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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE PORTO VELHO/IPORANGA-SP Julho/2003

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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICOSOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE

PORTO VELHO/IPORANGA-SP

Julho/2003

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 03

2. QUILOMBO: a ressemantização do termo 05

3. VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE 133.1 Histórico do Vale do Ribeira 143.2 Iporanga: características do município e a história da ocupação 17

4. A HISTÓRIA DE PORTO VELHO 234.1. Histórico da ocupação do território 264.2. A história de um conflito 364.3. Caracterização da comunidade de Porto Velho 434.4. Memória e identidade 51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 57

6. BIBLIOGRAFIA 59

7. ANEXO 63I. Memorial Descritivo e Planta da área para reconhecimento 64

II. Croqui de uso e ocupação do solo da área da comunidade de Porto Velho 65III. Genealogia da Comunidade de Porto Velho 66IV. Mapa histórico da Comunidade de Porto Velho(1800 -1908) 67V. Carta de Benedito Barbosa de Andrade 68

VI. Registros do Livro de Terras de Iporanga(1855) 69VII. Pesquisa Cartorial 70

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1. INTRODUÇÃO

Este Relatório Técnico-Científico1 é resultado de um trabalho de pesquisa

antropológica que objetivou verificar se o grupo populacional denominado

Comunidade de Porto Velho, situado no município de Iporanga, Estado de São

Paulo, constitui-se como remanescente de comunidade de quilombo a fim de

adjudicar-lhe o direito previsto no artigo nº. 68 do Ato das Disposições Transitórias

da Constituição Federal de 1988, sob o enunciado: “Aos remanescentes das

comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. Esta verificação segue os

requisitos e critérios estabelecidos pelo Grupo de Trabalho e pelo Grupo Gestor,

em obediência ao referido artigo 68, bem como aos artigos 215 e 216 da

Constituição Federal e, ainda à legislação estadual: lei número 9757/97 e os

decretos 41.774/97 e 42.839/98.

A Comunidade de Porto Velho ocupa as terras que reivindica pelo menos

desde 1860. Essas terras foram ocupadas por ex-escravos das fazendas de

mineração da família Roza2 que passaram a ocupar as terras abandonadas, doadas

1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. O Grupo foi composto por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de ação conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos visando sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor forma criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997.2 Uma família de escravocratas de grande destaque na região de Apiaí e Iporanga durante os séculos XVIII e XIX.

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ou como agregados dentro das fazendas escravistas onde organizaram um modo

de vida camponês.

O pedido para ser realizado o reconhecimento desse grupo como

remanescente de comunidade de quilombo chegou até nós pela Igreja Católica e o

MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens). Esse grupo encontra-se em

uma situação difícil sendo impedidos de plantarem pelo fazendeiro Benedito

Barbosa de Andrade.

O presente relatório buscou analisar dados obtidos tanto da pesquisa direta

com a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa

documental, a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitaram a

reconstrução da história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua

identidade grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade

calcadas no parentesco e nas relações de trabalho e simbólicas que o grupo

mantém com a área que ocupa. Assim a reconstrução interpretativa do modo de

vida da comunidade possibilitou nos compreender como eles constroem

coletivamente sua vida sobre uma base geográfica, física e social formadora de

uma territorialidade negra. “Dentro dela elaboram-se formar específicas de ser e existir

enquanto camponês e negro” (GUSMÃO,1992:117).

Foi de grande importância para a elaboração desse relatório o Laudo

Antropológico sobre as comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pilões, Maria

Rosa, Pedro Cubas, André Lopes, Nhunguara e Sapatu, realizado em 1998 pela

equipe de antropólogos do Ministério Público Federal – Adolfo Neves de Oliveira

Júnior, Deborah Stucchi, Miriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro,

publicado no caderno número 3 da Fundação ITESP. Lembramos que todos os

trechos extraídos do referido laudo para transcrição ou apenas como base de

dados mais genérica na leitura deste trabalho apresentam-se seguidos da

abreviatura LA-MPF, bem como da respectiva referência de página.

Colaboraram na elaboração deste relatório Rose Leine Bertaco Giacomini e

Helena Maria Cesar Gonçalez.

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2. QUILOMBO: o processo de ressemantização do termo

A Constituição Federal de 1988 instituiu no seu Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias no Art. 68:

“Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado, emitir-lhes os respectivos títulos.”

O ato de nomeação oficial de um determinado seguimento social como

quilombo desencadeou um processo de criação de um novo sujeito político. Esse

processo tem início depois da tomada de conhecimento por parte destes grupos

negros dos novos direitos adquiridos pelo Art. 68, passando a cobrar do Estado

que a lei constitucional seja cumprida. Esse é o caso do Estado de São Paulo onde

comunidades negras rurais se organizam para garantir seu direito a propriedade

das terras que ocupam e reivindicam, lutando contra a especulação imobiliária e a

pressão dos fazendeiros ou contra o remanejamento de suas comunidades em

função de grandes empreendimentos, como as polêmicas barragens do Rio Ribeira

do Iguape, no Vale do Ribeira em São Paulo, assim, essas comunidades se

assumem como remanescentes de quilombos e exigem o respeito que lhes é

devido.

Em 1995, Ivaporunduva da entrada em um processo junto ao Ministério

Público Federal para que fosse cumprindo o Art. 68 da Constituição Federal. O

governo paulista sensível à questão e buscando atender as solicitações da

sociedade civil cria um Grupo de Trabalho com o objetivo de fazer proposições

visando à plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais, que conferem o

direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em

território paulista. Tem início um esforço por parte do governo paulista para

identificar e reconhecer e titular as terras dos remanescentes de comunidades de

quilombos do Estado. Porém os técnicos responsáveis pelo estudo para o

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reconhecimento desses grupos como remanescentes de comunidades de quilombo

se deparam com uma gama variada de situações de ocupação de terras que difere

do imaginário que circula em nossa sociedade associado à palavra quilombo. Até

mesmo o movimento negro dos grandes centros na sua representação associa

quilombo a isolamento, fuga-resistência, Zumbi e Quilombo dos Palmares. Porém

quando percorremos essas comunidades negras rurais nos deparamos com uma

outra realidade a de que elas são o “produto de conflitos fundiários bastante localizados

e datados, ligados à decadência das plantations das regiões de colonização

antiga”.(Arruti.2003:25)

Ao logo do tempo foram vários os sentidos atribuídos ao quilombo não só

por parte do movimento negro como também da legislação colonial e da academia.

A seguir apresento um texto elaborado por técnicos da Fundação Itesp que

procuram discutir o “conceito de quilombo”.

*"Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino

valeu-se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos,

que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos

levantados e nem se achem pilões nele”. Essa caracterização descritiva perpetuou-

se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma geração de

estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como Artur Ramos

(1953), Edson Carneiro (1957) e Clóvis Moura (1959). O traço marcadamente

comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo histórico passado,

cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil, além

de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão da negação do sistema

escravista, aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da população

negra.

* Este texto foi elaborado por Alessandra Schmitt, Maria Celina Pereira de Carvalho, Maria Cecília Manzoli Turatti que gentilmente autorizaram sua utilização neste relatório. Sendo que uma versão revista e atualizada foi publicada sobre o titulo: Atualização do Conceito de Quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Revista Ambiente e Sociedade, ano V, nº 10. 1º semestre de 2002. São Paulo.

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Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não abarca,

porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade escravocrata e nem as

diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. Flávio dos

Santos Gomes (1995:36), explicita tal diversidade ao forjar o conceito de “campo

negro”: “uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados que

envolveu , em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e

práticas econômicas com interesses diversos” .

No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e

pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da

população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como

um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a

denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de

19883.

Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia, na

verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,

propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira

(GUSMÃO:1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política

governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias negras

após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os estudos

de CARDOSO (1987).

Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho

Ultramarino, ALMEIDA (1999:14-15) mostra que aquela definição constitui-se

basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;

3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma

“natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no

termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na

imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação etnográfica

“se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de

quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que

3 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).

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não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador

efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida

numa reapropriação do mito do” bom senhor “, tal como se detecta hoje em

algumas situações de aforamento” .

O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da

definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem

metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,

representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam ocorrer

– e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos econômicos,

fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes a respeito de

comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à escravidão têm

demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de representar um

aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do Império e da

República.

Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de

atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso

ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o acesso

dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a exclusão do

segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi

peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo

ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio

substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros

cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito

legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”4,

que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os

grupos camponeses negros.

Como já foi assinalado por outros autores·, os grupos que hoje são

considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir

de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de

terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento

4 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).

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de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, simples permanência

nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem

como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto

após a sua extinção.

Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias

destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos

identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou

“território negro”, tal como é utilizada por vários autores5, que enfatizam a sua

condição de coletividades camponesas, definida pelo compartilhamento de um

território e de uma identidade.

A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do Artigo

68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico6 que levaram à revisão dos

conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão, instaurando

a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo, de modo que

a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação de suas terras,

pudesse ser contemplada por esta categoria, uma vez demonstrada, por meio de

estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por eles

compartilhada, bem como a antigüidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas

“práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida

característicos num determinado lugar” 7.

Desta forma, o conceito de quilombo que norteia o trabalho desenvolvido

pela Fundação ITESP é aquele que foi produzido pela Associação Brasileira de

Antropologia (ABA) e ratificado pelo Grupo de Trabalho (vide nota de rodapé 1):

“toda a comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da

cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o

passado”.

5 Ver Almeida (1997/1998), Gusmão (1996.), Andrade, (1988) e Azevedo Marin (1995).6 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).7 Cfe. João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer. ABA, 1994.

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Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui

disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma

ampla e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em

questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e

contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material

que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um

lugar específico”8. Ainda segundo a Associação Brasileira de Antropologia “o

termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal

ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma

população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram

constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo,

consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e

reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar ”9 .

Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de

expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação

aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam. Estes dois conceitos

são fundamentais e estão sempre inter-relacionados no caso das comunidades

negras rurais, pois “a presença e o interesse de brancos e negros sobre um mesmo

espaço físico e social revela, no dizer de Bandeira, aspectos encobertos das

relações raciais” (GUSMÃO,1996:14). Estes aspectos encobertos aos quais a

autora se refere são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à

sociedade inclusiva, a qual forma um dia o escravo.

A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em situações

de oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, OLIVEIRA (1976) elaborou

a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que têm como centro

interpretativo à identidade étnica de um grupo social. As situações de oposição

levam os grupos a elaborar os seus critérios de pertencimento e de exclusão.

