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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS Rio de Janeiro 2007

UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ JACQUELINE EL-JAICK … · obtenção do grau de Mestre em Direito. ... dos deveres oriundos destas ... pautas ou critérios para a avaliação de todos

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO

LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL

POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES

PATERNO-FILIAIS

Rio de Janeiro

2007

10

JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO

LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL

POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES

PATERNO-FILIAIS

Dissertação apresentada à Universidade Estácio de Sá como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

Rio de Janeiro

2007

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JACQUELINE EL-JAICK RAPOZO

LIMITES E POSSIBILIDADES DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS

Dissertação apresentada à Universidade Estácio de Sá como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

_____________________________________________

_____________________________________________

12

A meus pais, Hélio e Maria José, por seu afeto sem limite e

a Gabriela, por quem transborda o meu.

13

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Fachin, que com sua enorme paciência e boa vontade, me auxiliou na busca pela luz que abriu o caminho para que este estudo pudesse se concretizar, sempre disposto a corrigir meus passos, analisando textos escuros e clareando-os, principalmente através da sua disposição para ouvir e orientar, com conhecimento e capacidade impressionante para organizar idéias. Sem a sua colaboração este estudo não teria ocorrido.

Aos demais Professores do Curso de Mestrado em Direito pelo

empréstimo de seus conhecimentos, sua atenção e dedicação, e aos funcionários da Secretaria, em especial ao Fábio e ao Paulo Roberto, sempre dispostos a ajudar, dando aquela força necessária para continuarmos em frente.

Muito obrigada.

14

RESUMO

Este estudo objetivou trazer à tona a discussão sobre a falta de afeto por abandono nas relações

paterno-filiais, analisando os limites e as possibilidades da indenização pelo dano moral porventura

ocasionado por este abandono, possibilitando que profissionais do direito que atuam na área, com uma

visão civil-constitucional, em especial do direito de família, pudessem, embasados, sobretudo nos

princípios constitucionais, tendo como corolário o princípio da dignidade humana, buscar a tutela do

interesse da pessoa humana, resguardando o melhor interesse daquelas pessoas em desenvolvimento,

crianças e adolescentes. A reflexão sobre a família em sua travessia, em que o afeto se vislumbra

como elemento estrutural da pessoa humana, deixando a verdade biológica de ser absoluta para ser

relativa, atingindo as “famílias do afeto” o mesmo patamar das “famílias de sangue”, dos deveres

oriundos destas relações familiares, bem como da certeza de que a proteção da pessoa humana é a

principal preocupação do ordenamento jurídico moderno, toma o direito, portanto, como instrumento

por excelência indispensável para a sua promoção. Procura-se com a idéia da repersonalização do

direito, com a publicização em especial do Direito de Família e a autorização da intervenção estatal

em suas relações a fim de atender ao melhor interesse da criança e do adolescente, pessoa em

formação, autorizar, ainda, a reparação civil do dano moral causado pela falta de afeto paterno ou

materno, ante o descumprimento do dever legal de convivência e a lesão à dignidade do filho. Ausente

qualquer pretensão de esgotar o estudo, tampouco de tomá-lo como verdade absoluta, neste trabalho,

procura-se trazer alguns pontos que possibilitem este novo caminho.

Palavras-chave: Abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Princípios constitucionais. Dignidade da pessoa humana. Dano moral.

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ABSTRACT

It was this study’s goal to discuss the lack of affection by abandonment in parent-children

relationships, analyzing the limits and possibilities of indemnity for the pain and suffering caused by

this abandonment, allowing the law professionals that work in the field, with a civil-constitutional

vision, specially of family law, to search — based above all on the constitutional principles, and

having as a corollary the principle of human dignity — the guardianship for the person’s interests,

thus protecting the best interests for these people in development, children and teenagers. The

reflection on the family in its course, in which affection is seen as a structural element of the human

being, the biological truth here becoming relative instead of absolute, the “families of affection” being

at the same level of the “families of blood”, by the duties derived from these family relations, as well

as by the certainty that the human being’s protection is the main for the modern legal system, takes the

law, therefore, as a quintessential tool for its promotion. With concern the notion of the law’s

repersonalization, with the publicization of the Family Law and the permit for State intervention in its

relations, in order to serve the child’s and teenager’s interests, it also aims to authorize the civil

reparation of the pain and suffering caused by lack of parental affection, as a result of the non-

fulfillment of the legal duty of living together and injury to the child’s dignity. Without any

aspirations as to exhaust the topic, or to take it as an absolute truth, the present work considers a few

points to make this new way possible.

