, o termo é acentuado (tônico); se for leve, o monossílabo não
recebe acento, sendo, portanto, átono. No exemplo em (03) a), verificamos que
spē apresenta vogal longa, constituindo, portanto, uma sílaba pesada. Nos
98
casos em (03) b) e c), todos os exemplos terminam em consoante, o que torna
a sílaba igualmente pesada. Esses fatos autorizam afirmar que a palavra
mínima, em latim clássico, corresponde sempre a um pé trocaico.
De fato, os monossílabos lexicais latinos são sempre tônicos por jamais
apresentarem sílaba leve. Por outro lado, há os monossílabos leves, partículas
clíticas que não são portadoras de acento, átonas, portanto, que sempre
terminam em sílaba leve, em vogal breve. Desse modo, tais formas são inertes
prosodicamente e, por isso, agregam-se a outras formas da língua, levando a
uma categoria de nível mais alto, o grupo clítico (C). É o caso, por exemplo,
de:
(04) -quĕ (conjunção aditiva)
-nĕ (partícula interrogativa)
-vĕ (conjunção alternativa)
Na próxima sessão, apresentaremos uma proposta de análise do acento
segundo a Fonologia Métrica (MASSINI-CAGLIARI, 1999), modelo teórico que
utiliza a concepção hierárquica das estruturas lingüísticas, com uma inovadora
representação da sílaba, que permite uma análise do acento mais adequada
que a realizada em modelos como o Gerativo Padrão e a Fonologia
Autossegmental (MATZENAUER, 2005:68).
99
5.3. Análise do Acento no Latim Clássico segundo a Fonologia Métrica
A apresentação de uma análise segundo a Fonologia Métrica objetiva
formar um quadro mais amplo sobre o tema estudado, ao mesmo tempo em
que servirá de instrumental para nossa posterior análise nos moldes da Teoria
da Otimalidade, uma vez que consideraremos os seus avanços, principalmente
os apresentados por Hayes (1995), na formulação de restrições universais.
Dessa maneira, seguimos com Massini-Cagliari (1999), que expõe uma análise
para o acento latino, baseada no referido modelo. Afirma a autora (op. cit. :115)
que a regra de atribuição do acento pode ser formulada da seguinte maneira:
"marcando a sílaba final de palavra como extramétrica, forme um troqueu
moraico, da direita para a esquerda"20. Em (05), exemplificamos a aplicação de
tal regra:
(05) a) (x) (x)
se crē <tu> ve he men <tur>
b) (x .) (x .)
le po <re> fa ci <lis>
20 Para maiores informações sobre os constituintes da hierarquia prosódica (sílaba, pé métrico, palavra fonológica, etc), sugerimos a leitura de Bisol (2005: 243 – 254).
100
Dos exemplos em (05), podemos destacar que a última sílaba
(extramétrica)21 é invisível para a aplicação do acento, não importando seu
peso silábico, como vemos em a) e b). Porém, a regra é sensível ao peso da
penúltima sílaba, como percebemos na atribuição do acento nos vocábulos
com vogal longa ou consoante em coda naquela posição. Em b), temos
também a aplicação da regra sem nenhuma restrição, em que duas sílabas
leves constituem o troqueu moraico e servem de contexto para a aplicação da
regra.
Há casos, porém, em que haverá pés degenerados22, como evidenciado
em (06):
(06) (x) (x)
pū li <ca> pul ve <ris>
Nesses casos, feita a escansão da palavra, a sílaba postônica sobra,
havendo a necessidade de se admitir a presença de pés degenerados. Admite-
se, dessa forma, a proibição fraca de pés degenerados, na qual esses são
permitidos em algumas circunstâncias. Nos casos apresentados em (06), após
a ação da extrametricalidade e da formação do pé troqueu moraico, não há
21 A extrametricalidade é um recurso utilizado para explicar porque em determinadas línguas, como no latim, no holandês e no polonês, o acento não cai na última sílaba. Quando aplicada, a extrametricalidade é marcada pela adição de colchetes angulados (<silaba>) na sílaba que se deseja marcar como extramétrica e, dessa forma, ela se torna invisível para a aplicação do acento. A fim de restringir o poder de tal recurso, a extrametricalidade só pode ser utilizada na margem dos domínios de aplicação do acento. Esse conceito foi introduzido em 1977 por Liberman e Prince, mas foi a partir de 1980, com Hayes, que passou a ter importância na teoria métrica. 22 Segundo Hayes, pés são necessariamente binários, ou seja, precisam ser bimoraicos ou dissilábicos. Quando, após a segmentação da palavra, há alguma sílaba restante, essa não recebe estrutura, não se formando um pé sobre ela. Há línguas, porém, que aceitam pés constituídos fora desse padrão binário e, assim sendo, se tem pés formados por apenas um elemento métrico, ou seja, pés degenerados.
101
como formar um pé canônico e, conseqüentemente, há de se admitir a
formação de um pé degenerado.
Tal fato também é observado em vocábulos monossílabos e dissílabos.
Ao observarmos os exemplos listados em (07), verificaremos que a aplicação
da regra em monossílabos impede a existência do acento, devido ao fato de a
extrametricalidade eliminar a única sílaba passível de atribuição do acento.
Esse é o segundo caso em que a existência de pés degenerados será
admitida, ou seja, quando a aplicação da extrametricalidade impedir a
atribuição do acento.
(07) <vīs> <ŏs> <is>
Em dissílabos, após a aplicação da extrametricalidade, não há como
formar troqueus se a penúltima sílaba for leve e, conseqüentemente, temos a
formação de mais pés degenerados, como vemos em (08):
(08) (x)
rŏ<sa>
Destacamos, nessa abordagem baseada em regras, o fato de existirem
elementos que não se enquadram no modelo proposto e que necessitam,
portanto, de artifícios, como a aplicação de filtros, extrametricalidade ou
formação de pés degenerados. Numa abordagem fundamentada na Teoria da
Otimalidade, nos moldes de Prince & Smolensky (1993), esse tipo de problema
é solucionado através da substituição de regras por restrições (a) que analisam
102
formas em paralelo, não havendo, portanto, níveis intermediários de análise e
(b) que podem ser violadas, ou seja, um candidato pode violar restrições e,
mesmo assim, ser considerado gramatical, como vimos no capítulo anterior,
fato impossível numa análise baseada em regras, em que uma forma
lingüística, ao violá-las, torna-se agramatical. Ilustraremos tais afirmações na
seção seguinte, em que abordaremos o acento primário sob a ótica da TO.
5.4. Análise do Acento no Latim Clássico segundo a Teoria da
Otimalidade
A partir da definição dos elementos essenciais para a atribuição do
acento no latim clássico, da delimitação de suas regularidades e da análise
prévia feita conforme o modelo da fonologia métrica, levantamos as seguintes
restrições que atuam no processo:
(a) ROOTING – todas as palavras de conteúdo lexical recebem acento.
Tal restrição focaliza os termos de conteúdo lexical, uma vez que termos
de conteúdo somente gramatical não portam acento (são clíticos). Em
realidade, a língua nunca viola essa restrição, uma vez que todos os termos de
conteúdo lexical recebem acentuação e todas as palavras gramaticais a
respeitam.
Reconhecemos a importância de tal restrição, além da sua posição no
topo da hierarquia, mas devido à condição de não-violabilidade por parte dos
vocábulos da língua, não a listaremos no ranking final de restrições de nossa
análise. Como está posicionada no topo da hierarquia, ROOTING impede que
103
monossílabos como bōs (boi), mās (macho), ōs (rosto), vĭr (varão, homem) e
mĕl (mel), entre outros, deixem de portar acento, já que são palavras de
conteúdo lexical, diferentemente de -quĕ (conjunção aditiva), -nĕ (partícula
interrogativa) ou –vĕ (conjunção alternativa), que são palavras de conteúdo
gramatical. Se toda palavra de conteúdo lexical tem de portar acento,
ROOTING, por ser a condição mais importante, faz com que outras demandas
sejam violadas, como veremos a seguir. Os efeitos de ROOTING podem ser
observados na avaliação a seguir, em que utilizamos as seguintes
convenções23:
1. Nos candidatos, a sílaba portadora do acento lexical sempre
estará em negrito;
2. Parênteses indicam a formação de um pé métrico;
3. No interior do pé métrico, a sílaba em itálico representa a
cabeça, ou seja, a sílaba proeminente no pé;
4. Chaves indicam a palavra prosódica.
23 As convenções aqui adotadas serão utilizadas nos tableaux ao longo de todo o trabalho.
104
(09) Vĭr - varão
Vĭr ROOTING
☞ a. {(vĭr)}
b. {(vĭr)} *!
No tableau em (09), verificamos que o candidato a atende à restrição
ROOTING, já que a palavra é acentuada. Já o candidato b viola fatalmente a
restrição, uma vez que não possui proeminência acentual. ROOTING é
importante porque garante a aplicação do acento primário e,
conseqüentemente, a existência do mesmo em palavras de conteúdo lexical,
como é o caso de ‘vĭr’. Porém, como é necessário que haja a presença do
fenômeno nos candidatos gerados pelo componente gramatical GEN, não
levaremos em conta sua atuação nos tableaux posteriores. Em outras palavras,
todos os itens lexicais gerados por GEN terão obrigatoriamente uma sílaba
tônica marcada e jamais violarão essa restrição. Assim sendo, outras
restrições, apesar de dominadas por ROOTING, são mais relevantes na
escolha do output. São elas:
(b) TROCHEE (TROQUEU) – Todo pé tem duas moras, estejam elas
localizadas na mesma sílaba ou em sílabas diferentes. Nessa última situação,
a sílaba proeminente está à esquerda.
105
TROCHEE é uma restrição de marcação em que todos os pés
dissilábicos devem ter proeminência (cabeça) à esquerda. Hayes (1995)
estabelece que três tipos de pés equacionam a atribuição do acento em todas
as línguas, sendo eles (a) o troqueu moraico, (b) o troqueu silábico e (c) o
iâmbico. É consenso entre os autores que o padrão acentual latino é
caracterizado pelo pé trocaico (cf. QUEDNAU, 2000). Em nossa análise,
verificamos, para o latim clássico, que a restrição TROCHEE compreende o
troqueu moraico. Essa restrição será violada sempre que um pé dissilábico não
apresentar cabeça na sílaba inicial ou houver formação de um pé constituído
apenas de uma sílaba leve. A necessidade de constituição de um pé canônico
troqueu torna essa restrição a mais elevada no ranking que propomos. Outra
restrição importante é definida em (c), a seguir:
(c) PARSE-σ (ANALISE SÍLABA) – todas as sílabas devem pertencer a pés
métricos.
Para garantir a alternância binária de sílabas fortes e fracas e,
conseqüentemente, o ritmo binário, essa restrição é utilizada, em geral,
juntamente com FTBIN (Foot Binarity – Pé Binário) e exige que todas as
sílabas sejam analisadas em pés. Esse restritor será violado por sílabas que
não estejam incluídas em um pé métrico. Em nossa análise, utilizaremos a
restrição TROCHEE (Troqueu), em lugar de FTBIN, a fim de garantir a
formação do ritmo adequado para a formação do acento primário latino. A
proposição de TROCHEE em nossa análise torna a restrição FTBIN irrelevante,
uma vez que o pé trocaico já é binário (em nível moraico ou silábico) e o latim
lê as moras; melhor dizendo, ele analisa o peso da penúltima sílaba e – caso
106
haja a presença de uma sílaba pesada, constituída por duas moras, e,
portanto, com a formação de um troqueu moraico – a torna acentuada. Caso
contrário, ocorre a formação de um pé constituído por duas sílabas leves,
também bimoraico.
Concluímos, portanto, que a necessidade da existência de um pé
canônico trocaico para aplicação do acento no latim clássico é vital para a
correta seleção do candidato ótimo e, portanto, todos os pés formados deverão
ser binários em nível moraico ou silábico; caso contrário, serão eliminados
imediatamente da disputa. Essa constituição de pés métricos, necessária para
a constituição do ritmo da língua e, conseqüentemente, para se analisar o
acento primário, é inicialmente satisfeita pela restrição PARSE-σ, que exige,
como já dissemos, que as sílabas sejam escandidas em pés. Outra restrição
relevante é definida a seguir:
(d) WEIGHT-TO-STRESS ou WTS (Peso ao acento) – toda sílaba pesada deve
ser acentuada. Nessa restrição, o peso da sílaba determina o acento,
enquanto, na restrição em espelho, SLW, STRESS LEADS WEIGHT (Acento
leva ao peso), o acento faz com que a sílaba se torne pesada (cf.
RODRIGUES, 2007).
A já evidenciada relação do acento com o peso da penúltima sílaba em
vocábulos trissilábicos e polissilábicos latinos justifica a presença dessa
restrição em nossa análise. Enfatizamos que WTS atua a partir da
característica silábica (peso) para a aplicação do acento, contrariamente à
restrição SLW, que justifica a existência do peso silábico pela presença do
acento.