Quando o confronto se estabelece entre um grupo minoritário e os brancos,

temos uma situação de submissão e dominação, de hierarquia de status, a qual o

autor denominou “fricção interétnica”. São justamente estas relações interétnicas 8 Garcia, José Milton, publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).9 Documento da ABA, 1994.

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que se estabelece no convívio/confronto das comunidades negras com a sociedade

abrangente.

Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que

justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos

identificar como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um

sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do

outro’ racial como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre

nós” (BORGES PEREIRA, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade

brasileira foi estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto Freyre

é um grande expoente, na década de 30, e que só começou a ser contestado na

década de 50 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.

Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas

particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às

pressões sofridas, e é neste contexto social que constroem sua relação com a terra,

tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à resistência

cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia

cultural, social e, conseqüentemente, a auto-estima. Siglia Zambrotti DÓRIA (1985)

salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa

correlação profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e

informa o seu direito a terra.

A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito

constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se em

suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade envolvente, em

geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial é tratar a terra

apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60) explicita as

características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo capital, em que

esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de trabalho”. Em

conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os camponeses

foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio do aparato

judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o direito de

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obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais antigas do que o

tempo mínimo requerido pela legislação para a sua transformação em propriedades.

Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham

resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da

sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a

sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em

seus territórios ou, ao menos, em parte deles10 ”.

É importante ressaltar que o debate em torno da questão quilombola em São Paulo e no Brasil está apenas começando. Estamos presenciando a produção de uma nova realidade criada pela captura da lei pelo movimento social. Sendo assim, se faz necessário um diálogo entre Estado, juristas, acadêmicos e quilombolas para que possamos construir e aprimorar um instrumental necessário para tratar dessa temática.

10 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantêm uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombola; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.

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3. O VALE DO RIBEIRA DE IGUAPE

O Vale do Ribeira abrange parte da Bacia do rio Ribeira de Iguape, que

nasce no Estado do Paraná e deságua no Oceano Atlântico, estando o trecho mais

longo do seu curso dentro do Estado de São Paulo. Ocupa parte da Serra de

Paranapiacaba, Serraria do Ribeira área de Morraria Costeira e parte da Baixada

Litorânea (Secretaria do Meio Ambiente, 1996:15).

A região apresenta um dos mais baixos índices de desenvolvimento do

Estado de São Paulo, sendo a menos urbanizada, com uma população de 323.174

habitantes, tem uma das menores taxas de crescimento populacional do Estado.

Segundo HOGAN, CARMO, ALVES E RODRIGUES (2001) “razões históricas,

dificuldades de acesso e condições naturais adversas às atividades econômicas garantiram

até hoje um relativo isolamento do Vale e a preservação dos recursos naturais” (pg. 02). A

maior parte da sua população vive em áreas rurais desenvolvendo atividades

agrícolas de subsistência e extrativistas, como a agricultura (banana e chá),

mineração e o extrativismo vegetal (palmito).

Grande parte da região constitui-se de unidades de conservação, entre as

quais se incluem áreas de proteção ambiental (APAS), estações ecológicas e

parques estaduais que restringem o uso econômico a atividades limitadas. Isso

acaba gerando uma série de conflitos entre as populações que vivem da agricultura

e da extração de produtos da floresta, com as agências governamentais ambientais.

Um outro foco de conflito é a relação entre:

“ONGs e agências governamentais ambientais, de um lado, e esforços desenvolvimentistas locais, de outro, continuam a dificultar tanto a criação de emprego na região, quanto à regulamentação da conservação das áreas protegidas. A situação reproduz, no Estado de São Paulo, o típico confronto Norte-Sul em torno da questão do desenvolvimento sustentável” (HOGAN,CARMO, ALVES E RODRIGUES, 2001:03).

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Outro foco de embates na região é a construção de barragens. “Seja como

hidrelétrica destinada a fornecer energia, seja como reservatório para o abastecimento de

água para a RMSP, ou seja como obras de controle de enchentes, as barragens provocam

polêmica entre as populações locais e os ambientalistas” (HOGAN, CARMO, ALVES E

RODRIGUES,2001:03). As comunidades tradicionais da região, como

Remanescentes de Quilombo, que organizaram toda sua cultura entrelaçada ao

meio ambiente e o espaço geográfico que ocuparam ao longo de séculos se vêem

ameaçados por essas barragens, tendo em alguns casos 97% do seu território

atingido (Campanili:2001). Essa população tem se organizado em movimentos

como MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens) e MAB11 (Movimento

dos Atingidos por Barragens) que os levou a lutar pela regularização de suas terras

e acionar o governo para que cumprisse o Art. 68 da Constituição Federal.

3.1 Histórico do Vale do Ribeira

As primeiras referências da ocupação humana no Vale remontam do

período pré-colombiano, sendo essas populações compostas por ameríndios. “A

Região do Vale do Ribeira, apesar de ser atualmente a menos povoada do Estado, foi uma

das primeiras do Brasil a ser ocupada” (BRAGA, 1999:43). Os espanhóis antes dos

portugueses estiveram na região e fundaram Cananéia. O início da ocupação

portuguesa no Vale do Ribeira data de 1531, com a expedição de Martins Afonso

de Souza que teve como objetivo ocupar o território defendendo-o das invasões

estrangeiras e buscar ouro e prata.

A região atrai várias pessoas do Velho Mundo com os objetivos mais

diversos. Inicialmente são desenvolvidas lavouras de subsistência e a pesca. Nos

primeiros tempos os portugueses estabelecerem relações de troca com as

comunidades indígenas na região sul e sudeste da capitania. A falta de mão-de-

11 Apesar deles não terem sido atingidos, até o momento por barragens, eles participam desse movimento pois podem vir a ser atingidos.

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obra fez com que os índios fossem usados como mão-de-obra escrava. Muitos

índios fugiram para as regiões de difícil acesso como ao longo do rio Pardo por ser

protegido por serras, cachoeiras, subidas penosas e demoradas. A presença

indígena se tornou referência para as comunidades do Vale, principalmente, as

populações negras que se apropriaram dos conhecimentos indígenas sobre relevo,

técnicas de pesca e agricultura itinerante.

Na primeira fase de ocupação o povoamento ficou restrito ao litoral tendo

maior destaque para os povoamentos de Cananéia e Iguape. De Cananéia partem

as primeiras expedições em busca de ouro e prata, porém era Iguape que detinha o

domínio da navegação do Ribeira devido à facilidade de comunicação com o

interior. Tornando-se centro de concentração de moradores e distribuição de

riquezas.

Na primeira metade do século XVII, foram encontradas minas de ouro em

Iguape, zona do médio Ribeira.

“Durante o `ciclo do ouro`, o povoamento, que anteriormente limitava-se ao litoral, avançou para o interior, subindo o curso do Ribeira, onde foram formados os primeiros núcleos coloniais da retroterra, dos quais o mais importante foi o de Xiririca (atual Eldorado). Muito embora a mineração tenha trazido alguma riqueza para a região, seus efeitos desenvolvimentistas restringiram-se a Iguape. Os núcleos do interior pouco se desenvolveu e mesmo Xiririca, na principal zona garimpeira, só foi elevado à categoria de município no século seguinte, já na fase decadente da mineração” ( Braga, 1999:45).

Nesse período por conta da mineração, entra a mão-de-obra negra em São

Paulo a maior concentração de escravos era em Iguape, porém eles foram levados

a outras localidades situadas Ribeira acima. Segundo Carril (1995), os negros

vinham de algumas regiões da África como Angola, Moçambiqui e Guiné, sendo

considerados, uma mercadoria lucrativa. Sua maior concentração foi em Iguape

porém eles foram levados para outras localidades como Iporanga, Apiaí e

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Ivaporunduva, onde havia grande concentração de minas auríferas. Isso levou a

um fluxo de pessoas para essa localidade tendo como conseqüência o surgimento

de vários arraiais, como Ivaporunduva, Iporanga, Apiaí, Paranapanema e Xiririca.

A exploração de ouro entrou em decadência com a descoberta de novas

áreas de mineração em Minas Gerais. Porém a atividade mineradora perdurou até

as primeiras décadas do século XIX.

No final do século XVII, se registra uma expansão da agricultura, tendo

como principais produtos: arroz, madeira e cana. No século seguinte até meados

do século XIX, a agricultura comercial, especialmente o arroz, apresentou uma

expansão significativa tendo como base a mão-de-obra escrava e voltada para o

mercado europeu e latino americano. Esse período foi o de maior prosperidade

para o Vale.

“em 1836 a região concentrava 100 dos 109 engenhos de beneficiamento de arroz instalados na província e em 1852 já eram 107 os engenhos instalados na região. Outra medida do crescimento econômico da região era a quantidade de escravos que, em 1836, representavam 28,9% da população total, um índice superior à média da Província, que era de 26,6% de população escrava” ( MULLER, 1980:36).

Porém, o crescimento econômico trazido pela rizicultura ficou limitado a

região de Iguape e Cananéia com exceção de Iporanga onde se plantou algum

arroz. O restante do Vale mergulhou em um período de estagnação econômica,

que durou até a década de 30.

Na segunda metade do século XIX a rizicultura escravista entrou num

processo de crise devido: encarecimento da mão-de-obra escrava12; procura de

brancos para o café; abertura do mercado para o arroz de outras regiões do país

(Minas Gerais e Rio de Janeiro). A baixada ficou a margem da rede ferroviária

implantada no Brasil e bem como a imigração estrangeira que se voltou para o

abastecimento da cafeicultura.

12" Em 1850, com a proibição do tráfico de escravos ocorre a transferência de escravos dentro da própria província das regiões menos dinâmicas para as mais dinâmicas economicamente” (LA-MPF,1998:65).

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A população refluiu para a economia de subsistência a “caipirização” da

vida regional (MULLER,1980). Para BRANDÃO (1998):

“Os habitantes do Vale, tanto nativos como imigrantes, marginalizando-se, passando a viver nas fímbrias mercantis do grande tecido econômico-social nucleado no capital-café. Criaram uma sociabilidade de sobreviventes que respirou através de um sistema de trocas que mais se parecia ao escambo. A esta pobreza organizada, produto residual da cafeicultura, designamos vida caipira” (pg.04).

3.2. IPORANGA* : características do município e a história da

ocupação

O Município de Iporanga localiza-se no alto Ribeira, tendo como

limítrofes os municípios de Apiaí, Guapiara, Capão Bonito, Eldorado Paulista,

Barra do Turvo e o Estado do Paraná.

* Vocábulo da língua Tupi ou Nheenhatu. Iporanga: água ou rio bonito.

Vista da cidade de Iporanga/SP

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A base do releve é o calcário na parte alta e os filitos e xistos na parte baixa.

