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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO
LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL
POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES
PATERNO-FILIAIS
Rio de Janeiro
2007
10
JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO
LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL
POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES
PATERNO-FILIAIS
Dissertação apresentada à Universidade Estácio de Sá como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin
Rio de Janeiro
2007
11
JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO
LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS
Dissertação apresentada à Universidade Estácio de Sá como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
12
A meus pais, Hélio e Maria José, por seu afeto sem limite e
a Gabriela, por quem transborda o meu.
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Fachin, que com sua enorme paciência e boa vontade, me auxiliou na busca pela luz que abriu o caminho para que este estudo pudesse se concretizar, sempre disposto a corrigir meus passos, analisando textos escuros e clareando-os, principalmente através da sua disposição para ouvir e orientar, com conhecimento e capacidade impressionante para organizar idéias. Sem a sua colaboração este estudo não teria ocorrido.
Aos demais Professores do Curso de Mestrado em Direito pelo
empréstimo de seus conhecimentos, sua atenção e dedicação, e aos funcionários da Secretaria, em especial ao Fábio e ao Paulo Roberto, sempre dispostos a ajudar, dando aquela força necessária para continuarmos em frente.
Muito obrigada.
14
RESUMO
Este estudo objetivou trazer à tona a discussão sobre a falta de afeto por abandono nas relações
paterno-filiais, analisando os limites e as possibilidades da indenização pelo dano moral porventura
ocasionado por este abandono, possibilitando que profissionais do direito que atuam na área, com uma
visão civil-constitucional, em especial do direito de família, pudessem, embasados, sobretudo nos
princípios constitucionais, tendo como corolário o princípio da dignidade humana, buscar a tutela do
interesse da pessoa humana, resguardando o melhor interesse daquelas pessoas em desenvolvimento,
crianças e adolescentes. A reflexão sobre a família em sua travessia, em que o afeto se vislumbra
como elemento estrutural da pessoa humana, deixando a verdade biológica de ser absoluta para ser
relativa, atingindo as “famílias do afeto” o mesmo patamar das “famílias de sangue”, dos deveres
oriundos destas relações familiares, bem como da certeza de que a proteção da pessoa humana é a
principal preocupação do ordenamento jurídico moderno, toma o direito, portanto, como instrumento
por excelência indispensável para a sua promoção. Procura-se com a idéia da repersonalização do
direito, com a publicização em especial do Direito de Família e a autorização da intervenção estatal
em suas relações a fim de atender ao melhor interesse da criança e do adolescente, pessoa em
formação, autorizar, ainda, a reparação civil do dano moral causado pela falta de afeto paterno ou
materno, ante o descumprimento do dever legal de convivência e a lesão à dignidade do filho. Ausente
qualquer pretensão de esgotar o estudo, tampouco de tomá-lo como verdade absoluta, neste trabalho,
procura-se trazer alguns pontos que possibilitem este novo caminho.
Palavras-chave: Abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Princípios constitucionais. Dignidade da pessoa humana. Dano moral.
15
ABSTRACT
It was this study’s goal to discuss the lack of affection by abandonment in parent-children
relationships, analyzing the limits and possibilities of indemnity for the pain and suffering caused by
this abandonment, allowing the law professionals that work in the field, with a civil-constitutional
vision, specially of family law, to search — based above all on the constitutional principles, and
having as a corollary the principle of human dignity — the guardianship for the person’s interests,
thus protecting the best interests for these people in development, children and teenagers. The
reflection on the family in its course, in which affection is seen as a structural element of the human
being, the biological truth here becoming relative instead of absolute, the “families of affection” being
at the same level of the “families of blood”, by the duties derived from these family relations, as well
as by the certainty that the human being’s protection is the main for the modern legal system, takes the
law, therefore, as a quintessential tool for its promotion. With concern the notion of the law’s
repersonalization, with the publicization of the Family Law and the permit for State intervention in its
relations, in order to serve the child’s and teenager’s interests, it also aims to authorize the civil
reparation of the pain and suffering caused by lack of parental affection, as a result of the non-
fulfillment of the legal duty of living together and injury to the child’s dignity. Without any
aspirations as to exhaust the topic, or to take it as an absolute truth, the present work considers a few
points to make this new way possible.
Keywords: Affective abandonment in the relations paternal-branch offices. Principles
constitutional. Dignity of the person human being. Pain and suffering.
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................1
0
TÍTULO I - A TRAVESSIA DA “FAMÍLIA DE SANGUE” À
“FAMÍLIA DO
AFETO”.......................................................................................13
TÍTULO II – FAMÍLIA, SOCIEDADE E ESTADO: AUTONOMIA E
INTERVENÇÃO.....................................................................................................6
3
TÍTULO III - AUSÊNCIA DO AFETO E O DANO MORAL
SANCIONATÓRIO................................................................................................7
6
CONCLUSÃO.......................................................................................................12
8
REFERÊNCIAS....................................................................................................13
1
ANEXO..................................................................................................................13
9
ÍNDICE...................................................................................................................14
3
17
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar a importância do afeto nas relações
familiares, em especial entre pais e filhos, como elemento estrutural para a formação da
pessoa humana.
A par desta importância, passa-se à análise das relações familiares à luz da
principiologia constitucional, com a reconstrução do Direito Civil, em especial do Direito
de Família, e sua visão personalista, tendo a família como realidade sociológica.
Aliada a esta idéia da família como realidade sociológica, traz-se a relevância do
afeto nas famílias recompostas, nas quais aquele se verifica presente como remédio para as
incertezas do cotidiano, tornando certa, inclusive, a realidade da verdade social a despeito
da verdade biológica.
Estuda-se o afeto, unido aos deveres oriundos das relações paterno-filiais, sejam
elas biológicas ou sociais, juntamente com a nova função social da família, de proteção da
pessoa humana, não se falando mais em proteção à família pela família, mas sim dos seres
humanos que a integram, como constitutivo de vínculos familiares.
A família como realidade pluralista, em sua travessia da família de sangue à
família do afeto, tem asseverado aquele sentimento como estrutural da pessoa humana em
formação.
Dentro da perspectiva de que a relação paterno-filial estabelecida deve ser objeto
de proteção estatal a fim de garantir a estruturação da pessoa humana, e que o abandono
afetivo se caracteriza como transgressão aos direitos e deveres inerentes à condição de pai
e filho, admitida a dignidade da pessoa humana como valor supremo perseguido pelo
ordenamento jurídico, impõe-se a tutela destes direitos visando o melhor interesse da
criança e do adolescente diretamente envolvido.
Oxigenado o Direito Civil com os princípios constitucionais, capitaneados pela
cláusula geral de tutela da pessoa e pelo princípio da solidariedade social, passa-se à
discussão a respeito do ressarcimento da vítima da falta de afeto.
A inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos morais
consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os direitos da
personalidade, por não serem patrimoniais, encontram excelente campo de aplicação nos
danos morais, que têm a mesma natureza não-patrimonial.
18
Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, aquilo que é
inato à pessoa e deve ser tutelado pelo direito.
Os princípios constitucionais, como normas, desempenham a função de dar
fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática
normativa. Sendo normas, tornam-se as normas supremas do ordenamento, servindo de
pautas ou critérios para a avaliação de todos os conteúdos constitucionais e
infraconstitucionais. As normas das normas.
A operacionalização da preponderância de um dos princípios se dá por meio da
técnica da ponderação dos princípios. A demarcação de forças entre um princípio e outro
não fica adstrita ao entender do operador do princípio envolvido no tema, levando-se a
cabo a interpretação, fundamentada nos valores humanos e jurídicos já pacificados pelo
tempo e pela história.
A ponderação dos interesses contrapostos, sem perder de vista os direitos da
personalidade envolvidos, o princípio da dignidade da pessoa humana e as violações a
estes direitos que evidenciam os danos morais indenizáveis, deverá nortear as decisões e
posições em relação ao tema, necessitando ser devidamente fundamentadas.
A ausência de afeto nas relações paterno-filiais e, conseqüentemente, a
caracterização de possível negligência causada pelo abandono, esta geradora do dano
moral e os seus limites e possibilidades se configuram em complexo problema.
Diante de problema tão complexo, instigante e relevante, do ponto de vista
humano, pergunta-se: esse princípio constitucional pode fundamentar a responsabilização
da falta de afeto? Cumpre adiantar que a doutrina e a jurisprudência divergem sobre o
tema, não havendo pacificação sobre o assunto.
Assim, objetiva-se analisar as relações familiares, identificando os deveres e
direitos advindos da relação paterno-filial e suas conseqüências, dentre elas, aqui em
especial, o dano moral e seu ressarcimento, analisando a posição jurisprudencial e
doutrinária a respeito do tema.
As relações de afeto estão intimamente ligadas à figura dos novos direitos, em
todas as suas vertentes, ante as atuais versões jurídicas da família e seus efeitos, direitos e
deveres, quer no que diz respeito às relações familiares socioafetivas, as oriundas da
biotecnologia, assim como entre os velhos dilemas e seus novos paradigmas.
19
Sob esse enfoque, a presente investigação, situada na linha de pesquisa dos “Novos
Direitos” do curso de Mestrado da Universidade Estácio de Sá, pretende subsidiar
reflexões e as atividades profissionais daqueles que se defrontam com o dilema resultante
do progresso das relações familiares e seus efeitos, assim como a crescente demanda em
relação ao dano moral, com a análise dos princípios constitucionais envolvidos e suas
ponderações, com o fim de traçar possíveis caminhos para solução dos casos concretos,
direcionados pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Os sujeitos destas relações devem ter conhecimento das vertentes de seus atos, a
fim de conscientizar tanto pais quanto filhos das conseqüências destes e da importância do
afeto nessas relações.
A pesquisa utilizada para alcançar tal objetivo foi a do tipo documental e as fontes
dos dados foram constituídas de legislação, jurisprudência e doutrina. A legislação
pesquisada será essencialmente a brasileira. Quanto à jurisprudência, limitou-se também
aos tribunais brasileiros, os dos Estados e o Superior Tribunal de Justiça.
A doutrina e a jurisprudência utilizadas foram aquelas específicas do direito de
família, do direito das obrigações e do direito civil-constitucional, já que se faz uma
ligação entre os dois ramos do direito civil, norteados pela doutrina constitucional, ante a
relevância dos princípios constitucionais, verdadeiras normas vinculativas, com sua
eficácia jurídica direta.
O estudo se limita a abordar o cabimento do ressarcimento por possível lesão à
dignidade da pessoa humana do filho, em especial no que diz respeito à falta de
convivência com o pai ou a mãe, com a falta de afeto, portanto, dano moral causado nas
relações familiares em conseqüência dos efeitos, direitos e deveres advindos da relação
paterno-filial, segundo a doutrina e a jurisprudência.
20
I – A TRAVESSIA DA FAMÍLIA DE SANGUE À FAMÍLIA DO AFETO
1 O afeto como elemento essencial à estruturação da pessoa humana
O ser humano busca incessantemente a felicidade. No anseio de encontrá-la se
prende e desprende de relações, objetos, sonhos, num transcorrer de caminhos sombrios ou
iluminados, em que o afeto encontra lugar como um dos mais preciosos sentimentos.
As relações fundadas no afeto tendem a ser aquelas mais sadias, cujos vínculos são
mais fortes e difíceis de desatrelar. Tempero das relações humanas, o afeto tem o dom de
remediar, inclusive, aquilo que já se tinha como irremediável.
Este tempero, o afeto, sentimento dos mais puros e inerentes ao ser humano, por
vezes se evapora na busca insana e desordenada pela felicidade. A idéia contemporânea
deste encontro, a qualquer preço, muitas vezes acaba por trazer infelicidade.
Nas relações humanas em que são geradas outras pessoas, sejam elas fundadas ou
não no afeto, novas relações se formam e, novamente, o afeto não deve faltar, isto porque
é sabido, em especial pela psicologia, que o afeto é essencial para a formação da pessoa
humana.
A liberalidade em relação a tão importante sentimento não pode justificar que pais
se descuidem de filhos sob pena de inúmeras conseqüências.
Há que se questionar quanto à ponderação da liberdade do ser humano e a
responsabilidade por seus atos, ainda mais no que tange à prole, partindo-se da premissa
de que um ser humano não pede para vir ao mundo, sendo esta opção de seus genitores.
Na incessante procura pela felicidade, portanto, as pessoas não podem se descuidar
de seus filhos sob argumentação tão perene. Não se podem desculpar atitudes avessas ao
afeto paterno-filial por qualquer razão. Dinheiro, fama, novos amores, nada disso pode
substituir o afeto filial.
Pergunte-se a uma criança de sete anos, por exemplo, o que ela mais deseja: a
presença afetiva do pai ou da mãe, ou um punhado de dinheiro. Difícil que a opção
escolhida seja a segunda.
O afeto assume, com o Novo Código Civil brasileiro, importância para a
caracterização do parentesco, já que se admite no art. 1.593 que o parentesco é natural ou
21
civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem, donde se percebe a intenção
do legislador em autorizar a definição do parentesco a critérios abertos.
Da mesma forma, o afeto, matéria-prima elementar à estruturação da pessoa
humana, embutido nas relações familiares, que não encontra previsão jurídica expressa,
ante a incapacidade de se mensurar e legalizar, encontra lugar para fundamentar decisões
em busca do melhor interesse da criança, quando presente.1
Antes da filiação, o afeto, como a origem e a causa dos caminhos e descaminhos
das relações familiares, deve ser o denominador comum destas relações. Todavia, as
inúmeras relações humanas ricas em afeto, que fazem parte da nossa história e do nosso
cotidiano, nem sempre encontraram hipóteses positivadas ou previamente legalizadas.
Quando presente no transcorrer das relações familiares, o afeto tem o condão de
solucionar os descompassos, as pedras que teimam em aparecer nos caminhos das pessoas,
demonstrando que a solidariedade, o amor e a compreensão são os melhores remédios para
os dissabores inerentes ao ser humano.
Findo ou inexistente, as soluções não se avistam. A discórdia e a incompreensão
dão início às mazelas do cotidiano, se tornando relevantes as normas constitucionais e, em
especial o direito de família, a fim de garantir a proteção da pessoa humana, norteada pelo
princípio da dignidade.2
Assim, nas relações entre seres humanos, maiores e capazes, que se unem e
desunem, que se relacionam esporadicamente ou com regularidade, o afeto e sua falta
podem trazer conseqüências maravilhosas ou desastrosas. 1 Identificando a importância do afeto nas relações familiares, assim decidiu o STJ: “Família. Guarda de filhos. 1. Assentado o acórdão recorrido na prova dos autos que indica já estarem as filhas na guarda do pai, integradas ao convívio familiar e gozando de afeto, a modificação da guarda pode ser prejudicial às filhas, no cenário desenhado nos autos. 2. Recurso especial não conhecido”. (grifo nosso, Resp. 27.346/SP – 3ª Turma – j. 18.03.2004 – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito) No mesmo sentido: “Guarda de menor. Busca e apreensão. Direito dos pais verdadeiros. Interesse do menor. 1. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 6°, comanda que o intérprete deve levar em consideração os fins sociais a que ela se destina, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. É bem o caso destes autos. Aos pais, com ampla liberdade de visitação, está dada a oportunidade de promoverem a transferência da guarda sem maiores transtornos ou prejuízos para o filho, de maneira espontânea, criando laços afetivos, estimulando a convivência com o irmão natural e mostrando compreensão, tolerância, conquistando sem ruptura brusca o coração do filho gerado, e, com isso, ampliando os afetos e tornando natural o retorno ao seio da família natural. A qualquer tempo isso pode ser feito, posto que mantida a guarda, nesse momento, com a tia, sem perda do poder familiar, que não está aqui envolvido. 2. Recurso especial não conhecido”. (grifo nosso, Resp. 518562/RJ – 3ª Turma – j. 15.09.2005 – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito). 2 GRISARD FILHO, Waldir. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.64.
22
A família, como lugar privilegiado para a comunhão de afeto e afirmação da
dignidade humana, tem em especial na relação paterno-filial o instrumento para a
realização do ser humano.
A ausência de afeto nas relações entre pais pode gerar conseqüências catastróficas,
quando tem efeito espelhado nas crianças e nos adolescentes, aos quais deve-se garantir
proteção integral.
O afeto, essencial à formação da integridade psíquica, pode causar dano à
personalidade humana quando em falta, já que resulta na sua má-formação, na sua má-
estruturação.
Por sua vez, a proteção integral assegurada à criança e ao adolescente se insere nos
deveres oriundos da relação entre pais e filhos, sendo que, ainda que não haja previsão
legal ao direito de afeto, este se vislumbra naturalmente.
A afeição, o amor e a dedicação que se deve ter em relação ao filho são, antes de
mais nada, essenciais à preservação da espécie humana.
Ante a evolução das relações familiares, estando a família moderna assentada nas
bases do afeto e da solidariedade, e o desenvolvimento de seus membros sendo sua função
social, merecem tutela não somente as relações familiares matrimonializadas, mas todas
aquelas em que se comunga a relação afetiva.
As relações paterno-filiais se constroem com afeto, sendo este revelado no
comportamento daqueles que concedem atenção, cuidado e carinho no tratamento público
e familiar, com afeto paternal, estruturando o vínculo da paternidade, seja ele biológico ou
não.
Portanto, o afeto se consagra como essencial à constituição da própria filiação, o
que leva, inclusive, o legislador constituinte a extirpar as desigualdades entre os filhos,
reconhecendo nitidamente a filiação oriunda do vínculo civil, além do vínculo biológico.3
Base da relação familiar, a manifestação fática do afeto é necessária para que se
possa afirmar a paternidade. A filiação, portanto, como realidade jurídica, somente se
estabelece quando há o afeto unindo pais e filhos.
3 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.21.
23
Dentro da concepção pluralista da família, em que não há um conceito fechado do
que seja família, corroborado pelo texto constitucional que enumera em numerus apertus
as entidades familiares, o afeto se torna essencial, inclusive, no sentido de se identificar
relações que possam ser consideradas como tal, ou seja, como relações familiares.
Neste diapasão, as filiações decorrentes das famílias monoparentais deverão ser
analisadas de maneira especial, sendo inúmeros os fatores que podem resultar nesta
monoparentalidade, advenha ela do ideal de vida do pai ou da mãe, ou em suas produções
independentes, ou da adoção por uma só pessoa, ou da inseminação artificial ou natural,
ou do fim de uma união fracassada, ou de uma gravidez indesejada, enfim, infindáveis
razões podem levar à constituição deste tipo de família monoparental, na qual somente um
genitor é conhecido e se quer conhecer.
Nestas relações familiares monoparentais, a relação paterno-filial se estabelece
somente em relação a um de seus membros, seja o pai ou a mãe. Questiona-se se o afeto
recebido pelo filho por esta única figura será suficiente para suprir a presença da outra
figura na relação triangular, o que, entretanto, não é objeto do presente estudo.
Nas famílias monoparentais por opção, também chamadas de famílias unilineares,
nas quais as crianças descendem de uma só linha, ou seja, são vinculadas à família do pai
ou da mãe; não há que se pretender responsabilizar aquele terceiro que sequer tem
conhecimento de sua ausência e da falta de seu afeto.
A ausência na relação triangular comumente estabelecida poderá ser questionável
quanto ao direito de o filho ter sua identidade estabelecida, assim como o direito a ter pai e
mãe, ou seja, estabelecida a paternidade e a maternidade.
Por outro lado, há a hipótese daquelas filiações estabelecidas, em que se tem
conhecimento de quem seja o outro genitor, figurando este no registro de nascimento do
filho, que, contudo, não convive com o mesmo, caracterizando a ausência do afeto e as
circunstâncias que interessam tratar aqui.
A ausência afetiva de uma das personagens da história familiar, gerando a ausência
das funções familiares, é considerada como uma das causas da crescente violência e
24
delinqüência juvenil, que assola principalmente as camadas mais desfavorecidas da
sociedade.4
Na sociedade brasileira, em especial, na maioria das vezes, a ausência se verifica
na figura paterna, conseqüência das transformações sociais que tiveram início com a
entrada da mulher no mercado de trabalho, afastando-a, assim, das funções
exclusivamente familiares, permitindo, por sua vez, que ela pudesse assumir ambos os
papéis, já que o papel de provedor não se encontra mais necessariamente nas mãos do
varão.5
O declínio do poder do pai se verifica com o advento da secularização e da
democracia, não somente em razão da limitação de sua autoridade sobre os filhos com a
maioridade, mas do deslocamento do poder do pai para a mãe.6
A ausência das funções de pai pode acarretar aos filhos gravíssimos problemas
sendo a figura paterna necessária na relação familiar. O filho precisa desta figura, mesmo
que não seja daquele que o gerou, mas de alguém que a represente, para contribuir com
seu crescimento psíquico, fazendo parte da natureza humana o desejo de ser amado e
protegido.7
Da mesma forma, no caso das separações e divórcios, a falta de afeição e os
desencontros havidos entre os pais acabam, muitas vezes, impondo a ausência do afeto
daquele pai ou mãe que se distancia dos filhos, em razão do rompimento do vínculo
familiar.
4 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Renovar: Rio de Janeiro, 2000. p.582. 5 Neste sentido, afirma Marcos Alves da Silva: “A re-significação dos papéis do pai e da mãe em relação aos filhos impõe-se como tarefa inadiável, quando se considera o número cada vez mais expresso de famílias que se estabelecem de forma monoparental. A prevalecer o modelo iconizado de família, objeto da teoria freudiana, continuaremos a estereotipar a feminilidade e a pensar como patológicas todas as famílias monoparentais, visto que, em sua expressiva maioria, especialmente se considerada a realidade brasileira, são constituídas por mãe e filho, sendo o genitor um ausente.” SILVA, Marcos Alves da. Do Pátrio Poder à Autoridade Parental. Renovar: Rio de Janeiro, 2002. p.84. 6 Philippe Julien, no estudo sobre a feminilidade: “Com o advento da secularização e da democracia, o declínio do pai se manifesta de outro modo: ele não concerne somente à autoridade do pai sobre seus filhos e filhas, tornados legalmente livres no dia da sua maioridade. O declínio vem do deslocamento do poder do pai para a mãe.” JULIEN, Philippe. A Feminilidade Velada. tradução Celso Pereira de Almeida. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora. 2006, p.19. 7 Philippe Julien, ob. cit., p.29.
25
A falta do afeto, essencial à formação da pessoa humana, caracteriza verdadeiro
descumprimento do dever inerente à filiação e lesão à dignidade da pessoa humana,
princípio constitucionalmente assegurado.
A importância do afeto é tanta, diante do que foi visto, que o mesmo é capaz de
constituir vínculos familiares, no dizer irretocável de Fachin: “Emerge, daí, a noção de que
o afeto solidário inerente às relações familiares tem força constitutiva de vínculos
familiares.”8
A forma que a família irá adotar, as regras que irão servir aos membros desta
família, e a todas as relações oriundas dela, não terão relevância jurídica, desde que
tenham como valor de referência a pessoa, isto é, desde que sejam famílias fundadas na
concepção eudemonista, respeitando-se seu valor na vida interna e tendo como parâmetro
o fato de que o afeto é essencial à sua formação, já que nela se assenta a idéia da
comunhão de afetos, de vida e de história.
1.1 O afeto e as famílias recompostas
Partindo da idéia de que a paternidade se estabelece quando o afeto une pais e
filhos, havendo ou não o vínculo biológico, reconhece-se a filiação advinda ou não do
vínculo de sangue, restando, portanto, reconhecido o valor do afeto.
A igualdade entre os filhos reconhecida pela Constituição da República de 1988
estabelece de maneira definitiva a importância do afeto como elemento imprescindível
para a construção da paternidade, importância esta já manifestada pela doutrina e pela
jurisprudência.9
8 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.263. 9 Anuncia FACHIN: “A jurisprudência pátria reconhece o valor jurídico do afeto como primordial para o estabelecimento da filiação. Exemplo disso é o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, cuja ementa transcrevemos em parte, em que, em processo de adoção, são reconhecidos os vínculos afetivos entre adotante e adotado como aptos a afastar a maternidade de quem, sem embargo do vínculo de sangue, não manteve relação de afeto com o menor.” FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.22. “Negatória de paternidade. Adoção à brasileira. Confronto entre a verdade biológica e a sócio-afetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. 1. Ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/ STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da denominada adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por
26
A existência da verdade socioafetiva e sua importância em grau de igualdade com a
verdade biológica, por vezes capaz de afastar esta última, determina que a realidade
jurídica da filiação não se funde somente nestes laços de sangue, sendo o afeto peça-chave
nas uniões entre pais e filhos.
O vínculo sangüíneo pode não existir, mas o tratamento afetuoso entre pais e
filhos, o carinho, a manutenção econômica daquele, os ensinamentos e instruções
garantidas aos filhos, a vontade de se projetar na outra pessoa, a vontade de ser
reconhecido como filho daquele pai, assim como a fama e a notoriedade da referida
filiação têm o condão de consagrar a posse de estado de filho.10
Esta posse de estado de filho pode se observar, portanto, quando haja ou não o
vínculo biológico. Nos casos em que não exista a relação sanguínea, se faz necessária a
vontade manifesta daquele que não a possui, como é o caso das adoções e das crianças
nascidas por inseminação artificial heteróloga, assim como nas relações existentes nas
famílias reconstituídas.
O instituto da adoção, no qual se reconhece a filiação fundada na vontade e no
afeto acima dos vínculos de sangue, se estabelece como a espécie mais importante das
relações socioafetivas do ordenamento jurídico.
Todavia, esta não é a única espécie em que se verifica a existência da verdadeira
posse de estado de filho. Outras existem sem que, contudo, se estabeleça o vínculo
jurídico, vínculo civil, como aquelas relações oriundas das famílias recompostas.
O exercício da paternidade nestas relações por muitas vezes substitui a paternidade
biológica, estabelecendo o vínculo afetivo capaz de superar a ausência daquele outro,
contribuindo eficazmente com a formação da pessoa humana.
quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.” (TJPR, Ap. Cív. 108.417-9, Rel. Des. Accácio Cambi, julg. 12.12.2001, in Boletim IBDFAM, n° 13, jan.-fev. 2002). 10 Ainda, FACHIN, sobre a posse de estado de filho: “Esse aspecto social, com o reconhecimento do afeto como fundante das relações parentais, aliado a um elemento volitivo daí decorrente, torna inafastável a consagração da posse do estado de filho como instituto apto a permitir o acolhimento da filiação como fato socioafetivo.” FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.24.
27
A família recomposta ou reconstituída seria aquela formada por um pai ou uma
mãe, seus filhos e um terceiro, padrastos e madrastas, oriundo do desfazimento da família
originária, quer pela morte, pelo divórcio, fim da união estável, ou por qualquer outra
hipótese em que o vínculo original de um dos membros não se verifica no nascimento da
criança.11
O eixo central da família reconstituída, então, seria designar os integrantes desta
relação. A designação de madrastas e padrastos tem uma conotação preconceituosa,
advinda da relação que se fazia historicamente com as personagens dos contos infantis,
sempre relacionados a seres maus e indesejáveis na relação filial.12
Ultrapassada a questão terminológica, se verifica, no cotidiano, que estes padrastos
e madrastas, inúmeras vezes, ocupam a função dos pais biológicos, suprindo muitas destas
vezes a falta do afeto porventura impossibilitado ou negado.
Partindo da conclusão de que pais são os que amam e dedicam a vida à criança e ao
adolescente que recebe afeto, atenção, conforto, independentemente do vínculo de sangue,
se estaria diante, nestes casos, de verdadeira paternidade e maternidade, em que a ligação
advém deste afeto e da solidariedade.13
As famílias recompostas, verdadeiras relações socioafetivas, fundadas, desta
forma, no afeto, promovem plenamente a pessoa humana, sendo capazes de exercer a
função social da família, muitas vezes de maneira bem mais eficaz do que aquelas relações
fundadas estritamente no vínculo sangüíneo ou civil, em que os vínculos de filiação
preestabelecidos não logram bom êxito na formação da pessoa humana.
11 Waldyr Grisard conceitua: “Família reconstituída é a estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm um ou vários filhos de uma relação anterior. Numa formulação mais sintética, é a família na qual ao menos um dos adultos é um padrasto ou uma madrasta. Ou, que exista ao menos um filho de uma união anterior de um dos pais.” GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.83/84. 12 GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.83/84. 13 Assevera Belmiro Welter: “A filiação socioafetiva é fruto do ideal da paternidade e da maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociais, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, conectando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, da solidariedade, subscrevendo a declaração do estado de filho afetivo. Pais são aqueles que amam e dedicam sua vida a uma criança ou adolescente, que recebe afeto, atenção, conforto, enfim, um porto seguro, cujo vínculo nem a lei e nem o sangue garantem.” WELTER, Belmiro Pedro. Inconstitucionalidade do Processo de Adoção Judicial in Temas Atuais de Direito e Processo de Família. coord. Cristiano Chaves de Farias. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2004, p.21.
28
2 Evolução da Família no Direito Brasileiro
A história da família é longa, não havendo como se traçar uma linha reta para
delinear suas características. A família romana se caracterizava por aquele grupo de
pessoas que estava sob o patria potestas, era aquela em que o ascendente comum vivo
mais velho exercia sua autoridade sobre todos os descendentes não emancipados, esposa e
mulheres casadas.
Em sua concepção jurídica atual, a família se afasta da concepção romanista, já que
aquela tinha preocupação com a perpetuação dos cultos domésticos, fazendo com que o
pater familias exercesse amplo poder sobre esposa e filhos, mantendo a unidade do grupo
familiar como única forma de garantir a adoração aos antepassados comuns, exercendo sua
autoridade sobre todos os seus descendentes não-emancipados, sobre sua esposa e sobre as
mulheres casadas com seus descendentes, o que ora não se observa, já que a família passa
a ter importância muito mais como lugar onde se encontra proteção para seus membros, ou
seja, o que se procura hoje é tutelar as pessoas que integram a família.
A evolução da família romana ocorreu progressivamente, restringindo-se à
autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos. O pater perdeu o
direito de vida e morte que exercia sobre os filhos e a mulher e não mais se admitiu a
venda dos filhos pelo pai; a mãe poderia substituir o pater e ficar com a guarda dos
filhos.14
Do conceito do poder exercido pelo pater, ou seja, da autoridade masculina na
entidade familiar originou-se o pátrio poder na organização do Direito de Família,
atribuindo-se funções ao “chefe de família”. A família romana, com seu pater familia, é
seguida pelos ordenamentos jurídicos romanos-germânicos, entre eles o direito brasileiro.
A família brasileira, exemplo da família ocidental, baseia-se, durante séculos, na figura
soberana e divina do pai.
A codificação que se deu a partir do séc. XIX tratou de regular a família, no
contexto da sociedade patriarcal, predominantemente rural. A mulher não detinha os
mesmos direitos do homem, sendo o marido considerado o chefe da sociedade conjugal,
bem ao modo da família romana. A influência religiosa contribuiu de maneira significativa
14 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p.09 e segs.
29
para a incorporação dos cânones conservadores, mantendo-se a indissolubilidade do
casamento, a capitis diminutio e a distinção legal de filiação legítima e ilegítima.15
A progressiva restrição do pater familia do direito romano, com maior autonomia à
mulher e aos filhos, também ocorreu no direito brasileiro.
O século XIX descortina uma série de transformações na sociedade brasileira,
decorrentes da consolidação do capitalismo; do incremento de uma vida urbana que
oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e de sua
mentalidade. Junto com estas transformações se verifica o nascimento de uma nova
mulher nas relações da chamada família burguesa, em que se valoriza a intimidade e a
maternidade. O processo de urbanização do país requer a boa reputação financeira e a
articulação da parentela como forma de proteção ao mundo externo.16
O casamento concedia às mulheres de famílias ricas e burguesas, no início do
século XIX, nova função: a de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social,
tendo-se a idéia de mulher como mãe dedicada e atenciosa, ideal da família burguesa, o
que já demonstra a transformação da família em família nuclear.
A gradativa polarização da vida social em torno da família nuclear se observa com
o processo de enclausuramento. Termina aquela família extensa para se passar à visão de
família encerrada no “lar doce lar”, pai, mãe e filhos. Este processo se difunde do alto para
baixo na pirâmide social, sendo a criança uma peça-chave. A nova visão da família
tornou-se brasão da burguesia.17
Por outro lado, as famílias pobres do final do século XIX se organizam de forma
diferente, com casamentos precoces, aumento de uniões consensuais, alta taxa dos filhos
“bastardos”, e considerada por alguns como resultado de reações que vem de encontro às
normas e aos valores da sociedade dominante.
Na Europa, a tendência burguesa de sanear a rua, retirando dela os mendigos e
órfãos, adotando o modelo nuclear, teve implantação difícil e somente se verifica
consolidada no início do século XX. A exemplo dessa dificuldade européia, a família
15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Novo Código Civil. Texto comparado. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2003. p. 17 e segs. 16 D’INCA, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa .in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 223. 17 FONSECA, Cláudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 520.
30
brasileira não abraça imediatamente o modelo familiar moderno, o nuclear, havendo uma
enorme variedade de formas familiares no Brasil.
