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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
O “tango para pensar” de Astor Piazzolla
e a crise argentina dos anos 50-60:
o compositor como intelectual-crítico
Avelino Romero Pereira Professor de História da Música da UNIRIO
Mestre em História Social do Brasil pela UFRJ Doutor em História Social pela UFF
Decepcionados, aún esperábamos algo de los hombres del espíritu,
de aquellos a quienes no les parecía impuesta la compulsión de la
práctica. Hombres vivos buscábamos,no sombras ilustres.1
Em 1955, ao retornar de um período de estudos em Paris, o
bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla apresentou um programa de
renovação estética do tango que seria conhecido como “la revolución piazzolleana”. O
músico vinha de uma crise artística, defrontado pelas opções entre ser um compositor
“erudito” ou seguir atuando na música “popular”. Descartando os extremos, concebeu
uma interseção, e aplicando técnicas composicionais “eruditas” às formas tradicionais
da dança, propôs um “nuevo tango”. Em entrevista a uma rádio suíça, em 1983,
referindo-se a seu papel na história do tango, diria que “había aparecido otro tango: el
intelectual, un tango para pensar, no sólo para bailar o cantar”.2 E confirma a tese em
1990, em suas memórias: “soy un hombre de tango, pero mi música hace pensar”.3
O contexto histórico indica o entrelaçamento entre a crise estética
resultante da renovação do tango que o compositor propõe e a crise política e social que
se segue à queda de Perón, em 1955, e se aprofunda ao longo da década e já entrados os
anos 60. No campo minado que é o debate cultural das décadas de 1950 e 60, o caráter
identitário e político do tango funciona como um detonador para um debate a um tempo
estético e político. A crise de 55, marcada pela “desperonização” da política e da cultura
argentinas, coincide com a “revolución piazzolleana” e a polêmica em torno das
inovações com que o compositor marca a diferença com o tango “tradicional”. Dentre as
pedras de escândalo, o “nuevo tango” de Piazzolla abrigava a guitarra elétrica e um
diálogo com o jazz.
1 VIÑAS, Ismael. La traición de los hombres honestos. Contorno. Buenos Aires, n. 1, nov. 1953, p. 3. In: Contorno. Edición facsimilar. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2007, p. 3. 2 PIAZZOLLA, Astor. Entrevista a Carlo Piccardi, Radio Svizzera Italiana, 1983. Transcrito do encarte de Adiós Nonino: El Concierto de Lugano, Interpretado por el Quinteto de Astor Piazzolla. Radio Svizzera Italiana, 1983; Piazzolla Music, 1998. 3 GORIN, Natalio. Astor Piazzolla: a manera de memorias. [2. ed.] Buenos Aires: Perfil, 1998, p. 15.
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Ao situar o programa e a obra de Piazzolla, e as reações contrárias por ele
suscitadas, no debate em torno do “nacional” e do “popular” e da internacionalização da
cultura argentina, reconheço a música como um subcampo intelectual dotado de forte
poder de articulação ao pensamento social e político. Recorro, em apoio, às reflexões de
Edward Said em torno do “elemento transgressivo” na música, isto é, “aquela qualidade
que tem a música de viajar, atravessar, ir de lugar em lugar em uma sociedade, ainda
que muitas instituições e ortodoxias tenham tentado confiná-la”.4 Apoiando-se em
categorias gramscianas, Said considera a tradição da música clássica ocidental como um
dos produtos do trabalho intelectual constitutivos da “elaboração da sociedade civil”.