Keywords: Affective abandonment in the relations paternal-branch offices. Principles

constitutional. Dignity of the person human being. Pain and suffering.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................1

0

TÍTULO I - A TRAVESSIA DA “FAMÍLIA DE SANGUE” À

“FAMÍLIA DO

AFETO”.......................................................................................13

TÍTULO II – FAMÍLIA, SOCIEDADE E ESTADO: AUTONOMIA E

INTERVENÇÃO.....................................................................................................6

3

TÍTULO III - AUSÊNCIA DO AFETO E O DANO MORAL

SANCIONATÓRIO................................................................................................7

6

CONCLUSÃO.......................................................................................................12

8

REFERÊNCIAS....................................................................................................13

1

ANEXO..................................................................................................................13

9

ÍNDICE...................................................................................................................14

3

17

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar a importância do afeto nas relações

familiares, em especial entre pais e filhos, como elemento estrutural para a formação da

pessoa humana.

A par desta importância, passa-se à análise das relações familiares à luz da

principiologia constitucional, com a reconstrução do Direito Civil, em especial do Direito

de Família, e sua visão personalista, tendo a família como realidade sociológica.

Aliada a esta idéia da família como realidade sociológica, traz-se a relevância do

afeto nas famílias recompostas, nas quais aquele se verifica presente como remédio para as

incertezas do cotidiano, tornando certa, inclusive, a realidade da verdade social a despeito

da verdade biológica.

Estuda-se o afeto, unido aos deveres oriundos das relações paterno-filiais, sejam

elas biológicas ou sociais, juntamente com a nova função social da família, de proteção da

pessoa humana, não se falando mais em proteção à família pela família, mas sim dos seres

humanos que a integram, como constitutivo de vínculos familiares.

A família como realidade pluralista, em sua travessia da família de sangue à

família do afeto, tem asseverado aquele sentimento como estrutural da pessoa humana em

formação.

Dentro da perspectiva de que a relação paterno-filial estabelecida deve ser objeto

de proteção estatal a fim de garantir a estruturação da pessoa humana, e que o abandono

afetivo se caracteriza como transgressão aos direitos e deveres inerentes à condição de pai

e filho, admitida a dignidade da pessoa humana como valor supremo perseguido pelo

ordenamento jurídico, impõe-se a tutela destes direitos visando o melhor interesse da

criança e do adolescente diretamente envolvido.

Oxigenado o Direito Civil com os princípios constitucionais, capitaneados pela

cláusula geral de tutela da pessoa e pelo princípio da solidariedade social, passa-se à

discussão a respeito do ressarcimento da vítima da falta de afeto.

A inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos morais

consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os direitos da

personalidade, por não serem patrimoniais, encontram excelente campo de aplicação nos

danos morais, que têm a mesma natureza não-patrimonial.

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Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, aquilo que é

inato à pessoa e deve ser tutelado pelo direito.

Os princípios constitucionais, como normas, desempenham a função de dar

fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática

normativa. Sendo normas, tornam-se as normas supremas do ordenamento, servindo de

pautas ou critérios para a avaliação de todos os conteúdos constitucionais e

infraconstitucionais. As normas das normas.

A operacionalização da preponderância de um dos princípios se dá por meio da

técnica da ponderação dos princípios. A demarcação de forças entre um princípio e outro

não fica adstrita ao entender do operador do princípio envolvido no tema, levando-se a

cabo a interpretação, fundamentada nos valores humanos e jurídicos já pacificados pelo

tempo e pela história.

A ponderação dos interesses contrapostos, sem perder de vista os direitos da

personalidade envolvidos, o princípio da dignidade da pessoa humana e as violações a

estes direitos que evidenciam os danos morais indenizáveis, deverá nortear as decisões e

posições em relação ao tema, necessitando ser devidamente fundamentadas.

A ausência de afeto nas relações paterno-filiais e, conseqüentemente, a

caracterização de possível negligência causada pelo abandono, esta geradora do dano

moral e os seus limites e possibilidades se configuram em complexo problema.

