View
217
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICOSOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE
PORTO VELHO/IPORANGA-SP
Julho/2003
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
2
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 03
2. QUILOMBO: a ressemantização do termo 05
3. VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE 133.1 Histórico do Vale do Ribeira 143.2 Iporanga: características do município e a história da ocupação 17
4. A HISTÓRIA DE PORTO VELHO 234.1. Histórico da ocupação do território 264.2. A história de um conflito 364.3. Caracterização da comunidade de Porto Velho 434.4. Memória e identidade 51
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 57
6. BIBLIOGRAFIA 59
7. ANEXO 63I. Memorial Descritivo e Planta da área para reconhecimento 64
II. Croqui de uso e ocupação do solo da área da comunidade de Porto Velho 65III. Genealogia da Comunidade de Porto Velho 66IV. Mapa histórico da Comunidade de Porto Velho(1800 -1908) 67V. Carta de Benedito Barbosa de Andrade 68
VI. Registros do Livro de Terras de Iporanga(1855) 69VII. Pesquisa Cartorial 70
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
3
1. INTRODUÇÃO
Este Relatório Técnico-Científico1 é resultado de um trabalho de pesquisa
antropológica que objetivou verificar se o grupo populacional denominado
Comunidade de Porto Velho, situado no município de Iporanga, Estado de São
Paulo, constitui-se como remanescente de comunidade de quilombo a fim de
adjudicar-lhe o direito previsto no artigo nº. 68 do Ato das Disposições Transitórias
da Constituição Federal de 1988, sob o enunciado: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. Esta verificação segue os
requisitos e critérios estabelecidos pelo Grupo de Trabalho e pelo Grupo Gestor,
em obediência ao referido artigo 68, bem como aos artigos 215 e 216 da
Constituição Federal e, ainda à legislação estadual: lei número 9757/97 e os
decretos 41.774/97 e 42.839/98.
A Comunidade de Porto Velho ocupa as terras que reivindica pelo menos
desde 1860. Essas terras foram ocupadas por ex-escravos das fazendas de
mineração da família Roza2 que passaram a ocupar as terras abandonadas, doadas
1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. O Grupo foi composto por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de ação conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos visando sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor forma criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997.2 Uma família de escravocratas de grande destaque na região de Apiaí e Iporanga durante os séculos XVIII e XIX.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
4
ou como agregados dentro das fazendas escravistas onde organizaram um modo
de vida camponês.
O pedido para ser realizado o reconhecimento desse grupo como
remanescente de comunidade de quilombo chegou até nós pela Igreja Católica e o
MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens). Esse grupo encontra-se em
uma situação difícil sendo impedidos de plantarem pelo fazendeiro Benedito
Barbosa de Andrade.
O presente relatório buscou analisar dados obtidos tanto da pesquisa direta
com a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa
documental, a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitaram a
reconstrução da história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua
identidade grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade
calcadas no parentesco e nas relações de trabalho e simbólicas que o grupo
mantém com a área que ocupa. Assim a reconstrução interpretativa do modo de
vida da comunidade possibilitou nos compreender como eles constroem
coletivamente sua vida sobre uma base geográfica, física e social formadora de
uma territorialidade negra. “Dentro dela elaboram-se formar específicas de ser e existir
enquanto camponês e negro” (GUSMÃO,1992:117).
Foi de grande importância para a elaboração desse relatório o Laudo
Antropológico sobre as comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pilões, Maria
Rosa, Pedro Cubas, André Lopes, Nhunguara e Sapatu, realizado em 1998 pela
equipe de antropólogos do Ministério Público Federal – Adolfo Neves de Oliveira
Júnior, Deborah Stucchi, Miriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro,
publicado no caderno número 3 da Fundação ITESP. Lembramos que todos os
trechos extraídos do referido laudo para transcrição ou apenas como base de
dados mais genérica na leitura deste trabalho apresentam-se seguidos da
abreviatura LA-MPF, bem como da respectiva referência de página.
Colaboraram na elaboração deste relatório Rose Leine Bertaco Giacomini e
Helena Maria Cesar Gonçalez.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
5
2. QUILOMBO: o processo de ressemantização do termo
A Constituição Federal de 1988 instituiu no seu Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias no Art. 68:
“Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado, emitir-lhes os respectivos títulos.”
O ato de nomeação oficial de um determinado seguimento social como
quilombo desencadeou um processo de criação de um novo sujeito político. Esse
processo tem início depois da tomada de conhecimento por parte destes grupos
negros dos novos direitos adquiridos pelo Art. 68, passando a cobrar do Estado
que a lei constitucional seja cumprida. Esse é o caso do Estado de São Paulo onde
comunidades negras rurais se organizam para garantir seu direito a propriedade
das terras que ocupam e reivindicam, lutando contra a especulação imobiliária e a
pressão dos fazendeiros ou contra o remanejamento de suas comunidades em
função de grandes empreendimentos, como as polêmicas barragens do Rio Ribeira
do Iguape, no Vale do Ribeira em São Paulo, assim, essas comunidades se
assumem como remanescentes de quilombos e exigem o respeito que lhes é
devido.
Em 1995, Ivaporunduva da entrada em um processo junto ao Ministério
Público Federal para que fosse cumprindo o Art. 68 da Constituição Federal. O
governo paulista sensível à questão e buscando atender as solicitações da
sociedade civil cria um Grupo de Trabalho com o objetivo de fazer proposições
visando à plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais, que conferem o
direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em
território paulista. Tem início um esforço por parte do governo paulista para
identificar e reconhecer e titular as terras dos remanescentes de comunidades de
quilombos do Estado. Porém os técnicos responsáveis pelo estudo para o
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
6
reconhecimento desses grupos como remanescentes de comunidades de quilombo
se deparam com uma gama variada de situações de ocupação de terras que difere
do imaginário que circula em nossa sociedade associado à palavra quilombo. Até
mesmo o movimento negro dos grandes centros na sua representação associa
quilombo a isolamento, fuga-resistência, Zumbi e Quilombo dos Palmares. Porém
quando percorremos essas comunidades negras rurais nos deparamos com uma
outra realidade a de que elas são o “produto de conflitos fundiários bastante localizados
e datados, ligados à decadência das plantations das regiões de colonização
antiga”.(Arruti.2003:25)
Ao logo do tempo foram vários os sentidos atribuídos ao quilombo não só
por parte do movimento negro como também da legislação colonial e da academia.
A seguir apresento um texto elaborado por técnicos da Fundação Itesp que
procuram discutir o “conceito de quilombo”.
*"Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino
valeu-se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões nele”. Essa caracterização descritiva perpetuou-
se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma geração de
estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como Artur Ramos
(1953), Edson Carneiro (1957) e Clóvis Moura (1959). O traço marcadamente
comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo histórico passado,
cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil, além
de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão da negação do sistema
escravista, aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da população
negra.
* Este texto foi elaborado por Alessandra Schmitt, Maria Celina Pereira de Carvalho, Maria Cecília Manzoli Turatti que gentilmente autorizaram sua utilização neste relatório. Sendo que uma versão revista e atualizada foi publicada sobre o titulo: Atualização do Conceito de Quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Revista Ambiente e Sociedade, ano V, nº 10. 1º semestre de 2002. São Paulo.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
7
Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não abarca,
porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade escravocrata e nem as
diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. Flávio dos
Santos Gomes (1995:36), explicita tal diversidade ao forjar o conceito de “campo
negro”: “uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados que
envolveu , em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e
práticas econômicas com interesses diversos” .
No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e
pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da
população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como
um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a
denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de
19883.
Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia, na
verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,
propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira
(GUSMÃO:1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política
governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias negras
após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os estudos
de CARDOSO (1987).
Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho
Ultramarino, ALMEIDA (1999:14-15) mostra que aquela definição constitui-se
basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;
3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma
“natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no
termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na
imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação etnográfica
“se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de
quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que
3 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
8
não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador
efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida
numa reapropriação do mito do” bom senhor “, tal como se detecta hoje em
algumas situações de aforamento” .
O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da
definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem
metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,
representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam ocorrer
– e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos econômicos,
fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes a respeito de
comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à escravidão têm
demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de representar um
aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do Império e da
República.
Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de
atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso
ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o acesso
dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a exclusão do
segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi
peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo
ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio
substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros
cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito
legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”4,
que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os
grupos camponeses negros.
Como já foi assinalado por outros autores·, os grupos que hoje são
considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir
de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de
terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento
4 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
9
de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, simples permanência
nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem
como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto
após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias
destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos
identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou
“território negro”, tal como é utilizada por vários autores5, que enfatizam a sua
condição de coletividades camponesas, definida pelo compartilhamento de um
território e de uma identidade.
A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do Artigo
68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico6 que levaram à revisão dos
conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão, instaurando
a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo, de modo que
a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação de suas terras,
pudesse ser contemplada por esta categoria, uma vez demonstrada, por meio de
estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por eles
compartilhada, bem como a antigüidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas
“práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida
característicos num determinado lugar” 7.
Desta forma, o conceito de quilombo que norteia o trabalho desenvolvido
pela Fundação ITESP é aquele que foi produzido pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) e ratificado pelo Grupo de Trabalho (vide nota de rodapé 1):
“toda a comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da
cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o
passado”.
5 Ver Almeida (1997/1998), Gusmão (1996.), Andrade, (1988) e Azevedo Marin (1995).6 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).7 Cfe. João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer. ABA, 1994.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
10
Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui
disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma
ampla e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em
questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar específico”8. Ainda segundo a Associação Brasileira de Antropologia “o
termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal
ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma
população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e
reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar ”9 .
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de
expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação
aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam. Estes dois conceitos
são fundamentais e estão sempre inter-relacionados no caso das comunidades
negras rurais, pois “a presença e o interesse de brancos e negros sobre um mesmo
espaço físico e social revela, no dizer de Bandeira, aspectos encobertos das
relações raciais” (GUSMÃO,1996:14). Estes aspectos encobertos aos quais a
autora se refere são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à
sociedade inclusiva, a qual forma um dia o escravo.
A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em situações
de oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, OLIVEIRA (1976) elaborou
a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que têm como centro
interpretativo à identidade étnica de um grupo social. As situações de oposição
levam os grupos a elaborar os seus critérios de pertencimento e de exclusão.
Quando o confronto se estabelece entre um grupo minoritário e os brancos,
temos uma situação de submissão e dominação, de hierarquia de status, a qual o
autor denominou “fricção interétnica”. São justamente estas relações interétnicas 8 Garcia, José Milton, publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).9 Documento da ABA, 1994.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
11
que se estabelece no convívio/confronto das comunidades negras com a sociedade
abrangente.
Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que
justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos
identificar como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um
sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do
outro’ racial como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre
nós” (BORGES PEREIRA, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade
brasileira foi estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto Freyre
é um grande expoente, na década de 30, e que só começou a ser contestado na
década de 50 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.
Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas
particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às
pressões sofridas, e é neste contexto social que constroem sua relação com a terra,
tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à resistência
cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia
cultural, social e, conseqüentemente, a auto-estima. Siglia Zambrotti DÓRIA (1985)
salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa
correlação profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e
informa o seu direito a terra.
A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito
constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se em
suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade envolvente, em
geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial é tratar a terra
apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60) explicita as
características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo capital, em que
esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de trabalho”. Em
conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os camponeses
foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio do aparato
judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o direito de
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
12
obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais antigas do que o
tempo mínimo requerido pela legislação para a sua transformação em propriedades.
Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham
resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da
sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a
sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em
seus territórios ou, ao menos, em parte deles10 ”.
É importante ressaltar que o debate em torno da questão quilombola em São Paulo e no Brasil está apenas começando. Estamos presenciando a produção de uma nova realidade criada pela captura da lei pelo movimento social. Sendo assim, se faz necessário um diálogo entre Estado, juristas, acadêmicos e quilombolas para que possamos construir e aprimorar um instrumental necessário para tratar dessa temática.
10 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantêm uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombola; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
13
3. O VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE
O Vale do Ribeira abrange parte da Bacia do rio Ribeira de Iguape, que
nasce no Estado do Paraná e deságua no Oceano Atlântico, estando o trecho mais
longo do seu curso dentro do Estado de São Paulo. Ocupa parte da Serra de
Paranapiacaba, Serraria do Ribeira área de Morraria Costeira e parte da Baixada
Litorânea (Secretaria do Meio Ambiente, 1996:15).
A região apresenta um dos mais baixos índices de desenvolvimento do
Estado de São Paulo, sendo a menos urbanizada, com uma população de 323.174
habitantes, tem uma das menores taxas de crescimento populacional do Estado.
Segundo HOGAN, CARMO, ALVES E RODRIGUES (2001) “razões históricas,
dificuldades de acesso e condições naturais adversas às atividades econômicas garantiram
até hoje um relativo isolamento do Vale e a preservação dos recursos naturais” (pg. 02). A
maior parte da sua população vive em áreas rurais desenvolvendo atividades
agrícolas de subsistência e extrativistas, como a agricultura (banana e chá),
mineração e o extrativismo vegetal (palmito).
Grande parte da região constitui-se de unidades de conservação, entre as
quais se incluem áreas de proteção ambiental (APAS), estações ecológicas e
parques estaduais que restringem o uso econômico a atividades limitadas. Isso
acaba gerando uma série de conflitos entre as populações que vivem da agricultura
e da extração de produtos da floresta, com as agências governamentais ambientais.
Um outro foco de conflito é a relação entre:
“ONGs e agências governamentais ambientais, de um lado, e esforços desenvolvimentistas locais, de outro, continuam a dificultar tanto a criação de emprego na região, quanto à regulamentação da conservação das áreas protegidas. A situação reproduz, no Estado de São Paulo, o típico confronto Norte-Sul em torno da questão do desenvolvimento sustentável” (HOGAN,CARMO, ALVES E RODRIGUES, 2001:03).
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
14
Outro foco de embates na região é a construção de barragens. “Seja como
hidrelétrica destinada a fornecer energia, seja como reservatório para o abastecimento de
água para a RMSP, ou seja como obras de controle de enchentes, as barragens provocam
polêmica entre as populações locais e os ambientalistas” (HOGAN, CARMO, ALVES E
RODRIGUES,2001:03). As comunidades tradicionais da região, como
Remanescentes de Quilombo, que organizaram toda sua cultura entrelaçada ao
meio ambiente e o espaço geográfico que ocuparam ao longo de séculos se vêem
ameaçados por essas barragens, tendo em alguns casos 97% do seu território
atingido (Campanili:2001). Essa população tem se organizado em movimentos
como MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens) e MAB11 (Movimento
dos Atingidos por Barragens) que os levou a lutar pela regularização de suas terras
e acionar o governo para que cumprisse o Art. 68 da Constituição Federal.
3.1 Histórico do Vale do Ribeira
As primeiras referências da ocupação humana no Vale remontam do
período pré-colombiano, sendo essas populações compostas por ameríndios. “A
Região do Vale do Ribeira, apesar de ser atualmente a menos povoada do Estado, foi uma
das primeiras do Brasil a ser ocupada” (BRAGA, 1999:43). Os espanhóis antes dos
portugueses estiveram na região e fundaram Cananéia. O início da ocupação
portuguesa no Vale do Ribeira data de 1531, com a expedição de Martins Afonso
de Souza que teve como objetivo ocupar o território defendendo-o das invasões
estrangeiras e buscar ouro e prata.
A região atrai várias pessoas do Velho Mundo com os objetivos mais
diversos. Inicialmente são desenvolvidas lavouras de subsistência e a pesca. Nos
primeiros tempos os portugueses estabelecerem relações de troca com as
comunidades indígenas na região sul e sudeste da capitania. A falta de mão-de-
11 Apesar deles não terem sido atingidos, até o momento por barragens, eles participam desse movimento pois podem vir a ser atingidos.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
15
obra fez com que os índios fossem usados como mão-de-obra escrava. Muitos
índios fugiram para as regiões de difícil acesso como ao longo do rio Pardo por ser
protegido por serras, cachoeiras, subidas penosas e demoradas. A presença
indígena se tornou referência para as comunidades do Vale, principalmente, as
populações negras que se apropriaram dos conhecimentos indígenas sobre relevo,
técnicas de pesca e agricultura itinerante.
Na primeira fase de ocupação o povoamento ficou restrito ao litoral tendo
maior destaque para os povoamentos de Cananéia e Iguape. De Cananéia partem
as primeiras expedições em busca de ouro e prata, porém era Iguape que detinha o
domínio da navegação do Ribeira devido à facilidade de comunicação com o
interior. Tornando-se centro de concentração de moradores e distribuição de
riquezas.
Na primeira metade do século XVII, foram encontradas minas de ouro em
Iguape, zona do médio Ribeira.
“Durante o `ciclo do ouro`, o povoamento, que anteriormente limitava-se ao litoral, avançou para o interior, subindo o curso do Ribeira, onde foram formados os primeiros núcleos coloniais da retroterra, dos quais o mais importante foi o de Xiririca (atual Eldorado). Muito embora a mineração tenha trazido alguma riqueza para a região, seus efeitos desenvolvimentistas restringiram-se a Iguape. Os núcleos do interior pouco se desenvolveu e mesmo Xiririca, na principal zona garimpeira, só foi elevado à categoria de município no século seguinte, já na fase decadente da mineração” ( Braga, 1999:45).
Nesse período por conta da mineração, entra a mão-de-obra negra em São
Paulo a maior concentração de escravos era em Iguape, porém eles foram levados
a outras localidades situadas Ribeira acima. Segundo Carril (1995), os negros
vinham de algumas regiões da África como Angola, Moçambiqui e Guiné, sendo
considerados, uma mercadoria lucrativa. Sua maior concentração foi em Iguape
porém eles foram levados para outras localidades como Iporanga, Apiaí e
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
16
Ivaporunduva, onde havia grande concentração de minas auríferas. Isso levou a
um fluxo de pessoas para essa localidade tendo como conseqüência o surgimento
de vários arraiais, como Ivaporunduva, Iporanga, Apiaí, Paranapanema e Xiririca.
A exploração de ouro entrou em decadência com a descoberta de novas
áreas de mineração em Minas Gerais. Porém a atividade mineradora perdurou até
as primeiras décadas do século XIX.
No final do século XVII, se registra uma expansão da agricultura, tendo
como principais produtos: arroz, madeira e cana. No século seguinte até meados
do século XIX, a agricultura comercial, especialmente o arroz, apresentou uma
expansão significativa tendo como base a mão-de-obra escrava e voltada para o
mercado europeu e latino americano. Esse período foi o de maior prosperidade
para o Vale.
“em 1836 a região concentrava 100 dos 109 engenhos de beneficiamento de arroz instalados na província e em 1852 já eram 107 os engenhos instalados na região. Outra medida do crescimento econômico da região era a quantidade de escravos que, em 1836, representavam 28,9% da população total, um índice superior à média da Província, que era de 26,6% de população escrava” ( MULLER, 1980:36).
Porém, o crescimento econômico trazido pela rizicultura ficou limitado a
região de Iguape e Cananéia com exceção de Iporanga onde se plantou algum
arroz. O restante do Vale mergulhou em um período de estagnação econômica,
que durou até a década de 30.
Na segunda metade do século XIX a rizicultura escravista entrou num
processo de crise devido: encarecimento da mão-de-obra escrava12; procura de
brancos para o café; abertura do mercado para o arroz de outras regiões do país
(Minas Gerais e Rio de Janeiro). A baixada ficou a margem da rede ferroviária
implantada no Brasil e bem como a imigração estrangeira que se voltou para o
abastecimento da cafeicultura.
12" Em 1850, com a proibição do tráfico de escravos ocorre a transferência de escravos dentro da própria província das regiões menos dinâmicas para as mais dinâmicas economicamente” (LA-MPF,1998:65).
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
17
A população refluiu para a economia de subsistência a “caipirização” da
vida regional (MULLER,1980). Para BRANDÃO (1998):
“Os habitantes do Vale, tanto nativos como imigrantes, marginalizando-se, passando a viver nas fímbrias mercantis do grande tecido econômico-social nucleado no capital-café. Criaram uma sociabilidade de sobreviventes que respirou através de um sistema de trocas que mais se parecia ao escambo. A esta pobreza organizada, produto residual da cafeicultura, designamos vida caipira” (pg.04).
3.2. IPORANGA* : características do município e a história da
ocupação
O Município de Iporanga localiza-se no alto Ribeira, tendo como
limítrofes os municípios de Apiaí, Guapiara, Capão Bonito, Eldorado Paulista,
Barra do Turvo e o Estado do Paraná.
* Vocábulo da língua Tupi ou Nheenhatu. Iporanga: água ou rio bonito.
Vista da cidade de Iporanga/SP
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
18
A base do releve é o calcário na parte alta e os filitos e xistos na parte baixa.
As falhas geológicas contribuem para esculpir o relevo, pois além de originar
depressões topográficas condicionaram vales de muitos rios. O relevo é acidentado
onde predominam colinas e morrotes que dificilmente ultrapassam os 120 metros
de altura13. O município possuí uma área territorial de 1160 km com uma
população de 4.564 habitantes (CENSO 2000). A agricultura é a principal atividade
econômica do município, se destacando a produção de banana e em menor escala
de feijão, arroz e milho.
O solo de Iporanga é rico em ouro, prata, chumbo, estanho, ferro, pedra
de chisto, a calcárea, a pederneira, o cristal de rocha, o calcáreo branco, o
tasguatingua, o barro de olaria, etc. Sendo que o chumbo já vem sendo explorado
desde 1880. Sua mineração ilegal as margens do rio Ribeira de Iguape trouxe
problemas de contaminação para a população ribeirinha que se alimenta dos
peixes e se banham nos rios, atualmente as crianças são as mais atingidas14.
A região possui uma das maiores concentrações de cavernas do Brasil e um
dos principais remanescentes florestais de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.
Esses fatos levaram a implantação de diversas unidades de conservação no
município como: área piloto da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica15, as Áreas
de Proteção Ambiental APA da Serra do Mar (1984), Parque Estadual de
Jacupiranga (1969), Parques estaduais Turísticos do Alto Ribeira – PETAR (1958). O
PETAR somente foi implantado, em 1983, levando a um crescimento do turismo
espeleológico e recentemente o de esportes radicais. Porém apenas o bairro da
Serra em Iporanga e o município de Apiaí foram efetivamente beneficiados.
Como a principal atividade econômica do município é a agricultura e o
extrativismo o tombamento provocou um descontentamento de boa parte da
13 Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Atlas das unidades de conservação do Estado de São Paulo, 15.14 Um dos argumentos contra as barragens é justamente o risco de com a inundação das margens esses pontos de mineração podem ser um foco de disseminação do chumbo pela região.15 Foi recentemente reconhecido pela UNESCO.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
19
população. E jogou para a ilegalidade a principal forma de sobrevivência da maior
parte dos moradores dos bairros rurais (Figueiredo, 2000).
