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8/4/2019 SOARES 1999 Vai Vai Cotidiano
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
O Cotidiano de uma escola de samba paulistana:o caso do Vai-Vai
Reinaldo da Silva Soares
Dissertao apresentada Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, para
obteno do Ttulo de Mestre, pelo curso de
Ps-Graduao em Antropologia Social.
So Paulo1999
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
O Cotidiano de uma escola de samba paulistana:o caso do Vai-Vai
Reinaldo da Silva Soares
Dissertao apresentada Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, para
obteno do Ttulo de Mestre, pelo curso de
Ps-Graduao em Antropologia Social.
Orientador: Professor Doutor JooBaptista Borges Pereira
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Data da defesa: 27/10/1999
Banca Examinadora
A Comisso Examinadora foi constituda pelas Professoras Olga
Rodrigues de Moraes Von Simson, Lilia Katri Moritz Schwarcz e
presidida pelo Professor Doutor Joo Baptista Borges Pereira,
orientador do candidato. Terminadas as argies, a Comisso, em
sesso secreta, passou aos trabalhos de julgamento, decidindo por
unanimidade pela aprovao.
vista deste julgamento, Reinaldo da Silva Soares foi considerado
aprovado com distino, fazendo jus ao Ttulo de Mestre em Cincias:
Antropologia Social.
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minha terna companheira, Bernadete,e minha filha, a gatssima, Beatriz.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Joo Baptista Borges Pereira, pela
orientao competente e segura, cujo profundo interesse pelo tema e
compreenso com nossas dificuldades foram incentivos decisivos para
que este trabalho fosse realizado.
CAPES, pela obteno da bolsa de estudos que
viabilizou a concluso dos crditos.
s professoras que participaram da banca examinadora
de qualificao, Maria Lcia Montes e Olga Rodrigues Von Simson,
pelas crticas e sugestes que nos possibilitaram repensar o projeto de
pesquisa.
Famlia Vai-Vai que permitiu que este trabalho se
concretizasse, pois a disponibilidade e inteligncia dos sambistas
facilitaram nossa tarefa. Pudemos comprovar que um trabalho
acadmico no feito apenas de um clculo racional e uma tcnica
elaborada, pois quando a matria-prima o ser humano, as emoes
so essenciais. Compartilhamos juntos da frustrao de ensaios
adiados por conta dos temporais de vero, do xtase de ensaios bem
sucedidos, da decepo de um vice-campeonato e da alegria
imensurvel de trs ttulos de campeo do carnaval paulistano. Aos
vaivaienses, nossa admirao e o nosso respeito.
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colega Ivana Serpentino Feij, pela leitura crtica de
alguns captulos dessa dissertao, que propiciou oportunos debates
intelectuais.
A todos aqueles que participaram indiretamente da
realizao deste trabalho, nossa gratido.
Claudia Martinuzzo S. de Castro e Fernanda Lucchesi,
pela reviso do texto.
Finalmente, aos nossos familiares: Rubens, Geralda,
Cilene, e Eric, que nos acompanharam durante boa parte dessa
trajetria, nosso reconhecimento pelo carinho, ateno, determinao e
alegria, caractersticas to presentes nas famlias negras que foram
imprescindveis para que nosso objetivo fosse alcanado.
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SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................1
CAPTULO 1
Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai: Um Breve
Histrico............................................................................................7
CAPTULO 2
Estrutura Organizacional Interna....................................................48
CAPTULO 3
O Cotidiano da Agremiao: a Dialtica entre a Labuta e o Lazer
Estruturando as Relaes Sociais....................................................80
CAPTULO 4
O Desfile Carnavalesco e suas Mltiplas Interpretaes...............125
CAPTULO 5
A Auto-representao Vaivaiense: o Significado da Agremiao para
os Sambistas...................................................................................164
Consideraes Finais......................................................................202
BIBLIOGRAFIA................................................................................209
APNDICES
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RESUMO
O Cotidiano de uma escola de samba paulistana: o caso do Vai-Vai
O objetivo do trabalho analisar o processo de produo
do ciclo carnavalesco do Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba
Vai-Vai. Agremiao formada em sua maior parte por negros. Localizada
no bairro do Bexiga, nas proximidades da regio central da cidade de
So Paulo.
O cotidiano da agremiao foi retratado atravs da
descrio etnogrfica das principais atividades organizadas pelos
sambistas: ensaios, festas e concursos de samba enredo.
Durante o trabalho, o Vai-Vai revelou-se como um
espao de sociabilidade cujo um dos principais objetivos a valorizao
da cultura negra perante a sociedade global.
A histria da agremiao relativiza o processo de
oficializao do carnaval enquanto conquista da classe dominante,
demonstrando como os negros conseguiram ampliar a dimenso da sua
manifestao cultural, utilizando-se de estratgias de resistncia
inteligente.
Palavras-Chave: Escolas de samba Estilo de vida Festa Negro
So Paulo
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ABSTRACT
The daily life of a So Paulo city samba school: the Vai-Vai case
The work purpose is to analyze the carnival cycle
production process of the Recreational and Cultural Society Vai-Vai
Samba School. Association formed for the most part by the black
people, situated in Bexiga district, nearly the central area in So Paulo
city.
The association daily routine was retraced through the
ethnography mainly activities description, arranged by the samba
dancers: essays, parties and samba plot competitions.
During the work, the Vai-Vai revealed itself as being a
sociability space, and its main purpose is the black culture valorization,
in the face of the global society.
The association history related to the carnival
officialization process as conquest of dominant class, provided that
making use of intelligent resistance strategies, the black people
succeed in enlarging their cultural demonstration dimension.
Key-words: Black- Lifestyle Party Samba school So Paulo city
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INTRODUO
Os estudos sobre o carnaval brasileiro nas Cincias
Sociais ganharam impulso a partir do ensaio O Carnaval como Rito de
Passagem, de Roberto da Matta, publicado em 1973.
A partir deste trabalho, surgiram vrias pesquisas de
carter antropolgico e sociolgico sobre este que considerado o
maior espetculo da Terra; alguns com um carter ensastico e outros,
resultantes de pesquisa de campo.
A maior parte dos trabalhos produzidos teve como escopo
analisar o desfile carnavalesco e no o processo preliminar da produo
da festa.1
O presente trabalho tem como objetivo geral, analisar o
processo de produo do desfile carnavalesco que engloba a definio
do enredo, o concurso de escolha do samba enredo, os ensaios e as
festas de uma agremiao paulistana: O Grmio Recreativo e Cultural
Escola de Samba Vai-Vai.
1 Como exceo, podemos citar o trabalho de Maria Laura Viveiros de CastroCAVALCANTI, Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, Rio de Janeiro,
Funarte/UFRJ, 1995, no qual a autora analisa todo o ciclo carnavalesco.
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Nosso objetivo especfico revelar, atravs da descrio
etnogrfica do cotidiano da agremiao, se h um padro de
sociabilidade negro que guarda certas especificidades em relao a
outras organizaes sociais.
A escolha do G.R.E.C.E.S. Vai-Vai justificada pelo fato
de ser uma das mais antigas escolas de samba da cidade, alm de ser a
agremiao mais popular, concentrando milhares de componentes e
simpatizantes em seus ensaios. Outro fator que determinou a opo
pelo Vai-Vai como nosso objeto de pesquisa, a possibilidade de
analisar o carnaval paulistano sob uma perspectiva particular: a
questo tnica.
O Vai-Vai desde sua gnese, em 1930, foi formado
exclusivamente por negros. A partir da dcada de 1960, existe um
ingresso mais significativo de brancos, mas, mesmo assim, atualmente
a agremiao composta por uma maioria de negros.
No pretendemos fazer a reconstruo da histria do
carnaval paulistano2, muito embora em alguns momentos houve a
necessidade de abordar alguns aspectos histricos da agremiao.
2 Para o leitor interessado na histria do carnaval paulistano ver: Olga Rodrigues VonSIMSON, A burguesia se Diverte no Reinado de Momo, So Paulo, 1984, dissertao
de mestrado, FFLCH-USP e Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, SoPaulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.
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Nosso intuito retratar a situao atual do Vai-Vai. O
presente trabalho um estudo de caso, e como tal, no pretende ser
representativo do carnaval paulistano, j que a agremiao em questo,
apresenta algumas peculiaridades. Um trabalho sobre o samba
paulistano deveria ser mais ambicioso e abordar escolas tradicionais
como o Vai-Vai, Nen de Vila Matilde e Camisa Verde e Branco, ou
agremiaes que surgiram com o processo de oficializao do carnaval
paulistano, como a Rosas de Ouro e a Mocidade Alegre e, outras mais
recentes, como a Gavies da Fiel Torcida.
A pesquisa de campo foi realizada entre setembro de
1996 e fevereiro de 1999 e a principal tcnica adotada foi a observao
participante, pois acompanhamos, de forma sistemtica, o concurso de
escolha do samba enredo, os ensaios, as festas, os jogos de futebol
promovidos pela ala da harmonia, assim como o desfile, a apurao e
as festas de comemorao do ttulo de campeo do carnaval paulistano.
Participamos, tambm, de reunies internas das alas e de
reunies das alas reunidas. No entanto, nossa participao nas
reunies da diretoria foi vetada, sob o pretexto de que os assuntos
tratados eram extremamente sigilosos.
Apesar dessa negativa, a diretoria, assim como todos os
membros da agremiao, sempre se mostrou muito disposta a nos
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fornecer todo tipo de informao, por mais que nossas indagaes se
mostrassem, muitas vezes, bvias demais aos sambistas.
medida que iniciamos a pesquisa de campo, sentimos a
necessidade de delimitar nosso objeto, de forma mais precisa, pois, no
auge do perodo de ensaios nos meses de janeiro e fevereiro o Vai-
Vai chega a reunir 7.000 a 10.000 pessoas, mas, um nmero bem
reduzido de pessoas participa das atividades cotidianas da escola.