No Brasil, em especial entre as famílias mais pobres, esta alteração não se verifica
de imediato, nas favelas e bairros mais humildes há o hábito de abrir as portas aos
agregados, tornando extensa a família, conforme conclui Cláudia Fonseca, em seu artigo
“Ser Mulher, Mãe e Pobre”, em suas reflexões finais. Segundo a autora, há provas de que
a urbanização não traz a nuclearização inevitável da família; muitas vezes ao contrário, as
redes de parentesco são fortalecidas.18
Atendendo aos reclames da sociedade em transformação, de maneira mais intensa a
partir da segunda metade do século XX, verificou-se significativa evolução na legislação
brasileira, bem como na doutrina e jurisprudência.
A Lei 4.121 de 27/8/1962, também conhecida como Estatuto da Mulher Casada,
representa um grande passo, pondo fim à incapacidade relativa da mulher casada.
Todavia, somente com o advento da Constituição da República de 1988,
estabeleceu-se a isonomia de tratamento entre o homem e a mulher no âmbito familiar,
bem como a igualdade jurídica de todos os filhos, independentemente da origem da
filiação.
A Constituição passa a disciplinar a família brasileira, atendendo aos anseios
sociais, modernizando o sentido e adequando-se à realidade vivida na contemporaneidade.
Assim, as relações socioafetivas que dão origem aos casamentos e às uniões
estáveis têm seus efeitos regidos por ela, pelo Código Civil e pelas leis extravagantes.
A Constituição de 1988 traz ainda mudança significativa no que concerne à relação
entre pais e filhos, invertendo substancialmente o espectro de direitos e deveres na relação
paterno-filial. A criança passa a ser titular de amplos direitos que devem ser observados
com prioridade absoluta.
Outro grande passo do legislador constitucional foi o de reconhecer como entidade
familiar as uniões estáveis e as chamadas famílias monoparentais, em particular quando se
18 A autora aduz que muitos pesquisadores no Brasil têm ressaltado dinâmicas particulares que fogem do modelo nuclear. Salienta, inclusive, o fato de que os pesquisadores devem se prevenir das conclusões fáceis, já que comparar a história da família brasileira com a européia não é tarefa simples, sendo que a comparação se torna realmente útil quando usada para ressaltar as diferenças e, por conseguinte, as especificidades históricas de cada contexto. FONSECA, Cláudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 520.
31
recorda que a família, inicialmente, era definida amplamente como o conjunto de pessoas
que descendem de um mesmo tronco ancestral, compreendendo os ascendentes,
descendentes e colaterais e mais os ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge, que
se denominam parentes por afinidade. Por sua vez, em sentido restrito, definia-se como o
grupo formado por pais e filhos.
A despatrimonialização do Direito Civil, como nova tendência normativa-cultural,
confere ênfase à noção de família centrada na dignidade da pessoa humana e na
solidariedade social. A tendência atual, esposada pela Constituição, orienta-se no sentido
de consagrar o status familiae às uniões não formalizadas pelo casamento e ao núcleo
formado por um dos pais e seus descendentes.
Vale ressaltar que a legislação freqüentemente amplia o conceito de família,
considerando como tal o grupo formado pelas pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob
a autoridade de um titular.
No mundo ocidental, vislumbra-se cada vez mais o desfazimento da idéia de poder
e supremacia de um membro, igualando os direitos familiares. Na esteira desta nova
ordem da igualdade dos membros familiares, o Código Civil de 2002 adotou o “poder
familiar” como sucedâneo do “pátrio poder”, tratado no Código Civil de 1916.
A expressão pátrio poder, com todas as conseqüências que lhe são inerentes, já não
se coaduna com as situações e vínculos que se estabelecem na sociedade moderna. Em
outras palavras; as novas formas de família não admitem, nem se coadunam com a
centralização da autoridade familiar na pessoa do homem. Na prática, de há muito se
observa tendência majoritária de famílias que são formadas por mães, separadas ou
solteiras, e seus filhos, não se justificando a manutenção das disposições que deixavam ao
alvedrio do pai as decisões a respeito dos filhos.
Na verdade, o poder familiar constitui verdadeiro ofício, uma situação de direito-
dever, sendo conseqüência da parentalidade.19
Por sua vez, a alteração constitucional em relação à igualdade de direitos dos
filhos, havidos ou não do casamento ou por adoção, das mais importantes no direito de
19 “O poder familiar (potesta genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses.” Massimo Bianca, italiano. 10.259/01, 10.455/02 e 10.741/03 apud LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado, XVI, São Paulo: Atlas, 2003. p.188.
32
família brasileiro, vem constitucionalizar a situação fática vedando qualquer tipo de
discriminação.
A presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, que vigorou absoluta durante
séculos, incompatibiliza-se com o princípio da igualdade, por isso, na atualidade, admite-
se a presunção juris tantum, já que acolhe prova em contrário.
Todavia, a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant se utiliza até que seja
questionada, evitando-se a incerteza da paternidade. Assim, nos termos do Código Civil de
2002, presumem-se concebidos na constância do casamento, os filhos gerados 180 dias,
pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, os nascidos nos 300 dias
subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, separação, nulidade, anulação,
dissolução; os havidos por fecundação artificial homóloga ou por inseminação artificial
heteróloga, desde que com prévia autorização do marido, havidos a qualquer tempo dos
embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.20
O simples fato de a Constituição vedar a discriminação entre os filhos, por si só,
não é capaz de afastar tal discriminação, nem tornar simples as relações entre pais e filhos.
Ultrapassada a visão romanista de que o homem é o chefe de família, tratando o
poder familiar não somente como um poder, mas um misto de direitos e deveres, em que
se constituem e mantêm vivos os laços que unem pais e filhos, passa-se a identificar a
efetividade dos verdadeiros laços que usualmente estão subjacentes no âmbito dessa união.
De fato, a condição que transforma as relações entre pessoas, ligadas ou não pela
identidade biológica, em pais e filhos, é a existência do afeto. Analisando subjetivamente
essas famílias, há que se identificar o afeto para que se tenha estado de pai e estado de
filho. Todavia, esse caminho não é tão simples de percorrer como pode parecer.
Seja constituída de pais biológicos e seus filhos, pai e filhos, mãe e filhos, pais
adotivos e seus filhos, pais e filhos advindos de procriação artificial, enfim, qualquer que
seja a família, o diferencial não é mais o título documental, o registro do nascimento, mas
sim a relação de afeto, já que o chamado poder familiar deve ser exercido com afeição.
Na nova visão da família surgem inúmeras dúvidas no que diz respeito às
conseqüências das relações entre seus sujeitos, tais como: limitar os direitos e deveres,
como identificar quem são os sujeitos, quais estão excluídos e como se excluem.
20 Art. 1.597 e incisos do Código Civil.
33
À primeira vista, pode-se afirmar que os laços que unem pais e filhos, numa via de
mão-dupla, ainda que de etnias, sociedades e religiões diversas, conduzem ao
enriquecimento da vida afetivo-emocional desses sujeitos, de tal maneira que os poderes-
deveres são concedidos não somente no interesse dos filhos, mas também dos pais. Nessa
acepção, pelo menos do ponto de vista teórico e global, o interesse dos pais está
definitivamente condicionado ao interesse dos filhos, ou seja, da sua realização e
desenvolvimento como pessoa.
Verificam-se, desta forma, inúmeras alterações no transcorrer da evolução do
conceito familiar, no direito brasileiro, até a maturação constitucional de 1988, com a
adoção da entidade familiar como instituição protegida pelo Estado, o que, todavia, não
significa que a mesma se encontre estanque e impassível a novas e profundas
modificações.
As transformações sociológicas determinam o novo estilo de vida, repercutindo
intensamente na organização da família. Desta forma, as vertentes observadas pelo direito
positivo, inúmeras vezes, não conseguem acompanhar a velocidade das mesmas, assim
como não acompanhamos a velocidade da luz.
A transferência da função educacional, o enfraquecimento da influência da Igreja, a
transformação da família extensa em nuclear, a fuga das conseqüências jurídicas do
casamento, o movimento de libertação feminina ocasionaram transformações legislativas,
desde a igualdade da mulher casada até a inseminação artificial.
A expansão do que se entende por família ou relações familiares restou elevada a
patamar constitucional, acompanhando de perto a tendência mundial, já que esta idéia não
é só do direito, mas também da sociologia, da psicologia, da antropologia, ante a evidência
de que a família não se restringia às uniões advindas do casamento.21
No dizer de Fachin, a família, como realidade sociológica que é, antecede o direito,
não podendo restar aprisionada a um conceito fechado e, ainda, que: “Essa família como
21 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do Numerus Clausus in Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 1.
34
realidade sociológica é plural, como plurais são as aspirações afetivas que instituem o
fenômeno familiar.”22
De suma importância a comunhão dos dois desígnios, quais sejam, a proteção da
família e a dignidade da pessoa humana, ambos constitucionalmente remediados. A
preservação da família, em qualquer das suas modalidades, é indispensável para que se
realize o princípio da dignidade humana.23
A convergência dos institutos é tanta que se tem um como fim imediato do outro,
já que a família é essencial para o desenvolvimento da personalidade humana. A formação
da relação familiar se faz necessária para a construção da pessoa e para a concretização do
projeto de felicidade.24
Na evolução das relações familiares na realidade brasileira, a Constituição da
República de 1988 põe a salvo a família advinda do casamento, da união estável, as
monoparentais e as formadas por qualquer dos pais e seus descendentes.
A família hoje se caracteriza pelo grupo de pessoas unidas para o desenvolvimento
da pessoa humana, fundadas pelo afeto, pela auto-ajuda, e pela solidariedade.
No dizer de Gustavo Tepedino, “À família, no direito positivo brasileiro, é
atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importante
papel na promoção da dignidade humana”. E ainda sinaliza para a importância do
cumprimento deste papel, inclusive na questão da tutela jurídica, acrescentando, “merecerá
tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova
a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes.”25
22 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.261. 23 Idem. “A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o lócus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana”, p. 7. 24 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Constitucional à Família (ou Famílias Sociológicas versus Famílias Reconhecidas pelo Direito: um Bosquejo para uma Aproximação Conceitual à Luz da Legalidade Constitucional). in Temas Atuais de Direito e Processo de Família.Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2004, p.21. 25 TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada em matrimônio in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 326.
35
A felicidade individual dos membros da família passa a ser o ideal a ser perseguido
pela nova família, em que são primordiais as relações fundadas no afeto, na solidariedade
e na cooperação, proclamando esta idéia, a diretriz da nova família, a família
eudemonista.26
Alargado o conceito de família pela Constituição, restou afastado o modelo da
família romanista, patriarcal e hierarquizado, donde a transformação, através do processo
social, faz com que se considere família todas aquelas relações que se fundem no afeto,
ainda que este se desdobre no desafeto futuro, ou seja, desde que seja ela a forma de
relação social constitutiva da espécie humana.
Daí a importância de se analisar as relações parentais fundadas no afeto e estas sim
capazes de gerar deveres e direitos. A simples herança genética já demonstrou,
historicamente, não ser suficiente para caracterizar a paternidade e a maternidade no
sentido da afeição, como se observa claramente no instituto da adoção, em que se
compreende como filho, sem qualquer discriminação, o adotado, que não possui qualquer
semelhança genética com os adotantes.
Partindo desta idéia ainda tem-se a pedra de toque nas relações familiares, qual seja
a vedação à discriminação dos filhos sob pena de inconstitucionalidade. Todavia, é sabido
que não basta a inconstitucionalidade, por si só, para exterminar as díspares situações
ocorridas no dia-a-dia, que afastam a aparente simplicidade das relações decorrentes da
filiação, pai e filho, mãe e filho, para as inúmeras hipóteses em que não se configuram
relações de afeto, este sim o verdadeiro fio condutor das relações parentais.
Acertada e irreparável a idéia de que a paternidade não é um dado, e que ela se
constrói no exercício do cotidiano.27 A paternidade, considerada como verdade
sociológica, é aquela que se apresenta como fruto do nascimento emocional muito mais do
que o fisiológico, ou seja, mais no afeto do que no DNA.28
26 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.21. “eudemonista. (...)Partidário do eudemonismo. eudemonismo. (...)Doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, i.e., que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade.” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. 2ª edição 27 FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade – Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte. Del Rey.1996, p. 28. 28 Idem, p. 37.
36
O andar, a passos largos, da sociedade tem que ser acompanhado de perto pelas
instituições, sob pena de cheirar a mofo e não perceber as lacunas deixadas pelo
legislador. Para isso, o papel criador que o juiz exerce no caso concreto, uma vez que o
mesmo não poderá deixar de existir, sob o argumento da ausência de norma, devendo
observar-se os critérios do art. 4°, da Lei de Introdução ao Código Civil, e os princípios
constitucionais, que funcionam como normas.
O direito de família é indubitavelmente a área em que mais se constata mudança,
vivenciando a civilização humana a reformulação do conceito de família, fundado agora
em valores e princípios diversos de outrora.
A transformação da família, tornando-se pluralista, local privilegiado para a
comunhão de afetos e afirmação da dignidade humana, identifica bem a travessia da
“família de sangue” à “família do afeto”, em que a relação paterno-filial encontra, nos
princípios constitucionais, parâmetros de aplicabilidade e efetividade, em busca da
afirmação e do desenvolvimento da pessoa humana.
2.1 A Função Social Da Família
No caminhar da evolução das relações familiares, se fazendo necessária a
regularização das diversas espécies de entidades familiares, os direitos e deveres destas
relações, assim como a função social desta nova família, o art. 227 da Constituição da
República, inserido no Capítulo “Da Família, Da Criança, Do Adolescente e Do Idoso”,
preconiza, como dever da família, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de salvaguardá-los de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
A Constituição da República de 1988 enumera os deveres da família, alinhavando
em seus dispositivos toda a função social da entidade fundada nas relações de afeto, nas
relações de índole pessoal, voltada para o desenvolvimento da pessoa humana.
37
A apresentação das regras constitucionais pertinentes à família demonstra, por si
só, as transformações sofridas pela mais antiga forma de comunidade humana, que sempre
se firmou como instituição social.
As influências históricas alteram os fundamentos da própria família. A vigência
dos novos valores, juntamente com o desenvolvimento científico, atingindo limites que
não se sonhavam alcançar, muda o foco da preocupação social.
Nesse diapasão, a ciência jurídica deixa de se preocupar com a proteção
patrimonial para se preocupar com a pessoa humana, o que se vislumbra assegurado pelo
direito positivo brasileiro, capitaneado pela principiologia constitucional.
A proteção à família ali assegurada se destina à proteção máxima de seus
membros, visando o seu mais importante papel de assegurar a promoção da dignidade
humana.
A garantia patrimonial se vê sepultada como fundamento do direito de família, já
que o que importa é a tutela jurídica da pessoa humana, em busca da máxima de que o
homem nasce para ser feliz, direito decorrente do princípio da dignidade humana.
Nesse sentido se manifesta Gustavo Tepedino, para quem a família é a formação
social privilegiada para o desenvolvimento da pessoa humana, tendo a mesma deixado de
ser uma sociedade hierarquizada para se tornar uma sociedade democrática.29
A tutela dos interesses dos membros da família constitui o pressuposto legitimador
da entidade familiar, o novo prisma que inspira a sociedade contemporânea se define na
sociedade familiar, a família passa a ter como escopo precípuo a solidariedade social e
demais condições necessárias para o aperfeiçoamento e progresso da pessoa humana que
compõem a família.30
29 TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 395. 30 Assim Pietro Perlingieri: “O interesse dessa perspectiva de estudo afunda as suas raízes na particularidade da ‘formação social’ família, na sua função constitucionalmente relevante e na peculiar solidariedade que caracteriza as suas vicissitudes internas, inspiradas na igual dignidade moral e jurídica dos seus componentes e à unidade familiar, entendida como comunhão – ainda que não mais atual – de sentimentos e de afetos, isto é de vida e de história.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 179.
38
A proteção da pessoa humana é o fundamento da tutela do núcleo familiar, não
havendo mais proteção à família pela família, senão em virtude dos seres humanos que a
integram. Estabelecida, portanto, a concepção eudemonista da família. 31
A concepção moderna da família, construída sob este novo aspecto da realização
da espécie humana, se identifica no Decreto 99.710/90, a Convenção Internacional sobre
os Direitos da Criança – ONU/1989, em que se conceitua a família como “núcleo
fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus
membros e, em particular, às crianças”.
Diante disto, se verifica que a função da família contemporânea se sobrepõe à
visão patrimonialista de outrora. Reafirmando a idéia da solidariedade social e do afeto, a
família não pode ser concebida como uma pessoa jurídica, sujeito de direitos autônomos.
A titularidade do direito pertence a cada membro do grupo familiar, a família é no dizer de
Pietro Perlingieri “formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao
desenvolvimento da personalidade de seus participantes”.32
Nesta compreensão, a busca da dignidade humana sobrepuja valores meramente
patrimoniais, asseverando, Cristiano Chaves de Farias, ser necessário compreender a
família como sistema democrático, substituindo a feição centralizadora e patriarcal por um
espaço aberto ao diálogo entre os seus membros, almejando a confiança recíproca.33
Donde conclui-se que incabível o desnivelamento da proteção da pessoa humana,
sob o argumento de proteger a instituição familiar, sob pena de se violar o princípio
constitucional da dignidade humana. 34
A nova visão da família, em que o objetivo primordial é promover e desenvolver a
personalidade de seus membros, traz à tona a verdadeira função social da família e seus
31 Ensina Fachin: “Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.” FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família. Elementos Críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 31/32. 32 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 178. 33 FARIAS, Cristiano Chaves de. A Separação Judicial à Luz do Garantismo Constitucional: A Afirmação da Dignidade Humana como um réquiem para a culpa na Dissolução do Casamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.15. 34 Ibdem, op. cit. p. 16.
39
verdadeiros fundamentos, valorizando as funções afetivas de seus membros,
transformando o núcleo familiar em refúgio aos dissabores do dia-a-dia.
O indivíduo, assim, não existe mais para a família, esta é que existe para o seu
desenvolvimento pessoal, em busca da felicidade.35
A sociedade busca na intimidade familiar o sossego e a ajuda dos seus pares,
avançando para a compreensão socioafetiva das relações, deixando de lado os laços
meramente financeiros, em busca do ideal de felicidade, no qual devem preponderar a
solidariedade e o afeto.
Nesta linha de raciocínio, toda e qualquer forma de violação da dignidade do
homem, ainda que sob o pretexto de garantia da proteção familiar, é descabida, já que
inconstitucional, e para isso retorna-se aos artigos da Constituição da República de 1988
referentes à família.
A leitura do artigo 226 ao 230 revela que o centro da tutela constitucional se
transfere do casamento para as relações familiares, quer as decorrentes daquele instituto,
quer as decorrentes das demais feições familiares; e que a proteção daquela família
tradicional, reprodutora dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à
tutela da pessoa humana, essencialmente, segundo Gustavo Tepedino, “funcionalizada à
dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da
personalidade dos filhos”.
Até porque a própria Constituição salvaguarda, como princípio fundamental da
República, inciso III do art. 1°, a dignidade da pessoa humana, impedindo a superposição
de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de
instituição como a família, ou seja, instituição com status constitucional.36
A dignidade da pessoa humana, tida como princípio constitucional fundamental,
colocada, portanto, no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o lugar
apropriado para seu enraizamento e desenvolvimento.37
35 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.32. 36 TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-constitucional das Relações Familiares in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. pp. 349/350. 37 Neste sentido Guilherme Calmon:“As relações familiares, portanto, passaram a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí
40
Nesta ordem de idéias, ensina Pietro Perlingieri, em síntese, quando se refere à
família como formação social, que exprimir a problemática dos direitos fundamentais na
família como se esta fosse um corpo autônomo, supra-ordenado e potencialmente
repressivo corresponde a um enfoque inadequado, uma vez que o valor central de
referência na família é sempre a pessoa, conforme fundamentado no art. 2° da
Constituição da República Italiana.38
Entendendo-se a família como instrumento do desenvolvimento da pessoa humana,
ou seja, que o indivíduo não existe mais para a família e sim o inverso, preponderando a
igualdade e a solidariedade entre seus membros, a função social da família consistiria,
assim, na realização da pessoa humana, com a viabilização da sua construção e o
desenvolvimento de suas melhores potencialidades.
2.2 O Dever de Solidariedade
Construído o vínculo por meio do afeto nas relações familiares, surge o dever de
solidariedade que tem por finalidade a própria função social da família, qual seja, a tutela
de seus membros, em busca da formação da pessoa humana.
A solidariedade entre os sujeitos que integram a relação a familiar é, antes de se
considerar dever, verdadeira característica desta relação.
As relações familiares, em qualquer espécie, são tuteladas como espaço onde os
integrantes da família possam satisfazer suas aspirações afetivas e no qual prevaleça o
valor da solidariedade. Por sua vez, a solidariedade se apresenta como fundamento maior
da proteção jurídica aos integrantes da família. Findas as relações de afeto que deram
origem às relações familiares, persiste o dever de solidariedade, já que o mesmo é
instrumental à dignidade da pessoa humana.39
O dever de solidariedade se justifica ainda mais no que tange à instrumentalidade
dos filhos oriundos das relações familiares. a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente da sua espécie.” GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva civil-constitucional in Problemas de direito civil-constitucional.Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 520. 38 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 247. 39 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.261.
41
3 Os Direitos e Deveres da Relação Paterno-Filial. O Poder Familiar
Capitaneada pela nova feição familiar, como teia de solidariedade, afeto e ética,
onde se verifica a valorização definitiva e inescondível da pessoa humana, a família tem
que assumir um papel funcionalizado, servindo como ambiente propício para a promoção
e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, valores,
esperanças, que caracterizem a base para o alcance da felicidade.40
A relação familiar constitui o lugar onde seus membros obtêm a formação social, o
local de onde se espera a personificação do ser humano. A família proporciona os
parâmetros éticos e culturais para os indivíduos, sendo requisito para o processo de
humanização da pessoa.
É aquele lugar em que filhos e filhas encontram referências, garantia de laços
sólidos, célula de humanidade no seio do inumano universal.
A fim de proporcionar a promoção e a realização da personalidade dos membros da
relação familiar, mister se faz observar uma série de deveres e direitos inerentes à família,
seja ela monoparental, oriunda do casamento, da união estável, recomposta ou de qualquer
que seja a espécie.
O direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária deve
ser garantido pela família a seus membros, além de caber à família o dever de
salvaguardá-los da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, estando, tais direitos e deveres, devidamente enumerados na Constituição da
República (art. 227, caput).
Na família, a pessoa é acolhida e acolhe, devendo prevalecer o sentimento de amor.
É na família que o ser humano deve experimentar a positividade de pertencer a um lar,
muito bem parafraseado por Cristiano Chaves de Farias, ao conceber como lar a
abreviação da expressão lugar de afeto e respeito.41
40 FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit. p. 20/24. 41 FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit. p. 24.
42
De fato, a família deve ser o lugar em que a pessoa encontra o aconchego para as
relações de afeto, fundamento este original e final das relações familiares, para que se
busque ali, naquele ambiente propício, a realização dos direitos garantidos
constitucionalmente.
Nas relações familiares tem-se como fator preponderante o vínculo da filiação, que
desencadeia os demais vínculos de parentesco, sendo certo que interessa por ora analisar
os direitos e deveres oriundos da filiação.
A Constituição da República de 1988 tratou de dar ao direito da criança e do
adolescente uma configuração especial. A elevação destes direitos ao nível de norma
constitucional promove a integral proteção aos mesmos, sobrelevando a intervenção
estatal e a responsabilidade familiar e da sociedade com seus entes.
Além dos já citados direitos relacionados no caput do art. 227 da Constituição da
República, a regra esculpida no §6°, do mesmo artigo, é de suma importância para os
avanços da sociedade. Naquele momento, o legislador constituinte, diante dos reclames da
sociedade, identifica a discriminação entre os filhos havidos fora do casamento,
adulterinos ou incestuosos, reconhecendo-lhes os mesmos direitos e qualificações,
vedando qualquer tipo de designação discriminatória referente à filiação.
Ao lado dos direitos e deveres garantidos constitucionalmente, o legislador
ordinário enumera os decorrentes da relação filial, no intuito, inclusive, de garantir a
observância destes no âmbito familiar.
No que tange à igualdade entre os filhos havidos ou não da relação de casamento,
ou por adoção, ao contrário do antigo diploma civilista, o Código Civil repete a regra
constitucional, conforme se verifica no Capítulo II, do Livro IV, artigo 1.596, no qual se lê
que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação.
A repersonalização das regras de direito privado se faz notar no dispositivo em tela
já que se verifica a observância da adequação, sobretudo, ao relevante e inafastável
princípio constitucional da igualdade, passando o novo Código Civil a proteger de maneira
igual todos os membros da família, primando, assim, pela proteção à pessoa.
43
A valorização do homem como centro dos interesses, norteados pelo princípio da
igualdade e da dignidade humana, é o novo paradigma do Direito Civil.42
Assim, a desigualdade entre os filhos, outra faceta da família patriarcal, é
rechaçada do ordenamento jurídico brasileiro, contribuindo a norma ordinária para
reforçar sua natureza de fundamento, assentado no princípio da igualdade, não havendo
que se permitir qualquer tratamento desigual em relação aos filhos, independentemente de
sua origem, quer no que tange às relações pessoais, quer nas patrimoniais.43
Os direitos e deveres oriundos da filiação não se esgotam; os mandamentos
constitucionais, contudo, fundamentam o poder familiar ao qual se sujeita o filho enquanto
menor.
O Código Civil adota a denominação “poder de família” para tratar da autoridade
parental. O poder familiar, ou autoridade parental como preferem algumas legislações
estrangeiras, como a francesa44 e a americana45, se traduz na autoridade pessoal e
patrimonial atribuída aos pais sobre os filhos menores, no exclusivo interesse destes
últimos. Está compreendido no poder familiar o conjunto de direitos e deveres dos pais em
relação aos filhos menores, crianças e adolescentes, tendo por finalidade seus interesses.
Este poder visa garantir a proteção constitucional preestabelecida. O interesse dos
pais está definitivamente condicionado ao interesse dos filhos, ou seja, ao interesse da
realização deste como pessoa em desenvolvimento.
A lei civil manteve praticamente intacta a legislação referente ao pátrio poder,
trazendo poucas inovações, inclusive quanto à nomenclatura, já que a maioria dos 42 Neste sentido, adverte Fachin: “Tal acepção acerca do direito foi possível devido à compreensão de que o sistema jurídico deve pautar-se nas normas constitucionais que, por sua natureza principiológica, fornecem o instrumento ideal para que um direito poroso e sensível à realidade se perfaça. Eis a índole constitucionalista do Direito Civil contemporâneo que no campo da filiação se expressa (aquele direito atinente ao vínculo de parentesco natural em linha reta de primeiro grau que se estabelece entre pais e filhos, ou ainda, entre os pais que os recebem como se os tivessem gerado), em especial com a interpretação de suas normas à luz do princípio da igualdade.” FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 47. 43 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.40. 44 “Art. 371-1 do Código Civil francês: (L. nº 20002-305 du 4 mars 2002) L’ autorité parentale est un ensemble de droits et de devoirs ayant pour finalité l’intérêt de l’enfant. Elle appartient aux père et mere jusqu’à la majorité ou l’emancipation de l’enfant pour le protéger dans sa sécurité, sa santé et as moralité, pour assurer son éducation et permettre son développement, dans le respect du à sa personne. Les parents associent l’enfant aux décisions qui le concernent, selon son âge et son degree de maturité.” 45 KRAUSE, Harry D. Family law. St. Paul: West Publishing, 1991, p.191 in LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693.São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.40.
44
doutrinadores entende ter andado mal o legislador, uma vez que poderia ter sido adotada a
expressão autoridade parental ou familiar preferida pela legislação estrangeira.
A expressão adotada pelo legislador brasileiro, no entanto, tem que ser utilizada
com tal dimensão, a dimensão que se verifica na expressão autoridade parental, ou seja,
como exercício de função ou munus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade do
outro.
Como conseqüência da relação de filiação, o poder familiar é limitado, já que ao
Estado se reserva o controle sobre ele, devendo sempre ser exercido no interesse do
menor, entendido aqui, repita-se, mais como interesse existencial do que patrimonial.
No que tange às regras do Estatuto da Criança e do Adolescente referentes ao
poder familiar, estas continuam em vigor, não se vislumbrando qualquer antinomia entre
os dois textos legais, só tendo havido a derrogação do diploma legal no que tange à
expressão “pátrio poder”, agora substituída por “poder familiar”.
O poder familiar é abrangente a todas as entidades familiares e sempre será
exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe. A cada dever do filho
corresponde um direito do pai ou da mãe e vice-e-versa. A convivência dos pais não é pré-
requisito para a titularidade do poder familiar.
No exercício deste poder compete aos pais: dirigir-lhes a criação e educação; tê-los
em sua companhia e guarda; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
nomear-lhes tutor; representá-los até os 16 anos nos atos da vida civil e assisti-los após
esta idade; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios da idade e condição.46
46 “Art. 1.634 do Código Civil - Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.” “Artigo 22 do ECA - Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.”
45
A finalidade do poder familiar, conforme já salientado, é o interesse da criança e
do adolescente. Os pais não exercem poderes e competências privadas, mas direitos
vinculados a deveres, deveres estes cujos titulares são os filhos.
A evolução da formação da personalidade do menor se verifica a partir do
momento em que são cumpridos os deveres oriundos naturalmente da relação entre pais e
filhos, a integridade psíquica da pessoa humana, sua estruturação, está diretamente
interligada à compreensão do mister de ser pai, de ser mãe, sendo essencial o dever de
afeto.
A criação e a educação são direitos constitucionalmente assegurados pelo art. 205
da CR/8847, que poderão e deverão ser exercidas livremente, atendo-se sempre ao melhor
interesse da criança ou adolescente, havendo previsão legal expressa deste dever, no
sentido de que os pais devem matricular os filhos na rede regular de ensino, ECA, art.
5548, cujo descumprimento sujeita o responsável à pena de detenção de quinze dias a um
mês, caso praticado sem justa causa, caracterizado, ainda, o crime de abandono intelectual
do art. 246 do Código Penal.49
A educação dos filhos deve ser compreendida em sua noção mais ampla, incluindo
educação escolar, moral, política, profissional, a formação em geral do filho como pessoa
em desenvolvimento.
No dizer de Sílvio Rodrigues, é o dever principal que incumbe aos pais, “quem põe
filhos no mundo deve provê-los com os elementos materiais para a sua sobrevivência”,
fornecendo-lhes educação, de acordo com seus recursos, a fim de propiciar aos mesmos a
capacidade de ganhar a vida e ser útil à sociedade.50
47 “Art. 205 da CR - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 48 “Art. 55 do ECA - Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.” 49 “Art. 246 do Código Penal – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.” 50 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Direito de Família. Vol. 6, São Paulo: Saraiva, 2002. p. 403.
46
Da mesma forma, o abandono material que se insere no dever de sustento
indispensável à criação da criança e do adolescente caracteriza a conduta tipificada no art.
244 do Código Penal.51
O dever de obediência dos filhos tem, em contrapartida, o dever dos pais de não
utilizarem a autoridade parental em intuito que se afaste do interesse da criança e do
adolescente. Atitudes contrárias ao melhor interesse do menor poderão ser consideradas
abuso de autoridade, já que o poder familiar não é irrestrito.52
O abuso do poder familiar pode se verificar, inclusive, no que diz respeito a outro
poder-dever oriundo do instituto, o de exigir a prática de serviços próprios da idade e
condição. Tal fato chega a gerar desconforto na doutrina, já que a regra esculpida na lei
civil se afasta da Constituição, sendo até incompatível com ela, configurando a conduta
como exploração da vulnerabilidade dos filhos menores, verdadeiro abuso,
constitucionalmente rechaçado no § 4° do art. 227 da CR/88.53
A guarda e a companhia dos filhos se enquadram nos direitos e deveres dos pais,
cabendo a ambos exercê-las e buscá-las no caso de privação. A situação híbrida do poder
familiar se verifica nesta hipótese de maneira clara e cristalina, uma vez que é, ao mesmo
tempo, direito e dever do pai ter o filho em sua companhia e exercer a sua guarda.54
Ofício que é o poder familiar não permite seu livre exercício. A guarda e a
companhia dos filhos devem ser exercidas pelos pais, não cabendo a estes a subjetividade
da escolha. Há que ser cumprido este poder-dever a fim de que se observe o melhor
51 “Art. 244 do Código Penal – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.” 52 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 221. 53 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.211. 54 Desta forma, Perlingieri: “Uma situação híbrida que não pode ser reconduzida às situações subjetivas tradicionalmente definidas ativas e passivas é a potestà. À potesta dos pais (pátrio poder) [. . .] configuram situações denominadas potestà. Esta constitui um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever: como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los. O exercício da potestà não é livre, arbitrário, mas necessário no interesse de outrem ou, mais especificamente, no interesse de um terceiro ou da coletividade.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 129.
47
interesse da criança ou adolescente, não podendo este ficar ao alvedrio do arbítrio do pai
ou da mãe em tê-los em sua companhia ou ser seu guardião.
Da mesma forma que o descumprimento do dever de prover a educação dos filhos
menores, sem justa causa, caracteriza o abandono intelectual, deixar de ter o filho sob sua
guarda ou sob sua companhia também gera conseqüências.