Isso lhe permite afirmar que “a música compartilha uma história comum de esforço
intelectual com a sociedade da qual forma uma parte orgânica” e que “podemos ver os
músicos como pertencentes à classe intelectual, mesmo se formando um subgrupo
distinto, com seus próprios procedimentos, associações, poderes e valores”.5 Negando a
tendência a se pensar a música como uma totalidade fechada sobre si mesma e alheia
aos embates sociais, Said propõe olhar para “todo o campo da música clássica como um
modo de sustentar a estrutura do status quo”, e para “seu destino como um campo de
realizações humanas desafiado de tempos em tempos por outras culturas, outras
formações não-elitistas, subculturas alternativas”.6 É neste sentido que a música de
Piazzolla parece-me desempenhar-se como um desses “elementos transgressivos” de
que fala Said, ao desafiar as categorizações e confinamentos tradicionais, criando novas
estruturas musicais na confluência de outras já existentes e pondo em cheque as
representações entre “erudito e popular”, “tradicional e moderno”, “nacional e
cosmopolita”, num convite à superação dos automatismos e simplificações conceituais.7
Nascido em Mar del Plata, em 1921, em uma família de origem italiana,
Piazzolla viveu parte da infância e da adolescência em Nova York, onde teve o primeiro
contato com a música – as primeiras lições, os discos de tango que o pai escutava, a
presença de Carlos Gardel, o interesse pelo jazz. Após retornar com a família ao país
4 SAID, Edward. Elaborações musicais. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 23. 5 Idem, Sobre os elementos transgressivos na música. In: Idem, p. 118. 6 Idem, p. 119. 7 Neste trabalho, destaco análises que constam do segundo capítulo de minha tese de doutorado, recentemente concluída: PEREIRA, Avelino Romero. Buenos Aires, história e tango: crise, identidade e intertexto nas narrativas “tangueras”. Tese de Doutorado em História Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense/UFF, 2012.
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natal, transferiu-se para Buenos Aires em 1938, já decidido a ser um músico de tango.8
No final do ano seguinte, entraria para a orquestra de Aníbal Troilo, que lhe pôs no
centro do movimento tanguero. Após um período de atuação com essa que era uma das
mais prestigiadas orquestras de tango, Piazzolla buscou um caminho pessoal. Formou
seu próprio conjunto, enquanto aprofundava os conhecimentos musicais com Alberto
Ginastera, então identificado com o modernismo nacionalista.
Ao se referir ao mestre, o compositor salienta que os ensinamentos de
Ginastera não se restringiam ao plano técnico, havendo-o despertado o gosto pela
leitura, pelas exposições de pintura, pelo cinema e pelo teatro: “Decía que un músico
debe saber de todo, porque la música es un arte totalizador”.9 E reforça esta impressão,
dizendo: “también me transmitió el humanismo de sus mensajes. Decía Alberto que el
músico no puede quedarse únicamente en sus partituras”.10 Para um músico de tango,
mergulhado na rotina das apresentações noturnas nos cabarés e a uma relação mais
comercial do que estética com a música, as lições de Ginastera devem ter cumprido com
a função transformadora e humanista com que o professor orientava sua própria vida e
as instituições em que atuou:11 “mi enfoque de la realidad fue cambiando. Le tomé más
bronca al cabaret, a los músicos que no estudiaban, a la noche”.12 O desconforto de
Piazzolla com o ambiente do tango e do cabaré é um tema a que sempre volta: “para mí
fue un impacto de alto voltaje. Estaba tocando con Troilo y con la mayoría de mis
compañeros sólo se podía hablar de fútbol y de escolaso”.13
Vivenciando essa tensa relação entre dois ambientes artísticos como uma
crise pessoal e identitária, após ser distinguido com uma premiação e uma bolsa de
8 A história de vida de Piazzolla está construída em relatos dele próprio transcritos por outros, e sistematizado em uma biografia e um documentário. Ver SPERATTI, Alberto. Con Piazzolla. Buenos Aires: Galerna, 1969; PIAZZOLLA, Diana. Astor. Buenos Aires: Corregidor, 2005 [1987]; GORIN, Natalio. Astor Piazzolla: a manera de memorias. Buenos Aires: Perfil, 1998 [1990]; AZZI, María Suzana, COLLIER, Simon. Astor Piazzolla: su vida y su música. Buenos Aires: El Ateneo, 2002 [2000]; DIBB, Mike (prod. e dir.) Tango Maestro. In: Astor Piazzolla in Portrait. DVD. Londres: BBC, 2004. Para estudos críticos de sua obra, ver KURI, Carlos. Piazzolla: la música límite. 2. ed. Buenos Aires: Corregidor, 1997 [1992]; GARCÍA BRUNELLI, Omar (org.). Estudios sobre la obra de Astor Piazzolla.