As falhas geológicas contribuem para esculpir o relevo, pois além de originar

depressões topográficas condicionaram vales de muitos rios. O relevo é acidentado

onde predominam colinas e morrotes que dificilmente ultrapassam os 120 metros

de altura13. O município possuí uma área territorial de 1160 km com uma

população de 4.564 habitantes (CENSO 2000). A agricultura é a principal atividade

econômica do município, se destacando a produção de banana e em menor escala

de feijão, arroz e milho.

O solo de Iporanga é rico em ouro, prata, chumbo, estanho, ferro, pedra

de chisto, a calcárea, a pederneira, o cristal de rocha, o calcáreo branco, o

tasguatingua, o barro de olaria, etc. Sendo que o chumbo já vem sendo explorado

desde 1880. Sua mineração ilegal as margens do rio Ribeira de Iguape trouxe

problemas de contaminação para a população ribeirinha que se alimenta dos

peixes e se banham nos rios, atualmente as crianças são as mais atingidas14.

A região possui uma das maiores concentrações de cavernas do Brasil e um

dos principais remanescentes florestais de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.

Esses fatos levaram a implantação de diversas unidades de conservação no

município como: área piloto da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica15, as Áreas

de Proteção Ambiental APA da Serra do Mar (1984), Parque Estadual de

Jacupiranga (1969), Parques estaduais Turísticos do Alto Ribeira – PETAR (1958). O

PETAR somente foi implantado, em 1983, levando a um crescimento do turismo

espeleológico e recentemente o de esportes radicais. Porém apenas o bairro da

Serra em Iporanga e o município de Apiaí foram efetivamente beneficiados.

Como a principal atividade econômica do município é a agricultura e o

extrativismo o tombamento provocou um descontentamento de boa parte da

13 Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Atlas das unidades de conservação do Estado de São Paulo, 15.14 Um dos argumentos contra as barragens é justamente o risco de com a inundação das margens esses pontos de mineração podem ser um foco de disseminação do chumbo pela região.15 Foi recentemente reconhecido pela UNESCO.

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população. E jogou para a ilegalidade a principal forma de sobrevivência da maior

parte dos moradores dos bairros rurais (Figueiredo, 2000).

Iporanga é um dos municípios que tem a maior quantidade de

Comunidades de Quilombos identificas entre elas a comunidade de Quilombo de

Porto Velho. A história desta comunidade e do próprio município de Iporanga está

ligada ao ciclo do ouro paulista.

Durante o século XVI, circulavam histórias em Iguape e Cananéia sobre a

existência de ouro na região de Eldorado e Iporanga que “que jorrava livremente e

abundante no leito de seus rios” da região. Essas histórias seduzem os aventureiros

que fazem uma expedição para encontrar o “Eldorado”. Em 1576, um grupo de

pessoas chefiadas por Garcia Rodrigues Paes, sobrinho do bandeirante Fernão Dias

Paes, Nuno Mendes Torres, Antonio Lino de Alvarenga e José de Moura Rolim

sobem o rio Ribeira de Iguape em busca de ouro. Eles chegam no dia 12 de junho,

véspera de Santo Antonio, a uma várzea localizada a oito quilômetros da foz do

Ribeirão de Iporanga. Resolvem se fixar neste local iniciando os preparativos para

a criação de um garimpo, assim, nascia o “Garimpo de Santo Antonio”. O garimpo

cresceu com a chegada de novos faiscadores que formaram um arraial que crescia

e prosperava. Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o

dinheiro vindo dos garimpeiros da região. O trabalho nos garimpos era realizado

pelos escravos que escavavam o leito dos rios a procura de ouro, chegando a

alterar o seu curso como na foto abaixo do Ribeirão de Iporanga.

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O trabalho dos escravos nos garimpos deixou marcas que podem ser

percebidas por nós hoje. Como a formação de amontoados de pedras deixados às

margens do Ribeirão de Iporanga. Muitos escravos garimpavam clandestinamente

e “escondiam o produto de seu trabalho em garrafas e gomos de bambu, visando

possivelmente a compra de sua liberdade junto a seus senhores.” (FIGUEIREDO,2001:02)

Nos livros de casamento e batismo da Igreja de Iporanga e no cartório da cidade

existem vários registros de escravos “libertos”16 e cartas de alforria que

provavelmente foram compradas dessa forma.

A partir de 1730, devido às dificuldades para se atingir o rio Ribeira pelo

ribeirão de Iporanga surgi um novo núcleo de habitações próximo ao rio Ribeira.

Esse novo povoado crescia em habitações e casas de comércio com o dinheiro

vindo da região.

“Em meados de 1776, inicio-se o arruamento mais planejado do povoado que surgia naturalmente. Algumas famílias que não vieram com o intuito de explorar o ouro e sim para cultivar de terra, deslocaram-se tanto rio abaixo, como rio acima, onde se estabeleceram plantando arroz, milho, mandioca e principalmente cana de açúcar, proporcionado com isso, o surgimento de futuras pequenas indústrias de rapadura aguardente e farinhas, que seriam vendidas nos povoados vizinhos, ao mesmo tempo, construíam-se

16 Termo que aparece nos livros de registro de batismo e casamento da Igreja de Iporanga depois do nome de ex-escravos.

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grandes sobrados e ricas vivendas emprestando ao povoado um aspecto senhorial.”

Com o declínio do ciclo do ouro e as dificuldades de acesso ao antigo arraial

dão início a um movimento para a construção de uma nova capela no novo

arraial, sendo liderado pelo Padre Bernardo de Moura Prado e o Capitão José de

Moura Rolim. O padre Bernardo consegue que Dona Escolástica Maria Carneiro

doe um terreno para a construção da Capela e a população faz um mutirão

plantando arroz para levantar o dinheiro necessário. Assim se iniciam as obras de

construção da Capela que terminam em 1821.

Iporanga crescia com o surgimento de novas indústrias de aguardente,

rapadura e beneficiamento de cereais intensificando seu intercâmbio comercial

com as povoações vizinhas. Seu porto se tornou:

Igreja Matriz de Nossa Senhora de Sant´Anna de Iporanga

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“uma importante via de acesso, único porto fluvial de onde se poderia partir em demanda, ao litoral, permitindo o intercâmbio comercial das regiões vizinhas com o Planalto, através do transporte de tropa até Iporanga e daí por intermédio de frotas de embarcações (canoas) que desciam e subiam o Ribeira, transportando as mercadorias transacionadas. Fazendo intercâmbio comercial entre cidades importantes como Itapeva (antiga Faxina), Itararé, Ibiúna, Itapetininga, Sorocaba e outras, através de tropas de muares.”(FIGUEIREDO,2001:2).

O trânsito das tropas pela região sul do município teve um importante

papel para a economia local, pois com a decadência da exploração das minas de

ouro, por volta de 1815, os donos de terras na região voltaram sua produção para a

agricultura e criação de animais que podiam ser comercializados com os

tropeiros17 que subiam e desciam o Ribeiria de Iguape. Em outros casos os

proprietários de terras na região simplesmente abandonavam suas terra, vendiam

ou deixam verbalmente para seus escravos.

Em 1830, o povoado foi elevado a categoria de Freguesia de Sant’ Anna de

Iporanga. Sendo, em 1873, elevado a Vila, com o nome de “Villa de Sant’Anna de

Iporanga”. No mesmo ano passou a Cidade de Iporanga.

A libertação dos escravos, em 1888, levou a diminuição da mão de obra na

região de Iporanga, pois boa parte da população local era composta por escravos.

“Os escravos, livres do julgo de seus senhores, internavam-se pelo sertão adentro

estabelecendo-se por sua própria conta e iniciando-se no ramo da agricultura

doméstica”(FIGUEIREDO,2001:02). Eles procuraram se instalar em locais já

ocupados por populações negras que fugiram durante a escravidão, ou compraram

sua liberdade ou receberam doações de terras. Essas diversas situações deram

origem à formação de diversos povoados, entre eles, Nhunguara, Bombas, São

Pedro, Poço Grande, Praia Grande e Porto Velho.

17 Tropeiros eram condutores de tropas que compravam e vendiam mercadorias (gado, mulas, cavalos e outros). Figura muito comum do Brasil do séc. XVIII.

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4. PORTO VELHO

O território ocupado historicamente pela comunidade de Porto Velho está

situado à Sudoeste da cidade Iporanga fazendo divisa ao Sul com o rio Ribeira de

Iguape e o estado do Paraná. A Oeste com o município de Itaóca e ao Norte com a

serra de Anta Gorda. E a Leste com a Barra do Rio Parto. Esse território está

dividido em localidades onde existiram núcleos de moradias. Essas localidades são

(ver mapa anexo):

- Anta Gorda

- Dourada

- Mamona

- Córrego do Mono

- Rio da Cláudia

- Porto Velho

Essas nomeações são muito antigas aparecendo no livro de registros de

terras de 1855 e continuam sendo usadas até os dias de hoje. O nome Porto Velho

se deve ao fato do local, durante o século XVIII e XIX, ser utilizado para o

transporte de mercadorias e escravos por meio de canoas pelo rio Ribeira. Como as

canoas não podiam prosseguir viagem devido às cachoeiras existentes no rio

aportavam em Porto Velho e seguiam o caminho a pé ou no lombo de cavalos e

burros para as regiões de Apiaí e Sorocaba.

Os depoimentos recolhidos em Porto Velho, mapas antigos, registro de

terras e da paróquia de Iporanga nos possibilitaram reconstruir a trajetória desse

quilombo, evidenciando que o território em questão vem sendo ocupado por esta

comunidade, aproximadamente, desde 1860. Os membros desse grupo são

descendentes dos escravos de D. Martinha Dias Batista que possuía uma fazenda

de escravos em Porto Velho (ver mapa anexo). Segundo o Registro de Terras de

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1850(ver anexo), tinha um imóvel denominado Porto que abrangia as duas

margens1 do rio Ribeira de Iguape.

Dª. Martinha era sobrinha de Dª. Ana de Oliveira Roza que com a morte da

tia herdou parte dos seus escravos. Dª. Ana e seus irmãos herdaram suas terras e

escravos de seu pai Manoel da Roza Luiz que, em 1765, era chefe de uma das

famílias mais ricas da região de Apiaí. Com a sua morte, provavelmente, em 1783,

suas terras e seus escravos são divididos entre seus filhos e filhas muitas já

casadas. Esses casamentos davam-se com escravistas de Iporanga como estratégia

para aumentar o patrimônio da família, principalmente, o plantel de escravos

(Motta &Valentim, 2000) que somavam essa herança ao patrimônio do marido.