O pai que deixa de conviver com o filho, entregando-o a terceiro, cuja companhia
sabe ou deveria saber, não ser a melhor para seus filhos, deixa de atender aos melhores
interesses da criança ou adolescente, incidindo nas penas do art. 245 do Código Penal55ou
até mesmo do art. 238 da Lei 8.069/9056, já que restaria caracterizado o crime de entrega
de filho menor à pessoa inidônea ou se adequaria à conduta típica daquele que promete ou
efetiva a entrega de filho a terceiro, mediante paga ou recompensa, hipótese daquele
último dispositivo legal.
Ainda que não se trate de conduta que se tipifique em qualquer dos tipos penais
anteriormente descritos, a mesma, por si só, se adequa àquela do art. 249 do Estatuto da
Criança e do Adolescente57, para a qual o legislador optou por apenar o infrator
pecuniariamente.
Na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo, o direito à companhia dos filhos tem como
contrapartida o direito dos filhos à companhia dos pais e à convivência familiar, direito
este constitucionalmente atribuído. 58
O direito dos pais de ter a guarda e a companhia dos filhos os permite a fixação do
domicílio, a vigilância, o direito de ir e vir, de se relacionar com terceiros, parentes ou não,
de organizar o cotidiano, todos estes exercidos em busca da formação da pessoa humana,
sempre visando o melhor interesse da criança e do adolescente, sem perder de vista que
em sendo ofício, não cabe ao titular do direito-dever exercê-lo a seu bel prazer.
55 “Art. 245 do C.P – Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.” 56 “Art. 238 do ECA – Promover ou efetivar entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa. Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.” 57 “Art. 249 do ECA – Descumprir dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio-poder ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.” 58 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.210.
48
Os deveres da família com os filhos, crianças e adolescentes, correspondem aos
diretos fundamentais destes, integrando os denominados direitos humanos.
Os deveres e direitos inerentes da relação entre pais e filhos, assim, visam garantir
que o filho esteja preparado para uma vida independente em sociedade, devendo, portanto,
ser garantida a aplicabilidade dos princípios constitucionais norteadores da manutenção da
dignidade da pessoa humana.
No intuito de garantir a eficácia da finalidade dos deveres e direitos inerentes à
relação paterno-filial, o direito à convivência saudável entre os mesmos se desenha como
de suma importância.
3.1 Do direito à convivência familiar
A convivência familiar é fundamental para o crescimento e a estruturação da
pessoa humana, garantida constitucionalmente, sendo reconhecido internacionalmente que
a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer
no seio da família, em ambiente de felicidade, amor e compreensão.
A criança e o adolescente têm o direito de viver com seus pais, desde que isto não
contrarie seus interesses, sendo certo que, no caso de pai e mãe não viverem juntos, quer
por conta da separação, quer por ausência de qualquer vínculo entre os mesmos, é dado ao
filho conviver com ambos e suas respectivas famílias.
Assim como é direito do pai ou da mãe a visitação de seus filhos, é direito dos
filhos serem visitados pelos mesmos, ou seja, estarem em sua companhia, concretizando o
direito-dever constitucional da convivência familiar.
Tal direito só deixa de existir no caso em que a convivência familiar com um de
seus genitores seja comprovadamente inadequada, contrariando os interesses da criança.
Caso contrário, mister se faz que haja tal convivência, podendo o pai ou a mãe que se vir
preterido de tal direito buscá-lo através da medida judicial cabível. Amparados no mesmo
paradigma constitucional estão os familiares que ensejam a possibilidade, por exemplo, de
os avós estarem em companhia de seus netos.
Neste sentido, com especial sensibilidade, se posiciona Paulo Luiz Netto Lôbo,
para quem o direito à companhia não exclui o direito do filho menor de estar em
49
companhia dos avós, constituindo, segundo o autor, a sua vedação verdadeiro abuso do
poder familiar.59
Este direito à convivência com os avós já se encontra consagrado, inclusive, na
jurisprudência pátria.60
Havendo a dissolução da sociedade conjugal ou da união estável, ou ainda em
sendo a prole advinda de qualquer outro tipo de relacionamento, família natural, biológica
ou consangüínea, ou que advenha do vínculo da adoção, o direito à convivência familiar
deve estar assegurado.61
O poder familiar é destinado a proteger o filho; os poderes e as prerrogativas são
conferidos aos pais a fim de facilitar o cumprimento do referido munus, não podendo
qualquer deles se abster de cumpri-los sob qualquer fundamento. O descumprimento só se
admitiria em caso de total impossibilidade, cominando-se ao mesmo a perda do poder
familiar, nos casos expressamente previstos na legislação correspondente.62
O abandono do filho, por si só, poderá causar a perda do poder familiar, o que se
dará por ato judicial. Ocorre que, nem sempre se verifica o abandono material gerador
desta perda, mas o abandono moral.
59 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do Poder Familiar. In Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey – IBDFAM, 2005. p. 158. 60 “Apelação Cível - Família - Regulamentação de visitas. - Admite-se que os avós paternos tenham direito à visitação dos netos, quando demonstrado o benefício aos menores quanto a esta convivência, em que se manifesta o afeto recíproco entre os avós e seus netos. Rejeição da preliminar. Improvimento do recurso” (Ap. Cív. 03.022/02 4ª Cam. Cív. Rel. Sidney Hartung). 61 Neste sentido, Rachel Pacheco Ribeiro de Souza: “Não raro, após o desenlace, os pais, e muitas vezes os próprios operadores do direito, esquecem-se de que, mesmo que a guarda seja exercida unilateralmente, o poder familiar cabe a ambos os genitores, casados ou não. É comum assistirmos a um verdadeiro vilipêndio da essência do poder familiar quando o guardião monopoliza em suas mãos as decisões que dizem respeito à vida dos filhos, recusando a participação do não-guardião nessa tarefa. O filho, já abalado pela separação dos pais, vê-se ainda mais prejudicado, diante do sentimento de vazio e de abandono causado pelo afastamento do não-guardião. A ruptura, embora dolorida para os filhos, poderia ser muito melhor vivenciada se os genitores continuassem a ser pais e mães, de forma efetiva, apesar da separação. O maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito, e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento deles fracassou. Os filhos são cruelmente penalizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar a morte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipo de relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura”. SOUZA, Raquel Pacheco Ribeiro de. A tirania do guardião. Disponível na Internet: http://www.ibdfam.com.br. Acesso em 23 de abril de 2007. 62 “Art. 1.638 do CC - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”
50
Na atualidade da sociedade brasileira, em que se depara, dia-a-dia, com a violência
e a miséria das ruas, há que se ressalvar o abandono material praticado pelas famílias de
baixa renda, nas quais crianças de tenra idade se vêem sujeitas à própria sorte no
desamparo das avenidas.
Não se trata de isentar de culpa os inúmeros pais e mães miseráveis da sociedade
brasileira; é que o abandono, muitas vezes, se origina do desamparo do Poder Público em
relação a estas famílias, em que prolifera o desemprego dos pais e, conseqüentemente, o
desamparo e a fome dos filhos, questão esta de enorme complexidade, da qual não se
pretende tratar neste trabalho.
É de se ressaltar que o abandono dos filhos, quando não adquire feições selvagens,
de certa forma é acobertado pela própria sociedade, sendo este um dado histórico.
Mencione-se, inclusive, o fato de que durante os séculos XVIII e XIX as Santas Casas do
Rio de Janeiro e de Salvador acolheram 50 mil enjeitados, havendo como formas de
auxílio aos abandonados, implementadas pelo governo, o patrocínio feito pelas câmaras às
“famílias criadeiras”, aquelas que acolhiam os enjeitados, e a “Roda dos Expostos”,
instaladas nas Santas Casas, que recebiam os abandonados através de um cilindro que unia
a rua ao interior da Casa de Misericórdia, sem que em qualquer das hipóteses houvesse a
instauração de inquéritos a fim de apurar a responsabilidade pelo abandono.63
O abandono, nestes casos, poderia ser visto como verdadeira forma paradoxal de se
proteger a criança, menos cruel que o infanticídio, uma vez que enjeitar o filho não
constituía crime, nem acarretava a perda do pátrio poder, podendo as mães recuperar o
filho abandonado na Roda ou entregue à “família criadeira”.64
Os abandonos deste gênero, ocorridos na atualidade, quando bebês ou crianças são
entregues ou deixados em hospitais, em orfanatos, instituições públicas ou privadas de
caridade, caso não se caracterizem como crimes graves65, não geram perquirição criminal,
63 VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 190/194. 64 Assinala Renato Pinto Venâncio que: “A existência de numerosas instituições destinadas a enjeitados revela, em certo sentido, uma atitude complacente das autoridades metropolitanas em relação ao abandono. O mesmo não podemos afirmar quando o assunto é infanticídio ou aborto. Considerados criminosos, eram tomados também como práticas heréticas e demoníacas.” VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. ob. cit. p. 204. 65 Exemplo que chocou a sociedade brasileira, tomando dimensão pela imprensa o do caso do “bebê de Pampulha”, bebê de dois meses resgatado com vida da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, em janeiro de 2006, tendo os bombeiros e as equipes de resgate sido chamadas por pessoas que viram uma mulher
51
apesar de serem punidos pela lei penal, sendo as crianças encaminhadas para instituições a
fim de serem adotadas, aguardando nos abrigos públicos a sorte que o destino lhes
prepara, muitos deles sobreviventes de uma catástrofe anunciada.
Nestas hipóteses, se faz necessária a efetivação das garantias constitucionais pelo
Estado, através das medidas protetivas ali asseguradas, como, por exemplo, a de prestação
de assistência social objetivando a proteção da família (art. 203, inciso I da CR), assim
como aquelas fundamentais, relacionadas no art. 5° da Constituição da República, sem as
quais se torna inviável a vida em sociedade, sob pena de tornar os cidadãos espectadores e
personagens do colapso social que se avizinha.
O que não se coaduna e não se deve admitir é que estes abandonos se verifiquem
entre as famílias constituídas de pais e mães estruturados, pessoas capazes de discernir e
cumprir com as conseqüências de terem gerado um filho.
A falta de convivência familiar deve ser rechaçada, buscando, cada personagem
desta relação, os caminhos que lhe forem abertos para remediar a situação, autorizando-se,
desta forma, a busca e apreensão de filho que se encontre em poder de terceiro, os direitos
de guarda e visitação, entre outras medidas processuais garantidoras dos direitos e deveres
dos pais.
O direito de ter filho e o direito do filho à convivência familiar haverá de ser
ponderado, a fim de que se solucionem as questões advindas dos conflitos emanados das
relações entre eles. Nesta ponderação, importante a observância do melhor interesse da
criança, já que este deve prevalecer sobre o interesse de qualquer outro envolvido na
querela.
3.2 O melhor interesse da criança
A criança, dada sua vulnerabilidade, necessita de cuidados e proteção especiais.
Esta concepção não existia na sociedade medieval, não havia a consciência da
particularidade que a distingue do adulto.
jogando a criança na lagoa, na altura do Museu de Arte da Pampulha, sendo o mesmo socorrido e levado a um hospital. Encontrada, a mãe foi presa, se referindo ao bebê como “essa droga de bebê” respondendo por crime de tentativa de homicídio junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
52
O século XIV descortina a distinção das mesmas para os adultos, o que se observa
até mesmo nas artes, segundo narrativa de Philippe Ariès,66 tendo a evolução da sociedade
dado às crianças trajes diferentes, concedendo particularidade aos infantes. Esta evolução,
anotada pelo citado autor, coincide com o instituto surgido na Inglaterra, de prerrogativa
de proteção de pessoas incapazes e de suas propriedades, pelo Rei e pela Coroa, o parens
patriae.67
O instituto resultou na proteção especial para crianças e loucos, havendo uma
conscientização da particularidade infantil, sendo que, na época em que surgiu, a criança
era considerada coisa pertencente ao pai.68
A preocupação da civilização com a criança, em razão do seu bem-estar e do futuro
das gerações evolui, e a criança passa a ser considerada como sujeito, tendo na Declaração
de Genebra, de 1924, sido indicado que a criança teria proteção especial. Na elaboração
das Declarações Universal e Internacional, além dos demais Tratados e Declarações de
seus direitos, restaram adotadas regras especiais de proteção às mesmas.
O Decreto n° 99.710/90 ratifica a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, realizada em 1989, pela ONU, ampliando a proteção antes conferida pela
Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, estabelecendo que todas as ações
relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas, tribunais,
autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o
interesse maior da criança.
As regras atinentes às crianças levam em conta as relevantes declarações e tratados
estabelecidos sobre os direitos humanos, os reafirmando. Na esteira do pensamento
mundial de que a criança ou adolescente, em virtude de sua falta de maturidade física e
psíquica, necessita desta proteção e dos cuidados especiais, a legislação pátria procura
salvaguardar seus interesses, fundada no princípio maior da dignidade da pessoa humana.
A Constituição da República, anterior ao encontro da ONU que deu ensejo ao
decreto supracitado, já trazia em seu corpo os direitos essenciais à pessoa humana, com
especial cuidado no que tange às crianças e adolescentes.
66 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Familiar. Trad. Dora Flaksman. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. p. 156. 67 PEREIRA, Tânia da Silva. O Melhor interesse da criança. in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.01. 68 PEREIRA, Tânia da Silva. Ibidem. p.102.
53
O art. 227 da Constituição trata de assegurar os direitos dos infantes e
adolescentes, apontando como responsáveis pelo implemento desses direitos, o Estado,
através dos programas sociais, como: saúde, educação, cultura, lazer e esporte; e a família,
terreno propício para o desenvolvimento da pessoa humana.
Posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como fundamento
de validade a Constituição, e editado após a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, trata do direito à convivência familiar de forma a que se atenda ao interesse da
criança ou adolescente, dando como certo o seu direito de ser criado e educado no seio de
sua família.
A legislação brasileira se refere ao maior interesse da criança, todavia este pode ser
entendido como o de melhor qualidade, uma vez que a orientação dos diplomas dos quais
provém é no sentido de atender ao interesse de melhor qualidade para a criança ou o
adolescente.69
A idéia atual de que a família possui, como função social, o desenvolvimento da
personalidade humana tem maior relevância em relação às crianças e aos adolescentes. A
família não é titular de um interesse separado e autônomo, devendo prevalecer o interesse
daqueles que pertencem a ela, em especial a criança.
Independentemente do fato de a criança ou de o adolescente se encontrar no seio
familiar, seus interesses devem ter maior relevância, sendo do conteúdo da função parental
o princípio da proteção destes interesses, diante da existência de um indivíduo em
formação.
Neste sentido, a lei civil disciplina regras sobre a guarda dos filhos, trazendo em
seu bojo a importância de se observar seu melhor interesse, optando por mantê-los sob a
guarda daqueles que demonstrem melhores condições de exercê-la, levando em conta,
inclusive, a relação de afeto existente entre os mesmos.
Da mesma forma, os deveres dos pais estão esculpidos nas regras do exercício do
poder familiar, no Código Civil, onde resta evidente a finalidade de realizá-los em
benefício do filho.
69 PEREIRA, Tânia da Silva. “O melhor interesse da criança” in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.06.
54
A ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a proteção
especial à infância e à adolescência, por parte da Constituição, as regras do ECA e do
Código Civil, incorporando ao ordenamento jurídico pátrio o melhor interesse da criança,
têm sido entendidas como consagração deste instituto e como princípio de caráter
normativo, evidenciando a necessidade de sua ponderação em relação aos demais
princípios constitucionais.70
Na escolha de opções em que se encontra em jogo o interesse da criança e o de
outra pessoa, este, diante de sua superioridade, deve prevalecer, se manifestando o melhor
interesse da criança, no momento da ponderação dos princípios como realização do
princípio da dignidade da pessoa humana. 71
Resta manifesta, assim, a prevalência do direito fundamental da criança e do
adolescente de atingirem a idade adulta, cercados de cuidados e garantias materiais e
morais adequadas, havendo que se nortear pelo melhor interesse da criança, a fim de
garantir sua proteção integral.
O princípio do melhor interesse da criança expresso no ordenamento brasileiro,
fundado que é na cláusula geral de dignidade da pessoa humana, se concretiza na análise
dos casos fáticos em que, diante das pretensões resistidas, deva prevalecer a superioridade
do interesse da criança ao interesse alheio, principalmente quando o interesse alheio for
meramente patrimonial e em especial de qualquer de seus genitores.
70 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do melhor interesse da criança. in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.06 71 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O princípio do melhor interesse da criança. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. coord. Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17.
55
4 A Repersonalização
4.1 Dos direitos da personalidade
A conceituação dos direitos da personalidade não é matéria pacífica entre a
doutrina, existindo controvérsias a respeito do tema, em especial no que diz respeito à
natureza e ao conteúdo, bem como quanto à tipicidade ou atipicidade de tais direitos.
Na questão da tipicidade e atipicidade, afirma-se, em síntese, que os direitos da
personalidade são típicos, isto é, previstos expressamente na legislação. Fora das hipóteses
expressamente previstas em lei (na Constituição, no Código Civil, nas demais leis), não
haveria direitos da personalidade.
Por sua vez, os adeptos da atipicidade dos direitos da personalidade entendem que
a garantia da tutela da dignidade da pessoa humana, como valor fundamental, permite
estender a tutela a situações não previstas em lei, já que seu conteúdo não se limitaria a
atender aos direitos previstos tipicamente pela Constituição e demais leis.72
Esta garantia à tutela da dignidade da pessoa afastaria de vez a idéia da tipicidade
dos direitos da personalidade, passando a se ter verdadeira cláusula geral de tutela da
pessoa, ante a presença do princípio fundamental da dignidade humana.73
Deixando-se de lado a enumeração taxativa dos direitos da personalidade, há a
discussão a respeito de serem estes pertencentes à categoria dos direitos subjetivos ou não,
também sem fundamento, segundo a orientação da doutrina moderna. Concluindo que a
personalidade humana não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas em uma
complexidade de situações que podem ou não configurar direito subjetivo; dentre elas os
poderes, os interesses legítimos, as pretensões, a autoridade parental, os ônus; entende a
melhor doutrina que deva ser superada também esta discussão dogmática sobre o tema.74
72 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 155. 73 Ensina Maria Celina: “Não há mais, de fato, que se discutir sobre uma enumeração taxativa ou exemplificativa dos direitos da personalidade, porque se está em presença, a partir do princípio constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.118. 74 PERLINGIERI ensina: “A esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre o sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica (...). Onde o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve
56
No direito brasileiro, a ordem constitucional passa a considerar a personalidade
como reduto de poder do indivíduo, no qual será exercida sua titularidade, como valor
máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, submetendo a atividade
econômica a novos critérios de validade.
Assim, a pessoa humana estaria resguardada em qualquer momento que não atenda
à realização da personalidade, inclusive da atividade econômica, mediante direitos
subjetivos previstos expressamente no texto Constitucional ou na legislação específica ou
restringindo a tutela de ato jurídico patrimonial ou não.75
A Constituição se encarrega de considerar a personalidade como valor
fundamental, concedendo proteção integral aos direitos da personalidade. Esta proteção
impõe limites ao legislador ordinário, no que tange à regulamentação dos direitos da
personalidade, tendo este reserva legal limitada, no sentido de que é dado ao mesmo impor
restrições às garantias individuais ou sociais, somente quando estas atendam à própria
dignidade da pessoa humana.
A promoção da dignidade da pessoa humana passa a ser o fundamento da ordem
legal, não importando se os direitos que visem garantir esta promoção estejam ou não
tipificados. Havendo violação ao princípio da dignidade humana, o titular do direito da
personalidade pode exigir a atuação do ordenamento jurídico, tendo a faculdade de
satisfazer seus interesses, vinculado à sua decisão, na defesa da sua vida, honra,
privacidade, dentro do autorizado pelas normas.
Tal diretriz estabelecida pelo legislador constituinte leva à conclusão de que a
tutela da personalidade não pode ficar adstrita a hipóteses previamente estabelecidas, mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação. A tutela da pessoa não pode ser fracionada em isoladas fattispecie concretas, em autônomas hipóteses não comunicáveis entre si, mas deve ser apresentada como problema unitário, dado o seu fundamento representado pela unidade do valor da pessoa. Este não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, em isoladas ocasiões, como nas teorias atomísticas.” PERLINGIERI, Pietro. ob. cit. p.155. Na doutrina pátria: MORAES, Maria Celina Bodin de. Ob.cit. p. 118; TEPEDINO, Gustavo, para quem: “Segundo Pietro Perlingieri, principal artífice desta corrente doutrinária, a personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a uma ‘relação jurídica-tipo’ ou a um ‘novelo de direitos subjetivos típicos’, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para atender às possívies situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela juridica.” TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.45. 75 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.47.
57
direitos humanos ou situações jurídicas de direito privado, uma vez que a pessoa requer
proteção integrada que supere a dicotomia do direito público e direito privado, garantindo-
se a promoção da dignidade humana.
As técnicas de proteção à pessoa humana, consubstanciadas na doutrina da
tipificação dos direitos da personalidade, se mostram, assim, insuficientes, ante a
evidência das inúmeras situações diferenciadas que demandam das relações humanas e
não se ajustam àquelas previamente determinadas que, nem por isso, fulcradas na
dignidade da pessoa humana, podem ficar ao alvedrio de solução adequada.
Entende-se, então, os direitos da personalidade como direitos e garantias
constitucionais, atrelados à idéia desta promoção da pessoa humana, sem se ater à
necessidade da previsão expressa em lei destes direitos, uma vez decorrentes dos preceitos
constitucionais, capitaneados pela dignidade da pessoa humana.
Tais preceitos são inseridos na Constituição da República como princípios
fundamentais, precedendo topograficamente aos demais capítulos, condicionando as
normas do corpo constitucional, assim como as demais normas jurídicas, definindo, assim,
uma nova ordem pública, elevando ao ápice a dignidade da pessoa humana.76
Passa-se ao estudo sintético deste direito, valor fundamental do ordenamento
jurídico, que baseia todas as situações existenciais emanadas das inúmeras e imprevisíveis
exigências decorrentes do progresso do ser humano.
4.2 Dignidade da Pessoa Humana e Solidariedade Social. Princípios Constitucionais.
A função do Estado, a partir da Modernidade, passa a ser a de garantir a ordem, a
defesa de seu território, a seguridade social, a educação, entre outras, tendo como melhor
instrumento, para ordenar as competências e atribuições, a lei. E a lei capaz de
efetivamente obrigar a todos os entes políticos é a lei com status de Lei Constitucional.77
A Constituição assume o papel importante de conferir unidade e coerência a uma
determinada ordem nacional, na medida em que é e deve ser respeitada.
76 TEPEDINO, Gustavo. Direitos Humanos e Relações Jurídicas Privadas. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.67. 77 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 123.
58
No dizer de Canotilho, o problema da legitimidade da Constituição não consiste
somente num debate filosófico-jurídico sobre a fundamentação última das normas, mas
também na justificação da existência de um poder ou domínio sobre os homens e a
aceitação desse domínio por parte destes.78
Necessária a sintonia do regime com aquilo que a Sociedade Política e a Sociedade
Civil consideram justo na esfera comunitária, para que haja aceitação e adesão à existência
e continuidade de uma ordem constitucional.
O direito e a norma constitucional legítimos devem se apoiar num pacto consensual
entre os cidadãos da comunidade, a partir dos pressupostos e requisitos invioláveis e
indisponíveis, que versam sobre as prerrogativas fundamentais do próprio gênero humano,
conquistadas a duras penas na história.
A mais razoável e racional justificação e fundamentação da legitimidade
constitucional repousa na autoridade dos direitos humanos fundamentais.
Os direitos fundamentais constituem a conditio sine qua non do Estado
democrático de direito, encontrando sua vertente no princípio da dignidade da pessoa
humana, sendo este, portanto, o elemento comum à matéria dos direitos fundamentais, daí
a íntima vinculação entre o princípio da dignidade humana e os direitos fundamentais,
asseverada por boa parte da doutrina.79
Os princípios constitucionais, enquanto normas, desempenham a função de dar
fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática
normativa. Sendo normas, tornam-se as normas supremas do ordenamento, servindo de
pautas ou critérios para a avaliação de todos os conteúdos constitucionais e
infraconstitucionais. As normas das normas.
Princípios constitucionais fazem transparecer uma superlegalidade material e se
tornam fonte primária do ordenamento, afigurando-se como pedra de toque ou critério
com que se aferem os conteúdos constitucionais, em sua dimensão normativa mais
elevada. Os princípios podem ser sempre tomados como dimensões paradigmáticas de
uma ordem constitucional justa, à luz de critérios historicamente sedimentados.
Evidenciam mais do que comandos generalíssimos estampados em normas, em normas da
78 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.111. 79 SHNEIDER, H.P. in SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.70.
59
Constituição. Expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores
éticos e sociais como fundantes de uma idéia de Estado e de Sociedade.80
Os princípios não expressam somente uma natureza jurídica, mas também política,
ideológica e social, como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer sistema
jurídico. Expressam uma natureza política, ideológica e social, normativamente
predominante, cuja eficácia no plano da práxis jurídica deve se impor de forma altaneira e
efetiva.81
Os princípios são postos no ápice da pirâmide normativa, elevando-se ao grau de
norma das normas, de fonte das fontes, a viga-mestre do sistema, o penhor da
constitucionalidade das regras da Constituição. As normas-chaves de todo o sistema
jurídico.82
O constituinte brasileiro de 1988 deixou nítida a intenção de garantir aos princípios
fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem
constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, outorgando, ao princípio fundamental
da dignidade humana, a necessária relevância, localizando-o no início do texto, logo após
o preâmbulo.
4.3 Dignidade Da Pessoa Humana Como Princípio Constitucional
A dignidade deve ser entendida como qualidade moral que infunde respeito;
consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza. Dignidade provinda do latim
dignus, como aquele que merece estima e honra, aquele que é importante.83
O avanço dos Direitos Humanos ocorrido a partir dos séculos XVIII e XIX, com a
humanização dos processos sancionatórios e das garantias processuais penais, passando a
se dar maior importância aos direitos da pessoa humana e aos sujeitos de direito, é
significativo. Todavia, a discussão em torno dos direitos da cidadania e dos direitos
fundamentais continua em constante ebulição.
80 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.168. 81 LEAL, Rogério Gesta. op. cit., p.168 82 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 2006. p.286. 83 MORAES, Maria Celina Bodin de. ob. cit., p.77.
60
A Declaração dos Direitos Humanos, com a Independência dos Estados Unidos,
expressão primeira destes direitos, juntamente com a Revolução Francesa, se tornou fonte
de adoção nos sistemas jurídicos e nas organizações políticas.
As Declarações, assim, serviram para a célere e eficaz evolução dos direitos
humanos, tendo importante papel na internacionalização e na constitucionalização destes
direitos, passando os mesmos a assumir caráter universal.
Tal internacionalização não se percebe de imediato, sendo necessária a
incorporação aos ordenamentos jurídicos constituídos, sob pena de não poderem ser objeto
de implementação estatal, em que pesem os pontos negativos da positivação dos direitos.
Ao lado desta afirmativa, não se pode deixar de mencionar que a conceituação dos
direitos fundamentais é verdadeira problemática, que gera inúmeros estudos doutrinários,
devendo se ter em mente que um conceito satisfatório dos direitos fundamentais somente
pode ser obtido com relação a uma ordem constitucional concreta, já que exigiria tanto
uma determinação hermenêutica quanto uma construção dogmática vinculada ao texto
constitucional vigente.
O que é fundamental para determinado Estado pode não ser para outro e vice-
versa, o que não impede de se verificar a existência de categorias universais e consensuais,
no que diz respeito à fundamentalidade, como valores da vida, da liberdade, da igualdade e
da dignidade humana.84
Desta forma, a integração das posições jurídicas concernentes às pessoas que, do
ponto de vista do direito constitucional positivo, foram integradas ao texto constitucional e
retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, é considerada direito
fundamental.85
A Constituição da República de 1988, reconhecendo que o Estado existe em função
da pessoa humana, constituindo esta a finalidade precípua e não o meio da atividade
estatal, no intuito de protegê-la (pessoa humana), já traz, logo após o preâmbulo, como
fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, como
anteriormente ressaltado.
84 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.90/91. 85 SARLET, ob. cit, p.91.
61
O reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio da dignidade da
pessoa humana revela evolução constitucional sem precedentes, ressaltando-se a evolução
da Constituição pátria, uma vez que a inclusão do valor fundamental da dignidade da
pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições após a
consagração pela Declaração Universal da ONU, de 1948, sendo certo que muitos países
integrantes não chegaram a incluir o princípio em seus textos constitucionais. 86
A idéia de que ser digno é ser pessoa, ou seja, da dignidade como qualidade
inerente ao ser humano, encontra sua origem já na ideologia cristã e no pensamento
clássico. O homem, como criatura à imagem e semelhança de Deus, foi a premissa da qual
o cristianismo extraiu a conseqüência de que o ser humano é dotado de um valor próprio
intrínseco, não podendo ser transformado em objeto ou mero instrumento.
A percepção de que seres humanos são diversos das coisas naturais inicia no século
XV, com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo,
prosseguindo nos séculos seguintes, donde surge a idéia de civilização, chegando ao
período do positivismo, no qual Auguste Comte desenvolve a idéia do homem como ser
social.87
O processo de racionalização e laicização da concepção da dignidade da pessoa
humana, que ocorre nos séculos XVII e XVIII, não afasta a noção fundamental da
igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade, destacando-se a concepção
kantiana da dignidade que parte da autonomia ética do ser humano, o fundamento da
dignidade, não podendo, o ser humano, ser tratado, nem por ele próprio, como mero
objeto.88
A dignidade, qualidade intrínseca do ser humano, irrenunciável e inalienável, é
algo que se respeita e se protege, não podendo lhe ser concedida nem retirada, pois
inerente aquele, englobando, necessariamente, o respeito e a proteção da integridade física
e mental do indivíduo. Daí decorrem as vedações às penas de morte, às práticas de tortura,
penas de natureza corporal, limitações de meios de prova, limitações ao uso do próprio
corpo, das experiências científicas com o ser humano, tornando-se indispensável, na
esteira do pensamento kantiano, a preservação da dignidade da pessoa humana.
86 SARLET, ob. cit, p.113. 87 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002. p.272. 88 SARLET, op. cit. p. 116.
62
O valor da dignidade da pessoa humana e a perseguição por sua preservação
ensejam a garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família,
assumindo relevo especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de
seguridade social, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à
asseguração de uma existência com dignidade. 89
À luz do que preconiza o art. 1° da Declaração Universal da ONU de que “todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e
consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”, em que esta
razão e consciência, denominador comum de todos os homens, expressariam a sua
igualdade, mister se faz a garantia da isonomia de todos os seres humanos, como
pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana, não se podendo
submeter o homem a tratamento discriminatório e arbitrário.
Da mesma forma, a garantia à identidade pessoal do indivíduo, respeitando-se tudo
aquilo que esteja associado ao livre desenvolvimento de sua personalidade, “bem como ao
direito de autodeterminação sobre os assuntos que dizem respeito à sua esfera particular,
assim como à garantia de um espaço privativo no âmbito do qual o indivíduo se encontra
resguardado contra ingerências na sua esfera pessoal”. 90
A conclusão a que se chega é a de que a dignidade da pessoa humana depende do
respeito a estes pressupostos, sob pena de não se efetivar.91
No dizer de Ana Paula de Barcellos, o núcleo da dignidade humana se encontra na
idéia de um mínimo existencial, sem o qual não é possível que a pessoa tenha condições
materiais de existência, sendo essencial, segundo este raciocínio, a educação fundamental,
a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça, o “quarteto” necessário
para tornar possível a concretização da dignidade humana.92
89 SARLET, op. cit. p.122. 90 SARLET, ibidem, p.122. 91 Merece transcrição a análise de Ingo Sarlet: “O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa humana.” op. cit, p.122. 92 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.247 e segs.
63
Outro não é o entendimento de Maria Celina Bodin de Moraes quando trata do
princípio da dignidade da pessoa humana, ao afirmar que o substrato material da dignidade
se desdobra em quatro postulados: o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos
outros como sujeitos iguais a ele, merecedores do mesmo respeito à integridade
psicofísica, dotados de vontade livre e autodeterminação e, partes do grupo social, tendo a
garantia de não serem marginalizados. Corolários desta elaboração, segundo a autora,
seriam os princípios da igualdade, da integridade física e moral, da liberdade e da
solidariedade.93
Nas relações paterno-filiais, a fim de que de fato se efetive e concretize a dignidade
da pessoa humana, há que se respeitar todos aqueles deveres inerentes ao poder familiar,
todos aqueles direitos das crianças e adolescentes, assim como os institutos garantidores
dos mesmos, e o princípio do melhor interesse da criança, sob pena de lesão aos direitos
da personalidade, passíveis de ressarcimento.
O objetivo do presente estudo não é o de se aprofundar na análise do princípio da
dignidade humana, já que a matéria é extensa e de profunda complexidade; as menções
feitas acima pretendem tão-somente enfatizar a necessidade da tutela deste direito
fundamental, em especial no que diz respeito às relações paterno-filiais, visando a tutela
prioritária da vulnerabilidade humana.