107
Nos tableaux abaixo, verificaremos a atuação de tais restrições em
nossa análise, utilizando um input dissilábico:
(10) Rŏsă – Rosa (flor)24
Rŏsă TROCHEE PARSE-σ WTS
☞ a. {(rŏsă)}
b. {(rŏsă)} *!
c. {(rŏ)să} *! *
d. {rŏ(să)} *! *
e. {rŏsă} *!*
Ao analisar os efeitos dessas três restrições para um vocábulo dissílabo
constituído por sílabas leves, podemos verificar, logo de imediato, que a
restrição WTS não atua para a seleção do candidato ótimo, uma vez que não
existem sílabas pesadas para receber acento. Ocorre, então, a atuação
conjunta de TROCHEE e PARSE-σ a fim de garantir o estabelecimento do
padrão trocaico. Verificamos que, nesse caso, é indiferente a posição desses
24 Em dissílabos, há, obviamente, apenas duas realizações possíveis quanto ao acento: na primeira ou na última. Um número maior de candidatos é proposto para checar o efeito das restrições que regulam a estrutura métrica da palavra. Assim, (a), (c) e (e) são idênticos em termos segmentais e suprassegmentais, mas diferentes em termos de estruturação métrica. O mesmo irá acontecer nos demais tableaux, nos quais o número máximo de realizações fonéticas é 3: com acento na última, penúltima e antepenúltima sílaba.
108
restritores na hierarquia, uma vez que o candidato a será selecionado nos dois
casos possíveis de dominância, como ilustrado no tableau em (11), a seguir:
(11) Rŏsă – Rosa (flor)
Rŏsă PARSE-σ TROCHEE
☞ a. {(rŏsă)}
b. {(rŏsă)} *!
c. {(rŏ)să} *! *
d. {rŏ(să)} *! *
e. {rŏsă} *!*
Nos Tableaux em (10) e (11), apresentamos duas possibilidades de
hierarquização entre as restrições analisadas. O candidato a será selecionado
em qualquer uma delas, o que sugere a não dominância entre essas restrições.
Os candidatos c, d e e violam PARSE-σ por apresentarem sílabas não
escandidas em pés, sendo que o candidato e apresenta duas violações, por ter
duas sílabas não analisadas. Já os candidatos b, c e d violam TROCHEE
porque b apresenta pé iâmbico, com cabeça à direita, e os candidatos c e d
possuem pés constituídos por apenas uma mora.
109
Ao analisarmos, porém, um dissílabo constituído de sílaba pesada,
poderemos verificar a atuação das três restrições, como se vê em (12) e (13) a
seguir, tableaux em que deixamos PARSE e TROCHEE no mesmo nível
hierárquico (linha pontilhada entre elas):
(12) Nūptă – esposa, mulher casada.
Nūptă TROCHEE PARSE- σ WTS
☞ a. {(nūp)tă} *
☞b. {(nūp)(tă)} *
c. {nūp(tă)} * *! *
d. {(nūp)(tă)} * *!
No tableau (12), representamos a não-dominância entre as restrições
TROCHEE e PARSE e acrescentamos WTS ao final da hierarquia, entendendo
que seria mais relevante para a língua construir pés métricos trocaicos do que
acentuar a sílaba pesada. Isso, no entanto, nos levou à seleção de dois
candidatos ótimos (a e b). Ao analisarmos um dissílabo com sílaba final
pesada, o candidato com sílaba final acentuada foi eleito o candidato ótimo,
como vemos em (13):
110
(13) Rŭbŏr – rubro.
Rŭbŏr TROCHEE PARSE- σ WTS
a.{Rŭ(bŏr)} * *!
☞b. {Rŭ(bŏr)} *
c. {(Rŭ)(bŏr)} * *!
d. {(Rŭ)bŏr} * *!
A partir dos resultados obtidos em (12) e (13), verificamos a necessidade
de se estabelecer uma dominância entre as restrições TROCHEE e PARSE, a
fim de que emerja apenas um candidato ótimo. Nesse caso, como já
explicamos anteriormente, a marcação do ritmo trocaico da língua é mais
importante do que a análise exaustiva das sílabas e, desse modo, TROCHEE
deve dominar PARSE. Considerando também o tableau (13), verificamos que
apenas essas restrições não conseguem selecionar candidatos adequados
quando há sílabas pesadas finais, havendo necessidade de uma nova restrição
que delimite o local de aplicação do acento. Assim sendo, apresentamos a
restrição a seguir:
(e) *EDGEMOST (σstr , R) – a sílaba final não pode ser acentuada.
A restrição do tipo EDGEMOST foi primeiramente proposta por Prince &
Smolensky (1993) e posteriormente desenvolvida por McCarthy & Prince
(1993). No estudo do latim clássico, percebemos a ausência de oxítonas, ou
seja, o latim não enxerga a última sílaba como domínio para aplicação do
111
acento (NUNES, 1975; FARIA, 1970); a formação do pé troqueu somente se dá
a partir da penúltima sílaba da palavra, o que justifica a existência de uma
restrição de marcação como *EDGEMOST (σstr , R). Verifiquemos, então, os
efeitos das mudanças propostas até o momento, utilizando o mesmo input do
tableau anterior (Rŭbŏr - rubro). Em outras palavras, testaremos a dominância
entre TROCHEE e PARSE e a utilização da nova restrição com seu
conseqüente ranqueamento.
(14) Rŭbŏr – rubro.
Rŭbŏr TROCHEE PARSE- σ *EDGEMOST (σstr , R) WTS
☞a.{Rŭ(bŏr)} * *
b. {Rŭ(bŏr)} * *!
c. {(Rŭ)(bŏr)} *! *
d. {(Rŭ)bŏr} *! * *
Observamos em (14) que o latim não prioriza a escansão exaustiva das
sílabas em pés, uma vez que o posicionamento elevado de PARSE na
hierarquia levou a decisão sobre o candidato ótimo para a restrição
*EDGEMOST. O candidato escolhido ao final da análise não teve todas suas
sílabas escandidas; porém, sua última sílaba não pôde ser acentuada,
constituindo esse um fator essencial para a aplicação do acento primário latino.
Dessa forma, é mais relevante para a língua (a) a formação do pé troqueu e,
assim sendo, a restrição correspondente se mantém no topo da hierarquia, e
112
(b) que sílabas pesadas sejam acentuadas quando não estão em posição de
final de palavra. Isso nos levou a hierarquizar as restrições da seguinte
maneira:
(15) TROCHEE >> *EDGEMOST (σstr , R) >> WTS >> PARSE-σ
Tal hierarquia consegue equacionar os dois principais requisitos para a
aplicação do acento lexical: (a) através da interação entre TROCHEE e PARSE
temos o estabelecimento do ritmo trocaico e (b) pela interação entre
*EDGEMOST e WTS temos a sensibilização da língua latina ao peso silábico
da penúltima sílaba das palavras. A interação do conjunto de restrições assim
hierarquizado mostrou-se satisfatória devido à emergência de formas de
superfície adequadas para a língua latina em sua modalidade clássica, como
vemos em (16), que, diferentemente de (14), hierarquiza *EDGEMOST e WST
acima de PARSE:
(16) Rĭgŏr – rigor.
Rĭgŏr TROCHEE *EDGEMOST (σstr , R) WTS PARSE- σ
☞a.{Rĭ(gŏr)} * *
b. {Rĭ(gŏr)} *! *
c. {(Rĭ)(gŏr)} *! *
d. {(Rĭ)gŏr} *! * *
113
Em (16), o candidato b foi eliminado por violar fatalmente *EDGEMOST
(σ, R) que proíbe a existência de oxítonas na língua. Os candidatos c e d
violam TROCHEE devido à formação do pé em sílaba monomoraica (rĭ). Resta,
então o candidato a emergindo na superfície. WTS é violada não-fatalmente
por a e c porque essas formas não apresentam a sílaba pesada (gŏr)
acentuada; PARSE é violada por a, b e d, que apresentam sílabas não
integradas a pés.
A seleção de a evidencia que é muito importante para a língua que os
pés que se formem sejam trocaicos. Caso não sejam, é preferível que as
sílabas não estejam integradas a pés. O acento lexical pode estar em sílabas
não escandidas, mas não pode pertencer a pés que estabeleçam ritmos
diferentes do trocaico. Testemos a hierarquia proposta com vocábulos latinos
com diferentes estruturações de sílabas, em função do peso. Comecemos com
um dissílabo com sílaba inicial pesada:
(17) Dissílabo com Penúltima Sílaba Pesada.
Nūptă - esposa, mulher casada.
Nūptă TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ
☞ a. {(nūp)tă} *
b. {(nūp)(tă)} *!
c. {nūp(tă)} *! * * *
d. {(nūp)(tă)} *! * *
114
Nesse tableau, fica evidente que o latim não tolera pés degenerados.
Apesar de os candidatos a e b apresentarem acento lexical na penúltima
sílaba, como o esperado, a presença do pé monossilábico e monomoraico (tă),
portanto degenerado, eliminou o candidato b da disputa. É melhor deixar uma
sílaba não integrada a pés do que formar um pé atípico (degenerado) não
trocaico. Se utilizássemos a restrição FT-BIN (PÉ BINÁRIO), que exige a
formação de pés binários, o candidato b seria eliminado da mesma forma por
apresentar o pé constituído por apenas uma sílaba leve. Seria, como já
dissemos, redundante a sua utilização em nossa análise, uma vez que
TROCHEE, altamente hierarquizado, já garante a característica binária nos pés
métricos. Nesse tableau, observamos que o candidato vencedor (output real)
passa ileso por todas as restrições, exceto PARSE, já que (a) forma troqueu
moraico, (b) a sílaba pesada porta acento e (c) o acento não se manifesta na
borda direita da palavra. Portanto, há relaxamento apenas quanto à integração
das sílabas em pés.
No tableau (17), os candidatos b, c e d são eliminados logo na primeira
restrição, que exige justamente a formação de pés trocaicos, emergindo o
candidato a como ótimo. Destacamos que o candidato a é selecionado mesmo
violando uma restrição, o que exemplifica o princípio da Violabilidade, no qual
se afirma que um candidato pode violar restrições e continuar sendo
gramatical. Nesse caso, o que determina a gramaticalidade do candidato a são
as violações cometidas pelos outros candidatos – bem mais graves que as
suas.
115
Vejamos, agora, como se comportam candidatos gerados a partir de
inputs dissilábicos com duas sílabas pesadas. O exemplo selecionado para
análise é ‘curvor’:
(18) Dissílabo com duas sílabas pesadas Cūrvŏr – curvatura
Cūrvŏr TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ
☞a. {(cūr)(vŏr)} *
b. {(cūr)vŏr} * *!
c. {cūr(vŏr)} *! * *
d. {(cūr)(vŏr)} *! *
e. {cūrvŏr} * *!*
Em (18), o candidato a, quando comparado aos candidatos b e e, nos
mostra que é relevante as sílabas estarem integradas a pés, melhor dizendo,
caso as sílabas possam formar pés trocaicos, elas devem, prioritariamente,
estar integradas. Isso se vê pela eliminação dos candidatos b e e pela restrição
PARSE. A escolha do candidato ótimo ocorre nessa restrição, uma vez que a,
b e e não violam nenhuma restrição mais alta da hierarquia, somente WTS, já
que as duas sílabas da forma de base são pesadas e somente uma delas,
obviamente, pode receber acento. Como todos os candidatos a violam, os que
ainda estão no páreo seguem na disputa, ficando para PARSE a decisão final.
O candidato b viola uma vez PARSE por não escandir uma sílaba, sendo
eliminado, e o candidato e a viola duas vezes, sendo eliminado já na primeira
116
violação, como demonstrado no tableau em (18). Nesse momento, o candidato
a emerge como forma de superfície para o input ‘cūrvŏr’. Vejamos, a seguir, a
situação de trissílabos. Comecemos com os que apresentam apenas uma
sílaba pesada, a penúltima:
(19) Trissílabo com penúltima sílaba pesada
Sĕcrētŭ – segredo.
Sĕcrētŭ TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ
☞ a. {sĕ(crē)tŭ} **
b. {(sĕ)(crē)(tŭ)} *!*
c. {(sĕcrē)tŭ} *! *
d. {sĕ(crētŭ)} *! *
Em (19), candidatos são eliminados por TROCHEE devido à construção
de dois pés monomoraicos em b e um pé constituído de três moras em c e d.
Resta apenas o candidato a, que viola duas vezes PARSE de maneira não-
fatal devido ao fato de as sílabas leves <sĕ> e <tŭ>25 não estarem analisadas
em pés. Os candidatos c e d também violam essa restrição pelo mesmo motivo
e também não-fatalmente. Como se vê, a obediência a TROCHEE faz com que
emerja, de imediato, um paroxítono com duas sílabas não integradas. As
25 Esclarecemos que a representação com colchetes angulados, embora seja idêntica à utilizada para indicar sílabas extramétricas na análise métrica, serve, nas demais seções do trabalho, apenas para destacar determinados segmentos dos vocábulos. Temos, portanto, duas interpretações diferentes para essa convenção.
117
demais restrições não têm qualquer efeito nessa avaliação. Vejamos, a seguir,
um trissílabo com penúltima sílaba leve e a primeira pesada:
(20) Trissílabo com penúltima sílaba leve.
Pūblĭcă – pública.
