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Prefácio
O mundo dá voltas, o aparente
amigo de hoje às vezes se torna o inimigo de amanhã, e
vice-versa. Eu escrevo contra
mortais inimigos que desejariam passar por amigos
da causa romana. Escrevo, em
parte, contra pessoas cujo desrespeito ostensivo pela
revelação cristã em muito
ultrapassa a sujeira dos prostíbulos e dos
convencionais esgotos morais
mundanos. Entretanto, o sentimentalismo hipnótico por
trás desse exército de
fantasmas que uivam
orgulhosos; e proclamam da boca para fora a seriedade da
própria perversa loucura; esse
sentimentalismo também fora mais ou menos o meu, qual um
selo inexorável que marca o
homem contemporâneo.
Eu me dirijo a um assunto em
relação ao qual uma convenção tirânica se meteu
para bagunçar e avacalhar. A
verdade não tem soberania para o antiperenialista, e de tal
modo é essa farsa bem-
sucedida em desrespeitar a verdade e escandalizar, que a
minha intentada clarificação é
mais a consideração de um
dever, o procurar gemer sede e fome de justiça, do que saciá-
las.
O estudo da heresia
antiperenialista é um dos mais
interessantes que jamais fiz, talvez o mais interessante de
todos, em parte porque é uma
espécie de "aventura" na qual eu estou imerso
historicamente; como a então
relativa novidade espírita que nos seus dias Max Stirner
levava tão a sério. Os filmes
do Indiana Jones, entretanto, talvez sejam suficientes para
indicar que assistir como mero
expectador a aventuras
excitantes é bem menos perigoso do que experimentá-
las em carne e osso.
Eu quero me ater ao essencial,
e quanto possível ao mais
sucinto descrever (sem mergulhar na indignação que o
assunto merece), para não
suceder que me venha o que ocorreu com Jean Racine ao
escrever contra os vícios da
sua alma mater, Port Royal; isto é, para que não me venha
que o "escrito faça bem ao
intelecto, e mal ao coração", quando o contato com o
nefasto antiperenialismo já me
fez mal o bastante.
Eu também sou forçado a fazer
uma digressão, não biográfica como John Henry Newman na
sua resposta clássica ao ataque
de Charles Kingsley, mas de tipo estritamente filosófico. Eu
não confio na boa vontade da
audiência, nem me dá esperança essa boa vontade ao
cabo da exposição -- como
Newman confiou que haveria para si --, afinal, eu não sou
Newman, a minha audiência
não é de cavalheiros ingleses, nem saí do estado de rabugens
de pessimismo no qual estou
metido.
Possa este escrito, pois, servir
como o testemunho de encontro a vaias e cusparadas,
pancadas e dar de costas
coberto de desdém, para que eu de minha vez possa cobrir
um domínio interior já não
mais perturbado pelo escândalo, mas na resignação
esteja consolado com a
verdade. Possa eu chorar só meu choro ante o incêndio de
Roma, enquanto os outros
cantam e tocam harpa, ou passeiam como se fosse any
other tuesday.
Capítulo I - Um olhar casual sobre o antiperenialismo.
No seu estudo do espiritismo, também em outros escritos, o
fundador da escola
perenialista, René Guénon, faz questão de destacar a
importância de desdenhar
(acaso eu disse "desdenhar"?) o sucesso no proselitismo, o
priorizar o proselitismo; ele
faz questão de enxergar nessas coisas ilusória vantagem.
Ganhar adeptos não é o mais
importante, segundo Guénon. Ganhar adeptos em grande
número, mas com baixa
qualidade, lhe parecia uma
falta de senso talvez ainda mais excêntrica do que a áurea
que se atribui ao filme "The
Room".
A pessoa familiarizada com a
obra de Guénon certamente veria a panfletagem e a
exposição midiática de um
grupo como "Jews for Jesus" com um frio na espinha, com
medo; tão profunda e
extensivamente o metafísico francês se deu ao trabalho de
mostrar no proselitismo uma
cilada mortífera para a saúde da alma. O conhecimento vem
primeiro, a ação política que
angaria adeptos (em
comparação) é um acidente de percurso, uma nota de rodapé
que o editor insere de orelhada
e à guisa de um afterthought fogoso; uma nota de rodapé a
que o autor diz "Por que não?"
para logo voltar o rosto a um assunto mais interessante .
Ora, mesmo diante do fato de René Guénon ter expresso seu
ponto de vista em semelhantes
termos, o filósofo Olavo de Carvalho, repetida e
convictamente, pareceu ter
proposto que o aspecto mais crucial, mais real, do esforço
guenoniano (portanto da obra
intelectual de René Guénon) é
a promoção velada do avanço islâmico. Perguntar a diferença
entre a promoção do avanço
islâmico e uma promoção do proselitismo islâmico me
parece quase desnecessário, já
que nos dois casos se trata de que um efeito visado idêntico,
ou uma técnica apenas, é a
"chave interpretativa de tudo o que ele estava fazendo".
Certamente o alardear isso, do Prof. Olavo, sem indicar
explicitamente a tensão
interpretativa subjacente nessa acusação (mas fazendo boca
de siri a tal), é extraordinário o
suficiente para fazer pensar.
Eu não sei se eu e o Prof.
Olavo lemos o mesmo René Guénon; mas eu estou seguro
de que o sujeito que li
acreditava que o grande problema da modernidade é a
redução de tudo à técnica;
também a dissipação da modernidade (por si tomada
como boa) vindo da submissão
inversa da técnica à teoria. O Guénon que li é um camarada
que talvez até batesse boca
com esse outro indivíduo, que dedicou toda a sua vida à
produção de um efeito (isto é,
à aplicação de uma técnica),
não fosse o fato de a aversão à técnica vir de par, parece, com
evitar bater boca com
estranhos.
Ora, o Olavo de Carvalho
inverter o sentido do ponto de vista guenoniano, colocando a
técnica em cima, a teoria em
baixo, não parece ser fruto de um bobinho mal-entendido
provável, como aqueles das
histórias da Jane Austen. Sobretudo pela maneira
infensa a maiores explicações,
sugerindo que a reação de estupefação incitaria no
melhor dos casos um despeito
paternal, parece mais um mal-
entendido das histórias da Bruxa de Blair, as quais,
ademais, têm a desvantagem
de não terminar com um final feliz. Supondo-se fosse
verdade que décadas atrás
Olavo construiu uma ritual "barca egípcia" para habitar o
espaço sideral, conforme
alegam detratores, tal não seria mais sugestivo da manipulação
mítica vinda de uma mulher
que sobrevoa os céus numa vassoura, do que a
supramencionada inversão do
guenonismo.
Cair no encanto de "feiticeiros
sinistros" de modo episódico ("a barca egípcia") é temível;
cair no encanto continuamente
(como os detratores do Olavo, os quais eu não sou baixo o
bastante para identificar como
os irmãos Velasco) é mais temível ainda; mas o
verdadeiro boogie man das
histórias de terror, o mais sádico hálito de narrativa
funesta, é a ideia de ser
paciente de um encantamento negro sem que ninguém o note
nunca, exceto a mão
enverrugada que manipula tudo no fundo
(antiperenialismo).
A fala olavista contra Guénon parece sugerir Mateus 7:13-24
("Pelos seus frutos os
conhecereis"); porque o fruto secular do guenonismo foi a
islamização do mundo. O
raciocínio por trás disso, entretanto, é um emprego da
lógica dos sinais ("onde há
fumaça há fogo"). É análogo ao alegar contra o Rei Luiz IX,
de célebre santidade e
prestígio, que a sua vida foi um fracasso por causa das
Cruzadas que ele lançou, numa
das quais terminou sua vida; eventos de rara e multifacetada
tragédia ou desapontamento.
Ademais, esse raciocínio
olavista, estivesse correto, não sanaria o mistério que está em
comparar o que falam Olavo e
Guénon.