À luz do pensamento moderno no qual a igualdade, a integridade psicofísica, a
liberdade e a solidariedade são corolários do princípio da dignidade humana, essenciais
para o mínimo existencial da pessoa humana, passa-se a tecer comentários sobre os
referidos princípios, no intuito de fundamentar a necessidade de se responsabilizar aqueles
que devem ser os garantidores deste mínimo existencial, em especial em relação às
pessoas em formação, crianças e adolescentes.
93 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17.
64
4.3.1 A igualdade constitucional, fundamento jurídico da dignidade humana, e as
relações paterno-filiais
No sucinto relato sobre o princípio da dignidade humana, restou concluído que o
fundamento jurídico da mesma se manifesta, inicialmente, no princípio da igualdade, ou
seja, no direito de não receber qualquer tratamento discriminatório, no direito de ter
direitos iguais aos de todos os demais, consubstanciado na igualdade formal, de que todos
são iguais perante a lei, e no direito de ser tratado desigualmente, consubstanciado, por sua
vez, na igualdade substancial, ou seja, tratar os desiguais, em conformidade com as suas
desigualdades.
Assim, o princípio constitucional da igualdade é um dos princípios estruturantes
dos direitos fundamentais, assumindo relevância no que diz respeito à concretização dos
direitos constitucionais, é informador da ordem constitucional, garantidor do direito
fundamental da dignidade da pessoa humana.
O princípio da igualdade, presente no caput do art. 5° da Constituição da República
de 1988,94 determina a proibição da discriminação social, sendo a referida proibição
princípio vinculativo dos Direitos Humanos e Fundamentais, presente nas Declarações dos
Direitos Humanos, internacionalizado e constitucionalizado na modernidade.
A formalização meramente abstrata do princípio da igualdade não foi capaz de
contornar as desigualdades concretas, gerando tratamentos desiguais incompatíveis com a
universalidade da regra de direito, necessária a previsão expressa quanto à proibição, pelo
ordenamento jurídico, da adoção de certos critérios de diferenciação, como se verifica no
inciso IV do art. 3° e no art. 227, §6° da CR.95
94 Art. 5°: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.” 95 Art. 3°, IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Art. 227, §6° “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
65
Tais critérios proibitivos de diferenciação são exigências inarredáveis do aspecto
formal do princípio da igualdade.96
No que tange à discriminação filial, a própria Constituição da República, no § 6°
do citado artigo, determina que os filhos serão iguais em direitos e qualificações sejam
eles havidos ou não das relações do casamento ou por adoção.
O tratamento desigual em relação aos filhos, portanto, deve ser rechaçado, sob
pena de violação de princípio constitucional. A prática discriminatória, sem fundamentos,
o que se verifica quando há tal tratamento desigual em relação aos filhos, poderá ensejar
lesões passíveis de ressarcimento. No momento da ponderação dos princípios, como se
verá adiante, este preceito poderá ser fundamental para nortear as decisões judiciais que
envolvam os deveres paterno-filiais.
4.3.2 A integridade física e moral da criança e do adolescente garantida por meio da
convivência paterno-filial
A proteção à dignidade da pessoa humana não se encerra no princípio da
igualdade; além de dever ser garantido o tratamento igualitário à pessoa humana, esta deve
ser garantida em sua integridade psicofísica, não se resumindo este princípio à idéia inicial
de que ninguém será submetido à tortura, ou a tratamento desumano ou degradante.
De fato, o direito de não ser torturado, assim como o de outras garantias penais, se
encontra agasalhado por este princípio, havendo previsão expressa no texto constitucional
(inciso III do art. 5° da CR). Todavia, não se encerra aí a importância do princípio, sendo
o mesmo de suma importância na esfera civil, na qual se mostra relevante para garantir
direitos da personalidade, bem como para fundamentar a necessidade do cumprimento do
dever familiar.
Os direitos da personalidade têm sido garantidos com a observância de tal princípio
constitucional, em especial o direito à saúde, se inserindo aí o direito ao próprio corpo, à
vida, à imagem, à identidade pessoal, à honra, à saúde mental.
96 RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.45.
66
A pessoa humana, para se ver mantida em sua integralidade psíquica e física,
necessita do atendimento de suas necessidades mínimas, o que tem início com a garantia
do presente princípio, na qual se considera como contido o direito à existência digna.97
A integridade psíquica e física da criança e do adolescente, a fim de que esta tenha
uma formação digna de ser humano, não se observa tão-somente com o incremento das
necessidades básicas, mas também com a observância de todos aqueles direitos
constitucionalmente assegurados, incluídos o imprescindível direito à convivência familiar
e o direito ao afeto.
4.3.3 A liberdade das escolhas individuais e seus limites garantidores da dignidade
humana
A liberdade individual (pessoal, física e de movimento), analisada como direito de
liberdade, costumava ser caracterizada como liberdade negativa, que se identificaria com
direitos negativos, os de natureza defensiva, se inserindo aí o direito de não ser obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei (inciso II do art. 5° da CR).98
A liberdade negativa compreenderia, assim, tanto a ausência de impedimento, a
possibilidade de fazer, quanto a ausência de constrangimento, a possibilidade de não fazer,
e como as ações humanas são previstas em normas, tal assertiva consistiria em fazer tudo
o que as leis permitem ou não proíbem, e, ainda, que permitem não fazer.
Nesse sentido se incluiriam a liberdades de ter ou não religião, a liberdade de
consciência, de crença, de locomoção, de trabalho, de fazer ou não parte de uma
associação.
Por outro lado, a liberdade positiva consistiria naquele direito de o sujeito orientar
seu próprio querer, no sentido de uma finalidade, sem ser determinado pelos outros, o que
caracterizaria a autonomia, ou seja, a possibilidade de se mover para uma finalidade sem
ser movido. O indivíduo se submeteria à sua própria vontade.99
97 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.539. 98 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. In Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17. 99 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002. p.51
67
O tema da liberdade, assim como sua distinção em positiva e negativa, é extenso
não sendo objetivo do presente estudo. Porém é importante frisar que a liberdade negativa
e a liberdade positiva não se implicam e não se excluem, já que uma ampla margem de
liberdades negativas das pessoas (as liberdades civis) é a condição necessária para o
exercício da liberdade positiva do conjunto (a liberdade política).
Seguindo esta idéia de liberdades, o Código Civil de 1916 tinha como sujeito de
direitos aquele que velava por seus familiares e seus bens, desvinculado dos interesses
sociais. Os interesses privados prevaleciam aos interesses públicos, com poucas exceções.
Esta idéia era questionada, no que tange aos poderes que possuía a pessoa para
dispor de si, de seu corpo, de sua vida, sem ferir a ordem pública, a moral e os bons
costumes, então princípios fundantes do ordenamento jurídico (art. 17 da Lei de
Introdução ao Código Civil).100
O princípio constitucional da liberdade, redesenhado pelos novos paradigmas nos
quais a pessoa prevalece ao patrimônio, devendo ser tutelada a dignidade da pessoa
humana, faz com que a questão tome outro caminho.
Atualmente, mister se faz que a vontade do titular do direito se encontre em
consonância com o interesse social, constituindo o princípio da liberdade individual uma
perspectiva de privacidade, intimidade, de livre exercício da vida privada, em que o sujeito
se encontra livre para fazer suas próprias escolhas individuais, seu projeto de vida. 101
Todavia, a este direito de liberdade individual se contrapõe o interesse social,
devendo ser exercido dentro do contexto social, em especial em relação às demais pessoas,
o que se verifica nas relações entre pais e filhos, nas quais os direitos e deveres de um
devem sempre estar em consonância com os do outro, em especial aqueles significativos
para a realização da pessoa humana, para a garantia da sua dignidade.
100 Art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil - “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.” 101 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.43.
68
4.4 O interesse social. O princípio constitucional da solidariedade social
O Direito se oferece na atualidade como instrumento por excelência indispensável
para a promoção da pessoa humana, sendo que cabe a esta pôr em prática a solidariedade
social.
A proteção da pessoa humana é a principal preocupação do ordenamento jurídico
moderno, o qual, assumindo as transformações ocorridas na sociedade, espelhou a ordem
civil.
Neste sentido, foi atribuída às situações jurídicas extrapatrimoniais menor
relevância em prol das prioridades de proteção e garantia à pessoa humana. Advém daí a
idéia de se dar prevalência ao melhor interesse da criança e do adolescente e aos membros
da família.
O inciso III do art. 1° da Constituição da República de 1988, ao conceber a
dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, se
adequa a esta nova ordem mundial.
Entre os princípios fundamentais estatuídos como objetivos a serem perquiridos
pela República Federativa do Brasil, se encontra o princípio da solidariedade social, no
inciso III do art. 3°.
O princípio da solidariedade social é princípio jurídico inovador que deve ser
levado em conta não somente na elaboração da legislação ordinária e na execução das
políticas públicas, como também nos momentos de interpretação e aplicação do direito,
por todos os membros da sociedade.
A solidariedade social deriva da consciência racional dos interesses em comum,
interesses que implicam a obrigação moral de cada membro da sociedade, seja o que for
que possa querer, dever fazê-lo, pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro,
reconhecendo no outro a si mesmo.102
Através da solidariedade social se pretende alcançar a dignidade humana,
identificando-se o princípio com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma
102 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.112.
69
existência digna, comum a todos os membros da sociedade, sem que haja exclusão ou
marginalização.
A elevação da solidariedade social à condição de princípio geral do ordenamento
jurídico é de relevante significado, no sentido de que ainda que não se possa obrigar
alguém a ter bons sentimentos em relação ao próximo, pode se obrigar que esse se
comporte como se sentisse, o que se pode observar e exemplificar nas relações familiares,
em que a solidariedade pode ser identificada como fundamento.103
O projeto solidarista começa a ser lentamente realizado no Brasil, onde se observa,
além das criações legislativas, como a do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza,
(que tem como finalidade viabilizar o acesso a todos os brasileiros a níveis dignos de
subsistência), decisões fundamentadas no princípio da solidariedade social.
O princípio da solidariedade social, assim, deve ter como meta prioritária a
realização da pessoa humana com dignidade, corolário que é do princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana.
103 Conforme ressalta Maria Celina Bodin de Moraes: “Em relação à violação daquilo que não pode ser considerado um direito subjetivo, nem uma faculdade, tampouco um poder-dever, a solidariedade, no entanto, pode se dizer fundamento daquelas lesões que tenham no grupo a sua ocasião de realização: assim, ela abrangeria os danos sofridos no âmbito familiar nas mais diversas medidas, desde a lesão à capacidade procriadora ou sexual do cônjuge até a violência sexual praticada contra filha menor, do descumprimento da pensão alimentícia de filho, do não reconhecimento voluntário de filho ou a criação de dificuldades a esse reconhecimento, à falta de visitação (...)” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, p.116.
70
II – FAMÍLIA, SOCIEDADE E ESTADO: AUTONOMIA E INTERVENÇÃO
1 Visão panorâmica da intervenção estatal ao longo dos tempos na relação familiar
entre pais e filhos
A família, célula social por excelência, como já mencionado, em sua visão
tradicional, na qual se concedia a um de seus membros poder e supremacia, compreendida
por aqueles elementos oriundos do mesmo tronco ancestral, com seus ascendentes,
descendentes e colaterais, passa por inovações durante os séculos.
Tradicionalmente a família era regulada em suas relações pessoais, patrimoniais e
assistenciais, de modo que não se suprisse a autonomia do chefe de família, expressão esta
criada para definir a posição do marido-pai na esfera familiar. Esse tratamento tinha como
fundamento a manutenção da paz, concedendo-se ao varão a possibilidade de estabelecer
as regras e normas vigentes no âmbito de sua família.
A preservação da família tradicional foi perseguida durante anos, tendo sido
trazidas as inovações em doses homeopáticas, com o correr dos anos, não se disseminando
totalmente a idéia de chefes de famílias e seus direitos e deveres.
Através dos árduos caminhos percorridos, mulheres e filhos buscam sempre novas
soluções para os conflitos que teimam em surgir na vida da família, seja ela agora em sua
visão nuclear, tradicional ou moderna. Nessa caminhada, se observa que os antigos chefes
de família também passaram a sofrer intercorrências.
A proteção à pessoa do chefe de família e sua posição tradicional junto à
sociedade, com as inúmeras variações que lhe cabiam, como a ilegitimidade dos filhos
concebidos fora do casamento e a ilegitimidade das relações familiares que não se
adequassem ao tradicional casamento, trazem resquícios inconfundíveis. Da mesma forma,
as funções exercidas dentro do modelo tradicional de família que teimam em existir, ainda
sob a égide das novas formas de família.
A ingerência do Estado nas relações familiares, em todas as suas vertentes, se torna
cada dia mais evidente, em que pese às inúmeras possibilidades de solução autônoma de
determinadas situações.
71
A idéia não é justificar a intervenção estatal em matérias já decididas entre os
familiares ou as de cunho meramente patrimonial, havendo, inclusive, norma legal
expressa vedando a interferência na comunhão de vida instituída pela família, o que se
observa na leitura do art. 1.513 do Código Civil.104
O que deve sim o Estado assegurar é o cumprimento daquilo com o que se
preocupa o texto constitucional, ou seja, a assistência à família, na pessoa de cada um dos
que a integram (§ 8° do art. 226 da CR).105
No dizer de Pietro Perlingieri, a delineada função serviente da família explica o
papel da intervenção do Estado na comunidade familiar, se traduzindo, em geral, na
necessidade de que seja respeitado o valor da pessoa na vida interna da comunidade, por
ser uma questão de que toda comunidade deve se inspirar no princípio da democracia.106
Neste diapasão, inadequado o enfoque da família como corpo autônomo. A
autonomia da comunidade familiar paralisaria o poder normativo do ordenamento jurídico.
O valor central de referência é sempre a pessoa e o reconhecimento dos direitos
fundamentais, daí se afastar a imunidade da família ao controle do Estado. As relações
familiares e suas inúmeras conseqüências não podem ser ignoradas externamente, não se
isentando de juízos de valor em confrontação com os valores fundamentais vigentes, a
ordem pública.
Na seqüência deste pensamento, passa a se identificar a constitucionalização do
direito civil, a necessidade de adequação deste aos princípios constitucionais e sua
despatrimonialização, afastada a idéia de público e privado, como uma nova tendência
normativa-cultural, com orientação focada na idéia de que o limite inviolável do
comportamento das pessoas em suas relações sociais é a dignidade da pessoa humana - e
que, portanto, devem estar centradas nesta e na solidariedade social.
Nesse sentido, é autorizada a ingerência do Estado nas situações em que a ausência
de afeto entre pessoas unidas pelos laços familiares gera danos de ordem moral. Os
deveres parentais, surgidos ou não de relações familiares, oriundos que são da paternidade 104 “Art. 1.513 do Código Civil – É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” 105 “Art. 226 da CR – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §8° - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” 106 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p.247/249.
72
e maternidade, submetem-se ao ordenamento jurídico a fim de proporcionar ao ser
humano envolvido a plenitude do princípio da dignidade humana.
2 A intervenção estatal como garantia do exercício do poder familiar segundo o
melhor interesse da criança
A Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente,
como já observado, trouxeram mudanças paradigmáticas às relações entre pais e filhos,
passando a cheirar a mofo o pátrio poder, substituído pela nova função familiar de
promover a personalidade de seus membros, sendo atribuído aos pais o munus da criação e
educação de seus filhos, através do poder familiar.
Entendendo a família como instrumento promotor da personalidade de seus
membros, em especial crianças e adolescentes, deve ser revisitada a dicotomia entre o
direito público e o direito privado, a fim de que esta tome outros parâmetros, já que a
constitucionalização do Direito Privado acarretou a releitura dos institutos jurídicos,
inclusive o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, que tem novo conteúdo e
extensão, dentro da interpretação principiológica da Constituição.107
A família, em seu modelo liberal-burguês, se fundava na sua preservação como
instituição, cujo interesse prevalecia ao interesse de seus membros, gozando de imunidade,
subtraindo-se da mesma a intervenção estatal, já que possuía suas normas e princípios
próprios, passando a casa a ser consagrada como espaço distinto do espaço público.
Argumenta Perlingieri que a imunidade da família, ou seja, a subtração das
vicissitudes internas da família ao controle do Estado, já que esta se verifica como
comunidade autônoma, portadora da própria subjetividade, corpo originário em relação ao
Estado, se torna incompatível com o ordenamento constitucional vigente, uma vez que
suprime o desenvolvimento da pessoa humana em prol da coesão da inaceitável lógica
corporativa.108
107 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro – São Paulo - Recife: Renovar. 2005, p.48. 108 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.247/249.
73
Ocorre que as vicissitudes e intercorrências da família terminam por levar à
intervenção estatal.
Esta intervenção se verifica, conforme noticia Michele Perrot, visando, em
primeiro lugar, as famílias pobres, que se multiplicaram no começo do século XX, ditas
como incapazes de desempenhar seu papel, em especial em relação aos filhos, ante a
necessidade de se atender o melhor interesse da criança.109
A luta travada entre o pai e os outros, a história da vida privada oitocentista,110 ante
as resistências encontradas contra a autoridade sem limites do poder do pai, busca na
intervenção estatal a solução dos conflitos internos.
A família, no seu modelo burguês, no qual a ingerência estatal era ínfima e
entendida como arbitrária, afrontando a autoridade do pater, não mais se justifica, sendo
extirpada como modelo ideal, uma vez que não atende aos novos paradigmas da
sociedade, em especial da promoção da dignidade humana.
A dignidade humana representa o limite inviolável do exercício da autoridade
familiar, possibilitando a interferência do Estado neste núcleo, a fim de garantir esta
limitação.
Esta ingerência torna inquestionável que a família deixou de ser uma unidade para
ser uma pluralidade de convivência, na qual o melhor interesse da criança deve ser
atendido, sob pena de se ter que recorrer ao Estado para a solução dos conflitos.
Assim, as intervenções estatais no direito de família, em virtude da nova função
que a mesma deve exercer, com a constitucionalização daquele direito, põem em xeque a
dicotomia do público e do privado, logo o “privado não é mais o direito das relações
‘domésticas’ da família, e o público não é mais, apenas, o direito que diz respeito ao
Estado e ao político”. 111
O conjunto de regras e princípios referentes ao direito de família continua se
enquadrando no direito privado, já que a constituição da família é um ato de liberdade,
109 PERROT, Michelle (Org.). História da vida Privada. volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.116. 110 PERROT, Michelle (Org.). História da vida Privada. ob. cit. p.131. 111Salienta Fachin, para quem: “(...) no mesmo horizonte, haveria o Direito Público de Família e o Direito Privado de Família, semicircunferências, partes de um todo, distintas mas congruentes, separadas porém ‘interagindo’”. FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.74.
74
seja ela matrimonializada ou não, assim como a extinção desta relação, sendo, portanto,
atos da autonomia privada.
Esta se encontra agora com uma nova dimensão, onde há publicização da família,
já que, constitucionalizada, orientada por aqueles novos princípios.112
Nesta ordem de idéias se encontram os mecanismos de intervenção estatal na
esfera familiar, em especial, no exercício da autoridade parental.
O Estado, no intuito de garantir o melhor interesse da criança e do adolescente,
verdadeiro princípio fundamental, interfere nas relações familiares, a partir do novo
ordenamento constitucional, cabendo, inicialmente, prestar a tutela da criança e do
adolescente, independentemente da situação em que se encontre, através de proteção
integral.113Assegurar os direitos fundamentais com prioridade às crianças e aos
adolescentes, protegendo-os da negligência, discriminação, exploração, violação,
crueldade e opressão, são as diretrizes adotadas para a política pública de atendimento.
A proteção deve ser assegurada pelo Estado encontrando-se o paciente sob o manto
da família ou não, ou seja, a autoridade familiar deve ser exercida de maneira a resguardar
os direitos fundamentais da criança sob pena de interferência estatal.
Esta interferência estatal nas relações familiares, em especial na autoridade
familiar, a fim de garantir o melhor interesse da criança, pode se manifestar de várias
formas, não ocorrendo somente em situações extremas, podendo se dar por meio das ações
governamentais ou não governamentais, como no caso de formação de mecanismos
estabelecidos na Constituição e no ECA de participação da sociedade civil na gestão
destes interesses, incluindo políticas públicas de educação e saúde.114
112 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.76. 113 Assim se manifesta Bernardo Castelo Branco: “Tem sido marcante o intervencionismo estatal em certas relações jurídicas de caráter privado, com a visível preocupação de proteger aqueles que, de certo modo, se acham em posição de hipossuficiência na tutela de seus direitos. Assim ocorre no disciplinamento das relações de consumo, no abrandamento do caráter antes absoluto dos direitos inerentes à propriedade, na adoção da teoria do risco como elemento determinante da responsabilidade civil em certas atividades, só para citar alguns exemplos. A mesma tendência se observa, embora de maneira tímida, no direito de família.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.20. 114 Sobre o tema, quando trata da função educativa e o pátrio poder, PERLINGIERI adverte: “O papel primário na satisfação da necessidade-direito à educação é portanto do casal. As intervenções, entre as quais assume um especial significado aquela do juiz, em via subsidiária, são orientadas a facilitar o normal andamento da família e a eliminar, por outro lado, os obstáculos, os abusos, os desvios. (...) O exercício do Pátrio Poder se concentra exclusivamente no interesse do menor. Interesse existencial, mais que patrimonial,
75
Nos casos extremos, em que se impõe aplicação de medidas aos pais, como a
colocação dos filhos em famílias substitutas, o que se observa na adoção ou na guarda
provisória, poderá ocorrer a suspensão, a restrição ou a perda do poder familiar.
que deve ser individuado em relação às circunstâncias concretas, no respeito à historicidade da família.(...) É indispensável que o interesse do menor se realize não somente com a intervenção do juiz, mas sobretudo com uma organização da comunidade, através de instituições pluralisticamente entendidas, idôneas para constituir suportes destinados a realizar uma intensa atividade de colaboração e prevenção que facilite o cumprimento das complexas tarefas familiares e contribua a remover os obstáculos que mesmo de fato impeçam a sua atuação.” PERLINGIERI, Pietro. ob. cit. p. 259.
76
3 Da Suspensão à Perda do Poder Familiar
A autoridade paterna, com a constitucionalização do direito civil, em especial no
que tange às normas de direito de família, não ficou imune a esta publicização,
considerando-se um munus, em que se ressaltam os deveres, sujeitos à intervenção estatal.
No exercício deste munus se verifica a preponderância, mencionada anteriormente,
do interesse da criança ou do adolescente, no intuito maior de realizá-los como pessoas em
formação.
Por sua vez, o legislador prevê que, havendo lesão aos direitos dos filhos, crianças
ou adolescentes, visando preservar a formação da personalidade destes, o Estado possa
realizar o controle ostensivo sobre os detentores deste poder familiar, pais ou
responsáveis. Este controle ostensivo poderá resultar na suspensão, na restrição e até
mesmo na perda da autoridade parental.
O Estatuto da Criança e do Adolescente trata de reconhecer que as medidas
protetivas ali garantidas são aplicáveis sempre que os direitos previstos no estatuto sejam
violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, conforme se observa da
leitura do inciso II do art. 98.115
A falta se caracterizaria por uma ação comissiva do pai que causa lesão à
personalidade do filho. A omissão um ato omissivo, ou seja, o pai ou responsável deixa de
praticar, por negligência, um ato exigido por lei, que causa dano ao filho; e a terceira
hipótese seria o abuso de direito.
As duas primeiras hipóteses, portanto, dizem respeito a atos comissivos ou
omissivos atentatórios à personalidade do filho. A última figura se refere ao abuso de
direito, hipótese referendada pelo Código Civil, no art. 1.637,116 não se restringindo, no
Estatuto da Criança e do Adolescente, à matéria patrimonial.
No caso, o Estatuto reprime também o abuso de direito em relação aos direitos da
personalidade dos filhos, ou seja, também impede que, em nome dos direitos subjetivos 115 Art. 98 do ECA – “As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:(...) II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável.” 116 Art. 1.637 do Código Civil – “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.”
77
conferidos aos pais, sejam sacrificados os valores atinentes à tutela da personalidade da
criança, já que o poder familiar deve ser exercido voltado ao interesse e ao bem-estar do
filho, preservando-se sua dignidade como pessoa humana.117
O art. 1.637 do Código Civil, conforme mencionado, trata do abuso de autoridade,
o que se dá quando o pai ou a mãe falta aos deveres inerentes ao poder familiar ou arruína
os bens dos filhos, caso em que poderá ser suspenso tal poder.
A suspensão pode ser total ou parcial para a prática de determinados atos, visando
a segurança do interesse do filho menor.
A atitude tomada pelos pais que não atentem à finalidade do instituto do poder
familiar, qual seja a proteção dos filhos, pode se verificar quando os mesmos utilizem de
modo indevido o patrimônio do menor; quando deixem de proporcionar educação àqueles,
submetendo-os à tarefa do lar ou a subempregos; quando deixem de prestar-lhes
assistência moral ou material; quando deixem os mesmos ao alvedrio das mazelas das
ruas; enfim, nas inúmeras hipóteses em que se descumpra o poder-dever que lhes cabe, é
possível a intervenção estatal, que pode até culminar na perda deste poder.
Por sua vez, o Código Civil traz, no já citado art. 1.638, as hipóteses em que pode
ocorrer a perda do poder familiar, sendo elas o castigo imoderado do filho; o abandono; a
prática de atos contrários à moral e aos bons costumes e a incidência reiterada na prática
do abuso de autoridade, prevista no art. 1.637.
Além da perda ou suspensão do poder familiar, existem as penas pecuniárias e as
restritivas, sobre as quais faz-se menção quando do estudo dos deveres e direitos
existentes entre pais e filhos.
117Tepedino traz exemplos de casos que se adequam à hipótese: “Merece destaque, em primeiro lugar, interessante caso atinente à guarda de filho menor, onde o pai separado judicialmente, alegando o direito de visita, opunha-se à viagem do filho de um ano e três meses para o exterior, em companhia da mãe, que pretendia permanecer seis meses em Londres, para a realização de um curso importante para a sua carreira. Na espécie, o filho, concebido durante a vida em comum, nasceu após a separação judicial, restando sob a guarda materna. A oposição do pai à viagem, não obstante decorresse do legítimo direito de visitar o filho menor, foi considerada ‘abusiva e injusta’ pela doutrina, diante do interesse do menor em não se separar da mãe, e da relevância da viagem para a carreira desta, com direta repercussão na formação da personalidade do filho. Em situação diversa, também foi considerado abuso de direito a recusa do pai em permitir que os filhos se avistassem com os avós, considerando-se o interesse do menor prevalente sobre a discricionariedade do pai, na titularidade do pátrio poder.” TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 425.
78
Interessa a conseqüência civil dos atos contrários à finalidade do poder familiar,
sendo certo que estes não excluem a possibilidade daquelas penalidades.
Voltando às hipóteses do art. 1.638 do Código Civil, diz-se que o campo de
incidência é aberto, sempre na perspectiva do melhor interesse da criança. A perda do
poder familiar é medida excepcional, que precederá de processo judicial, somente
permitida nos casos previstos em lei.118
A primeira hipótese é bastante criticada, já que há proibição expressa à prática de
lesões corporais, se vedando, para tanto, os castigos físicos, que configuram violência,
ainda que causem lesões leves. A violência doméstica é preocupação constante do
legislador, tendo gerado, inclusive, a edição de lei específica para estes casos (Lei
11.540/2006) com agravamento de penas e restrições a benefícios constitucionais àqueles
ofensores.
A tolerância ao castigo moderado, a contrario sensu do dispositivo legal, estaria
indo contra o princípio fundamental da Constituição da República, sendo atentatório à
dignidade humana, portanto, inconstitucional no que tange à autorização aos castigos
moderados.
O abandono do filho, inciso II do art. 1.638 do Código Civil, deve ser visto como
aquele abandono injustificado, lembrando sempre da excepcionalidade da medida que
suprime o poder familiar.
Todas as hipóteses capazes de acarretar a perda do poder familiar deverão ser
objeto de análise, no caso concreto, uma vez que sopesando as provas e razões trazidas se
chegará à solução que atenda ao melhor interesse da criança.
3.1 O contra sensu da perda do poder familiar
Ressalvadas as hipóteses em que se observa como melhor interesse da criança a
perda do poder familiar, esta parece um contra sensu quando se está diante do abandono
moral.
118 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Do direito de família. Do direito pessoal. Das relações de parentesco. Vol.XVIII. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.259.
79
O abandono moral que, em tese, justificaria a perda do poder familiar, já que se
enquadra em uma das hipóteses antevistas pelo legislador, que integram o tipo do artigo
1.638 do Código Civil, poderá ocorrer sem que, necessariamente, se verifique o abandono
material.
Aquele pai ou aquela mãe ausente, que cumpre com seu dever alimentar, poderá se
ver isento dos deveres inerentes à paternidade, caso ocorra a perda do seu poder familiar
diante do abandono moral.
O poder familiar é, antes de tudo, um dever, como já salientou-se anteriormente,
não podendo ser sequer transferido, daí a excepcionalidade das causas que podem
acarretar a suspensão ou perda deste munus.119
Parece que seria o caso de privilegiar conduta contrária à lei. Portanto, apenar o pai
ou a mãe ausente moralmente com a perda do poder familiar, em algumas hipóteses, seria
um benefício concedido ao infrator.
Este abandono poderá gerar não somente a tipificação dos crimes já relacionados
anteriormente no presente estudo, como também aquela infração administrativa, cuja
sanção é de ordem pecuniária, prevista no artigo 249 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, esta sim capaz, caso devidamente aplicável aos casos concretos, de compelir
aqueles ao cumprimento dos deveres inerentes ao exercício da paternidade, que não deve
ficar ao alvedrio da vontade própria daquela pessoa maior e capaz de realizar as suas
escolhas de vida, dentre elas, as de maior importância, no que tange à pessoa humana, a de
ser pai ou mãe, já que inafastáveis para a formação desta.
Nesta esteira de entendimento, não é dado ao pai ou mãe ausente, que deixa o filho
ao alvedrio da própria sorte, no que tange à formação da personalidade, alegar a seu favor
motivo justo para a obtenção de um verdadeiro benefício, a perda do poder familiar, já que
ninguém, em direito, pode alegar a própria torpeza em proveito próprio.
119 Ensina FACHIN quanto às características das relações familiares: “(...) a intransferibilidade. Posições jurídicas indelegáveis. Não se transfere a condição de pai como se transmite a condição de proprietário. Quem é titular de um objeto que está no tráfego jurídico pode, obviamente, desfazer-se dessa titularidade. Todavia, quem é titular de uma posição jurídica no Direito de Família não pode dela se desfazer. É regra que comporta exceções, como na destituição da autoridade parental. Assim mesmo, intransferível ao se tratar de estado (status) da pessoa, isto é, de sua qualificação jurídica. Esse estado da pessoa não pode ser objeto da relação jurídica.” Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.76.
80
A perda do poder familiar, nestes casos, resultaria em verdadeiro benefício,
privilegiando-se o genitor ausente.120
A falta de afeto não é a única perda irremediável com a destituição do poder
familiar; poderá também acarretar o abandono material, este sim impassível de dúvida,
quer na doutrina, na jurisprudência e na legislação, como inadmissível e punível, com lei
especial que o garante, a lei de alimentos.
Desta forma, deve ser analisada a verdadeira razão para a perda do poder familiar,
com o estudo, inclusive, quanto à não-incidência em determinadas hipóteses de abandono
moral, a não ser que se exclua desta perda os deveres oriundos das relações paterno-filiais,
entre eles o dever à prestação de alimentos.
120 A propósito Bernardo Castelo Branco, comenta sobre o abandono material que pode ser objeto de analogia ao abandono moral: “A natureza essencial daquele dever se traduz na circunstância de poder ser reclamado até mesmo quando os pais tenham sido destituídos do poder familiar, como defende Santos Neto ao afirmar que: ‘Não poderia ser diferente, porque, do contrário, a perda do pátrio poder apresenta caráter punitivo, acabaria por premiar os infratores, liberando-os do encargo que descumpriram. A medida destina-se a privá-los de prerrogativas, e não livrá-los de responsabilidades. É a interpretação que se impõe à luz da proteção aos interesses dos menores’.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.190.
81
4 A Necessidade de se Responsabilizar o Abandono Moral
A par desta idéia, surgem as vozes no sentido de se responsabilizar civilmente
aquele pai ou mãe ausente, que abandona moralmente o filho, em que pese cumprir com a
obrigação material de sustento deste.
Ante a importância de todos os princípios fundamentais, do novo paradigma do
direito civil constitucional, no qual as normas de direito público têm maior aplicação junto
ao direito privado, em especial ao direito de família e a sua nova cara, transmudada a
conceituação do próprio instituto da família, visto agora como meio de promoção e
desenvolvimento da personalidade de seus membros, a ausência injustificada do pai ou da
mãe deve ser rechaçada, sob pena de causar ao filho perda irreparável, podendo ser
atingida sua dignidade, ante, sobretudo, à falta das raízes e origens que estruturam a
personalidade humana.
A valorização das funções afetivas de seus membros, transformando o núcleo
familiar em refúgio aos dissabores do dia-a-dia, verdadeira função da família, deve ser
resguardada, inclusive, quanto às ações de seus próprios membros.