Portanto, decidimos trabalhar com aqueles que, efetivamente, tenham
um vnculo mais consistente com a agremiao, ou seja, que exeram
alguma funo, tais como: passista, chefe de ala, ritmista. O exerccio
de tais funes implica em severas repreenses em caso de
absentesmo, alm do compromisso de fidelidade com o Vai-Vai, sendo
vedada a participao em desfile de outra escola. Os simpatizantes, ao
contrrio, utilizam os ensaios, como uma das diversas formas de lazer
que a cidade proporciona.
Realizamos entrevistas3 com os vaivaienses de diversas
faixas etrias, e que ocupavam posies diferenciadas dentro da
estrutura ocupacional da escola de samba. Entrevistamos tanto
brancos quanto negros, uma vez que este recurso poderia revelar
3 Todas as entrevistas foram registradas em gravador de fita cassete.
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tenses nas relaes intertnicas e vises diferenciadas em relao
agremiao.
Durante todo o trabalho, tentamos estabelecer um
dilogo entre as explicaes dos sambistas e nossas interpretaes.
Durante a pesquisa de campo, nosso sentimento foi de um outsider, j
que estvamos penetrando em um universo desconhecido, cujas regras
ignorvamos. Neste contexto, cometer algumas gafes foi inevitvel.
Gafes que se revelaram um instrumento de grande valor pedaggico
para o conhecimento da lgica de funcionamento da agremiao.
Obtivemos dados sobre o desfile carnavalesco e sua
apurao, pela leitura dos jornais e telejornais locais e da Internet.
A bibliografia consultada foi, basicamente, sobre samba,
escolas de samba, carnaval e estudos sobre o negro no Brasil.
O trabalho est estruturado em cinco captulos:
No primeiro captulo, traamos um breve histrico do
Vai-Vai, resgatando a gnese da agremiao em 1930, at o momento
da sua transformao em escola de samba, na dcada de 1970.
O segundo captulo, dedicado anlise da organizao
formal da escola de samba, na qual procuramos decifrar o papel de
cada setor dentro da estrutura interna da agremiao.
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No terceiro captulo, realizamos uma descrio
etnogrfica das atividades cotidianas do Vai-Vai: os ensaios, as festas e
os concursos de samba enredo.
No quarto captulo, procedemos a um breve levantamento
sobre as discusses tericas envolvendo a temtica carnavalesca, na
tentativa de estabelecer um dilogo com os respectivos autores, a fim de
buscar uma interpretao para o significado do desfile para os
vaivaienses.
Finalmente, o quinto captulo, dedicado viso que os
sambistas tm da agremiao, abordando temas como o processo de
mercantilizao das escolas de samba e as relaes intertnicas, dentre
outros.
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CAPTULO 1
GRMIO RECREATIVO E CULTURAL ESCOLA DE SAMBA VAI-VAI:
UM BREVE HISTRICO
V cuidar de sua vida /diz o dito popularquem cuida da vida alheia/da sua no podecuidarCriolo cantando samba /era coisa feiaEste negro vagabundo /joga ele na cadeiaHoje branco t no samba /quero ver como
que fica / todo mundo bate palma / proOswaldinho da Cuca...(V cuidar de sua vida, Geraldo Filme, 1996)
1.1 - Os Primeiros Folguedos Carnavalescos na Cidade de So Paulo
O carnaval chegou ao Brasil trazido pelos
colonizadores portugueses na forma do Entrudo1, que significa
"entrada", uma festa realizada, antigamente, em Portugal para saudar a
1 Segundo SIMSON: (...) O termo entrudo englobava todas as manifestaes referentes forma antiga de brincar o carnaval, chegadas ao Brasil com os colonizadores
portugueses e tpicas dos festejos de Momo nas Aldeias da Pennsula Ibrica. Essetermo referia-se a uma forma de festejar os Trs Dias Gordos mais rural ou de pequenosaglomerados urbanos, onde todos se conheciam e onde os festejos de Momo tinhamtambm importante funo de controle social. Dentro desse esquema cabem asbrincadeiras com limes e laranjas de cheiro, as molhadelas com seringas, bisnagas e
at baldes ou tinas, os enfarinhamentos, as peas pregadas em amigos, parentes econhecidos (...) (Olga Rodrigues Von SIMSON, A burguesia se Diverte no Reinado deMomo, So Paulo, 1984, dissertao de mestrado, FFLCH-USP, p. 9).
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chegada da primavera. Com o advento do cristianismo, passou a
acontecer do Sbado Gordo Quarta-feira de cinzas.2
No sculo XIX, o Entrudo era praticado no Brasil,
principalmente, pelas famlias mais abastadas dos grandes centros
urbanos como Rio de Janeiro e Salvador. A festa consistia em "batalhas
aquticas" entre pessoas de sexos diferentes, incluindo bombardeios de
limes e laranjas de cera repletos de gua perfumada.3
A partir de 1840, surge o Carnaval Veneziano que mais
tarde, seria conhecido como "Grande Carnaval"4, realizado pelas classes
privilegiadas. Mas, o surgimento do Carnaval Veneziano (...) no
destronou imediatamente o Entrudo; este coexistiu com ele at a ltima
dcada do sculo XIX, s desaparecendo completamente no incio do
sculo XX.5
Em So Paulo, as primeiras manifestaes carnavalescas
datam da segunda metade do sculo XIX. Eram festas organizadas
2 Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, Carnaval Brasileiro, So Paulo, Brasiliense,1992.3 Olga Von SIMSON, A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo, So Paulo, 1984,dissertao de mestrado, FFLCH-USP.4 Segundo Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, Carnaval Brasileiro, So Paulo,Brasiliense, 1992, as terminologias Grande Carnaval e Pequeno Carnaval, foraminstitudas para enfatizar as diferenas entre os festejos realizados pelas elites e osfolguedos populares.
5
Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, Carnaval Brasileiro, So Paulo, Brasiliense,1992, p. 50.
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pelas sociedades carnavalescas, compostas pela burguesia emergente
resultante da alta lucratividade obtida com a comercializao do caf. O
objetivo dessas festividades era aproximar-se do estilo de vida europeu,
imitando o carnaval realizado em Frana e Itlia.6
Nessa fase de implantao, o carnaval Veneziano, ou
"Grande Carnaval", revela a bipolarizao da estrutura social. Enquanto
os privilegiados desfilavam em carros alegricos ou de crticas, com
fantasias luxuosas, os menos favorecidos apenas assistiam as
festividades das caladas.
No incio do sculo XX, assiste-se ao surgimento do
"Pequeno Carnaval"7, o povo passou a participar, mais efetivamente,
dos festejos, atravs dos bailes e desfilesrealizados no bairro do Brs,
com participao majoritria dos imigrantes espanhis, italianos e
portugueses.
(...) Para os poucos negros que se aventuravam a vir tocar e danar nobairro imigrante, restavam as ruas secundrias prximas a estao deestrada de ferro, onde realizavam suas danas, assistidas, num misto de
6 Olga Rodrigues Von SIMSON, A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo, SoPaulo, 1984, dissertao mestrado, FFLCH-USP.7
Este termo designava as festividades realizadas pelas classes populares, em oposioao grande carnaval, cujos participantes eram de um lado, os brancos operrios e deoutro, os negros que migravam das fazendas de caf do interior do Estado.
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atrao e curiosidade, pelos imigrantes europeus que delas nadaconheciam(...) 8
O carnaval do Brs tinha a participao de muitos
operrios das indstrias que ali se instalaram. Alm dos bailes em
clubes, participavam tambm do desfile em carros abertos,
acompanhados de batalhas de confete, serpentina e lana-perfumes.9
Na Lapa e gua Branca, tambm ocorreram
manifestaes carnavalescas com as mesmas caractersticas dos
folguedos realizados no Brs. Tais manifestaes eram realizadas,
principalmente, por operrios imigrantes que compunham associaes
baseadas nos laos de famlia e vizinhana e que recebiam apoio
financeiro dos comerciantes locais.
A partir da dcada de 1930, com o crescimento
econmico da cidade, os bairros do Brs, Lapa e gua Branca foram
transformando-se em bairros residenciais. Com a alta valorizao
imobiliria, os operrios foram obrigados a procurar bairros mais
acessveis financeiramente. Os bailes realizados em sales familiares,
como o clube carnavalesco Lapeano, passaram a ser organizados pelos
8
Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, SoPaulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 359 Ibidem.
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clubes de futebol, como o Corinthians e o Palmeiras, com um carter
comercial.
Como resultado desse processo, ocorreu a desarticulao
destas festividades organizadas pelos operrios brancos e,
paralelamente, os blocos carnavalescos negros foram se afirmando.10
1.2 - Os Blocos Carnavalescos
Com a abolio da escravatura, a situao da
populao negra na cidade de So Paulo, ficou ainda mais dramtica.
Sem nenhuma lei que os favorecesse, sem ter recebido qualquer tipo de
indenizao pelo trabalho exercido no cativeiro, os negros foram sendo
substitudos pela mo-de-obra estrangeira, restando aos primeiros as
posies mais aviltantes no mercado de trabalho.11
Nas primeiras dcadas do sculo XX, uma grande
quantidade de negros migrava do interior para a cidade de So Paulo,
10 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.11 Florestan FERNANDES, A Integrao do Negro na Sociedade de Classes, So Paulo,Dominus, 1965.
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em busca de empregos, concentrando-se, principalmente, nos bairros
do Bexiga, Barra Funda e Baixada do Glicrio. Alm de estarem
situados prximos ao centro comercial da cidade, esses bairros
proporcionavam oportunidades de trabalho e moradias a baixo custo
pela desvalorizao dos terrenos situados em fundo de vale, sujeitos
inundao, ou em reas muito ngremes.12 Um outro fator, de carter
tnico, tambm motivou esta aglutinao:
(...) A proximidade com negros moradores destes bairros, h mais tempo e
portadores de um maior conhecimento sobre a cidade de grande utilidadepara os que estavam chegando, pode ter sido uma das principais razes daconcentrao que registrou-se, ocorrendo uma situao anloga verificadaem outros processos migratrios que so comuns os esforos para amanuteno de proximidade aos parentes, o que , muitas vezes, o fatormais forte na escolha de local de moradia(...) 13
A populao negra tinha como opes de lazer, as
procisses religiosas que eram acompanhadas por um tipo de msica
executada a partir de instrumentos de origem africana. A dana dos
12 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP e Samuel LOWRIE, O Elemento
Negro na Populao de So Paulo, Revista do Arquivo Municipal,4 (48), 1938.13 Ida Marques de BRITTO, Samba na Cidade de So Paulo, So Paulo, EDUSP, 1986,p. 38.