Diante de problema tão complexo, instigante e relevante, do ponto de vista

humano, pergunta-se: esse princípio constitucional pode fundamentar a responsabilização

da falta de afeto? Cumpre adiantar que a doutrina e a jurisprudência divergem sobre o

tema, não havendo pacificação sobre o assunto.

Assim, objetiva-se analisar as relações familiares, identificando os deveres e

direitos advindos da relação paterno-filial e suas conseqüências, dentre elas, aqui em

especial, o dano moral e seu ressarcimento, analisando a posição jurisprudencial e

doutrinária a respeito do tema.

As relações de afeto estão intimamente ligadas à figura dos novos direitos, em

todas as suas vertentes, ante as atuais versões jurídicas da família e seus efeitos, direitos e

deveres, quer no que diz respeito às relações familiares socioafetivas, as oriundas da

biotecnologia, assim como entre os velhos dilemas e seus novos paradigmas.

19

Sob esse enfoque, a presente investigação, situada na linha de pesquisa dos “Novos

Direitos” do curso de Mestrado da Universidade Estácio de Sá, pretende subsidiar

reflexões e as atividades profissionais daqueles que se defrontam com o dilema resultante

do progresso das relações familiares e seus efeitos, assim como a crescente demanda em

relação ao dano moral, com a análise dos princípios constitucionais envolvidos e suas

ponderações, com o fim de traçar possíveis caminhos para solução dos casos concretos,

direcionados pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Os sujeitos destas relações devem ter conhecimento das vertentes de seus atos, a

fim de conscientizar tanto pais quanto filhos das conseqüências destes e da importância do

afeto nessas relações.

A pesquisa utilizada para alcançar tal objetivo foi a do tipo documental e as fontes

dos dados foram constituídas de legislação, jurisprudência e doutrina. A legislação

pesquisada será essencialmente a brasileira. Quanto à jurisprudência, limitou-se também

aos tribunais brasileiros, os dos Estados e o Superior Tribunal de Justiça.

A doutrina e a jurisprudência utilizadas foram aquelas específicas do direito de

família, do direito das obrigações e do direito civil-constitucional, já que se faz uma

ligação entre os dois ramos do direito civil, norteados pela doutrina constitucional, ante a

relevância dos princípios constitucionais, verdadeiras normas vinculativas, com sua

eficácia jurídica direta.

O estudo se limita a abordar o cabimento do ressarcimento por possível lesão à

dignidade da pessoa humana do filho, em especial no que diz respeito à falta de

convivência com o pai ou a mãe, com a falta de afeto, portanto, dano moral causado nas

relações familiares em conseqüência dos efeitos, direitos e deveres advindos da relação

paterno-filial, segundo a doutrina e a jurisprudência.

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I – A TRAVESSIA DA FAMÍLIA DE SANGUE À FAMÍLIA DO AFETO

1 O afeto como elemento essencial à estruturação da pessoa humana

O ser humano busca incessantemente a felicidade. No anseio de encontrá-la se

prende e desprende de relações, objetos, sonhos, num transcorrer de caminhos sombrios ou

iluminados, em que o afeto encontra lugar como um dos mais preciosos sentimentos.

As relações fundadas no afeto tendem a ser aquelas mais sadias, cujos vínculos são

mais fortes e difíceis de desatrelar. Tempero das relações humanas, o afeto tem o dom de

remediar, inclusive, aquilo que já se tinha como irremediável.

Este tempero, o afeto, sentimento dos mais puros e inerentes ao ser humano, por

vezes se evapora na busca insana e desordenada pela felicidade. A idéia contemporânea

deste encontro, a qualquer preço, muitas vezes acaba por trazer infelicidade.

Nas relações humanas em que são geradas outras pessoas, sejam elas fundadas ou

não no afeto, novas relações se formam e, novamente, o afeto não deve faltar, isto porque

é sabido, em especial pela psicologia, que o afeto é essencial para a formação da pessoa

humana.

A liberalidade em relação a tão importante sentimento não pode justificar que pais

se descuidem de filhos sob pena de inúmeras conseqüências.