Iporanga é um dos municípios que tem a maior quantidade de
Comunidades de Quilombos identificas entre elas a comunidade de Quilombo de
Porto Velho. A história desta comunidade e do próprio município de Iporanga está
ligada ao ciclo do ouro paulista.
Durante o século XVI, circulavam histórias em Iguape e Cananéia sobre a
existência de ouro na região de Eldorado e Iporanga que “que jorrava livremente e
abundante no leito de seus rios” da região. Essas histórias seduzem os aventureiros
que fazem uma expedição para encontrar o “Eldorado”. Em 1576, um grupo de
pessoas chefiadas por Garcia Rodrigues Paes, sobrinho do bandeirante Fernão Dias
Paes, Nuno Mendes Torres, Antonio Lino de Alvarenga e José de Moura Rolim
sobem o rio Ribeira de Iguape em busca de ouro. Eles chegam no dia 12 de junho,
véspera de Santo Antonio, a uma várzea localizada a oito quilômetros da foz do
Ribeirão de Iporanga. Resolvem se fixar neste local iniciando os preparativos para
a criação de um garimpo, assim, nascia o “Garimpo de Santo Antonio”. O garimpo
cresceu com a chegada de novos faiscadores que formaram um arraial que crescia
e prosperava. Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o
dinheiro vindo dos garimpeiros da região. O trabalho nos garimpos era realizado
pelos escravos que escavavam o leito dos rios a procura de ouro, chegando a
alterar o seu curso como na foto abaixo do Ribeirão de Iporanga.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
20
O trabalho dos escravos nos garimpos deixou marcas que podem ser
percebidas por nós hoje. Como a formação de amontoados de pedras deixados às
margens do Ribeirão de Iporanga. Muitos escravos garimpavam clandestinamente
e “escondiam o produto de seu trabalho em garrafas e gomos de bambu, visando
possivelmente a compra de sua liberdade junto a seus senhores.” (FIGUEIREDO,2001:02)
Nos livros de casamento e batismo da Igreja de Iporanga e no cartório da cidade
existem vários registros de escravos “libertos”16 e cartas de alforria que
provavelmente foram compradas dessa forma.
A partir de 1730, devido às dificuldades para se atingir o rio Ribeira pelo
ribeirão de Iporanga surgi um novo núcleo de habitações próximo ao rio Ribeira.
Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o dinheiro
vindo da região.
“Em meados de 1776, inicio-se o arruamento mais planejado do povoado que surgia naturalmente. Algumas famílias que não vieram com o intuito de explorar o ouro e sim para cultivar de terra, deslocaram-se tanto rio abaixo, como rio acima, onde se estabeleceram plantando arroz, milho, mandioca e principalmente cana de açúcar, proporcionado com isso, o surgimento de futuras pequenas indústrias de rapadura aguardente e farinhas, que seriam vendidas nos povoados vizinhos, ao mesmo tempo, construíam-se
16 Termo que aparece nos livros de registro de batismo e casamento da Igreja de Iporanga depois do nome de ex-escravos.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
21
grandes sobrados e ricas vivendas emprestando ao povoado um aspecto senhorial.”
Com o declínio do ciclo do ouro e as dificuldades de acesso ao antigo arraial
dão início a um movimento para a construção de uma nova capela no novo
arraial, sendo liderado pelo Padre Bernardo de Moura Prado e o Capitão José de
Moura Rolim. O padre Bernardo consegue que Dona Escolástica Maria Carneiro
doe um terreno para a construção da Capela e a população faz um mutirão
plantando arroz para levantar o dinheiro necessário. Assim se iniciam as obras de
construção da Capela que terminam em 1821.
Iporanga crescia com o surgimento de novas indústrias de aguardente,
rapadura e beneficiamento de cereais intensificando seu intercâmbio comercial
com as povoações vizinhas. Seu porto se tornou:
Igreja Matriz de Nossa Senhora de Sant´Anna de Iporanga
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
22
“uma importante via de acesso, único porto fluvial de onde se poderia partir em demanda, ao litoral, permitindo o intercâmbio comercial das regiões vizinhas com o Planalto, através do transporte de tropa até Iporanga e daí por intermédio de frotas de embarcações (canoas) que desciam e subiam o Ribeira, transportando as mercadorias transacionadas. Fazendo intercâmbio comercial entre cidades importantes como Itapeva (antiga Faxina), Itararé, Ibiúna, Itapetininga, Sorocaba e outras, através de tropas de muares.”(FIGUEIREDO,2001:2).
O trânsito das tropas pela região sul do município teve um importante
papel para a economia local, pois com a decadência da exploração das minas de
ouro, por volta de 1815, os donos de terras na região voltaram sua produção para a
agricultura e criação de animais que podiam ser comercializados com os
tropeiros17 que subiam e desciam o Ribeiria de Iguape. Em outros casos os
proprietários de terras na região simplesmente abandonavam suas terra, vendiam
ou deixam verbalmente para seus escravos.
Em 1830, o povoado foi elevado a categoria de Freguesia de Sant’ Anna de
Iporanga. Sendo, em 1873, elevado a Vila, com o nome de “Villa de Sant’Anna de
Iporanga”. No mesmo ano passou a Cidade de Iporanga.
A libertação dos escravos, em 1888, levou a diminuição da mão de obra na
região de Iporanga, pois boa parte da população local era composta por escravos.
“Os escravos, livres do julgo de seus senhores, internavam-se pelo sertão adentro
estabelecendo-se por sua própria conta e iniciando-se no ramo da agricultura
doméstica”(FIGUEIREDO,2001:02). Eles procuraram se instalar em locais já
ocupados por populações negras que fugiram durante a escravidão, ou compraram
sua liberdade ou receberam doações de terras. Essas diversas situações deram
origem à formação de diversos povoados, entre eles, Nhunguara, Bombas, São
Pedro, Poço Grande, Praia Grande e Porto Velho.
17 Tropeiros eram condutores de tropas que compravam e vendiam mercadorias (gado, mulas, cavalos e outros). Figura muito comum do Brasil do séc. XVIII.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
23
4. PORTO VELHO
O território ocupado historicamente pela comunidade de Porto Velho está
situado à Sudoeste da cidade Iporanga fazendo divisa ao Sul com o rio Ribeira de
Iguape e o estado do Paraná. A Oeste com o município de Itaóca e ao Norte com a
serra de Anta Gorda. E a Leste com a Barra do Rio Parto. Esse território está
dividido em localidades onde existiram núcleos de moradias. Essas localidades são
(ver mapa anexo):
- Anta Gorda
- Dourada
- Mamona
- Córrego do Mono
- Rio da Cláudia
- Porto Velho
Essas nomeações são muito antigas aparecendo no livro de registros de
terras de 1855 e continuam sendo usadas até os dias de hoje. O nome Porto Velho
se deve ao fato do local, durante o século XVIII e XIX, ser utilizado para o
transporte de mercadorias e escravos por meio de canoas pelo rio Ribeira. Como as
canoas não podiam prosseguir viagem devido às cachoeiras existentes no rio
aportavam em Porto Velho e seguiam o caminho a pé ou no lombo de cavalos e
burros para as regiões de Apiaí e Sorocaba.
Os depoimentos recolhidos em Porto Velho, mapas antigos, registro de
terras e da paróquia de Iporanga nos possibilitaram reconstruir a trajetória desse
quilombo, evidenciando que o território em questão vem sendo ocupado por esta
comunidade, aproximadamente, desde 1860. Os membros desse grupo são
descendentes dos escravos de D. Martinha Dias Batista que possuía uma fazenda
de escravos em Porto Velho (ver mapa anexo). Segundo o Registro de Terras de
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
24
1850(ver anexo), tinha um imóvel denominado Porto que abrangia as duas
margens1 do rio Ribeira de Iguape.
Dª. Martinha era sobrinha de Dª. Ana de Oliveira Roza que com a morte da
tia herdou parte dos seus escravos. Dª. Ana e seus irmãos herdaram suas terras e
escravos de seu pai Manoel da Roza Luiz que, em 1765, era chefe de uma das
famílias mais ricas da região de Apiaí. Com a sua morte, provavelmente, em 1783,
suas terras e seus escravos são divididos entre seus filhos e filhas muitas já
casadas. Esses casamentos davam-se com escravistas de Iporanga como estratégia
para aumentar o patrimônio da família, principalmente, o plantel de escravos
(Motta &Valentim, 2000) que somavam essa herança ao patrimônio do marido.
Com isso as famílias de escravos foram divididas entre os herdeiros de Manoel
Roza Luiz. Cada grupo de escravos, que eram parentes, tiveram que se deslocar
para as terras de seus novos donos. Poderíamos presumir que isso tivesse levado a
um desmembramento ou esfacelamento das famílias de escravos. Porém, a
historiografia tem revisto à idéia de que o cativeiro e a família escrava são
realidades incompatíveis. Principalmente, a partir de 1970, com a utilização de
novos tipos de fontes fez surgir dos arquivos:
“um cotidiano pautado por regras que restituíram aos cativos um tanto da humanidade que sequer seus senhores ousaram expropriar: a capacidade de criar e viver sobre normas intrínsecas ao humano. Sabe-se hoje, pois, que a escravidão e o parentesco não são experiências excludentes; o cativeiro não abortou a família escrava”(Florentio & Góes, 1995:07).
Um estudo realizado por José Flávio da Motta e Agnaldo Valentim (2002),
sobre “A família escrava e a partilha de bens: um estudo de caso”2, vêm reforçar esse
1 Cabe ressaltar que pela pesquisa que realizamos, em mapas antigos, essa área pertencia a província de São Paulo. Os antigos moradores da região contam que São Paulo perdeu essas terras na Revolução Constitucionalista de 1932. Pelas informações que temos o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - por volta de 1955, realizou uma nova divisão das fronteiras usando limites físicos( rios e serras) para dividir as terras de cada estado. No caso de São Paulo o rio Ribeira de Iguape divide São Paulo do estado do Paraná. Assim parte das terras do imóvel denomidando Porto hoje se encontram no estado do Paraná.
2 Trabalho apresentado no XII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
25
hipótese. Os autores vão analisar as relações familiares estabelecidas entre os
membros do plantel de escravos de Apiaí de Dona Anna de Oliveira Roza. Eles vão
utilizar como fontes documentais para esse estudo as listas nominativas dos
habitantes da localidade paulista de Apiaí, o inventário de Dona Anna de Oliveira
Roza e seu testamento, bem como, os inventários de seus irmãos, Escolástica, José e
Antonio de Oliveira Roza, além dos registros de casamento de escravos entre 1780
e 1818. Esses autores acompanham essa escravaria de 1780 a 1819, quando do
inventário de Dona Anna onde seus escravos são divididos entre seus parentes. Os
resultados desse estudo apresentados em um artigo apontam para o fato desse
esfacelamento ou desmembramento serem apenas “ideais” pois existiam vários
ajustes tanto por parte dos herdeiros dos escravos como dos próprios cativos que
corroboravam para a estabilidade das famílias de escravos.
“Muitos dos escravos separados na partilha dos bens de D. Anna poderiam tornar a conviver num mesmo plantel com seus familiares por ocasião da morte dos herdeiros. Ademais, ressalte-se que a grande maioria dos herdeiros permaneceu na localidade, mantendo a proximidade física entre os distintos plantéis”(Motta &Valentim,2002:20).