Com isso as famílias de escravos foram divididas entre os herdeiros de Manoel

Roza Luiz. Cada grupo de escravos, que eram parentes, tiveram que se deslocar

para as terras de seus novos donos. Poderíamos presumir que isso tivesse levado a

um desmembramento ou esfacelamento das famílias de escravos. Porém, a

historiografia tem revisto à idéia de que o cativeiro e a família escrava são

realidades incompatíveis. Principalmente, a partir de 1970, com a utilização de

novos tipos de fontes fez surgir dos arquivos:

“um cotidiano pautado por regras que restituíram aos cativos um tanto da humanidade que sequer seus senhores ousaram expropriar: a capacidade de criar e viver sobre normas intrínsecas ao humano. Sabe-se hoje, pois, que a escravidão e o parentesco não são experiências excludentes; o cativeiro não abortou a família escrava”(Florentio & Góes, 1995:07).

Um estudo realizado por José Flávio da Motta e Agnaldo Valentim (2002),

sobre “A família escrava e a partilha de bens: um estudo de caso”2, vêm reforçar esse

1 Cabe ressaltar que pela pesquisa que realizamos, em mapas antigos, essa área pertencia a província de São Paulo. Os antigos moradores da região contam que São Paulo perdeu essas terras na Revolução Constitucionalista de 1932. Pelas informações que temos o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - por volta de 1955, realizou uma nova divisão das fronteiras usando limites físicos( rios e serras) para dividir as terras de cada estado. No caso de São Paulo o rio Ribeira de Iguape divide São Paulo do estado do Paraná. Assim parte das terras do imóvel denomidando Porto hoje se encontram no estado do Paraná.

2 Trabalho apresentado no XII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

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hipótese. Os autores vão analisar as relações familiares estabelecidas entre os

membros do plantel de escravos de Apiaí de Dona Anna de Oliveira Roza. Eles vão

utilizar como fontes documentais para esse estudo as listas nominativas dos

habitantes da localidade paulista de Apiaí, o inventário de Dona Anna de Oliveira

Roza e seu testamento, bem como, os inventários de seus irmãos, Escolástica, José e

Antonio de Oliveira Roza, além dos registros de casamento de escravos entre 1780

e 1818. Esses autores acompanham essa escravaria de 1780 a 1819, quando do

inventário de Dona Anna onde seus escravos são divididos entre seus parentes. Os

resultados desse estudo apresentados em um artigo apontam para o fato desse

esfacelamento ou desmembramento serem apenas “ideais” pois existiam vários

ajustes tanto por parte dos herdeiros dos escravos como dos próprios cativos que

corroboravam para a estabilidade das famílias de escravos.

“Muitos dos escravos separados na partilha dos bens de D. Anna poderiam tornar a conviver num mesmo plantel com seus familiares por ocasião da morte dos herdeiros. Ademais, ressalte-se que a grande maioria dos herdeiros permaneceu na localidade, mantendo a proximidade física entre os distintos plantéis”(Motta &Valentim,2002:20).

Podemos constatar essa proximidade física entre os vários plantéis da

Família Roza que tinha propriedades3 nas localidades de Córrego dos Monos,

Dourada, Anta Gorda, Porto Velho e Mamonas. Essas propriedades deram origem

a núcleos populacionais de escravos que com decadência da mineração na região

no início do séc. XIX conseguiram sua liberdade e um pedaço de terra para plantar

e morar. Isso leva nos a pensar que existia uma proximidade não apenas física, mas

ligações de parentesco que uniam esses vários núcleos populacionais. Sendo que,

as formações dos mesmos, tiveram diversas origens. Em alguns casos os

proprietários de terras simplesmente abandonavam a área e os escravos. Outros

3 No Registro de Terras de 1850 e mapas antigos da região a família figura como proprietária de diversos imóveis nessa localidade.

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doavam (verbalmente) suas terras para seus escravos. Como no caso do escravo

forro Fernandes da Rosa que recebeu uma doação de terras próxima ao Córrego

Cotia Pequena no Rio da Claudia (ver anexo). Ou ainda, esses escravos forros

ocupavam trechos de terras que não tinham dono, ou seja, que estavam

desocupadas.

No caso da comunidade de Porto Velho com a morte de Dª. Martinha, na

primeira metade do século XIX, sua terras e escravos foram divididos entre seus

herdeiros, sendo que alguns de seus escravos foram alforriados, mas optaram por

permanecer morando nessas terras. Às vezes, os donos de fazendas de escravos

cediam trechos de suas terras para seus ex-escravos morarem e plantarem viviam

como agregados para não se afastarem dos parentes que ainda permaneciam como

escravos, com a finalidade de guardar algum dinheiro para comprar a liberdade

dos demais membros da família.

Assim, esse grupo encerra uma experiência particular de luta contra o

escravismo. Com atitudes originais constituiu um espaço autônomo dentro do

regime escravista e da própria fazenda de escravos, que os possibilitou

sobreviverem física e culturalmente.

4.1. Histórico da ocupação do território de Porto Velho

O território ocupado historicamente por esse grupo localiza-se à sudeste da

cidade de Iporanga subindo o rio Ribeira de Iguape. Para melhor caracterização da

ocupação do território de Porto Velho foi elaborado um mapa histórico da região4,

referente ao final do século XIX até o começo do século XX.

A história desse grupo esta profundamente ligada aos ciclos econômicos por

que passou a região de Iporanga e Apiaí. E, principalmente, ao espaço relegado a

4 Esse mapa foi elaborado por Rose Leine Bertaco Giacomini e Helena Maria Gonçalez a partir dos depoimentos dos moradores mais antigos de Porto Velho e de um mapa da região elaborado por João Pedro Cardoso em 1908, quando chefiou uma expedição no rio Ribeira de Iguape e rio Pardo, onde figuram os nomes dos moradores que ele encontrou no seu caminho.

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eles como negros pobres na economia regional. Sendo assim, durante nosso estudo

percebemos que houve um deslocamento desse grupo dentro desse território em

busca de trabalho e moradia. Nessa região, em meados do século XIX, com o

declínio da mineração os escravistas passam a privilegiar o cultivo e

processamento da cana-de-açúcar, seguindo a tendência já observada na capitania

paulista desde fins do século XVIII. Por outro lado, a maioria dos fogos

(propriedades rurais) predominantemente não escravistas, viviam a custa da

agricultura de subsistência (auto consumo ou troca), sendo significativa a parcela

daqueles que não possuíam nada, cerca de 15% a 20% das unidades domiciliares5.

Essa era a situação dos vários núcleos populacionais de ex-escravos existentes na

região6. Dentre os quais três em especial nos interessam: o Córrego dos Monos,

Dourada e Porto Velho (ver mapa histórico). Segundo os moradores de Porto

Velho, os seus antepassados, bem como, eles próprios, nasceram e moraram nesses

lugares. O estudo indica que nas localidades; Córrego dos Monos e Dourada

vivam ex-escravos nas terras doadas ou abandonadas pelos seus donos, ou como

agregados7 nas fazendas.

Analisando a Lista de Massa de População de Apiaí do início do séc. XIX

pudemos perceber que, com o declínio da mineração, muitas das fazendas passam

a ocupar-se da lavoura e os antigos donos do local desaparecem da Listas de Massa

de População.

Segundo os cronistas do séc. XVIII as localidades da Capitania de São Paulo

que estavam longe dos grandes centros urbanos encontravam-se num estado de

pobreza com uma agricultura dirigida, principalmente, para o consumo doméstico.

Com fazendeiros descapitalizados, fazendas guardadas por agregados que

lavravam a terra para seu sustento, na qual o gado era criado solto nas invernadas. 5 Dados apresentado Agnaldo Valentim em, Nem Minas nem São Paulo: economia e demografia nalocalidade paulista de Apiaí (1732 – 1835), FFLCH/USP, dissertação de mestrado, 2001.6 Localidade de Córrego dos Monos, Dourada, Anta Gorda, Porto Velho, Mamonas e Rio da Claudia (ver mapa histórico).7 Agregados são posseiros que recebem permissão para cultivar um pedaço de terra dentro da área de uma fazenda e que, de acordo com o contrato estabelecido com o fazendeiro, comprometem parte daquilo que produzem.

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”Uma população onde pouco se distinguia visualmente o senhor de terras de seus agregados. Esse fato não espelhava uma sociedade sem grandes diferenças sociais, mas expunha uma economia onde havia uma parca circulação de moedas pois a produção, em sua maior parte, parte dirigida para consumo familiar e onde ainda sobrevivia a indústria doméstica”(Corrêa,1997:55).

Isso explica porque muitos moradores da região de Iporanga, no começo, do

século XIX, iniciaram a exploração rumo ao planalto em busca de novas fontes de

riqueza. A lei de terras de 1850, veio estimular essa exploração pois determinava a

venda das glebas devolutas que até então eram doadas. “Transformando as terras do

sertão em mercadorias e com isso instituindo um mercado onde todas as terras entrariam,

valorizando-as como um todo”(Correia,1997:64). Esse avanço rumo ao sertão não se

caracterizou apenas como um movimento de lavradores pobres, mas

fundamentalmente de grandes grileiros. Esse pode ter sido o caso do Sargento-Mor

Antonio de Oliveira Roza, filho de Manuel Roza Luiz, que figura nas Listas de

Massa de População e Registro de Terras de Apiaí como tendo a posse de uma

faiscadeira no lugar conhecido como Córrego dos Monos. Ele era proprietário de

alguns escravos, e por volta de 1815 seu nome desapareceu da Lista de Massa de

População de Apiaí. Podemos levantar duas hipóteses para o desaparecimento

deste escravista. Uma primeira possibilidade seria a sua morte seguida da

liberdade dos seus escravos e doação suas terras para os mesmos. Ele pode

também, ter deixado suas terras e escravos para um parente próximo, já que era

solteiro. Uma segunda possibilidade seria ter abandonado ou deixado suas terras e

escravos aos cuidados de seus agregados8 e seguido para ao planalto em busca de

novas riquezas. As duas hipóteses levantadas aqui ajudam nos a entender a

formação deste agrupamento de escravos no Córrego dos Monos.

8 Muitos agregados eram antigos escravos que ao conseguir a liberdade por diversas razões permaneciam vivendo junto aos seus antigos donos.

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Na pesquisa9 pudemos identificar uma das escravas do Sargento-Mor

Antônio de Oliveira Roza que era a Maria da Roza que em 1860, aparece

batizando10 seu filho Antônio de Oliveira Roza. Segundo informações dos

moradores de Porto Velho, Antônio Oliveira da Roza seria o bisavô deles.