Pūblĭcă TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ
☞a.{(pū)(blĭcă)}
b. {(pū)(blĭcă)} *!
c. {(pū)(blĭ)(că)} *!* *
d. {(pū)blĭcă} *!*
e. {(pū)(blĭ)(că)} *!*
f. {(pū)(blĭcă)} *!
No tableau em (20), TROCHEE elimina os candidatos c e e devido à
formação de pés monomoraicos e b devido à formação de pé iambo.
Continuam na disputa a,d e f. Este último não acentua a única sílaba pesada
<pū> e é elminado por violar WTS, que determina que toda sílaba pesada seja
acentuada. O candidato d viola PARSE duas vezes, uma vez que apresenta
duas sílabas não escandidas em pés, sendo eliminado. Resta, então, o
candidato vencedor a. Concluindo: o tableau em (18) é bastante elucidativo
porque mostra a total obediência a todas as demandas da língua, pois, em
latim, na variedade dita clássica, é extremamente importante formar troqueus
118
moraicos, condição assegurada por TROCHEE, e não acentuar a sílaba final
(condição levada a cabo pela satisfação a EDGEMOST). Em menor grau de
importância, sílabas pesadas requerem acento, imposição feita por WTS, e,
sempre que possível, sílabas devem ser integradas. Desse modo, satisfazem
plenamente as demandas os trissílabos com a primeira pesada, pois essas
palavras formam dois troqueus moraicos e recebem acento na sílaba inicial
pesada, como se vê nos dados a seguir:
(21) (σ) (σ.σ)
Mētrĭcă – métrica
Cāpsŭlă – cápsula
Īntĭmă – íntimo
Já os trissílabos com duas leves e uma pesada final formam dois
troqueus moraicos e, com isso, satisfazem bem a restrição TROCHEE. A
perfeita formação de pés troqueus e o acento na sílaba inicial, no entanto, têm
um custo: violar a restrição WTS, já que a sílaba pesada final não portará
acento.
119
(22) Făcĭlĭs – fácil.
Făcĭlĭs TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ
☞a. {(făcĭ)(lĭs)} *
b. {(făcĭ)lĭs} * *!
c. {(făcĭ)lĭs} *! * *
d. {(făcĭ)(lĭs)} *! *
e. {(făcĭ)(lĭs)} *! **
Quando trissílabos apresentam as três sílabas leves, a forma que melhor
atende às restrições da hierarquia é a que forma um troqueu moraico na borda
esquerda da palavra, deixando a última sílaba sem integração, como
demonstramos a seguir:
(23) (σ.σ) σ
lĕpĭdă – lépida
lĕpŏrĕ – lebre
cŏlŭbră – cobra
Considerando o conjunto de restrições relevantes até o momento,
teríamos a seleção de mais de um candidato para trissílabos com sílabas
leves. Nesse caso, a formação do pé trocaico pode se realizar tanto na borda
direita quanto na borda esquerda da palavra prosódica, levando à seleção de
120
candidatos com as seguintes estruturas: (σ.σ)σ; σ(σ.σ) e σ(σ.σ). A fim de
solucionar tal impasse, nossa hierarquia passa a contar com a seguinte
restrição de alinhamento:26
(f) ALLFOOT– LEFT (TODO PÉ À ESQUERDA) – Essa restrição determina
que todo pé deve ser alinhado na borda esquerda da palavra prosódica. Assim
sendo, os candidatos que apresentam pés trocaicos não alinhados com a
borda esquerda da palavra violarão essa restrição. No caso em questão, será
selecionada a forma ótima (σ.σ)σ, como demonstramos no tableau abaixo, em
que o candidato vencedor viola apenas a restrição PARSE, já que a sílaba final
não forma pé. Em realidade, todos os três candidatos que continuam na
disputa chegam a PARSE e a violam, ficando para a restrição de alinhamento
ALLFT-LEFT a decisão sobre o candidato ótimo, como vemos no tableau a
seguir:
26 A família ALIGN (alinhamento) foi amplamente discutida no trabalho de McCarthy & Prince (1995) e faz referência a uma complexa e extensa relação entre margens de categorias lingüísticas (morfológicas e prosódicas). Elas dizem respeito ao que os autores referenciam como “Hipótese do Alinhamento Generalizado”. No caso em questão, preconiza-se o alinhamento entre duas categorias prosódicas: a palavra prosódica e o pé. Em Gonçalves (2009), encontra-se uma completa descrição da família ALIGN, sobretudo na relação entre morfologia e prosódia.
121
(23) lĕpŏrĕ – lebre
Lĕpŏrĕ TROCHEE *EDGEMOST (σ, R) WTS PARSE- σ ALLFT – LEFT
☞a.{(lĕpŏ)rĕ} *
b. {lĕ(pŏrĕ)} * *!
c. {(lĕ)(pŏrĕ)} *! *
d. {(lĕpŏ)rĕ} *!
e. {lĕ(pŏrĕ)} * *!
f. {lê(pŏrĕ)} *! * * *
Como vimos, se considerássemos a hierarquia anterior (sem ALLFOOT-
LEF), os candidatos a, b e e seriam selecionados como candidatos ótimos, o
que não seria adequado. No entanto, ao acrescentarmos a restrição que
orienta a posição de formação do pé, o candidato a emerge como sendo o
melhor, uma vez que os demais a violarão fatalmente. Devido à atuação
específica dessa restrição, ela se encontra na posição menos privilegiada na
hierarquia.
Numa avaliação mais cuidadosa, percebemos que o conjunto de
restrições hierarquizadas não dava visibilidade específica ao peso da penúltima
sílaba nos casos em que todas as sílabas da palavra fossem pesadas. Para
resolver o caso de trissílabos com as três sílabas pesadas, em que era
necessária a visibilidade do peso apenas na penúltima sílaba, acrescentamos a
seguinte restrição, obtendo, desse modo, a constituição final de nossa
hierarquia de restrições:
122
(g) *EDGEMOST (σstr, L) – A sílaba inicial da palavra não pode ser acentuada.
Essa restrição tornou-se relevante em trissílabos que apresentam silabas
iniciais pesadas. Uma vez que o latim, “enxerga” o peso silábico da penúltima
sílaba para a aplicação do acento, a primeira, nesse caso, não pode portar
acento.
A hierarquia que se mostrou relevante foi a seguinte, portanto:
(25) ROOTING >> TROQUEU >> *EDGEMOST (σstr , R) >> WTS >> PARSE-
σ >> ALLFOOT-LEFT >> *EDGEMOST (σstr , L)
Notemos dois fatos que levam *EDGEMOST (σstr , L) a estar em
posição não privilegiada em nosso ranking: (a) atua apenas em candidatos
trissílabos, a fim de dar visibilidade apenas ao peso da penúltima sílaba e (b)
não pode estar ranqueado em posição elevada, a fim de não eliminar
candidatos dissílabos paroxítonos. Em outras palavras, a restrição tem atuação
mais limitada (restrita) que as demais, tendendo a uma menor relevância em
termos hierárquicos. Lingüisticamente, é mais relevante que tenhamos as
sílabas analisadas e, portanto, PARSE deve estar em posição superior na
hierarquia. Apresentamos o tableau seguinte em sua versão final para o latim
clássico:
123
(26) Trissílabo com as três sílabas pesadas
Plūmbātŭm – feito de chumbo.
Plūmbātŭm TROCHEE *EDGEMOST
(σ, R)
WTS PARSE-
σ
ALLFT -
LEFT
*EDGEMOST
(σ, L)
☞a.{(plūm)(bā)(tŭm)} ** **
b. {(plūm)(bā)tŭm} ** *! *
c. {plūm(bā)tŭm} ** *!* *
d. {plūm(bā)(tŭm)} ** *! **
e. {(plūm)(bā)(tŭm)} ** ** *!
f. {(plūm)(bā)(tŭm)} *! ** **
Nesse tableau, como todas as sílabas da palavra são pesadas, os pés
formados nos candidatos sempre respeitam a restrição de formação do pé
trocaico. O candidato f é eliminado da disputa por apresentar sílaba final
acentuada, violando, portanto, *EDGEMOST (σ, R). Como WTS é violada duas
vezes por cada candidato, a disputa continua. PARSE é violada por b, c e d,
eliminando tais candidatos. Finalmente, o candidato e é eliminado da disputa
por apresentar acento proparoxítono, o que, nesse caso, leva a uma violação
fatal a *EDGEMOST (σ, L). O candidato a emerge, dessa maneira, como forma
ótima, mesmo violando WTS duas vezes. Vemos que a restrição *EDGEMOST
(σ, L) será relevante apenas em vocábulos com penúltima e antepenúltima
sílabas pesadas.
124
Finalizada a apresentação das restrições e a análise dos tableaux para a
determinação da posição do acento primário em não-verbos do latim clássico,
objetivo do presente capítulo, gostaríamos de tecer algumas considerações a
respeito de características, tanto das restrições quanto das formas dos
candidatos a output, que não foram contempladas no decorrer da nossa
explanação.
Verificamos, ao realizar os estudos sobre o acento, que, além das
condições materiais para a aplicação do mesmo, foi necessário que houvesse
condições abstratas decorrentes da estrutura prosódica dos vocábulos. Tais
condições, portanto, devem estar presentes em nossa análise otimalista e,
nesse caso, são as restrições sugeridas que representam esse papel.
Dessa maneira, encontramos, em nossa hierarquia proposta, restrições
como *EDGEMOST, ROOTING e WTS que focalizam sua ação na
materialidade da língua. Em termos mais específicos, podemos afirmar que (a)
ROOTING se foca na existência da marca acentual, na necessária existência
física do acento em todos os vocábulos; (b) as restrições do tipo EDGEMOST
atuam no sentido de evitar a aplicação do acento nas bordas esquerda e direita
dos vocábulos fonológicos e, desse modo, também trabalham no nível da
materialidade, evitando que a marca acentual se manifeste em posições
inadequadas; e (c) WTS atua no sentido de dar visibilidade ao peso da
penúltima sílaba dos vocábulos, quando atua em conjunto com as restrições
acima descritas, o que significa dizer que atua no sentido de dar visibilidade a
determinadas conformações silábicas, tais como sílabas com coda preenchida
e/ou núcleo ramificado, por exemplo.
125
Por outro lado, restritores do tipo PARSE, TROCHEE e ALLFT-LEFT
trabalham num nível diferente das anteriores, uma vez que atuam no sentido
de garantir o estabelecimento do padrão trocaico, típico da língua latina. Em
outras palavras, tais restritores atuam sobre a estrutura prosódica das palavras,
num nível abstrato de análise. Como vimos, TROCHEE busca o
estabelecimento do pé métrico trocaico; PARSE objetiva levar as sílabas dos
vocábulos a serem integradas a pés e ALLFT-LEFT direciona a formação dos
pés métricos para a borda esquerda dos vocábulos. Desse modo, tais
restrições atuam em conjunto no sentido de estabelecer um padrão prosódico
abstrato, adequado para a aplicação do acento primário em não verbos.
Um outro aspecto, também relacionado à materialidade da língua, está
relacionado com os candidatos a output propostos em nossos tableaux. Parece
lógico que um vocábulo dissílabo apresente somente duas possibilidades para
a colocação do acento, na primeira ou na última sílaba. No entanto, podemos
observar que diversos candidatos são apresentados como possíveis outputs,
isso porque, como já explicamos, agregam-se às condições de materialidade
lingüística, condições abstratas referentes à estrutura prosódica dos termos
envolvidos. Por isso mesmo, uma mesma saída fonética (realização acentual)
esteve presente em diferentes formas candidatas propostas, já que procuramos
dar conta tanto dos padrões rítmicos envolvidos quanto da natureza estrutural
das sílabas portadoras de acento.
126
5.5. Resumo do capítulo
Apresentamos, neste capítulo, a análise de dados para a aplicação do
acento lexical primário em não-verbos na modalidade clássica do latim,
fundamentando-nos na Teoria da Otimalidade. Selecionamos os exemplos com
vistas a verificar a pertinência da hierarquia de restrições inicialmente proposta.
Desse modo, nos tableaux (16) e (20) apresentamos, respectivamente, um
dissílabo e um trissílabo com a penúltima sílaba leve, e nos tableaux (17), (18)
e (19), termos com penúltima sílaba pesada. Ampliamos a análise checando o
comportamento de formas trissilábicas com diferentes arranjos de sílabas leves
e pesadas. Tal fato se deve à sensibilidade ao peso da penúltima sílaba para a
aplicação do acento primário na referida língua.
Verificamos que a hierarquia de restrições mostrou-se pertinente,
havendo a emergência de um output ótimo adequado em todas as análises
realizadas. No capítulo seguinte, analisaremos o latim vulgar e, com isso,
traçaremos um painel comparativo entre as modalidades clássica e vulgar da
língua no que se refere às modificações no tratamento do acento primário.
Evidenciaremos, dessa forma, as estratégias utilizadas pela TO para dar conta
da mudança na aplicação do acento latino.
127
6. O ACENTO NO LATIM VULGAR
Como já vimos, o latim vulgar, ou sermo vulgaris, era a língua falada nas
camadas mais populares de Roma e em suas cercanias. Era considerado um
latim rústico, em oposição ao latim utilizado pelas camadas mais altas da
sociedade urbana, que falavam o sermo urbanus.