Buenos Aires: Gourmet Musical, 2008; FISCHERMAN, Diego, GILBERT, Abel. Piazzolla, el mal
entendido: un estudio cultural. Buenos Aires: Edhasa, 2009. 9 PIAZZOLLA, A. [Depoimento.] In: PIAZZOLLA, D. Astor, op. cit., p. 135. 10 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 68. 11 Ginastera fundou e dirigiu o Conservatorio de Música y Arte Escénico de La Plata, a faculdade de música da Universidad Católica Argentina, e o Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales no Instituto Di Tella. Ver URTUBEY, Pola Suarez. Alberto Ginastera en 5 movimientos. Buenos Aires: Víctor Lerú, 1972, p. 14-5. 12 PIAZZOLLA, A. [Depoimento.] In: PIAZZOLLA, D. Astor, op. cit., p. 136. 13 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 68. “Escolaso” é o termo lunfardo para jogo.
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estudos, seguiu em 1954 para Paris, disposto a se tornar um compositor de música de
concerto. Ali, teve aulas de análise, contraponto e composição com Nadia Boulanger
(1887-1979), amiga e admiradora de Stravinsky. Boulanger defendia o que se costuma
chamar de “neoclássico” ou “nova objetividade”, em oposição às tendências
representadas por Schoenberg, Messiaen e Boulez. A crer nas memórias e depoimentos
de Piazzolla, as lições da professora valeram-lhe o encontro consigo mesmo e com o
próprio tango, que estivera disposto a abandonar. Aplicando as técnicas e os
conhecimentos adquiridos à sua própria música, deu origem ao “nuevo tango”, nascido
da interseção entre a tradição tanguera, as formas barrocas de Bach, o modernismo
neoclássico de Stravinsky, Bartok e Hindemith, o jazz de Nova York e ainda as
experiências de Gershwin, Bernstein, Villa-Lobos e Tom Jobim.
Ao retornar de Paris, em 1955, Piazzolla funda o Octeto Buenos Aires,
inovador mas inviável economicamente, e que dissolveria em 1958. O retorno ao país
natal dá-se no emblemático ano de 1955, correspondente ao colapso do regime peronista
e ao refluxo no movimento tanguero, com a inviabilização econômica dos bailes com
execução ao vivo, a redução dos quantitativos das orquestras e o deslocamento do tango
dos salões de baile para os palcos de espetáculos e clubes noturnos. É o próprio
Piazzolla quem diz que o tango estava morto e que a renovação por ele trazida seria a
condição de sua sobrevivência, ainda que em novas bases, capazes de atraírem o
interesse das gerações mais jovens, tocadas pela importação da música pop que marcava
as transformações da indústria cultural nacional e multinacional.
“It was like a war of one against all”.14 Num depoimento de 1989,
colhido pela BBC inglesa, assim se refere Piazzolla ao conflito instaurado por sua
aposta na renovação do tango. O compositor conta ter sofrido ameaças e agressões nas
ruas. Em uma entrevista de 1983, explica a reação dos tradicionalistas, que “por razones
de afecto y por los recuerdos de cuando bailaron su primer tango”15, teriam reagido
como se ele lhes estivesse roubando algo valioso. Relatos mais antigos do compositor,
porém, revelam não haver nada de casual em sua atitude, tendo ele optado
deliberadamente por um caminho de confronto. Num depoimento de 1963, ao falar do
impacto do Octeto, disse que “fue una verdadera revolución”.16 Em 1969, lembrava que
14 PIAZZOLLA, Astor. Tango Nuevo. Programa produzido e dirigido por Tony Staveacre, BBC, 1989. In: DAMME, Ferenc van, PETRI, Hans. Astor Piazzolla in portrait. DVD. Londres: BBC, 2004. 15 Idem. Entrevista a Carlo Piccardi, 1983, op. cit.. 16 Idem. [Entrevista.] In: BENARÓS, León. 7 para el tango. Buenos Aires: Corregidor, 2005, p. 73.