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Caiaps era realizada durante as procisses para atrair o pblico
atravs do ritmo dos seus instrumentos de percusso.14
Com o temor de uma possvel "rebelio negra", todas as
tentativas de reunio de negros eram duramente reprimidas pela
polcia. A exceo ficava por conta das festas ligadas Igreja Catlica,
nas quais o limite entre o profano e o sagrado era relativizado, j que
alm da possibilidade de expresso de religiosidade, proporcionavam
momentos de encontro e lazer marcados pela msica e canto.
Neste contexto, as irmandades religiosas tiveram um
papel crucial, servindo como fator de reelaborao de crenas religiosas,
danas e cantos, originrios da frica:
(...) As irmandades de negros eram os nicos canais possveis deorganizao dos escravos dentro do sistema colonial. Em certo sentido e
curiosamente foi atravs da religio catlica que o escravo encontrava algumlenitivo para a situao (...) Paradoxalmente, os negros utilizaram asirmandades para resguardar valores culturais, em especial sua crenareligiosa(...) 15
14 Segundo SIMSON, os Caiaps eram uma dana dramtica, realizada pelos negroscrioulos, (...) eram na verdade, um auto-dramtico que narrava a histria da morte deum pequeno cacique indgena, atingido pelo homem branco. O curumim conseguiavoltar vida, graas as artes do paj, para alegria e regozijo da tribo. (Olga RodriguesVon SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989,
tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 82)15 Ana Lcia E. F. VALENTE, O Negro e a Igreja Catlica, Mato Grosso do Sul,CECITEC/U.F.M.S., 1994 p. 46 e 47.
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Em So Paulo, a irmandade mais importante foi a de
Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos, local de reunio de
negros, onde alm da realizao dos cultos no interior da Igreja, no
adro, ouvia-se samba.
As festas religiosas realizadas no dia 3 de Maio, tiveram
uma grande importncia para o surgimento das primeiras associaes
carnavalescas negras na cidade: 16
(...) Dentre as comemoraes do calendrio religioso catlico em So Paulo,mais precisamente na Capital, havia algumas que exerceram uma funoaglutinadora destes grupos. Das festas que celebravam o dia de Santa Cruz,realizadas no dia 3 de maio, duas adquiriram feio especial: a daLiberdade, realizada nas imediaes da Igreja dos enforcados e a doGlicrio, em um terreno baldio na antiga baixada. Ambas contavam com a
participao de negros, tanto da capital quanto do interior que, revezando-senos instrumentos, principalmente os de percusso como o bumbo e azabumba, apresentavam o samba entre eles denominado samba dePirapora ou samba campineiro(...) 17
A festa de Bom Jesus de Pirapora constitua-se em outra
alternativa de manifestao negra no Estado de So Paulo.
16 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.
17 Ida Marques de BRITTO, Samba na Cidade de So Paulo, So Paulo, EDUSP, 1986,p.58.
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Paralelamente aos cultos, acontecia uma reunio de negros que tinha
como destaque o Samba-de-Pirapora ou Samba-de-Bumbo, ficando
conhecido desta forma por ter como caracterstica principal a marcao
do ritmo musical feita por aquele instrumento de percusso.
Mrio Cunha, em uma descrio da Festa em 1936,
afirmava que o seu sucesso estava no equilbrio entre o sagrado e o
profano:
(...) Enquanto os indivduos vinham a Pirapora por um dever de ordemreligiosa e se entregavam no s as atividades pias como aos divertimentosprofanos, a festa permaneceu com o seu cunho originrio, ou seja, religioso.Por assim dizer, a festa religiosa dominava. A sua sombra se formou e a suasombra vivia a festa profana. o que se conservou de certo modo natradio ainda existente de no ltimo dia de festa, noite virem ossambadores agradecer ao tesoureiro de Mesa Administrativa do Santurio.Na verdade o Tesoureiro pouco ou nada fez pela festa profana. No entanto,sentem todos uma foi condio da outra(...) 18
O Samba de Pirapora era uma manifestao cultural
tpica do interior paulista que foi sofrendo alteraes at chegar
cidade de So Paulo.19
18 Mrio Vagner Vieira da CUNHA, A Festa de Bom Jesus de Pirapora, Revista do
Arquivo Municipal, So Paulo, 4 (41), 1937, p. 32.19 Wilson Rodrigues de MORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo,Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978.
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Com o passar do tempo, a Igreja Catlica foi se
apercebendo que essas manifestaes religiosas fugiam do seu objetivo
principal, passando, ento, a reprimi-las. Dessa forma, a soluo
encontrada pelos negros foi aproveitar os dias destinados ao carnaval.
Esse clima propiciou o surgimento dos primeiros cordes
carnavalescos da cidade. O pioneiro foi o grupo carnavalesco Barra
Funda20, fundado em 1914, por Dionzio Barbosa que, por ter entrado
em contato com os sambistas cariocas, se entusiasmou e resolveu
formar sua prpria agremiao.21
Inicialmente, o grupo Barra Funda no desfilava com
fantasias, mas com uniforme: camisa verde e cala branca.
(...) Eles saram com roupas simples, as vezes at remendadas,portando violo, pandeiros e chocalhos feitos com tampinhas de cerveja e
20 Anos depois, o grupo mudaria o nome para Camisa Verde.21 Wilson Rodrigues de MORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo,Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978 e Olga Rodrigues Von SIMSON,
Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese dedoutorado, FFLCH-USP.
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desfilavam pelas ruas do bairro cantando msicas compostas pelosmembros do grupo(...) 22
O surgimento do Camisa Verde abriu espao para o
aparecimento de vrios outros cordes carnavalescos, como o Campos
Elseos em 1918. Estas agremiaes possibilitavam um momento de
lazer e congraamento entre os negros.
1.3 - O Cordo Carnavalesco Vai-Vai23
1.3.1 O Bexiga
O Bexiga24 surge no sculo XVIII, quando So Paulo
ainda ocupava uma posio secundria na economia brasileira. O
22 Depoimento de Dionzio Barbosa, citado por Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancose Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 89.23 Durante o trabalho as referncias agremiao sero feitas sempre no masculinopelo fato do seu nome oficial ser Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai.24 Em 1912, houve a alterao da denominao e o bairro passou a chamar-se BelaVista. Existe, ainda, um outro cognome para o bairro que foi popularizado atravs dascanes de Adoniran Barbosa: O Bixiga. Segundo SCARLATO, foi uma tentativa daala tradicional do bairro em resgatar o italianismo que se perdeu ao longo do tempo.
A ideologia do Bixiga, tambm usada pelos donos de estabelecimentos comerciais,que pretendem, atravs da atrao causada pelo exotismo de um bairro que seria umpedao da Italia em So Paulo, ampliar os seus lucros. Para maiores detalhes ver
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bairro servia como ponto de passagem para aqueles que chegavam
cidade ou que se dirigiam para o interior do Estado.
(...) A rea do atual bairro do Bexiga, que compreende a regio prxima Av. Paulista, tem remotas origens. Em 1559 estas terras pertenceram aostio do Capo, de Antonio Pinto, que recebia este nome devido importante floresta, multissecular, que coroava o espigo... Entretanto, aexistncia do nome Bexiga relacionado a um espao geogrfico do perodoentre 1789 e 1792. Em 1819, a chcara pertencia a Antonio Bexiga. NelaSaint Hilaire, o viajante francs, se hospedou por duas noites, em viagem aSo Paulo. Posteriormente, foi propriedade de Toms Luiz Alvares (TomsCruz), e por volta de 1850 foi vendida firma Antonio Jos Leite Braga Cia. Imbudo pela febre da urbanizao, que contagiava a metrpole noltimo quartel do sculo XIX, Antonio J.L. Braga promoveu a demarcao,abertura de ruas e iniciou a venda de terrenos da chcara(...)25
At a segunda metade do sculo XIX, o bairro contava
com uma baixa ocupao. O desenvolvimento da economia cafeeira e a
crise no sistema escravocrata provocaram alteraes nas relaes de
trabalho, inserindo um novo personagem no cenrio: o imigrante.
A partir deste momento, uma urbanizao desenfreada
assola a cidade de So Paulo, resultando em um intenso processo de
especulao imobiliria.
Francisco C. SCARLATO, O Real e o Imaginrio no Bexiga, So Paulo, 1988, tese dedoutorado, FFLCH-USP.25 Clia Toledo LUCENA, Bixiga, Amore Mio, Panartz, So Paulo, 1981, p.20 apudFrancisco Capuano SCARLATO, O Real e o Imaginrio no Bexiga, So Paulo, 1988,
tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 30.
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Nesse contexto, o Bexiga ia se constituindo: em 1878,
inicia-se o processo de arruamento e a venda dos lotes. Por volta de
1910, o bairro j era reconhecido pela alta concentrao de italianos,
atrados pelos baixos preos das terras que procuravam se instalarem
prximos aos conterrneos ou queles que falavam o mesmo dialeto.
O bairro era formado por casas de fachadas estreitas,
com estilo arquitetnico italiano e longos quintais com hortas e
pomares que resgatavam um pouco do clima rural.
(...) O Bexiga evoluiu dentro de So Paulo como um bairro de caractersticasbem definidas. Relaes de vizinhanas muito estreitas, marcadas por uma forte identidade tnica-nacional de italianidade. Um lugar onde asprofisses artesanais imprimiram sensveis marcas no seu perfil cultural. A possibilidade de associar residncia e oficina, permitia a este tipo detrabalhador dispor do seu tempo da maneira que melhor lhe provesse. Desta
forma, este habitante podia dividir seu dia em horrios bem marcados: ahora do trabalho na oficina, da sesta, novamente do trabalho e finalmente,no trmino da jornada, o convvio com a famlia. Nestas oficinastrabalhavam, geralmente, quase todos os membros da famlia. Assim,regulados pelo mesmo horrio de trabalho, podiam compartilharconjuntamente de todas as atividades, desde as refeies ao lazer(...) 26
O Bexiga era um bairro formado por pequenos
negociantes, trabalhadores autnomos e assalariados.