Ora, todo esse capítulo de
Mateus é uma transposição "prática" da alegoria da estátua
de Nabucodonosor (Daniel
2:36); a "cabeça de ouro" da estátua (que corresponde ao
primeiro dos quatro cavaleiros
do apocalipse, Apocalipse 6:2) significando a vida
contemplativa e uma etapa
inicial "de ouro" ou relativamente paradisíaca, na
qual não pode ser claro o que é
o sentido mais fundo e o que
um sinal externo (a distinção entre bem e mal do fruto
proibido no paraíso), por isso a
ordem de "não julgar para não ser julgado" (Mateus 7:1). A
segunda parte da estátua, os
braços de prata, corresponde ao Segundo Cavaleiro, e
significa a nobreza ou a vida
de ação, daí o encorajar de Cristo à ação, "pedir, buscar,
bater" (Mateus 7:7). A barriga
e as coxas de bronze da estátua correspondem ao Terceiro
Cavaleiro, que significa a vida
que se baseia na compreensão e promoção do domínio
econômico; o domínio
econômico se definindo como
aquele domínio no qual o inacessível e o acessível, o
secreto e o midiático (como o
dinheiro), são simultâneos; daí que Cristo fale a respeito dos
portões estreito e largo
(Mateus 7:13). As pernas da estátua, de ferro,
correspondem ao Quarto
Cavaleiro, que significa a vida de servo, o modo mais inferior
de vida. É por isso que o
contexto de "pelos frutos os conhecereis" (Mateus 7: 16) é
a ideia de lobos em pele de
ovelha, porque a ovelha simboliza o servo, o lobo a
concupiscência pejorativa que
pode aflorar no servo por
causa da sua tendência para baixo; o que pode ser visto
pelo fato de a palavra "tirano"
significar, etimologicamente, uma pessoa de origem inferior
que pretende ser um príncipe;
e é sabido que o maior clichê dos tiranos é atender a
concupiscências baixas. É
nesse contexto que é dito "Pelos frutos os conhecereis" .
Quando se tiver passado pelos
três desafios anteriores, e terminado por achar o
caminho estreito no labirinto
dos desafios espirituais, aí então se pode julgar outrem
desde os seus frutos.
Similarmente, depois de se ter
passado pelos caminhos no labirinto da obra guenoniana, e
se ter atinado com a passagem
secreta, o caminho estreito interno que é a chave-mestra
para interpretar o conjunto, aí
então se pode julgar o que é o que pelos frutos. A mesma
coisa com a biografia de São
Luiz IX etc., inclusive porque não é possível julgar um
homem sem julgar o seu
coração, e o "fruto proibido" localizado "no centro do
jardim" significava
precisamente o coração do paraíso.
O fato mesmo de que o juízo
tecido contra o Guénon deixa intocada a relação entre a
aversão guenoniana ao
proselitismo, e o efeito proselitista atribuído; por ora
sirva como sinal de que o
célebre filósofo se perdeu no labirinto.
Em resposta a tais considerações a reação
previsível do Prof. Olavo
certamente será me dar um beijinho terno na fronte e um
toque carinhoso nas costas,
talvez até um tapinha de "go get them, tiger!" no traseiro.
Pois deixemos essa imagem de
certo bom agouro, e passemos
a um personagem mais.
O René Guénon se notabilizou
por aprovar a divisão da sociedade em castas, como nos
moldes da sociedade medieval;
batendo-se precisamente pela aprovação da superioridade ou
autoridade do clérigo sobre os
demais. Esse é o ponto de vista do Direito Canônico católico,
e se pode dizer que assim
como o Talmude é comprido e persistente no falar de
preceitos do sábado (para usar
um eufemismo), o Direito Canônico parece ser comprido
e persistente no dar ao clérigo
uma posição de autoridade e
privilégio.
Que o Sr. Orlando Fedeli, um
dos heróis do antiperenialismo, fosse capaz
de mais ou menos ver que a
Igreja privilegia o clérigo, não significa que fosse ele próprio
um clérigo. Com efeito, esse
homem, que era tido por um campeão da ortodoxia, só
podia falar do ponto de vista
de alguém que obedece o clérigo, sem a pretensão de o
contradizer ou o julgar (como
ele mesmo sugeriu em certas ocasiões). Consequentemente,
toda pretensão do seu Fedeli a
ler o Direito Canônico do
ponto de vista clerical seria extravagante; seria como um
eunuco, durante um banquete
no palácio de Xerxes, a esbofetear a mão (à cata de
comida) do imperador, e ralhar
para que o imperador a vá lavar.
Às vezes por trás da humildade enfática dos
vassalos há uma afetação de
autoridade. Para o vassalo deixado à própria sorte todo
mundo mais é um potencial
lacaio usurpador e tirânico. Assim, o seu Fedeli fez da
subordinação da autoridade
secular à autoridade intelectual
(característica do guenonismo) uma defesa da insubordinação
caprichosa em relação ao
clérigo; quando na verdade essa subordinação é
precisamente correspondente à
subordinação do leigo (mundo secular) ao clérigo (mundo
contemplativo). Que o Direito
Canônico privilegia a pessoa contemplativa, pessoa que por
ser contemplativa se aproxima
da condição clerical, e que é esse o sentido da submissão
normativa ao clérigo, pode ser
visto em que o Codex Iuris Canonici de 1917 dá ao autor
célebre de livros em defesa da
fé basicamente a dispensa
automática para se casar com mulher, quando haja
impedimentos eclesiásticos, e
a título de privilégio concedido gratamente.
Similarmente, São Jerônimo
celebrou um leigo nominal, o mártir e filósofo Apolônio
(senador na antiguidade pagã
romana), como uma autoridade canônica. O
propósito do Direito Canônico
é tirar a autoridade, na Igreja, das mãos de leigos como
Fedeli etc., e colocar nas mãos
de pessoas dedicadas à contemplação, e na medida em
que sejam dedicadas à
contemplação.
Logo, ver no
guenonismo (com o seu ostensivo clericalismo) um
"intelectualismo" pejorativo
ou "subjetivismo" oposto à autoridade religiosa, e
ameaçador dela, é quase como
dizer que todo mundo tem que obedecer o clérigo mas não há
nenhum clérigo à mão, ou não
deve haver; uma tese que, mesmo tendo uma
questionável aparência de
sensatez, é estranhamente verdadeira hoje.
Das argumentações contra o
perenialismo, talvez a mais clássica e, se sugere,
arrasadora, é aquela que
chama atenção para a tese dita perenialista de haver, por trás
das diversas religiões, um
esoterismo sapiencial primordial que as compreende
e aperfeiçoa. Fosse verdadeira
essa tese, se argumenta, o cristianismo seria uma forma
inferior de espiritualidade; do
que decorre que o perenialismo supõe o desprezo
pelo cristianismo, e por isso
mesmo a sua negação. Se a argumentação não é feita
precisamente nesses termos,
ou nessa exata intenção
aparente, importa pouco, a exatidão ou cautela
interpretativa só podendo ser
gabada por antiperenialistas no fazer seus escrutinadores
olharem de soslaio com
tensão.
Quando se vê, pois, os
olhinhos brilhantes de André Abdelnor, palestrando no
Centro Dom Bosco etc., ao
alardear a arrasadora argumentação; faz corar o fato
de que a separação entre
exoterismo e esoterismo, nas religiões, nada mais é do que
um truísmo muito batido,
como beber vinho em bodas.
A rejeição dessa separação entre exoterismo e esoterismo
equivale, analogicamente, ao
sonso não distinguir entre o sofista especializado em
retórica, de um lado, e o
filósofo mais interessado em investigações íntimas, de
outro. Diferenciar Górgias e
Sócrates não é muito difícil; basta se perguntar quem tinha
dinheiro o suficiente para
pagar por uma estátua de ouro maciço em homenagem
própria. Ora, porque essa
separação existe, o fundo menos visível ou mais sutil da
doutrina cristã compreende
todas as concepções das
demais religiões, mais ou menos como a virtude supõe a
compreensão tanto de si
mesma como da sua degeneração, defectiva ou
viciosa. Se eu sei o que é a
generosidade eu também sei o que é a avareza ou a
prodigalidade. Mesmo uma
seita ostensivamente maligna guarda latente um fundo
benéfico, como a substituição
carnavalesca da esperança pelo desespero guarda latente a sua
restauração, bastando inverter
a inversão especulativamente. Toda sombra existente foi
projetada pelo que não é uma
sombra; algo que os
antiperenialistas parecem acreditar que é altamente
duvidoso.