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escreveu de Paris aos futuros integrantes do grupo, recomendando-lhes que estivessem
alertas, porque formaria um conjunto “para matar”: “Éramos una furia que se llevaba
dentro y que al fin podía salir. Éramos ocho tanques de guerra y era 1955, cuando lo que
hacíamos era absolutamente revolucionario”.17
“Revolución” e “revolucionario” são palavras correntes nas falas de
Piazzolla. Nas décadas de 1950 e 60, seu uso não era nada simples, considerando-se o
nível de radicalização política a que chegara o país. Na retórica peronista, “Revolución”
se referia tanto ao golpe militar de junho de 1943, que terminaria levando Perón ao
poder, quanto à política social conduzida pelo líder desde a Secretaría de Trabajo y
Previsión primeiro, e a presidência da República depois. “Revolución Libertadora” foi
como os opositores de Perón chamaram o golpe militar que pôs fim a seu governo, em
setembro de 1955, quando Piazzolla exibia seus “ocho tanques de guerra”. E
“Revolución Argentina” seria o nome que os militares dariam a um novo período de
exceção, inaugurado em 1966 por novo golpe de Estado. A isso, é claro, podemos
somar a Revolução Cubana e a experiência de modernização desenvolvimentista de
Frondizi, eleito em 1958 e afastado em 1962, por pressão militar.
Claro que “revolución” em Piazzolla não pressupõe um programa social
ou político para o país ou a adesão às revoluções em curso ou em projeto, mas implica
uma ação micropolítica no campo da cultura tanguera. A “revolución piazzolleana”,
como se convencionou chamar, dava-se, ao menos a princípio, num plano estritamente
musical, que ele descreve pelo tratamento contrapontístico, por novas possibilidades
harmônicas nos arranjos e composições, por alterações na rítmica e pela exploração de
novos timbres. Porém o uso constante do termo “revolución” por Piazzolla me leva a
indagar sobre um possível diálogo com a noção de vanguarda artística, impulsionada
após a queda de Perón. Em seu estudo sobre as artes visuais na Argentina dos anos 60,
Andrea Giunta aponta que “vanguardia, internacionalismo y política, términos con los
que podrían ordenarse los proyectos dominantes del período, fueron mucho más que
palabras”, funcionando como argumentos e noções cujo significado estava em
permanente disputa, como “artefactos verbales de alta disponibilidad que se imponían a
todo individuo decidido a actuar en el campo artístico y cultural”.18 Piazzolla raramente
fala de sua música como de “vanguarda”, tendo usado a expressão “Tango Progresivo”
17 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 74. 18 GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política: arte argentino en los años sesenta. 2. ed. ampliada y corregida. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008, p. 22.
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no primeiro disco do Octeto, e “Nuevo Tango”, para se referir a seu estilo e ao Quinteto
que formaria em 1961. Mas me parece muito apropriado entender o uso que faz do
termo “revolución”, tomando-o como um “artefacto verbal de alta disponibilidad”
naquele contexto.
Na proximidade com as vanguardas, pode-se considerar também o
caráter militante com que o compositor assume seu programa “revolucionário”, por
meio de declarações, entrevistas, debates, e também de um curioso “Decálogo”,
publicado pelo semanário De Frente, de Buenos Aires, em 10 de outubro de 1955.19 O
“Decálogo” é uma espécie de manifesto, análogo aos que as vanguardas costumavam
divulgar, e no qual o compositor expunha os princípios que norteariam seu programa de
trabalho à frente do Octeto Buenos Aires. Sintetizo os tópicos:
I.Preferência pelos fins artísticos sobre os comerciais;
II.Dedicação exclusiva dos integrantes, para obter maior eficácia;
III.Eliminação de influências estranhas: “hacer el tango tal como se siente”;20
IV.Participação musical destacada dos solistas, inexistência de diretor, e
reconhecimento da condução musical de Piazzolla;
V.Definição de um repertório formado por obras da “Guardia Vieja” e da
atualidade;
VI.Exclusão de obras cantadas, “para aprovechar en todas sus posibilidades los
recursos musicales del tango”;
VII.Não atuação em bailes, “considerando que el conjunto debe ser únicamente
escuchado por el público”;
VIII.Explicação das inovações – utilização da guitarra elétrica, de efeitos
percussivos e “la total estructuración de las obras con su giro moderno” – antes das
apresentações;
19 El Octeto Buenos Aires jerarquiza el arte del tango. De Frente. Buenos Aires, ano II, n. 82, 10 out. 1955. 20 Essa referência a “influências estranhas” provavelmente visava à orquestra de Mariano Mores, que Piazzolla reiteradamente desqualificaria por seu estilo internacionalizado, movido por fins comerciais. Todavia, considerando-se a inclusão da guitarra elétrica no conjunto, o item soa bastante contraditório. Mais ainda, pela vagueza da expressão “tal como se siente”. Curiosamente, uma das acusações a Piazzolla seria exatamente a de não “sentir” o tango, de ter uma atitude intelectualizada, cerebral diante da música.