Podemos constatar essa proximidade física entre os vários plantéis da
Família Roza que tinha propriedades3 nas localidades de Córrego dos Monos,
Dourada, Anta Gorda, Porto Velho e Mamonas. Essas propriedades deram origem
a núcleos populacionais de escravos que com decadência da mineração na região
no início do séc. XIX conseguiram sua liberdade e um pedaço de terra para plantar
e morar. Isso leva nos a pensar que existia uma proximidade não apenas física, mas
ligações de parentesco que uniam esses vários núcleos populacionais. Sendo que,
as formações dos mesmos, tiveram diversas origens. Em alguns casos os
proprietários de terras simplesmente abandonavam a área e os escravos. Outros
3 No Registro de Terras de 1850 e mapas antigos da região a família figura como proprietária de diversos imóveis nessa localidade.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
26
doavam (verbalmente) suas terras para seus escravos. Como no caso do escravo
forro Fernandes da Rosa que recebeu uma doação de terras próxima ao Córrego
Cotia Pequena no Rio da Claudia (ver anexo). Ou ainda, esses escravos forros
ocupavam trechos de terras que não tinham dono, ou seja, que estavam
desocupadas.
No caso da comunidade de Porto Velho com a morte de Dª. Martinha, na
primeira metade do século XIX, sua terras e escravos foram divididos entre seus
herdeiros, sendo que alguns de seus escravos foram alforriados, mas optaram por
permanecer morando nessas terras. Às vezes, os donos de fazendas de escravos
cediam trechos de suas terras para seus ex-escravos morarem e plantarem viviam
como agregados para não se afastarem dos parentes que ainda permaneciam como
escravos, com a finalidade de guardar algum dinheiro para comprar a liberdade
dos demais membros da família.
Assim, esse grupo encerra uma experiência particular de luta contra o
escravismo. Com atitudes originais constituiu um espaço autônomo dentro do
regime escravista e da própria fazenda de escravos, que os possibilitou
sobreviverem física e culturalmente.
4.1. Histórico da ocupação do território de Porto Velho
O território ocupado historicamente por esse grupo localiza-se à sudeste da
cidade de Iporanga subindo o rio Ribeira de Iguape. Para melhor caracterização da
ocupação do território de Porto Velho foi elaborado um mapa histórico da região4,
referente ao final do século XIX até o começo do século XX.
A história desse grupo esta profundamente ligada aos ciclos econômicos por
que passou a região de Iporanga e Apiaí. E, principalmente, ao espaço relegado a
4 Esse mapa foi elaborado por Rose Leine Bertaco Giacomini e Helena Maria Gonçalez a partir dos depoimentos dos moradores mais antigos de Porto Velho e de um mapa da região elaborado por João Pedro Cardoso em 1908, quando chefiou uma expedição no rio Ribeira de Iguape e rio Pardo, onde figuram os nomes dos moradores que ele encontrou no seu caminho.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
27
eles como negros pobres na economia regional. Sendo assim, durante nosso estudo
percebemos que houve um deslocamento desse grupo dentro desse território em
busca de trabalho e moradia. Nessa região, em meados do século XIX, com o
declínio da mineração os escravistas passam a privilegiar o cultivo e
processamento da cana-de-açúcar, seguindo a tendência já observada na capitania
paulista desde fins do século XVIII. Por outro lado, a maioria dos fogos
(propriedades rurais) predominantemente não escravistas, viviam a custa da
agricultura de subsistência (auto consumo ou troca), sendo significativa a parcela
daqueles que não possuíam nada, cerca de 15% a 20% das unidades domiciliares5.
Essa era a situação dos vários núcleos populacionais de ex-escravos existentes na
região6. Dentre os quais três em especial nos interessam: o Córrego dos Monos,
Dourada e Porto Velho (ver mapa histórico). Segundo os moradores de Porto
Velho, os seus antepassados, bem como, eles próprios, nasceram e moraram nesses
lugares. O estudo indica que nas localidades; Córrego dos Monos e Dourada
vivam ex-escravos nas terras doadas ou abandonadas pelos seus donos, ou como
agregados7 nas fazendas.
Analisando a Lista de Massa de População de Apiaí do início do séc. XIX
pudemos perceber que, com o declínio da mineração, muitas das fazendas passam
a ocupar-se da lavoura e os antigos donos do local desaparecem da Listas de Massa
de População.
Segundo os cronistas do séc. XVIII as localidades da Capitania de São Paulo
que estavam longe dos grandes centros urbanos encontravam-se num estado de
pobreza com uma agricultura dirigida, principalmente, para o consumo doméstico.
Com fazendeiros descapitalizados, fazendas guardadas por agregados que
lavravam a terra para seu sustento, na qual o gado era criado solto nas invernadas. 5 Dados apresentado Agnaldo Valentim em, Nem Minas nem São Paulo: economia e demografia nalocalidade paulista de Apiaí (1732 – 1835), FFLCH/USP, dissertação de mestrado, 2001.6 Localidade de Córrego dos Monos, Dourada, Anta Gorda, Porto Velho, Mamonas e Rio da Claudia (ver mapa histórico).7 Agregados são posseiros que recebem permissão para cultivar um pedaço de terra dentro da área de uma fazenda e que, de acordo com o contrato estabelecido com o fazendeiro, comprometem parte daquilo que produzem.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
28
”Uma população onde pouco se distinguia visualmente o senhor de terras de seus agregados. Esse fato não espelhava uma sociedade sem grandes diferenças sociais, mas expunha uma economia onde havia uma parca circulação de moedas pois a produção, em sua maior parte, parte dirigida para consumo familiar e onde ainda sobrevivia a indústria doméstica”(Corrêa,1997:55).
Isso explica porque muitos moradores da região de Iporanga, no começo, do
século XIX, iniciaram a exploração rumo ao planalto em busca de novas fontes de
riqueza. A lei de terras de 1850, veio estimular essa exploração pois determinava a
venda das glebas devolutas que até então eram doadas. “Transformando as terras do
sertão em mercadorias e com isso instituindo um mercado onde todas as terras entrariam,
valorizando-as como um todo”(Correia,1997:64). Esse avanço rumo ao sertão não se
caracterizou apenas como um movimento de lavradores pobres, mas
fundamentalmente de grandes grileiros. Esse pode ter sido o caso do Sargento-Mor
Antonio de Oliveira Roza, filho de Manuel Roza Luiz, que figura nas Listas de
Massa de População e Registro de Terras de Apiaí como tendo a posse de uma
faiscadeira no lugar conhecido como Córrego dos Monos. Ele era proprietário de
alguns escravos, e por volta de 1815 seu nome desapareceu da Lista de Massa de
População de Apiaí. Podemos levantar duas hipóteses para o desaparecimento
deste escravista. Uma primeira possibilidade seria a sua morte seguida da
liberdade dos seus escravos e doação suas terras para os mesmos. Ele pode
também, ter deixado suas terras e escravos para um parente próximo, já que era
solteiro. Uma segunda possibilidade seria ter abandonado ou deixado suas terras e
escravos aos cuidados de seus agregados8 e seguido para ao planalto em busca de
novas riquezas. As duas hipóteses levantadas aqui ajudam nos a entender a
formação deste agrupamento de escravos no Córrego dos Monos.
8 Muitos agregados eram antigos escravos que ao conseguir a liberdade por diversas razões permaneciam vivendo junto aos seus antigos donos.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
29
Na pesquisa9 pudemos identificar uma das escravas do Sargento-Mor
Antônio de Oliveira Roza que era a Maria da Roza que em 1860, aparece
batizando10 seu filho Antônio de Oliveira Roza. Segundo informações dos
moradores de Porto Velho, Antônio Oliveira da Roza seria o bisavô deles.
Em Porto Velho, existia um sitio denominado Porto11, sendo essa terra de
propriedade de Dona Martinha Dias Batista. Nele viviam como agregados ex-
escravos que mesmo depois de sua morte permaneceram morando no lugar. A
morte de D. Martinha deu-se, provavelmente, na primeira metade do século XIX.
O imóvel Porto foi herdados pelo seu genro João Dias Duarte o que tudo indica
não chegou a tomar posse do lugar. Porém, os ex-escravos de Dª. Martinha,
permaneceram morando no lugar com suas famílias e parentes porque não tinham
onde ficar morando. Desse grupo, destacamos o Sr. Bazílio como figura em um
mapa antigo de 1908.
9 Pela pesquisa realizada na lista de Massa de População de Apiaí do Arquivo do Estado de São Paulo, rolo 01. 10 Pesquisa realizada nos livros de Batismo da Paróquia da Iporanga do ano de 1860. 11 No Registro de Terras de Iporanga o imóvel Porto, que pela descrição corresponde ao Bairro de Porto Velho, era de propriedade de D. Martinha Dias (ver documento anexo).
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
30
No mapa acima o Srº Bazílio aparece como morador do lugar denominado
Porto Velho. Esse senhor era chefe de uma extensa família conhecida na região
como “bazilhada”12(ver genealogia anexa). Estes ex-escravos eram parentes dos
escravos forros do Córrego dos Monos e da Dourada formando uma teia de
parentesco que liga essas várias localidades. Como no caso dos pais do Sr. Bazílio:
sua mãe Maria Rufina nasceu em Porto Velho/Dourada13 e se casou com Antonio
de Oliveira Roza que morava no Córrego dos Monos. Após o casamento foram
morar em Porto Velho onde, no ano de 188714, nasceu Bazílio de Oliveira Rosa.
Assim os descendentes do Sr. Bazílio foram ocupando o lugar denominado de
12 Termo utilizado por membros de outras comunidades de quilombo para se referir aos descendentes deBazílio de Oliveira Rosa.13 Essas duas localidades formavam um continuo de moradores ligados por laços de parentesco.14 Data obtida nos assentamentos batismo da Paróquia de Iporanga.
PLANTA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE E SEUS AFLUENTES (1908): Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo. Chefe João P. Cardoso. ESCALA 1:50000.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
31
Porto Velho. Como nos relata o Sr. Francisco Maximo Fernandes, “naquele tempo o
pessoal morava em qualquer lugar sem documentação”. Segundo Woortmann (1990), ser
dono da terra é uma categoria moral que se opõem a de proprietário. “É-se dono,
não por ter comprado a terra, mas por tê-la trabalhado” (1990:28). Talvez por esse
motivo que o Sr. Francisco insista em afirmar que o pessoal do Porto trabalhou
roçando todas as terras desse lugar. Pois “é-se dono pelo trabalho, independente de
haver ou não propriedade jurídica da terra”(1990:29).
No início do século XIX, esses escravos forros viviam da produção de
subsistência e comercializavam o excedente com as cidades de Apiaí, Sorocaba e
com povoados rio abaixo até Iguape, sendo que o meio de transporte utilizado
eram canoas e tropas. As canoas subiam o rio Ribeira de Iguape carregadas de
mercadorias comercializadas ao logo do rio com as populações ribeirinhas, até
chegar em Porto Velho, onde tinha que aportar e seguir viagem nos lombos dos
burros. Segundo Figueiredo (2001), no ano de 1822 a Vila de Sant`Anna de
Iporanga contava com 68 tropeiros cadastrados e 42 proprietários de tropas.
Segundo o Sr. Paulino, morador de Porto Velho, seus antepassados trabalhavam
como camaradas15 para o dono de uma tropa chamado Juca da Silva.