A aura de impenetrabilidade que se criou em torno das relações familiares não mais
se justifica. As lesões porventura causadas por ações praticadas dentro destas relações
deverão, assim, se sujeitar às regras da responsabilidade civil.121
O melhor, com certeza, para as relações familiares não consiste na reparação civil.
O ideal seria que a solução para as divergências familiares, os percalços aos quais estão
sujeitos os seres humanos, nas suas trocas e convivências, se desse no âmbito destas
próprias relações, sem que houvesse necessidade de intervenção do Estado.
O respeito, a compreensão e o afeto, e ainda todos aqueles direitos e deveres
oriundos da relação familiar deveriam pautar as condutas dos membros familiares, sendo
desnecessário o recurso a soluções outras, muito menos a de ressarcimento de danos.
121 Neste sentido, Bernardo Castelo Branco: “(...) a idéia segundo a qual as relações de família são impermeáveis às regras da responsabilidade civil já não encontra sentido, à medida que os diferentes membros desse núcleo social, não importando o papel em que nele exerçam, gozam de ampla proteção relativamente aos direitos dos quais são titulares, especialmente os ligados à personalidade, sendo inadmissível que os responsáveis por eventual violação permaneçam imunes à respectiva sanção, mesmo quando a infração se dê nos limites de uma relação jurídica de caráter especial, como é a relação de direito de família.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.19.
82
Na realidade das relações humanas, em especial e hodiernamente nas relações
familiares, se está sempre diante de desavenças, em que prevalece o egoísmo, a violência,
a intolerância, a ausência de seus membros.
No âmbito das relações entre pais e filhos, estas condutas, por vezes, têm o condão
de lesionar os filhos, conforme já ressaltado, atingindo a sua dignidade humana.
O poder familiar deve ser exercido pelo pai ou pela mãe, no sentido de serem
resguardados os direitos da personalidade dos filhos, de ser garantida a formação da
pessoa humana, tendo como idéia central o fato de que os filhos necessitam de maior
proteção em relação a estes direitos e que, portanto, este deve ser o seu verdadeiro
intuito.122
Compreendendo estas idéias, se pretende, a partir de agora, uni-las ao principal
objetivo da ordem jurídica, de proteger o lícito e reprimir o ilícito.
A intenção, ao certo, não é patrimonializar o direito de família, tampouco
propugnar a obtenção de vantagens econômicas nas relações familiares, substituindo o
afeto e todas as suas vertentes, essenciais à formação da pessoa humana, por indenizações
pecuniárias, tornando patrimoniais os vínculos familiares.
O que se pretende é, diante dos princípios constitucionais, da releitura do direito
civil, analisar de forma diferente as relações familiares, para que se possa coibir os atos
praticados no interior destas relações, capazes de causarem lesões aos direitos da
personalidade dos filhos, em especial no que tange à ausência da figura paterna ou
materna, lesões de cunho extrapatrimoniais, ensejadoras de danos morais.
Tomados de uma nova consciência, em especial, o fato de que tais condutas
poderão gerar indenizações futuras, a esperança é criar uma nova mentalidade naqueles
pais e mães ausentes que tanto mal causam a seus rebentos. O ressarcimento, nestes casos,
seria, portanto, um instrumento sancionador e inibidor das ofensas aos direitos
fundamentais do ser humano, no intuito de coibir as condutas que prejudiquem os filhos na
relação familiar.123
122 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. p.20. 123 Neste mesmo sentido Bernardo Castelo Branco: “(...) a reparação pecuniária, nesse caso particular, não se constitui em meio insidioso de enriquecimento à custa da desagregação familiar, mas um instrumento ao mesmo tempo sancionador e inibidor dessas ofensas.”, ob. cit, p. 22.
83
III – AUSÊNCIA DE AFETO E O DANO MORAL SANCIONATÓRIO
1 Evolução da Responsabilidade Civil – Uma síntese apertada
A responsabilidade, fenômeno da vida social, encontra sua noção jurídica, antes
mesmo da codificação, seja na Lei do Talião, no Código Hamurabi ou na Lei das XII
Tábuas. Ainda que não passasse de um direito à vingança, a responsabilidade existe desde
o início das comunidades, segundo notoriamente se tem notícia.124
Por sua vez, os princípios gerais da responsabilidade civil são notados através da
expressão latina “Honeste vivere, alterum non laedare, suum cuique tribuere”. Seriam
eles: viver honestamente, não ofender a outrem, dar a cada um o que é seu.
Aquele que se via lesado, ofendido, ia buscar sua vingança, a seu próprio modo e a
seu livre arbítrio, não sendo esta vingança reprimida e tampouco mensurada, tendo-se em
conta tão somente o mal praticado, sem que fosse questionada a voluntariedade da conduta
que o teria ocasionado.
Esta vingança sem limites dura até a Lei do Talião, quando passa a vigorar a idéia
da correspondência, o “olho por olho, dente por dente”. Tal solução fora questionada por
Cristo, segundo quem a melhor solução seria a da misericórdia.
Evoluindo, ainda na Antigüidade a vingança passa a ser substituída pela
composição ou ressarcimento, ficando exclusivamente a critério do lesado a maneira de
ser ressarcido ou composto o dano.125
A composição ou ressarcimento, a critério do lesado, com um verdadeiro quadro de
compensações, é o que se nota no Código de Hamurabi e na Lei das XII Tábuas e, ainda,
na atualidade, entre algumas comunidades islâmicas, prevendo diferentes penas corporais
para delitos contra a vida, a honra e, inclusive, delitos contra o patrimônio.
No direito romano prevalece a distinção entre os delitos praticados. Caso fosse
atingida a ordem pública a reparação importava em pena, desde patrimonial até castigos e
a morte; sendo a ofensa de caráter privado, a reparação tinha caráter econômico.126
124 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.17. 125 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. p. 17. 126 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.34.
84
A solução romana faz emergir, através da Lei Aquília, a responsabilidade subjetiva
fundada na culpa. A Lex Aquilia, no dizer de Carlos Roberto Gonçalves, se torna o germe
da jurisprudência clássica e fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana.127
A responsabilidade civil fundada na culpa, a responsabilidade subjetiva, evolui,
abandonando-se a idéia da Lei de Talião e das XII Tábuas, consolidando-se a
possibilidade de reparação sempre que houvesse culpa, ainda que em grau leve.
O direito romano, em especial a lei aquiliana, influencia o direito francês, alçando
a culpa à condição de aspecto central da responsabilidade civil, o que se verifica no
Código de Napoleão de 1804, em que há todo o desenvolvimento da teoria da
responsabilidade subjetiva, com sua sistematização que, por sua vez, se reflete em todas as
legislações romano-germânicas posteriores, inclusive a brasileira.
A teoria da responsabilidade civil subjetiva foi adotada pelo legislador brasileiro no
Código Civil de 1916, conforme se observa da leitura do art. 159: “Aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência, ou imperícia, violar direito, ou causar prejuízo a
outrem, fica obrigado a reparar o dano.”
Todavia, a evolução da responsabilidade civil não pára por aí.
Diante das injustiças observadas com a Revolução Industrial, a partir da qual a
existência de barbáries e a discrepância entre as classes sociais se fazem presentes pela
influência cada vez maior do capital, a culpa restou inviável de ser comprovada em
determinadas situações, prevalecendo razão sempre aos mais fortes, restando ao lesado a
resignação.
A situação leva ao aprofundamento da teoria da responsabilidade objetiva, já nos
meados do século XIX, principalmente na França, tendo como precursores da idéia
Josserand, Georges Ripert, Savatier, seguidos pelos brasileiros Clóvis Bevilácqua, Alvino
Lima, Agostinho Alvim, José de Aguiar Dias, Orlando Gomes e San Tiago Dantas.128
Através da responsabilidade objetiva se pretendia dar maior atenção às vítimas,
adquirindo importância a teoria do risco, na qual a responsabilidade se assenta na mera
prática da atividade perigosa ou na utilização de instrumentos de produção que oferecem
risco pela manipulação ou controle.
127 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.5. 128 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Op. cit. p. 34 e STOCCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 76.
85
A responsabilidade, assim, surge exclusivamente do fato, não se questionando a
culpa na conduta. Importa a esta teoria assegurar o ressarcimento, verificando-se tão-
somente se ocorreu o evento e deste emanou o prejuízo, sendo o autor do fato o
responsável.
A matéria gera inúmeras controvérsias na doutrina. Alguns não admitindo a teoria
do risco, outros entendendo-a como substitutiva da doutrina da culpa. Prevalece a idéia
atual de que as duas teorias convivem, a culpa como a noção básica e o princípio geral
definidor da responsabilidade e a teoria do risco restrita às hipóteses especialmente
previstas.129
O princípio da responsabilidade civil objetiva já encontrava seu lugar no direito
brasileiro, antes do advento do Novo Código Civil, casuisticamente em artigos para casos
específicos do Código Civil (arts. 1.521 a 1.523 do CC/1916), na legislação sobre acidente
de trabalho, na que regulava as relações de transporte, na Constituição da República de
1988 (art. 37, §6°, responsabilidade civil do Estado), no Código de Defesa do
Consumidor.
O Novo Código Civil de 2002, por sua vez, contempla a proteção com base na
culpa e na atividade de risco, contendo cláusulas gerais, tanto para a responsabilidade
subjetiva como para a objetiva (arts. 186, parágrafo único do 927, 187, 936, 937, 939,
928).
Conclui-se, com a apertada síntese da evolução da responsabilidade civil que, ao
lado do direito de família, esta demonstra ser instituto sujeito a profundas transformações,
tendo levado Louis Josserand a afirmar que o termo mais adequado para se referir ao que
ocorreu com a responsabilidade civil seria revolução, já que tão rápido e fulminante o
movimento que a levou aos novos destinos.130
A responsabilidade civil passa a ter importância extremamente relevante como
instrumento de equilíbrio social capaz de promover a sanção e a prevenção de condutas
lesivas aos interesses individuais e coletivos, a fim de garantir a máxima moral do
princípio do neminem ladere.
129 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.271. 130 JOSSERAND, Louis. Evolução da Responsabilidade Civil. Trad. De Raul Lima. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 548.
86
A evolução ou revolução por que passou o ramo da responsabilidade civil traz à
atualidade a noção da responsabilidade fundada muito mais na importância da pessoa
humana e em sua dignidade. A proteção da pessoa humana faz com que o direito civil
abandone o seu caráter meramente patrimonial e passe a se dedicar à tutela dos direitos
fundamentais, surgindo, assim, a reparabilidade dos danos essencialmente morais.
1.1 Visão Geral dos Pressupostos da Responsabilidade Civil Subjetiva: a Conduta
Culposa, o Nexo Causal e o Dano
No que tange à responsabilidade subjetiva ficou claro que a mesma se funda na
culpa, se concretizando no ato ilícito, sendo necessário os seguintes pressupostos para sua
caracterização, quando extracontratual: conduta culposa, nexo de causalidade e dano.
No Código Civil de 2002, a responsabilidade civil subjetiva que faz parte da
essência do Direito, da sua ética e moral, decorrendo do princípio de que ninguém pode
causar dano a outrem, encontra, no dizer de Sérgio Cavalieri Filho, verdadeira cláusula
geral, com a conjugação dos artigos 186 e 927, uma vez que dispõe o artigo 927 que
aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo, sendo o ato
ilícito conceituado, no art. 186, como aquela ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, que viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.131
O art. 186 do Código Civil, portanto, traz expressamente os pressupostos da
responsabilidade civil subjetiva. A conduta culposa que causa dano a outrem ensejando o
dever de reparar que adquire relevância jurídica, seja ela caracterizada por uma ação ou
omissão.
Trata-se da exteriorização da atividade humana através de um comportamento
voluntário. A ação seria a forma mais evidente da exteriorização desta conduta, sendo
juridicamente relevante, em matéria de responsabilidade civil, quando cause lesão a
outrem que enseje o dever de reparação.
131 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 23.
87
O mesmo se revela nas condutas omissivas, em que o deixar de fazer tem o condão
de causar lesão a outra pessoa, passível de reparação; é a inatividade, abstenção de uma
conduta devida, é aquilo que se faz não fazendo.132
A relevância da conduta omissiva se verifica quando o agente causador tem o dever
jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado danoso. Este dever advém da
lei, do negócio jurídico ou da própria conduta anterior que cria o risco do resultado.133
Ressalte-se que a conduta culposa voluntária, pressuposto da responsabilidade
civil, é aquela em que basta que exista um mínimo de participação subjetiva, uma
manifestação do querer suficiente para afastar o resultado puramente mecânico; a culpa
relevante para a responsabilidade civil é aquela ampla, englobando o dolo e a culpa.
O dever de cuidado deve nortear a conduta humana, isto é, esta deve ser pautada de
modo a não causar dano a ninguém.
Por sua vez, o desrespeito ao dever que origine um prejuízo, ou seja, o resultado
causado pela violação do dever, caracteriza o nexo causal, outro pressuposto da
responsabilidade subjetiva. A relação entre o dano e a conduta.
É preciso, portanto, que haja uma relação de causa e efeito entre a conduta ilícita
praticada pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
O nexo causal é de suma importância para a caracterização da responsabilidade
civil, podendo haver responsabilidade sem culpa, mas não sem nexo de causalidade, sendo
assim elemento indispensável para a responsabilidade civil.
Concluindo, o nexo causal é elemento necessário para se identificar quem foi o
causador do dano, se o dano causado teve origem naquela conduta do agente. Assim, para
se intentar a ação de reparação é preciso demonstrar que sem o fato alegado o dano não se
teria produzido.134
O último dos pressupostos, o dano, é igualmente essencial para que se caracterize a
responsabilidade civil, já que sem dano não haveria que se falar em ressarcimento. Pode
haver responsabilidade penal, mas não civil. 132 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Op.cit. p. 24. 133 Novamente CAVALIERI, concluindo: “Em suma, só pode ser responsabilizado por omissão quem tiver o dever jurídico de agir, vale dizer, estiver numa situação jurídica que o obrigue a impedir a ocorrência do resultado. Se assim não fosse, toda e qualquer omissão seria relevante e, conseqüentemente, todos teriam contas a prestar à Justiça.” CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. ob. cit. p. 25. 134 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.107.
88
A indenização sem dano caracterizaria o enriquecimento sem causa, rechaçado
pelo ordenamento jurídico, sendo o objetivo da indenização a reparação do dano sofrido,
seja ele material ou simplesmente moral (art. 186 do CC).
Se a vítima não sofrer prejuízo não haverá ressarcimento, não sendo o dano,
portanto, fato constitutivo do direito, mas determinante do dever de indenizar.135
Assim, o dano é corolário natural da responsabilidade civil e a vítima deverá
comprovar o prejuízo para ser indenizada. Provado o dano, procura-se a reparação através
da reposição das coisas como eram antes. A idéia é repor as coisas ao status quo ante.
Não sendo viável a reparação ao status quo ante se faz necessário que o
ressarcimento se dê através de substituição, que se verifica, geralmente, em espécie, ou
seja, através do pagamento de perdas e danos.
O dano sofrido poderá se caracterizar por um dano material ou moral. O material
atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima. Neste patrimônio se incluiriam não
somente os bens patrimoniais propriamente ditos, como os bens personalíssimos, tais
como o nome, a saúde, a imagem, etc., o dano patrimonial indireto.
O dano moral se caracterizaria como aquele que não é material, que diz respeito a
sofrimento causado por perda não pecuniária.
1.2 A conduta omissiva do pai e da mãe, o dever legal de convivência, a lesão à
dignidade do filho e o nexo causal
Analise-se, à luz dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, a conduta
daquele pai ou daquela mãe, que possui um dever inerente ao estado de pai, do poder
familiar, o dever de convivência, unido ao dever de solidariedade e ao afeto como
elemento estrutural da pessoa humana, garantidor da formação desta pessoa humana, e
deixa de estar com a mesma, sem que haja qualquer excludente da ilicitude desta conduta,
se causadora de lesão à dignidade desta pessoa humana.
135 CAVALIERI conceitua: “o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é a lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão em patrimonial e moral.”CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 71.
89
Vislumbrada a conduta omissiva daquele que tem o dever constitucional de
garantir a formação da pessoa humana, através da ausência, frustrando o direito de
convivência da criança e do adolescente, e o nexo causal entre esta conduta ilícita e a lesão
da dignidade da pessoa humana, devidamente comprovada, resta evidente o dano moral
sofrido e o direito de ressarcimento.
A doutrina pátria vem se manifestando a respeito do tema de maneira esparsa e
mais voltada às outras lesões sofridas nas relações familiares, mas já há importantes
manifestações no sentido da reparação civil ante a ausência da figura do genitor.136
Considerando aplicável a teoria da responsabilidade civil ao direito de família,
corroborado pelos princípios constitucionais e a nova visão civil-constitucional do direito,
pelo que, somando-se toda aquela primeira parte do estudo a esta da responsabilidade
civil, em especial, o dano moral que se segue, faz-se necessária a adequação da hipótese a
fim de possibilitar ao intérprete sua aplicação ao dano moral entre pais e filhos,
principalmente, no que tange a ausência paterno-filial.
Desta forma, o que se pretende, conforme já se deixou claro anteriormente, não é
fomentar a discórdia nas relações familiares, tampouco patrimonializar estas relações,
antes sim, chamar aos pais e às mães a responsabilidade pelos danos morais causados a
seus filhos.
2 O Dano Moral e a Evolução Histórica
A responsabilidade pelos danos causados ao outro é o meio ou o modo de impor a
todos o dever de responder por seus atos, traduzindo, assim, a noção de Justiça existente
no grupo social estratificado.137
A teoria da responsabilidade civil visa a restabelecer o equilíbrio da ordem ou o
equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais ou materiais advindos
136 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil in Jurisprudência Comentada por Maria Celina Bodin de Moraes – RBDF n° 31. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 137 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 60.
90
das condutas lesivas ao interesse do outro. É a tradução do dever moral de não prejudicar o
outro, ou seja, o neminem ladere.
Havendo lesão ao direito do outro, o lesado tem direito a buscar, visando ao
equilíbrio social, a reparação jurídica a esta lesão, recorrendo ao Judiciário, que não
poderá negar o reconhecimento, caso comprovado.
Surgirá a responsabilidade civil e o direito à reparação do dano quando ocorrer a
conduta culposa, o nexo causal e o dano. A conduta poderá ter caráter comissivo ou
omissivo, podendo o ato ser lícito ou ilícito. O dano se caracteriza pela perda de um bem
ou pela diminuição parcial ou total do bem, enquanto que o nexo causal é o liame entre a
ação e o dano, a relação direta entre a conduta e o resultado lesivo.
A responsabilidade civil poderá ser subjetiva, embasada na culpa, e deverá ser
examinada a vontade presente na ação, se dolosa ou culposa, ou objetiva. Não será
discutida a culpa, bastando o risco, ou seja, deverá ser verificado o nexo causal entre a
ação e o dano.
O dano causado pelo ato lesivo poderá ser tão-somente de cunho material, de
cunho material e moral ou tão-somente de cunho moral. Enquanto o dano material tem
como efeito um prejuízo econômico ou pecuniário, que pode ser objeto de análise
matemática, o dano moral refere-se a prejuízos, inúmeras vezes incalculáveis, já que diz
respeito aos sentimentos, ao afeto, ao intelecto da pessoa lesada, aos direitos
personalíssimos, às lesões à dignidade da pessoa humana.
A teoria do dano moral sofreu resistência para se firmar, tendo, aos poucos,
vencido posições contrárias, até vir a ser assegurada pelo texto constitucional.
Inicialmente, os doutrinadores não reconheciam a reparação do dano moral, se
negava sua ressarcibilidade por ser o mesmo inestimável. Assim, sob a égide do Código
Civil de 1916, a indenização por morte se restringia aos danos materiais e à prestação de
alimentos, nos termos do art. 137 daquele Diploma Civil.
Posteriormente esta passou a ser possível quando autônoma, ou seja, quando não
viesse cumulada com o dano material, argumentando-se que o dano material absorveria o
dano moral.
91
Mais adiante, o STF passou a admitir que o ressarcimento pelo dano moral fosse
pleiteado cumulativamente com o dano material, desde que quem o pleiteasse fosse a
própria vítima.138
A indenização pela morte de filho menor foi o marco para a mudança de
pensamento do direito em relação ao dano moral, culminando com o verbete n° 491 da
Súmula do STF: “É indenizável o acidente que causa a morte de filho menor, ainda que
não exerça trabalho remunerado.”139
Ainda que houvesse um resquício de fundamento no dano material, causado pela
perda da expectativa de colaboração do filho no custeio da família, restou evidente a
intenção de indenizar o sofrimento causado pela perda.
A reparação pelo dano moral não busca o retorno ao status quo ante, já que em
sede de dano moral o que se busca não é restaurar aquilo que não se pode reconstruir, mas
tão-somente amenizar a dor sofrida pelo ato praticado.140
A consagração desta idéia se verifica ante a mudança da consciência coletiva
acerca do conceito de justiça, passando a ser evidente o que antes era inconcebível, não se
podendo ignorar que não era a dor que estava sendo paga, mas a vítima é que estava sendo
compensada em dinheiro no intuito de que lhe fosse abrandada a dor sofrida. 141
No direito brasileiro, esta consagração da reparabilidade do dano moral ocorre com
a Constituição da República de 1988 elegendo a dignidade humana como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, caracterizando o direito subjetivo
138 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 79. 139 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.251. 140 Argumenta Wilson Melo da Silva em sua obra clássica sobre o dano moral: “Na ocorrência da lesão manda o direito ou a eqüidade que se não deixe o lesado ao desamparo de sua própria sorte. E tanto faz que tal lesão tenha ocorrido no campo de seus bens materiais ou na esfera daqueles outros bens seus, de natureza ideal. O que importa, o que é mister, é a reparação, pelo critério da equivalência econômica, num caso, ou pelo critério da simples compensação, de mera satisfação, como o queiram, no outro. Estar-se-ia diante de um dano a cuja reparação prover-se, esta é que a realidade. E muito embora, na hipótese do dano moral, a reparação se torne um tanto ou quanto dificultosa, não poderíamos, por isso, negar-lhe reparação. Seria ilógico, absurdo e mesmo injurídico que uma dificuldade de ordem material contribuísse para uma injustiça. A pureza de um princípio não poderia, jamais, ser imolada a uma questão contingente.” SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.561. 141 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Ob. cit. p. 147.
92
constitucional à dignidade, concedendo ao dano moral maior dimensão, sob o
entendimento de que qualquer violação do direito à dignidade se traduz em dano moral. 142
Por sua vez, o Código Civil de 2002 se refere expressamente ao dano moral em seu
art. 186, tornando inócua qualquer discussão a respeito da reparação pelo dano moral. 143
No direito brasileiro, portanto, o dano moral ganha patamar constitucional, ao ter a
Constituição da República de 1988, eleito como fundamento do Estado Democrático de
Direito, a dignidade humana assentada na idéia de reparação do dano moral como eficaz
instrumento de garantia daquele valor fundamental.
2.1 A constitucionalização do dano moral
Esta verdadeira constitucionalização do dano moral, a par da constitucionalização
do próprio direito civil, não pode mais ser ignorada por seus operadores. Para tanto, a
solução para os conflitos não se encontra estagnada a um dispositivo legal. O ordenamento
jurídico inteiro deve ser analisado para a solução da querela, em particular os princípios
constitucionais fundamentais, que caracterizam a verdadeira base desta interpretação.
A dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, nova determinante
constitucional, tem na tutela da pessoa humana e na sua dignidade o objetivo a ser
perseguido em sede de responsabilidade civil. Tal assertiva se verifica partindo-se da
premissa de que a unidade do ordenamento jurídico é dada pela tutela à pessoa humana e à
sua dignidade.144
O Código Civil, por sua vez, deve ser interpretado de acordo com esta nova
determinante, qual seja, interpretado segundo a Constituição; assim, também os
dispositivos que tratam da pessoa humana e de sua dignidade e, conseqüentemente, do
dano moral, visto este como instrumento garantidor da reparação de possíveis lesões à
dignidade.
142 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros Editora, 2003, 4ª edição. p. 95. 143 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.47. 144 Neste sentido, Maria Celina Bodin de Moraes, para quem a unidade do ordenamento é dada pela tutela da pessoa humana e de sua dignidade. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003. p. 182.
93
O objetivo perseguido pelo ressarcimento do dano moral é garantir a dignidade da
pessoa humana em qualquer situação da vida social em que algum aspecto de sua
personalidade esteja ameaçado ou tenha sido lesado.145
A Constituição, nesta esteira deste raciocínio, torna expressamente possível a
reparação do dano moral como instrumento posto à disposição daquele que porventura
vier a sofrer lesão não puramente patrimonial. Isto se observa com a leitura de alguns
dispositivos constitucionais (art. 5°, incisos V, X). Constitucionalizado, assim, o dano
moral.
2.2 A Difícil Tarefa de Conceituar o Dano Moral
Ultrapassada a questão da indenização ou não do dano moral que teve seu percurso
sombrio findando na constitucionalização, a fim de proporcionar a proteção total à
dignidade da pessoa humana, passa-se à discussão a respeito da conceituação do dano
moral, à discussão do que se constitui afinal em dano moral.146
Alguns conceituam o dano moral partindo de um conceito negativo, ou seja, o dano
moral como todo aquele que não tivesse cunho patrimonial, isto é, dano moral é qualquer
sofrimento que não é causado por perda pecuniária, que não atinge o patrimônio da vítima.
Por outro lado, há o conceito positivo, segundo o qual o dano moral seria a dor,
vexame, sofrimento, angústia, desconforto, humilhação, enfim, a dor da alma.147
Para Pontes de Miranda o dano moral é aquele que só atinge o ofendido como ser
humano, sem que haja repercussão no patrimônio.148
Wilson Melo da Silva define o dano moral como a lesão sofrida pelo sujeito em
seu patrimônio ideal, entendendo como patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio
material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. Para o
145 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. ob. cit. p. 182 146 Neste sentido, Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho: “Enfim, o que configura e o que não configura o dano moral? Este é o ponto de partida para o equacionamento de todas as questões relacionadas com o dano moral, inclusive quanto à sua valoração.” DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. XIII. coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.99. 147 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 79. 148 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Vol. XXVI. Rio de Janeiro: Forense. 1996. p.30.
94
autor, o elemento característico do dano moral é a dor, tomando o termo em sentido
amplo, abrangendo os sofrimentos físicos e morais.149
Conceituando o dano moral, José de Aguiar Dias, para quem o dano é uno, não se
devendo discriminar o mesmo em patrimonial e extrapatrimonial em atenção à origem,
mas aos efeitos, afirma que o dano moral é a reação psicológica à injúria, são as dores
físicas e morais que o homem experimenta em face da lesão. 150
Arnaldo Rizzardo, por sua vez, aduz que o dano moral é aquele que atinge direitos
eminentemente espirituais ou morais, como a honra, a paz, a liberdade física, a
tranqüilidade de espírito, a reputação, entre outros, sem repercussão no patrimônio do
lesado, atingindo somente valores precípuos da vida, como a paz, a liberdade individual, a
integridade física, a honra, a tranqüilidade de espírito e demais sagrados afetos.151
O Superior Tribunal de Justiça exclui do rol do dano moral os aborrecimentos
triviais a que estão sujeitos os cidadãos no dia-a-dia, como as filas de atendimento, a falta
de estacionamentos, os engarrafamentos etc.152
Neste sentido, Sergio Cavalieri afirma que só deve ser reputado como dano moral,
a dor, o vexame, o sofrimento ou a humilhação que interfira de modo anormal no
comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústias e desequilíbrio
em seu bem-estar.153
149 SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.01 e 02. 150 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.740/741. 151 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.246. 152 “Responsabilidade civil. Multa de trânsito indevidamente cobrada. Repetição de indébito. Indenização. Dano moral. Dano presumido. Valor reparatório. Critérios para fixação. (...) 3. Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc. No caso dos autos, o autor foi obrigado, sob pena de não-licenciamento de seu veículo, a pagar multa que já tinha sido reconhecida, há mais de dois anos, como indevida pela própria administração do DAER, tendo sido, inclusive, tratado com grosseria pelos agentes da entidade. Destarte, cabe a indenização por dano moral. (...) 5. Recurso especial provido.” REesp. n° 608.918 – RS, da 1ª Turma, j. em 20.05.2004. 153 Continua: “Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exarcebada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da modalidade de nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são tão intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.” CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 80.
95
Afirma, ainda, que todos os conceitos tradicionais de dano moral tiveram que ser
revistos ante a ótica da Constituição de 1988, já que esta coloca o homem no vértice do
ordenamento jurídico, transformando-o em fio condutor de todos os ramos do direito.
Tendo a Constituição consagrado a dignidade humana como verdadeiro direito subjetivo
constitucional, deu ao dano moral nova feição e maior dimensão, já que a dignidade é a
base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos; assim,
dano moral nada mais é do que violação do direito à dignidade.154
Yussef Said Cahali, para quem parece mais razoável caracterizar o dano moral por
seus próprios elementos, entende como dano moral tudo aquilo que molesta gravemente a
alma humana, ferindo-lhe seriamente os valores fundamentais inerentes à sua
personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, não havendo,
portanto, como enumerá-los exaustivamente.155
Da mesma forma, Carlos Alberto Bittar qualifica os danos morais como aqueles
danos em razão à esfera da subjetividade, do plano valorativo da pessoa na sociedade. 156
Na visão contemporânea de Maria Celina Bodin de Moraes, constitui dano moral a
lesão a qualquer dos aspectos componentes da dignidade humana – dignidade esta que se
encontra fundada em quatro substratos e, portanto, corporificada no conjunto dos
princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade.157
Diante dos inúmeros conceitos se pretendeu e se pretende dar ao dano moral a
relevância do deslinde da questão, se faz importante se passar à discussão sobre a
indenização do referido dano, já que o mesmo, segundo o entendimento contemporâneo de
Cavalieri e Maria Celina, se constitui por lesão à dignidade humana, valor supremo do
Estado Democrático de Direito, que se pretende garantir.
Ante a impossibilidade de se ressarcir o prejuízo sofrido através do retorno ao
estado anterior, já que o mesmo não se recompõe, se pretende, ao menos, compensar o mal
sofrido, a dor da alma, proporcionando ao lesado uma sensação de alento ou comodidade,
154 DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sergio. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. XIII. coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.101 e CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 80. 155 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2ª edição. 1998. p.20. 156 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. São Paulo: RT, 1992. p.41. 157 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.327.
96
através de uma reparação pecuniária, ao mesmo tempo em que se impõe ao responsável
pelo dano uma sanção.
A certeza da necessidade de indenizar o dano moral já se vai ao longe, com toda a
matéria legislada e eivada a patamar constitucional, mas a discussão sobre o caráter desta
indenização permanece.
2.3 O Caráter Compensatório e Sancionador
A evolução do dano moral a par de toda a revolução da responsabilidade civil,
tendo-se no dano o pressuposto daquela última, torna extreme de dúvida a sua reparação.
O dano moral deve ser indenizado, não se justificando, numa sociedade avançada,
que se repare somente o dano material, ainda que irrisório, e se deixem de lado as dores da
alma. Isto seria patrimonializar o direito, dizer que o legislador somente se interessa por
aquilo que tem valor econômico.158
A impossibilidade de se restaurar o status quo ante, portanto, não foi motivo
suficiente para impedir a superação da discussão e a consagração da reparação.
Assim, ainda que não se possa falar em indenização, por ser da origem da palavra a
devolução do patrimônio ao estado anterior, o que não se coaduna com o dano moral, uma
vez referente a lesão extrapatrimonial, não há que se olvidar da reparação.
A questão pode ser considerada como meramente terminológica já que o legislador
constitucional não fez distinção, conforme se observa do inciso X do art. 5° da CR, que se
refere à indenização do dano moral.
Deixada para trás a idéia de que só o tempo é capaz de curar as dores da alma, se
põe a questão da compensação ao dano sofrido.
A reparação se faz imperiosa, quer se dê pelo critério da equivalência econômica,
inviável no que diz respeito ao dano moral, quer pelo critério da compensação, da mera
158 Aguiar Dias, citando os irmãos Mazeaud: “Mazeuad e Mazeaud, analisando as teorias propostas para a solução da questão, pronunciam-se, com o seu grande prestígio, pela reparabilidade.(...).‘O direito, ciência humana, deve resignar-se a soluções imperfeitas como a reparação, no verdadeiro sentido da palavra. Cumpre ver, nas perdas e danos atribuídos à vítima, não o dinheiro em si, mas tudo o que ele pode proporcionar no domínio material ou moral.” DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.747.
97
satisfação, que se traduz pelo respeito por aquilo que se é (pessoas humanas) e não
somente por aquilo que se tem.159
O que se pretende com a reparação, portanto, nada mais é do que a compensação
do sofrimento experimentado através de indenização pecuniária que permita que o lesado
tenha experiências outras, visando a amenização das angústias e dissabores, como melhor
lhe convier.
A compensação poderá não ser aquela procurada, poderá não ser tão amenizadora
diante da imensa dor sofrida. Sendo certo que não se poder mensurar tal dor, estando a
mesma no caráter subjetivo do lesado, todavia se procura chegar o mais próximo possível
da reparação ou da satisfação do espírito.