26 Francisco Capuano SCARLATO, O Real e o Imaginrio no Bexiga, So Paulo, 1988,tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 65.
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Com a necessidade de obteno de uma renda
complementar, muitos proprietrios passaram a alugar a parte ociosa
de seu terreno, dando origem aos cortios.
No imaginrio paulistano, o Bexiga conhecido como um
paradigma de integrao racial em funo da convivncia harmoniosa
entre negros e italianos. Mas, nos cortios, negros e italianos
dificilmente compartilhavam do mesmo espao, os ltimos preferiam
alugar as moradias a seus compatriotas:
(...) Os italianos pobres, somente em caso de necessidade aceitavam morarnos cortios junto aos negros. Apesar de manterem relaes amistosas,italianos e negros muito raramente definiram relaes de casamentos. Asrelaes eram muito mais de senhor e servo, permeada pelo paternalismomais do que verdadeiramente pela integrao tnica e social(...)27
A pretensa relao harmoniosa entre negros e imigrantes
que, ainda hoje, perpassa tanto o discurso dos vaivaienses quanto o dos
descendentes italianos, parece ter sido uma tradio inventada, pois
de fato, no se tratava sequer de uma relao de tolerncia relativa,
27Ibidem, p. 71.
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como atesta a fala de um senhora negra, citada por Teresinha
Bernardo, nas suas recordaes sobre a festa da Achiropita:
(...)Para os pretos era muito ruim, a gente senti at vergonha: amarravam
uma fita da torre at o cho e as pessoas amarravam dinheiro na fita para aigreja, e o padre saa agradecendo e dando medalhinhas para as crianas.O que acontecia que ns, s vezes, no tnhamos dinheiro para comer,como amos dar para Igreja? Mas nossas crianas queriam amarrar odinheiro, porque queriam ganhar as medalhinhas. Os italianos olhavam
para a gente como se fssemos de outra categoria, inferior, era s frustrao(...)28
O depoimento de uma senhora descendente de italianos
reafirma a relao intertnica conflitiva existente no Bexiga:
(...) Eu gostava muito de ir festa da Aquiropita, s que, s vezes, apareciaum bando de pretos, sabe como , a gente no gostava. Voc imagina quequando a Ione chegou da Itlia e desceu no Porto de Santos, ela perguntou:Que esto, sone bichos? E l na festa a gente achava eles meio bichos,seguravam suas crianas e andavam de cabea baixa sem olhar paraningum, era esquisito, ningum gostava(...) 29
Bastide e Fernandes, analisando as manifestaes do
preconceito na cidade de So Paulo, afirmam que o paternalismo servia
como um instrumento de manuteno de relaes raciais do tempo da
28 Teresinha BERNARDO, Memria em Branco e Negro: um olhar sobre So Paulo, So
Paulo, 1993, PUC-SP, p. 80.29 Depoimento citado por Teresinha BERNARDO, idem, p. 103.
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escravatura. O negro s era aceito caso assumisse uma posio de
subservincia em relao ao branco. Afirmar sua condio de
inferioridade era pr-requisito para uma convivncia no conflitiva com
o branco, como demonstravam as atitudes das famlias mais abastadas
em relao aos negros:
(...) Essas famlias tradicionais no aceitam o novo negro, que se veste americana, ousado e empreendedor, que, numa palavra, no sabe ficar noseu lugar. Que filho de empregada, senta-se numa poltrona em vez de ficarrespeitosamente em p. Que recusa um convite para almoar se for servidona copa em vez de na sala de jantar (...)30
Portanto, o que podemos inferir que nesta viso do
Bexiga enquanto cone de integrao intertnica encobria o
paternalismo, cuja funo era manter a estrutura social, negando o
outro como igual e ratificando as desigualdades sociais.
Os negros foram concentrando-se na regio do riacho
denominado Saracura que, posteriormente, seria canalizado para a
30 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e Negros em So Paulo, SoPaulo, Companhia Editora Nacional, p. 149.
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construo da Avenida Nove de Julho, rea desvalorizada por ser
alagadia, mas que permitia, na estiagem, a prtica do futebol.31
Desde os tempos da escravido, a regio que compreende
a rua Rocha e Almirante Marques Leo era conhecida como refgio de
escravos fugitivos. Estes fatos levaram a regio a ser considerada um
local perigoso por agrupar muitos negros.32
As caractersticas demogrficas do Bexiga, formado
majoritariamente por imigrantes de origem italiana e uma minoria de
negros, em menor nmero, no se alterariam at a dcada de 1950,
quando comeariam a ocorrer as primeiras grandes mudanas
urbansticas. Com a abertura das avenidas Nove de Julho (por volta dos
anos 1940) e, posteriormente, da Vinte e Trs de Maio (no final da
dcada de 1940) o Vale da Saracura passaria a ser ocupado por grandes
edifcios.
No final da dcada de 1960, com as alteraes
urbansticas, muitas casas antigas foram destrudas, antigos moradores
31 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano SoPaulo, So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP e Ida Marques de BRITTO,Samba na Cidade de So Paulo, So Paulo, EDUSP, 1986.32
Ieda Marques de BRITTO, Samba na Cidade de So Paulo, So Paulo, EDUSP, 1986e Francisco Capuano SCARLATO, O Real e o Imaginrio no Bexiga, So Paulo, 1988,tese de doutorado, FFLCH-USP.
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foram desapropriados e um grande contingente de nordestinos passou
a residir no bairro.
A partir da dcada de 1970, o Bexiga entraria para o
mercado de lazer com a instalao vrias casas noturnas, bares,
cantinas e teatros, alterando, drasticamente, as caractersticas do
bairro, at ento marcado por uma vida comunitria intensa.
Hoje, o bairro recebe uma grande populao flutuante
que desfruta das opes de lazer das quais parte significativa dos
moradores, est alijada.33
1.3.2 O surgimento do Cordo
No Bexiga, os negros habitavam as reas extremamente
ngremes ou as regies de fundo de Vale (Saracura), enquanto que os
italianos, concentravam-se na regio mais valorizada, ruas Treze deMaio e Rui Barbosa, entre outras.
Como opo de lazer, os moradores do Bexiga tinham a
festa em louvor a Nossa Senhora da Achiropita realizada no dia 15 de
33
Francisco Capuano SCARLATO, O Real e o Imaginrio no Bexiga, So Paulo, 1988,tese de doutorado, FFLCH-USP.
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agosto. As comemoraes em homenagem padroeira do bairro eram
marcadas pelas brincadeiras como o pau de sebo e o quebra potes.
Os moradores negros traziam sua contribuio tocando o samba de
bumbo.34
O futebol era a outra alternativa de lazer, praticado nas
vrzeas do Saracura. Um desses clubes, o Cai-Cai, formado por negros
do prprio bairro, tinha como smbolo, as cores preto e branco,
influncia direta do Sport Club Corinthians Paulista.
Paralelamente aos jogos de futebol, existia um grupo
musical que, por ser muito participativo, ficou conhecido como a turma
que "vai a qualquer lugar. De uma intriga entre os membros do clube
Cai-Cai, surgiu um grupo dissidente que, provocativamente, adotou o
nome de Vai-Vai e logo se transformaria em cordo carnavalesco.
Em 1 de Janeiro de 1930, nas proximidades do rio
Saracura, que hoje corresponderia rea situada entre as ruas Rocha e
Rui Barbosa, um grupo de jovens negros fundou o cordo carnavalesco
Vai-Vai, que herdou do antigo Cai-Cai, as cores preto e branco.
34 Ida Marques de BRITTO, Samba na Cidade de So Paulo,So Paulo, EDUSP, 1986.
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Dentre os fundadores, destacaram-se: Benedito Sardinha, Frederico
Penteado, dona Casturina, dona Iracema, Tino, Guariba, Livinho e
Henrico35.
O smbolo escolhido foi uma coroa adornada por dois
ramos de caf (figura 1). Em relao ao significado do smbolo, passado
e presente se confundem. A coroa representando a monarquia que teve
sua histria encerrada em 1889, e o caf que era um cone do
crescimento econmico do Estado de So Paulo, no incio do sculo,
cujo capital possibilitaria o posterior processo de industrializao e
urbanizao.
O carnaval um espao no qual proliferam referncias
monarquia: o reinado que integrava os cordes carnavalescos, o Rei
Momo e sua corte, a rainha e a princesa da bateria e a indumentria
estilo Luiz XV do mestre-sala e da porta-bandeira.
Abriremos um parntese para abordar a seguinte
questo: por que utilizar como emblema representativo de uma entidade
35 Wilson Rodrigues de MORAES, Escolas de Samba de So Paulo, So Paulo,
Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978.
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negra, um objeto que faz referncia ao poder vigente durante regime
escravocrata?
Letcia Reis36, fazendo um levantamento das explicaes
sobre a questo da popularidade da monarquia entre os negros, elenca
algumas proposies: a Proclamao da Repblica ocorre justamente
quando a monarquia conseguia sua maior popularidade entre os
negros, provavelmente em funo da abolio da escravido; os negros
cariocas estavam insatisfeitos com o projeto de urbanizao das
autoridades republicanas, que iniciava um processo de limpeza da
cidade atingindo diretamente aos pobres (principalmente os negros) e,
por fim; o regime republicano no reservava um lugar ao negro.
Apesar de esta discusso ser instigante, apenas
indicamos algumas possibilidades de explicao, j que no objetivo
deste trabalho repercutir tal polmica.
Os primeiros ensaios, assim como as reunies, eram
realizados na casa de um dos fundadores, Seu Benedito Sardinha, na
36 Letcia Vidor de Sousa REIS, O Mundo de Pernas para o Ar, So Paulo, Publisher,
1997.
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rua Rocha. Em dois cmodos grandes, o grupo podia trocar de roupas,
guardar os instrumentos, fazer as evolues e realizar bailes.