- Meu pai carregava canoa de mantimentos até Iguape e ia vendendo rio abaixo. Carregava a canoa novamente em Iguape e voltava de novo. Demorava uns vinte dias. Ele trabalhava de camarada. Morreu aqui com 84 anos. Ele era camarada de José da Silva. Meu pai e mais dois eram os escolhidos para ir até Iguape de canoa.
-Para Apiaí e Itapeva (rio acima) ia por terra no lombo do burro.
As viagens com a tropa fizeram com que os membros desses grupos
estivessem em constante deslocamento pelo seu território (ver mapa histórico).
Apesar de suas família morarem no Córrego dos Monos e na Dourada tinham que
residir parte do mês, em Porto Velho, pois era o ponto de conexão entre as canoas
que subiam o rio e as tropas que de lá partiam em direção ao Planalto. Nesse lugar
15 Nome do peão que trabalhava para o dono da tropa.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
32
também existia um “criame de escravos” como afirma o Sr. José Oliveira da Rosa16
morador de Porto Velho: “No casarão velho tinha um criame de cativo e meu pai
trabalhava ali”. Esse casarão estava localizado próximo ao porto onde
desembarcavam as canoas que subiam o rio(ver mapa histórico). Era muito difícil o
transporte de escravos do litoral até o planalto, sendo que, a criação de escravos
para a venda se tornou um negócio atraente, principalmente, depois da lei que
proibia tráfico de escravos17.
O tropeirismo18 teve um papel importante para a vida desse grupo, pois até
os dias de hoje utilizam os caminhos das tropas que os ligam a outras
comunidades de quilombos, como Praia Grande, Rio da Cláudia e Bombas. Além,
da criação de animais de montaria como cavalos e burros que eram utilizados para
locomoção na região. O comércio de excedentes realizado pelas tropas de muares
deve ter perdurado, pelo que tudo indica, até o início do século XX.
A característica marcante da ocupação do território histórico da
Comunidade de Porto Velho é a mobilidade constante do grupo pelo mesmo.
Como parte de uma estratégia que tinha como objetivo permanecer morando
próximo ao local onde seus pais e avós nasceram e foram enterrados. Esses
deslocamentos foram motivados, principalmente, por questões econômicas. E,
geralmente, quando algum parente casa-se, e não tem um lugar para morar outro
parente próximo que possuí terras, oferece um pedaço dessas terras para o jovem
casal morar.
Durante o século XIX e meados do XX, os homens desses dois
agrupamentos de escravos forros apesar de morarem no Córrego dos Monos e na
Dourada tinham que trabalhar fora da área onde moravam, pois com o aumento
das famílias as terras tornavam-se insuficientes para todos plantarem. Dessa 16 O Sr. José de Oliveira Rosa é o mais antigo morador de Porto Velho, sendo um dos filhos de Bazílio de Oliveira Rosa.17 A Lei Eusébio de Queirós, de 1850, extinguiu o tráfico de escravos no Brasil.18 Tropeirismo condução de animais soltos ou de mercadorias em lombos de animais arriados. Segundo o historiador Aluísio de Almeida o tropeirismo teve um papel mais amplo sendo um conjunto de fatos geográficos, históricos, sociais, econômicos e até psicológicos, relacionados com esse sistema de transporte em todo o país.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
33
forma, eles chegavam a ficar 20 dias fora de casa trabalhando com tropas ou como
jornaleiros19 para fazendeiros de Porto Velho, juntamente com parentes que já
residiam no lugar. Segundo Carril (1995), na Paróquia de Santo Antonio de
Apihay, em 1811, dos 864 habitantes 230 eram jornaleros. A maior parte desses
jornaleros era composta por escravos forros que encontraram nessa atividade um
meio de sobrevivência dentro da estrutura econômica escravista na qual viviam.
Segundo o Sr. Francisco Maximo Fernandes20 :
“Naquela época não tinha patrão, uma pessoa que aguentace pagar uma semana de serviço pra um e pra outro. Eles contavam que trabalhavam de jornalero um pouco pra um, um pouco pra outro e assim idam convivendo”.
Pela fala do Sr. Francisco o trabalho como jornaleiro era considerado um
trabalho livre das regras impostas pelo patrão. Segundo Woortmann (1987), o
trabalho como jornalero era uma ajuda entre vizinhos (iguais) onde você não era
obrigado a trabalhar, ‘ajuda quem quer e vai trabalhar quando quer’, sendo assim,
expressão de uma reciprocidade entre iguais. Era um ‘trabalho livre’, ou seja, não
escravo dentro de uma ordem escravocrata. Porém, existiam aqueles que
trabalhavam como agregados nas fazendas das localidades de Porto
Velho/Dourada. Esse processo se intensificou a partir de 1850 com a promulgação
da primeira Lei de Terras no Brasil que trazia a intenção de torna-las (as terras)
cativas nas mãos dos coronéis para que os negros alforriados não tivessem acesso a
elas. Dessa foram, permaneceriam livres no papel, mas cativos nas fazendas dos
coronéis como agregados.
O Sr. Bazílio e esposa, que residiam em Porto Velho, foram trabalhar na
construção da estrada que liga Iporanga à Apiaí e também na de São Paulo à
Curitiba, em 1932. Por volta de 1940, os moradores da localidade de Porto Velho
passam a trabalhar com os fazendeiros da região numa relação “confusa”, ora 19 Os jornaleros eram diaristas, pessoas que ganhavam o salário por jornada de trabalho.20 Parente dos moradores de Porto Velho.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
34
como diaristas ou mensalistas, ora como agregados. Essa confusão deu-se,
principalmente, pelo fato dessas pessoas não conhecerem seus direitos trabalhistas
como também os da terra. Assim, acabavam se sujeitando as propostas dos
fazendeiros num esforço do grupo para se manter no local onde seus antepassados
nasceram e foram enterrados (ver mapa anexo). No território reivindicado pela
comunidade de Porto Velho existe um cemitério muito antigo onde membros do
grupo foram sepultados até 1986. O cemitério é muito simples: uma clareira aberta
na mata onde as pessoas eram enterras em covas rasas cobertas de terra e
amontoados de pedras. Também existem pés-de-rosa e uma cruz de ferro feita
pelos membros da comunidade e Porto Velho. Estudos feitos pelo Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1908, apontam essa área como tendo um
sambaqui. Tudo indica que nesse lugar existia um cemitério indígena que,
posteriormente, foi utilizado pelos negros da região para sepultar seus familiares.
Os casamentos de negros e índios eram muito freqüentes no Vale do Ribeira sendo
estimulado pelos donos de escravos. Pois a escravidão indígena era proibida o que
não acontecia com os filhos de índios e negros. Dona Jumira, membros da
comunidade de Porto Velho, conta que sua bisavó era índia: “ Ela se desgarrou do
bando que andava por aí. Acharam ela e batizaram de Izabel”.
Durante a década de 1950 várias pessoas de fora do bairro foram chegando
dizendo ser donos das terras mostrando documentos que eles não entendiam,
porque não sabiam ler e escrever. Esses fazendeiros firmavam um contrato verbal
com o grupo no qual poderiam continuar morando no lugar, trabalhando como
empregados ou agregados. Em contrapartida, tinham que dar uma parte da
produção para “o dono da terra” ou trabalhar alguns dias da semana nas roças do
mesmo como pagamento pelo uso da terra. Isso tudo se dava sem nenhum
documento que comprovasse essa situação em relação ao ditos proprietários do
lugar. Na verdade começa instaurar nessas localidades um processo de cooptação
dos seus moradores pelos fazendeiros (que se diziam proprietários das terras
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
35
herdadas ou compradas) para institucionalizar a legitimidade de suas fazendas e
incutir nos moradores a idéia de que eram agregados.
Na memória do grupo esta muito presente às relações de trabalho
estabelecidas com esses fazendeiros que os obrigavam a trabalhar de sol a sol, mal
podiam parar para almoçar. Não tinham folga nem aos domingos. As mulheres
trabalhavam grávidas até o último mês de gestação, sendo que, as crianças também
tinham que ajudar na roça não podendo estudar. Eles afirmam que tinham medo
de questionar o patrão e serem chamados de vagabundos, por isso, eles aceitavam
essa situação de semi-escravidão. O próprio acordo de meeiros tinha regras ditadas
pelo fazendeiro este era quem comercializava o produto das roças e dividia o
lucro, no final da colheita que era dado em dinheiro ou porcentagem da colheita,
que o fazendeiro considerava justo, para o consumo do grupo. O fazendeiro
utilizava o sistema de caderneta, no qual, tudo que consumiam ao longo do mês
eram registrado e descontado no dinheiro que deveriam receber pelo seu trabalho.
Aqueles que não aceitavam essas condições tinham que se deslocar para outras
terras, muitas vezes, nas terras de parentes que moravam na região.
No começo do trabalho de reconhecimento desse grupo como remanescente
de comunidade de quilombo era comum se referirem a essa época (descrita acima)
como o período em que eles foram “cativos”. Num primeiro momento, esse fato
gerou um pouco de confusão. Posteriormente, começamos a entender que eles
estavam falando das relações de trabalho com esses fazendeiros. É comum o grupo
afirma que “nós fomos escravizados no mesmo lugar que nossos antepassados foram
escravos”.
Por volta de 1950, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade chega a Porto Velho se
dizendo proprietário21 de uma grande extensão de terras no lugar. Segundo os
moradores de Porto Velho, ele teria vindo do município de Tunas no estado do
Paraná (ver croqui de ocupação anexo). Convidou os moradores que aí residem
21 Uma das alegações do Sr. Benedito Barbosa de Andrade é de que teria herdade essa terra de seu bisavô José Pereira da Silva. No processo de titulação de 1969, realizado pela PPI (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário), José Pereira da Silva figura como sendo o dono do imóvel Porto dos Apertados de Apiaí.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
36
para trabalharem como agregados nas terras que ele dizia ser proprietário. Começa
aí um processo de apossamento da área pelo Sr. Benedito que alegava ser herdeiro
dessas terras, mas não detinham o documento de domínio.
A área reivindicada pela comunidade de Porto Velho encontra-se nos
perímetros 46º e 38º de Apiaí (ver croqui de ocupação anexo) sendo que a maior
parte dessas terras já foi julgada particular e outro trecho restante foi titulado, em
1969, pela PPI de São Paulo (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário). Desses
títulos apenas um encontra-se com a família da comunidade, que conseguiu resistir
as pressões da especulação imobiliária existente na região desde de o final dos anos
60. Enquanto que o restante pertence com pessoas de fora da comunidade. Outros
3 moradores de Porto Velho receberam título em algumas localidades próximas
conhecidas como Córrego dos Monos e Três Águas que foram vendidos logo após
a sua titulação. Segundo essas pessoas as vendas aconteceram por total
desconhecimento das regras de um mercado de terras que começou a se instaurar
na região. Sendo assim, suas terras foram vendidas por baixos preços e em alguns
casos os pretensos compradores chegaram a ameaça-los com capangas armados.
Um outro fator importante para se entender o processo que transformou
esse grupo de donos da terra em agregados, é que eles compartilham a concepção
de que a terra é um valor moral, um bem de uso social que através do trabalho
supre as necessidades de reprodução física e cultural do grupo.
4.2. A HISTÓRIA DE UM CONFLITO
O aparecimento de Benedito Barbosa de Andrade, em 1950, na localidade de
Porto Velho é um fato que levou-nos a realizar algumas pesquisas e levantar
hipóteses sobre a propriedade que ele alega ter no local. Uma das afirmações do Sr.