O que não se pode admitir é voltar ao início das discussões a respeito dos institutos
e deixar sem reparação o lesado em sua dor moral, sob qualquer fundamento, muito menos
sob o fundamento da impossibilidade de simetria do dano ao ressarcimento.
Tampouco se deve afastar o ressarcimento, sob o argumento de que se criará uma
nova mentalidade nas relações, como fomentar a indústria do dano moral, a substituição
das condutas lícitas pelas reparações, o que inviabilizaria a condenação à indenização aos
pais ausentes, sendo fundamento este de algumas decisões contrárias ao ressarcimento.
Demonstrada a lesão à dignidade da pessoa humana, não há que se afastar a
reparação.
Indiscutível o caráter compensatório, melhor sorte não tem o caráter sancionador, o
punitivo.
Conforme salientado anteriormente, a divisão entre o direito público e privado
deixava a cargo do Estado a punição da lesão ao bem jurídico de ordem pública, enquanto
que ao particular restava buscar a indenização pelas lesões aos bens jurídicos de ordem
privada, daí a divisão entre o direito penal e o direito civil, considerando-se aqueles
primeiros, inicialmente, como exclusivamente de cunho penal. Por sua vez, a conduta que
estava sujeita à reparação civil restringia-se à conduta voluntária, negligente ou dolosa. 159 Neste sentido Wilson Melo da Silva: “O que se proclama, o que se repete a cada passo, é que os sofrimentos morais não se devem pesar ou medir segundo as regras clássicas da equivalência econômica ou segundo os mesmos modelos cânones usuais na pesagem dos puros danos patrimoniais.” E, continua: “A regra do neminem laedere é ampla. E para utilizarmo-nos do mesmo linguajar de IHERING, devemos e podemos esperar que se nos respeite não apenas naquilo que temos, mas, também, naquilo que somos.” SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.01 e 02.
98
Na responsabilidade penal há a investigação da culpabilidade do criminoso e da
anti-sociabilidade do seu ato; na responsabilidade civil destaca-se a pessoa da vítima,
buscando restaurar o direito violado, por meio de indenização dos danos que lhe foram
causados.160
A separação entre pena e indenização retirava da indenização qualquer conotação
punitiva, sendo exclusiva do Estado, e a reparação civil exclusiva do cidadão.
A indenização por dano moral se restringiria à compensação da lesão, excluída
qualquer conotação punitiva.
Todavia, embora esta seja a idéia inicial adotada pelo legislador ordinário, já que
não há qualquer dispositivo161 que contemple o caráter punitivo, a doutrina e a
jurisprudência atual têm inúmeros adeptos à punição.162
Para os adeptos do caráter sancionador do dano moral, a satisfação deste dano visa,
além de atenuar o sofrimento, prevenir ofensas futuras, fazendo com que o ofensor não
deseje repetir o comportamento, servindo, ainda, como exemplo, para que não se queira
imitá-lo.
A reparação do dano moral teria, segundo este entendimento, duplo aspecto,
compensatório e punitivo, este último impondo uma penalidade exemplar ao ofensor,
consistindo na diminuição do patrimônio com transferência da quantia ao patrimônio do
lesado.163
O caráter sancionador ou preventivo, aliás, foi considerado como princípio da
própria responsabilidade civil, estranhado o fato de nunca ter se dado a importância
160 SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Reparação Civil na Separação e no Divórcio. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 133. 161 “Adianta-se que o novo Código Civil, em nenhuma de suas numerosas disposições sobre a responsabilidade civil contempla o caráter punitivo.” MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.217. 162 CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, SILVIO RODRIGUES, SERGIO CAVALIERI, CARLOS ALBERTO BITTAR entre outros. Para Caio Mário: “Quando se cuida de dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: ‘caráter punitivo’ para que o causador do dano, pelo fato da condenação se veja castigado pela ofensa que praticou; e ‘caráter compensatório’ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.” Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997, 8ª edição, p. 55. 163 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Ob. Cit. p.219.
99
merecida ao referido princípio, ante o entendimento da prevenção como essencial para a
manutenção da ordem pública.164
A idéia está em fazer com que o lesante e a sociedade fiquem advertidos quanto à
inaceitabilidade da conduta, de modo que o valor da condenação punitiva se consubstancie
em montante expressivo, que faça com que este sinta a resposta da ordem jurídica aos
efeitos da lesão.
Ao lado desta idéia, a da teoria do desestímulo, cuida-se sempre para que não haja
o enriquecimento excessivo do lesado.165
Este caráter punitivo das indenizações detectado nos punitive damages americanos
e seus valores absurdamente fixados seriam objeto de infindáveis críticas, considerados
como causadores da crise da responsabilidade civil nos Estados Unidos, a partir dos anos
1990, tendo sido estabelecidos naquele país, em diversos Estados, tetos legais para as
indenizações a esse título.166
A versão punitiva não é totalmente estranha ao direito civil brasileiro. Encontra-se
algo parecido na cláusula penal. Esta não parece, contudo, ser a finalidade do direito civil
pátrio, cuja finalidade é a compensação que não se encontra na punição, função exclusiva
do Estado.
164 Aguiar Dias citando Marton sobre o tema. DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994.9ª edição. p.97/98. 165 A respeito do caráter pedagógico da reparação, vejamos a jurisprudência: - APELAÇÃO CÍVEL 2006.001.54973 - Des. Mauro Dickstein – julg.: 27/02/2007 – 16ª Câm. Cív. TJ/RJ – “Indenizatória. Danos morais. Autor atingido na calçada por espelho retrovisor. Condenação da ré no pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 2.000,00. Danos materiais consistentes em três dias de incapacidade, tomando-se por base o valor de um salário mínimo. Apelação. Provimento parcial. Afasta-se o requerimento de condenação da apelada em litigância de má-fé. Montante que não guardou a parcela de razoabilidade que deve nortear as indenizações desta natureza. Majoração do valor da reparação para quantia que melhor atenda ao caráter compensatório / pedagógico da indenização, que visa reprimir a conduta danosa e, ao mesmo tempo, satisfaça a compensação do sofrimento e da humilhação do lesado. Reforma da sentença. Provimento parcial do recurso”. E, no mesmo sentido o STJ: Resp. 355392/RJ Min. Rel. Castro Filho. “DANO MORAL. REPARAÇÃO. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO DO VALOR. CONDENAÇÃO ANTERIOR, EM QUANTIA MENOR. Na fixação do valor da condenação por dano moral, deve o julgador atender a certos critérios, tais como nível cultural do causador do dano; condição sócio-econômica do ofensor e do ofendido; intensidade do dolo ou grau da culpa (se for o caso) do autor da ofensa; efeitos do dano no psiquismo do ofendido e as repercussões do fato na comunidade em que vive a vítima. Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares, sem que sirva, entretanto, a condenação de contributo a enriquecimentos injustificáveis. Verificada condenação anterior, de outro órgão de imprensa, em quantia bem inferior, por fatos análogos, é lícito ao STJ conhecer do recurso pela alínea c do permissivo constitucional e reduzir o valor arbitrado a título de reparação. Recurso conhecido e, por maioria, provido.” (grifos nossos) DJ 17.06.2002 p. 258. 166 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.252.
100
Diz-se que adotando sem restrições o caráter punitivo, deixando-o ao arbítrio do
juiz, há o risco de ocorrer a violação do princípio constitucional da legalidade, segundo o
qual não há crime e não há pena sem lei anterior que os defina, fora as garantias
processuais penais.167
A reparação civil não poderia se traduzir, assim, em uma pena privada. A
responsabilidade civil visa a pessoa do ofendido e seu ressarcimento e não a pessoa do
ofensor. O que se pretende no juízo cível é recompor a conseqüência do delito, não se
cuidando do delito em si. 168
Diante de todas as querelas advindas da possibilidade ou não da adoção do caráter
punitivo nas questões do dano moral, esta parece ser merecedora de análise específica,
sendo aplicada somente a situações excepcionais, sérias e potencialmente causadoras de
lesões a grande número de pessoas, seguindo entendimento de Maria Celina Bodin de
Moraes, para quem a razão será a função preventivo-precautória que o caráter punitivo
detém em relação às dimensões do universo a ser protegido169.
Parece que o caráter punitivo se adequaria bem à hipótese do dano moral nas
relações entre pais e filhos, se traduzindo em verdadeira sanção ao pai ausente que
descumpre com seus deveres oriundos da paternidade, submetendo-se, não somente às
sanções penais, já anteriormente mencionadas (item 2.3.1), mas à sanção civil, quer a
reparação compensatória e ainda a de caráter punitivo, através desta condenação presente
no art. 249 do ECA, superada assim a idéia daqueles que a renegam em razão do nulla
poena sine lege.
Em que pese o entendimento asseverado, tem-se consciência de que o presente
estudo não pode ter o condão de adentrar em tema tão tormentoso e passível de diversos
entendimentos.
167 Novamente Maria Celina Bodin de Moraes: “A este respeito, é de se ressaltar ainda que grande parte dos danos morais, aos quais se pode impor o caráter punitivo, configura-se também como crime. Abre-se, com o caráter punitivo, não apenas uma brecha, mas uma verdadeira fenda num sistema que sempre buscou oferecer todas as garantias contra o injustificável bis in eadem. O ofensor, neste caso, estaria sendo punido duplamente, tanto em sede civil como em sede penal, considerando-se, ainda, de relevo o fato de que as sanções pecuniárias cíveis têm potencial para exceder em muito, as correspondentes do juízo criminal.” MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.217. 168 SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.573. 169 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.263.
101
Veja-se, então, o dano moral nas relações entre pais e filhos propriamente ditas e as
hipóteses que se pretende analisar, em especial aquela que se faz objetivo central do
estudo, a ausência do pai ou da mãe e a lesão à dignidade humana do filho.
2.4 O Dano Moral e as Relações Paterno-Filiais
Fundado no princípio da secularização da culpa no direito de família, na
prevalência da igualdade, da liberdade, dos interesses dos sujeitos da relação familiar, da
felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana,
poderá se fundamentar que não há que se falar em culpa nas relações oriundas do afeto e
em responsabilidade civil nestas relações, e que o dano moral somente teria cabimento nas
hipóteses em que houvesse a comprovação do ilícito penal, que ensejaria desta forma a
indenização moral.170
Ocorre que o ato ilícito poderá ou não ser ilícito penal. Por sua vez, o ilícito civil é
passível de indenização moral também nas relações advindas do direito de família.
Acrescente-se que no direito brasileiro, diante da legislação vigente, não há impedimentos
para a aplicação das regras e princípios da responsabilidade civil nas relações parentais.
A preservação da família, em qualquer de suas modalidades, é indispensável para
que se realize o princípio da dignidade da pessoa humana, chegando a se dizer que um
instituto tem como fim imediato o outro.
A importância da análise das relações familiares e de todos os direitos e deveres
oriundos destas relações, em especial a relação entre pais e filhos, do poder familiar, do
direito à convivência familiar, do princípio do melhor interesse da criança (aqui entendida
como criança e adolescente), do afeto como elemento estrutural à formação da pessoa
humana, bem como os princípios que norteiam o intérprete na função de proteger o valor
maior, a dignidade humana, culminando com a adoção de uma verdadeira cláusula geral
de tutela, se dá no momento de pôr em prática todas estas noções, para que se busque
prevenir, garantir ou até mesmo indenizar qualquer lesão porventura sofrida pelos
membros daquelas relações.
170 WELTER, Belmiro Pedro. A Secularização da Culpa no Direito de Família. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 05 de julho de 2004.
102
O sistema atual coloca à disposição, para tutelar os direitos da personalidade e as
lesões à dignidade da pessoa humana, uma série de mecanismos práticos, ainda que estas
não se traduzam em lesões patrimoniais.
A intervenção estatal foi analisada no que diz respeito à função preventiva e
punitiva das condutas lesivas à personalidade dos filhos menores, em relação à gravidade
que importe na necessidade da direta intervenção estatal, através dos órgãos de controle,
como os Conselhos Tutelares, o Ministério Público, entre outros. Todavia, nem sempre
esta intervenção se vislumbra como necessária ou como a melhor solução.
Da mesma forma, a punição penal pura e simples não tem o condão de amenizar o
sofrimento da vítima, figura principal da responsabilidade civil.
Por sua vez, a idéia de que a família se encontra isenta das incursões do direito à
reparação restou abandonada e cheirando a mofo, não devendo o intérprete se coadunar a
tal figura do passado.171
A dignidade da pessoa humana, como valor supremo da personalidade humana e
do Estado Democrático de Direito, deve estar preservada não só no que diz respeito aos
relacionamentos interpessoais fora do âmbito familiar, como naquele seio.
Havendo lesão à dignidade da pessoa humana, através de violação a quaisquer
daqueles direitos ditos como da personalidade, impõe-se a reparação.
Quanto à autoria destas lesões, não há restrição à responsabilidade, podendo assim
ser autor a mãe ou o pai.
As crianças e os adolescentes merecem proteção especial, tendo o legislador
constituinte eivado àquele patamar o princípio segundo o qual deve prevalecer o melhor
interesse da criança.
Este aspecto, somado a todos aqueles outros amplamente debatidos, resultam na
tutela à sua integridade física, psíquica e moral, se inserindo aí o direito à reparação
extrapatrimonial.
O descumprimento dos deveres oriundos do poder familiar enseja, assim, a
possibilidade de o filho buscar em juízo a reparação pelos danos causados em sua
conseqüência.
171MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.56.
103
O simples fato de se estar diante da possibilidade de se perquirir em juízo
reparação pela lesão à dignidade não está a significar que haja a troca daqueles deveres por
simples indenizações civis.
Não se pretende fomentar a “indústria do dano moral”, conforme anteriormente
salientado, objeto de um item específico deste estudo. A lesão deverá ser objeto do caso
em concreto.
Há notícia de vários tipos de lesão à dignidade da pessoa humana nas relações
entre pais e filhos, não se podendo esgotar, no presente estudo, as inúmeras possibilidades
em que a lesão ocorre.
Haverá situações em que a conduta ilícita poderá causar lesão ao direito do outro
genitor, e, não somente em relação ao filho, como quando a lesão se der por obstrução ao
exercício do direito de visitas.
Nesta hipótese, o genitor privado de seu direito de convivência com o filho terá
direito à reparação civil, assim como poderá proporcionar ao filho, obstruído do seu direito
de convivência familiar, tal reparação.
Importa aqui a reparação a que faz jus o filho, verdadeiro titular do direito à
convivência familiar, mas não se pode negar a possibilidade do genitor, privado da visita,
de ver ressarcido seu dano. 172
O princípio do melhor interesse da criança poderá fazer com que o direito de
visitas seja restrito ou até mesmo que seja vedado, já tendo sido analisada, inclusive, a
possibilidade da suspensão e perda do poder familiar, o que poderia levar à negativa
daquele direito.
Todavia, resta evidente que esta limitação ao poder familiar, levando sempre em
conta o melhor interesse da criança, deverá ser objeto de decisão judicial, não cabendo
esta deliberação ficar a critério do genitor guardião.
De outro modo, cabível a reparação civil.
172 Neste sentido Bernardo Castelo Branco: “Temos presente, portanto, todos os elementos necessários à caracterização da responsabilidade civil por dano moral, não restando dúvida de que nas hipóteses de obstrução injustificada ao exercício do direito de visitas incorre o responsável na prática de comportamento capaz de estabelecer o dever de reparar o dano experimentado pelo derradeiro beneficiário desse direito, ou seja, o próprio menor.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.184.
104
O mesmo se diga na investigação de paternidade ou reconhecimento de
paternidade, em que o filho se vê privado da paternidade, ao alvedrio da mãe, que
entendeu melhor não esclarecer ao mesmo a verdade da filiação.
Outra hipótese se vislumbra na negativa injustificada da paternidade na
investigação, sendo possível a sua cumulação com a investigatória. A negativa
injustificada, objeto de análise no caso em concreto, poderá atingir o filho, lesando-o em
sua dignidade ante a demora no reconhecimento de paternidade que se tem como certa,
assim como a falta do estabelecimento da filiação genética.
A matéria é controvertida, assim como toda matéria de indenização nas relações
familiares, fundando-se a tese contrária na impossibilidade de se indenizar moralmente
aquele que ainda não era pai, sob a alegação de que a sentença na ação de investigação de
paternidade teria caráter constitutivo.173
Este caráter constitutivo da sentença, na ação de investigação de paternidade,
parece superado ante a opinião majoritária da doutrina no sentido de se tratar de sentença
declaratória.174
Superado o caráter da sentença, é cabível novamente a reparação civil quando
ocorre a negativa injustificada, sob o argumento de que o reconhecimento voluntário é um
dever do pai, não se tratando de ato discricionário.
A omissão ou a resistência ao reconhecimento paterno constitui conduta passível
de gerar a obrigação de reparação do dano moral. Faz-se necessária a prova da culpa
daquele genitor, podendo ser excluída tal responsabilidade, caso reste comprovada a culpa
da mãe, conforme anteriormente mencionado, aquela que oculta a paternidade ou se
mantém inerte ao dever de reclamar o reconhecimento.175
173 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: RT, 1998. p.662. 174 OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de. A Nova Lei de Investigação de Paternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.p.188/192. No mesmo sentido já se manifestava Yussef para quem a sentença na investigação é declaratória, preexistindo à sentença o estado filial, tendo a mesma efeitos ex tunc. CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: RT, 1998. p.662 175 Novamente Bernardo Castelo Branco: “Logo, o oferecimento de resistência injusta ao reconhecimento configura inegável afronta ao direito do filho, da qual, como já vimos, resultam inúmeras conseqüências de ordem social, com nefastos reflexos sobre a saúde psíquica e formação da personalidade do infante rejeitado.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.126 e 133/134.
105
Outros inúmeros casos poderão advir das relações entre pais e filhos e resultarem
em lesão à dignidade humana, não sendo possível, tampouco sendo objeto do presente
estudo, elaborar rol exaustivo das mesmas.
Passa-se a analisar a hipótese que mais interessa ao estudo, e que parece de suma
importância a permear as relações futuras entre pais e filhos, assim como as decisões
jurisprudenciais. A hipótese da ausência da figura paterna ou materna, configurando falta
de afeto na relação filial e, conseqüentemente, a lesão que dá ensejo ao dano moral.
3 O pai e a mãe ausentes e a lesão à dignidade do filho A convivência familiar, interpretada, após o advento da Constituição de 1988,
como direito, é pressuposto para o crescimento e estruturação da pessoa humana, em
especial na pessoa dos filhos menores, conforme já alinhavado na seção do direito à
convivência familiar (3.1, do Título I).
Atendendo-se ao princípio do melhor interesse da criança, é direito do filho
conviver com seus pais, ainda que os mesmos não dividam o mesmo lar, devendo os
genitores colaborar para que esta convivência aconteça, de forma que o filho receba o tão
valioso afeto de ambos.
Por outro lado, é sabido que o melhor interesse da criança poderá determinar que a
mesma se abstenha de ter contato com um ou ambos os genitores. Estas situações devem
ocorrer somente nos casos expressos, mediante decisão judicial fundamentada, após o
devido processo legal, como dito anteriormente.
Na maioria dos casos, o rompimento ocorrido nas relações familiares, as
separações e divórcios acabam por dar causa a rompimentos e afastamento entre aqueles e
seus frutos e, conseqüentemente, lesões à dignidade da pessoa dos filhos ensejando as
ações reparatórias.176
Da mesma forma, dão causa a lesões à dignidade dos filhos a falta de convivência e
de afeto daqueles pais que não os reconhecem a bom tempo, perpetrando situações de
desamparo, por razões incontáveis.
176 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47.
106
Em qualquer destas hipóteses, comprovada a conduta, o nexo causal e a lesão, resta
identificada a necessidade de reparação.
Fundamenta os entendimentos contrários ao referido ressarcimento o fato de que o
afeto não pode ser cobrado, não pode ser exigido dos pais em relação aos filhos, podendo
ser exigida tão somente a assistência material.
Durante a explanação dos fundamentos trazidos no presente estudo, procura-se
demonstrar a fragilidade deste argumento, bem como os inúmeros motivos que
possibilitam o referido ressarcimento, retirando dele qualquer idéia de ilegalidade e
amoralidade.
Os argumentos trazidos no que tange à nova função da família, à aplicação dos
princípios constitucionais, à necessidade da intervenção estatal nas relações familiares, ao
novo semblante da responsabilidade civil, fazem possível identificar inúmeras razões
legais e constitucionais para, em busca da proteção ao princípio da dignidade da pessoa
humana, sem precisar se recorrer à criatividade do julgador, fundamentar o cabimento do
ressarcimento civil pela falta de afeto entre pais e filhos.
Nos casos em que a ausência e a falta de afeto ocorrem após o rompimento da
união dos pais, mister se faz ressaltar que as intercorrências havidas entre aqueles não
podem significar justificativa para o rompimento dos laços com os filhos, sob pena de
deixarem de cumprir com os deveres oriundos do poder familiar, garantidos
constitucionalmente.
Já foi esclarecido anteriormente que a conduta do abandono moral do filho,
independentemente do abandono material, é tipificada como infração administrativa pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (art.249).177Assim como o abandono intelectual é
tipificado pelo Código Penal (art. 246).
A afirmação de que a falta de prazer na paternidade não pode resultar em
convivência entre estes não pode justificar a negligência do filho. Nas hipóteses em que a
paternidade é preestabelecida, ou seja, nos casos em que a ausência ocorre após o
rompimento das relações de afeto entre genitores, o argumento não convence.
177 “Art. 249 do ECA – Descumprir dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio-poder ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.”
107
Tal argumento serviria de base para fundamentar aquelas hipóteses em que a
paternidade não é estabelecida inicialmente. Nos casos em que decorre de uma ação de
investigação de paternidade, por exemplo, no qual se diz que não há satisfação do pai em
ter o filho, o que, a todo evidente, ora se questiona.
A Constituição da República põe a salvo os direitos dos filhos, inclusive o de não
serem discriminados, ante a isonomia entre eles.
Outrossim, é sabido que no Brasil é proibido o aborto, sendo crime previsto no art.
124 do Código Penal. 178
É sabido, ainda, que, com as exceções das contracepções através das reproduções
assistidas, os filhos são frutos de relações entre homens e mulheres, sendo, portanto,
ambos responsáveis por estes.
Por sua vez, verifica-se que no Brasil não ocorre esta responsabilidade pela
paternidade de maneira generalizada, sendo estimado em 30% o número anual de crianças
sem paternidade estabelecidas, atribuídas ao “sexismo”, permitindo aos homens que se
eximam da responsabilidade pelo sustento e criação dos filhos, sob o fundamento de que
os relacionamentos não passaram de aventuras e que não há vontade de ser pai, portanto
não há afeto, tampouco responsabilidade.179
A ausência da convivência sadia entre pais e filhos causa profundas marcas na
personalidade da criança, conforme estudos psiquiátricos, sendo a ausência uma das
causadoras, inclusive, da crescente violência e delinqüência juvenil, que assola
principalmente as camadas mais desfavorecidas da sociedade.
178 “Art. 124 do Código Penal – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.” Neste sentido Celina de Moraes: “Portanto, pode mesmo não haver qualquer ‘prazer’ ou ‘satisfação’ em ter um filho gerado acidentalmente. No entanto, sendo o aborto proibido, este é um encargo que deve ser assumido tanto pela mãe quanto pelo pai, de quem a lei espera e exige que, a prescindir de seus mais íntimos sentimentos, assuma, perante a sociedade e o Estado, isto é, perante a comunidade de adultos, a responsabilidade pela criação e sustento da criança.” MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47. 179 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47, que ressalta: “No Brasil, ocorre a blindagem do pai, que não se sente obrigado a reconhecer filhos concebidos fora do casamento ou em relações não estáveis.’ É o resultado de séculos de patriarcalismo que ainda hoje se manifesta.”
108
Negligenciar esta assertiva, sob qualquer fundamento, é por demais retrógrado e
preconceituoso, até porque o fundamento da responsabilidade civil não é mais o autor da
conduta e sua culpa e sim a primazia da vítima, que não pode ficar irressarcida.
É caso de modernizar-se ainda mais, e tirar do papel o direito de família brasileiro,
que se encontra entre os mais avançados do mundo, passando a responsabilizar a
paternidade, já que a responsabilidade parental aqui recai em número considerável na
pessoa da mãe.180
Existindo a família para o indivíduo e não mais aquele para esta, os filhos menores,
em especial, devem encontrar ali solidariedade e afeto, sendo dever dos pais, sejam eles
pais por opção ou por acidente, velar pelos filhos, no intuito de garantir a proteção à
dignidade humana, independentemente do fato de haver ou não amor nestas relações,181
até porque, é notório o conhecimento de que a convivência muitas vezes constrói o afeto,
sendo exemplo disso as adoções e as famílias recompostas.
A ausência de um dos pais resulta em tristeza, insegurança, insatisfação, angústia,
sentimento de falta, com efeitos quase sempre de ordem psíquica, como a depressão, a
ansiedade, além de traumas outros, o que se repugna pela consciência comum e pelos
princípios constitucionais, em especial da solidariedade familiar.182
Outrossim, a lesão à dignidade da pessoa humana está a determinar o surgimento
do dever de indenizar. Quando a dignidade é ofendida há que se reparar o dano sofrido,
restando, tão-somente, a discussão quanto à forma de se indenizar e os critérios a serem
adotados para indenizar.
Portanto, a relevância do aspecto da personalidade humana, constitucionalmente
assegurada, deve encontrar resguardo na esfera judicial, sob pena de se tornar inócua a
cláusula geral de tutela.
180 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. ob. cit. p.56. 181 Para Maria Celina de Moraes evidente o direito ao ressarcimento nestas hipóteses: “Portanto, é evidente que a lei não exige que um pai ame seus filhos, mas ela demanda que o pai se comporte como se os amasse, criando-os, educando-os e sustentando-os. Tal responsabilidade não é facultativa. É a lei a impor o dever, além do sustento, de criação e educação dos filhos (art. 1.634, I e II, CC e arts. 3°, 4° e 5°, entre outros, do ECA). Uma das conseqüências do descumprimento desses deveres é a perda do poder familiar (art. 1637, CC), mas não é a única. Uma vez que foram lesados interesses constitucionalmente protegidos do filho (ex vi do art. 227, CF) impõe-se a reparação dos danos morais que a negligência no desempenho dos deveres parentais gerou”. MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47. 182 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.693.
109
3.1 A exclusão do nexo causal - isenção do dever de indenizar
A responsabilidade pela falta de afeto, consubstanciada pela ausência paterna ou
materna nas relações entre pais e filhos, todavia, não parece se caracterizar como
responsabilidade objetiva.
A comprovação de qualquer causa excludente do nexo causal poderá isentar o
genitor de responsabilidade.
Identifica-se a exclusão da responsabilidade pelo fato de que a ninguém é dado
responder por resultado que não tenha causado. Isto pode se verificar naquelas hipóteses
em que pessoas que deveriam responder por deveres jurídicos que aparentemente deram
causa não são os verdadeiros responsáveis, diante do exame técnico da relação de
causalidade.
O dano poderá ter decorrido de outra causa, ou de circunstância que as impedia de
cumprir a obrigação por aquela pessoa chamada a responder.183
As causas de exclusão da responsabilidade seriam o caso fortuito, a força maior, o
fato exclusivo da vítima ou de terceiro.
3.2 Fato exclusivo da vítima
No caso em tela, é difícil excluir o nexo de causalidade com fulcro no fato
exclusivo da vítima, já que à criança e ao adolescente não se pode dar a opção pelo
convívio ou não com os pais, devendo estes providenciar para que as situações de
afastamento entre os mesmos se solucionem, cabendo aos pais incentivarem a visitação e
estadia dos filhos menores com os genitores que, porventura, não residam na mesma casa.
Cabe aqui anotação a respeito da possibilidade da propositura da ação de
responsabilidade civil por dano moral face o abandono, a falta de convivência e falta de
afeto, após finda a menoridade.
183 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 63.
110
A princípio, entende-se ser possível, desde que comprovada que a ausência na fase
infante ou adolescente gerou o referido dano, já que o afeto é essencial à formação da
pessoa humana, de suma importância na psique da pessoa em formação, conforme
amplamente salientado.
A falta de afeto após a formação da personalidade, por sua vez, parece não ser
capaz de fundamentar reparação por dano moral, o que não impede que a reparação seja
proposta fundada em razões outras das relações familiares.
Portanto, voltando ao fato exclusivo da vítima, falando de crianças e de
adolescentes, não se vislumbra, a princípio, qualquer fato por elas causados que possa
isentar um pai ou uma mãe de prestar assistência moral ao filho, a não ser na remota
chance de abandono do lar pela criança ou adolescente.
3.3 Fato de terceiro
O ato praticado pelo terceiro deve dar causa exclusivamente ao evento danoso. É o
que se observa, por exemplo, no caso da mãe ou do pai que obstrui o direito de visitas do
outro, causando, assim, a ausência, a falta de convivência familiar e do afeto.
Conforme ressaltado, quando da menção à referida hipótese, caberá, nestes casos,
inclusive, a reparação do próprio pai ou mãe privado do direito, sendo possível ao filho
perquirir em detrimento daquele outro o dano causado.
A ausência do pai ou da mãe, então, ocorre por interferência de pessoas distintas do
pai ou do filho. A participação do terceiro altera a relação causal. Ocorre o dano,
identifica-se o responsável aparente, mas não ocorre a responsabilidade, porque foi a
conduta do terceiro que interveio para negar a equação agente-vítima, afastando do autor o
nexo de causalidade.184
Esta participação do terceiro poderá se verificar de modo a excluir parcial ou
totalmente a responsabilidade do pai. Tal assertiva é facilmente evidenciada no caso
daqueles pais que, obstruídos do direito de convivência com os filhos pelo outro genitor,
nada fazem para ver garantido o seu direito-dever, uma vez que a legislação põe a salvo tal
direito e garante meios de tutela dos mesmos.
184 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense. 1997, p.301.
111
3.4 As famílias recompostas. Padrastos e Madrastas. A ausência de lesão
As famílias recompostas seriam aquelas formadas por um dos pais, seus filhos e
um terceiro, companheiro ou companheira da jornada familiar.
Nestas famílias recompostas ou reconstituídas, muitas vezes a figura ausente é
substituída, fazendo aquela nova personagem o papel daquele outro, sem que com isso se
verifique qualquer tipo de prejuízo à formação da pessoa dos filhos menores oriundos da
relação anterior.
Os inúmeros casos de separações, dissoluções e divórcios, seguidos de novos
relacionamentos, fazem aumentar cada vez mais o número de famílias onde convivem
filhos de diversos relacionamentos.
O que interessa verificar nestes casos é se, ainda que haja a ausência da
maternidade ou paternidade biológica, há o exercício da paternidade ou maternidade pelo
terceiro, crescendo a criança ou o adolescente em ambiente de afeto, atenção, conforto,
caso em que não se configuraria a lesão à dignidade.185
Ausente a lesão, é excluída a responsabilidade civil, ainda que social e
moralmente reprovável a conduta do pai ou da mãe ausente, sujeita, inclusive, às sanções
administrativas e penais.
A lesão, todavia, poderá ser objeto de análise no caso concreto, por meio de provas
produzidas pela vítima, assim como por prova pericial.
185 Neste sentido Celina de Moraes: “(...) Para a configuração de dano moral à integridade psíquica de filho, será preciso que tenha havido por parte do pai (ou da mãe) e a ausência de uma figura substitutiva. Se alguém ‘faz as vezes’ de pai (ou de mãe), desempenhando suas funções, não há dano a ser reparado, não obstante o comportamento moralmente condenável do genitor biológico. Não é de se admitir qualquer caráter punitivo à reparação do dano moral. Não se trata pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (eventual ‘dano causado’), mas de reparar o dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com uma figura substitutiva, configurando-se, então, só aí, o que se chamou de ‘ausência de pai’ (isto é, ausência de uma figura paterna).” MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.59.
112
3.5 A prova pericial
A lesão à dignidade da pessoa humana causada pela ausência materna ou paterna,
configurando dano moral sujeito à reparação civil, a princípio, não precisaria de prova
para restar caracterizada.
A responsabilidade civil pelo dano moral resulta do próprio evento, ou seja, do
próprio dano moral, sendo suficiente a violação do interesse constitucionalmente
protegido, no caso a dignidade da pessoa do filho.186
A idéia de que a responsabilidade civil por dano moral resulta do próprio dano é a
posição do Superior Tribunal de Justiça em diversos recursos sobre o tema.187
Verificado o evento danoso surge a necessidade de reparação; não havendo que se
falar em prova do prejuízo, a prova deve se restringir ao fato que gerou o dano moral.
Nos casos acima citados, necessária se fará a comprovação da lesão, a fim de
afastar a alegação do pai ou da mãe ausente, isto é, no caso das famílias recompostas, por
exemplo, caso haja outra pessoa exercendo o papel de mãe ou pai na relação paternal,
havendo a substituição, esta em sendo alegada pelo réu, poderá ser objeto de prova
pericial. Veja-se.