O Livro de Ouro foi a alternativa adotada pelos
membros do cordo para confeccionar as primeiras fantasias e
instrumentos. O dinheiro era arrecadado junto aos comerciantes
italianos e moradores do bairro. Apesar de colaborarem, os italianos
no participavam do cordo e apenas assistiam aos desfiles.
Com o aumento do nmero de participantes, os ensaios
passaram a ser realizados pelas ruas da Bela Vista:
(...) Ns tnhamos o ensaio, era na rua mesmo, mas a gente ensaiava peloBexiga inteiro, no tinha sede, no tinha nada, mas todo mundo ajudava,todo mundo cooperava... Ensaio pr val mesmo! A gente ensaiava, tinhagosto, rodava a Bela Vista inteirinha, Bixiga, antigamente, s falava... eraBixiga mesmo. Ia l pr Saracura, ia l pro lado dos Piques, ia pra todosesses cantos, a... mas ensaiava mesmo, sentia, aprendia a msica, tudodireitinho(...)37
No primeiro desfile, o cordo foi composto por um
contingente entre 100 e 150 pessoas, desfilando pelas ruas do Bexiga
indo at o bairro de Pinheiros (Clube Rebouas). O tema escolhido
homenageava a Marinha Nacional:
37
Depoimento de Dona Odete, antiga integrante do Vai-Vai, citada por Olga RodriguesVon SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989,tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 131.
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(...) As fantasias so de "Marinheiro". Todo mundo de tnis branco. Osrapazes usam cala branca com listras pretas nas laterais. As camisas,tambm brancas, tm as grandes golas de marujos, debruadas em preto. Asmoas usam meia soquete branca, saia pregueada de panam tambmbranca, enfeitada com cordes pretos. As grandes golas de suas blusastambm so debruadas em preto. As moas usam ainda luvas brancas.
Todos usam bons de marinheiro com arremate de fitas pretas(...)
38
O cordo desfilou ao som da marchinha composta por
Tino, compositor e um dos fundadores do cordo, da qual destacamos
alguns versos:
Ns aqui representamos/
a Marinha Nacional/e tambm representamos/
o heri do carnaval
O cordo, alm dos instrumentos percursivos e de
cordas, utilizava tambm instrumentos de sopro: caixa, reco-reco,
bumbo, cavaquinho, violo, banjo, clarin, e trombone de vara.39
38 Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai. Histria. Informaodisponvel na Internet: http://www.vaivai.com.br [fev.1998].39
Depoimento de Sr. Livinho cedido Olga R. de Moraes Von SIMSON, em 1981 eGrmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai. Histria. Informaodisponvel na Internet: http://www.vaivai.com.br [fev.1998].
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Desde o incio, o Vai-Vai conseguiu a simpatia dos
moradores da vizinhana e, como forma de retribuio, desfilava pelas
ruas do bairro, visitando queles que contribuam com o Livro de
Ouro:
(...) nis ia assim, os pessoal gostava, a tinha aquelas casa que davacomida, punha aquelas mesa de doce, o Cordo entrava, aquelas moa tudoentrava, comia, bebia, depois saa tocando e agradecia e ia noutra casa amesma coisa, de tanto que eles gostava, aquelas italianada ali da BelaVista tudo(...) passava com o cordo l na porta, j tava avisando em tallugar (...) tem mesa de doce (...) Nis entrava tudo direitinho(...) as moasna fila e entrava, cantava e eles batia palma (...) ali comia, tomava guaran,doce, tudo o que tinha, depois cabava, agradecia a o apitador, que era meu
compadre Livinho, tocava o apito, todo mundo j se punha no lugar e saano cordo j ia no outro, aquele povo atrs, uma coisa maravilhosa(...) 40
No desfile, o cordo era estruturado da seguinte forma:
inicialmente, vinha o abre-alas, folio que executava coreografias
especficas, seguido do clarin, cuja funo era chamar a ateno do
pblico para o incio do desfile e os balizas, que faziam acrobacias com
um pequeno basto.
Aps os balizas, aparecia a porta-estandarte, protegida
pelo guarda-estandarte e a comisso de frente. Na seqncia, os
40 Depoimento da Sr Iracema, cedido pesquisadora Alba Figuera, em 1978.
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amarra-fila marchavam formando filas laterais para que o centro
ficasse livre para os integrantes evoluir.
O desfile era finalizado pelo batuque que tinha, frente,
o apitador, cuja funo era coordenar o canto, o ritmo e a dana.41
Ao contrrio do que ocorre atualmente, no existia um
local fixo para o cortejo. Alm do Bexiga, a escola aceitava convites para
desfilar em outros bairros, como a Lapa e Penha, e em outras cidades,
como Santo Andr e Guarulhos.
Paralelamente ao cordo, a turma do Vai-Vai colocava o
Bloco dos Esfarrapados nas ruas do Bexiga no Sbado de carnaval, que
era um dia normal de trabalho j que os desfiles aconteciam aos
domingos. Os Esfarrapados saam s ruas vestindo roupas velhas,
rasgadas ou com os homens travestindo-se de mulher. O desfile no
tinha carter competitivo; como o bloco desfilava isoladamente, existia
uma maior espontaneidade por parte dos seus integrantes.
Olga Simson destaca uma das funes do bloco dos
Esfarrapados:
41
Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai. Histria. Informaodisponvel na Internet: http://www.vaivai.com.br [fev.1998]
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(...) Nas dcadas de 30 e 40, quando a rivalidade entre asagremiaes do Bexiga e da Barra Funda se acirrou muito, o desfile do Blocodo Esfarrapado teve tambm a funo de permitir um confronto real entre asagremiaes rivais, liberando a agressividade de seus membros numembate que, entretanto, no os impedia de competir nos concursoscarnavalescos, pois no danificava nem as fantasias, nem os instrumentosmusicais ou o estandarte, necessrios aos desfiles organizados do Domingoe Tera-feira de carnaval(...) 42
Alm dessa funo de controle da agressividade dos
componentes do cordo, o bloco dos Esfarrapados era a ltima
oportunidade de arrecadar dinheiro para os retoques finais nas
fantasias, que seriam utilizadas no desfile de Domingo. Enquanto o
bloco desfilava, o Livro de Ouro era passado para angariar os
derradeiros donativos.
A participao dos brancos no cordo, segundo o
depoimento dos seus fundadores, estava restrita colaborao com o
Livro de Ouro.
O cordo era formado exclusivamente por negros, que
alegavam que a no participao de brancos era devido falta de
ginga, que poderamos interpretar como uma habilidade corporal
especfica. Tal justificativa perde consistncia, se fizermos a opo por
42
Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 92.
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compreender a ginga no como uma herana gentica negra, mas
como algo que desenvolvido na convivncia com os sambistas negros.
Segundo Olga Simson43, a ausncia de brancos devia-se
ao fato de os mesmos no terem interesse em participar de atividades
negras, pois o estigma que recaa sobre essas faria com que o branco
que quisesse tomar parte estivesse sujeito a sanes do seu grupo,
como revela a fala de Seu Zzinho do Morro da Casa Verde:
(...) Por que ningum ia. Por que ia se met com negro? (...) Noia de jeito nenhum. E quando ele ia, ento ele era completamente rebaixadopelos amigos dele: - Eh! C se met no meio daquela negrada l! Era isso(branco) no ia(...) 44
Deduzimos que os negros, por sua vez, queriam
consolidar o cordo como uma manifestao cultural especfica, um
espao alternativo criado por eles e que privilegiasse as relaes sociais
entre iguais.
43 Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese dedoutorado, FFLCH-USP.44 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,
So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 118.
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Neste contexto, o bloco dos Esfarrapados, abria espao
para a participao dos brancos do bairro, uma atitude de reciprocidade
para com os italianos que colaboravam com o cordo, alm de levantar
o dinheiro para concluir as ltimas fantasias. Esta possibilidade era
dada pelo fato de o bloco ser aberto participao dos moradores:
(...) No Farrapo era branco, preto, azul, amarelo, todo mundo entrava (...)Era baguna, ento eles entravam(...) 45
O bloco dos Esfarrapados, alm de no exigir
investimento financeiro, tambm no exigia empenho na sua
preparao. Desta forma, no necessitando de uma organizao
complexa ou de um backgroundcultural significativo, a participao de
pessoas alheias ao cordo no comprometia seu desempenho, pois
como foi dito anteriormente, o bloco no participava de concursos
carnavalescos.
Posteriormente, o Vai-Vai passou a participar do
concurso da Cidade da Folia, no Parque da gua Branca, disputando
45
Depoimento de Sr. Livinho cedido Olga R. de Moraes Von SIMSON, Brancos eNegros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, em 1981.
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prmios em dinheiro com outros cordes (Camisa Verde e Branco e o
Campos Elseos). Depois da apresentao na Cidade da Folia, o cordo
encerrava o Domingo de Carnaval desfilando pelas ruas do Bexiga.
Os cordes eram um prolongamento das relaes de
parentesco e de vizinhana. Alm das atividades ligadas ao carnaval e
futebol, realizavam festas, excurses e romarias cidade de Pirapora:
(...) A turma do Vai-Vai recorda ter participado ativamente daromaria a So Bom Jesus nos anos 30, quando se dirigiam de caminho Pirapora. Nessa poca quem comandava o samba que representava o
samba era Lazinho, enquanto o lder do samba campineiro era seu Diogo...era um capenga, faltava uma perna. Ele sambava com uma perna s (...)46
Nas dcadas de 1930 e 1940 houve um crescimento do
nmero de cordes carnavalescos na cidade, assim como ia
aumentando a aceitao da sociedade global.
No final da dcada de 1940 e incio da dcada de 1950,
existia na cidade de So Paulo uma grande escassez de moradias
populares. Com a Segunda Guerra Mundial, houve uma alta no preo
46 Depoimento de Dionzio Barbosa, citado por Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos
e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.
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do material, resultando na paralisao de construo de casas a serem
alugadas para as famlias de baixa renda.