Benedito Barbosa de Andrade é de que teria herdado essa terra de seu avô José
Pereira da Silva. No processo de titulação de 1969, realizado pela PPI
(Procuradoria do Patrimônio Imobiliário), José Pereira da Silva figura como sendo
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
37
o dono do imóvel Porto dos Apertados de Apiaí. Porém, a localização desse imóvel
não aparece no mapa da área titulada pela PPI. Nesse mapa existe uma grande
área particular e dentro dela vários proprietários. A dúvida é onde estaria
localizado o imóvel de José Pereira da Silva. Realizamos pesquisas cartoriais para
esclarecer a situação dominial dessa área. Pelas informações obtidas, a área embora
particular, não foi registrada nos cartórios da região havendo, portanto dúvidas
quanto a sua situação dominial. O Sr. Benedito chegou a elaborar um croqui da
área e a tentar registrar no cartório de Apiaí, porém não conseguiu o registro por
problemas de “espacialidade” e “continuidade”(ver nexo).
Nas pesquisas que realizei no Arquivo do Estado de São Paulo com os
registros de terras de 1855 pude constatar que José Pereira da Silva morador da
Freguesia de Iporanga tinha um sitio denominado Tunas Grandes na região de
Apiaí. Pelos limites descritos nesse documento a localização desse sitio não
incidem sobre a localidade de Porto Velho. Um detalhe interessante é que o Sr.
Benedito nasceu no município de Tunas no Estado do Paraná. Pesquisas em mapas
antigos mostram que boa parte do atual estado do Paraná pertenceu ao estado de
São Paulo durante século XIX e início do século XX. Provavelmente, essas terras
pertenciam à região de Apiaí. Assim quando o Sr. Benedito Barbosa de Andrade
ficou sabendo que o nome de seu avô aparecia no processo de titulação saiu de
Tunas no Paraná para se instalar em Iporanga/São Paulo.
Chegando a Porto Velho ele apresenta-se como dono das terras e propõem
um parceria com os moradores de Porto Velho, já de início derrubaram a mata e
plantaram grama para a formação do pasto. Além isso, eles plantavam cana-de-
açúcar para fazer o melaço que era comercializado pelo Sr. Barbosa. O qual pagava
os membros da comunidade do Porto, como e quanto queria sem que os mesmos
pudessem questionar o valor pago pelo produto que havia sido vendido. Eles eram
parceiros na fábrica, e pelo motivo principal de “serem analfabetos”, não sabiam o
que assinavam, e qual o valor em espécie (dinheiro) que recebiam por cada safra.
Segue foto da fábrica de melaço.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
38
As relações de trabalho eram as mesmas já vivenciadas com outros
fazendeiros (como já citado). Porém, a década de 80, aconteceu um fato curioso que
marcou a trajetória desse grupo. Segundo os moradores de Porto Velho alguém22
da comunidade achou uma bíblia e começou a ler. Foi a partir daí que eles
tomaram consciência de seus direitos, pois se até Deus descansou, porque eles não
tinham o direito a folga semanal. Essa descrição quase mítica para o período de
tomada de consciência do grupo sobre seus direitos é o mesmo período que o
MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens) e a Igreja Católica percorriam
essas a região informando essas populações sobre seus direitos e sobre a
construção das barragens do Funil e de Tijuco Alto que irão inundar o território
onde moram. Os moradores de Porto Velho contam que agarram-se com a capela
22 Nas conversas com os membros da comunidade de Porto Velho o nome da pessoa que teria levado essas informações para o grupo sempre foi omitido. Porém, na última reunião do grupo com nossa equipe o Sr. Américo vice-presidente da Associação de Quilombo de Porto Velho assumiu que foi ele quem trouxe essas informações para a comunidade. Ele foi seminarista que tomou consciência dos seus direitos e da opressão que seus parentes viviam. O fato de não ter revelado nada no começo do trabalho se deve, principalmente, por temer represarias do Sr. Benedito Barbosa que o acusa de incitar os membros da comunidade contra ele.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
39
de São Sebastião que existia no local. A Igreja tem orientado-os dos direitos
adquiridos na constituição 1989, no Art. 68 que trata da questão quilombola.
Essa situação começou a criar um clima de animosidade entre o Sr. Bendito
Barbosa de Andrade e os membros da comunidade de Porto Velho. Como relata o
Sr. José de Oliveira Rosa (morador mais antigo do lugar):
“Gostamos desse lugar porque nosso pai trabalhava naquele cativeiro, baldeando carga para lá. Mesmo há pouco tempo, nós mesmo estava trabalhando como escravos e não sabia. A igreja abriu nossos olhos e agora os fazendeiros tão vendo isso e querem nos expulsar”.
Por ocasião da enchente ocorrida, em 1997, no rio Ribeira de Iguape, e que
destruiu várias casas da comunidade, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade proibiu a
reconstrução das mesmas, forçando os moradores a sair do lugar e ir para as
cidades mais próximas em busca de emprego e um novo lugar para morar. Essa
catástrofe natural foi usada pelo fazendeiro para expulsar os moradores das suas
terras.
Hoje, moram apenas nove famílias na área, onde segundo os moradores já
existiram mais de trinta. Atualmente, duas delas retomaram um pedaço de terra
para plantar feijão, mandioca e milho, motivadas pela pobreza e marginalidade
econômica do grupo que não vendo outra saída para seus problemas. Abaixo
temos a foto das roças.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
40
Roça de Feijão e Milho do Sr. Esperidião dos Santos e do Sr. Campolim Pires da Silva
Sr. Esperidião dos Santos na sua roça de milho e feijão
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
41
Essas duas famílias conseguiram fazer apenas a colheita do feijão, pois o Sr.
Barbosa cercou a referida área, transformando a em pasto.
No mês de outubro de 2002, ele ameaçou a comunidade dizendo que
soltaria o gado nas roças deles, e mais, disse para os quilombolas que o processo de
usucapião23 teria sido julgado a seu favor, por isso os membros da comunidade
teriam que deixar a área.
Também fornecemos informações sobre a área em questão para o Drº Walter
Claudius Rothenburg – Procurador da República em São Paulo – que está
acompanhado o processo Nº 283/00, objeto de ação judicial de usucapião
promovida por Benedito Barbosa de Andrade que segundo informações do
procurador encontra-se na instância federal.
23 Em 2002, o Srº. Benedito Barbosa de Andrade entrou com um processo de usucapião nº 283/00 em uma tentativa de conseguir o domínio da área.
Cerca construída pelo Sr.Benedito Barbosa de Andrade que impede o acesso da comunidade as suas roças.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
42
Os problemas dessa comunidade com o Sr. Benedito Barbosa de Andrade
continuaram, no dia 03 de dezembro de 2002, esse senhor resolveu fazer um
mutirão com seus empregados, ergueu uma cerca impedindo que os moradores da
comunidade tivessem acesso as suas roças e ameaçou soltar o gado nos mesmos.
Esse é o caso do Sr. Esperidião dos Santos e do Sr. Campolim Pires da Silva que
tinham roças de feijão, milho e mandioca no local (ver mapa anexo). Além disso,
eles foram sendo impedidos de ter acesso ao canavial cultivado pela comunidade
de Porto Velho. No mês de janeiro de 2003 o Sr. Benedito cumpriu suas ameaças e
soltou o gado nas roças dos moradores da comunidade destruindo-as, cercou o
acesso deles inclusive a Capela existente na comunidade, como também, soltou os
animais de criação do Sr. Esperidião e do Sr. Campolim na estrada do bairro. Cabe
ressaltar que os moradores dependem exclusivamente dessas roças para sua
subsistência, complementada com parcos recursos advindos da farinha de
mandioca e do melaço de cana.
A irmã Maria Sueli Berlanga, advogada da Comunidade de Porto Velho,
entrou com um processo de reintegração de posse nº 684/02. Porém, até o
momento não temos nenhuma resposta do processo. A situação na área esta muito
tensa e vem se agravando com a demora de uma medida judicial para o caso. Um
fato recente veio somar-se as arbitrariedades cometidas pelo Sr. Barbosa. No dia 22
de junho de 2003, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade, sua filha Francisca, seu
marido e o neto do fazendeiro resolveram derrubar a capela de São Sebastião,
afirmando que os moradores de Porto Velho haviam derrubado um cerca sua e que
não vai parar enquanto os membros da comunidade de Porto Velho não
abandonarem o local.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
43
4.3. CARACTERIZAÇÃO DA COMUNIDADE DE PORTO VELHO
Porto Velho é o nome de uma localidade do bairro de Anta Gorda do
município de Iporanga estado de São Paulo que está localizado a montante do
Rio Ribeira de Iguape estando uma pequena parte de seu território no
município de Itaóca. Seus moradores estão dispostos ao longo da margem
direita subindo o rio Ribeira ficando “espremidos” entre o rio e as montanhas.
Esse bairro esta a cerca de 8 km da Cidade de Itaóca, a 29 km da Cidade de
Apiaí e mais ou menos 90 km do centro administrativo de Iporanga. Podemos
notar que os moradores desse lugar mesmo estando a maior parte do seu
território no município de Iporanga acabam tendo como referencia a cidade de
Apiaí para várias atividades. Pois, as estradas1 que ligam o bairro à sede
administrativa do município de Iporanga não são pavimentadas e estão em
péssimo estado, sendo que, na época das chuvas ficam quase intransitáveis.
1 A distância do centro administrativo do município de Iporanga até Porto Velho é de, aproximadamente, de 90KM enquanto à distância a de Porto Velho à Apiaí é de 29KM.
Vista do núcleo da comunidade de Porto Velho. Ao fundo temos a igreja e a escola na parte da frente o posto de saúde.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
44
O bairro possuía uma capela consagrada a São Sebastião, um Posto de
Saúde e Escola Estadual de 1ª à 4ª séries do ensino fundamental. O Posto de
Saúde não possui nenhum equipamento para exames, nem médico fixo. O Sr.
Américo, membro da comunidade, que é o agente comunitário de Porto Velho
encarregado da distribuição de remédios para os moradores do bairro e
também do transporte de pacientes até a cidade de Iporanga para consultas
médicas e do transporte escolar.
A comunidade possui um total de 09 famílias que ocupam uma estreita
faixa de terra entre o rio Ribeira de Iguape e as montanhas. Suas casas são na
maior parte de madeira com telhas de barro ou amianto, sendo que duas
famílias possuem casas de alvenaria.
Membros da Comunidade de Quilombo de Porto Velho
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
45
No bairro não existe rede de água e esgoto. A rede de energia elétrica
vem do estado do Paraná, pois não existia uma rede no Estado de São Paulo,
perto do bairro para que recebessem a energia. Segundo os moradores de Porto
Velho, eles já tentaram receber energia elétrica de São Paulo, porém, o Sr.
Barbosa não permitiu que a fossem colocados postes de fiação “nas suas terras”.
Assim eles conseguiram trazer energia elétrica do estado Paraná.
Os moradores de Porto Velho eram basicamente agricultores familiares
que produziam para o autoconsumo e sofreram um processo de expulsão do
seu território que os levou a terem que trabalhar como diaristas para os
fazendeiros vizinhos às terras onde residem. Sendo que, a maior parte das
famílias só podem ocupar o espaço da casa e do quintal2. Eles plantavam arroz,
feijão, mandioca, cana-de-açucar, milho e faziam o melaço que era
comercializado em Apiaí e no estado do Paraná.
Eles também cultivavam a banana, sendo que, seus bananais foram
tomados a força pelo Sr. Benedito Barbosa, que alegando ser o dono, cercou a
2 Onde criam pequenos animais, cultivam hortaliças e árvores frutíferas.
Casa de Esperidião dos Santos e Leonor Pereira da comunidade de Porto Velho
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
46
área impedindo que o Sr. Campolim que é morador da comunidade de Porto
Velho tivesse acesso aos mesmos.