Em alguns casos a reconstrução da família, com as substituições das figuras
paternas ou maternas, atendem às necessidades da criança ou do adolescente na formação
de sua personalidade, não configurando qualquer lesão a ausência do pai ou da mãe
estabelecidos no registro de nascimento.
Outras vezes, essa substituição não garante a verdadeira formação da
personalidade. Nos casos concretos podem ser observadas crianças e adolescentes com
profundas marcas, em sua psique, por terem sido criados sem a figura do pai ou da mãe
estabelecidos ante a sua ausência injustificada, não sendo padrastos e madrastas capazes
de suprir tal desamparo.
186 Afirma Celina de Moraes: “(...) parece correto afirmar que o dano moral acha-se in re ipsa, uma vez que, para sua configuração, será suficiente a violação de um interesse constitucionalmente protegido, relativo ao princípio da dignidade humana, independentemente de qualquer outra prova.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.62. 187 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.266.
113
Neste caso, ante a alegação do agente, no caso réu na querela, poderá ser realizada
a prova pericial, por meio de exames psicológicos e sociais a fim de que reste identificada
e isenta de dúvida a lesão à dignidade apta a produzir dano moral.
O mesmo se diga em relação àquelas hipóteses em que a ausência se dê por culpa
exclusiva do terceiro, que se encontre em companhia do filho, que obstrua o direito de
visitação, onde a prova médica do fato danoso e da titularidade da ofensa se faz
imprescindível, inclusive, para isentar de culpa aquele que fora obstruído em seu direito.
Assim, não se identificando qualquer excludente de ilicitude, comprovada a lesão,
passa-se à ponderação dos princípios constitucionais envolvidos a fim de tornar certo o
direito à reparação.
4 Aplicabilidade dos princípios constitucionais – o norte do intérprete
Os princípios constitucionais são elementos racionais justificadores da sociedade
contemporânea, do próprio Estado e da Jurisdição. Os direitos humanos fundamentais
foram contemplados no capítulo inicial da Constituição da República brasileira de 1988,
tendo sido conferida, no texto constitucional, imediata eficácia aos mesmos, sendo
inserida, inclusive, cláusula de imutabilidade ou com garantia de eternidade, as chamadas
cláusulas pétreas (art. 60, §4°, IV da CR).188
Por sua vez, a Constituição de 1988 incluiu, em seu sistema, instrumentos
garantidores das instituições, que conduzem ao aperfeiçoamento dos direitos que são por
ela declarados e constituídos e cuja inviolabilidade ela assegura.
As garantias constitucionais estão contidas em procedimentos específicos e
institutos concebidos para assegurar, em casos concretos e quando houver ameaça ou lesão
aos direitos fundamentais, que se restabeleçam plena e eficazmente os direitos
comprometidos. Assim, tais prerrogativas são mecanismos específicos e próprios do
188 “Art. 60 da C.R – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4° - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais.”
114
sistema constitucional nacional, garantidores do que é firmado como direitos
fundamentais.
Ressalte-se que as Constituições, assim como as normas de direitos internacionais
relativas aos direitos humanos e fundamentais, insistem em resguardar tais direitos ainda
no plano da ameaça, entendendo que o melhor cuidado a se tomar em relação a estes
direitos é o da prevenção.
No inciso XXXV, do art. 5°, da Constituição da República, o constituinte
aperfeiçoou a qualidade dos instrumentos garantidores destes direitos, assegurando que a
lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos.
Outrossim, qualquer interpretação da norma jurídica constitucional ou
infraconstitucional deve ter, como escopo primeiro, a criação de condições para que a
norma interpretada tenha eficácia sempre no sentido da realização dos princípios e valores
constitucionais e, principalmente, sempre, da ideologia constitucionalmente adotada.
O papel do juiz, enquanto guardião dos direitos constitucionais e
infraconstitucionais, com a constitucionalização dos direitos humanos fundamentais, passa
a ser mais relevante, já que é aquele que se dota de melhores condições para assegurar a
eficácia jurídica destes direitos, especialmente quando se apresentar quadro de ameaça ou
violação dos mesmos.
A jurisdição é direito fundamental, expresso tanto no plano internacional, quanto
no plano interno dos diferentes Estados (art. 5, inciso XXXV, da CR), sendo que, se não
houver jurisdição constitucional eficiente e internacional efetiva, os direitos humanos se
tornam vulneráveis e dependentes das eventuais condições das sociedades, dos governos e
dos governantes.
A função do Estado-Juiz, portanto, é de suma importância para a efetivação destes
direitos, para a aplicação dos princípios constitucionais.
Na atualidade, algumas decisões isoladas procuram fundamentar suas razões de
decidir em princípios constitucionais, visando garantir prestações jurisdicionais mais
justas e coerentes com os direitos humanos fundamentais.
As violações cotidianas destes direitos levam à conclusão da urgência da
necessidade de sua adequada interpretação, através da aplicação dos princípios
115
constitucionais, para que estes não permaneçam isolados e desformes da realidade social
vivenciada.
A infringência de um princípio seria muito mais grave do que a violação de uma
norma, já que há ofensa ao sistema de comando e, portanto, subversão aos valores
fundamentais.189
Os operadores do direito não podem se furtar à busca pela efetividade dos direitos
humanos e fundamentais, devendo, no caso concreto, decidir a favor destes, ainda que não
haja previsão no ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto dos princípios
constitucionais, em especial aqui no que tange ao tema das relações entre pais e filhos,
utilizando-se dos princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade, da
solidariedade social, todos estes capitaneados pelo princípio da dignidade da pessoa
humana. 190
Tais princípios, entendidos como normas supremas, capazes de servir como
comandos gerais, devem guiar o caminho da interpretação.
No sentido trazido aos princípios por Dworkin191, estes contêm maior carga
valorativa, fundamento ético, indicando determinada direção a seguir. Neste novo
paradigma, os princípios constitucionais passam a ser a síntese dos valores abrigados no
ordenamento jurídico.
Nesta ordem de idéias, o intérprete deve se nortear nos referidos princípios,
identificando o princípio que rege o assunto a ser analisado, passando do mais genérico ao
mais específico, até formular a regra que vai reger a espécie.192
189 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.230. 190 Neste sentido Barroso e Barcellos afirmam que: “O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do reencontro com a Ética – ao qual, no Brasil, se deve agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder Público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade”. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.337. 191 DWORKIN, Ronald. O autor estabelece as diferenças entre princípios e regras, onde as regras são aplicada segundo o critério do tudo ou nada (all or nothing) e os princípios são enunciados genéricos. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução Nelson Boeira. p.39/46. 192 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.151.
116
Luís Roberto Barroso destaca o papel prático dos princípios dentro do
ordenamento jurídico constitucional, afirmando que, em primeiro lugar, cabe aos mesmos
embasar as decisões políticas fundamentais, fincando os alicerces e traçando as linhas
mestras das instituições; em segundo lugar, ser o fio condutor dos diferentes segmentos da
Constituição, dando unidade ao sistema normativo, compatibilizando as normas à primeira
vista contraditórias; e por último, naquilo que mais interessa, condicionar a atuação dos
poderes públicos, Executivo, Legislativo e Judiciário, pautando a interpretação e aplicação
de todas as normas jurídicas vigentes no ordenamento.193
A larga margem de abstração, generalidade e expansão dos princípios permite ao
intérprete superar aquilo que está previsto em lei para encontrar, no caso concreto, uma
solução mais justa que se adeque à espécie, buscando a proteção da dignidade da pessoa
humana.
Nesta busca o intérprete não pode se afastar do fato de que a aplicação do direito
não é apenas um ato de conhecimento, mas também um ato de vontade, ou seja, o
distanciamento do intérprete do caso concreto a ser analisado é impossível, o intérprete
sempre terá seu próprio conhecimento sobre o tema, formado através de sua vivência.194
Todavia, suas conclusões devem estar de olho naquele caso concreto, com as nuances e
diferenças, onde as leis devem ser adaptadas a fim de garantir a solução adequada, dentro
das inúmeras possibilidades que se abrem ante a interpretação das normas com suas
palavras, significados e significantes.
A interpretação, porventura diferente e inovadora, não torna as idéias e as teorias
anteriores falsas ou erradas, mas simplesmente são soluções mais adequadas aos novos
paradigmas e modelos da época atual, sendo este o melhor remédio para que a opinião
preestabelecida de um determinado tema não se perpetue, e não fiquemos engessados por
nossos dogmas.195
Por sua vez, neste caminho pelo encontro da justiça, o intérprete deve ter em mente
a idéia de explorar as potencialidades positivas da dogmática jurídica, investindo naquela
193 Ibidem, p.156. 194 Ibidem. p.309. 195 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002. p.86/88.
117
interpretação principiológica, fundado nos novos valores, sem estar compromissado com a
razão anterior.196
Na relação entre pais e filhos há interesses diversos, em que os titulares de direitos
também são titulares de deveres jurídicos. Assim, os princípios constitucionais, como
normas jurídicas que são, devem ser utilizados como parâmetros do entendimento e da
aplicação.197
Aos princípios constitucionais, portanto, é concedido, como insistentemente
mencionado, o poder de nortear o intérprete em busca da solução mais justa à hipótese,
ainda que, por vezes, ante a colisão de um ou mais destes princípios, como no caso do
princípio da liberdade do pai e do melhor interesse da criança, seja necessária a
ponderação dos mesmos em busca da razão possível.
4.1 A ponderação dos princípios
A norma vale ou não vale juridicamente e quando vale e é aplicável a um caso,
significa que suas conseqüências jurídicas também valem. Por outro lado, os princípios,
em determinadas circunstâncias, cedem a outro, sem que contudo se tenha tornado nulo
aquele que foi abdicado, estando-se diante da preponderância do princípio de maior
peso.198
A operacionalização desta preponderância se dá por meio do juízo de
proporcionalidade. Esta preponderância, quando estão em jogo direitos fundamentais no
caso concreto, se verifica através da ponderação em razão do bem que se pretenda tutelar.
A relativização da aplicação de uma norma de direito fundamental traz ínsita a existência
de várias possibilidades jurídicas de realização de tais direitos.
A demarcação de forças entre um princípio e outro não fica adstrita ao entender do
operador, levando-se a cabo, no momento da interpretação, os valores humanos e jurídicos 196 BARROSO, Luís Roberto. O autor se manifesta sobre a influência decisiva da teoria crítica do direito para o surgimento da geração menos dogmática: “(...) é impossível desconsiderar a influência decisiva que a teoria crítica teve no surgimento de uma geração menos dogmática, mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos compromissos com o status quo”. in Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.317. 197 PERLINGIERI, Pietro. Normas Constitucionais nas Relações Privadas. Versão xerocopiada da Palestra de Direito Civil ministrada pelo Professor no dia 25 de agosto de 1998, no Rio de Janeiro. 198 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.172.
118
já pacificados pelo tempo e pela história, aqui compreendidos pelos direitos humanos e
fundamentais.
As normas-princípios, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, são disposições
fundamentais que se irradiam sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e
servindo de critérios para sua exata compreensão e inteligência.199
Para Dworkin, a idéia de princípio diz respeito a um tipo de norma cuja observação
é um requisito de justiça e eqüidade. As regras jurídicas, assim, operariam num esquema
de tudo ou nada, ou seja, o nexo entre fatos e conclusão jurídica, através de uma regra, é
automático, importando tão-somente aferir sobre sua validade ou não dentro do sistema;
enquanto que os princípios não estabelecem nexo direto entre os fatos e a conclusão
jurídica, se fazendo necessária, geralmente, uma comparação entre os princípios
encontrados e tratados, não se resolvendo esta comparação através da superveniência de
um deles e supressão de outro, continuando ambos a existirem, ainda que um deles
prevaleça. 200
Da mesma forma se manifesta Canotilho sobre a colisão de princípios. Para o
autor, deve se aceitar que os princípios não obedecem à lógica do tudo ou nada, podendo
ser objeto de ponderação e concordância prática, consoante seu peso e as circunstâncias do
caso concreto. 201
Nesta ponderação, levando em consideração os elementos do caso concreto, deverá
o intérprete fazer uma interação não formalista com a norma, a fim de chegar à conclusão
justa, inserida na linha do direito vigente, através dos princípios.
Havendo conflito entre duas ou mais situações jurídicas em que estejam ambas
amparadas por princípios, portanto, princípios de igual importância, deverá se recorrer à
ponderação, determinando-se o alcance da dignidade da pessoa humana. Tal ponderação
encontrará, assim, uma meta, a busca pela efetiva aplicação do princípio da dignidade da
pessoa humana, a cláusula geral de tutela da pessoa.
199 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.230. 200 DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p.42/43. 201 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.190.
119
4.2 A cláusula geral de tutela da pessoa
A solução encontrada pela doutrina na hipótese de colisão dos princípios
constitucionais encontra limite no princípio da dignidade da pessoa humana.
A garantia especial concedida a toda e qualquer pessoa humana de ver tutelada sua
dignidade, se efetiva, no momento em que, havendo colisão de interesses nas relações
privadas em que esteja em jogo qualquer dos direitos da personalidade contra qualquer
direito patrimonial, deva prevalecer, na interpretação, os princípios que sirvam para
proteger a dignidade da pessoa humana.
No que tange ao tema em questão, a dignidade da pessoa humana dimensiona toda
a matéria referente ao direito de família, sendo que, após o advento da Constituição da
República de 1988, ocorreram alterações no que tange às relações familiares, tendo sido
estabelecidos novos valores, principalmente nas relações entre pais e filhos.
As entidades familiares passam a exercer uma nova função social: a função de
realizar a personalidade de seus membros, em especial os filhos. Esta função enseja a idéia
de que não mais se justifica a manutenção da entidade familiar, a não ser para que haja o
desenvolvimento da personalidade de seus membros.
Os valores patrimoniais da família passaram a ocupar lugar de menor importância
nas relações familiares, no sentido de que não se justifica mais a manutenção de relações
fundadas nos interesses patrimoniais, em detrimento do desenvolvimento saudável dos
filhos, ocorrendo, então, a verdadeira despatrimonialização destas relações.202
A par desta despatrimonialização, a família, informada pelo preceito fundamental
da dignidade da pessoa humana e pela prioridade reservada às crianças e aos adolescentes,
em que se assegura o direito dos filhos, inclusive no que diz respeito a expressar opiniões
(art. 16, inciso I do ECA), 203 participando de maneira igualitária na relação, deixa de ser
uma sociedade hierarquizada para ser uma sociedade democrática.
A Constituição elege a dignidade da pessoa humana como fundamento,
subordinando as relações jurídicas patrimoniais a valores existenciais, em especial as
202 TEPEDINO, Gustavo.. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 395. 203 “Art. 16 do ECA – O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – opinião e expressão; (...).”
120
relações advindas do vínculo familiar, em que se prioriza a pessoa do filho e seu melhor
interesse.
A cláusula geral de tutela da pessoa, introduzida no direito brasileiro pelo
constituinte, no inciso III, do art. 1°, da Constituição da República, subordina a vontade
privada ao respeito à dignidade da pessoa humana.
Esta regra evidencia que em todas as ocasiões em que houver um conflito entre
uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, prevalecerá
a existencial, em consonância com os ditames constitucionais que estabelecem como valor
primordial a dignidade da pessoa humana.
O que se pretende proteger, ante a cláusula geral de tutela da pessoa, é o valor da
personalidade humana, sem qualquer limitação, ressalvadas as hipóteses em que tal valor
se contraponha a igual valor, de outra pessoa, ou da sua personalidade.204
Desta forma, não se poderá negar tutela a quem pretenda garantia de um aspecto de
sua existência para o qual não haja previsão específica, uma vez que aquele interesse é
relevante constitucionalmente, devendo encontrar resguardo também na esfera judicial,
sob pena de se tornar inócua a cláusula geral de tutela e violado o princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana, donde se conclui que os demais direitos que se
relacionam com os direitos da personalidade, abrigados sob o manto da Constituição da
República, nada mais são do que garantidores do valor cardeal do sistema.205
Realizando a ponderação dos princípios constitucionais, utilizando-se da cláusula
geral de tutela, o intérprete poderá adaptar situações que não encontrem previsões
expressas na legislação, para prestar, aos interessados, a tutela que priorize sempre a
pessoa, sendo este seu objeto, já que o conteúdo da referida cláusula não se limita a
204 Ensina Perlingieri: “A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.155/156. 205 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.128.
121
resumir direitos tipicamente previstos por outros artigos da Constituição, permitindo
estender a tutela a situações atípicas. 206
Na hipótese específica do direito à convivência com a família e o descumprimento
pelo pai ou pela mãe, bem como as conseqüências advindas desta ausência na formação da
personalidade do filho, caracterizando lesão ao livre desenvolvimento da pessoa humana,
com efeitos nocivos à sua personalidade, poderá se dar a reparabilidade deste dano, a fim
de que se garanta que a violação à dignidade humana não fique sem ressarcimento.
4.3 Critério valorativo para a compensação – o papel do juiz no arbitramento do
valor indenizatório – a necessidade da fundamentação
Encerrada a discussão quanto ao cabimento do ressarcimento, nova controvérsia se
avizinha, esta a respeito dos critérios valorativos a serem utilizados para o ressarcimento.
A ausência de critérios para a fixação da compensação do dano moral na legislação
brasileira, em que pese o recente Código Civil, faz surgir inúmeras teorias a respeito do
tema.
O Código Civil de 2002 deixou de apreciar mais de perto as questões referentes ao
dano moral, limitando-se a mencioná-lo, de maneira singela, no art. 186.207 O que poderia
ser o especial momento para o enfrentamento de inúmeras querelas, através da adaptação
ao texto constitucional, não teve bom proveito.
A falta de preocupação do legislador com o dano moral deixa inalterada a situação
dos critérios para a fixação da compensação, deparando-se, o julgador, sempre com o
206 Novamente Perlingieri, sobre a cláusula geral da tutela da pessoa humana: “o seu conteúdo não se limita a resumir os direitos tipicamente previstos por outros artigos da Constituição, mas permite estender a tutela a situações atípicas” E, ainda, “Nenhuma previsão especial pode ser exaustiva e deixaria de fora algumas manifestações e exigências da pessoa que, mesmo com o progredir da sociedade, exigem uma consideração positiva.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.155. No mesmo sentido, Maria Celina : “Daí sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do ordenamento constitucional, e, portanto, tutela também em via judicial.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.127. 207 “Art. 186 do Código Civil – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
122
mesmo problema nos litígios em que este envolva a condenação, a inexistência de critérios
uniformes e definidos para arbitrar um valor adequado à hipótese.208
A idéia de critérios pré-fixados, através de tarifação, não parece, segundo a
doutrina, ser a melhor a solucionar o problema, já que estanque e fechado, não permitindo
que se faça a análise do caso em concreto, primordial no que se refere à compensação por
dano moral.209
Tal critério seria igualmente inconveniente pelo fato de que o causador do dano já
saberia de antemão o valor da indenização devida pela prática de seu ato ilícito,
concluindo algumas vezes pelas vantagens da prática do ato.210
Diante da ausência de qualquer outro critério pré-estabelecido pelo legislador,
prevalece o critério do arbitramento pelo julgador, nos termos do art. 946 do Código
Civil,211 combinado com o Código de Processo Civil, que determina que as perdas e danos
se apuram através de liquidação por artigos ou por arbitramento, sendo o arbitramento a
adequada ao dano moral.
O livre arbítrio do juiz, todavia, deverá ser seguido de alguns parâmetros, sob pena
de se estar sempre diante do seu poder discricionário, através de critérios subjetivos e
aleatórios.
Esta é a maior crítica da doutrina, já que não há defesa eficaz contra a estimativa a
que a lei não submeta qualquer outro critério, que não o do livremente escolhido pelo
julgador, uma vez que exorbitante ou ínfima será sempre legal.212
Inicialmente, se utilizava o Código Brasileiro de Telecomunicações, já revogado,
para a fixação, através de aplicação analógica, passando a se adotar, posteriormente, a Lei
de Imprensa, também por aplicação analógica.213
208 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva.2003, p.569. 209 Neste sentido Rui Stoco: “Evidente que não é esse o critério que preconizamos, pois seria um sistema não só fechado, hermético, mas ‘burro’, na medida em que não permite à individualização da sanção segundo as circunstâncias objetivas do fato e subjetivas dos agentes.” STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: RT. 2004, p.1670. 210 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. ob. cit. p.569. 211 “Art. 946 do Código Civil – Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual determinar.” 212 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. ob. cit. p.569. 213 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. ob. cit. p.1.695 e segs.
123
Outros critérios foram sendo adotados, como a aplicação analógica de normas
estabelecidas em leis especiais, a capacidade econômica de quem indeniza, o dúplice
caráter da indenização, o critério da teoria do valor do desestímulo, do estabelecimento de
quantia fixa, da condição social e econômica dos envolvidos, entre outros vários.
Diante das inúmeras possibilidades, sobressai o critério do arbitramento, sendo este
o caminho determinado pelo legislador (parágrafo único do art. 950 e do art. 953 do
Código Civil).214
À falta de um critério objetivo e uniforme para a fixação do dano moral, resta ao
juiz a tarefa de arbitrá-lo, caso a caso, de acordo com o bom senso, de modo a não deixar
de fixar valor razoável e justo para a indenização pelo dano sofrido.
Assim, se impõe uma indenização justa, que seja suficiente para reparar o dano,
sem que se obtenha com isso uma fonte de lucro.
Em especial, no que diz respeito ao dano moral, causado pela ausência do pai ou da
mãe na relação com seus filhos, a indenização deve ser fixada de modo que não torne mais
cômoda e fácil a substituição do afeto, através da atenção, carinho e amor imprescindíveis
para a formação da pessoa humana, por simples compensação pecuniária.
Por outro lado, não há que se falar em indenizações exorbitantes que
comprometam a capacidade do pai ou da mãe em cumprir com as demais obrigações com
os filhos, inclusive as de cunho patrimonial, tampouco com a continuidade da relação, já
que a intenção maior da condenação deve ser a consciência da necessidade de exercer
corretamente o poder familiar.
Os critérios devem ser utilizados de forma que não sejam produzidas decisões
aptas a fomentar a “indústria do dano moral”, sob pena de se desmoralizar o instituto,
tendo nossos Tribunais se manifestado desta forma.215
214 Assim Cavalieri: “(...) Não há realmente, outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser pelo arbitramento judicial. Cabe ao juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio, atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do ofensor, estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral.”CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 88. 215 “Sem dúvida alguma, a Constituição Federal vigente agasalhou de maneira mais ampla possível a indenização por dano moral. Porém, ele não é devido incondicionalmente, devendo ser examinado caso a caso, para que ações como estas não criem a indústria do dano moral” (1°TACSP- 7ª C.- Ap. 762.989-6 – Rel.Álvares LÔBO – j. 16.03.1999 – RT 766/260) in STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. ob. cit. p.1.673.
124
Repita-se, outrossim, que o livre-arbítrio do juiz deve ser seguido de alguns
parâmetros, sendo as referidas decisões devidamente fundamentadas. Os parâmetros
devem ser aqueles existentes na doutrina, na lei ou na própria jurisprudência, norteando a
complexa tarefa de quantificar os danos à pessoa humana.
Os critérios utilizados deverão ser critérios lógicos, explicitados de forma clara nas
decisões, a fim de que se assegurem decisões justas e racionais e não somente escolhas
sem precedentes e decisões arbitrárias, já que o que se espera é o arbitramento do dano
moral e não a arbitrariedade do juízo.216
A fundamentação das decisões, portanto, se impõe. Somente desta forma se poderá
analisar no caso em concreto a racionalidade das decisões judiciais, requisito mínimo
essencial (art. 131 do CPC)217 para a sistematização do ordenamento.218
A idéia da fundamentação tem razão de importância no fato de que as decisões, em
sua maioria, obedecem a critérios de razoabilidade, no momento da fixação da
indenização. Nesta esteira de entendimento, deve ser bem fundamentada a decisão, para se
entender a lógica do razoável, utilizada pelo julgador.
A par deste entendimento, no IX Encontro dos Tribunais de Alçada realizado em
São Paulo, restou aprovada a seguinte recomendação: “Na fixação do dano moral, deverá
o juiz, atendendo-se ao nexo de causalidade inscrito no art. 1.060 do Código Civil (de
1916), levar em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade na apuração do
quantum, atendidas as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado.”219
Pretende-se, na lógica do razoável, que os critérios utilizados, devidamente
fundamentados, atinjam a compensação do dano moral, pela lesão à dignidade humana, de
modo a atender ao máximo possível a vítima, de forma proporcional, sem que com isso
gere um enriquecimento ilícito.
216 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.270 e 272. 217 Art. 131 do Código de Processo Civil – O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento. 218 Conclui Celina de Moraes: “Sua precisa motivação faz-se imperiosa: ela é parte essencial da garantia fundamental do direito a um processo justo; é remédio contra o arbítrio” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.275. 219 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 91.
125
O dano que se pretende compensar com a indenização deve estar assim
eficazmente delimitado, de modo a impedir o fomento à indústria do dano moral.
4.4 A proliferação das ações indenizatórias por dano moral
Ao lado de toda a concepção da reparação do dano moral pela ausência do pai ou
da mãe na relação com os filhos, se encontra a idéia do perigo da patrimonialização destas
relações, ante a possibilidade de se mensurar o afeto e transformá-lo em mera quantia
reparatória.
Vozes se levantam contra a possibilidade da reparação, sob pena de se tornar mais
uma das hipóteses de reparação por dano moral a assoberbar os Tribunais, se
transformando em meio de obtenção de dinheiro fácil, verdadeiros enriquecimentos
ilícitos, que devem ser rechaçados.
De fato, em tese, se justifica a preocupação da doutrina e dos Tribunais, diante dos
números apresentados pelas estatísticas a respeito da quantidade de ações propostas
visando indenizações diversas, por infindáveis razões, muita das vezes banais e que
nenhuma lesão causa, como naquelas em que se dá o mero dissabor, aborrecimento, que
deveriam estar fora da órbita do dano moral.
Estas sim são capazes de banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em
busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos, causando este verdadeiro pré-
conceito com aqueles que pretendem buscar, em juízo, verdadeira compensação pelas
lesões à dignidade. 220
Deve-se lembrar da lição de Pontes de Miranda: “mais contra a razão ou o
sentimento seria ter-se como irressarcível o que tão feriu o ser humano, que há de
considerar o interesse moral e intelectual acima do interesse econômico, porque se trata de
ser humano. A recuperação pecuniária é um dos caminhos: se não se tomou esse caminho,
pré-elimina-se a tutela dos interesses mais relevantes.”221
220 Novamente Celina de Moraes: “A valoração do dano moral exige que se parta de algumas premissas já delineadas: em primeiro lugar, é preciso poder diferenciar os interesses merecedores da proteção do ordenamento daqueles interesses que são caprichosos, fúteis ou que signifiquem meros aborrecimentos ou transtornos do dia-a-dia.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.303. 221 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense. 1966, t.52, p 319.
126
Daí a importância de se ter em mente o conceito de dano moral como aquele
sugerido por Maria Celina Bodin de Moraes, que entende que vincular o dano moral
unicamente à ofensa de valores ou interesses constitucionalmente protegidos, contidos no
conceito de dignidade humana, impede o fomento à chamada “indústria do dano moral”,
constituindo salvaguarda invencível contra a expansão dos danos ressarcíveis sem
mensuração. Assim, estaria indo ao encontro da tendência contemporânea de atribuir à
responsabilidade civil o papel de proteção mínima e constante aos direitos fundamentais,
com vistas à atuação da dignidade.222
O que não se deve admitir é excluir da apreciação e taxar como incabível a
reparação civil pela ausência paterna ou materna na relação com os filhos, tendo em vista
os inúmeros fundamentos que a tornam perfeitamente viável, sob pena de se violar a
cláusula geral da tutela da pessoa humana.
4.5 Análise do caso concreto
Os julgados sobre o tema ora em estudo são poucos, surgindo até o momento
notícia de ações esparsas pelo país. No intuito de ilustrar o presente, passa-se a algumas
destas decisões, iniciando-se pela do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial
(REsp 757.411/ MG), onde foi Relator o Ministro, Fernando Gonçalves, Órgão Julgador -
Quarta Turma, no dia 29 de novembro de 2005, que se manifestou contrário à indenização
por dano moral no caso de abandono moral, reformando a sentença de 1° grau que julgara
procedente o pedido, com a seguinte ementa e acórdão:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.
DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a
prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código
Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial
conhecido e provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a
222 MORAES, Maria Celina Bodin. Dos Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.53.
127
seguir, por maioria, conhecer do recurso e lhe dar provimento. Votou vencido o Ministro
Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge
Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro Relator.”
Verifica-se, da leitura da ementa que, por maioria, os Ministros do STJ que
participaram do julgamento do referido Recurso Especial entenderam pela inexistência do
direito do filho ao recebimento de indenização pelo pai por dano moral no caso do
abandono moral, por não haver previsão legal para tanto, somente a sanção civil da perda
do poder familiar, afirmando, ainda, que a procedência da indenização dificultaria o
retorno ao convívio social entre pai e filho.
O voto do Ministro Relator, Ministro Fernando Gonçalves, afasta a possibilidade
de indenização no caso do abandono moral por entender inexistir a possibilidade de
reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916:
“A questão da indenização por abandono moral é nova no Direito Brasileiro. Há
notícia de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul, outra de São Paulo e
a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento desta Corte. A
demanda processada na Comarca de Capão da Canoa-RS foi julgada procedente, tendo
sido o pai condenado, por abandono moral e afetivo da filha de nove anos, ao pagamento
de indenização no valor correspondente a duzentos salários mínimos. A sentença,
proferida em agosto de 2003, teve trânsito em julgado, vez que não houve recurso do réu,
revel na ação. Cumpre ressaltar que a representante do Ministério Público que teve
atuação no caso entendeu que “não cabe ao Judiciário condenar alguém ao pagamento de
indenização por desamor”, salientando não poder ser a questão resolvida com base na
reparação financeira.
O Juízo da 31ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo-SP, a seu turno, condenou
um pai a indenizar sua filha, reconhecendo que, conquanto fuja à razoabilidade que um
filho ingresse com ação contra seu pai, por não ter dele recebido afeto, “a paternidade não
gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto
independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua
companhia.”
128
A matéria é polêmica e alcançar uma solução não prescinde do enfrentamento de
um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais
danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de
reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica
social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo
que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim,
situações anteriormente tidas como “fatos da vida” hoje são tratadas como danos que
merecem a atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da
pessoa.
Os que defendem a inclusão do abandono moral como dano indenizável
reconhecem ser impossível compelir alguém a amar, mas afirmam que "a indenização
conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus
deveres, mas atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a
dissuasória.”(Indenização por Abandono Afetivo, Luiz Felipe Brasil Santos, in ADV -
Seleções Jurídicas, fevereiro de 2005).
Nesse sentido, também as palavras da advogada Cláudia Maria da Silva: "Não se
trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema em foco - ,
tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja
alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai
do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser
cessada e evitada, por reprovável e grave.” ( Descumprimento do Dever de Convivência
Familiar e Indenização por Danos á Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de
Direito de Família, Ano VI, n° 25 – Ago-Set 2004)
No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento,
guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder
familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24,
quanto no Código Civil, art. 1.638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a
determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai,
já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando
eficientemente aos indivíduos que o Direito e a Sociedade não se compadecem com a
129
conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que
defendem a indenização pelo abandono moral.
Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a
guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra
o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender
exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi
preterido no relacionamento amoroso.
No caso em análise, o magistrado de primeira instância alerta, verbis:
"De sua vez, indica o estudo social o sentimento de
indignação do autor ante o tentame paterno de redução do
pensionamento alimentício, estando a refletir, tal quadro
circunstancial, propósito pecuniário incompatível às
motivações psíquicas noticiadas na Inicial (fls. 74)(...)Tais
elementos fático-probatórios conduzem à ilação pela qual o
tormento experimentado pelo autor tem por nascedouro e
vertedouro o traumático processo de separação judicial
vivenciado por seus pais, inscrevendo-se o sentimento de
angústia dentre os consectários de tal embate emocional,
donde inviável inculpar-se exclusivamente o réu por todas
as idiossincrasias pessoais supervenientes ao crepúsculo da
paixão."(fls. 83)
Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a
indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente
para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado
daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?
Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando
em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o
amparo do amor dos filhos, valendo transcrever trecho do conto "Para o aniversário de um
pai muito ausente", a título de reflexão (Colocando o "I" no pingo... E Outras Idéias
Jurídicas e Sociais, Jayme Vita Roso, RG Editores, 2005):
130
“O Corriere della Sera, famoso matutino italiano, na coluna
de Paolo Mieli, que estampa cartas selecionadas dos
leitores, de tempos em tempos alguma respondida por ele,
no dia 15 de junho de 2002, publicou uma, escrita por uma
senhora da cidade de Bari, com o título "Votos da filha, pelo
aniversário do pai". Narra Glória Smaldini, como se
apresentou a remetente, e escreve: "Caro Mieli, hoje meu
pai faz 67 anos. Separou-nos a vida e, no meu coração, vivo
uma relação conflitual, porque me considero sua filha ´não
aproveitada´. Aos três anos fui levada a um colégio interno,
onde permaneci até a maioridade. Meu pai deixara minha
mãe para tornar a se casar com uma senhora. Não conheço
seus dois outros filhos, porque, no dizer dele, a segunda
mulher ´não quer misturar as famílias´.Faz 30 anos que nos
relacionamos à distância, vemo-nos esporadicamente e
presumo que isso ocorra sem que saiba a segunda mulher.