Há que se questionar quanto à ponderação da liberdade do ser humano e a

responsabilidade por seus atos, ainda mais no que tange à prole, partindo-se da premissa

de que um ser humano não pede para vir ao mundo, sendo esta opção de seus genitores.

Na incessante procura pela felicidade, portanto, as pessoas não podem se descuidar

de seus filhos sob argumentação tão perene. Não se podem desculpar atitudes avessas ao

afeto paterno-filial por qualquer razão. Dinheiro, fama, novos amores, nada disso pode

substituir o afeto filial.

Pergunte-se a uma criança de sete anos, por exemplo, o que ela mais deseja: a

presença afetiva do pai ou da mãe, ou um punhado de dinheiro. Difícil que a opção

escolhida seja a segunda.

O afeto assume, com o Novo Código Civil brasileiro, importância para a

caracterização do parentesco, já que se admite no art. 1.593 que o parentesco é natural ou

21

civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem, donde se percebe a intenção

do legislador em autorizar a definição do parentesco a critérios abertos.

Da mesma forma, o afeto, matéria-prima elementar à estruturação da pessoa

humana, embutido nas relações familiares, que não encontra previsão jurídica expressa,

ante a incapacidade de se mensurar e legalizar, encontra lugar para fundamentar decisões

em busca do melhor interesse da criança, quando presente.1

Antes da filiação, o afeto, como a origem e a causa dos caminhos e descaminhos

das relações familiares, deve ser o denominador comum destas relações. Todavia, as

inúmeras relações humanas ricas em afeto, que fazem parte da nossa história e do nosso

cotidiano, nem sempre encontraram hipóteses positivadas ou previamente legalizadas.

Quando presente no transcorrer das relações familiares, o afeto tem o condão de

solucionar os descompassos, as pedras que teimam em aparecer nos caminhos das pessoas,

demonstrando que a solidariedade, o amor e a compreensão são os melhores remédios para

os dissabores inerentes ao ser humano.

Findo ou inexistente, as soluções não se avistam. A discórdia e a incompreensão

dão início às mazelas do cotidiano, se tornando relevantes as normas constitucionais e, em

especial o direito de família, a fim de garantir a proteção da pessoa humana, norteada pelo

princípio da dignidade.2

Assim, nas relações entre seres humanos, maiores e capazes, que se unem e

desunem, que se relacionam esporadicamente ou com regularidade, o afeto e sua falta

podem trazer conseqüências maravilhosas ou desastrosas. 1 Identificando a importância do afeto nas relações familiares, assim decidiu o STJ: “Família. Guarda de filhos. 1. Assentado o acórdão recorrido na prova dos autos que indica já estarem as filhas na guarda do pai, integradas ao convívio familiar e gozando de afeto, a modificação da guarda pode ser prejudicial às filhas, no cenário desenhado nos autos. 2. Recurso especial não conhecido”. (grifo nosso, Resp. 27.346/SP – 3ª Turma – j. 18.03.2004 – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito) No mesmo sentido: “Guarda de menor. Busca e apreensão. Direito dos pais verdadeiros. Interesse do menor. 1. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 6°, comanda que o intérprete deve levar em consideração os fins sociais a que ela se destina, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. É bem o caso destes autos. Aos pais, com ampla liberdade de visitação, está dada a oportunidade de promoverem a transferência da guarda sem maiores transtornos ou prejuízos para o filho, de maneira espontânea, criando laços afetivos, estimulando a convivência com o irmão natural e mostrando compreensão, tolerância, conquistando sem ruptura brusca o coração do filho gerado, e, com isso, ampliando os afetos e tornando natural o retorno ao seio da família natural. A qualquer tempo isso pode ser feito, posto que mantida a guarda, nesse momento, com a tia, sem perda do poder familiar, que não está aqui envolvido. 2. Recurso especial não conhecido”. (grifo nosso, Resp. 518562/RJ – 3ª Turma – j. 15.09.2005 – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito). 2 GRISARD FILHO, Waldir. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.64.

22

A família, como lugar privilegiado para a comunhão de afeto e afirmação da

dignidade humana, tem em especial na relação paterno-filial o instrumento para a

realização do ser humano.

A ausência de afeto nas relações entre pais pode gerar conseqüências catastróficas,

quando tem efeito espelhado nas crianças e nos adolescentes, aos quais deve-se garantir

proteção integral.