Neste contexto, houve uma elevao no preo dos
aluguis, causada pela especulao imobiliria, resultando na
expulso dos moradores mais pobres, que buscaram, na periferia, as
casas mais baratas ou terrenos a preos mais acessveis.47
(...) Viver prximo ao centro urbano havia se tornado, para quem no eraproprietrio do seu imvel, praticamente impossvel, o que tirou das classesmenos privilegiadas at mesmo dos bairros negros os quais, por outro lado,atravs de algumas obras de urbanizao como a construo do Tunel 9 deJulho, por exemplo, estavam se transformando em locais de moradia maisvalorizados(...) 48
Os cordes que a princpio estavam situados nas reas
centrais mais desvalorizadas entraram em crise, porque os grupos de
vizinhana que lhes davam sustentao estavam passando por um
processo de desestruturao. Vrios cordes carnavalescos soobraram,
47
Cf. Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.48 Ibidem, p. 164 e 165.
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somente aqueles mais estruturados, como o Camisa Verde e Branco e o
Vai-Vai, conseguiram permanecer.49
Segundo Olga Simson, as mulheres tiveram um papel
fundamental para a sobrevivncia destas entidades carnavalescas:
(...) Lideranas femininas desses cordes foradas pelas circunstncias ahabitar bairros afastados como: Jabaquara, Bosque de Sade, VilaBrasilndia, Taboo, Ferreira, Vila Maria, Vila Guarani, no se conformandoem ficar alijadas dos festejos carnavalescos, criaram um esquema dereorganizao da preparao e ensaios para o desfile, transformando suasresidncias numa espcie de pequenas filiais da sede da agremiao.
Atravs de contatos constantes com a diretoria do cordo e de visitasregulares sede, em busca de modelos para as fantasias, letra do samba-enredo e mesmo de alguma ajuda, ou financeira, ou em tecidos, asmulheres, geralmente costureiras, passaram a organizar alas inteiras docordo nos novos bairros onde haviam passado a residir, confeccionando osdisfarces e realizando, em suas casas, os ensaios preparatrios para ogrande ensaio final, este sim realizado na sede central da agremiao, svsperas do Carnaval(...)50
Os dirigentes compreendendo a importncia destas
subsedes distantes da regio central, implementaram a infra-
estrutura necessria ao trabalho das costureiras, fornecendo-lhes
49 Cf. Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP. Ver tambm Wilson Rodrigues deMORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo, Secretaria da Cultura Cincia eTecnologia, 1978, p. 71 e 72.50
Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, So Paulo, 1989, tese dedoutorado, FFLCH-USP, p. 165.
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tecidos, prottipos de fantasia, instrumentos musicais e at ritmistas
para animar os ensaios.
O funcionamento das subsedes nas regies perifricas,
proporcionou um incremento do nmero de componentes das novas
alas que se formavam, possibilitando que os cordes pudessem
suplantar as adversidades resultantes do processo de reurbanizao da
cidade.
Na dcada de 1960, os cordes paulistanos comearam a
transformar-se em escolas de samba. Em 1966, o Vai-Vai mudaria sua
estrutura e passaria a ser dividido em alas, com carros alegricos,
mestre-sala e porta-bandeira.
Nesta nova fase, seu primeiro enredo foi O aleijadinho,
e, consequentemente, foi criado o primeiro samba enredo.
Neste perodo, acontece o ingresso do primeiro branco na
agremiao, o italiano Domingos Barone, em 1968. Na dcada de 1960,
as agremiaes carnavalescas atravessaram uma sria crise econmica,
pois a administrao pblica municipal, gesto Prestes Maia, priorizava
o processo de reurbanizao da cidade em detrimento das atividades
ldicas.
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Os dirigentes das principais entidades carnavalescas
passaram a pressionar o poder pblico municipal. Como no obtiveram
sucesso, resolveram recorrer ao auxlio do radialista Moraes Sarmento.
(...) Em setembro de 1967, j devidamente estruturados numaFederao que contava com diretoria constituda por elementos ligados srdios e jornais mais populares da cidade, com um conselho integrado
pelos sambistas de velha cpa (Seu Nen, Inocncio Tobias, D Eunice,Bitucha e P-Rachado) foram, em comitiva, solicitar ao Prefeito Faria Lima(carioca que simpatizava com os folguedos carnavalescos populares), o apoioe ajuda financeira necessrios realizao dos desfiles carnavalescos de1968.
O Prefeito concordou em auxiliar financeiramente a nova
Federao, com a condio de que seu presidente ficasse responsvel pelautilizao da verba concedida aos desfiles carnavalescos. Moraes Sarmentobuscou ento, como uma forma complementao (sic), o apoio das firmascomerciais que j patrocinavam seu programa radiofnico e tendoconseguido essa sustentao, concordou em assumir a tarefa de promoveros desfiles de Momo daquele ano. Realizou-se ento, o primeiro carnavaloficialmente financiado pelos poderes pblicos paulistanos(...) 51
O poder pblico municipal exigiu que as entidades
carnavalescas seguissem um estatuto para regulamentar os desfiles
carnavalescos. Foi contratado um carnavalesco carioca para que
51 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p. 196.
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elaborasse um novo regulamento, baseado na estrutura das escolas de
samba do Rio de Janeiro:52
(...) A partir do carnaval de 1968, as escolas de sambapaulistanas passaram a ser estruturadas de acordo com o modelo carioca.Os balizas foram relegados em favor da comisso de frente; o estandarte
definitivamente substitudo pela bandeira acompanhada por mestre-sala e,tornou-se obrigatria a presena de baianas. O enredo assumiuimportncia capital, passando a definir toda a montagem do desfile. Aexpresso ala torna-se corrente para designar grupo de componentesrepresentando parte do enredo ou no e a denominao de bateria passa asubstituir a de batuque para o conjunto instrumental. Ficou definitivamenteabolida a participao de qualquer instrumento de sopro na parte musical(...) 53
Para Wilson Moraes, a principal diferena entre os
cordes e as escolas de samba estava no ritmo. Os cordes tocavam
marchas carnavalescas e as escolas tocavam, exclusivamente, o samba.
Em 1955, o Camisa Verde foi o primeiro a substituir a marcha pelo
samba. Logo em seguida, o Vai-Vai tomaria a mesma iniciativa.54
Aps a oficializao do samba paulistano, houve um
crescimento no nmero de escolas de samba. Os trs ltimos cordes
remanescentes, Camisa Verde e Branco, Vai-Vai e Fio de Ouro
52 Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP.53
Wilson Rodrigues de MORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo,Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978, p. 71 e 72.54 Ibidem.
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(formado por dissidentes do Vai-Vai), passaram a se estruturar como
escolas de samba em 1972.55
A passagem para escola de samba acarretou algumas
modificaes na estrutura da agremiao:
(...) Na bateria foram introduzidos instrumentos leves comotamborim, pandeiro, cuca, etc. O andamento e a batida do samba tornaram-se mais leves e com mais balano. O estandarte deu lugar bandeira.Nasceram a comisso de frente, a ala das Baianas e as alegorias de mo.As fantasias perderam seu peso tradicional, e a evoluo ficou maisdinmica(...) 56
Em 1972, o cartunista Otvio cria para o Vai-Vai a
mascote Criol (figura 2). Enquanto a coroa, como mencionamos
anteriormente, fazia meno monarquia e ao progresso econmico
proporcionado pelo ciclo cafeeiro, o Criol faz referncia formao
tnica da agremiao: um negro estilizado, sambando, com cartola e
camisa listrada, tocando um tamborim.
Em 1998, o Criol virou personagem central do enredo da
escola de samba, como veremos no captulo 3. Atualmente, a coroa e o
Criol so os dois smbolos oficiais que representam o Vai-Vai.
55 Wilson Rodrigues de MORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo,
Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978.56 Grmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai. Histria. So Paulo, 1998.Informao disponvel na Internet: http://www.vaivai.com.br [fev.1998].
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Em conseqncia do grande investimento financeiro e do
crescimento do nmero de associados, houve a necessidade de um
maior controle da direo sobre a base, com uma maior nfase na
estrutura hierrquica, ao mesmo tempo, a escola necessitou da
presena de brancos de classe mdia, devido ao aumento de custos com
o carnaval.
A partir da oficializao do carnaval, um novo fenmeno
ocorreria no samba paulistano: o surgimento de escolas dirigidas por
brancos, sendo a Rosas de Ouro e a Mocidade Independente as que
mais se destacaram.
(...) Essas novas agremiaes sambistas, contando com umsignificativo capital inicial e com a ajuda financeira de algumas empresascomerciais, alm de contatos valiosos na burocracia municipal, seestruturaram num esquema completamente novo, trazendo para o sambauma viso mercadolgica que busca objetivamente o sucesso na avenida.Para isso procuravam seguir muito de perto o bem sucedido modelo carioca,
pois do sucesso do desfile carnavalesco decorria uma boa freqncia aosensaios, realizados nos fins de semana, na quadra da escola, que logo setornaram outra fonte considervel de renda para essas agremiaes(...) 57
57
Olga Rodrigues Von SIMSON, Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano,So Paulo, 1989, tese de doutorado, FFLCH-USP, p.120.
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As novas escolas tinham um contingente significativo de
brancos. Entretanto, como havia necessidade de integrantes para os
setores estratgicos como a bateria, a ala de compositores e passistas,
houve a contratao de negros das escolas tradicionais.
Apesar da concorrncia das novas escolas de samba, na
dcada de 1970, o Vai-Vai firmou-se como uma das principais escolas
de samba da cidade, sempre se classificando entre as trs melhores no
desfile, aumentando o nmero de associados, bem como de
simpatizantes. A agremiao continua sendo um grande reduto negro,
apesar de seu discurso inclusivo que alega aceitar pessoas de qualquer
origem tnica e social.
Ao contrrio do que acontecia nos primeiros anos de sua
histria, o Vai-Vai no composto apenas por moradores do bairro,
atraindo pessoas de todos os cantos da cidade e de municpios vizinhos,
embora o nome da agremiao ainda esteja diretamente ligado ao
Bexiga e vice-versa.
Analisando a histria dos folguedos negros na cidade,
constatamos que os cordes carnavalescos so resultantes de um
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processo de bricolage58, resgatando alguns aspectos de outras
manifestaes culturais.