Esperava que a velhice lhe trouxesse sabedoria e bom
senso, dissipando antigos rancores. Hoje, aos 39 anos,
encontro-me ainda a esperar. Como meu pai é leitor do
Corriere, peço-lhe abrigar em suas páginas meus
cumprimentos para meu pai que não aproveitei.”
Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de
se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não
atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é
providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e
dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme
acima esclarecido.
Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a
manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a
indenização pleiteada.
131
Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do
Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de
indenização.
Diante do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para afastar a
possibilidade de indenização nos casos de abandono moral.”
Verifica-se da leitura do voto do Ministro Relator que o mesmo leva em
consideração inicialmente a questão do dano extrapatrimonial passível de reparação
pecuniária, entendendo o mesmo que o ordenamento jurídico estabelece como punição ao
abandono moral a perda do poder familiar, se encarregando o Estado desta função
punitiva, não se configurando assim a possibilidade de indenizar o abandono moral.
Aduz, ainda, que a suposta indenização atenderia à ambição financeira daquele
genitor que esteve em companhia do filho abandonado, já que, segundo o mesmo, a
pretensão indenizatória teria condão de vingança daquele outro.
Alega, inclusive, que a indenização afastaria o convívio entre pais e filhos, não
atendendo, assim, o objetivo de reparação pretendido.
Por fim, afirma que escapa ao Judiciário obrigar alguém a amar ou manter
relacionamento afetivo, ainda que filho.
Por sua vez, no voto vencido, o Ministro dissidente, Ministro Barros Monteiro,
aduz que o direito ao recebimento da indenização por dano moral existe na hipótese do
abandono moral pelo pai, em decorrência da violação do dever do pai, de assistência
moral, existindo, assim, o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade, sendo irrelevante a
previsão de outra modalidade de sanção civil:
“Sr. Presidente, rogo vênia para dissentir do entendimento manifestado por V.Exa.
e pelos eminentes Ministros Aldir Passarinho Junior e Jorge Scartezzini. O Tribunal de
Alçada de Minas Gerais condenou o réu a pagar 44 mil reais por entender configurado nos
autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como por reconhecer a conduta
ilícita do genitor ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho,
deixando assim de preservar os laços da paternidade. Esses fatos são incontroversos.
Penso que daí decorre uma conduta ilícita da parte do genitor que, ao lado do dever de
132
assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de
acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto.
Como se sabe, na norma do art. 159 do Código Civil de 1916, está subentendido o
prejuízo de cunho moral, que agora está explícito no Código novo. Leio o art.186:
“Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Creio que é essa a hipótese dos autos. Haveria, sim, uma excludente de
responsabilidade se o réu, no caso o progenitor, demonstrasse a ocorrência de força maior,
o que me parece não ter sequer sido cogitado no acórdão recorrido. De maneira que, no
caso, ocorreram a conduta ilícita, o dano e o nexo de causalidade. O dano resta
evidenciado com o sofrimento, com a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor durante
todo esse tempo.
Considero, pois, ser devida a indenização por dano moral no caso, sem cogitar de,
eventualmente, ajustar ou não o quantum devido, porque me parece que esse aspecto não
é objeto do recurso.
Penso também, que a destituição do poder familiar, que é uma sanção do Direito de
Família, não interfere na indenização por dano moral, ou seja, a indenização é devida além
dessa outra sanção prevista não só no Estatuto da Criança e do Adolescente, como também
no Código Civil anterior e no atual.
Por essas razões, rogando vênia mais uma vez, não conheço do recurso especial.”
(DJ 27.03.2006 p. 299RB vol. 510 p. 20 RJM vol. 175 p. 438 RT vol. 849 p. 228)
A decisão polêmica do Superior Tribunal de Justiça se baseia na impossibilidade
de se responsabilizar civilmente um pai pelo abandono moral de seu filho através da
fixação de uma indenização sob o argumento de que à hipótese não se adequam aquelas
típicas da responsabilidade civil, não se podendo obrigar alguém a amar ou manter
relacionamento afetivo, não sendo alcançada qualquer finalidade com a indenização
pleiteada. A pretendida indenização não encontraria amparo legal, não se caracterizando a
responsabilidade civil do art. 159 do Código Civil.
Outrossim, afirma o Ministro Relator que a condenação afastaria ainda mais o filho
do pai, obstaculizando futuro relacionamento entre os mesmos.
133
No voto vencido o Ministro revela seu entendimento contrário ao voto do Relator,
ressalvando a ilicitude da conduta do genitor que abandona moralmente o filho, deixando
de preservar os laços de paternidade, conduta esta geradora de sofrimento e dano à
dignidade do filho.
De fato, resta incontroversa a identificação do dano moral quando há lesão à
dignidade da pessoa humana, sendo certo que o afeto na formação da pessoa humana,
transcende a importância patrimonial destas relações.
A proteção da pessoa humana como fundamento da tutela do núcleo familiar,
consubstanciado aqui pela importância da presença dos genitores na formação da pessoa
humana, não pode ficar a desamparo das decisões judiciais.
A certeza do dano indenizável não pode se afastar pelo simples fato de haver a
possibilidade da perda do poder familiar. Não se trata de matéria de direito de família,
sendo certo que a simples perda do poder familiar, nestas hipóteses, pode caracterizar
verdadeiro prêmio para aquele que viola a dignidade da pessoa humana.
Da mesma forma criticável, a idéia do Relator no sentido de que a indenização
porventura fixada estaria beneficiando o outro genitor. A alegação de que o outro genitor
estaria movido por vingança ou por ódio, visando atingir aquele que abandonou a família
não deve afastar a possibilidade de se indenizar o dano à dignidade da pessoa do filho.
Trata-se de matéria estranha ao feito, assim como terceiro que não figura no mesmo, não
sendo possível fazer elucubrações a respeito de fato de terceiro que nem figura no
processo, de maneira a prejudicar o interesse daquele que teve lesionada a sua dignidade.
Quanto à impossibilidade de se obrigar alguém a amar ou se relacionar com o
outro, a todo evidente, não existe esta possibilidade através do Judiciário, mas
responsabilizar civilmente alguém pelo abandono poderá servir como exemplo para outros
pais e mães que abandonam seus filhos à própria sorte, tornando certa não a obrigação de
amar, mas a obrigação de cuidar, em todos os sentidos, em especial o cuidado moral com a
prole.
Nesta esteira de pensamento, acertado o voto vencido ao afirmar que o genitor
praticou conduta ilícita ao deixar de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de
acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto. Assim, ocorrendo a conduta ilícita, o dano e
o nexo de causalidade devida à indenização.
134
Na 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa no Rio Grande do Sul, em 2003, o Juiz
de Direito Mario Romano Maggioni condenou um pai ao pagamento de 200 salários
mínimos à filha, que abandonou material e psicologicamente, tendo sido o pai condenado
à revelia, transitando em julgado a referida decisão, por ausência de recurso. O Magistrado
entendeu que negar afeto é agredir a lei, não estando este apenas desrespeitando a função
de ordem moral, mas também a ordem legal, não educando bem o filho.
Em São Paulo, na 31ª Vara Cível, o juiz de Direito Luís Fernando Cirillo, em junho
de 2004, condenou um pai a pagar à filha indenização no valor de R$ 50.000,00
(cinqüenta mil reais) para reparação do dano moral e custeio do tratamento psicológico da
mesma, por entender que a perícia técnica constatou que a jovem apresentava sérios
conflitos em razão da rejeição perpetrada pelo pai; portanto, que as vicissitudes do
relacionamento entre as partes efetivamente provocaram danos relevantes à autora.
No dia 18 de janeiro de 2007, a juíza de Direito, Simone Ramalho Novaes então
titular da 1ª Vara Cível da Comarca de São Gonçalo, Rio de Janeiro, proferiu decisão
contrária à do Recurso Especial acima citado, condenando o réu, pai ausente, a indenizar o
autor na quantia de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) a título de danos morais,
sentença que se transcreve na íntegra, em anexo ao presente. Ressalte-se que o Ministério
Público opina, no referido feito, pela procedência sob os argumentos que fundamentam
esta dissertação.
Enfim, na prolação das sentenças de 1° grau proferidas em favor do dano moral,
observados os limites destas condenações, se verifica que na ponderação dos princípios
constitucionais em jogo, sobrepõe-se o princípio do melhor interesse da criança ou
adolescente ao princípio da liberdade do pai na forma como conduz a sua vida, em
especial a necessidade de visitar e conviver com o filho, fruto de relação finda ou
inexistente; já que afirmada a paternidade, deveres se originam da mesma que devem ser
cumpridos, a fim de possibilitar a tutela da dignidade da pessoa humana em formação.
A necessidade de se responsabilizar o abandono moral se faz urgente por tudo
aquilo que se expôs no presente estudo, a todo evidente sem que haja abusos, tampouco
que se deixe de fazer justiça em cada caso concreto.
135
CONCLUSÃO
A controvérsia da matéria em exame, em especial ante à ingerência estatal no que
diz respeito às relações familiares, à patrimonialização do afeto e à caracterização do dano
moral na lesão à dignidade da pessoa do filho sujeito ao abandono moral, bem como a
incidência das normas de responsabilidade civil naquelas relações de direito de família,
gera tamanha resistência a ensejar decisões diversas, longe, ao que tudo indica, de uma
pacificação a respeito do tema.
Analisando a travessia da “família de sangue” à “família do afeto”, em um
primeiro momento, buscou-se analisar a importância do afeto nas relações familiares,
partindo-se da premissa de que a família é uma realidade sociológica, anterior ao direito,
que não pode estar, portanto, aprisionada a conceitos estanques e fechados.
Analisa-se o afeto e sua importância, inclusive para identificar e estabelecer a
filiação, excepcionando-se as relações onde não há paternidade estabelecida por opção e a
impossibilidade de responsabilização daquele que não se conhece como pai ou mãe.
Assim, como se estuda a importância da substituição da figura, a importância do afeto que
se encontra nas famílias recompostas, que também afastaria o dano moral.
Da análise da nova função social da família, fez-se um singelo estudo da família no
direito brasileiro, passando pelo modelo romano, com a edição do Estatuto da Mulher
Casada em 1962, chegando até a Constituição da República de 1988, em especial à
isonomia entre homens e mulheres e os direitos e deveres da relação paterno-filial, para se
chegar à importância da dignidade da pessoa humana como elemento central da família.
Por meio dos princípios constitucionais, capitaneados pelo da dignidade da pessoa
humana, trouxe à baila a discussão a respeito dos limites e possibilidades de se ressarcir o
dano moral resultante do abandono afetivo nas relações paterno-filiais, sem, contudo,
perder de vista as nuances do cotidiano, dentre elas a reestruturação das famílias de sangue
ante o surgimento das famílias do afeto.
A partir da premissa da família como instituto aberto, delineada como espaço onde
as pessoas encontram aconchego, carinho, refúgio aos percalços do dia-a-dia, enfim, onde
comungam afeto, ao lado da premissa de que crianças e adolescentes, pessoas em
formação, necessitam deste afeto para obterem bom êxito na formação de suas
136
personalidades, delineou-se a intervenção estatal nas relações familiares a fim de que se
observe o melhor interesse da criança no exercício do munus decorrente do poder familiar.
Embalados pelo sentimento de afeto solidário inerente às relações familiares,
passou-se ao estudo da ausência de afeto e suas conseqüências.
O abandono afetivo nas relações paterno-filiais, evidenciado nas hipóteses em que
pais ou mães deixam de estar com seus filhos, tido como lesão à dignidade da pessoa
humana ensejaria, portanto, dano moral.
Observa-se que a inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos
morais consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os
direitos da personalidade, por não serem patrimoniais, encontram excelente campo de
aplicação nos danos morais, que têm a mesma natureza não-patrimonial. Ambos têm por
objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, os quais não dependem da relação com
os essenciais à realização da pessoa, ou seja, aquilo que é inato à pessoa e deve ser
tutelado pelo direito.
Os direitos da personalidade, nas vicissitudes por que passaram, sempre esbarraram
na dificuldade de se encontrar um mecanismo viável de tutela jurídica, quando da
ocorrência da lesão. Ante os fundamentos patrimonialistas que determinaram a concepção
do direito subjetivo, nos dois últimos séculos, os direitos de personalidade restaram
alheios à dogmática civilista. A recepção dos danos morais foi o elo que faltava, pois
constituem a sanção adequada ao descumprimento do dever absoluto de abstenção.
Ao lado disso, atém-se à idéia de ponderação dos princípios constitucionais
envolvidos, dos interesses contrapostos, sem perder de vista que os direitos da
personalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana e as violações a estes direitos
evidenciam os danos morais indenizáveis e deverão nortear as decisões e posições em
relação ao tema.
O estudo, a todo evidente, não pretende esgotar a matéria, tampouco tem a
pretensão de apresentar o domínio dos institutos envolvidos, mas apenas trazer ângulos,
aspectos, opiniões, luzes, para se percorrer caminhos, sempre em busca do ideal de justiça
e eqüidade.
A evolução do Direito de Família e a “revolução” da responsabilidade civil
permeiam estes caminhos.
137
Conhecida a divergência sobre o tema, quer em nossos Tribunais, quer na doutrina,
diante do novo perfil da família plural, sua função social, em que o afeto e a solidariedade
constituem os elementos caracterizadores destas relações familiares, essenciais à formação
da pessoa humana, procura-se traçar linhas para fundamentar o ressarcimento da lesão à
dignidade da pessoa humana, causada pelo abandono afetivo nas relações paterno-filiais.
Assim, o estudo apresentado se limita a anotações a respeito dos temas trazidos,
inesgotáveis por sua própria natureza mutante. Já que se tratam de relações humanas as
relações envolvidas, encerra-se a investigação com o anseio de que a mesma contribua de
alguma forma, ainda que pela crítica, com a dialética do assunto.
138
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146
ANEXO
SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL CAUSADO POR ABANDONO AFETIVO EM RELAÇÃO PATERNO-FILIAL.
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CÍVEL
Processo nº 2005.004.017621-5 Ação de Indenização Autor : Victor Guilherme de Sá Cavalcante dos Santos, representado por sua genitora, Mirna de Sá Cavalcante Ré : Sergio Jose Correa dos Santos
S E N T E N Ç A
Vistos, etc.
Victor Guilherme de Sá Cavalcante dos Santos, representado por sua
genitora, Mirna de Sá Cavalcante propôs Ação de Indenização em face de Sergio Jose
Correa dos Santos, alegando, em síntese, que: a) obteve sua paternidade reconhecida
através de longa batalha judicial que teve início em 1992, onde após a realização do exame
por tipagem de DNA restou comprovado que o réu é o seu pai biológico; b) mesmo com a
paternidade reconhecida, hoje com 13 anos de idade, ainda se vê privado do direito ao
convívio com o genitor, ante a sua total falta de interesse na aproximação; c) a falta do
reconhecimento espontâneo e a ausência paterna até o presente momento de sua vida
gerou danos de ordem moral e material, sendo que este devidamente reparado pela ação de
alimentos, o que não ocorreu com o primeiro; d) a identidade é condição de suma
importância na vida do ser humano, motivo pelo qual viu o autor seu direito cerceado.
Diante dos argumentos expendidos, requereu a condenação do réu ao pagamento
do dano moral sofrido, em valor equivalente a 100 salários mínimos.
Inicial e documentos às fls. 02/25.
Manifestação do Ministério Público às fls. 27/27v.
Contestação e documentos às fls. 37/68, aduzindo, em resumo, que: a) teve apenas
eventual relação com a genitora do autor, motivo pelo qual a existência da dúvida quanto a
paternidade que lhe fora imputada por esta; b) após a confirmação da paternidade, com o
147
reconhecimento da criança passou a cumprir com as obrigações decorrentes da mesma; c)
tentou por diversas vezes aproximação com o menor, as quais foram impedidas pela
genitora, não conseguindo até o momento manter visitação regular; d) hoje encontra-se
casado e de cujo relacionamento adveio uma filha; e) a genitora do menor lhe causa uma
série de problemas, inclusive com sua atual família; e) o dano moral, caso existente,
deveria advir direto do autor quando adulto e não servir de anseio de sua genitora, motivo
pelo qual o pedido improcede.
Despacho às fls. 70.
Requerimento de provas às fls. 71/73.
Decisão às fls. 74.
Audiência de Instrução e Julgamento realizada às fls. 95/104.
Juntada de documentos às fls. 105/109.
Decisão às fls. 111 convertendo o julgamento em diligência, determinando a
realização de perícia.
Laudo psicológico acostado às fls. 117/119.
Manifestação das partes às fls. 124/128 e 129.
Parecer final do Ministério Público às fls. 131/137, opinando pela procedência do
pedido, com a condenação do réu ao pagamento de indenização a ser fixada pelo Juízo.
Relatados, decido.
Busca o autor com a presente demanda indenização por dano moral sofrido, em
virtude de abandono moral paterno.
Inicialmente, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a questão posta ao
debate. A matéria é bastante polêmica e demanda prudência e cautela na análise do caso
concreto.
As regras de experiência comum ensinam que as separações dos casais, na maioria
das vezes, são tormentosas e acabam gerando aos filhos havidos da união dificuldades no
trato com o cônjuge que não detém a guarda, seja por sentimentos de ódio e vingança que
lhes são transferidos por seus genitores, seja pelo abandono moral de um destes.
Em sendo assim, faz-se necessário uma maior atenção do Judiciário ao apreciar e
julgar pedidos de indenização com fundamento em abandono moral de genitor, a fim de
que a decisão não sirva somente de instrumento de vingança, mas sim de reparação de um
148
dano, de fato, suportado, com prejuízos na formação da personalidade e identidade da
criança.
O tema, como já dito, demanda inúmeras discussões e diferentes decisões, sendo
que nossos E. Tribunais Superiores ainda não firmaram entendimento predominantemente
favorável a questão, existindo apenas alguns julgados nos Estados do Rio Grande do Sul,
São Paulo e Minas Gerais.
Inobstante posicionamentos em sentido contrário e atentando para o caso em foco,
entendo ser perfeitamente possível a condenação de indenização por abandono moral de
genitor, que encontra guarida em nossa legislação pátria.
A anterior concepção de família teve como antecedente o modelo proveniente da
civilização romana. O pater famílias detinha o papel de senhor, sendo possuidor de todos
os direitos e bens da família de que era o titular.
O Código Civil de 1916 adotou a expressão “pátrio poder” como definição da
autoridade exercida pelos pais sobre os filhos menores, mas foi com a promulgação da
Constituição da República de 1988, que avançamos no tema. O princípio da dignidade da
pessoa humana erigido neste ordenamento jurídico ensejou que as relações familiares
passassem a ocorrer de acordo com a importância e individualidade de cada membro, a
começar pelo estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres inserido no art. 5º, I.
Desta forma a autoridade então exercida pelos pais transformou-se em poder de
proteção com relação aos filhos.
No capítulo que trata da família, da criança e do adolescente, dispôs ser: “dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. (art. 227 da CR).
Posteriormente entrou em vigor a Lei nº 8069/90 - Estatuto da Criança e do
Adolescente que reproduziu a norma constitucional, inserindo no art. 19 que: “Toda
criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
149
entorpecentes”. Pela norma supra transcrita constata-se que o direito a ser educado e
criado no seio da família foi incluído entre os direitos fundamentais da criança e do
adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente representa real avanço na garantia dos
direitos menoristas estabelecidos pela Carta Magna, pois afastou, de uma vez, a concepção
de menores como objeto de intervenção por parte de quem os represente ou guarde, posto
que estes também são titulares de todos os direitos humanos.
E, não poderia ser diferente, posto que a família é condição indispensável para que
a vida se desenvolva regularmente, com a formação segura da personalidade do indivíduo.
Em comentários ao artigo do ECA, Maria do Rosário Leite Cintra, da Pastoral do
Menor de São Paulo, assim se manifestou: “Desabrochar para o mundo inclui um movimento de dentro para
fora, o que é garantido pelos impulsos vitais vinculados à
hereditariedade e à energia próprias do ser vivo. Mas este
movimento será potenciado ou diminuído, e até mesmo
obstaculizado, pelas condições ambientais: 60%, dizem os
entendidos, são garantidos pelo ambiente. Não basta pôr um ser
biológico no mundo, é fundamental complementar a sua criação
com a ambiência, o aconchego, o carinho e o afeto indispensáveis
ao ser humano, sem o que qualquer alimentação, medicamento ou
cuidado se torna ineficaz.
O ideal é que os filhos sejam planejados e desejados por seus pais
e que estes possam garantir-lhes a sobrevivência nas condições
adequadas. É fundamental, pois, que os adultos que geram a
criança a assumam e adotem.
A família é o lugar normal e natural de se efetuar a educação, de
se aprender o uso adequado da liberdade, e onde há a iniciação
gradativa no mundo do trabalho. É onde o ser humano em
desenvolvimento se sente protegido e de onde ele é lançado para
a sociedade e para o universo.” (in “Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais”, 3ª
edição, Malheiros Editores, pág. 85).
A legislação específica dispôs ainda, em seu art. 21, que: “O pátrio poder será
exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a
150
legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância,
recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência”.
E, complementa, incumbir aos pais: “o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer
cumprir as determinações judiciais.”(art. 22 do ECA).
Em perfeita harmonia com as normas citadas, o novo Código Civil de 2002
estabeleceu que a responsabilidade dos pais em relação aos filhos é conjunta, atribuindo-
lhe o nome de “poder familiar”, disciplinado nos arts. 1630/1638.
Ao adotar referida expressão fixou a Lei Civil à autoridade aos componentes da
família da criança, definidas pela Constituição da República como entidades familiares,
seja esta constituída pelo casamento, pela união estável, pela família natural ou substituta.
Desta forma, o poder familiar foi instituído visando a proteção dos filhos menores,
por seus pais, na salvaguarda de seus direitos e deveres.
Em sendo assim, analisando os diplomas legais citados, chega-se a conclusão de
ser perfeitamente possível a condenação por abandono moral de filho com amparo em
nossa legislação.
A preocupação constante de alguns julgadores contrários a indenização por
abandono moral é no sentido de que se estaria incentivando a “indústria do dano moral” ao
conceder ao filho, abandonado pelo pai, indenização pecuniária.
Embora justificado o entendimento e considerando que muitas vezes a intenção
seja somente financeira, não se pode generalizar, sendo necessário examinar cada caso
isoladamente.
A banalização do dano moral e a mercantilização das relações extrapatrimoniais
irão sempre existir em um número de casos, valendo citar como exemplos, algumas
reclamações que crescem assustadoramente na Justiça, tais como, negativações individuais
no SPC e SERASA, corte indevido no fornecimento de energia elétrica, bloqueio de conta
e cartão de crédito, sem que haja comprovado inadimplemento por parte do titular,
bagagem extraviada, o sinal da loja que soa, porque o balconista esqueceu-se de retirar o
alarme do produto, a mercadoria que não foi entregue dentro do prazo estabelecido.
Enfim, inúmeras situações presenciadas pelos operadores do direito e que, na sua
grande maioria, são interpretadas como ofensa a dignidade moral da pessoa.
151
Assim, não podemos deixar de entender que o abandono moral do genitor, o seu
descaso com a saúde, educação e bem estar do filho não possa ser considerado como
ofensa à sua integridade moral, ao seu direito de personalidade, pois aí sim estaríamos
banalizando o dano moral.
Se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve
arcar com a responsabilidade por tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever
de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim,
todos esses direitos impostos pela Lei.
Ajunte-se a isso, ser imperioso considerar, conforme assinala Silvio Rodrigues, que
“ dentro da vida familiar o cuidado com a criação e educação da prole se apresenta como
questão mais relevante, porque as crianças de hoje serão os homens de amanhã, e nas
gerações futuras é que se assenta a esperança do porvir” (Direito de Família, volume 6,
pág. 368/371). Por essa razão que o Código Civil de 2002 pune com a perda do poder
familiar aquele que deixar o filho em abandono, entendido este não apenas o ato de deixar
o filho sem assistência financeira, mas também o descaso intencional pela sua criação.
É preciso atentarmos, ainda, para o fato de que “temos hoje o que pode ser
chamado de direito subjetivo constitucional à dignidade”., conforme assinalou o
Eminente Des. Sergio Cavalieri em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil”,
concluindo que “a Constituição deu ao dano moral uma nova feição e maior dimensão,
porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os valores morais, a
essência de todos os direitos personalíssimos.” (obra citada, pág. 94).
Portanto, violados esses direitos, hão de ser reparados pela via da indenização por
dano moral.
Analisado o direito, passa-se ao exame da hipótese vertente.
No caso em tela, o que se pode observar pelo depoimento do réu, corroborado pelo
laudo psicológico realizado, é de que, embora a aproximação entre pai e filho tenha sido
dificultada pela genitora do autor, esta poderia ter sido novamente obtida quando o menor
alcançou idade e discernimento suficientes, mas não foi o que ocorreu. O réu sequer se
valeu dos meios jurídicos próprios para obter regularmente a visitação do filho.
152
E, pior, mesmo tendo conhecimento da paternidade que lhe era imputada, não
promoveu o reconhecimento espontâneo, tendo aguardado o resultado de duas demandas
ajuizadas pela genitora do autor que teve início em 1992 e desfecho em 2004.
O que se constata é que nada foi feito. O réu deixou evidenciado sua total falta de
interesse pela vida do menor. Não existiu até o momento qualquer relacionamento entre
pai e filho.
O réu apenas limita-se a cumprir com o seu dever de alimentar, como se isto fosse
a única coisa importante na vida da criança.
Destaque-se parte do depoimento: “... que tomou conhecimento da gravidez quando a criança já
havia nascido e sua genitora já havia ajuizado ação de
investigação de paternidade, isto em 1992; que esta ação foi
julgada improcedente pela falta do exame de DNA, pois na época
não se fazia gratuitamente; ... que mesmo com a improcedência
da ação e a representante do menor afirmando que o mesmo era
seu filho não teve interesse em confirmar o fato, continuando a
negar a paternidade; que ninguém de sua família passou a se
relacionar com a criança; ... que não ajuizou ação de
regulamentação de visitas; que nunca parou para pensar nos
anos perdidos de relacionamento com seu filho; ... que nunca foi
a escola do menor, como também as festividades realizadas nesta
instituição; ... que os irmãos sabem da existência um do outro,
contudo, nunca foram apresentados”. (fls. 104).
Saliente-se, por ser de suma importância, que o indivíduo, muito antes do seu
nascimento, quando ainda é gerado no útero materno, necessita se abastecer não só de
alimento, mas sobretudo de amor, para se desenvolver sadiamente, nascendo para o mundo
e se tornando um homem/mulher seguro.
O que se pode concluir é que, mesmo a jurisprudência brasileira ainda sendo
reticente a questão, a situação dos filhos abandonados por seus pais representa um dos
maiores problemas sociais que assola o País e deve ser enfrentado sem temores e por todos
os enfoques e órgãos públicos.
Dissertanto sobre o tema, Maria Celina Bondim de Moraes, assim se manifestou: O víeis jurídico, já garantido pelo direito de família positivo,
passa pela conscientização de que a lei obriga e responsabiliza os
153
pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses
cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicológica dos
filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores
protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura
dano moral. Em caso de dano moral, determina também a
Constituição, no art. 5º, X, surge o dever de indenizar.
Conseqüentemente, o abandono moral gera reparação. Este não é
um raciocínio radical nem tampouco abstruso; ao contrário,
parece límpido e em consonância com o tempo presente.”
(RBDF, nº 31, Jurisprudência Comentada, pág. 66).
Em conclusão, entendo que o abandono moral praticado pelo réu desta ação trouxe
ao autor dano moral, caracterizado pela ofensa à sua dignidade em não ter tido a
assistência paterna, imprescindível ao seu desenvolvimento como cidadão, sendo, pois,
indenizável.
O dano moral, como exaustivamente demonstrado, atinge os bens da
personalidade, como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando
dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima.
Na configuração do dano moral é necessário a presença de algum ou de todos os
elementos mencionados anteriormente, tornando-se indispensável as regras de prudência,
de bom senso, das realidades da vida, devendo o Magistrado seguir a linha da lógica do
razoável, onde o mero dissabor ou mera sensibilidade não geram dano moral.
No caso em exame, o dano moral causado ao autor é inquestionável, justificando
uma satisfação pecuniária.
Não há critério rígido para a fixação do dano moral, razão pela qual a doutrina e a
jurisprudência são uniformes no sentido de deixar ao prudente arbítrio do Magistrado a
decisão, em cada caso, observando-se a gravidade do dano, a sua repercussão, as
condições sociais e econômicas do ofendido e do ofensor, o grau de culpa e a notoriedade
do lesado, além de constituir-se em um caráter punitivo, para que o seu ofensor não mais
pratique o mesmo ato lesivo, sem contudo, dar ensejo ao enriquecimento ilícito da vítima.
Cabe, pois, ao Julgador, no caso concreto, valendo-se dos poderes que lhe são
conferidos nos arts. 125 e seguintes do CPC e, diante dos elementos destacados acima,
fixar o quantum, proporcionando à vítima satisfação na justa medida do abalo sofrido.
154
Nem se diga que a falta de equivalência obstaria a indenização, pois no dizer de
José de Aguiar Dias: “Não é razão suficiente para não indenizar, e assim beneficiar o
responsável, o fato de não ser possível estabelecer equivalente exato, porque, em matéria
de dano moral, o arbitrário é até da essência das coisas.” (in “Da Responsabilidade
Civil”, Vol. II, 10ª edição, Editora Forense, pág. 739).
Em sendo assim, seguindo-se a trilha da lógica do razoável, fixo o dano moral em
R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais).
Pelo exposto, julgo procedente o pedido, condenando o réu a indenizar o autor o
dano moral sofrido no valor de R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais), acrescidos de juros
legais desde a citação e correção monetária desde a data da sentença.
Condeno, ainda, o réu nas custas processuais e honorários advocatícios de 10%
(dez por cento) sobre o valor da condenação, ressalvando, contudo, o art. 12, da Lei nº
1060/50.
P. R. I. Dê-se Ciência ao Ministério Público.
Com o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 18 de dezembro de 2006.
SIMONE RAMALHO NOVAES
Juíza de Direito
155
ÍNDICE RESUMO 7 ABSTRACT 8 INTRODUÇÃO 09 I - A Travessia da “Família de Sangue” à “Família do Afeto” 12 1. O afeto como elemento essencial à estruturação da pessoa humana 12 1.2. O afeto e as famílias recompostas 17 2. Evolução da família no direito brasileiro 20 2.1. Função social da família 28
2.2. O dever de solidariedade 32 3. Os Direitos e Deveres da Relação Paterno-Filial 33
3.1. Direito à convivência familiar 40
3.2. O melhor interesse da criança 43 4. A Repersonalização 47 4.1. Dos Direitos da Personalidade 47
4.2. Dignidade da Pessoa Humana e Solidariedade Social 49
4.3.A dignidade da pessoa humana como princípio constitucional 51
4.3.1. A igualdade 56
4.3.2. A integridade psicofísica 57
4.3.3. A liberdade 58
4.4. O interesse social. O princípio constitucional da solidariedade social 60 II - Família, Sociedade e Estado: Autonomia e Intervenção 62 1. Visão panorâmica da intervenção estatal ao longo dos tempos na relação familiar entre pais e filhos 62 2. A intervenção estatal como garantia do exercício do poder familiar segundo o melhor interesse da criança 64
156
3. Da suspensão à perda do poder familiar 68
3.1 O contra sensu da perda do poder familiar 70
4. A responsabilidade civil pelo abandono moral 73 III – Ausência do Afeto e o Dano Moral Sancionatório 75 1. Evolução da responsabilidade civil - uma síntese apertada 75 1.1. Visão geral dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva:
a conduta culposa, o nexo causal e o dano 78 1.2. A conduta omissiva do pai e da mãe, o dever legal de
convivência, a lesão à dignidade do filho e o nexo causal 80
2. O dano moral e evolução histórica 81 2.1. A constitucionalização do dano moral 84 2.2.A difícil tarefa de conceituar o dano moral 85 2.3. O caráter compensatório e sancionador 88
2.4. O dano moral e as relações entre pais e filhos 93
3. O pai e a mãe ausente e a lesão à dignidade do filho 97 3.1. A exclusão do nexo causal – isenção do dever de indenizar 101 3.2.. Fato exclusivo da vítima 101 3.3. Fato de terceiro 102 3.4. As famílias recompostas. Padrastos e madrastas. Ausência de lesão 103 3.5. A prova pericial 104
4. Aplicabilidade dos princípios constitucionais – o norte do intérprete 105 4.1. A ponderação dos princípios 109 4.2. A cláusula geral de tutela da pessoa 111 4.3. Critério valorativo para a compensação – o papel do juiz no arbitramento do valor indenizatório 113 4.4. A proliferação das ações indenizatórias por dano moral 117 4.5. Análise do caso concreto 118
CONCLUSÃO 127 REFERÊNCIAS 130 ANEXO 138
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