Por representar o latim falado pelo povo, há poucos registros escritos do
mesmo. Coutinho (2005) nos fala sobre a precariedade de fontes do latim
vulgar e destaca que essas são representadas (a) pelo trabalho de gramáticos,
ao corrigirem formas errôneas; (b) pelas comédias, em que se representavam
personagens do povo; (c) pelas inscrições de artistas; (d) por falhas de copistas
e (e) por “erros” ocasionais dos grandes escritores latinos.
O estudo do acento no latim vulgar traz consigo essa precariedade de
fontes primárias para obtenção do corpus. Em nosso trabalho, utilizamos o
Appendix Probi, que representa uma coletânea de dados do tipo “diga isto, não
aquilo” ou “use isto, não aquilo”, em uma clara referência ao uso variado que se
fazia de formas do latim clássico, como vemos nas seguintes glosas:
1. porphireticum marmor non purpureticum marmur.
2. tolonium non toloneum.
3. speculum non speclum
4. masculus non masclus.
5. vetulus non veclus.
128
Se o registro dessa variedade já é de difícil obtenção, mais difícil ainda
se torna a análise da posição e da natureza do acento. Por esse motivo,
buscamos, além do estudo da referida fonte primária, outros autores –
gramáticos e estudiosos da língua latina – que nos pudessem fornecer o maior
número possível de dados, servindo-nos, assim, de fontes secundárias. Dentre
eles, destacamos Faria (1970) e Maurer Jr. (1959), que nos apresentam
variada gama de exemplos, além de citações diretas de gramáticos e
estudiosos latinos sobre o tema em questão, que igualmente utilizamos ao
longo de nossa pesquisa.
Vale comentar o trabalho desenvolvido por Maurer Jr. (1959), baseado
não só no estudo e coleta de dados de fontes primárias, mas também, e
sobretudo, no método comparativo de análise, em que os dados de fontes
primárias foram confrontados com os dados das línguas românicas (Romeno,
Sardo, Português e Espanhol, dentre outras). A respeito da importância do
Appendix Probi como fonte primária de coleta de dados e informações sobre o
latim vulgar, o autor afirma que “é a impressionante concordância da lista de
erros do Appendix Probi com as inovações postuladas pelo conjunto das
línguas românicas que nos dá a certeza de termos nesse glossário uma das
mais preciosas fontes do latim vulgar.” (MAURER JR., 1959. p. 6)
No presente estudo, consideramos o latim vulgar como uma variedade
da língua que provavelmente sofreu forte influência do latim clássico no que se
refere à aplicação do acento primário. Apresentamos como evidência de tal
influência dois fatores que julgamos relevantes: o primeiro é o fato de todos os
gramáticos consultados afirmarem que os vocábulos no latim vulgar são
portadores do acento na mesma posição que os vocábulos no latino clássico.
129
Como há fortes evidências de que o latim arcaico apresentava uma acentuação
fixa na primeira sílaba dos vocábulos, essa modificação no posicionamento do
acento primário nos termos do latim vulgar não poderia ser facilmente
explicada pela sua origem no latim arcaico, modalidade também falada pela
população romana em geral e que antecedeu à formação tanto do latim vulgar
quanto do latim clássico.
O segundo fato relevante consiste nas próprias informações contidas no
Appendix Probi, que nos fornecem um padrão de correção entre formas
consideradas corretas ou adequadas e formas incorretas ou que deveriam ser
evitadas. A análise das glosas nos permite verificar que os termos vulgares
apresentam modificações e simplificações de formas oriundas do latim
clássico, além de tentar estabelecer parâmetros de manutenção do status
“original” da língua latina culta.
Em termos de mudança na aplicação do acento primário, nosso modelo
teórico, a Teoria da Otimalidade, baseia-se na análise de duas sincronias
presentes em momentos diferentes da evolução da língua latina e é dessa
forma que compreendemos e analisamos os dados de ambas as variedades.
Isso, contudo, não impede nem contradiz o fato de que essas se
desenvolveram ao mesmo tempo, a partir do século III a.C.
O acento no latim vulgar é reconhecidamente intensivo. Ilari (2006: 74)
afirma que o acento de intensidade do latim vulgar cai normalmente na mesma
sílaba que era portadora do acento lexical no latim clássico, como já
apresentamos. Destacaremos, a seguir, as três principais diferenças de
acentuação entre o latim vulgar e o latim clássico ( cf. MASSINI-CAGLIARI,
1999. pp.109-111).
130
O acento em palavras como íntegrum, ténebras, cólubra e álacrem, em
que a vogal da penúltima sílaba é seguida de uma consoante oclusiva mais R,
vai deslocar-se da antepenúltima para a penúltima sílaba. Dessa forma, temos
intégrum, tenébras, colóbra e alécrem no latim vulgar. Segundo Ilari (2006,
p.74), a vogal inicial encontra-se em posição fraca (positio debilis) e originará,
no português contemporâneo, intéiro, trévas, cóbra e alégre.
Faria (1970, 136) afirma que na poesia do latim clássico, quando havia
uma seqüência de oclusiva + R, a vogal que a precedia poderia ser longa ou
breve. Sendo assim, poderíamos considerar, já no latim clássico, elementos
referenciais que justificariam a acentuação desses termos no latim vulgar, uma
vez que poderíamos, conforme o caso, acentuar cólubra ou colúbra.
Outra diferença está no fato de que o i e e breves na primeira posição de
hiato não mais são acentuados no latim vulgar, passando o acento para a vogal
seguinte. Dessa maneira, temos, para o latim clássico, mulíerem, lintéolum e
filíolus e, para o vulgar, nesta ordem, muliérem, linteólum e filiólus,
correspondendo, no português contemporâneo, respectivamente, mulhér,
lencínho e filhínho.
Essa tendência do latim vulgar em valorizar as palavras com acento
paroxítono encontra várias evidências no Appedix Probi. Verificamos, nas
glosas abaixo, a tendência de queda de segmentos na sílaba postônica, com a
manutenção do acento na posição já existente no latim clássico:
131
(01)
3. speculum non speclum
4. masculus non masclus.
5. vetulus non veclus.
6. vitulus non viclus.
7. vernaculus non vernaclus.
8. articulus non articlus.
9. baculus non vaclus.
10. angulus non anglus.
11. iugulus non iuglus.
26. musiuum non museum.
53. calida non calda.
54. frigida non fricda.
111. oculus non oclus.
130. tabula non tabla.
142. stabulum non stablum.
A terceira e última diferença está relacionada a palavras compostas. No
latim clássico, os compostos eram acentuados seguindo a mesma regra para
palavras simples, podendo cair em qualquer um dos elementos que
compunham a palavra. Já no latim vulgar, quando há a consciência da
composição, o acento recai sobre a segunda forma do composto, havendo
mudança na posição do acento. Quando não há consciência da composição do
vocábulo, a regra aplicada continua a mesma do latim clássico. Dessa maneira,
132
temos cóntinet e récipit no latim clássico e contínet e recípit no latim vulgar. No
português contemporâneo, temos as formas verbais contém e recebe.
Segundo Maurer Jr. (1959), a composição não era um recurso usual no
latim. Esse autor afirma que os numerosos casos de compostos na obra de
alguns autores latinos devem-se à imitação do grego ou à utilização como
recurso cômico. Os compostos que efetivamente existiam no latim são
originários de antigos processos de composição de origem indo-européia e
assumem valor artificial no latim do período clássico.
Temos, como exemplos de compostos representativos de justaposições
sintáticas obsoletas, tibi-cen, parti-ceps, coni-ger, fructi-fer, nau-fragus, homi-
cida. Há, ainda, outros compostos formados pela cristalização lenta de
expressões sintáticas regulares do latim, tais como res publica, juris consultus,
legis lator, plebi-scitum, veri-similis, acquae ductus.
Ainda segundo Maurer Jr. (1959, 240), o vocabulário vulgar mostra que
“o latim do povo não conservou nenhum resquício da composição por
justaposição direta de dois semantemas, conquanto o latim literário ainda o
fizesse até certo ponto”. Além disso, ressalta que os compostos que poderiam
ter sua origem no latim vulgar são duvidosos. O que há, em verdade, são
expressões normais da língua que acabaram por petrificar-se em um todo
léxico, como sanguisuga e ossifraga, de cujos elementos componentes já não
se tinha mais consciência. Destacamos, ainda, que os casos de prefixação do
latim vulgar ocorriam com número limitado de prefixos ligando-se a verbos.
Maurer Jr.(1959) afirma ser insignificante a documentação referente a prefixos
formadores de termos nominais.
133
O fenômeno de recomposição, que no latim vulgar era usual em termos
verbais, ocorria rarissimamente em termos nominais. Isso se explica pelo fato
de a prefixação nominal não ser produtiva na língua falada, além da existência
de muito poucos compostos nominais no latim vulgar. Como vestígio desse tipo
de recomposição, temos *dimedius por dimidius (op cit, 247)
Tais considerações são relevantes, uma vez que os termos compostos
nominais no latim vulgar não eram reconhecidos como tais e, portanto, nos
levam a considerá-los proparoxítonos ou paroxítonos, como já ocorria no latim
clássico.
No que se refere aos empréstimos, Maurer Jr. (1959) afirma que o latim
vulgar tende a conservar a acentuação da língua de origem. Destaca, ainda,
que nos empréstimos gregos, quando um termo entrava pela via erudita,
literária, utilizava-se a acentuação culta, respeitando-se o peso silábico da
penúltima sílaba, independentemente da acentuação grega. Dessa maneira,
palavras como Sócrates e Parábola eram originariamente acentuadas na
penúltima e na última sílaba na língua grega, respectivamente. A esse respeito,
Faria (1970) cita Diomedes (Keil 1, 433, 4): “sane graeca uerba graecis
accentibus efferimus, si isdem litteris pronuntiauerimus”27. Já no que se refere
aos termos gregos que tiveram sua entrada no latim vulgar por via popular,
conserva-se a acentuação original dos vocábulos.
27 “Acentuaremos à grega as palavras gregas se as pronunciarmos à grega”.
134
As observações anteriores nos levam a duas conclusões relevantes:
a) O acento lexical em palavras compostas no latim clássico
deve ser considerado como informação já presente no
nível subjacente da língua, uma vez que não mais havia
consciência da composição no latim vulgar e a
acentuação desses termos permaneceu a mesma do latim
clássico, ou seja, as tendências mais gerais do latim
vulgar não se manifestavam sobre esses termos;
b) Da mesma forma, o acento vai atuar nos termos oriundos
de empréstimos, que também mantiveram a acentuação
original, exceção feita aos casos em que a palavra se
latinizava na pronúncia.
Outra questão polêmica em relação ao latim vulgar está na existência de
oxítonas. Nunes (1975) apresenta os seguintes termos que se enquadrariam
nesse grupo:
(02) illíc, illúc, illác, istíc, istínc, adhúc, tantón, audín, addúc, addíc, nostrás,
cuiás, audít (perf. de audire), fumát (perf. de fumare)
Todos esses termos receberiam o acento na última sílaba. Isso pode ser
explicado por todas terem sido originadas de paroxítonas que sofreram
processos segmentais. Um grupo sofreu a queda da vogal [e] posterior a [k] e
[n] em sílaba final e outro sofreu a queda da sílaba ou vogal anteriores a [s] e [t]
135
finais. Dessa forma, teríamos o seguinte quadro comparativo entre latim
clássico e vulgar:
(03)
Latim Vulgar Latim Clássico
Illíc Illice
Illúc Illuce
Illác Illace
Istíc Istice
Istínc Istince
Adhúc Adhuce
Tantón Tantone
Audín Audisne
Addúc Adduce
Addíc Addice
Nostrás Nostratis
Cuiás Cuiatis
Audít Audiuit
Fumát Fumauit
Tais dados nos remetem à possibilidade da existência, já no latim vulgar,
de vocábulos oxítonos. Embora tais formações sejam advérbios ou formas
verbais, não contemplados em nossa análise, achamos oportuno apresentá-
las, uma vez que as línguas românicas, como o português, têm vocábulos
136
oxítonos constituídos por sílaba final pesada. Isso nos faz supor a possibilidade
de o latim vulgar já apresentar palavras oxítonas em sua constituição, já que os
estudos em lingüística comparada nos informam da origem de nossa língua
nas formas do acusativo do latim vulgar.
Dos casos apresentados em (02), percebemos que o acento tenderá a
recair sobre o vocábulo cuja consoante final seja uma coronal [t, s, n, l, r] ou [k].
Como vimos, as oxítonas em latim são, segundo as informações existentes,
extremamente raras e somente ocorrem em casos específicos devido: (a) à
apócope da vogal média [e] ou (b) à síncope de sílabas, ambas ocorrendo em
contextos específicos.
Em nossa análise otimalista, consideraremos duas possibilidades em
relação às palavras oxítonas: uma em que se considera a existência de tais
termos, uma vez que as línguas românicas também as apresentam, e outra em
que tais vocábulos ainda não existiam no latim vulgar.