Os cordes carnavalescos se inspiraram em um tipo de
dana denominado umbigada, que implicava no contato entre os
ventres dos danarinos. Octavio Ianni, analisando uma manifestao
cultural negra na cidade de It, interior do Estado de So Paulo,
descreve a umbigada:
(...) Outro elemento coreogrfico caracterstico do samba de terreiro de It a umbigada. Apresenta-se contudo, de forma relativamente estilizada, poisraramente se verifica o contato real entre os danadores. H apenas a
meno de um danarino encostar seu ventre no de outro. Em dois casos, noentanto, a umbigada atinge aspectos novos e mobiliza ateno de grande
parte da assistncia. Num dles ela se d entre um danarino e umadanarina. Ambos se acham sambando e comeam a se enfrentar frente a
frente, a pouca distncia um do outro. Neste caso, a disputa parece iniciar-se por uma provocao, um negaceio, entre os dois. Essa negaa, e isto senota claramente, altamente carregada de sensualidade, o que provoca ointersse de todos. Um pretende atingir o ventre do outro com o seu, mas,enquanto a mulher foge e se oferece, o homem procura e recusa ao mesmotempo. Nisto consiste o negaceio, que realizado no ritmo certo do samba.Geralmente, esta situao atinge seu clmax com a umbigada propriamentedita, onde muitos dos nossos informantes viam manifestaes sensuais e
at mesmo figuraes do coito(...)59
58 A expresso bricolage utilizada por LVI-STRAUSS para demonstrar o modo deoperao do pensamento mtico. O bricoleur trabalha sem um plano pr-definido, comum conjunto finito de objetos, que sero rearranjados e, consequentemente, receberooutros significados, formando um novo conjunto. Para maiores detalhes, ver LVI-STRAUSS, O Pensamento Selvagem, So Paulo, Papirus, 1989.59 Octavio IANNI, O Samba de Terreiro de It, Revista de Histria, So Paulo, 1956, p.
407.
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Os grupos de choro tambm deram sua contribuio para
a formao dos cordes carnavalescos que, nos primeiros anos de
existncia, utilizavam instrumentos de corda (bandolim, violo e
cavaquinho) e de sopro (clarinete e saxofone).60
A tiririca, forma rudimentar de capoeira, influenciou a
expresso corporal dos sambistas paulistanos como explica, Wilson
Rodrigues de Moraes:
(...) Na forma de jogar, a pernada paulista difere da pernadacarioca, pois, nesta um dos contentores fica plantado, isto , parado,enquanto o outro danando sua volta, tenta derrub-lo. Na pernada
paulista, os dois contentores se defrontam exatamente como ocorre nacapoeira: os dois atacam e se defendem simultaneamente.
Isso trouxe para o sambista uma postura peculiar.Ele dana ligeiramente inclinado com os braos dobrados nos cotovelos, em
posio de defesa, desenvolveu um passo meio saltitante que permite aoritmo do samba, o seu rpido abaixar para escapar aos golpes altos, e aomesmo tempo, facilita o jogar de perna sobre o adversrio. Essa postura,de modo geral, se nota mesmo quando o sambista, est simplesmentedanando, sem jogar tiririca(...) 61
As festas de carter profano-religioso, como a Congada, o
Moambique, o Samba de Pirapora e a dana de Caiaps, serviram
como referncia para a criao dos cordes carnavalescos.
60 Wilson Rodrigues de MORAES, Escola de Samba de So Paulo, So Paulo,
Secretaria da Cultura Cincia e Tecnologia, 1978.61 Ibidem, p.47.
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As bandas militares cariocas tambm influenciaram os
primeiros cordes paulistanos, que nos seus desfiles, utilizavam a
marcha-sambada, alm dos balizas que foram inspirados nos cortejos
militares.
O gosto pelas fantasias luxuosas e por um maior cuidado
pelos aspectos estticos do cortejo, os primeiros sambistas
incorporaram dos desfiles realizados pelo corso na Avenida Paulista.
Os cordes carnavalescos no foram manifestaes que
nasceram prontas foram construdas ao longo do tempo pelos grupos
negros, que assim como o bricoleur, tomaram de emprstimo
fragmentos de outras manifestaes culturais, que foram
ressignificados, originando uma forma inovadora de brincar o
carnaval.62
A originalidade dos folguedos carnavalescos negros est
no fato de estes terem incorporado elementos distintos, compondo um
amlgama muito peculiar que foi se alterando conforme as necessidades
62 Na mesma direo, Olga Von SIMSON e Neusa GUSMO destacam o carterantropofgico das culturas negras, que digerem e transformam tudo, como estratgiade sobrevivncia: Vivendo em tenso permanente, os grupos submetidos, atravs dacriao antropofgica, buscam dar forma organizao social, dar sentido e atribuirsignificados a traos culturais que lhes permitem viver o melhor que possam.
A criao antropofgica aponta, ento, para as possibilidades de uma resistncia
inteligente, ou seja, a possibilidade de superao do contexto adverso. Olga Rodriguesde Moraes Von SIMSON, A Criao Cultural na Dispora e o Exerccio da ResistnciaInteligente, Cincias Sociais Hoje, 1989, p. 221.
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do contexto em que estava inserido. Esta dinmica possibilitou o
sucesso obtido pelos cordes carnavalescos, que deram origem s
atuais escolas de samba paulistanas.
Finalizando, alm desta capacidade de
autotransformao, os cordes carnavalescos conseguiram persistir no
tempo por representarem mais do que uma opo de lazer para os
negros. Estas agremiaes faziam parte de um modo de vida de
determinados grupos negros da cidade que extrapolavam a finalidade de
realizar um cortejo carnavalesco, funcionando o ano inteiro,
possibilitando momentos de sociabilidade, representando a esperana
de ascenso social e, principalmente, servindo como instrumento de
visibilidade social aos negros.
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CAPTULO 2
ESTRUTURA ORGANIZACIONAL INTERNA
Neste captulo, trabalharemos com a organizao formal
da agremiao objetivando revelar sua estrutura interna.1
O processo de mercantilizao das escolas de samba
paulistanas que teve seu incio na dcada de 1970, exigiu que essas
agremiaes tivessem uma estrutura organizacional cada vez mais
complexa, pois passaram a mobilizar um nmero crescente de atores e
um grande volume de capitais para realizao do espetculo
carnavalesco.
Em termos de organizao interna da agremiao,
tomamos como referncia as subdivises ocupacionais para estabelecer
a seguinte classificao: setor administrativo, composto pela diretoria;
setor de produo musical, que inclui a ala dos compositores e a
bateria; setor de produo humana do desfile, formado pelas alas
coligadas, a harmonia e o setor de produo material coordenado pelo
carnavalesco, que engloba o barraco2 e o atelierde costura.3
1 Compreendemos como estrutura, a funo que cada setor exerce dentro daorganizao, cf. RADCLIFFE-BROWN, Estrutura e Funo na Sociedade Primitiva,Petrpolis, Vozes, 1976.2
Local onde so produzidos os carros alegricos. Por questes operacionais, ficalocalizado prximo ao local do desfile.3 No atelierde costura so confeccionadas as fantasias utilizadas no desfile.
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2.1- Setor Administrativo
2.1.1- A Diretoria
Responsvel pelo gerenciamento da agremiao, a
diretoria, trata das questes burocrticas (cadastramento dos
associados, documentao da agremiao e divulgao do regulamento
do desfile), administra o bar instalado na sede social e as barracas de
alimentao que funcionam nos ensaios, alm de empresariar o grupo
musical que representa o Vai-Vai, realizando shows em clubes e casas
noturnas.
Apesar de todas essas atribuies, a funo mais
importante da diretoria conseguir patrocnio, j que em funo do
crescimento das escolas de samba, os desfiles tornam-se cada vez mais
onerosos.
A diretoria da agremiao o nico setor da escola de
samba, escolhido por eleio direta. Qualquer associado pode formar
uma chapa e se candidatar. Ela composta pelo presidente, vice-
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presidente, secretrio, diretor financeiro, tesoureiro e diretor artstico.
No processo eleitoral, que ocorre a cada dois anos, todos
os associados que estejam em dia com suas mensalidades tm direito a
voto.
A diretoria o nico setor da escola em que a proporo
entre negros e brancos paritria. Alguns intelectuais do mundo do
samba e do universo acadmico afirmam que a quantidade de brancos
nas posies mais altas da hierarquia seria um dos principais
argumentos para justificar a expropriao das escolas de samba pela
classe mdia branca.
No caso especfico do Vai-Vai, preciso analisar os
limites das atribuies da diretoria que, evidentemente, goza de um
status privilegiado: ela que fala em nome da escola aos meios de
comunicao, representando a agremiao junto liga das escolas de
samba e ao poder pblico municipal.
Em uma das reunies internas da harmonia, o chefe da
ala explicitou a diviso de funes dentro da escola: presidncia
caberia a parte financeira, enquanto a harmonia cuidaria dos detalhes
tcnicos do desfile. Portanto, a diretoria tem o encargo de arregimentar
recursos, cabendo s alas tcnicas a responsabilidade pela execuo do
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desfile.
Os sambistas se orgulham em dizer que o Vai-Vai uma
escola que no tem dono, referncia clara ao processo de estreitamento
das relaes entre os bicheiros e as escolas de samba do Rio de Janeiro
na dcada de 1970. Tal processo resultou em uma relao
centralizadora, patronal, na qual, alm da possibilidade da lavagem de
dinheiro, os chefes da contraveno alcanaram prestgio social.
Neste contexto, certas escolas de samba tm seu nome
diretamente vinculado a determinados bicheiros, como o caso da
Mocidade Independente, cujo patrono era Castor de Andrade. O
resultado desse processo uma relao de dependncia cuja dimenso
to considervel que a escola no pode ser mais pensada sem os
investimentos do seu mecenas, que acaba tornando-se um proprietrio
da agremiao.4
O significado de ser uma escola que no tem dono
relativo ao fato do Vai-Vai no estar vinculado a uma personalidade.