Talvez parecerá que estou
errado e não entendo de óptica
o suficiente para fazer essa última analogia. Touché...
Talvez eu possa substituir o
último ponto, então, pela observação de que na Summa
Theologica, Pars Prima,
Questão 2, Artigo 10, Santo Tomás cita o Papa São
Gregório I a respeito de como
as sagradas escrituras “enquanto descrevem um fato
[exoterismo], revelam um
mistério [esoterismo]”. Alguns
dirão que a dupla categoria (exoterismo e esoterismo) não
se aplica a essa discussão,
porque o "esoterismo" é definido por alguns como
aquilo que é escondido, em
religiões não católicas, de modo mais radical do que
qualquer coisa no catolicismo.
Um pouco de reflexão, entretanto, basta para
demonstrar que essa última
objeção é apenas semântica, e que não se endereça a como o
perenialismo articula essas
noções.
Todas essas argumentações
antiperenialistas são bolhas de sabão, de um tipo muito tosco
por sinal. Uma vez bem
explicadas elas são suficientes, a uma pessoa sã, para atinar
que não se trata de uma
discussão respeitável no qual duas partes entram de boa fé, e
mais ou menos em pé de
igualdade, para usar um jargão olavista. Tomar a situação
assim seria se deixar
hipnotizar abjetamente. Resta, pois, descobrir o que está atrás
dessa sombra estranha.
Capítulo II - O princípio do
antiperenialismo
O princípio do antiperenialismo pode ser
associado à já mencionada
estátua de Nabucodonosor. Cabeça de ouro, braços de
prata, barriga e coxas de
bronze, pernas de ferro, e pés misturados a ferro e barro
(nessa mistura a ovelha
corresponderia ao ferro, o lobo, supõe-se, ao barro).
Digamos que esse curso, do ouro ao ferro etc., possa se
expressar tanto na escala
histórica maior, quanto na vida de um indivíduo. Ele
corresponde de algum modo
aos discursos poético (ouro),
retórico (prata), dialético (bronze) e lógico (ferro).
Uma pessoa atenta deve notar que do discurso poético para o
discurso lógico, o discurso fica
cada vez mais extensivo. A poesia é mais concentrada do
que a prosa, os livros de poesia
mais finos do que os ensaios acadêmicos. Cada verso de um
poema parece sugar e prender
a atenção, como a força da gravidade, enquanto as
páginas de prosa podem ser
lidas com bem maior distração e dispersão. O que aconteceu
com o sentido concentrado, da
poesia para a prosa? Esse
sentido se tornou mais escondido da consciência,
como quando um rapaz finge
para si mesmo que uma garota não está interessada nele, para
não ter de lidar com as
consequências disso.
A negação máxima dessa
concentração (o "império de ferro e barro", como oposto ao
"império de ouro") é
precisamente o que está envolvido, quando se trata do
antiperenialismo. A mistura do
ferro com o barro, nos pés, assinala a essencial
incongruência do "império de
ferro", e o estar fadado a ser
esmagado por esse calcanhar de aquiles. Quanto mais
puramente lógico um discurso,
mais quebradiço e inconsistente, mais cheio de
hiatos que não se deixam
preencher, porque o mundo é diferente de um livro
demonstrativo, para os homens
forçados a falar do mundo.
A coisa pode ser vista desde
um ponto de vista mais palpável. Carrol Quigley dizia
que "dinheiro é dívida",
justamente significando que se você não entende o motivo
mais secreto ou complicado
para uma situação econômica
funcionar e se renovar (um negócio), você pode perder
muito dinheiro; logo, você não
quer o dinheiro, mas sim entender como bem investi-lo
(caminho estreito), o que é
algo completamente diferente. O passar do "império de
bronze" para o "império de
ferro" significa precisamente que você tem o dinheiro, as
frutas -- outrora reais mas
tornadas frutas de cerâmica por um feitiço -- que parecem
suculentas; mas não pode
gastar o dinheiro (reverter o feitiço e comer as frutas). A
ideia popularmente familiar de
que os impérios caem no meio
do seu apogeu significa apenas isso, e nada mais.
A dispersão significada pelo curso da estátua explica a
história da arca de Noé: a
civilização (significada pelas águas diluviais) cresceu
demais, a concentração inicial,
significada pela arca, não; porque a concentração não
pode deixar de ser o que é.
Eu desejaria bem-receber a
entropia para dentro do jargão
religioso, como a arca bem recebeu os animais.
Capítulo III - O
antiperenialismo e a bifurcação do dogma
Por que o "império de ferro" se associa, simultaneamente,
ao servo e ao discurso lógico?
A pergunta é cabível porque, afinal, a lógica sugere certo
elitismo. No caso, a palavra
mais acertada seria "esnobismo", o que,
significando "ausência de
nobreza", bem casa com o que foi dito sobre o fundo comum
do servo e do tirano.
O tirano tem a lógica a seu
favor como alguém tem na
mão um saquinho de chup-
chup quase inteiramente sugado de suco, ficando só o
gelo sem sabor. O que o tirano
tem na mão é, obviamente, um espectro ou túmulo, em vez do
discurso sadio. Que esse
espectro pareça quebradiço e precário, como já foi sugerido,
tem a ver com esse espectro
ser uma superstição.
Assim, como eu notei alhures,
a tirania se notabiliza por tornar as leis ou fórmulas
discursivas supersticiosas e
fantasmagóricas. Essa característica é
necessariamente simultânea a
um estado de "intoxicação" ou
embriaguez moral, às vezes a literal promoção da
embriaguez. Tal embriaguez,
de sua vez, é como uma experiência de rapto; daí que
Bruno Tolentino tenha
insistido como fez no problema do mundo repartido
em "mundo como ideia"
(superstição) e "mundo como rapto" (embriaguez);
experiências que são realmente
dois lados da mesma moeda, como ter de gastar dinheiro e
passear.
O mundo do antiperenialista é
um mundo de contínua
superstição, de esnobe e
contínua pretensão no domínio discursivo, o fundo disso tudo
sendo uma embriaguez
figurativa menos lisonjeira que a literal.
Essa bifurcação em "mundo como ideia" e "mundo como
rapto" é projetada sobre o
dogma religioso, desembocando em uma
profanação da doutrina
sagrada, a qual por definição não é nem supersticiosa, nem
embotadora.
Capítulo IV - O
antiperenialismo e o efeito-medusa
Que mais cabe para aliviar (de mentirinha) toda essa
seriedade, do que falar de
mulher? Medusa era capaz de tornar as pessoas estátuas. Ela
nem sempre foi assim. Se
tornou a moça um monstro quando a deusa Atena a
amaldiçoou, e a deusa a
amaldiçoou porque Medusa foi violada pelo deus dos mares,
Poseidon, no Templo de
Atena. A história certamente não é o cup of tea do leitor da
Jane Austen. Talvez, até,
Medusa tenha se tornado a
Bruxa de Blair que nós "conhecemos e amamos", se
vingando pelos séculos, nos
outros, do mal que fizeram nela. Há pessoas que perdem a
cabeça mas não perdem a
chacota.
Eu escrevo cansado, talvez
porque tenha perdido a beleza juvenil e pretenda ter ganhado
como troco alguma sabedoria
de velho. O velho vê todos os tempos, porque passou por
todos, e é assim que a história
de Medusa passa a se assemelhar, estranhamente,
com a história da besta
apocalíptica. A besta vem do
mar, ela é a mesma coisa que as "muitas águas" sobre as
quais Babilônia, a meretriz
alegórica, se senta. Ao mesmo tempo, a imagem da besta (em
suma, a sua estátua)
ganha vida. Eu tenho ainda uma outra semelhança anciã,
conquanto mais recente, a
propor: no filme Entrevista com o Vampiro, baseado em
um romance, o protagonista
Louis é jogado no mar, antes de virar um vampiro. E a sua
primeira experiência
significativa ao ser transformado é ser capaz de
ver nas estátuas o mover dos
olhos, ou o mover facial.