Em Porto Velho, existia um sitio denominado Porto11, sendo essa terra de

propriedade de Dona Martinha Dias Batista. Nele viviam como agregados ex-

escravos que mesmo depois de sua morte permaneceram morando no lugar. A

morte de D. Martinha deu-se, provavelmente, na primeira metade do século XIX.

O imóvel Porto foi herdados pelo seu genro João Dias Duarte o que tudo indica

não chegou a tomar posse do lugar. Porém, os ex-escravos de Dª. Martinha,

permaneceram morando no lugar com suas famílias e parentes porque não tinham

onde ficar morando. Desse grupo, destacamos o Sr. Bazílio como figura em um

mapa antigo de 1908.

9 Pela pesquisa realizada na lista de Massa de População de Apiaí do Arquivo do Estado de São Paulo, rolo 01. 10 Pesquisa realizada nos livros de Batismo da Paróquia da Iporanga do ano de 1860. 11 No Registro de Terras de Iporanga o imóvel Porto, que pela descrição corresponde ao Bairro de Porto Velho, era de propriedade de D. Martinha Dias (ver documento anexo).

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No mapa acima o Srº Bazílio aparece como morador do lugar denominado

Porto Velho. Esse senhor era chefe de uma extensa família conhecida na região

como “bazilhada”12(ver genealogia anexa). Estes ex-escravos eram parentes dos

escravos forros do Córrego dos Monos e da Dourada formando uma teia de

parentesco que liga essas várias localidades. Como no caso dos pais do Sr. Bazílio:

sua mãe Maria Rufina nasceu em Porto Velho/Dourada13 e se casou com Antonio

de Oliveira Roza que morava no Córrego dos Monos. Após o casamento foram

morar em Porto Velho onde, no ano de 188714, nasceu Bazílio de Oliveira Rosa.

Assim os descendentes do Sr. Bazílio foram ocupando o lugar denominado de

12 Termo utilizado por membros de outras comunidades de quilombo para se referir aos descendentes deBazílio de Oliveira Rosa.13 Essas duas localidades formavam um continuo de moradores ligados por laços de parentesco.14 Data obtida nos assentamentos batismo da Paróquia de Iporanga.

PLANTA DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE E SEUS AFLUENTES (1908): Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo. Chefe João P. Cardoso. ESCALA 1:50000.

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Porto Velho. Como nos relata o Sr. Francisco Maximo Fernandes, “naquele tempo o

pessoal morava em qualquer lugar sem documentação”. Segundo Woortmann (1990), ser

dono da terra é uma categoria moral que se opõem a de proprietário. “É-se dono,

não por ter comprado a terra, mas por tê-la trabalhado” (1990:28). Talvez por esse

motivo que o Sr. Francisco insista em afirmar que o pessoal do Porto trabalhou

roçando todas as terras desse lugar. Pois “é-se dono pelo trabalho, independente de

haver ou não propriedade jurídica da terra”(1990:29).

No início do século XIX, esses escravos forros viviam da produção de

subsistência e comercializavam o excedente com as cidades de Apiaí, Sorocaba e

com povoados rio abaixo até Iguape, sendo que o meio de transporte utilizado

eram canoas e tropas. As canoas subiam o rio Ribeira de Iguape carregadas de

mercadorias comercializadas ao logo do rio com as populações ribeirinhas, até

chegar em Porto Velho, onde tinha que aportar e seguir viagem nos lombos dos

burros. Segundo Figueiredo (2001), no ano de 1822 a Vila de Sant`Anna de

Iporanga contava com 68 tropeiros cadastrados e 42 proprietários de tropas.

Segundo o Sr. Paulino, morador de Porto Velho, seus antepassados trabalhavam

como camaradas15 para o dono de uma tropa chamado Juca da Silva.

- Meu pai carregava canoa de mantimentos até Iguape e ia vendendo rio abaixo. Carregava a canoa novamente em Iguape e voltava de novo. Demorava uns vinte dias. Ele trabalhava de camarada. Morreu aqui com 84 anos. Ele era camarada de José da Silva. Meu pai e mais dois eram os escolhidos para ir até Iguape de canoa.

-Para Apiaí e Itapeva (rio acima) ia por terra no lombo do burro.

As viagens com a tropa fizeram com que os membros desses grupos

estivessem em constante deslocamento pelo seu território (ver mapa histórico).

Apesar de suas família morarem no Córrego dos Monos e na Dourada tinham que

residir parte do mês, em Porto Velho, pois era o ponto de conexão entre as canoas

que subiam o rio e as tropas que de lá partiam em direção ao Planalto. Nesse lugar

15 Nome do peão que trabalhava para o dono da tropa.

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também existia um “criame de escravos” como afirma o Sr. José Oliveira da Rosa16

morador de Porto Velho: “No casarão velho tinha um criame de cativo e meu pai

trabalhava ali”. Esse casarão estava localizado próximo ao porto onde

desembarcavam as canoas que subiam o rio(ver mapa histórico). Era muito difícil o

transporte de escravos do litoral até o planalto, sendo que, a criação de escravos

para a venda se tornou um negócio atraente, principalmente, depois da lei que

proibia tráfico de escravos17.

O tropeirismo18 teve um papel importante para a vida desse grupo, pois até

os dias de hoje utilizam os caminhos das tropas que os ligam a outras

comunidades de quilombos, como Praia Grande, Rio da Cláudia e Bombas. Além,

da criação de animais de montaria como cavalos e burros que eram utilizados para

locomoção na região. O comércio de excedentes realizado pelas tropas de muares

deve ter perdurado, pelo que tudo indica, até o início do século XX.

A característica marcante da ocupação do território histórico da

Comunidade de Porto Velho é a mobilidade constante do grupo pelo mesmo.

Como parte de uma estratégia que tinha como objetivo permanecer morando

próximo ao local onde seus pais e avós nasceram e foram enterrados. Esses

deslocamentos foram motivados, principalmente, por questões econômicas. E,

geralmente, quando algum parente casa-se, e não tem um lugar para morar outro

parente próximo que possuí terras, oferece um pedaço dessas terras para o jovem

casal morar.

Durante o século XIX e meados do XX, os homens desses dois

agrupamentos de escravos forros apesar de morarem no Córrego dos Monos e na

Dourada tinham que trabalhar fora da área onde moravam, pois com o aumento

das famílias as terras tornavam-se insuficientes para todos plantarem. Dessa 16 O Sr. José de Oliveira Rosa é o mais antigo morador de Porto Velho, sendo um dos filhos de Bazílio de Oliveira Rosa.17 A Lei Eusébio de Queirós, de 1850, extinguiu o tráfico de escravos no Brasil.18 Tropeirismo condução de animais soltos ou de mercadorias em lombos de animais arriados. Segundo o historiador Aluísio de Almeida o tropeirismo teve um papel mais amplo sendo um conjunto de fatos geográficos, históricos, sociais, econômicos e até psicológicos, relacionados com esse sistema de transporte em todo o país.

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forma, eles chegavam a ficar 20 dias fora de casa trabalhando com tropas ou como

jornaleiros19 para fazendeiros de Porto Velho, juntamente com parentes que já

residiam no lugar. Segundo Carril (1995), na Paróquia de Santo Antonio de

Apihay, em 1811, dos 864 habitantes 230 eram jornaleros. A maior parte desses

jornaleros era composta por escravos forros que encontraram nessa atividade um

meio de sobrevivência dentro da estrutura econômica escravista na qual viviam.

Segundo o Sr. Francisco Maximo Fernandes20 :

“Naquela época não tinha patrão, uma pessoa que aguentace pagar uma semana de serviço pra um e pra outro. Eles contavam que trabalhavam de jornalero um pouco pra um, um pouco pra outro e assim idam convivendo”.

Pela fala do Sr. Francisco o trabalho como jornaleiro era considerado um

trabalho livre das regras impostas pelo patrão. Segundo Woortmann (1987), o

trabalho como jornalero era uma ajuda entre vizinhos (iguais) onde você não era

obrigado a trabalhar, ‘ajuda quem quer e vai trabalhar quando quer’, sendo assim,

expressão de uma reciprocidade entre iguais. Era um ‘trabalho livre’, ou seja, não

escravo dentro de uma ordem escravocrata. Porém, existiam aqueles que

trabalhavam como agregados nas fazendas das localidades de Porto

Velho/Dourada. Esse processo se intensificou a partir de 1850 com a promulgação

da primeira Lei de Terras no Brasil que trazia a intenção de torna-las (as terras)

cativas nas mãos dos coronéis para que os negros alforriados não tivessem acesso a

elas. Dessa foram, permaneceriam livres no papel, mas cativos nas fazendas dos

coronéis como agregados.

O Sr. Bazílio e esposa, que residiam em Porto Velho, foram trabalhar na

construção da estrada que liga Iporanga à Apiaí e também na de São Paulo à

Curitiba, em 1932. Por volta de 1940, os moradores da localidade de Porto Velho

passam a trabalhar com os fazendeiros da região numa relação “confusa”, ora 19 Os jornaleros eram diaristas, pessoas que ganhavam o salário por jornada de trabalho.20 Parente dos moradores de Porto Velho.

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como diaristas ou mensalistas, ora como agregados. Essa confusão deu-se,

principalmente, pelo fato dessas pessoas não conhecerem seus direitos trabalhistas

como também os da terra. Assim, acabavam se sujeitando as propostas dos

fazendeiros num esforço do grupo para se manter no local onde seus antepassados

nasceram e foram enterrados (ver mapa anexo). No território reivindicado pela

comunidade de Porto Velho existe um cemitério muito antigo onde membros do

grupo foram sepultados até 1986. O cemitério é muito simples: uma clareira aberta

na mata onde as pessoas eram enterras em covas rasas cobertas de terra e

amontoados de pedras. Também existem pés-de-rosa e uma cruz de ferro feita

pelos membros da comunidade e Porto Velho. Estudos feitos pelo Instituto

Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1908, apontam essa área como tendo um

sambaqui. Tudo indica que nesse lugar existia um cemitério indígena que,

posteriormente, foi utilizado pelos negros da região para sepultar seus familiares.

Os casamentos de negros e índios eram muito freqüentes no Vale do Ribeira sendo

estimulado pelos donos de escravos. Pois a escravidão indígena era proibida o que

não acontecia com os filhos de índios e negros. Dona Jumira, membros da

comunidade de Porto Velho, conta que sua bisavó era índia: “ Ela se desgarrou do

bando que andava por aí. Acharam ela e batizaram de Izabel”.