6.1. Análise do Latim Vulgar segundo a Teoria Métrica
Magalhães (2004) apresenta uma análise métrica do latim vulgar,
baseado em Hayes (1995), em que não considera as palavras proparoxítonas
existentes na língua, como o fez também Quednau (2000). Tal atitude está em
consonância com nossa posição teórica, uma vez que consideramos os
vocábulos proparoxítonos oriundos de empréstimos ou formações cristalizadas
no léxico, como esclarecido anteriormente, sendo, portanto, informação
fornecida em nível subjacente.
137
Dessa maneira, as duas últimas sílabas dos vocábulos são
consideradas, mais especificamente, o domínio de aplicação do acento no latim
vulgar. As estruturas existentes, considerando-se os processos já evidenciados
que buscam manter o acento no domínio da penúltima sílaba, são as
seguintes28:
(04) a) (C)V. (C)CV: colóbra, pariéte, catédra, linteólu, bányu, pálya
b) (C)(C)V. (C)CVC: muliérem, spéclum, vernáclus, tenébras
A partir da análise de tais estruturas silábicas, Magalhães (2004)
apresenta o troqueu como o pé básico do latim vulgar, não importando se esse
é moraico ou silábico. Sob a ótica do troqueu moraico, o autor apresenta a
seguinte regra para aplicação do acento:
(05) “Construir um pé não-iterativo da direita para a esquerda, valendo-se do
instrumento da extrametricalidade para a consoante final das palavras em (b)”
(MAGALHÃES, op. cit.:168).
28 Os exemplos em (04) foram adaptados da representação proposta em Magalhães (2004).
138
Em (06), exemplificamos a aplicação de tal regra:
(06) ( x .) ( x .) ( x .) ( x .) (x .)
a) co.ló.bra pa.ri.é.te ca.té.dra lin.te.ó.lu bá.nyu
( x .) ( x .) ( x .) ( x .)
b) mu.li.é.re<m> spé.clu<m> ver.ná.clu<s> te.né.bra<s>
Ao considerar o troqueu silábico na análise, a regra para aplicação do
acento passa a ser a seguinte, ainda na proposta de Magalhães (2004: 168):
(07) “Construir um pé não-iterativo da direita para a esquerda, sem qualquer
referência à extrametricalidade”.
Os exemplos são os seguintes:
(08) ( x .) ( x .) ( x .) ( x .) (x .)
a) co.ló.bra pa.ri.é.te ca.té.dra lin.te.ó.lu bá.nyu
( x .) ( x .) ( x .) ( x .)
b) mu.li.é.rem spé.clum ver.ná.clus te.né.bras
139
6.2. Análise do Acento no Latim Vulgar segundo a Teoria da Otimalidade
Certamente a determinação da posição da sílaba tônica em latim vulgar
difere de sua aplicação em latim clássico, como observamos pelas diferentes
características referenciadas até o momento. A partir das informações
coletadas e analisadas, propomos basicamente as mesmas restrições atuantes
no acento latino clássico e, sempre que necessário, remeteremos nossas
observações à análise otimalista apresentada no capítulo anterior. As seguintes
restrições foram, então, consideradas:
(a) ROOTING – todas as palavras de conteúdo lexical recebem acento29.
(b) STRESSFAITHFULNESS – (FIDELIDADE ACENTUAL) – todo acento
proveniente do input deve ser conservado na mesma posição no output.
A restrição de fidelidade STRESSFAITH, altamente ranqueada na
hierarquia, possibilita dar conta das eventuais proparoxítonas no latim vulgar
que, como demonstramos, são oriundas de empréstimos ou de cristalizações
lexicais que já trazem, como informação subjacente, o acento na antepenúltima
sílaba. Violam fatalmente STRESSFAITH as palavras que contenham a
informação acentual no nível subjacente não preservada na representação de
29 Da mesma forma que em nossa análise anterior, ROOTING estará presente no topo de nossa hierarquia por atuar no sentido de que todas as palavras de conteúdo lexical apresentem acento primário. Esse padrão é categórico no latim, todas as formações lexicais e gramaticais a respeitam e, com isso, não a ranquearemos em nossos tableaux, embora saibamos de sua presença e atuação.
140
superfície correspondente30. Como também é um caso categórico e restrito às
proparoxítonas, apresentaremos o efeito dessa restrição no tableau a seguir31
e a retiraremos das análises seguintes.
(09) lacrima – lágrima
Lacrima STRESSFAITH
☞ a. {lacrima}
b. {lacrima} *!
c. {lacrima} *!
O Tableau em (09) demonstra a análise de um termo que traz o acento
como informação lexical. Os candidatos b e c, por não respeitarem a condição
de manutenção da relação de identidade acentual entre input e output, violam
fatalmente o restritor STRESSFAITH e são eliminados da disputa, emergindo o
candidato a como ótimo. Esse mantém a informação de acento na
antepenúltima sílaba enquanto o candidato b porta acento na penúltima sílaba
e o candidato c, na última.
30 A restrição de fidelidade acentual, STRESSFAITHFULLNES (FID-AC), mostra-se relevante em vários estudos sobre o português, como o de Gonçalves (2004), sobre a formação do plural, o de Mendes (2006), sobre a adaptação de empréstimos do inglês, e o de Magalhães (2004), sobre o acento. 31 As mesmas convenções adotadas no capítulo 4 serão utilizadas para todos os tableaux.
141
A fim de manter nossa análise em consonância com o provável padrão
silábico utilizado na época em que o latim vulgar era língua vernácula,
adotamos as modificações sugeridas pelo Appendix Probi, além de considerar
os avanços e as sugestões obtidos dos estudos em lingüística histórica e
comparada, principalmente de autores como Coutinho (2005), Nunes (1975),
Faria (1970) e Maurer Jr. (1959), a respeito do tema em questão.
A primeira alteração feita na presente análise, e que considera tais
contribuições, se refere à perda da quantidade vocálica. O latim vulgar não
apresenta mais distinção entre vogais longas e breves e, conseqüentemente,
essas não mais interferem no peso silábico. A informação da quantidade
vocálica, que anteriormente era dada em nível subjacente, não será mais
computada no input, visto que deixou de existir32.
Uma das mais relevantes modificações que percebemos nos exemplos
do Appendix Probi, e já evidenciada em (01), é o apagamento de elementos no
interior dos vocábulos. Desse fato, depreendemos que o acento continua a
recair sobre a mesma sílaba, porém em posição penúltima no vocábulo.
Verificamos, dessa forma, a clara tendência de se promover o padrão
paroxítono, havendo, como conseqüência, algumas modificações estruturais
(silábicas) que emergem na representação de superfície – no caso, o
apagamento das vogais postônicas, como verificamos nos diversos exemplos
em (10):
32 Em consonância com a abordagem que sustenta a análise (Hutton, 1996; Holt, 1997), a mudança no quadro vocálico, implementada pela perda da quantidade, leva a uma reestruturação do input, que não contém qualquer referência quanto à quantidade.
142
(10)
3. speculum non speclum
4. masculus non masclus.
7. vernaculus non vernaclus.
8. articulus non articlus.
10. angulus non anglus.
11. iugulus non iuglus.
53. calida non calda.
111. oculus non oclus.
130. tabula non tabla.
142. stabulum non stablum.
Nos exemplos em (10), verificamos que, a fim de manter o padrão
rítmico trocaico margeado à direita da palavra prosódica e, com isso, gerar
formas paroxítonas na língua, o latim vulgar “optou” por formar sílabas mais
complexas. Vemos que em speculum non speclum, ocorre a síncope da vogal
<u> postônica e a conseqüente formação de um padrão silábico mais complexo
no vocábulo: de <lum> para <clum>, houve a transformação de uma sílaba
CVC em CCVC. Com a síncope da vogal precedente, a consoante /k/ é
anexada à sílaba seguinte, tornando-a mais complexa pela ramificação do seu
onset.
Mais uma evidência que milita a favor dessa idéia encontra-se na glosa
53, calida non calda, em que também verificamos a síncope da vogal postônica
143
<i>. Nesse caso, ao contrário, a consoante que anteriormente ocupava a
posição de onset passa a ocupar a posição de coda, em função da queda do
núcleo ao qual estava vinculada, resultando em <cal>.
Em termos otimalistas, verificamos que, quando a língua passa a
valorizar de modo mais ostensivo o estabelecimento de um ritmo trocaico,
torna-se necessário violar restrições de fidelidade que impedem apagamentos
entre as informações de input e output. Melhor dizendo, o preço pago pela
língua para otimizar a estruturação dos pés métricos, e o conseqüente respeito
às restrições rítmicas TROCHEE e PARSE, é a formação de sílabas mais
marcadas, com a conseqüente violação da restrição anti-apagamento MAX-IO.
Evidenciamos, nesse momento, um conflito entre as restrições TROCHEE e
PARSE com a restrição de Fidelidade MAX-IO.
No latim clássico, as restrições de fidelidade estavam altamente
hierarquizadas, isso sendo verificado pelo total respeito às informações
segmentais estabelecidas nos inputs. Com a valorização do parseamento em
pés troqueus moraicos e com a conseqüente priorização de vocábulos
paroxítonos, as restrições métricas passam a dominar a restrição de fidelidade
MAX-IO e, com isso, apagamentos são permitidos na língua, tornando sílabas
mais complexas no latim vulgar.
144
Não é objetivo da presente pesquisa analisar a interação entre as
restrições silábicas e as métricas e, dessa maneira, não iremos detalhar o
fenômeno da síncope – nem outros fenômenos, como a ditongação e a
apócope – no latim vulgar, em termos de restrições33. Focalizaremos nossa
análise somente nas restrições relevantes para a aplicação do acento,
considerando, no entanto, as modificações na estrutura silábica das formações.
Mais especificamente, quando necessário para a seleção do candidato ótimo,
apenas mencionaremos os restritores silábicos envolvidos na aplicação do
acento primário.
Disso resulta que a restrição TROCHEE continua sendo a mais
altamente cotada na hierarquia, a fim de garantir o padrão trocaico e a
acentuação paroxítona. Logicamente, essa atua em consonância com outras
restrições, como ALLFT-RIGHT e PARSE-σ, como veremos adiante. No latim
clássico, constatamos a necessária atuação de ALLFT-LEFT para dar conta da
seleção adequada do vencedor para formações de input trissilábicas com
sílabas leves. Tal restrição era, devido ao seu caráter restrito de atuação,
ranqueada abaixo de todas as demais. O que ocorre, no latim vulgar, é a
demoção de mais esse restritor e a promoção da restrição em espelho ALLFT-
RIGHT na hierarquia.
33 Obviamente, o apagamento da vogal, além de levar a uma violação de MAX e tornar o output infiel ao input, faz com que outras restrições de marcação também sejam violadas. Tal é o caso de *COMPLEX, que proíbe complexidade nas margens de sílaba, e NO-CODA, que exige sílabas abertas. Na língua em questão, satisfazer as exigências métricas implica violar as silábicas.
145
Podemos perceber que a restrição TROCHEE reflete a necessidade do
latim em formar pés troqueus moraicos, o que, juntamente com PARSE, leva
as sílabas a serem escandidas e integradas a pés; entretanto, há, ainda, a
necessidade de se estabelecer a posição do pé, de modo que emerjam
formações paroxítonas, não-marcadas e mais gerais na língua. Essa
necessidade de priorizar o padrão paroxítono é plenamente satisfeita pelo
ranking TROCHEE >> ALLFT-RIGHT >> PARSE-σ.
Antes de iniciarmos o estudo a partir de um tableau, cabe destacar que,
na presente pesquisa, não consideramos a contagem de mora de consoantes
finais portadoras de informação morfológica, uma vez que, como registram os
gramáticos históricos (MAURER JR., 1959; COUTINHO, 2005), as consoantes
finais, no latim vulgar, eram débeis, tendendo ao apagamento. A favor desse
posicionamento, está o fato de que elementos finais que portam informação
morfológica tendem a não ser considerados moraicos em português, como
acontece com o <s> formador de plural. No próprio Appendix Probi, aparecem
diversos registros da queda de consoantes finais, como podemos verificar em
(11) abaixo:
(11)
31. sobrius non suber.
32. figulus non figl.
34. lanius non laneo.
43. carcer non car.
127. botruus non butro.
133. fax non facla.
146
134. vico capitis Africae non vico caput Africae.
136. vico castrorum non vico castrae.
143. triclinium non triclinu.
163. passer non passa.
169. nurus non nura.
170. socrus non socra.
171. neptis non nepticla.
172. anus non anucla.
217. passim non passi.
219. numquam non numqua.
223. pridem non pride.
224. olim non oli.
227. idem non ide.
Ainda em relação ao tema, destacamos o seguinte trecho de Maurer Jr.
(1959:85), no qual o autor trata da redução dos casos no latim vulgar e da
desagregação da flexão nominal nessa modalidade:
“A língua vulgar perdeu, em grande parte, o sistema antigo, iniciando um
processo de renovação estrutural profunda da língua, que teve como resultado final
– isto já no período romance – o desaparecimento completo da flexão nominal
latina, com exceção de alguns vestígios insignificantes no rumeno. (...)