Assim, a instituio se coloca acima das individualidades e tem
autonomia para traar seus prprios rumos. Como conseqncia, a
4 Sobre a relao entre o jogo do bicho e o carnaval carioca ver Maria Laura Viveirosde Castro CAVALCANTI, Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, Rio de Janeiro,
Funarte; UFRJ, 1995e Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, Carnaval Brasileiro, SoPaulo, Brasiliense, 1992.
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agremiao tem o propsito de estabelecer relaes internas cada vez
mais igualitrias a fim de se coadunar com o padro das instituies
modernas, como fica expresso na fala de um de seus dirigentes:
(...) Aqui no Vai-Vai uma escola na qual no tem dono, aqui existe umaeleio normal, se voc for um elemento participando do Vai-Vai. Ento o queque acontece? Aqui no Vai-Vai existe democracia, porque existe eleio, sevoc analisar hoje, v em quantas escolas existe eleio? Acho que em duasou trs, duas ou trs, no mximo(...)
Analisando a estrutura das escolas de samba do Rio de
Janeiro, Jos Svio Leopoldi constatou que existia uma relao
conflitiva entre o setor administrativo e o setor carnavalesco, mas que o
funcionamento da agremiao dependia do ajuste desses setores.5
Constatamos que no Vai-Vai existe um movimento de
presso e contrapresso entre a diretoria e os sambistas. Nem todas
decises tomadas pela presidncia so aceitas sem contestao pelos
demais setores da escola, fazendo com que haja, ao menos
relativamente, uma descentralizao de poder e uma maior simetria
entre os diversos setores.6
5 Jos Svio LEOPOLDI, Escola de Samba, Ritual e Sociedade, Petrpolis, Vozes, 1978.6 Presenciamos um fato ocorrido durante os preparativos para o carnaval de 1997,quando em um dos ensaios, o presidente da escola anunciou que iria presentear os
sambistas com fantasias gratuitas, mas devido a presses internas de integrantes, queafirmavam que a escola passava por dificuldades financeiras, a diretoria voltou atrse desistiu de custear integralmente as fantasias da ala da comunidade.
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O fato de existir um aumento da presena fsica de
brancos na direo, no justificaria, por si s, uma mudana
substancial na agremiao, visto que, os diretores tm longa vivncia
dentro do mundo do samba7 e passaram por outras funes dentro da
agremiao, logo, tiveram que se adaptar s normas e se subordinar a
um padro de relaes sociais vigentes no Vai-Vai.
2.2 Setor de Produo Musical
2.2.1- Ala dos Compositores
A ala de compositores pode ser considerado o atelier
potico da escola. Responsveis pela traduo de um tema em letra e
melodia, os compositores cantam o enredo, confeccionando os hinos
anuais da escola.
A ala ganha maior notoriedade no perodo de escolha do
samba enredo. A partir do momento em que a diretoria, juntamente
7 Na definio de Leopoldi: (...) O mundo do samba circunscreve num conjunto de
relaes sociais estruturadas sobre a valorizao de um gnero musical, ou, maisespecificamente, sobre o contato intenso e contnuo que seus agentes estabelecemcom ele. Jos Svio LEOPOLDI, Petrpolis, Vozes, 1978, p. 42.
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com o carnavalesco, decide qual ser o tema enredo, a ala dos
compositores mobilizada. Diversas parcerias so formadas, que
podem incluir, dois, trs ou mais parceiros, com a incumbncia de
compor o samba enredo de acordo com os pressupostos do
carnavalesco.
Aps a definio do samba enredo vencedor, a ala de
compositores novamente se rene, agora com a funo de fazer com
que a escola aprenda o samba. A estratgia utilizada a repetio
exaustiva do samba enredo nos ensaios e festas.
Nos ensaios gerais, a ala dos compositores, juntamente
com a ala da harmonia, acompanha os desfilantes com intuito de evitar
que o samba atravesse.8
O ingresso na ala dos compositores est vinculado
produo musical do candidato, ou seja, necessrio possuir
composies de autoria prpria, ou ter sambas gravados. O pretendente
ser avaliado pelo chefe da ala que decidir por sua incluso.
8 (...) fundamental para o desempenho de uma escola, que todas as alas cantemsimultaneamente o samba. Atravessar um samba, isto , a perda da sincronia do
canto por parte das alas, falha grave de harmonia (...). Maria Laura Viveiros deCastro CAVALCANTI, Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, Rio de Janeiro,Funarte; UFRJ, 1995, p. 125.
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O critrio tcnico no o nico adotado, o candidato
precisa ter boas relaes sociais e conhecimento das regras que
ordenam a convivncia dentro da escola.9
A estrutura hierrquica da ala no muito complexa, e
no oferece muitas oportunidades em termos de mobilidade. Existe um
chefe de ala, que, em 1997, foi substitudo por uma comisso
composta por trs integrantes, responsvel por coordenar as reunies e
servir como representante junto s outras alas e diretoria da escola.
Os outros integrantes da ala esto situados em um mesmo plano
hierrquico.
Apesar de no proporcionar uma mobilidade interna, a
ala de compositores pode servir como meio de ascenso individual aos
componentes, graas a um dos mais recentes fenmenos do mercado
fonogrfico: o pagode. Denominao dada anteriormente, a um grupo
de pessoas que se reuniam em bares, para cantar e fazer uma
batucada, atualmente, ganhou novo sentido, subgnero do samba e,
muitas vezes, confundido com ele, o pagode deixou de ser apenas uma
9 Washington da Mangueira, um dos autores do samba enredo vencedor do carnaval97, por no pertencer escola, precisou se aliar a Wilma Correia, que j fazia parteda ala de compositores, para poder participar do processo de seleo do samba enredoe ainda assim, relata que enfrentou resistncias dentro da escola: (...) Num primeiroinstante, houve uma certa rejeio (...) houve essa repulso por parte de alguns
componentes, mas no decorrer do trabalho que ns tivemos, ns procuramos deixar
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opo de socializao dos moradores da periferia, ganhou espao na
mdia e invadiu as casas noturnas freqentadas pela classe mdia
paulistana.10
Para o integrante da ala, vencer um concurso de samba
enredo implica em auferir ganhos financeiros com os direitos autorais
atravs da venda do CD das escolas de samba e dos prmios pagos pela
prpria escola, afora o espao que obtm junto aos meios de
comunicao, projetando-o para alm do mundo do samba. Desta
maneira, o compositor vencedor soma pontos no seu currculo que
funcionar como um facilitador junto a gravadoras e emissoras de rdio
para um futuro investimento na carreira artstica.
Formada por uma grande parte de negros e mestios (os
brancos so minoria), a ala dos compositores goza de grande prestgio
junto agremiao, principalmente por ser uma atividade que exige
uma capacidade criativa e conhecimento musical, mesmo que esse
saber no seja um saber formal. Os compositores, em especial os
autores do samba enredo vencedor das eliminatrias, so muito
bem claro para esses componentes, que a princpio rejeitavam nosso trabalho, que anossa inteno era colaborar(...)10 Alguns nmeros podem dar a dimenso deste fenmeno mercadolgico: o grupo SPra Contrariar, vendeu 2,5 milhes de cpias de um nico CD, em apenas 9 meses, o
grupo cobra aproximadamente 45.000 dlares de cach por apresentao. Outroconjunto de sucesso, o Katinguele, atingiu a marca de mais de 1,3 milhes de cpiascom os seus trs primeiros trabalhos (Folha da Tarde, 01/02/1998).
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procurados dentro da escola, recebem o cumprimento de vrios
integrantes e so tratados de forma respeitosa por toda a agremiao.
2.2.2 - A Bateria
Considerada o corao da escola, a bateria
responsvel pela parte rtmica do desfile.
Com o seu pulsar, anima os componentes e levanta a
torcida na arquibancada. Sua importncia to crucial no desfile
carnavalesco que conta como um quesito exclusivo. Quando existe
empate entre duas escolas, a nota obtida pela bateria que definir a
campe.
A bateria vista pelos sambistas como um cone de
diferenciao entre as escolas de samba, uma batida especfica d o
carter inconfundvel a cada agremiao. Distinguir as diversas
baterias pela batida em um desfile carnavalesco, no tarefa fcil para
os no iniciados no mundo do samba. O ritmo acelerado faz com que
haja uma grande semelhana entre elas, no entanto, os sambistas
conseguem distingui-las quando soam os primeiros acordes.
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A bateria uma ala tcnica da escola e, como ocorre com
a ala dos compositores, existe uma seleo para o ingresso.
O processo de seleo j elimina, previamente, os no
iniciados. O objetivo manter dentro da agremiao, um espao
reservado para aqueles que convivem no mundo do samba, j que a
escola no se prope formar novos ritmistas, como afirma um dos
componentes:
(...) Aqui no Vai-Vai o que eu acho errado que se voc chegar: Tadeu(mestre de bateria) eu quero desfilar na bateria. Ele vai te perguntar: o
que voc toca?. Voc vai falar: eu no toco nada. Ele vai falar: voc novai desfilar.(...) Esse o nico mal da bateria do Vai-Vai, voc tem que chegar
sabendo. Saber tocar pelo menos, voc tem que saber feijo, com arroz, sesouber feijo com arroz, o pessoal te pe no auge(...)
A seleo um rito de incorporao11, pois os candidatos
so avaliados pelo mestre de bateria ou por um dos seus auxiliares. O
processo tem incio quando um dos ritmistas veterano, faz uma
demonstrao com a batida adotada pela bateria, o novato tem a
incumbncia de reproduzi-la.
11 Van GENNEP, em The Rites of Passage, Chicago, University of Chicago, 1960,constatou que a vida humana marcada por uma srie de passagens, por exemplo:de uma idade a outra,e cada mudana de estgio marcada por atos especiais. Oautor elabora uma taxionomia dos ritos de passagens, que so divididos em ritos de
separao, transio e incorporao. Os ritos de incorporao marcam o ingresso deum indivduo a determinado subgrupo, mas essa integrao nem sempre aconteceprontamente, sendo marcada por uma fase de transio.
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O candidato no avaliado apenas pela sua competncia
tcnica, o seu estilo tambm demonstrar o quanto domina as tcnicas
do mundo do samba: a forma como segura o instrumento e a postura
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