Durante a década de 1950 várias pessoas de fora do bairro foram chegando

dizendo ser donos das terras mostrando documentos que eles não entendiam,

porque não sabiam ler e escrever. Esses fazendeiros firmavam um contrato verbal

com o grupo no qual poderiam continuar morando no lugar, trabalhando como

empregados ou agregados. Em contrapartida, tinham que dar uma parte da

produção para “o dono da terra” ou trabalhar alguns dias da semana nas roças do

mesmo como pagamento pelo uso da terra. Isso tudo se dava sem nenhum

documento que comprovasse essa situação em relação ao ditos proprietários do

lugar. Na verdade começa instaurar nessas localidades um processo de cooptação

dos seus moradores pelos fazendeiros (que se diziam proprietários das terras

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herdadas ou compradas) para institucionalizar a legitimidade de suas fazendas e

incutir nos moradores a idéia de que eram agregados.

Na memória do grupo esta muito presente às relações de trabalho

estabelecidas com esses fazendeiros que os obrigavam a trabalhar de sol a sol, mal

podiam parar para almoçar. Não tinham folga nem aos domingos. As mulheres

trabalhavam grávidas até o último mês de gestação, sendo que, as crianças também

tinham que ajudar na roça não podendo estudar. Eles afirmam que tinham medo

de questionar o patrão e serem chamados de vagabundos, por isso, eles aceitavam

essa situação de semi-escravidão. O próprio acordo de meeiros tinha regras ditadas

pelo fazendeiro este era quem comercializava o produto das roças e dividia o

lucro, no final da colheita que era dado em dinheiro ou porcentagem da colheita,

que o fazendeiro considerava justo, para o consumo do grupo. O fazendeiro

utilizava o sistema de caderneta, no qual, tudo que consumiam ao longo do mês

eram registrado e descontado no dinheiro que deveriam receber pelo seu trabalho.

Aqueles que não aceitavam essas condições tinham que se deslocar para outras

terras, muitas vezes, nas terras de parentes que moravam na região.

No começo do trabalho de reconhecimento desse grupo como remanescente

de comunidade de quilombo era comum se referirem a essa época (descrita acima)

como o período em que eles foram “cativos”. Num primeiro momento, esse fato

gerou um pouco de confusão. Posteriormente, começamos a entender que eles

estavam falando das relações de trabalho com esses fazendeiros. É comum o grupo

afirma que “nós fomos escravizados no mesmo lugar que nossos antepassados foram

escravos”.

Por volta de 1950, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade chega a Porto Velho se

dizendo proprietário21 de uma grande extensão de terras no lugar. Segundo os

moradores de Porto Velho, ele teria vindo do município de Tunas no estado do

Paraná (ver croqui de ocupação anexo). Convidou os moradores que aí residem

21 Uma das alegações do Sr. Benedito Barbosa de Andrade é de que teria herdade essa terra de seu bisavô José Pereira da Silva. No processo de titulação de 1969, realizado pela PPI (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário), José Pereira da Silva figura como sendo o dono do imóvel Porto dos Apertados de Apiaí.

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para trabalharem como agregados nas terras que ele dizia ser proprietário. Começa

aí um processo de apossamento da área pelo Sr. Benedito que alegava ser herdeiro

dessas terras, mas não detinham o documento de domínio.

A área reivindicada pela comunidade de Porto Velho encontra-se nos

perímetros 46º e 38º de Apiaí (ver croqui de ocupação anexo) sendo que a maior

parte dessas terras já foi julgada particular e outro trecho restante foi titulado, em

1969, pela PPI de São Paulo (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário). Desses

títulos apenas um encontra-se com a família da comunidade, que conseguiu resistir

as pressões da especulação imobiliária existente na região desde de o final dos anos

60. Enquanto que o restante pertence com pessoas de fora da comunidade. Outros

3 moradores de Porto Velho receberam título em algumas localidades próximas

conhecidas como Córrego dos Monos e Três Águas que foram vendidos logo após

a sua titulação. Segundo essas pessoas as vendas aconteceram por total

desconhecimento das regras de um mercado de terras que começou a se instaurar

na região. Sendo assim, suas terras foram vendidas por baixos preços e em alguns

casos os pretensos compradores chegaram a ameaça-los com capangas armados.

Um outro fator importante para se entender o processo que transformou

esse grupo de donos da terra em agregados, é que eles compartilham a concepção

de que a terra é um valor moral, um bem de uso social que através do trabalho

supre as necessidades de reprodução física e cultural do grupo.

4.2. A HISTÓRIA DE UM CONFLITO

O aparecimento de Benedito Barbosa de Andrade, em 1950, na localidade de

Porto Velho é um fato que levou-nos a realizar algumas pesquisas e levantar

hipóteses sobre a propriedade que ele alega ter no local. Uma das afirmações do Sr.

Benedito Barbosa de Andrade é de que teria herdado essa terra de seu avô José

Pereira da Silva. No processo de titulação de 1969, realizado pela PPI

(Procuradoria do Patrimônio Imobiliário), José Pereira da Silva figura como sendo

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o dono do imóvel Porto dos Apertados de Apiaí. Porém, a localização desse imóvel

não aparece no mapa da área titulada pela PPI. Nesse mapa existe uma grande

área particular e dentro dela vários proprietários. A dúvida é onde estaria

localizado o imóvel de José Pereira da Silva. Realizamos pesquisas cartoriais para

esclarecer a situação dominial dessa área. Pelas informações obtidas, a área embora

particular, não foi registrada nos cartórios da região havendo, portanto dúvidas

quanto a sua situação dominial. O Sr. Benedito chegou a elaborar um croqui da

área e a tentar registrar no cartório de Apiaí, porém não conseguiu o registro por

problemas de “espacialidade” e “continuidade”(ver nexo).

Nas pesquisas que realizei no Arquivo do Estado de São Paulo com os

registros de terras de 1855 pude constatar que José Pereira da Silva morador da

Freguesia de Iporanga tinha um sitio denominado Tunas Grandes na região de

Apiaí. Pelos limites descritos nesse documento a localização desse sitio não

incidem sobre a localidade de Porto Velho. Um detalhe interessante é que o Sr.

Benedito nasceu no município de Tunas no Estado do Paraná. Pesquisas em mapas

antigos mostram que boa parte do atual estado do Paraná pertenceu ao estado de

São Paulo durante século XIX e início do século XX. Provavelmente, essas terras

pertenciam à região de Apiaí. Assim quando o Sr. Benedito Barbosa de Andrade

ficou sabendo que o nome de seu avô aparecia no processo de titulação saiu de

Tunas no Paraná para se instalar em Iporanga/São Paulo.

Chegando a Porto Velho ele apresenta-se como dono das terras e propõem

um parceria com os moradores de Porto Velho, já de início derrubaram a mata e

plantaram grama para a formação do pasto. Além isso, eles plantavam cana-de-

açúcar para fazer o melaço que era comercializado pelo Sr. Barbosa. O qual pagava

os membros da comunidade do Porto, como e quanto queria sem que os mesmos

pudessem questionar o valor pago pelo produto que havia sido vendido. Eles eram

parceiros na fábrica, e pelo motivo principal de “serem analfabetos”, não sabiam o

que assinavam, e qual o valor em espécie (dinheiro) que recebiam por cada safra.

Segue foto da fábrica de melaço.

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As relações de trabalho eram as mesmas já vivenciadas com outros

fazendeiros (como já citado). Porém, a década de 80, aconteceu um fato curioso que

marcou a trajetória desse grupo. Segundo os moradores de Porto Velho alguém22

da comunidade achou uma bíblia e começou a ler. Foi a partir daí que eles

tomaram consciência de seus direitos, pois se até Deus descansou, porque eles não

tinham o direito a folga semanal. Essa descrição quase mítica para o período de

tomada de consciência do grupo sobre seus direitos é o mesmo período que o

MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens) e a Igreja Católica percorriam

essas a região informando essas populações sobre seus direitos e sobre a

construção das barragens do Funil e de Tijuco Alto que irão inundar o território

onde moram. Os moradores de Porto Velho contam que agarram-se com a capela

22 Nas conversas com os membros da comunidade de Porto Velho o nome da pessoa que teria levado essas informações para o grupo sempre foi omitido. Porém, na última reunião do grupo com nossa equipe o Sr. Américo vice-presidente da Associação de Quilombo de Porto Velho assumiu que foi ele quem trouxe essas informações para a comunidade. Ele foi seminarista que tomou consciência dos seus direitos e da opressão que seus parentes viviam. O fato de não ter revelado nada no começo do trabalho se deve, principalmente, por temer represarias do Sr. Benedito Barbosa que o acusa de incitar os membros da comunidade contra ele.

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de São Sebastião que existia no local. A Igreja tem orientado-os dos direitos

adquiridos na constituição 1989, no Art. 68 que trata da questão quilombola.

Essa situação começou a criar um clima de animosidade entre o Sr. Bendito

Barbosa de Andrade e os membros da comunidade de Porto Velho. Como relata o

Sr. José de Oliveira Rosa (morador mais antigo do lugar):

“Gostamos desse lugar porque nosso pai trabalhava naquele cativeiro, baldeando carga para lá. Mesmo há pouco tempo, nós mesmo estava trabalhando como escravos e não sabia. A igreja abriu nossos olhos e agora os fazendeiros tão vendo isso e querem nos expulsar”.

Por ocasião da enchente ocorrida, em 1997, no rio Ribeira de Iguape, e que

destruiu várias casas da comunidade, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade proibiu a

reconstrução das mesmas, forçando os moradores a sair do lugar e ir para as

cidades mais próximas em busca de emprego e um novo lugar para morar. Essa

catástrofe natural foi usada pelo fazendeiro para expulsar os moradores das suas

terras.

Hoje, moram apenas nove famílias na área, onde segundo os moradores já

existiram mais de trinta. Atualmente, duas delas retomaram um pedaço de terra

para plantar feijão, mandioca e milho, motivadas pela pobreza e marginalidade

econômica do grupo que não vendo outra saída para seus problemas. Abaixo

temos a foto das roças.

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Roça de Feijão e Milho do Sr. Esperidião dos Santos e do Sr. Campolim Pires da Silva

Sr. Esperidião dos Santos na sua roça de milho e feijão

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Essas duas famílias conseguiram fazer apenas a colheita do feijão, pois o Sr.

Barbosa cercou a referida área, transformando a em pasto.

No mês de outubro de 2002, ele ameaçou a comunidade dizendo que

soltaria o gado nas roças deles, e mais, disse para os quilombolas que o processo de

usucapião23 teria sido julgado a seu favor, por isso os membros da comunidade

teriam que deixar a área.

Também fornecemos informações sobre a área em questão para o Drº Walter

Claudius Rothenburg – Procurador da República em São Paulo – que está

acompanhado o processo Nº 283/00, objeto de ação judicial de usucapião

promovida por Benedito Barbosa de Andrade que segundo informações do

procurador encontra-se na instância federal.