O emprego das preposições se tornava uma necessidade quando a
confusão das desinências, pela perda das consoantes finais e pelo
enfraquecimento do timbre vocálico, trazia ainda maior obscuridade à frase. De
fato, muitas formas casuais apresentavam já desde época antiga o incoveniente de
serem inteiramente iguais entre si, apesar das funções diferentes que exerciam,
(...)”
147
Percebemos, por meio dessas evidências, que as formações em latim
vulgar já apresentavam importantes modificações estruturais. Nesse último
caso, o fato para nós relevante é a provável perda de status das consoantes
finais, claramente definida na citação.
Finalmente, um outro fato que corrobora nossa posição em relação à
consoantes finais com status morfológico é a análise métrica apresentada em
6.1., que as considera extramétricas, sendo, pois, invisíveis ao acento. Feitas
essas observações, passemos à análise do tableau em (12), a seguir.
O primeiro caso estudado refere-se às formações em que ocorre a
síncope da vogal postônica, fenômeno recorrente no latim vulgar, como já
demonstramos. A força das restrições métricas fica evidente e verificaremos,
tanto em (12) quanto em (13), que o candidato ótimo já é definido ao passar
pela avaliação das duas primeiras restrições: TROCHEE E ALLFT-RIGHT.
148
(12) Polissílabo que passa a trissílabo por síncope
Vernaculus – vernáculo
Vernaculu[s]34
TROCHEE ALLFT - RIGHT PARSE-σ
☞a. {ver(naclu)} *
b. {(ver)(nacu)lu} *!* *
c. {ver(nacu)lu} *! **
d. {(ver)na(culu)} *! *
e. {(ver)(naclu)} *!
f. {(verna)clu} *! * *
Em (12), percebemos a quase imediata seleção do candidato a devido à
violação por parte dos candidatos b, c, d e e
à restrição que exige que todo pé
esteja alinhado na borda direita da palavra prosódica. Já o candidato f viola
TROCHEE por formar um pé com proeminência à direita. Esse tipo de
resultado nos mostra que, para o latim vulgar, era mais importante garantir a
formação de um pé trocaico na borda direita da palavra do que ter todas as
sílabas escandidas em pés, mesmo que esses sejam trocaicos e respeitem a
restrição em posição mais alta na hierarquia. Notamos que o candidato e
apresenta todas as sílabas escandidas em pés, o que pode ser considerado
ideal em termos lingüísticos, porém, no latim vulgar, a necessidade de
34 Os colchetes indicam o não reconhecimento do segmento como relevante para a aplicação do acento do latim vulgar.
149
manutenção do padrão paroxítono faz com que sílabas possam não ser
integradas a pés. Isso mostra que, da mesma forma que o latim clássico, o
vulgar não exige um parseamento exaustivo das sílabas.
Em outras palavras, o candidato vencedor poderá ter sílabas não
integradas, desde que forme um pé troqueu moraico na borda direita da
palavra e, desse modo, suplante outros candidatos mais bem formados em
termos prosódicos, como vimos em (12) acima. No tableau seguinte,
apresentaremos mais um exemplo de formação oriunda de um processo de
síncope, sendo necessário, todavia, que alguns esclarecimentos sejam dados
em relação à constituição do pé trocaico que adotamos.
Considerando que o latim vulgar formava troqueus moraicos a partir da
borda direita da palavra, situação essa favorecida pela demoção de ALLFOOT-
LEFT e *EDGEMOST-RIGHT e pela atuação de ALLFOOT-RIGHT, adotamos,
em nossa análise, a possibilidade de troqueus apresentarem uma mora
adicional localizada na silaba proeminente, quando em posição não-final. Tal
situação não é um problema porque essa formação estaria em conformidade
com uma restrição do tipo WBP (Weight By Position), que considera a
relevância das duas moras numa única silaba apenas quando essa está
posicionada na borda direita da palavra. Caso haja uma sílaba final leve não
integrada a um pé, essa pode ser incorporada à silaba antecedente, mesmo
que tal possua duas moras.
150
Esse tipo de interpretação já foi feito para os dados do português por
Collischon (2000:303, 304 e 2002:174), que considera a existência de um pé
troqueu trimoraico em palavras como conta, caspa, malta, etc. Como a silaba
final é leve e os pés têm de ser formados à direita, a melhor estratégia para
satisfazer demandas como TROCHEE e PARSE é incorporar mais uma mora
ao troqueu. Com isso, temos masclu[m], formando um único pé métrico
troqueu. Tal fato pode ser interpretado como uma violação a uma restrição do
tipo FOOTBIN, que estabelece que todo pé deve ser binário em algum nível de
análise, em favor da formação do pé troqueu na borda direita da palavra.
(13) Trissílabo que passa a dissílabo por síncope
Masculum - másculo
Masculu[m]
TROCHEE ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a.{(masclu)}
b. {(mas)(clu)} *! *
c. {(masclu)} *!
d. {(mas)(culu)} *!
e.(mas)(culu) *!
f.( mascu)lu *! * *
Também nesse tableau, vemos a atuação das restrições responsáveis
pela marcação em termos métricos. O candidato b forma um pé monomoraico
e monossilábico; c e f formam um pé iambo, com proeminência à direita, e são,
portanto, eliminados por TROCHEE. Os candidatos d e e são eliminados ao
151
infringirem fatalmente ALLFT-RIGHT, uma vez que apresentam pés não
alinhados com a borda direita da palavra prosódica. Vence, desse modo, o
candidato a, que, nesse caso, apresenta todas as sílabas escandidas em pés,
não violando, portanto, nenhuma restrição da hierarquia.
O último caso de vocábulos formados por síncope é aquele em que o
elemento consonantal remanescente se adjunge à coda da sílaba anterior. É o
caso das seguintes glosas do Appendix Probi: calida > calda; viride > virde e
frigida > fricda e que demonstramos em (14) abaixo:
(14) Trissílabo que passa a dissílabo por síncope
calida - quente
Calida TROCHEE ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞ a. {(calda)}
b. {ca(lida)} *!
c. {(cali)da} *! * *
d. {(cali)da} *! *
e. { (calda)} *!
f.{(cal)da} *! *
Diferentemente dos casos anteriores, a decisão sobre o candidato ótimo
recai sobre PARSE. Tanto o candidato a quanto o candidato b apresentam as
condições ideais de formação métrica e boa estrutura silábica que permitem a
aplicação do acento na penúltima silaba. O candidato a vence a disputa por
apresentar todas as sílabas integradas a um pé trocaico e, com isso, não viola
nenhum restritor. O candidato c viola todas as restrições, uma vez que
152
apresenta um pé iambo não alinhado com a borda direita da palavra e possui
uma sílaba desgarrada, ou seja, não integrada a um pé métrico. Já d e f,
embora formem pés canônicos, violam uma vez as restrições ALLFT-RIGHT e
PARSE por não integrarem a última silaba ao pé e, conseqüentemente, não o
deixarem alinhado à direita da palavra. Finalmente, o candidato e viola
TROCHEE por formar um pé iambo.
Há, ainda, um outra estratégia de que dispõe a língua para promover o
padrão paroxítono como não-marcado: é o caso dos hiatos que passam a
ditongos em um processo denominado ditongação. Listamos, em (15), alguns
exemplos retirados do Appendix:
(15)
55. vinea non vinia.
63. cavea non cavia.
72. lancea non lania.
80. solea non solia.
81. calceus non calcius.
117. tinea non [tinia].
131. puella non poella.
141. faseolus non fasiolus
157. linteum non lintium.
153
Em tais exemplos, supomos, com Rodrigues (2007), que a vogal /e/
passa a glide /i/, principalmente em início de hiato, formando ditongos, que
tendem a regularizar o acento proparoxítono clássico para o paroxítono vulgar.
Em termos métricos, consideraremos que o glide preenche uma posição no
onset da sílaba, tornando-o complexo, mas não conferindo peso à mesma. Em
(16), veremos a atuação das restrições para esses casos:
(16) Trissílabo que passa a dissílabo por ditongação
Solea – sandália
Solea TROCHEE ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a. {(solya)}
b. {(so)(lea)} *! *
c. {(sole)a} *! *
d. {(sole)a} *! * *
e. {(solya)} *!
f. {so(lea)} *!
Nesse tipo de vocábulo, verificamos que, a fim de satisfazer as
demandas métricas, ocorre o alteamento da vogal média com a conseqüente
formação de um ditongo. É claro que essa alteração é fortemente proibida pelo
restritor de fidelidade IDENT (nesse caso, IDENT[mid] – que requer fidelidade
para as vogais médias do input), mas, como ressaltado, na variedade dita
vulgar, MARCAÇÃO >> FIDELIDADE.
154
Em (16), os candidatos b, d e e são eliminados por não formarem pé
troqueu. Já o candidato c respeita essa restrição, mas o pé não se encontra
alinhado com a borda direita da palavra e esse concorrente é eliminado por
ALLFT-RIGHT, que ainda viola PARSE por não ter uma sílaba integrada a pé.
A decisão fica entre os candidatos a e f, que, até o momento, respeitaram as
restrições mais altas da hierarquia. São, então, analisados pela restrição
PARSE e o candidato f é eliminado por possuir a primeira sílaba desgarrada,
emergindo o candidato a como vencedor da disputa. Passemos, agora, à
análise de um caso apontado pelos gramáticos históricos como de efetiva
mudança acentual: a diástole (deslocamento de acento para a sílaba seguinte).
Exemplifiquemos essa situação com integru.
(17) Proparoxítono que passa a paroxítono
Integru – inteiro
Integru
TROCHEE ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a. {in(tegru)} *
b. {(inte)gru} *! * *
c. {(in)(tegru))} *!
d. {(inte)gru)} *! * *
e. {(in(tegru)} *! *
f. {(in)(tegru)} *!
155
Esse é o último caso em que ocorre modificação na posição do acento
proparoxítono clássico para o paroxítono vulgar e que é amplamente atestado.
Como integru, temos também colubra e tenebra. Vemos, no tableau em (18), a
seleção do candidato a, que apresenta pé troqueu margeado à direita da
palavra prosódica, violando apenas PARSE por não apresentar a primeira
sílaba integrada a um pé. Os candidatos b, d e e infringem TROCHEE e são
eliminados da disputa; já c e f violam ALLFT-RIGHT e também são eliminados.
Uma vez estabelecido o papel dos principais restritores envolvidos na
aplicação do acento primário no latim vulgar, passaremos ao estudo dos
restritores que não possuem mais relevância e, por esse motivo, foram
demovidos da hierarquia proposta. Em seguida, apresentaremos
considerações acerca do Princípio do Contorno Obrigatório e da conseqüente
atuação do processo de apócope que, possivelmente, levou à existência de
formações oxítonas já no latim vulgar.
Iniciaremos com a restrição *EDGEMOST (σstr , L) que atua rejeitando
termos com acento na borda esquerda da palavra. No latim clássico, essa
restrição evitava a aplicação do acento na borda esquerda de termos
polissilábicos, fora, portanto, dos limites admitidos para a presença da sílaba
tônica e, ainda, impedia o deslocamento do acento paroxítono para
proparoxítono em trissílabos com antepenúltima e penúltima sílabas pesadas,
como exemplificado, no capítulo 5, com o termo Plūmbātŭm.
Isso não é mais relevante no latim vulgar, uma vez que os vocábulos
proparoxítonos, oriundos de empréstimos e cristalizações lexicais, apresentam
essa informação no nível subjacente. Desse modo, a restrição de fidelidade
acentual STRESSFAITH domina todas as demais restrições de marcação
156
consideradas até o momento. Já no que se refere às formações polissilábicas,
as restrições métricas atuarão no sentido de evitar que pés métricos sejam
formados na borda esquerda da palavra e, com isso, não há também contexto
para atuação de *EDGEMOST (σstr , L).
Como demonstramos no capítulo anterior, a sensibilidade ao peso da
penúltima sílaba dos vocábulos representava, no latim clássico, a condição
básica para a aplicação do acento. A perda da quantidade vocálica e a
insensibilidade ao peso da penúltima sílaba, no latim vulgar, resultam na
demoção da restrição WTS. Esse restritor, como já sabemos, requer que toda
sílaba pesada seja acentuada.
Em outras palavras, o que era considerado elemento essencial para o
estabelecimento da posição do acento primário deixa de existir, havendo uma
conseqüente perda de status da restrição atuante para a garantia daquela
condição. Como conseqüência, WTS, além de *EDGEMOST (σstr , L), passa a
atuar como “restrição oculta não-ranqueada”, nos termos de Hutton (1996), e
não participa mais das decisões para a escolha do candidato ótimo. Até o
momento, essa é nossa mais clara evidência do processo de mudança do
acento no latim vulgar. Passemos, então, à próxima restrição de marcação.