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IX.Exclusão da improvisação: “las partituras estarán escritas dentro del mayor
perfeccionamiento musical posible que pueda lograrse en este género”;
X.O último item compõe-se de cinco ações ou objetivos: elevar a qualidade do
tango; convencer os que se afastaram e os detratores de seus “valores incuestionables”;
atrair os amantes de músicas forâneas; “conquistar al gran público, tarea descontada
como ardua, pero segura, tan pronto pueda escuchar los temas reiteradas veces”; levar
ao estrangeiro como embaixada artística “esta expresión musical del país donde el tango
tuvo su origen, para mostrar su evolución”.
Considerando os itens VI e VII, não seria forçado dizer que Piazzolla
propõe um correspondente musical à arte abstrata: quer deslocar o tango dos dois apoios
tradicionais, a dança e o canto, para focá-lo exclusivamente na música. É curioso o
argumento com que justifica a exclusão do canto, para aproveitar os “recursos
musicales”, isto é, abstrair a música dos conteúdos verbais. A recusa ao baile, no qual
identifica a face mais comercial do tango, estaria no cerne de suas falas, sempre que
caracterizava sua “revolución”. Anos depois, referindo-se ao Octeto, diria: “nada de
bailable. Una verdadera felicidad para nosostros, porque nos desintoxicábamos todos”.21
Por aí se vê o apreço que Piazzolla tinha pelo ambiente noturno dos cabarés... E mais
adiante, a propósito do Quinteto, reitera: “en este Quinteto todos son solistas, y se han
integrado para el lucimiento personal de cada uno. [...] En cuanto al tango bailable, le
repito: no toco para divertir a la gente, sino para que me escuchen y piensen un poco”.22
Eis aí o “elemento transgressor” do programa de Piazzolla, um fator instabilizador dos
condicionantes sociais e do lugar social atribuído ao tango como entretenimento
descompromissado. A principal decorrência, segundo o próprio compositor, é a
valorização dos músicos por seu aspecto intrínseco: “a mí los bailarines nunca me
importaron; lo importante era ver qué cara ponían los músicos al tocarla. Si ponían cara
rara, era mala señal. Si a ellos les gustaba, era mi felicidad”.23
Ao organizar o Octeto, Piazzolla selecionou instrumentistas tecnicamente
qualificados, cuja dedicação exclusiva deveria assegurar o melhor resultado possível na
interpretação de partituras complexas, que exigiam de cada um não o exibicionismo
técnico, mas a compreensão e a contribuição pessoal ao efeito de conjunto. Observo a
21 BENARÓS, L. Astor Piazzolla..., op. cit., p. 73. 22
Idem, op. cit., p. 74. 23 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 61.
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coerência destas falas também com o expresso nos itens I, II e IV do “Decálogo”,
sobretudo o IV, em que Piazzolla afirma sua condução musical, como autor dos
arranjos, mas nega a existência de um diretor, como contratante dos músicos. Este é,
aliás, um ponto sensível da “revolución piazzolleana”: já a orquestra que formou em
1946 funcionava como uma cooperativa, em que todos recebiam o mesmo valor pelas
atuações, cabendo a ele um diferencial pela elaboração dos arranjos. Era uma forma
concreta de marcar sua diferença quanto à relação “comercial” das outras orquestras,
que propiciaram o enriquecimento de diretores que ele abominava musicalmente. No
plano retórico, defende o conteúdo ético de seu programa estético, ao condenar “toda
esa gente que hizo un comercio del tango”.24 Reconhecia que a inspiração para a
cooperativa vinha do pianista e compositor Osvaldo Pugliese, que, fiel à sua militância
comunista, também organizara dessa forma seu conjunto.