Atualmente, apenas três famílias têm algum espaço3 para plantar e para
criação de animais como bois, cavalos e burros. Essas famílias plantam
mandioca e fabricam a farinha que é comercializada em Itaoca e Iporanga. Além
de derivados do leite como queijo que também é comercializado em Iporanga.
Eles possuem canaviais para a produção de melaço, rapadura e talhada4 que são
vendidos em Apiaí.
3 Duas dessas famílias possuem o título da terra enquanto que a outra mora em Porto Velho nas terras de propriedade de um amigo da família.4 Um doce feito com o melaço da cana-de-açúcar, farinha de mandioca e gengibre.
Bananal do Sr. Campolim Pires da Silva que foi tomado pelo Sr. Benedito Barbosa.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
47
Uma outra fonte de renda para uma das famílias de Porto Velho é o
artesanato feito por Dona Zulmira Rosa de Oliveira. Para a confecção de suas
peças ela utiliza a palha da banana, do milho e sementes da região. Dona
Zulmira vende seu artesanato para as lojas de Apiaí além das freguesas que
residem em Iporanga e Itaóca que encomendam suas peças.
Fábrica de Farinha da família do Sr. Américo Gomes da Comunidade de Porto Velho.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003)
48
No final do ano de 2002, a Associação de Remanescentes de Quilombo
de Porto Velho organizou o plantio de um canavial comunitário, para com o
dinheiro da colheita pagar os custos do registro da associação. Porém, o Sr.
Benedito Barbosa de Andrade cercou a área do canavial e soltou o gado no local
destruindo-o.
A maior parte da comunidade é composta por católicos1 sendo a capela
do bairro consagrada a São Sebastião. Atual capela foi construída em 1980.
Antes dela, existia uma outra capela construída de taipas, no mesmo lugar, da
qual foi destruída. Essa mais antiga, provavelmente, do século XIX como
podemos perceber pelos antigos oratórios.
1 A Igreja Católica teve e tem um papel importante na luta das comunidades negras do Vale do Ribeira pela terra e Porto Velho não é uma exceção. Ela tem orientado e impulsionado a comunidade de Porto Velho a lutar contra as barragens e os orientando a buscarem seus direito como remanescentes de comunidade de quilombo.
Dona Zumira Rosa de Oliveira
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003)
49
A presença de dois oratórios na capela explica-se pelo fato de que a
capela que existia no bairro de Anta Gorda foi destruída em 1980, sendo que o
oratório e as imagens dos santos foram levados para a capela de Porto Velho.
A devoção a São Sebastião é comum no bairro, sendo esse santo, o
protetor dos desamparados. No dia 20 de janeiro a comunidade comemora o
dia de São Sebastião com uma festa realizada junto à capela.
Também é grande a devoção a São Gonçalo de Amarantes. Santo
português cujo culto foi permitido pelo Papa Julio III em 1551. Ele é padroeiro
dos violeiros, santo protetor contra as enchentes, enfermidades e casamenteiro.
É comum a promessa feita para o santo, paga com a Romaria ou Dança de São
Gonçalo que é sempre realizada no dia que for mais conveniente para o devoto.
No momento de necessidade o devoto pede: “Deus de potência para São Gonçalo
me ajudar”. A Romaria de São Gonçalo é realizada no maior cômodo da casa
onde os móveis são retirados só ficando o altar que é enfeitado com os materiais
mais diversos como bexigas, flores e bandeirinhas coloridas de papel de seda e
crepom. A Romaria é tocada por um mestre de cerimônia e um contra mestre.
São feitas duas filas o mestre canta a entoada e puxa sua fila para um lado e o
O oratório da esquerda pertencia antiga Capela de Porto Velho e o da direita à Capela de Anta Gorda.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003)
50
contramestre toca a viola e puxa sua fila em sentido contrário. Ela é realizada à
noite só quando a promessa é para um defunto que a Romaria tem de ser
durante o dia. Os mestres de romaria de Porto Velho são chamados para tocar
inclusive em outro bairro, e mesmo fora do estado de São Paulo. As Romarias
de São Gonçalo, os terços, bem como, as festas são espaços de socialização onde
os velhos podem contar suas histórias, relembrar o passado, encontros amoroso
são possíveis, as mulheres trocam experiências.
Capela de Porto Velho que foi destruída, em jun. de 2003, pelo Sr. Benedito
Barbosa de Andrade.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
51
4.4. MEMÓRIA E IDENTIDADE
A construção da identidade quilombola dos moradores de Porto Velho está
profundamente ligada ao processo de expropriação vivido por esse grupo que os
obrigou a deslocarem-se dentro de uma região. Para permanecerem próximo ao
local de origem de usa família seu nascimento e de seus pais, o qual tem um
grande valor simbólico. Isso os levou a trabalhar como assalariados ou ocupar
pequenas franjas de terras vivendo de uma agricultura de subsistência.
As constantes mudanças tiveram um impacto sobre a memória do grupo o
que dificultou a articulação entre identidade e território. Eles enfrentaram grandes
dificuldades em localizar pontos de referência que estruturassem sua memória e
que as inserissem na memória da coletividade a que pertencem. Um desses pontos
de referencia é a memória dos lugares1, ou seja, as paisagens que nos acompanham
durante nossas vidas como os rios, matas, montanhas, roçados, espaços de
moradia, lazer e religiosos foram se perdendo devido à mobilidade do grupo pelo
seu território. Sendo assim a articulação entre memória, identidade e território foi
construída durante o trabalho de campo para a elaboração do Relatório Técnico-
Científico o que nos levou a longas discussões com o grupo a respeito da área que
estavam reivindicando como sendo seu território.
1 Segundo Pollak (1989) entre esses pontos de referencia incluem-se os monumentos, esse lugares da memória analisados por Pierre Nora.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
52
É importante ressaltar que nesse processo de demarcação do território
vários personagens interferiram ocorrendo divergências dentro do grupo com
relação a área a ser reivindicada. Membros da Igreja Católica e do MOAB
(Movimento dos Ameaçados por Barragens), também tinham uma proposta de
qual seria o tamanho do território a ser reivindicado pelo grupo. E com isso, qual
seria o “território ideal” para a comunidade de Porto Velho cada um defendendo
seus próprios interesses e esquecendo do que é realmente importante para
definição de um território. Dessa forma, o território é o espaço:
“ necessário a reprodução física e cultural de cada grupo étnico/tradicional, só pode ser dimensionado à luz da interpretação antropológica e , em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante, tendo em vista a necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,
Membros da Comunidade de Porto Velho em uma das reuniões para discussão do seu território.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
53
através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os recursos naturais para as gerações vindouras”(Vários autores,1997:49).
O espaço necessário à reprodução física e cultural do grupo tem que ser
definido em um diálogo com o mesmo levando em conta sua situação atual e sua
capacidade de gerir determinado território. Considerando que as representações
sobre etnia e identidade estão articuladas à questão fundamental da
territorialidade, que operacionalizam na prática o processo de identificação do
direito desses sujeitos ao território.
Temos no presente a construção de uma memória voltada para garantia de
um direito sendo que, está em jogo a manutenção de um território como
reconhecimento do processo histórico de espoliação. A fala de José Rosa da
Comunidade de Porto Velho exemplifica o processo de construção dessa memória:
“Quilombo eu acho que seja uma lei que favorece aquelas pessoas que foi dessas nações de escravos, né. Que nós somos uma nação de escravos porque somos remanescentes daquela gente passada. E meu pai nasceu e morreu nesse lugar com oitenta e poucos anos e assim minha mãe”.
Pela fala do Sr. José pudemos perceber que a identidade do grupo está
sendo construída a partir da ligação com o passado (aquelas pessoas) e o presente
(nós). Sendo que o elo de referencia para todo o grupo é um ancestral comum do
qual todos descendem que no caso de Porto Velho é Bazilio de Oliviera Roza pai
de José da Rosa. Constituindo, assim, uma comunidade de parentesco “um espaço
onde se reproduzem socialmente várias famílias de parentes, descendentes de um ancestral
fundador comum”(Woortmann,1987:11).
Não podemos deixar de levar em consideração que a construção da
identidade de um grupo resulta das interações entre os grupos e os
procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações. Sendo assim,
os moradores de Porto Velho são conhecidos pelas outras comunidades
quilombolas do Município de Iporanga como “a bazilhada”. Porém, as relações de
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
54
parentesco não são o único elemento utilizado pelo grupo para indicar o
pertencimento. No caso de Porto Velho, existe de um fazendeiro Sr. Olívio que
reside na área reivindicada pelo grupo como pertencendo ao seu território e que
todos são unânimes em afirmar que ele não pertence a comunidade e tem que
sair da área. Porém, percebemos que ele era parente de alguns membros da
comunidade e questionamos o grupo, se pôr ser parente não pertenceria a
comunidade. Num primeiro momento negaram o parentesco e posteriormente
admitiram que era parente, porém, não pertencia a comunidade. Isso porque o
fazendeiro não havia passado pela mesma situação de exploração e expulsão de
suas terras vividas pelos integrantes da comunidade. Assim, a identidade desses
grupos se define por uma referência histórica comum construída a partir de
vivências e valores partilhados.
“Neste sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”(Barth:1969).
A identidade quilombola dos moradores de Porto Velho vem sendo
questionada, principalmente, pelo fazendeiro Sr. Benedito Barbosa de Andrade
que chegou a enviar uma carta a Fundação Itesp (ver anexo) afirmando que os
moradores de Porto Velho não são quilombolas. Ele defende a tese de que na
região não existiam fazendas de escravos e que alí seriam “terras de índios”. A
presença indígena é muito forte em todos os quilombos do Vale do Ribeira. Ora,
esse trabalho já deixou claro que na região existiam fazendas de escravos inclusive
na área onde o referido fazendeiro reside. O interessante desse caso é que esse tipo
de afirmação ao longo do tempo motivou a comunidade de Porto Velho a
selecionar alguns objetos como “sinais externos” reconhecidos por todos que os
ligasse a histórica da escravidão na região.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
55
“Independente de ‘como de fato foi’ no passado, os laços das comunidades atuais com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam como ‘sinais externos’ reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação” (Arruti, 1997:23).
Assim, mesmo antes de começarmos o trabalho de reconhecimento do
grupo como comunidade de remanescentes de quilombo já corriam na região
histórias de objetos da escravidão que os moradores de Anta Gorda2 teriam em sua
posse. Como um ferro de marcar escravos e correntes usadas para prenderem
escravos, restos de um prédio que teria sido cativeiro de escravos e pedras que
transpiram com rosto de um negro esculpido. Tudo isso levou várias pessoas da
região a afirmarem, se referindo a Porto Velho, “lá sim que é quilombo de verdade”.
Nessa situação esse grupo utilizou seus recursos de identidade de maneira
estratégica. ”Na medida em que ela é um motivo de lutas sociais de classificação que
buscam a reprodução ou a reviravolta das relações de dominação, a identidade se constrói
através das estratégias dos atores sociais”(Cuche,1999:196).
Segundo Barth (1969), a identidade é construída numa relação que opõem
um grupo aos outros com os quais está em contato. Portanto, é interessante
destacar o que as comunidades quilombolas vizinhas de Porto Velho dizem a
respeito de sua identidade. Um casal de senhores da comunidade de
Bombas3/Iporanga fez o seguinte comentário se referindo a Porto Velho: “É dizem
que lá vai dar quilombo mesmo”!