A restrição *EDGEMOST(σstr, R) era altamente relevante no latim
clássico devido à ausência categórica de termos oxítonos, sendo ranqueada
logo após TROCHEE e antecedendo WTS. Dessa maneira, essa ordem de
prioridades (a) dava visibilidade ao peso da penúltima sílaba, (b) favorecia a
formação do pé trocaico e (c) impedia que sílabas pesadas finais atraíssem o
acento. Com a possível emergência de oxítonas, criadas a partir da queda de
[e] final após segmento coronal (CUNHA & CARDOSO, 1969), essa restrição
157
perde toda sua força, uma vez que sílabas finais pesadas terão a mesma
visibilidade que sílabas finais leves. Assumimos, em nossa pesquisa, a
possibilidade de tais termos já existirem no latim vulgar e, portanto, propomos
uma hierarquia de restrições que possivelmente já atuava, formando não
somente termos paroxítonos, mas também oxítonos por intermédio da ação de
processos fonológicos como a apócope. Dessa maneira, consideramos a
existência de termos como capitane > capitan; sine > sin; fidele > fidel já no
laitm vulgar, como demonstraremos mais adiante.
Resta, ainda, ALLFOOT-LEFT que atuava em vocábulos trissilábicos
com sílabas leves, como lĕpĭdă, lĕpŏrĕ e cŏlŭbră. Esse restritor conduzia à
formação do pé métrico na borda esquerda da palavra, a fim de garantir o
acento proparoxítono nesses termos – uma vez que tais formas não
apresentam sílabas pesadas, a referência para aplicação do acento se perde,
havendo a necessidade de orientar o posicionamento da formação do pé
métrico, no caso, à esquerda da palavra prosódica. Também esse restritor é
demovido de sua posição na hierarquia, devido ao posicionamento do pé
métrico trocaico ser totalmente voltado para a margem direita da palavra no
latim vulgar.
Disso resulta que as restrições *EDGEMOST (σstr , L), *EDGEMOST
(σstr , R), ALLFOOT-LEFT e WTS foram demovidas com a perda total de sua
atuação na seleção de candidatos ótimos e, portanto, todas estão ranqueadas
na área mais abaixo da hierarquia. Como não há dominância entre tais
restritores devido à sua inatividade, delimitamos as suas fornteiras pelo
pontilhado, indicando que não há relação de dominância entre elas. Assim
sendo, continuam atuando no latim vulgar ROOTING, TROCHEE e PARSE-σ.
158
A fim de ilustrar essas informações, apresentamos, em (18), o
ranqueamento atualizado até o momento, incluindo todas as restrições, além
de um tableau completo, em (19):
(18) ROOTING >> STRESSFAITH >> TROCHEE >> ALLFOOT-RIGHT >>
PARSE-σ >> *EDGEMOST (σstr , L) = *EDGEMOST (σstr , R) = ALLFOOT-
LEFT = WTS
O sinal >> indica a relação de dominância entre as restrições, enquanto
o sinal = indica que as mesmas atuam em conjunto não apresentando
dominância entre si. Uma vez que a ordenação das restrições demovidas não é
mais relevante em nossa análise, optamos por representá-las como não-
dominadas, reforçando o fato de que não mais atuam na língua, conforme já
afirmamos anteriormente. Vejam-se as avaliações feitas no tableau a seguir:
(19)
Vernaculus – vernáculo
Vernaculu[s] ROOTING STRESS FAITH
TROCHEE ALLFT - RIGHT
PARSE-
σ
*EDGEMOST (σstr, L)
*EDGEMOST (σstr, R)
WTS ALLFT - LEFT
☞a. {ver(naclu)} * * *
b. {(ver)(nacu)lu} *!* * * *
c. {ver(nacu)lu} *! ** * *
d. {(ver)na(culu)} *! * * *
e. {(ver)(naclu)} *! * *
f. {(verna)(clu)} *! * * *
159
O tableau acima apresenta os mesmos candidatos avaliados em (12),
além de todas as restrições contidas em nossa hierarquia. Percebemos,
claramente, que as restrições finais não apresentam nenhuma relevância na
decisão do candidato vencedor, mesmo que sejam infringidas. Por outro lado,
as restrições mais altas na hierarquia – ROOTING, que regula a presença do
acento em todas as formações, e STRESSFAITH, que regula o acento apenas
nas proparoxítonas – não são infringidas em momento algum.
Passaremos, agora, a considerar a possibilidade da existência de termos
oxítonos, pelos motivos já expostos anteriormente, e verificaremos quais as
conseqüências dessa medida em nossa hierarquia.
(20) Paroxítono que passou a oxítono por apócope
Fidele – fiel.
Fidele
TROCHEE ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a.{fi(del)} *
b. {(fi)(del)} *! *
☞c. {fi(dele)} *
d. {(fide)le} *! * *
e. {(fide)le} *! *
f. {fide)(lê)} *! *
Observamos que a aplicação da hierarquia proposta não é eficiente
quando consideramos a presença de oxítonas no latim vulgar. Em (20), os
candidatos a e c emergem como ótimos, uma vez que os demais são
160
eliminados pelas duas restrições ranqueadas mais acima de PARSE. Ambas
as formações selecionadas apresentam pés trocaicos margeados à direita da
palavra prosódica, além de possuírem uma sílaba não integrada a pé métrico.
Podemos concluir, a partir dessa seleção, que, se o apagamento da
vogal media final não for permitido no latim vulgar para tais vocábulos, uma
restrição de fidelidade estará altamente hierarquizada, dominando as restrições
de marcação. Conseqüentemente, isso impedirá a emergência de candidatos
como a e b, em que ocorre o apagamento do segmento final. O resultado da
análise, portanto, seria a seleção do candidato ótimo c, adequado para essa
hipótese. Isso comprova que nossa hierarquia é funcional para todos os termos
da língua latina que se encontram em conformidade com o padrão não-
marcado paroxítono.
O nosso problema, entretanto, está na possibilidade de admitimos que
formações mais marcadas, como as oxítonas, possam emergir como ótimas,
competindo com as formas menos marcadas na língua. É isso, justamente, o
que está configurado em (20) e, nesse caso, teremos de lançar mão de alguma
restrição de marcação, altamente hierarquizada, que atue no sentido de
permitir deleções de segmentos específicos em posição final e que,
conseqüentemente, gere a emergência do padrão oxítono. Da mesma forma
que nos casos atestados de síncope, com a apócope, a sílaba acentuada
permanece a mesma do latim clássico, havendo, para esse último caso,
apenas uma modificação do padrão acentual de paroxítono para oxítono com a
ressilabificação em coda da lateral que flutua após o apagamento do núcleo ao
que se vinculava.
161
A partir das considerações teóricas já apresentadas e da análise dos
dados desde o latim clássico até o português atual, verificamos que o processo
de apócope se realiza no sentido de eliminar a contigüidade de elementos
adjacentes que possuem traços idênticos. Esse é um princípio inicialmente
utilizado pela Fonologia Autossegmental, denominado OCP (Obligatory
Countor Principle), Princípio do Contorno Obrigatório, para resolver problemas
tonais. Inicialmente proposto por Leben (1973), OCP proibia tons iguais
adjacentes na representação lexical dos morfemas, tendo sido, posteriormente,
estendido, por McCarthy (1986), a qualquer seqüência de dois segmentos ou
traços iguais e contíguos (cf. CAGLIARI, 2002:146 e MATZENAUER, 2005:66).
Esse princípio está representado na TO pela família de restrições denominada
OCP, que definimos da seguinte forma para o caso em questão:
OCPcoronal, +contínuo]PWd – segmentos adjacentes coronais e contínuos são
proibidos no final da palavra prosódica.
Tal restrição atuará no sentido de impedir que elementos com traços
[+coronal] e [+contínuo]35 sejam adjacentes na borda direita da palavra
prosódica. Estão incluídas, nesse caso, as sibilantes e as soantes alveolares
em contexto de vogal anterior, em termos como muliere > mulier, fine > fin,
fidele > fidel, cruce > cruz, etc. Passaremos, então, a analisar, nos tableaux em
(21), (22) e (23), a atuação de tal restritor em nossa hierarquia:
35 Os traços aqui utilizados, embora tenham sido motivados de abordagens ditas “clássicas”, são os encontrados no modelo de Geometria de Traços de Clements & Hume (1995).
162
(21) Trissílabo paroxítono que passa a dissílabo oxítono por apócope
Fidele – fiel.
Fidele
TROCHEE OCP ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a.{fi(del)} *
b. {(fi)(del)} *! *
c. {fi(dele)} *! *
d. {(fide)le} *! * * *
e. {(fide)le} *! * *
f. {fide)(le)} *! * *
Vemos, por (21), que a restrição OCP atua de modo decisivo na seleção
do candidato vencedor a, uma vez que o candidato oponente c infringiu OCP
por apresentar a soante alveolar [l] seguida da vogal anterior [e] em contexto
de final de palavra, tendo sido, portanto, eliminado da disputa. Testamos,
ainda, a formação polissilábica em (22) e obtivemos os seguintes resultados:
163
(22) Polissílabo paroxítono que passa a trissílabo oxítono por apócope
Capitane – capitão
Capitane
TROCHEE OCP ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a. {capi(tan)} **
b.{(capi)(tane)} *! * *
c.{(capi)(tan)} *!
d.{(capi)(tan)} *!
e. {(capi)(tane)} *! *
f.{(capi)(tan)} *! *
Verificamos em (22), que, da mesma forma que em todas as nossas
análises, o candidato vencedor é aquele que apresenta um pé à direita da
palavra, independentemente de haver a possibilidade de se formarem outros
pés trocaicos. Os candidatos b e f formam pés iâmbicos e são eliminados logo
no início da disputa por TROCHEE. OCP é violada por b, já eliminado, e por e,
de modo fatal. Continuam os candidatos a, c e d, sendo que a restrição ALLFT-
RIGHT elimina c e d por ambos apresentarem pés não alinhados com a borda
direita da palavra. Finalmente, temos o candidato ótimo a emergindo, mesmo
violando PARSE duas vezes.
Resta, ainda, verificarmos um último caso. Supondo a atuação conjunta
dos processos de ditongação e apócope em termos como muliere > mulyer,
testamos mais uma vez nossa hierarquia e obtivemos os seguintes resultados,
apresentados no tableau (23):
164
(23) Polissílabo proparoxítono que passa a dissílabo oxítono pela ação de dois
processos fonológicos
Muliere – mulher
Muliere
TROCHEE OCP ALLFT – RIGHT PARSE- σ
☞a. mu(lyer) *
b. (mulyer) *!
c. (muli)(ere) *! *
d.(muli)(er) *!
e.muli(er) **!
f.mu(lyere) *!
A hierarquia de restrições proposta levou à seleção do candidato
adequado e, portanto, se mostrou eficiente na análise de formações que
apresentam a atuação de mais de um processo fonológico. Em (23),
verificamos que todas as restrições são relevantes na seleção do candidato
vencedor. A violação à TROCHEE elimina o candidato b, que possui pé
trimoraico com proeminência à direita. Já c e f violam, uma vez cada, a
restrição OCP, devido ao fato de os segmentos finais adjacentes <re>
possuírem os mesmos traços [+coronal] e [+contínuo]. O candidato c também
viola ALLFT-RIGHT juntamente com d, que é eliminado da disputa. Como c já
tinha sido eliminado, essa violação não foi relevante para ele. Restam, então,
dois competidores, a e f, e apenas a restrição PARSE. Ambos os candidatos
apresentam sílabas não integradas a pés, sendo que o candidato a viola
165
apenas uma vez a restrição e o candidato f a viola duas vezes por apresentar
duas sílabas não integradas.
6. Resumo do capítulo e sistematização da proposta
Chegamos ao final do estudo do acento na variedade vulgar do latim e
apresentamos, em (24), a seguir, nossa proposta de hierarquia, que reflete a
atuação de todos os aspectos envolvidos diretamente com o tema:
(24) ROOTING >> STRESSFAITH >> TROCHEE >> OCP >> ALLFOOT-
RIGHT >> PARSE-σ >> *EDGEMOST (σstr , L) = *EDGEMOST (σstr , R) =
ALLFOOT-LEFT = WTS
Ao analisarmos essa hierarquia final, podemos perceber que a restrição
ROOTING é mais altamente cotada, a fim de garantir que o acento primário
seja aplicado a todos os termos de conteúdo lexical. Em nosso caso, os termos
em questão são os não-verbos latinos. Tal fato ocorre, também, na hierarquia
proposta para o latim clássico, conforme podemos verificar em (27) ao final
dessa seção.
Outra restrição extremamente relevante para a língua é STRESSFAITH,
uma vez que tal restritor de fidelidade atua no sentido de evitar que os termos
proparoxítonos, oriundos de empréstimos ou de cristalizações lexicais, se
conformem ao padrão acentual não-marcado paroxítono. Já que tanto
ROOTING quanto STRESSFATH são de aplicação categórica na língua, essas
não foram apresentadas nas análises de nossos tableaux ao longo do capítulo.
166
Como dissemos anteriormente, podemos adotar duas posturas em
relação às palavras oxítonas no latim vulgar; uma é aquela que admite a
existência de tais termos e a outra é aquela que não situa no latim o
aparecimento de tais termos. Procuramos, então, verificar as possíveis
conseqüências para nossa hierarquia em se admitir a existência de oxítonas já
nessa variedade da língua. Desse modo, a restrição OCP, uma restrição de
marcação que atua no sentido de evitar a contigüidade de segmentos
portadores de traços idênticos, passa a figurar em nosso ranking. A partir das
evidências apresentadas ao longo de nossa pesquisa, verificamos que a
presença de segmentos contíguos em final de palavra que compartilham os
traços contínuo e coronal tendem ao apagamento do segmento que ocupa a
última posição, com a conseqüente formação de vocábulos com proeminência
acentual final.