Esse propósito de “emancipação dos músicos”, somado à ideia de que faz
um “tango para pensar”, à firmeza com que o compositor defende suas posições, e à
caracterização de si mesmo como um combatente solitário, me remetem à representação
proposta por Edward Said para o “papel público do intelectual moderno”, tomado como
um “outsider”.25 Said ressalta “mais um espírito de oposição do que de acomodação,
porque o ideal romântico, o interesse e o desafio da vida intelectual devem ser
encontrados na dissensão contra o status quo”.26 Ainda que Said tenha mais em mente a
luta política em defesa dos grupos desfavorecidos e pouco representados, sua análise
abre-se a formas variadas de atuação, ao citar como exemplo de intelectual não-
conformista o pianista canadense Glenn Gould, que já fora objeto de suas reflexões no
primeiro ensaio publicado no já citado Elaborações Musicais.27 Embora tenha assinado
contratos com grandes gravadoras, “isso não o impediu de ser um intérprete iconoclasta
e um comentador de música clássica com tremenda influência no modo como a
execução é realizada e julgada”.28 Para Said, esse tipo de artista-intelectual é “uma
vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz
empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade [...] questões [...] relacionadas
24 Idem, p. 67. 25 SAID, Edward. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1983. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 27. 26 Idem, p. 16. 27 Ver SAID, E. A Performance como Situação Extrema. In: Elaborações musicais, op. cit., p. 27-71. 28 SAID, E. Representações do intelectual, op. cit., p. 77-8.
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[...] com uma combinação de esclarecimento e emancipação ou liberdade”.29 Estes
critérios são ajustáveis a um “revolucionário” como Piazzolla, e sua propensão a
“causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”, para usar palavras de
Said:30 pode-se entender Piazzolla como um inconformista engajado num programa de
renovação estética, que mesmo não implicando um discurso de modernização social ou
uma atitude política progressista, mostra, na esfera das ideias musicais, da composição à
performance, seu compromisso com essa combinação de “esclarecimento e
emancipação”. Há uma fala de Piazzolla, transcrita em 1969, muito interessante a
respeito disso: “yo no pregunto qué prejuicios tienen los que escuchan mi música, sólo
pretendo que me escuchen y se liberen de ellos, que sean objetivos”.31 Piazzolla jamais
deixou de externar sua opinião sobre o tango tradicional e a necessidade de renovação
do ambiente musical tanguero, envolvendo-se em polêmicas: “ataco cuando me atacan”,
justifica-se.32
Evidentemente, estou assumindo a mesma liberdade assumida por Said,
em lugar de considerar a qualificação de intelectual crítico exclusivamente ao ativismo
político e sobretudo de esquerda. E partindo das sugestões de Sirinelli, não desconsidero
o “peso da afetividade” e a “influência da sensibilidade” como dimensões importantes
na conformação do intelectual e de sua inserção nos laços de sociabilidade.33 Mas
reconheço que na contramão dessa aproximação com os paradigmas do intelectual
crítico está, por um lado, o perfil de um Piazzolla entre egocêntrico e exibicionista, e
por outro, sua rejeição do rótulo de intelectual: disse ao jornalista Alberto Speratti, ao
ser entrevistado em 1968, que “no me gusta que me confundan con un intelectual, ese
tipo de mito no lo aguanto”.34 Antes, porém, em 1962, entrevistado pelo diário La
Razón, falava da inauguração do 676, clube noturno em que atuaria com o Quinteto,
dizendo querer “reunir a mucha gente nueva, a ésa que todos los días lucha, trabaja y
trata de manera armónica de crear un clima intelectual serio”.35 Porém, já no fim da
vida, em 1990, tentando distanciar-se das polêmicas, reconheceria: “me sentía un
intelectual, y seguro debía ser un intelectualoide. Lo mío tenía algo de snob. Con el
29 Idem, p. 78. 30 Idem, p. 27. 31 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 119. 32 Idem. 33 Ver SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Réné. (org.) Por uma história política.