A pergunta, então, é: o que o
mar tem a ver com estátuas ou imagens?
Nas três histórias; Medusa; Apocalipse; vampiro; se trata
de uma espécie de alegoria
para o tema da danação da alma.
É precisamente essa umas das conotações da alegoria da
estátua de Nabucodonosor.
Inclusive, Nabucodonosor e seu império babilônico são a
origem da alegoria da besta
sobre a qual Babilônia senta.
A estátua de Nabucodonosor e a besta podem ser vistas como
a mesma coisa. A estátua se
associa à idolatria, por isso o filho de Nabucodonosor se deu
mal, conforme narra o Livro
de Daniel, por idolatrar ídolos feitos dos mesmos materiais
que compõem a estátua; ouro,
prata, bronze, ferro; além de ídolos de madeira e pedra.
Essa idolatria significa se fiar
no que é de criação humana, como uma estátua, em
oposição ao se fiar no que é de
criação divina, como a alegórica rocha "não cortada
por mãos" que esmaga a
estátua de Nabucodonosor e se
transforma em uma montanha. O "ganhar vida" da imagem da
besta, bem como o mover de
olhos da estátua no filme sobre vampiro, são uma alegoria
para a idolatria, o atribuir vida
ao que é morto, o pretender ser encorajado pelo que é funesto
ou espectral. É por isso que no
filme Lara Croft: Tomb Raider, antes de entrar em
certo templo cambojano onde
as estátuas ganham vida, um dos personagens fala a respeito
de entrar "no ventre da besta".
A incapacidade de distinguir
entre um ser vivente e uma
estátua é uma característica,
digamos, da idolatria; precisamente o que está por
trás da história de Medusa. De
outro lado, a idolatria tem um caráter hipnótico e contagioso,
mais ou menos como uma
profecia autorrealizável: se você trata uma pessoa como
menos que humana, como um
espectro sem vida, essa pessoa passa a se aproximar dessa
expectativa; o que lembra a
lição de etiqueta segundo a qual "a pessoa que não sai do
lugar-comum força os outros a
se sentir míseros".
O efeito do olhar de medusa
tornando as coisas estátuas, portanto, significa tornar tudo
superficial e estéril, por
exemplo como um lugar-comum cadavérico. Dizer que
esse olhar torna tudo estátua é
o mesmo que dizer que esse olhar projeta sobre as coisas a
bifurcação profanadora de
"mundo como ideia" e "mundo como rapto".
O mar se associa a isso porque a inconsistência de forma das
águas se associa à
inconsistência do "império de ferro", os pés de ferro
inconsistentemente misturados
ao barro. As águas são a
multiplicidade superficial em aparência apartada de um
princípio unificador; assim
como os lugares-comuns degradantes dos quais não se
consegue sair parecem
apartados da situação de discurso.
A profecia a respeito de uma situação em que ninguém pode
comprar ou vender sem a
marca da besta significa precisamente uma situação de
pandêmica e mútua
transformação das pessoas em "estátuas" pelo efeito-medusa.
É isso sugerido na
equivalência do número da
besta, do nome da besta e da sua imagem, como marca-
requisito para se comprar e
vender; significando a indistinção entre essas três
coisas, como a indistinção
entre signo, significado e referente/objeto real.
Aqui está o plot twist: a Bruxa de Blair, à luz disso, está entre
nós. Ela é Medusa. O filme
The Blair Witch Project (1999) baseou o seu curioso ou
significativo marketing boca-
a-boca na indistinção faceira entre a história de terror e a
realidade; como se o filme
fosse uma gravação ou
documentário verídico antes que uma criação de
mentirinha. Essa indistinção
entre ficção e realidade é alusiva da indistinção entre a
estátua e o ser vivente; é uma
característica da idolatria. O sentido do filme é
precisamente sugerir
alegoricamente a danação da alma, como "Entrevista com o
Vampiro".
Os antiperenialistas são
medusas.
Capítulo V - Antiperenialismo
e proto-marxismo
A diferença entre "proto" e "tardo" é a diferença entre o
bebê na barriga e o velho;
sábio ou não.
Uma outra maneira de explicar
seria a diferença entre se interessar por uma garotinha
israelense falando em inglês
com carregado e fofo sotaque, de um lado; e de outro se dar
conta, após décadas de casado
consigo, que ela é uma megera. Esse exemplo cansado
(para não dizer excêntrico)
vem da influência de baladas étnicas. Deixemo-lo.
O marxismo tem lá as suas
influências remotas. Que uma delas seja o neoplatonismo, e
que tal pareça à primeira vista
excêntrico, eu deixo a outrem julgar. Foi Leszek Kolakowski
quem o propôs.
Para os de mentalidade
marxista o mundo é bifurcado
em "mundo como ideia" e "mundo como rapto", o que
pode ser visto pela
correspondência entre isso e as categorias da "superestrutura"
(a ideologia pretextual) e da
"infraestrutura" (o que esse pretexto desejaria esconder).
Essa ideia veio de algum
lugar.
Certa tese que parece ter
origem neoplatônica é a de que Deus fez o mundo porque
precisava dele para se realizar
ou aperfeiçoar, de outro modo o mundo não teria sido feito
ou não teria razão de ser. Isso
opõe o intelecto criador tomado de modo
comparativamente pejorativo
(mundo como ideia), a uma natureza cuja função é elevar o
criador e desvelar o real
(mundo como rapto). Assim, surgem dois deuses em
disputa, porque surgem dois
princípios distintos da
divindade.
Essa disputa também pode ser
descrita como a disputa entre a concepção ("mundo como
ideia") e a impressão ("mundo
como rapto"). Ora, a valorização da impressão, em
detrimento da concepção,
significa a valorização das coisas vistas de fora ou de
modo superficial (exoterismo),
em detrimento das coisas vista desde "dentro" (esoterismo).
Quanto mais superficial mais
acessível e popularizável, daí o igualitarismo das classes
baixas defendido pelo
marxismo; e a expectativa de
que as classes baixas devem tomar o poder.
O marxismo, no entanto, não se apega só à impressão, como
se teria feito ante a israelense
matreira; ele também usa a valorização da concepção, do
discurso, das ideias, desde que
submissos aos fins da impressão, da coletividade ou
classe social; como a criação,
daquela tese neoplatônica, se usa do intelecto divino para
aperfeiçoar o divino.
O efeito disso é uma contínua,
e ademais pendular, promoção
do efeito-medusa; o sugar
concepção ou "vida" das coisas, tornadas estátuas.
Por exemplo, é a submissão da concepção, tornada pejorativa,
à impressão, o motivo de um
autor como Albert Pike (ele imbuído de ideais
esquerdistas) transmitir os
mais sutis, complicados e refinados conhecimentos no
mesmo escrito em que faz a
panfletagem mais descarada possível em favor do
igualitarismo e da negação da
autoridade do clérigo (eu falo do livro Morals and Dogma, é
claro). Se trata dum confuso
morde e assopra cujo
previsível resultado, e implícito convite inadvertido,
é a promoção do efeito-
medusa, o projetar sobre conhecimentos legítimos uma
falsa, esvaziada e petrificada
interpretação improvisada, impressão de momento.
A inversão hierárquica popularizadora, entre
concepção e impressão,
explica todo tipo de fenômeno do séc. XIX, inclusive o
espiritismo e o teosofismo, que
influenciaram o marxismo.
Essa inversão; a bifurcação do
dogma (mundo como ideia e como rapto) e o efeito-medusa,
são todos diferentes lados da
tirania. E do antiperenialismo.
Note-se ademais, que o morde
e assopra pikeano é uma das origens remotas da ideologia
de que "se deve obedecer o
clérigo, mas não há nem deve haver nenhum clérigo à mão".
A mentalidade que promove
essa ideologia sob o pretexto de combater "subjetivismo" e
"intelectualismo" desviantes é
apenas panfletagem ocultista inadvertida.