A relevância dessa restrição para nossa analise está no fato de que
todas as modificações segmentais que atestadamente ocorreram no latim
vulgar promoveram o estabelecimento do padrão acentual não-marcado
paroxítono. OCP, ao contrario, atua no sentido de promover a existência de
termos oxítonos na língua, que, obviamente, seriam considerados marcados.
Muito importante, porem, é verificar que, embora atue no referido sentido, essa
restrição continua a privilegiar o estabelecimento do padrão trocaico na língua,
sendo que, nesse caso, o pé trocaico se situa na útlima sílaba pesada dos
vocábulos. Tal fato indica que a possibilidade de existência de oxítonas no
latim vulgar não contraria uma tendência geral dessa variedade, que é,
justamente, a manutenção de um pé trocaico alinhado na borda direita dos
vocábulos. Aliás, é justamente o que OCP, nesses vocábulos, ajuda a
167
promover: desfaz o pé trocaico constituído por duas sílabas e o torna
monossilábico, mas ainda trocaico, mantendo o acento, como ocorreu com os
demais termos que passaram por processos de perdas segmentais, na mesma
posição que anteriormente ocupavam.
Feitas essas observações, passamos a admitir a segunda hipótese de
nosso estudo. Não havendo oxítonas no latim vulgar, a hierarquia que
propomos passa a ser a demonstrada em (25) abaixo:
(25) ROOTING >> STRESSFAITH >> TROCHEE >> ALLFOOT-RIGHT >>
PARSE-σ >> *EDGEMOST (σstr , L) = *EDGEMOST (σstr , R) = ALLFOOT-
LEFT = WTS
Já observamos, entretanto, a relevância das duas primeiras restrições.
Resta-nos agora verificar as demais, o que nos leva a perceber que os quatro
últimos restritores não são atuantes na variedade vulgar. Desse modo,
retirando todos os restritores finais, que foram atuantes na variedade clássica
do latim além daquelas de atuação categórica, ficamos com a hierarquia
apresentada em (26):
(26) TROCHEE >> ALLFOOT-RIGHT >> PARSE-σ
É efetivamente essa hierarquia, extremamente reduzida e econômica, a
responsável pela aplicação do acento primário em não-verbos latinos. Notemos
que a interação entre essas restrições atua promovendo a formação de um
constituinte prosódico, o pé troqueu, posicionado na borda direita da palavra.
168
Tal fato é extremamente relevante, quando lembramos que alguns vocábulos
do latim vulgar se tornaram mais complexos em termos de conformação da
estrutura silábica do que eram no latim clássico, mas mantiveram a posição do
acento inalterada, ou seja, o mantiveram na mesma sílaba. A hierarquia
mostrada em (26) ilustra essa “preocupação” da língua em manter o padrão
acentual não-marcado (paroxítono) mesmo que isso afete a materialidade dos
vocáculos. Isso também explica o fato de que não temos restrições que atuem
nesse nível em nossa hierarquia. Todas foram demovidas, e, dessa maneira,
favoreceram o processo de mudança da acentuação latina.
Das quatro restrições demovidas, as duas restrições da família
EDGEMOST evitam a presença do acento nas bordas da palavra e WTS dá
visibilidade a sílabas pesadas. São todas restrições que atuam no nível
superficial da língua. A única restrição que atua em termos de alinhamento de
um constituinte prosódico é ALLFT-LEFT, mas precisa ser demovido, uma vez
que atua justamente no sentido de favorecer o posicionamento do pé (trocaico)
na borda esquerda do vocábulo e, conseqüentemente, favoreceria a formação
de termos proparoxítonos, não mais produtivos no latim vulgar.
Aproximando as duas hierarquias, temos, em (27) e (28), uma visão do
conjunto de restrições e podemos perceber na “linguagem” da Otimalidade, a
manifestação da mudança lingüística ocorrida no latim vulgar para a aplicação
do acento primário. Fica evidente a demoção de restrições anteriormente ativas
e a atuação de dois novos restritores, conforme já demonstramos ao longo do
capítulo e nessas considerações finais.
169
(27) ROOTING >> TROQUEU >> *EDGEMOST (σstr , R) >> WTS >>
PARSE-σ >> ALLFOOT-LEFT >> *EDGEMOST (σstr , L)
(28) ROOTING >> STRESSFAITH >> TROCHEE >> OCP >> ALLFOOT-
RIGHT >> PARSE-σ >> *EDGEMOST (σstr , L) = *EDGEMOST (σstr , R) =
ALLFOOT-LEFT = WTS
Chegamos, assim, ao final do estudo do acento na variedade vulgar do
latim e apresentamos, em (28), nossa proposta de hierarquia final, que reflete a
atuação de todos os aspectos envolvidos diretamente com o tema. A fim de
estabelecer os mecanismos utilizados na determinação do processo de
mudança, consideramos as restrições relevantes na análise do mesmo
fenômeno no latim clássico e depreendemos que a demoção de restritores é o
mecanismo responsável por tal processo na aplicação do acento do latim
clássico para o latim vulgar, conforme analisamos anteriormente, e conforme
podemos constatar pela comparação final dos ranqueamentos: em (27), para o
latim clássico, e em (28), para o latim vulgar.
170
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa teve como principal objetivo analisar a mudança
ocorrida na aplicação do acento primário em não-verbos latinos na perspectiva
da Teoria da Otimalidade. Para que esse objetivo fosse alcançado, buscamos
caracterizar nosso objeto de estudo, já no capítulo inicial do trabalho, de modo
a ir além da definição do termo em seu conceito usualmente adotado nos
compêndios tradicionais e de sua análise sob tal enfoque.
Compreendemos a Teoria da Otimalidade como um desdobramento das
teorias de base gerativa e, com isso, fizemos uma retrospectiva teórica,
partindo da abordagem estruturalista de Camara Jr. (1970) para, em seguida,
estudarmos duas abordagens com fundamentação gerativa, a Fonologia
Métrica, através da proposta de Bisol (1992), e a Fonologia Lexical, através de
proposta de Lee (1995). Ambas utilizam regras para a determinação do acento
primário em não-verbos, diferentemente da TO, como já evidenciamos.
Podemos destacar que a análise otimalista diminui consideravelmente o nível
de abstração existente entre o nível subjacente (input) e o nível de superfície
(output), constituindo mais uma vantagem desse modelo.
Além disso, as Fonologias não-lineares apresentadas lançam mão de
recursos ad hoc, como a extrametricalidade, que torna invisíveis determinados
segmentos, a fim de que filtros e princípios sejam aplicados nos níveis
abstratos intermediários de análise. Isso é eliminado na TO, uma vez que
regras, princípios e filtros têm sua atuação substituída pelas restrições e pela
interação entre as mesmas. Collischonn & Schwindt (2003) denominam de
“uniformidade de análise”.
171
No capítulo teórico, apresentamos as bases que sustentam as
inovadoras propostas da TO: seus princípios, sua concepção gramatical e sua
metodologia de análise. Além disso, complementamos tais informações,
observando o modo como a variação e a mudança são compreendidas e
tratadas no âmbito dessa abordagem teórica.
Definidos o objeto de estudo, em suas características gerais, e o modelo
teórico adotado, passamos a levantar e analisar os aspetos históricos mais
relevantes na constituição do latim, desde a origem mais remota a que temos
acesso, com vistas a definir, de modo mais preciso possível, as variedades
vulgar e clássica do latim com as quais trabalhamos ao longo da pesquisa.
Passamos, então, ao capítulo referente à análise do latim clássico,
variedade escrita e falada pelas classes mais cultas e socialmente dominantes,
no qual analisamos os dados, levantamos as restrições e propusemos um
ranqueamento que se mostrou adequado para a análise do acento nessa
variedade latina.
Consideramos, em nosso último capítulo, a aplicação do acento primário
em não-verbos latinos na língua falada pela plebe nos domínios do Império
Romano. Para tanto, verificamos a pertinência da hierarquia de restrições por
nós proposta frente às principais modificações ocorridas na posição do acento
em sua utilização no latim vulgar, tendo, como contraponto, o latim clássico.
Pressupomos a origem daquele em relação a esse, considerando os
desdobramentos verificados por meio da atuação de processos fonológicos que
agiram no sentido de simplificar e generalizar o padrão trocaico e gerar, como
não-marcadas, formações paroxítonas, em detrimento das proparoxítonas. Tal
movimento, contudo, não levou, necessariamente, a uma simplificação em
172
relação aos segmentos que compõem os vocábulos. É certo que a perda da
duração vocálica atuou nesse sentido, mas, por outro lado, foi substituída por
modificações de timbre.
Percebemos a emergência de sílabas mais complexas, com a formação
de onsets ramificados e codas silábicas, ao analisarmos os termos que
passaram por apócope, síncope ou ditongação – esses dois últimos processos
amplamente atestados como atuantes no latim vulgar pela bibliografia
consultada. Certamente, se o próprio Appendix Probi, considerado uma das
fontes primárias mais confiáveis, registra as modificações segmentais ocorridas
entre as formas do latim clássico, modelo de correção, e as formas do latim
vulgar, supostamente consideradas modificações indesejáveis, não é inviável
supor que uma modalidade tenha se espelhado na outra no que se refere ao
tema por nós estudado.
O espelhamento pressupõe algum grau de antecedência e não
inviabiliza, aliás, preconiza a coexistência de ambas as modalidades, entre as
diversas formas provenientes dessas variedades de língua latina. A metáfora
do espelho nos remete a essa relação de precedência, na medida em que só
se tem a percepção do reflexo de algo, quando esse se antepõe
temporalmente frente ao objeto refletor. Raciocinando em termos otimalistas,
temos dois desdobramentos que se encontram interligados no interior desse
nosso raciocínio e que foram considerados em nossa pesquisa. O primeiro é o
fato de que, provavelmente, as formações do latim clássico levaram ao
estabelecimento do inventário lexical, das formações de input, do latim vulgar.
O segundo está relacionado ao fato de que, se a mudança somente se realiza
plenamente quando o input se modifica, teremos, então, para o latim vulgar, em
173
um dado momento intermediário, a existência de formas de entrada que ainda
se pautam no modelo clássico. Só a partir do momento em que as referências
para a constituição do input não forem mais as formações clássicas é que o
“espelho muda de posição” e o latim vulgar passa a produzir unicamente
“formas a partir de suas formas”, espelhando-se em si próprio na obtenção de
referências que lhe servirão, ou não, para a geração de novas formações de
input e que gerarão, ou não, novas formações no output, só que, dessa vez,
não mais reflexos de um “outro” latim.
Em outras palavras, consideramos, no presente trabalho, as formações
do latim clássico ainda presentes no input, como uma maneira de demarcar
essa relação entre as duas modalidades. Destacamos, no entanto, que a
mudança no latim vulgar se consolida, em termos otimalistas, apenas quando
ocorrer a mudança do input, ou seja, quando as formas de output, que são as
formas fonéticas que alimentam constantemente o inventário lexical, não mais
forem aquelas provenientes do latim clássico.
Demarcamos, nas seções iniciais do capítulo 6, os pontos mais
relevantes no estudo do acento lexical em não-verbos do latim vulgar e
propomos um conjunto de restrições hierarquizadas. Ao longo de nossa
explanação sobre o tema, buscamos destacar os pontos que aproximam e
afastam ambas as variedades latinas. Desse modo, buscamos verificar quais
foram os mecanismos fornecidos pela TO para dar conta da mudança na
aplicação do acento e vimos, de modo claro, que a demoção de restrições,
anteriormente ativas no latim clássico e que não mais atuam no latim vulgar,
indicia o fato de que a mudança na aplicação do acento se processou.
Também a promoção de restrições explica a diferença entre os dois “latins”, no
174
que diz respeito à localização da sílaba tônica. O restritor ALL-FOOT RIGHT,
não atuante na variedade culta, por conta da inatividade da sílaba final para a
formação de pés métricos, passa a ser um dos mais relevantes na variedade
dita “vulgar”. Assim, por força da obediência a essa nova demanda, os pés
passam a se formar da direita para a esquerda e, com isso, sílabas finais,
geralmente monomoraicas, são anexadas como membro fraco de um pé com
proeminência inicial, caracterizando os vocábulos como paroxítonos.
Por conta da demoção de *EDGEMOST-right e da promoção de ALL-
FOOT RIGHT, sílabas finais também podem, quando resultantes de um
processo de apócope da vogal [e] na borda direita da palavra fonológica,
sozinhas, formar um troqueu moraico. Quando atua esse processo segmental,
motivado pela total obediência a um restritor da família OCP (OCPcoronal), a
sílaba final pode se tornar proeminente, o que, acreditamos, deu origem ao
acento oxítono. Esperamos, dessa forma, ter contribuído com o presente
trabalho para os estudos fonológicos de fundamentação otimalista.
175
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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