2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 231-269. 34 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 130. 35 La Razón. Buenos Aires, 22 abr. 1962.
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tiempo asumí que gracias a otros snobs yo pude hacer gran parte de mi carrera: eran los
que me aplaudían en primera fila”.36 Independente de rótulos, porém, vale o registro de
Piazzolla como um artista consciente de seu trabalho, cioso da formação sistemática
construída em anos de estudo, e que defende sua música ante o que considera
leviandade ou má-fé de quem lhe ataca, a exemplo desta fala que Speratti recolheu no
livro de 1969:
Yo soy así, no puedo frenarme, no acepto que hablen de mi música con
mala fe, sin ningún principio ni conocimiento. Creo hacer las cosas en
serio y, equivocado o no, merezco respeto como cualquiera. Lo que
hago, lo hago con sinceridad. Si un crítico musical me ataca, es otra
cosa. Pero si un señor que tiene un programa de radio y cuyo oficio es
leer las etiquetas de los discos, decide atacarme, eso no puede ser.37
No fundo, é a fala de um músico compromissado com uma ética artístico-
profissional: “es un mundo que entiendo y recibo emocionalmente, y por eso no me
interesa, por ejemplo, ni la política ni la economía. Yo he estado siempre encerrado en
ese mundo y siempre lo estaré”.38 Um encerramento que não poderia ser absoluto, na
medida em que sua música, quisesse ele ou não, chocava-se com outros mundos. O fato
é que, além da renovação estética, Piazzolla também defendia uma ação artística livre
de pressões políticas, ao criticar a colaboração de diversos tangueros com o governo
peronista. A propósito disso, ao final do livro-entrevista, Alberto Speratti o provoca,
deslocando o eixo da conversa das vanguardas artísticas para a política. Era 1968,
estava em curso a “Revolución Argentina”, sob a ditadura do general Onganía, e
cobrava-se o posicionamento do artista. Diz Piazzolla:
Para todo el mundo he sido comunista siempre. Yo de comunista no
tengo nada, aunque, a lo mejor, soy el más comunista de todos, porque
los comunistas no hacen lo que he hecho yo. Cuando he tenido un
conjunto ha sido siempre en cooperativa y nunca le robé un centavo a
nadie. Siempre quise que mis músicos fueran felices, porque ese es el
único modo de que toquen como deben. [...] cuando uno sabe que el
director gana diez veces más que los músicos, nace un odio hacia ese
director que se trasluce en lo que se hace con la música.39
36 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 139. 37 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 120. 38 Idem, p. 109. 39 Idem, p. 133.
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E segue, esclarecendo, ou confundindo, ao dizer que não tem nada contra
os comunistas, mas também nada contra os oligarcas, “aunque sí, posiblemente estoy
más a favor de los comunistas que de los oligarcas en lo profundo. Pero en realidad, mi
política es mi música, mi lucha”.40 Diz nunca ter se afiliado a nenhum partido, nem
haver tocado para Perón, Frondizi ou Illía: “yo no hago beneficencia; si quieren que
toque, que me paguen”. O jornalista termina por lhe dar corda, para que se enforque,
perguntando se aceitaria ajuda de Onganía. Piazzolla diz que aceitaria, como um ato
concreto de apoio à música, mas que “con Perón no hubiera agarrado viaje”.41 Por fim,
Piazzolla diminui a importância de Ernesto Guevara, dizendo que “nuestra sociedad se
alimenta de mitos, como si fuera la mágica solución que pueda rescatar a la gente de su
mediocridad”, e se põe em posição de superioridade em relação ao líder revolucionário,
questionando por que “no vino a Argentina hacer lo que hizo en Cuba y Bolivia”,
enquanto ele, Piazzolla, podendo ir para a Europa ou os EUA, permanecia no país,
ganhando muito menos.42 Atacar, num só movimento, a Perón, a Evita e ao “Che”,
naquela sociedade que “se alimenta de mitos”, era mesmo como mexer no vespeiro.
Sem mais perguntas, o jornalista encerra a entrevista e o livro, e sugere ao leitor, que
ponha um disco para tocar, e escute a música de Piazzolla...