O afeto, essencial à formação da integridade psíquica, pode causar dano à

personalidade humana quando em falta, já que resulta na sua má-formação, na sua má-

estruturação.

Por sua vez, a proteção integral assegurada à criança e ao adolescente se insere nos

deveres oriundos da relação entre pais e filhos, sendo que, ainda que não haja previsão

legal ao direito de afeto, este se vislumbra naturalmente.

A afeição, o amor e a dedicação que se deve ter em relação ao filho são, antes de

mais nada, essenciais à preservação da espécie humana.

Ante a evolução das relações familiares, estando a família moderna assentada nas

bases do afeto e da solidariedade, e o desenvolvimento de seus membros sendo sua função

social, merecem tutela não somente as relações familiares matrimonializadas, mas todas

aquelas em que se comunga a relação afetiva.

As relações paterno-filiais se constroem com afeto, sendo este revelado no

comportamento daqueles que concedem atenção, cuidado e carinho no tratamento público

e familiar, com afeto paternal, estruturando o vínculo da paternidade, seja ele biológico ou

não.

Portanto, o afeto se consagra como essencial à constituição da própria filiação, o

que leva, inclusive, o legislador constituinte a extirpar as desigualdades entre os filhos,

reconhecendo nitidamente a filiação oriunda do vínculo civil, além do vínculo biológico.3

Base da relação familiar, a manifestação fática do afeto é necessária para que se

possa afirmar a paternidade. A filiação, portanto, como realidade jurídica, somente se

estabelece quando há o afeto unindo pais e filhos.

3 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.21.

23

Dentro da concepção pluralista da família, em que não há um conceito fechado do

que seja família, corroborado pelo texto constitucional que enumera em numerus apertus

as entidades familiares, o afeto se torna essencial, inclusive, no sentido de se identificar

relações que possam ser consideradas como tal, ou seja, como relações familiares.

Neste diapasão, as filiações decorrentes das famílias monoparentais deverão ser

analisadas de maneira especial, sendo inúmeros os fatores que podem resultar nesta

monoparentalidade, advenha ela do ideal de vida do pai ou da mãe, ou em suas produções

independentes, ou da adoção por uma só pessoa, ou da inseminação artificial ou natural,

ou do fim de uma união fracassada, ou de uma gravidez indesejada, enfim, infindáveis

razões podem levar à constituição deste tipo de família monoparental, na qual somente um

genitor é conhecido e se quer conhecer.

Nestas relações familiares monoparentais, a relação paterno-filial se estabelece

somente em relação a um de seus membros, seja o pai ou a mãe. Questiona-se se o afeto

recebido pelo filho por esta única figura será suficiente para suprir a presença da outra

figura na relação triangular, o que, entretanto, não é objeto do presente estudo.

Nas famílias monoparentais por opção, também chamadas de famílias unilineares,

nas quais as crianças descendem de uma só linha, ou seja, são vinculadas à família do pai

ou da mãe; não há que se pretender responsabilizar aquele terceiro que sequer tem

conhecimento de sua ausência e da falta de seu afeto.

A ausência na relação triangular comumente estabelecida poderá ser questionável

quanto ao direito de o filho ter sua identidade estabelecida, assim como o direito a ter pai e

mãe, ou seja, estabelecida a paternidade e a maternidade.

Por outro lado, há a hipótese daquelas filiações estabelecidas, em que se tem

conhecimento de quem seja o outro genitor, figurando este no registro de nascimento do

filho, que, contudo, não convive com o mesmo, caracterizando a ausência do afeto e as

circunstâncias que interessam tratar aqui.

A ausência afetiva de uma das personagens da história familiar, gerando a ausência

das funções familiares, é considerada como uma das causas da crescente violência e