Capítulo VI -
Antiperenialismo e Santo Tomás
Porque Santo Tomás de Aquino era um clérigo célebre,
o antiperenialista não pode se
furtar a lidar com ele ( em "homenagem" funesta)
transformando-o em uma
estátua.
Haverá tempo para chorar e
lamentar, e ranger os dentes aos soluços, a deixar rolar
sobre as faces lágrimas; por
causa de tais profanações. Haverá tempo para bramir e
gemer, arrimar contra objetos
e paredes, e assombrar ante a
inconsciência torpe que sorri no entorno. E se não queres
continuar a me acompanhar,
mas insistes em parar pesaroso (se é que o fazes), deixa-me
tomar a harpa e a voz, diante
da Cidade em chamas, enquanto choras.
Eu também choro, um pouco, no canto do olho, a gota
congelando antes de vir
abaixo, o peito esvaziando débil para não soluçar com
gosto; porque o show tem de
continuar; e cada ator deve tomar o seu quinhão. A minha
balada atrapalha o coro alheio,
é étnica, mas isso faz pouco
efeito; estão todos bêbados, a dissonância é o ar que
respiram.
O ar que se respira na Summa
Theologica de Santo Tomás é
a ideia de que todas as coisas estão em Deus, e Deus está em
todas as coisas. Os que
desprezam a concepção, em prol da impressão, tratarão
com profundo respeito essa
ideia, em público; mas no fundo dão uma figa pra ela; e
estão pouco se lixando para se
é verdadeira ou não, não se interessam o suficiente para
ajuizá-lo. Os raciocínios
tomistas a respeito, para o
íntimo dos antiperenialistas, equivalem em esquisitice ao
Duque de Anjou se travestir de
cortesã fogosa, com direito a leque, espartilho, pó de arroz e
risadinhas histriônicas. Na
melhor das hipóteses, o ponto de vista tomista afasta o
antiperenialista sem que ele
chegue a cristalizar essa impressão negativa; e o
tomismo se vê reduzido,
assim, a um repertório de sacadas elegantes vistas de
fora, como o duque antes da
sua aversiva "transformação de cinderela".
Por causa do seu malquerer à
concepção, o antiperenialista não terá nenhuma
familiaridade com raciocinar
empregando concepções clássicas, como as noções de
"diferença específica",
"definição", "propriedade", "acidente", "gênero", "relação"
etc. Quando ele tem alguma
ideia do que são essas coisas ele seja as trata como semi-
frivolidades teatrais ("mundo
como ideia"), às quais deve alguma coisa na medida em
que é devedor das aparências;
ou, no menos degradado dos casos, ele trata essas
concepções como passíveis de
ser empregadas de modo mais
ou menos convencional; ora sim, ora não; o hiato entre os
dois casos sendo preenchido
pela impressão, pelo efeito-medusa. Isso desde já sugere a
incapacidade de admitir "A
respeito disso e daquilo, estou aquém, não posso julgar"; uma
admissão que, dita da boca
para fora, pode muito bem esconder o efeito-medusa à
plena vista. Esse esconder à
plena vista a própria ignorância, ademais, pode
tomar diversas formas.
Mas voltemos ao tomismo,
que afinal é preciso vez ou
outra respirar um pouco. Ora,
Deus estar nas coisas, e elas nEle; se expressa, por
exemplo, na tese tomista de
em Deus não haver distinção entre essência e acidente. Se
alguém é um homem
(essência), não segue que é brasileiro (acidente). Em Deus
essa distinção não existe.
Consequentemente, porque, seguindo Santo Tomás, as
coisas existem na medida em
que se assemelham a Deus (embora não possa existir
medida de comparação entre
as coisas criadas e Deus), a coadunação entre essência e
acidente, a unidade subjacente
entre essência e acidente, é um
reflexo ou uma semelhança em relação à análoga unidade ou
indistinção entre essência e
acidente em Deus.
No tomismo é distinguido
entre ato e potência. Por exemplo, se eu toco harpa
pesaroso, e desejaria chorar,
meu choro existe em potência. Se eu entoo uma canção triste
enquanto sinto o calor e o
crepitar das chamas à volta, a canção é em parte ato, em
parte potência, porque é em
parte cantada e em parte ainda resta ser cantada. Dessas
considerações decorre que o
fato de em Deus não existir
distinção entre essência e acidente está ligado ao fato de
em Deus, segundo propõe o
tomismo, não existir potência mas só ação. Deus não precisa
aguardar o fim da canção para
cantá-la ou ouvi-la, nem muito menos precisa aguardar para
poder manifestar pesar. Assim,
a essência corresponde à "ação" (porque a essência é
comparativamente mais real,
como a ação), o acidente à potência (porque o acidente é
comparativamente mais irreal,
como a potência); a distinção entre esses dois pares não
existindo em Deus por
motivos aproximados, embora
esses dois pares não tenham uma definição coincidente.
Eu não insisto em detalhar esses pontos seja porque o
leitor quiçá me imaginar
(projetivamente) com um leque na mão é de mau tom, e
eu não quero cansar a sua
beleza; seja porque o leitor pode ler a Summa Theologica
a qualquer momento e lá achar
a insistência nessas noções católicas outrora mais
ordinárias.
O ponto é que dessas
considerações segue que a
doutrina dogmática
corresponde mais ao "ato" e à "essência", enquanto a
doutrina moral corresponde
mais à "potência" e ao "acidente"; e que por isso
existe entre dogma e moral
uma unidade subjacente, tornando dogma e moral
termos relativos, como "pai"
em relação a "filho".
Isso é significado na epístola 1
João 5:8 pelas "três testemunhas terrestres",
"espírito", "água" e "sangue".
Essa divisão a passagem indica em paralelismo com as
três pessoas divinas, Pai,
Verbo (Filho) e Espírito Santo,
nessa ordem. Ora, essa mesma divisão tem certa
correspondência com a divisão
dos catecismos em "doutrina teológica", "doutrina
sacramental" e "doutrina
moral", divisão que se apresenta nessa mesma ordem,
a mesma da epístola. As três
testemunhas terrestres "são um"; consequentemente a
doutrina teológica e a doutrina
moral "são um" em um sentido subjacente; porque são uma
espécie de projeção terrestre
das Três Pessoas celestes (que são idênticas em essência) na
Sua mútua relação.
Segundo a Carta a Flaviano (Concílio de Calcedônia) as
três testemunhas terrestres,
"espírito da santificação", "água do batismo" e "sangue
da redenção" são termos
relativos, se você tem uma, tem as demais, em um elo
inseparável. A mesma coisa
Santo Agostinho diz das pessoas divinas, que são
termos relativos. Se você não
tem o Pai, não tem o Filho, se você tem o Pai, tem o Filho.
Se você não tem o Espírito
Santo não tem o Pai nem o Filho, e vice-versa etc.
Consequentemente, se você
não tem a moral não tem o
dogma, e se não tem o dogma, não tem a moral, uma coisa se
prolonga na outra
subjacentemente, os dois termos são mutuamente
conversíveis.
A unidade subjacente entre
dogma e moral também é
significada pela propriedade das três doutrinas; "teológica";
"sacramental"; "moral". Na
doutrina teológica há "coisa significada", "significado" e
"signo". O significado (o que
se intencionou dizer) é uma tensão ou intermediação entre
"coisa significada" e "signo".
Na doutrina sacramental há
"fórmula", "intenção" e "matéria". Por exemplo, em
um dos sacramentos, o
batismo, certas palavras são a "fórmula", a "intenção" é o
emprego da fórmula com a
intenção de batizar, e a matéria é a água. A intenção, mesmo
etimologicamente, significa
"tensão" e "intermediação". Na doutrina moral há "preceito",
"esforço" e "circunstância"; o
esforço sendo a intermediação entre o preceito e a
circunstância. Similarmente, a
doutrina sacramental é uma tensão ou intermediação entre
a doutrina teológica e a
doutrina moral.