Um outro comentário bastante interessante foi feito pelo Srº. Antonio
Corimba do quilombo de Praia Grande. Segundo ele, seu pai e sua tia costumavam
usar a expressão “quilombata” para se referir ao Srº. Bazilio de Porto Velho. Eles
falavam: “Ah Bazilio! Quanto tempo não te vejo você virou quilombata agora”?
2 Anta Gorda é o nome do Bairro onde está a localidade de Porto Velho.3 Os estudos para o reconhecimento desse grupo como remanescente de comunidade quilombo estão em andamento.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
56
O mais importe desse dois comentários é perceber como a identidade é
pensada por esses grupos. Ela não é algo estático, mas dinâmico e
multidimensional. É isso que lhe confere sua complexidade, mas também é o que
lhe dá sua flexibilidade. Quem eu sou é sempre uma pergunta em aberto
dependendo da minha posição no processo de interação com o outro (para quem
se fala), da minha história de vida e do imaginário social4.
“A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais”(Cuche,1999:182).
4 Teia de significados produzidos pelos homens e mulheres no decorrer da história (Geerz,1983) e que circulam na nossa sociedade a partir das narrativas, lendas, textos, memórias, iconografias e conversas do cotidiano.
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
57
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no estudo técnico-científico da Comunidade de Porto Velho
considero que os trabalhos antropológicos não deixam dúvidas sobre a origem
quilombola da mesma. Esse grupo ocupa o mesmo território a pelo menos 140
anos. Sua origem remonta à história da mineração na região que corresponde,
atualmente, aos municípios de Iporanga/Itaóca. Mais precisamente as terras e os
escravos da família Roza que com a decadência da mineração doaram ou
simplesmente abandonavam suas terras. Essas propriedades deram origem a
núcleos populacionais de escravos forros, dentre eles, Porto Velho. Sendo formado
por escravos alforriados que permaneceram morando na fazenda dos seus antigos
donos como agregados. Para não se afastarem dos parentes que permaneceram
ainda como escravos e tinham como objetivo juntar dinheiro e comprar a liberdade
dos parentes cativos. Nesse lugar, eles desenvolveram um modo de vida próprio
articulado a sociedade mais ampla. Possuindo semelhanças estruturais com as
demais populações rurais da região, que Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973)
chama de bairros rurais.
Atualmente, esse grupo enfrenta problemas com o fazendeiro Sr. Benedito
Barbosa de Andrade que se dizendo dono das terras, proíbe-os de plantarem
levando-os a um estado de penúria. Sendo constantemente ameaçados de expulsão
do seu território. Portanto, instaurou-se um quadro de conflito na área que requer
dos governos estadual e federal providências urgentes para uma solução pacífica
desse problema.
Uma outra ameaça enfrentada pela Comunidade de Porto Velho são as
construções das usinas hidrelétricas do de Tijuco Alto e do Funil que irão inundar
boa parte do seu território. Foi o engajamento do grupo na luta contra as barragens
que os impulsionou a buscarem os reconhecimentos, assegurado pelo Art. 68,
como remanescentes de comunidade de quilombo. A luta contra as barragens
ITESP/R.T.C. – Quilombo Porto Velho (Scalli, 2003).
58
nunca foi dissociada da luta pela terra. O reconhecimento tornou-se um argumento
muito importante na luta contra a construção dessas barragens.
Concluímos:
- que os membros do grupo denominado Porto Velho são remanescentes de
comunidade de quilombos, de acordo com as definições que embasam os
critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e
devem, portanto, gozar dos direitos de tal identificação lhes assegura.
- que se faz urgente à regularização fundiária do território quilombola aqui
demonstrado, de área 941,0056 ha.
______________________________________PATRICIA SCALLI DOS SANTOS
ANTROPÓLOGA
59
6. BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Alfredo W. B. de. (1987). “Terras de preto, terras de santo e terras de índio –Posse Comunal e Conflito”. In HUMANIDADES, Ano V, nº 15.
_______________________ (1999). “Os quilombos e as novas etnias”. In LEITÃO, Sérgio (org). Documentos do ISA, nº 05, Instituto Sócio-Ambiental.
ANDRADE, Tânia (org.). (1997). Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas. São Paulo, IMESP.
ARRUTI, José Maurício Andion. (1997). “A Emergência dos ‘Remanescentes’: Notas para o Diálogo entre Indígenas e Quilombolas”. In Estudos de Antropologia Social, vol. 3, nº 2. PPGAS.
ARRUTI, José Maurício Andion. (2002). “Etnias Federais”: O processo de identificação de “remanescentes” indígenas e quilombolas no Baixo São Francisco ”. Tese de Doutorado. UFRJ/ Museu Nacional.
ARRUTI, José Maurício Andion. (2003). Relatório Técnico-Científico Sobre Os Remanescentes da Comunidade de Quilombo do Cangume/Itaóca -SP.
ASSUNÇÃO, M. R. (1996).“Quilombos Maranhenses”. In Reis, J. J. & F. S. Gomes (orgs.): Liberdade Por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras.
BANDEIRA, M. L. (1988). Território Negro em Espaço Branco. Estudo antropológico de Vila Bela. São Paulo, Brasiliense/CNPq.
BARTH, Frederik. (1976) Los Grupos Etnicos y sus Fronteras. México, Fondo de Cultura Econômica.
BORGES PEREIRA, João Batista. (1996) “Racismo à brasileira”. In MUNANGA, K. (org) Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial. São Paulo, Edusp.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (1997). Olhares Cruzados. Distribuição própria.
CAMPANILI, Maura. (2001). Tijuco Alto volta a preocupar quilombolas. São Paulo. Jornal O Estado de São Paulo. 09/03.
60
CANDIDO, Antônio. (1987). Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo, Duas Cidades.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. (1987). Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo, Brasiliense.
CARDOSO, João P.(coord.). (1908). Exploração do rio Ribeira de Iguape. São Paulo, Tupographia Brazil de Rosthschild& Co.
CARNEIRO, E. (1958). O Quilombo dos Palmares. São Paulo, Cia. Editora Nacional.
CARRIL, Lourdes de F. B. (1995). Terras de negros no Vale do Ribeira: territorialidade e resistência. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP.
CORRÊIA, Dora Shellard. (1997). Paisagens Sobrepostas – Posseiros e Fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930).Tese de Doutorado. FFLCH-USP.
CONSORTE, Josildeth Gomes.(1991) A questão do negro: velhos e novos desafios. In São Paulo em perspectiva. Fundação SEADE, 5(1), jan./mar.
DÓRIA, Síglia Zambrotti. (1995). O Quilombo do Rio das Rãs. In Terra de Quilombos. Associação Brasileira de Antropologia.
FIGUEIREDO, Luiz Afonso Vaz de. (2001.) Iporanga: dados & históricos. In Jornal O Progresso, 27/01/2001, nº 01. São Paulo.
HOGAN, Joseph, CARMO, Luiz Roberto, ALVES, Humberto Prates F., RODRIGUES, Izilda Aparecida. (2001). Desenvolvimento sustentável no Vale do Ribeira (SP): conservação ambiental e melhoria das condições de vida da população. Unicamp/Nepan, mimeo.
FRANCO, Maria Sylvia C. (1983). Homens Livres na Ordem Escravocrata, São Paulo, Kairós, 1983.
GOMES, F. S.(1996): Liberdade Por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras.
_______________(1996). ”Ainda sobre os quilombos: repensando a construção de símbolos de identidade étnica no Brasil”. In REIS, E., ALMEIDA, M. H. T. & FRY, P. (orgs.) Política e Cultura – visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo, HUCITEC/ANPOCS.
61
GUSMÃO, Neusa M. de. (1992). A Dimensão Política da Cultura Negra no Campo: uma luta, muitas lutas. Tese de doutoramento, USP/FFLCH.
____________________ (1995). Os Direitos dos Remanescentes de Quilombos. In Cultura Vozes, nº 6, nov/dez São Paulo, Vozes.
KRUG, E. (1942) Xiririca, Ivaporunduva e Iporanga. In Revista do Instituto Histórico e geográfico de São Paulo, Volume XVIII, São Paulo.
LEITE, Ilka B. (org). (1996) Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis, Letras Contemporâneas.
MARTINS, José de Souza. (1991). Expropriação e Violência – a questão política no campo. São Paulo, Hucitec.
_____________________(1995). Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis, Vozes.
MIRALES, Rosana. (1998). A identidade quilombola da comunidade de Ivaporanduva e Pedro Cubas. Dissertação de mestrado. PUC/SP.
MONTEIRO, Duglas T. (1974). Os Errantes do Novo Século, São Paulo, Duas Cidades.
MOTTA, José Flávio e Valentim, Agnaldo. 2002. “A família escrava e a partilha de bens: um estudo de caso”. Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto.
MOURA, Margarida M. (1998). Os Deserdados da Terra. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
MUNANGA, K. (1996). “O anti-racismo no Brasil”. In MUNANGA, K. (org). Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial. São Paulo, Edusp/ Estação Ciência.
NORA, Pierre. (1981). “Entre Memória e História a Problemática dos Lugares”. In PROJETO HISTÓRIA: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). São Paulo, SP-Brasil.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. (1976). Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo, Pioneira.
62
PAULINO DE ALMEIDA, Antônio. (1961-1963). “Memória Histórica de Cananéia”.In Revista de História, vários números.
POLLAK, Michel . (1999). Memória, Esquecimento, Silêncio. In Estudos Históricos, vol. 2 , n. 3. Rio de Janeiro. Ed. Revista dos Tribunais.
QUEIROZ, Maria Isaura P. (1973). Bairros Rurais Paulistas – dinâmica das relações bairro rural-cidade. São Paulo, Duas Cidades.
RAMOS, Artur. (1953). O Negro na Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Casa do Estudante Brasileiro.
RATH, Carlos. (1855-1857). Descripão da região da Ribeira do Iguape. São Paulo, mimeo.
SILVA, Valdélio Santos. (2000). “Rio Rãs à Luz da Noção de Quilombo”. In Revista Afro-Ásia, nº 23. Bahia.UFB.
SCHMITT, CARVALHO, TURATTI. (2002). “Atualização do Conceito de Quilombo: identidade e território nas definições teóricas”. In Revista Ambiente e Sociedade, nº10 1º semestre de 2002. Campinas. Oficinas Gráficas da Universidade Estadual de Campinas.
STUCCHI, Deborah (cood.). (1998). Laudo Antropológico - Comunidades Negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões - Vale do Ribeira de Iguape – SP. In Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e conquista do território. Cadernos do ITESP nº 3, São Paulo, Pagina &Letras – Editora Gráfica.
WOORTMANN, Klaas. (1990). “Com Parente Não se Neguceia”. “O Campesinato como ordem Moral”. In Anuário Antropológico, 87.
WOORTMANN, Ellen F.(1983) “O Sítio Camponês”. In OLIVEIRA, Roberto C. (org.) Anuário Antropológico/81. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro.
63
7. ANEXO
64
I. Memorial Descritivo e Planta da Área para
Reconhecimento
65
II. Croqui de Uso e Ocupação do Solo da Área da Comunidade de Porto Velho
66
III. Genealogia da Comunidade de Porto Velho
67
IV. Mapa Histórico da Comunidade de Porto Velho (1800 a 1908)
68
V. Carta de Benedito Barbosa de Andrade
69
VI. Registros do Livro de terras de Iporanga (1855)
70
VII. Pesquisa Cartorial
Recommended