23 Em 2002, o Srº. Benedito Barbosa de Andrade entrou com um processo de usucapião nº 283/00 em uma tentativa de conseguir o domínio da área.

Cerca construída pelo Sr.Benedito Barbosa de Andrade que impede o acesso da comunidade as suas roças.

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Os problemas dessa comunidade com o Sr. Benedito Barbosa de Andrade

continuaram, no dia 03 de dezembro de 2002, esse senhor resolveu fazer um

mutirão com seus empregados, ergueu uma cerca impedindo que os moradores da

comunidade tivessem acesso as suas roças e ameaçou soltar o gado nos mesmos.

Esse é o caso do Sr. Esperidião dos Santos e do Sr. Campolim Pires da Silva que

tinham roças de feijão, milho e mandioca no local (ver mapa anexo). Além disso,

eles foram sendo impedidos de ter acesso ao canavial cultivado pela comunidade

de Porto Velho. No mês de janeiro de 2003 o Sr. Benedito cumpriu suas ameaças e

soltou o gado nas roças dos moradores da comunidade destruindo-as, cercou o

acesso deles inclusive a Capela existente na comunidade, como também, soltou os

animais de criação do Sr. Esperidião e do Sr. Campolim na estrada do bairro. Cabe

ressaltar que os moradores dependem exclusivamente dessas roças para sua

subsistência, complementada com parcos recursos advindos da farinha de

mandioca e do melaço de cana.

A irmã Maria Sueli Berlanga, advogada da Comunidade de Porto Velho,

entrou com um processo de reintegração de posse nº 684/02. Porém, até o

momento não temos nenhuma resposta do processo. A situação na área esta muito

tensa e vem se agravando com a demora de uma medida judicial para o caso. Um

fato recente veio somar-se as arbitrariedades cometidas pelo Sr. Barbosa. No dia 22

de junho de 2003, o Sr. Benedito Barbosa de Andrade, sua filha Francisca, seu

marido e o neto do fazendeiro resolveram derrubar a capela de São Sebastião,

afirmando que os moradores de Porto Velho haviam derrubado um cerca sua e que

não vai parar enquanto os membros da comunidade de Porto Velho não

abandonarem o local.

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4.3. CARACTERIZAÇÃO DA COMUNIDADE DE PORTO VELHO

Porto Velho é o nome de uma localidade do bairro de Anta Gorda do

município de Iporanga estado de São Paulo que está localizado a montante do

Rio Ribeira de Iguape estando uma pequena parte de seu território no

município de Itaóca. Seus moradores estão dispostos ao longo da margem

direita subindo o rio Ribeira ficando “espremidos” entre o rio e as montanhas.

Esse bairro esta a cerca de 8 km da Cidade de Itaóca, a 29 km da Cidade de

Apiaí e mais ou menos 90 km do centro administrativo de Iporanga. Podemos

notar que os moradores desse lugar mesmo estando a maior parte do seu

território no município de Iporanga acabam tendo como referencia a cidade de

Apiaí para várias atividades. Pois, as estradas1 que ligam o bairro à sede

administrativa do município de Iporanga não são pavimentadas e estão em

péssimo estado, sendo que, na época das chuvas ficam quase intransitáveis.

1 A distância do centro administrativo do município de Iporanga até Porto Velho é de, aproximadamente, de 90KM enquanto à distância a de Porto Velho à Apiaí é de 29KM.

Vista do núcleo da comunidade de Porto Velho. Ao fundo temos a igreja e a escola na parte da frente o posto de saúde.

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O bairro possuía uma capela consagrada a São Sebastião, um Posto de

Saúde e Escola Estadual de 1ª à 4ª séries do ensino fundamental. O Posto de

Saúde não possui nenhum equipamento para exames, nem médico fixo. O Sr.

Américo, membro da comunidade, que é o agente comunitário de Porto Velho

encarregado da distribuição de remédios para os moradores do bairro e

também do transporte de pacientes até a cidade de Iporanga para consultas

médicas e do transporte escolar.

A comunidade possui um total de 09 famílias que ocupam uma estreita

faixa de terra entre o rio Ribeira de Iguape e as montanhas. Suas casas são na

maior parte de madeira com telhas de barro ou amianto, sendo que duas

famílias possuem casas de alvenaria.

Membros da Comunidade de Quilombo de Porto Velho

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No bairro não existe rede de água e esgoto. A rede de energia elétrica

vem do estado do Paraná, pois não existia uma rede no Estado de São Paulo,

perto do bairro para que recebessem a energia. Segundo os moradores de Porto

Velho, eles já tentaram receber energia elétrica de São Paulo, porém, o Sr.

Barbosa não permitiu que a fossem colocados postes de fiação “nas suas terras”.

Assim eles conseguiram trazer energia elétrica do estado Paraná.

Os moradores de Porto Velho eram basicamente agricultores familiares

que produziam para o autoconsumo e sofreram um processo de expulsão do

seu território que os levou a terem que trabalhar como diaristas para os

fazendeiros vizinhos às terras onde residem. Sendo que, a maior parte das

famílias só podem ocupar o espaço da casa e do quintal2. Eles plantavam arroz,

feijão, mandioca, cana-de-açucar, milho e faziam o melaço que era

comercializado em Apiaí e no estado do Paraná.

Eles também cultivavam a banana, sendo que, seus bananais foram

tomados a força pelo Sr. Benedito Barbosa, que alegando ser o dono, cercou a

2 Onde criam pequenos animais, cultivam hortaliças e árvores frutíferas.

Casa de Esperidião dos Santos e Leonor Pereira da comunidade de Porto Velho

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área impedindo que o Sr. Campolim que é morador da comunidade de Porto

Velho tivesse acesso aos mesmos.

Atualmente, apenas três famílias têm algum espaço3 para plantar e para

criação de animais como bois, cavalos e burros. Essas famílias plantam

mandioca e fabricam a farinha que é comercializada em Itaoca e Iporanga. Além

de derivados do leite como queijo que também é comercializado em Iporanga.

Eles possuem canaviais para a produção de melaço, rapadura e talhada4 que são

vendidos em Apiaí.

3 Duas dessas famílias possuem o título da terra enquanto que a outra mora em Porto Velho nas terras de propriedade de um amigo da família.4 Um doce feito com o melaço da cana-de-açúcar, farinha de mandioca e gengibre.

Bananal do Sr. Campolim Pires da Silva que foi tomado pelo Sr. Benedito Barbosa.

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Uma outra fonte de renda para uma das famílias de Porto Velho é o

artesanato feito por Dona Zulmira Rosa de Oliveira. Para a confecção de suas

peças ela utiliza a palha da banana, do milho e sementes da região. Dona

Zulmira vende seu artesanato para as lojas de Apiaí além das freguesas que

residem em Iporanga e Itaóca que encomendam suas peças.

Fábrica de Farinha da família do Sr. Américo Gomes da Comunidade de Porto Velho.

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No final do ano de 2002, a Associação de Remanescentes de Quilombo

de Porto Velho organizou o plantio de um canavial comunitário, para com o

dinheiro da colheita pagar os custos do registro da associação. Porém, o Sr.

Benedito Barbosa de Andrade cercou a área do canavial e soltou o gado no local

destruindo-o.

A maior parte da comunidade é composta por católicos1 sendo a capela

do bairro consagrada a São Sebastião. Atual capela foi construída em 1980.

Antes dela, existia uma outra capela construída de taipas, no mesmo lugar, da

qual foi destruída. Essa mais antiga, provavelmente, do século XIX como

podemos perceber pelos antigos oratórios.

1 A Igreja Católica teve e tem um papel importante na luta das comunidades negras do Vale do Ribeira pela terra e Porto Velho não é uma exceção. Ela tem orientado e impulsionado a comunidade de Porto Velho a lutar contra as barragens e os orientando a buscarem seus direito como remanescentes de comunidade de quilombo.

Dona Zumira Rosa de Oliveira

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A presença de dois oratórios na capela explica-se pelo fato de que a

capela que existia no bairro de Anta Gorda foi destruída em 1980, sendo que o

oratório e as imagens dos santos foram levados para a capela de Porto Velho.

A devoção a São Sebastião é comum no bairro, sendo esse santo, o

protetor dos desamparados. No dia 20 de janeiro a comunidade comemora o

dia de São Sebastião com uma festa realizada junto à capela.

Também é grande a devoção a São Gonçalo de Amarantes. Santo

português cujo culto foi permitido pelo Papa Julio III em 1551. Ele é padroeiro

dos violeiros, santo protetor contra as enchentes, enfermidades e casamenteiro.

É comum a promessa feita para o santo, paga com a Romaria ou Dança de São

Gonçalo que é sempre realizada no dia que for mais conveniente para o devoto.

No momento de necessidade o devoto pede: “Deus de potência para São Gonçalo

me ajudar”. A Romaria de São Gonçalo é realizada no maior cômodo da casa

onde os móveis são retirados só ficando o altar que é enfeitado com os materiais

mais diversos como bexigas, flores e bandeirinhas coloridas de papel de seda e

crepom. A Romaria é tocada por um mestre de cerimônia e um contra mestre.

São feitas duas filas o mestre canta a entoada e puxa sua fila para um lado e o

O oratório da esquerda pertencia antiga Capela de Porto Velho e o da direita à Capela de Anta Gorda.

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contramestre toca a viola e puxa sua fila em sentido contrário. Ela é realizada à

noite só quando a promessa é para um defunto que a Romaria tem de ser

durante o dia. Os mestres de romaria de Porto Velho são chamados para tocar

inclusive em outro bairro, e mesmo fora do estado de São Paulo. As Romarias

de São Gonçalo, os terços, bem como, as festas são espaços de socialização onde

os velhos podem contar suas histórias, relembrar o passado, encontros amoroso

são possíveis, as mulheres trocam experiências.

Capela de Porto Velho que foi destruída, em jun. de 2003, pelo Sr. Benedito

Barbosa de Andrade.

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4.4. MEMÓRIA E IDENTIDADE

A construção da identidade quilombola dos moradores de Porto Velho está

profundamente ligada ao processo de expropriação vivido por esse grupo que os

obrigou a deslocarem-se dentro de uma região. Para permanecerem próximo ao

local de origem de usa família seu nascimento e de seus pais, o qual tem um

grande valor simbólico. Isso os levou a trabalhar como assalariados ou ocupar

pequenas franjas de terras vivendo de uma agricultura de subsistência.