A passagem em João 14:6
("Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida") também
guarda correspondência com 1
João 5:8 e as três testemunhas terrestres (espírito, água e
sangue) em paralelismo com
as testemunhas celestes (Pai, Verbo e Espírito Santo),
inclusive porque é uma
passagem sobre as pessoas divinas serem termos relativos
(se você tem um tem outro). O
"caminho" corresponde a "água" (doutrina sacramental),
a "verdade" ao "espírito"
(doutrina teológica), a "vida"
ao "sangue" (doutrina moral). Teologia, sacramentos e moral
também correspondem a
"todas as coisas" serem vindas de Deus, serem através de
Deus, e serem em Deus
(Romanos 11:36, passagem que usa essa mesma ordem).
Também correspondem a "fé,
esperança e caridade" (1 Coríntios 13:13); sendo
significativo que o Espírito
Santo tradicionalmente se associa à caridade, segundo o
Catecismo de Trento.
Essas correspondências
tornam mais significativo que
o Credo preconize a enfática
importância do Espírito Santo através do artigo que diz
"Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá vida" etc. O Espírito Santo corresponde à
doutrina moral, e isso está
ligado ao fato de que se está imerso nele (Romanos 11:36),
como se está imerso na vida
(João 14:6), o experimentar a caridade (1 Coríntios 13:13)
sendo o experimentar estar
imerso em algo não perfeitamente abarcado. O
Espírito Santo, entretanto, por
ser principiado pelo Pai (que correspondente à doutrina
teológica) se associa
precisamente à noção da
divindade sob o aspecto de Deus doar vida através da
doação de possibilidades
concepcionais que são comparativamente mais
pressentidas do que abarcadas.
É precisamente essa a natureza da doutrina moral. Isso pode
ser visto, ademais, pelo fato de
certa lenda sobre Santo Antônio de Pádua indicar que
um frade franciscano deixou
de todo de ser confrontado por tentações depois de Santo
Antonio soprar sobre ele
dizendo "Recebe o Espírito Santo!". O frade deixou de ser
tentado sem entender por que,
inteiramente, em um sentido
concepcional, mas pressentindo o por quê.
Como o ato divino (segundo o tomismo) principia as coisas
potenciais, sem que Deus
tenha qualquer coisa de potencial; o domínio moral é
uma projeção do domínio
teológico, sem que os dois domínios sejam coincidentes.
Em todo caso, esses domínios
são relativos um ao outro, e porque o domínio teológico
principia, o moral é
principiado, eles possuem uma unidade subjacente, como a
essência e o acidente.
Feita toda essa explicação; em intervalo no qual o leitor que
tiver chorado em vez de
entender terá feito bem mais que a maioria; é possível fazer
observações retrospectivas
surpreendentes.
Já foi mencionada a tese
neoplatônica de que Deus é aperfeiçoado pela natureza; e
na esteira disso, a natureza ou
a criatura se torna uma espécie de princípio em competição
com Deus, uma segunda
divindade. Também foi mencionado que decorre disso
a expectativa de que a
impressão (que corresponde à
natureza) compete com a concepção (que corresponde
ao intelecto divino criador),
com o resultado de que a multidão passa a competir com
o clérigo a respeito de quem
deve dirigir e governar.
Ora, dogma e moral
correspondem, adicionalmente, a concepção e
impressão. Essa inversão
neoplatônica, portanto, faz decorrer a tentativa de colocar
a moral como um domínio que
principia o dogma, ou tem certa independência em
relação a ele, que compete
com ele ao ponto de a sua
inferioridade hierárquica e dependência não ser evidente.
É por meio desse mecanismo
que o protestantismo cortou o inequívoco cordão umbilical
entre fé e moral, promovendo
uma confusa ou dúbia independência entre a
profissão de fé (concepção) e a
moral (impressão).
É significativo, a esse respeito,
que Albert Pike tenha intitulado seu livro clássico
"Morals and Dogma",
sugerindo o colocar a doutrina moral como competidora da
concepção sutil em prioridade.
A independência da doutrina
moral é um dos ingredientes do igualitarismo moderno, o
que pode ser visto em que a
doutrina moral é mais acessível, e o cortar os laços
entre ela e o dogma
conveniente a uma mentalidade que quer boicotar
o clérigo, o indivíduo
contemplativo; e todo traço de esoterismo que o clérigo traz à
mesa.
Curiosamente, a objeção à
ideia da unidade subjacente
entre dogma e moral pode muito bem ser combatida pelo
antiperenialista com algum
abstratismo pejorativo ("em tal
e qual circunstância há ação moral sem dogma subjacente
ou levado em consideração")
que bem ilustra a correlação entre "mundo como ideia" e a
noção de "efeito-medusa"; já
que só é possível negar essa unidade subjacente através de
um truque verbal, tudo quanto
dito acima corroborando essa unidade de modo suficiente.
Não se trata de dizer, por exemplo, que a pessoa que
peca faz uma falsa profissão
de fé ao ponto da má fé "em ato" que separa da Igreja por
heresia. Mas é manifesto que a
pessoa que peca faz uma falsa
profissão de fé em potência; a diferença entre dogma e moral
correspondendo precisamente
àquela que existe entre ato e potência.
Se batendo em favor da independência da moral em
relação ao dogma, e não
admitindo senão uma relação mais ou menos "retroativa", ou
costurada de fora pela mente
(mundo como ideia); o antiperenialista não tem o
hábito de examinar a própria
conduta moral à luz de concepções que escapem a
alguma convenção ou
estereótipo. O que o
antiperenialista entende por moral, portanto, é a convenção
estereotípica, tudo mais sendo
profano; o que faz do antiperenialismo algo muito
parecido com o
protestantismo, na medida em que o protestantismo não raro
se vê reduzido, segundo se diz,
a uma espécie de ética secular ou cívica. Esse tipo de moral
não tem nada a ver com o
domínio religioso ou sobrenatural.
Capítulo VII - Antiperenialismo, zahirismo e
a New Age
Uma história sobre homens que tomam café da manhã com
estátuas, e papeiam com elas
rotineiramente, é uma história suja como um filme de terror.
É precisamente esse o papel
ingrato no qual eu me coloco ao falar dos antiperenialistas.
Quem fala mal dos outros parece malicioso e invejoso;
quem dá más notícias parece
odioso (no melhor dos casos malcriado); quem aconselha o
que necessita conselho parece
enfadonho e importuno; quem anatematiza hereges parece um
"narcisista das pequenas
diferenças". Tudo isso é
verdade, e longe de mim negar que o efeito provável-aparente
do meu estudo é o mais solene
fracasso e esquecimento; na melhor das hipóteses um
linchamento público com
direito a pontapés no traseiro, por inimigos com o ímpeto
extasiado de uma pessoa para
quem não existe um amanhã.
Seja como for, eu tenho a
palavra e o deserto; nada mais sendo necessário para dizer a
verdade. Eu tenho tudo que
preciso, tudo o que almejo. As crianças celebrem a própria
dourada juventude no pátio,
enquanto sofro uma morte
dourada cá no aposento, e esse é o uso do mundo.
O zahirismo é uma doutrina islâmica, tomada como
heterodoxa em alguns círculos,
e significa a ideia de que a leitura estrita, com valor de
superfície (face value), é a
única leitura legítima de um texto sagrado. Essa premissa
supõe que se Deus houvesse
de propor camadas de sentido adicionais, ele as proporia em
um texto adicional; procurar
um fundo por trás do texto é estéril e presunçoso. O
zahirismo, portanto, significa a
indistinção entre texto
profano/ordinário e texto sagrado, correspondendo à
indistinção entre impressão e
concepção.
Os antiperenialistas são
"zahiristas", é claro.
Cabe acrescentar que Santo
Tomás propunha que as escrituras sagradas têm como
propriedade multiplicidade de
sentido (sem ocasionar equívoco), e que dos quatro
sentidos principais o sentido
alegórico, principalmente, tende a se prolongar
indefinidamente em camadas
adicionais; enquanto os
antiperenialistas, de sua vez, tendem a valorizar o sentido
literal, e desprezar toda outra
camada; quando menos não têm qualquer objeção ou
alarme provável a quem
propõe desprezar toda outra camada.
Não havendo para esses indivíduos nenhuma distinção
significativa entre a linguagem
sagrada e a linguagem profana (no melhor dos casos nenhuma
clareza significativa a
respeito), a diferença entre as duas coisas tem de se basear
em uma espécie de convenção.