24

delinqüência juvenil, que assola principalmente as camadas mais desfavorecidas da

sociedade.4

Na sociedade brasileira, em especial, na maioria das vezes, a ausência se verifica

na figura paterna, conseqüência das transformações sociais que tiveram início com a

entrada da mulher no mercado de trabalho, afastando-a, assim, das funções

exclusivamente familiares, permitindo, por sua vez, que ela pudesse assumir ambos os

papéis, já que o papel de provedor não se encontra mais necessariamente nas mãos do

varão.5

O declínio do poder do pai se verifica com o advento da secularização e da

democracia, não somente em razão da limitação de sua autoridade sobre os filhos com a

maioridade, mas do deslocamento do poder do pai para a mãe.6

A ausência das funções de pai pode acarretar aos filhos gravíssimos problemas

sendo a figura paterna necessária na relação familiar. O filho precisa desta figura, mesmo

que não seja daquele que o gerou, mas de alguém que a represente, para contribuir com

seu crescimento psíquico, fazendo parte da natureza humana o desejo de ser amado e

protegido.7

Da mesma forma, no caso das separações e divórcios, a falta de afeição e os

desencontros havidos entre os pais acabam, muitas vezes, impondo a ausência do afeto

daquele pai ou mãe que se distancia dos filhos, em razão do rompimento do vínculo

familiar.

4 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Renovar: Rio de Janeiro, 2000. p.582. 5 Neste sentido, afirma Marcos Alves da Silva: “A re-significação dos papéis do pai e da mãe em relação aos filhos impõe-se como tarefa inadiável, quando se considera o número cada vez mais expresso de famílias que se estabelecem de forma monoparental. A prevalecer o modelo iconizado de família, objeto da teoria freudiana, continuaremos a estereotipar a feminilidade e a pensar como patológicas todas as famílias monoparentais, visto que, em sua expressiva maioria, especialmente se considerada a realidade brasileira, são constituídas por mãe e filho, sendo o genitor um ausente.” SILVA, Marcos Alves da. Do Pátrio Poder à Autoridade Parental. Renovar: Rio de Janeiro, 2002. p.84. 6 Philippe Julien, no estudo sobre a feminilidade: “Com o advento da secularização e da democracia, o declínio do pai se manifesta de outro modo: ele não concerne somente à autoridade do pai sobre seus filhos e filhas, tornados legalmente livres no dia da sua maioridade. O declínio vem do deslocamento do poder do pai para a mãe.” JULIEN, Philippe. A Feminilidade Velada. tradução Celso Pereira de Almeida. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora. 2006, p.19. 7 Philippe Julien, ob. cit., p.29.

25

A falta do afeto, essencial à formação da pessoa humana, caracteriza verdadeiro

descumprimento do dever inerente à filiação e lesão à dignidade da pessoa humana,

princípio constitucionalmente assegurado.

A importância do afeto é tanta, diante do que foi visto, que o mesmo é capaz de

constituir vínculos familiares, no dizer irretocável de Fachin: “Emerge, daí, a noção de que

o afeto solidário inerente às relações familiares tem força constitutiva de vínculos

familiares.”8

A forma que a família irá adotar, as regras que irão servir aos membros desta

família, e a todas as relações oriundas dela, não terão relevância jurídica, desde que

tenham como valor de referência a pessoa, isto é, desde que sejam famílias fundadas na

concepção eudemonista, respeitando-se seu valor na vida interna e tendo como parâmetro

o fato de que o afeto é essencial à sua formação, já que nela se assenta a idéia da

comunhão de afetos, de vida e de história.

1.1 O afeto e as famílias recompostas

Partindo da idéia de que a paternidade se estabelece quando o afeto une pais e

filhos, havendo ou não o vínculo biológico, reconhece-se a filiação advinda ou não do

vínculo de sangue, restando, portanto, reconhecido o valor do afeto.

A igualdade entre os filhos reconhecida pela Constituição da República de 1988

estabelece de maneira definitiva a importância do afeto como elemento imprescindível

para a construção da paternidade, importância esta já manifestada pela doutrina e pela

jurisprudência.9

8 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.263. 9 Anuncia FACHIN: “A jurisprudência pátria reconhece o valor jurídico do afeto como primordial para o estabelecimento da filiação. Exemplo disso é o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, cuja ementa transcrevemos em parte, em que, em processo de adoção, são reconhecidos os vínculos afetivos entre adotante e adotado como aptos a afastar a maternidade de quem, sem embargo do vínculo de sangue, não manteve relação de afeto com o menor.” FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.22. “Negatória de paternidade. Adoção à brasileira. Confronto entre a verdade biológica e a sócio-afetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. 1. Ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/ STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da denominada adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por

26

A existência da verdade socioafetiva e sua importância em grau de igualdade com a

verdade biológica, por vezes capaz de afastar esta última, determina que a realidade

jurídica da filiação não se funde somente nestes laços de sangue, sendo o afeto peça-chave

nas uniões entre pais e filhos.