A análise das contradições no discurso do compositor revela que sua
atitude profundamente crítica a respeito do tango nem sempre correspondia à sua
avaliação política. Embora fosse capaz de se posicionar em relação ao peronismo, e ao
que considerava uma interferência negativa na vida artística ou um comportamento
subserviente de alguns colegas, demonstrava pouco apreço pelos valores democráticos.
Fechado em sua música, Piazzolla era incapaz de perceber o impacto que a ditadura de
Onganía vinha tendo sobre a vida cultural de Buenos Aires, da qual o próprio tango, e
ele incluído, dependia. Anos depois, em 1984, diria que “los 60 fueron los años más
bellos que tuvo Buenos Aires en su historia”.43 Lembrava-se nostalgicamente das
tanguerías – os nightclubs, em que se apresentava, para um público interessado em
escutar, não em dançar. Os palcos daquelas casas noturnas alternavam apresentações de
jazz e de nuevo tango, sob o aplauso de jovens entusiastas. Mas esquecia-se de que essa
Buenos Aires começou a acabar já em 1962, numa situação agravada depois de 1966,
40 Idem, p. 134. 41 Idem, p. 135. 42 Idem, p. 136. 43 El Clarín, 12 ago. 1984, citado por AZZI, M.S., COLLIER, S. Astor Piazzolla..., op. cit., p. 147.
Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
em meio a ações repressivas que tendiam ao fechamento dos espaços de sociabilidade
coletiva tomados como ameaças à ordem social.
A ambiguidade política de Piazzolla é notável também em sua obra. Em
1969, compôs com Horacio Ferrer Chiquilín de Bachín, cuja letra é tocada de profundo
sentido social, e em 1971, Homenaje a Córdoba, cujo título remete diretamente ao
“Cordobazo”, que sinalizou a falência da ditadura. Compôs também música para um
filme sobre o golpe militar no Chile, Llueve sobre Santiago, mas depois reutilizou-a em
canções sem qualquer vínculo com o tema. No início dos anos 70, ao ser cancelado um
contrato com a Municipalidad de Buenos Aires, para as atuações de seu conjunto,
Piazzolla partiu para a Europa, após ter votado em Perón na volta do líder ao país e à
presidência. Mais tarde, durante a ditadura de 1976-1983, despertaria a ira dos milhares
de argentinos exilados – incluindo sua filha, peronista de esquerda, que estava no
México, para fugir à repressão. Havendo comparecido com outros artistas a um almoço
promovido pelo general Videla na Casa Rosada, declarou à imprensa que os exilados se
queixavam injustamente do país. Durante a Guerra das Malvinas, inspirado por um
episódio do conflito, inadvertidamente, dedicou uma composição a “Los lagartos”,
grupo da Marinha sob comando de um dos mais crueis torturadores do regime militar.
Alertado sobre o equívoco, renomeou a composição, transformando-a na Tanguedia do
filme Tangos: el Exilio de Gardel, de Fernando “Pino” Solanas, a versão
cinematográfica do exílio parisiense, rodada em 1985.
Em 1990, Piazzolla defendeu-se de ter participado no almoço com
Videla, alegando que não aceitara um convite, mas o que lhe parecia ser uma intimação.
Mas a emenda saiu-lhe pior. Na entrevista, Natalio Gorín repete a armadilha de Speratti.
Em lugar de Onganía, cita o fato de haver aceitado tocar no Chile de Pinochet. Ante a
justificativa de ter ido como um profissional, o jornalista lhe pergunta sobre sua visão a
respeito do ditador chileno, ao que Piazzolla retruca que “a nosotros, los argentinos, nos
faltó un personaje como Pinochet. Quizás a la Argentina le faltó un poco de fascismo en
un momento de su historia”. Na sequência, critica os políticos de esquerda que mudam
o discurso ao chegarem ao poder, e termina por elogiar o comunista Pugliese: “por eso
admiro tanto a Osvaldo Pugliese, jamás renegó de todo su pasado”.44
Como sugerira Speratti em 1969: diante de suas declarações e oscilações,
melhor mesmo pôr um disco seu para tocar... 44 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 85 e 86.
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