Dar importância ao
simbolismo bíblico como algo guardando um tesouro sutil, é
para os tais o sinal de uma
frivolidade, a despeito, por exemplo, da Summa
Theologica, Pars Prima,
Questão 2, Artigo 9, Resposta à Objeção 2: “O próprio
esconder a verdade em figuras
é útil para o exercício das mentes
pensativas/responsáveis e
como defesa contra o ridicularizar dos ímpios, de
acordo com as palavras ‘Não
dê aquilo que é santo aos cães’ (Mateus 7:6).”
Esse caráter convencional do
valor das escrituras faz que não se dê muita importância --
senão uma condicionada à
convenção -- ao conteúdo do que se diz, do que quem quer
que seja diz; faz com que o
hábito de agir assim pareça um modelo de maturidade.
Semelhantemente, as seitas da
Nova Era são conhecidas, desde a visão olavista, por
empregar a razão contra as
doutrinas religiosas de fora, e internamente não ligar para
prestar contas à razão, como se
o emprego da razão tivesse um valor meramente
convencional.
O curioso é que o zahirismo deveria ser um se fiar na letra
da escritura, não um desprezá-
la. Este, porém, parece ser o preço a se pagar por tornar as
escrituras tão superficiais
quanto a adquirir uma textura quebradiça. O recurso usado
para preencher os espaços
entre as rachaduras é o sentimento. O capricho
sentimental de hoje substitui o
silogismo de ontem. As manhas e queixas confusas
aposentam os tratados
aristotélicos de lógica.
É na esteira disso que surgem
acusações de heresia sem nenhum conteúdo herético;
sem nenhum conteúdo de
todo; e o alardear mentiras sem a capacidade de as
distinguir claramente da
realidade, ou responder por elas; alardear mentiras por
meio de dizeres subliminares,
e por isso tanto mais capciosos e de difícil exame. É possível
se escandalizar porque alguém
compara a religião católica com uma outra, sem isso
implicar a proposta de uma
coincidência, ou de algum indiferentismo religioso;
quando o reconhecer que uma
religião é uma religião, falsa
ou não, é já necessariamente uma comparação. É possível
acusar alguém de heresia por
defender que um herege não tinha tal ou qual defeito alheio
à sua heresia; mas uma outra
falta, não importa se mais ou menos grave. Se eu digo
"Aquele herege não roubou
pirulito da criança, mas a esbofeteou", eu estou aderindo
à heresia dele, e de modo
cafajeste. Não há diferença significativa entre dizer "O
muçulmano é monoteísta" e
fazer as cinco preces diárias do islã. Não é possível mais
distinguir a essência do
acidente, o que se disse e o
que se sente que foi dito; em uma espécie de paródia
demoníaca da indistinção
tomista entre essência e acidente em Deus; uma
paródia que essas hipérboles
capciosamente dão a impressão ser mais exagerada
que real; pois se trata menos
de hipérboles do que de exemplos por um mero acaso
mais imunes a uma convenção
ou expectativa pejorativas.
Em certos meios sociais
antiperenialistas a única maneira de ser ortodoxo é
submeter a própria percepção
e sentimentos à atmosfera
social em torno, e na prática se submeter ao indivíduo em
destaque no meio social; o
qual é não raro o que menos se assemelha a um clérigo; é
alguém que, isto sim, se
assemelha a um xamã, i.e. um indivíduo que abriu mão da
gratificação intelectual para
melhor produzir ou sentir um efeito psíquico, o efeito-
medusa e a auto-petrificação;
inclusive um indivíduo que, como se diz em inglês, "will
go the extra mile" para não ter
de se endereçar intelectualmente àquilo a que
pode se endereçar com o uso
de um truque ou distração.
A inclinação coletivista em
questão torna indistintas não apenas essência e acidente em
afirmações doutrinais, mas
íntimo e exterior, "eu" e "ele", subentendendo inclusive a
expectativa de antever, ou até
conhecer telepaticamente e em detalhes, hábitos privados e
pensamentos alheios, como
alguém que tivesse uma faculdade mística. Não é
possível impedir que isso
aconteça depois de abolida a distinção entre "superfície" e
"fundo".
A Igreja Católica deveria ser "universal" porque os seus
membros são unidos pela
intermediação da concepção, e pela intermediação daqueles
que personificam a concepção
(os clérigos). A inclinação antiperenialista, a intermediar
a relação de "fiéis" pelo
sentimento em detrimento da concepção, pode muito bem
vir de par com o mais
hipócrita desprezo pela dignidade do clérigo, pode vir
de par com o usar o clérigo
como mero carimbador inadvertido de algo que se
decidiu preconizar.
A indistinção entre "superfície" e "fundo",
ademais, se expressa na mais
perfeita indiferença e mal-disfarçada incompreensão do
Segundo Mandamento,
Mandamento que implica o esforço pela acuidade e pelo
cuidado no uso de nomes
sagrados, como "Deus". A reverência pelo nome sagrado,
qualquer que seja o objeto
sagrado, significa o reconhecimento de que por
trás da superfície do nome há
algo grave e profundo que o nome deve necessariamente
evocar, sob pena de se padecer
em patética e funesta cegueira.
O Segundo Mandamento se prolonga em todos os demais
dos Dez Mandamentos, porque
todos supõem "superfície" e "fundo", e é o elo entre os
demais e o polo
comparativamente mais concepcional do Primeiro (a
honra a Deus, a aversão à
petrificação idólatra que faz desaparecer a dimensão
concepcional e divina no seu
sentido ilimitado). Assim, o Catecismo de Trento ensina
que o Segundo Mandamento é
o Primeiro Mandamento, de certo modo; isso significando
uma alusão à unidade
subjacente entre concepção e
impressão, dogma e moral, entre o Espírito Santo e a
vida.
Capítulo VIII -
Antiperenialismo e "o
problema final"
Me parece que se destaca em
certas obras da literatura americana um tema. Digamos
que ele seja o problema central
do mundo contemporâneo. Esse é o tema de que a
influência do clérigo (a
influência da concentração concepcional) não pode
alcançar os servos, as pessoas
espiritualmente mais
periféricas.
Por exemplo, no conto "Daisy
Miller", de Henry James, se trata de uma estranha história a
respeito de como o caráter
americano, retratado alegoricamente, pode chocar
os europeus. Os europeus
acharam estranho na moça americana Daisy Miller que
ela parecesse uma namoradeira
desajuizada, sem recato, e ao mesmo tempo fosse seguro
que ela era uma pessoa muito
casta e inocente. Isso sugere uma atmosfera na qual o
estereótipo, a superfície, se
sobrepõe à intenção autêntica
justamente porque a intenção é estéril, não foi "fecundada", o
que guarda paralelismo com o
fato de o narrador, o Sr. Winterborne, não ter a menor
intenção amorosa significativa
para com a moça, e ser um libertino. O recato de fundo, e
a libertinagem de superfície,
da parte da moça, se contrasta com o recato de superfície, e
libertinagem de fundo, do
rapaz.
A recusa do clérigo
(representado pelo masculino) a alcançar o mundo secular
(representado pelo feminino)
significa a presença ou atuação
espectral de um clero nominal, na falta de um clero autêntico.
O livro de Lyman Frank Baum, O Mágico de Oz, repete
o mesmo tema. O "grande e
poderoso" Oz, chefe de Emerald City, representa o
clérigo nominal que não é
clérigo autenticamente, e, portanto, só em um sentido
residual e duvidoso pode opor-
se às bruxas (que representam o aspecto negativo ou
degenerado do mundo
secular).
Semelhantemente, em "As
Aventuras de Huckleberry Finn", romance de Mark
Twain. A descida pelo rio
Mississippi de Huckleberry (uma criança travessa) e Jim
(um escravo fugitivo de pouca
instrução); essa fuga representa o servo, o leigo
deixado à própria sorte. Essa
descida, como as pernas de ferro da estátua de
Nabucodonosor
desembocando em pés de ferro misturado a barro, desemboca
no encontro com uma dupla de
charlatães (que representam os tiranos, a usurpação de um
papel nobre pelo servo). É
significativo que o
personagem, nessa história, que corresponde ao clérigo, é
o menino chamado Tom
Sawyer; que aparece no final e rouba a cena de modo
fantástico. Sawyer está
interessado em colaborar com o bem-estar de Huckleberry e
Jim, e ele o faz criando e
explorando, mesmo de modo cômico, possibilidades de ação
(concentração concepcional).