O vínculo sangüíneo pode não existir, mas o tratamento afetuoso entre pais e

filhos, o carinho, a manutenção econômica daquele, os ensinamentos e instruções

garantidas aos filhos, a vontade de se projetar na outra pessoa, a vontade de ser

reconhecido como filho daquele pai, assim como a fama e a notoriedade da referida

filiação têm o condão de consagrar a posse de estado de filho.10

Esta posse de estado de filho pode se observar, portanto, quando haja ou não o

vínculo biológico. Nos casos em que não exista a relação sanguínea, se faz necessária a

vontade manifesta daquele que não a possui, como é o caso das adoções e das crianças

nascidas por inseminação artificial heteróloga, assim como nas relações existentes nas

famílias reconstituídas.

O instituto da adoção, no qual se reconhece a filiação fundada na vontade e no

afeto acima dos vínculos de sangue, se estabelece como a espécie mais importante das

relações socioafetivas do ordenamento jurídico.

Todavia, esta não é a única espécie em que se verifica a existência da verdadeira

posse de estado de filho. Outras existem sem que, contudo, se estabeleça o vínculo

jurídico, vínculo civil, como aquelas relações oriundas das famílias recompostas.

O exercício da paternidade nestas relações por muitas vezes substitui a paternidade

biológica, estabelecendo o vínculo afetivo capaz de superar a ausência daquele outro,

contribuindo eficazmente com a formação da pessoa humana.

quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.” (TJPR, Ap. Cív. 108.417-9, Rel. Des. Accácio Cambi, julg. 12.12.2001, in Boletim IBDFAM, n° 13, jan.-fev. 2002). 10 Ainda, FACHIN, sobre a posse de estado de filho: “Esse aspecto social, com o reconhecimento do afeto como fundante das relações parentais, aliado a um elemento volitivo daí decorrente, torna inafastável a consagração da posse do estado de filho como instituto apto a permitir o acolhimento da filiação como fato socioafetivo.” FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.24.

27

A família recomposta ou reconstituída seria aquela formada por um pai ou uma

mãe, seus filhos e um terceiro, padrastos e madrastas, oriundo do desfazimento da família

originária, quer pela morte, pelo divórcio, fim da união estável, ou por qualquer outra

hipótese em que o vínculo original de um dos membros não se verifica no nascimento da

criança.11

O eixo central da família reconstituída, então, seria designar os integrantes desta

relação. A designação de madrastas e padrastos tem uma conotação preconceituosa,

advinda da relação que se fazia historicamente com as personagens dos contos infantis,

sempre relacionados a seres maus e indesejáveis na relação filial.12

Ultrapassada a questão terminológica, se verifica, no cotidiano, que estes padrastos

e madrastas, inúmeras vezes, ocupam a função dos pais biológicos, suprindo muitas destas

vezes a falta do afeto porventura impossibilitado ou negado.

Partindo da conclusão de que pais são os que amam e dedicam a vida à criança e ao

adolescente que recebe afeto, atenção, conforto, independentemente do vínculo de sangue,

se estaria diante, nestes casos, de verdadeira paternidade e maternidade, em que a ligação

advém deste afeto e da solidariedade.13

As famílias recompostas, verdadeiras relações socioafetivas, fundadas, desta

forma, no afeto, promovem plenamente a pessoa humana, sendo capazes de exercer a

função social da família, muitas vezes de maneira bem mais eficaz do que aquelas relações

fundadas estritamente no vínculo sangüíneo ou civil, em que os vínculos de filiação

preestabelecidos não logram bom êxito na formação da pessoa humana.