As constantes mudanças tiveram um impacto sobre a memória do grupo o

que dificultou a articulação entre identidade e território. Eles enfrentaram grandes

dificuldades em localizar pontos de referência que estruturassem sua memória e

que as inserissem na memória da coletividade a que pertencem. Um desses pontos

de referencia é a memória dos lugares1, ou seja, as paisagens que nos acompanham

durante nossas vidas como os rios, matas, montanhas, roçados, espaços de

moradia, lazer e religiosos foram se perdendo devido à mobilidade do grupo pelo

seu território. Sendo assim a articulação entre memória, identidade e território foi

construída durante o trabalho de campo para a elaboração do Relatório Técnico-

Científico o que nos levou a longas discussões com o grupo a respeito da área que

estavam reivindicando como sendo seu território.

1 Segundo Pollak (1989) entre esses pontos de referencia incluem-se os monumentos, esse lugares da memória analisados por Pierre Nora.

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É importante ressaltar que nesse processo de demarcação do território

vários personagens interferiram ocorrendo divergências dentro do grupo com

relação a área a ser reivindicada. Membros da Igreja Católica e do MOAB

(Movimento dos Ameaçados por Barragens), também tinham uma proposta de

qual seria o tamanho do território a ser reivindicado pelo grupo. E com isso, qual

seria o “território ideal” para a comunidade de Porto Velho cada um defendendo

seus próprios interesses e esquecendo do que é realmente importante para

definição de um território. Dessa forma, o território é o espaço:

“ necessário a reprodução física e cultural de cada grupo étnico/tradicional, só pode ser dimensionado à luz da interpretação antropológica e , em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante, tendo em vista a necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,

Membros da Comunidade de Porto Velho em uma das reuniões para discussão do seu território.

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através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os recursos naturais para as gerações vindouras”(Vários autores,1997:49).

O espaço necessário à reprodução física e cultural do grupo tem que ser

definido em um diálogo com o mesmo levando em conta sua situação atual e sua

capacidade de gerir determinado território. Considerando que as representações

sobre etnia e identidade estão articuladas à questão fundamental da

territorialidade, que operacionalizam na prática o processo de identificação do

direito desses sujeitos ao território.

Temos no presente a construção de uma memória voltada para garantia de

um direito sendo que, está em jogo a manutenção de um território como

reconhecimento do processo histórico de espoliação. A fala de José Rosa da

Comunidade de Porto Velho exemplifica o processo de construção dessa memória:

“Quilombo eu acho que seja uma lei que favorece aquelas pessoas que foi dessas nações de escravos, né. Que nós somos uma nação de escravos porque somos remanescentes daquela gente passada. E meu pai nasceu e morreu nesse lugar com oitenta e poucos anos e assim minha mãe”.

Pela fala do Sr. José pudemos perceber que a identidade do grupo está

sendo construída a partir da ligação com o passado (aquelas pessoas) e o presente

(nós). Sendo que o elo de referencia para todo o grupo é um ancestral comum do

qual todos descendem que no caso de Porto Velho é Bazilio de Oliviera Roza pai

de José da Rosa. Constituindo, assim, uma comunidade de parentesco “um espaço

onde se reproduzem socialmente várias famílias de parentes, descendentes de um ancestral

fundador comum”(Woortmann,1987:11).

Não podemos deixar de levar em consideração que a construção da

identidade de um grupo resulta das interações entre os grupos e os

procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações. Sendo assim,

os moradores de Porto Velho são conhecidos pelas outras comunidades

quilombolas do Município de Iporanga como “a bazilhada”. Porém, as relações de

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parentesco não são o único elemento utilizado pelo grupo para indicar o

pertencimento. No caso de Porto Velho, existe de um fazendeiro Sr. Olívio que

reside na área reivindicada pelo grupo como pertencendo ao seu território e que

todos são unânimes em afirmar que ele não pertence a comunidade e tem que

sair da área. Porém, percebemos que ele era parente de alguns membros da

comunidade e questionamos o grupo, se pôr ser parente não pertenceria a

comunidade. Num primeiro momento negaram o parentesco e posteriormente

admitiram que era parente, porém, não pertencia a comunidade. Isso porque o

fazendeiro não havia passado pela mesma situação de exploração e expulsão de

suas terras vividas pelos integrantes da comunidade. Assim, a identidade desses

grupos se define por uma referência histórica comum construída a partir de

vivências e valores partilhados.

“Neste sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”(Barth:1969).

A identidade quilombola dos moradores de Porto Velho vem sendo

questionada, principalmente, pelo fazendeiro Sr. Benedito Barbosa de Andrade

que chegou a enviar uma carta a Fundação Itesp (ver anexo) afirmando que os

moradores de Porto Velho não são quilombolas. Ele defende a tese de que na

região não existiam fazendas de escravos e que alí seriam “terras de índios”. A

presença indígena é muito forte em todos os quilombos do Vale do Ribeira. Ora,

esse trabalho já deixou claro que na região existiam fazendas de escravos inclusive

na área onde o referido fazendeiro reside. O interessante desse caso é que esse tipo

de afirmação ao longo do tempo motivou a comunidade de Porto Velho a

selecionar alguns objetos como “sinais externos” reconhecidos por todos que os

ligasse a histórica da escravidão na região.

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“Independente de ‘como de fato foi’ no passado, os laços das comunidades atuais com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam como ‘sinais externos’ reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação” (Arruti, 1997:23).

Assim, mesmo antes de começarmos o trabalho de reconhecimento do

grupo como comunidade de remanescentes de quilombo já corriam na região

histórias de objetos da escravidão que os moradores de Anta Gorda2 teriam em sua

posse. Como um ferro de marcar escravos e correntes usadas para prenderem

escravos, restos de um prédio que teria sido cativeiro de escravos e pedras que

transpiram com rosto de um negro esculpido. Tudo isso levou várias pessoas da

região a afirmarem, se referindo a Porto Velho, “lá sim que é quilombo de verdade”.

Nessa situação esse grupo utilizou seus recursos de identidade de maneira

estratégica. ”Na medida em que ela é um motivo de lutas sociais de classificação que

buscam a reprodução ou a reviravolta das relações de dominação, a identidade se constrói

através das estratégias dos atores sociais”(Cuche,1999:196).

Segundo Barth (1969), a identidade é construída numa relação que opõem

um grupo aos outros com os quais está em contato. Portanto, é interessante

destacar o que as comunidades quilombolas vizinhas de Porto Velho dizem a

respeito de sua identidade. Um casal de senhores da comunidade de

Bombas3/Iporanga fez o seguinte comentário se referindo a Porto Velho: “É dizem

que lá vai dar quilombo mesmo”!

Um outro comentário bastante interessante foi feito pelo Srº. Antonio

Corimba do quilombo de Praia Grande. Segundo ele, seu pai e sua tia costumavam

usar a expressão “quilombata” para se referir ao Srº. Bazilio de Porto Velho. Eles

falavam: “Ah Bazilio! Quanto tempo não te vejo você virou quilombata agora”?

2 Anta Gorda é o nome do Bairro onde está a localidade de Porto Velho.3 Os estudos para o reconhecimento desse grupo como remanescente de comunidade quilombo estão em andamento.

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O mais importe desse dois comentários é perceber como a identidade é

pensada por esses grupos. Ela não é algo estático, mas dinâmico e

multidimensional. É isso que lhe confere sua complexidade, mas também é o que

lhe dá sua flexibilidade. Quem eu sou é sempre uma pergunta em aberto

dependendo da minha posição no processo de interação com o outro (para quem

se fala), da minha história de vida e do imaginário social4.

“A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais”(Cuche,1999:182).

4 Teia de significados produzidos pelos homens e mulheres no decorrer da história (Geerz,1983) e que circulam na nossa sociedade a partir das narrativas, lendas, textos, memórias, iconografias e conversas do cotidiano.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no estudo técnico-científico da Comunidade de Porto Velho

considero que os trabalhos antropológicos não deixam dúvidas sobre a origem

quilombola da mesma. Esse grupo ocupa o mesmo território a pelo menos 140

anos. Sua origem remonta à história da mineração na região que corresponde,

atualmente, aos municípios de Iporanga/Itaóca. Mais precisamente as terras e os

escravos da família Roza que com a decadência da mineração doaram ou

simplesmente abandonavam suas terras. Essas propriedades deram origem a

núcleos populacionais de escravos forros, dentre eles, Porto Velho. Sendo formado

por escravos alforriados que permaneceram morando na fazenda dos seus antigos

donos como agregados. Para não se afastarem dos parentes que permaneceram

ainda como escravos e tinham como objetivo juntar dinheiro e comprar a liberdade

dos parentes cativos. Nesse lugar, eles desenvolveram um modo de vida próprio

articulado a sociedade mais ampla. Possuindo semelhanças estruturais com as

demais populações rurais da região, que Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973)

chama de bairros rurais.

Atualmente, esse grupo enfrenta problemas com o fazendeiro Sr. Benedito

Barbosa de Andrade que se dizendo dono das terras, proíbe-os de plantarem

levando-os a um estado de penúria. Sendo constantemente ameaçados de expulsão

do seu território. Portanto, instaurou-se um quadro de conflito na área que requer

dos governos estadual e federal providências urgentes para uma solução pacífica

desse problema.

Uma outra ameaça enfrentada pela Comunidade de Porto Velho são as

construções das usinas hidrelétricas do de Tijuco Alto e do Funil que irão inundar

boa parte do seu território. Foi o engajamento do grupo na luta contra as barragens

que os impulsionou a buscarem os reconhecimentos, assegurado pelo Art. 68,

como remanescentes de comunidade de quilombo. A luta contra as barragens

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nunca foi dissociada da luta pela terra. O reconhecimento tornou-se um argumento

muito importante na luta contra a construção dessas barragens.

Concluímos:

- que os membros do grupo denominado Porto Velho são remanescentes de

comunidade de quilombos, de acordo com as definições que embasam os

critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e

devem, portanto, gozar dos direitos de tal identificação lhes assegura.

- que se faz urgente à regularização fundiária do território quilombola aqui

demonstrado, de área 941,0056 ha.

______________________________________PATRICIA SCALLI DOS SANTOS

ANTROPÓLOGA

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PAULINO DE ALMEIDA, Antônio. (1961-1963). “Memória Histórica de Cananéia”.In Revista de História, vários números.

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7. ANEXO

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I. Memorial Descritivo e Planta da Área para

Reconhecimento

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II. Croqui de Uso e Ocupação do Solo da Área da Comunidade de Porto Velho

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III. Genealogia da Comunidade de Porto Velho

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IV. Mapa Histórico da Comunidade de Porto Velho (1800 a 1908)

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V. Carta de Benedito Barbosa de Andrade

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VI. Registros do Livro de terras de Iporanga (1855)

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VII. Pesquisa Cartorial