Isso sugere que qualquer intervenção autêntica do
clérigo na sociedade
americana possui um caráter cômico e imaturo; decisivo
mas discreto, assim como
aquilo que é cômico é por
definição mais sutil do que direto, isto é, é uma
insinuação. Da mesma
maneira, em O Mágico de Oz o papel sacerdotal e nobre é
desempenhado por noviços
político cômicos, isto é, Dorothy e seus companheiros.
Esse mesmo tema está na história trágica de Scott
Fitzgerald, O Grande Gatsby.
Tom Buchanan, marido de Daisy, corresponde ao mágico
de Oz, ele tem uma posição de
prestígio e nobreza nominais, mas é um tirano. O
pretendente rival do Sr.
Buchanan é Gatsby, que
corresponde às bruxas de Oz, porque Gatsby representa uma
espécie de insubordinação do
mundo secular, do leigo, deixado com a tarefa de
governar a própria sorte desde
a própria inferioridade. Os dois são tiranos, eles são dois
lados da mesma moeda,
precisamente conforme a imagem dual "do lobo em pele
de ovelha", e é por isso que a
atuação sutil e cômica do clérigo (o aspirante a escritor
Nick Carraway), é ambígua
em se fazer, de modo corrompido, colaboradora de
um ou outro.
O mesmo tema é explorado no livro Inferno, de Dan Brown.
O Prof. Langdon corresponde
ao clérigo, a agente governamental Elizabeth
Sinskey corresponde ao
mundo secular; eles se terem separado quando jovens em
vez de se casarem significa
precisamente o deixar o mundo secular à própria sorte;
principalmente se o contexto é
uma degeneração civilizacional que faz surgir
tiranos ou "bruxas" como
Bertrand Zobrist. O principal tema dos romances do Sr.
Brown parece ser o do
intelectual (ou clérigo) imerso
em um mundo dividido nas categorias de Bruno Tolentino,
"mundo como ideia" e "mundo
como rapto".
Feitas essas explicações,
parece manifesto que elas tornam o drama americano
muito parecido com o drama
do mundo islâmico. A principal característica do islã,
segundo René Guénon (que foi
um sheikh), é a separação enfática entre exoterismo e
esoterismo, e portanto entre o
ponto de vista do leigo (mundo secular) e do "clérigo" (mundo
contemplativo). O islã é uma
tentativa de mitigar esse não
casamento entre o mundo secular e o mundo clerical;
precisamente o que a cultura
hollywoodiana, com o seu repertório sem fim de
simbolismos tradicionais
discretos, faz pelos EUA. Hollywood etc. discute coisas
profundas aos olhos de todos,
sem que quase ninguém entre nas discussões ou as
acompanhe, e todo mundo fica
contente.
Essa mitigação, entretanto,
parece vir com um preço, que é a mistura marginal ou não
total, entre o simbolismo que
reformula o sentido das coisas
("mundo como ideia") e o simbolismo que reformula o
sentido das emoções ("mundo
como rapto"). Um exemplo do primeiro é o seriado Avatar
(que reformula o sentido da
divisão da sociedade em castas, chamando as castas de
"as quatro nações"); um
exemplo do segundo é o filme Deadpool, que parece
reconhecer a ficção das coisas
na própria narrativa, para melhor propor a reformulação
fictícia das emoções,
colocando o escândalo e o desespero como mais real ou
significativo do que a
serenidade e a esperança.
A reformulação das coisas
corresponde ao ferro nos pés da estátua de Nabucodonosor,
a reformulação dos
sentimentos corresponde ao barro. Essa mistura entre ferro
e barro também parece
corresponder à mistura entre "direita" e "esquerda", no
mundo contemporâneo.
Também corresponde às cores púrpura e escarlata (esta não
por coincidência a cor de
Deadpool) da vestimenta de Babilônia, a grande.
Essa dinâmica significa
precisamente que aquilo que não puder ser explicado ou
preenchido com concepção,
será preenchido com algum truque ou alguma distração
sentimental, precisamente o
problema do antiperenialismo. Enquanto o símbolo (a
reformulação das coisas) faz
as pessoas tenderem à compreensão de um sentido de
fundo (ato e essência), o
sentimentalismo (a reformulação dos sentimentos)
faz as pessoas tenderem à
impressão e à superfície (potência e acidente). O jogar
com símbolo (concepção) e
sentimentalismo (impressão) é
todo o sentido da obra maçônica de Albert Pike, um
autor americano clássico.
A pergunta a respeito de como
escapar a essa bifurcação entre
"mundo como ideia" e "mundo como rapto", o jogo pejorativo
entre símbolo e
sentimentalismo; é uma pergunta à qual o catolicismo
deu lá a sua resposta clássica.
Por exemplo, na história de
Santa Maria do Egito.
Eu já contei histórias demais, é
verdade, e se o leitor está
cansado, imagine eu. Eu já
estava cansado alguns capítulos atrás. Por isso
abandona as desculpas, vai
trazer uma xícara de café; se for do teu gosto uma broa de
milho; e uma nesgazinha de
ânimo, como o bom soldado que sei que és. Ou então
encerra a leitura sem ler a
última história nela; eu já estou cansado demais para
debater.
A história de Maria é bem
conhecida, essa santa foi
louvada no Segundo Concílio de Niceia, e a sua história
consta do livro de Alban
Butler sobre santos. Maria foi
uma prostituta em Alexandria, Egito, nascida no século IV,
quando a Igreja Católica era
predominante. Ela se arrependeu dos próprios
pecados e paixões violentas e
foi como arrebatada para o deserto depois de tocada pela
Virgem Maria, passando
décadas em extraordinária e miraculosa penitência,
desconhecida de todos. Mais
ou menos ao fim de sua vida um abade chamado Zózimo a
encontrou quando ele, Zózimo,
fazia uma espécie de peregrinação quaresmal.
Zózimo estava confuso por
causa da sensação que há algum tempo tinha de que ele
havia se tornado perfeito com
religioso, uma ideia correspondente ao "mundo
como ideia". O ter sido
arrebatada pela confusão do arrependimento, da parte de
Maria, e vagarosamente
aprendido a dissipar a força dos ataques das tentações, de
outro lado, corresponde ao
"mundo como rapto".
O ter (em um encontro
seguinte) atravessado o rio andando sobre as águas, de um
banco a outro, para chegar a
Zózimo e receber a eucaristia;
da parte de Maria; é um símbolo justamente para a
travessia da dissipação da
dualidade entre "mundo como ideia" e "mundo como rapto",
as águas significando as
aparências sem forma fixa que assombram o caminho. Não é
a natureza que principia ou
cria o divino, como propunha a tese neoplatônica, mas é
Deus quem, por intermédio do
domínio das impressões (natureza) principia, cria e
aperfeiçoa as criaturas, e
revela a si no fundo das impressões. O constante estar
atento às suas culpas, de
Maria, foi uma espécie de
martírio pelo qual Deus fez da estátua na qual Maria tinha se
tornado um ser vivente de
novo. Consequentemente, a concentração concepcional
tem como fundo substancial
ou vital o martírio, e a mitigação do martírio consiste
precisamente em uma
atenuação corruptora da concentração concepcional.
No jogo para lidar com o nefasto antiperenialismo, e
demais erros que assolam a
Igreja Católica e a causa de Deus, ganha quem for capaz
de olhar para a verdade
dolorosa e salvífica, quem for
capaz de encarar o martírio do testemunho. Isso requer um
milagre, em um mundo que
acomoda marginalmente o sentimentalismo como quem
promove o ar que respira.
Se é necessário um milagre, a
pergunta que se impõe é
"Acaso vou eu rezar por ele?"
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