11 Waldyr Grisard conceitua: “Família reconstituída é a estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm um ou vários filhos de uma relação anterior. Numa formulação mais sintética, é a família na qual ao menos um dos adultos é um padrasto ou uma madrasta. Ou, que exista ao menos um filho de uma união anterior de um dos pais.” GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.83/84. 12 GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias Reconstituídas. Novas uniões depois da separação. São Paulo: RT, 2007. p.83/84. 13 Assevera Belmiro Welter: “A filiação socioafetiva é fruto do ideal da paternidade e da maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociais, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, conectando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, da solidariedade, subscrevendo a declaração do estado de filho afetivo. Pais são aqueles que amam e dedicam sua vida a uma criança ou adolescente, que recebe afeto, atenção, conforto, enfim, um porto seguro, cujo vínculo nem a lei e nem o sangue garantem.” WELTER, Belmiro Pedro. Inconstitucionalidade do Processo de Adoção Judicial in Temas Atuais de Direito e Processo de Família. coord. Cristiano Chaves de Farias. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2004, p.21.

28

2 Evolução da Família no Direito Brasileiro

A história da família é longa, não havendo como se traçar uma linha reta para

delinear suas características. A família romana se caracterizava por aquele grupo de

pessoas que estava sob o patria potestas, era aquela em que o ascendente comum vivo

mais velho exercia sua autoridade sobre todos os descendentes não emancipados, esposa e

mulheres casadas.

Em sua concepção jurídica atual, a família se afasta da concepção romanista, já que

aquela tinha preocupação com a perpetuação dos cultos domésticos, fazendo com que o

pater familias exercesse amplo poder sobre esposa e filhos, mantendo a unidade do grupo

familiar como única forma de garantir a adoração aos antepassados comuns, exercendo sua

autoridade sobre todos os seus descendentes não-emancipados, sobre sua esposa e sobre as

mulheres casadas com seus descendentes, o que ora não se observa, já que a família passa

a ter importância muito mais como lugar onde se encontra proteção para seus membros, ou

seja, o que se procura hoje é tutelar as pessoas que integram a família.

A evolução da família romana ocorreu progressivamente, restringindo-se à

autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos. O pater perdeu o

direito de vida e morte que exercia sobre os filhos e a mulher e não mais se admitiu a

venda dos filhos pelo pai; a mãe poderia substituir o pater e ficar com a guarda dos

filhos.14

Do conceito do poder exercido pelo pater, ou seja, da autoridade masculina na

entidade familiar originou-se o pátrio poder na organização do Direito de Família,

atribuindo-se funções ao “chefe de família”. A família romana, com seu pater familia, é

seguida pelos ordenamentos jurídicos romanos-germânicos, entre eles o direito brasileiro.

A família brasileira, exemplo da família ocidental, baseia-se, durante séculos, na figura

soberana e divina do pai.

A codificação que se deu a partir do séc. XIX tratou de regular a família, no

contexto da sociedade patriarcal, predominantemente rural. A mulher não detinha os

mesmos direitos do homem, sendo o marido considerado o chefe da sociedade conjugal,

bem ao modo da família romana. A influência religiosa contribuiu de maneira significativa

14 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p.09 e segs.

29

para a incorporação dos cânones conservadores, mantendo-se a indissolubilidade do

casamento, a capitis diminutio e a distinção legal de filiação legítima e ilegítima.15

A progressiva restrição do pater familia do direito romano, com maior autonomia à

mulher e aos filhos, também ocorreu no direito brasileiro.

O século XIX descortina uma série de transformações na sociedade brasileira,

decorrentes da consolidação do capitalismo; do incremento de uma vida urbana que

oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e de sua

mentalidade. Junto com estas transformações se verifica o nascimento de uma nova

mulher nas relações da chamada família burguesa, em que se valoriza a intimidade e a

maternidade. O processo de urbanização do país requer a boa reputação financeira e a

articulação da parentela como forma de proteção ao mundo externo.16

O casamento concedia às mulheres de famílias ricas e burguesas, no início do

século XIX, nova função: a de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social,

tendo-se a idéia de mulher como mãe dedicada e atenciosa, ideal da família burguesa, o

que já demonstra a transformação da família em família nuclear.

A gradativa polarização da vida social em torno da família nuclear se observa com

o processo de enclausuramento. Termina aquela família extensa para se passar à visão de

família encerrada no “lar doce lar”, pai, mãe e filhos. Este processo se difunde do alto para

baixo na pirâmide social, sendo a criança uma peça-chave. A nova visão da família

tornou-se brasão da burguesia.17

Por outro lado, as famílias pobres do final do século XIX se organizam de forma

diferente, com casamentos precoces, aumento de uniões consensuais, alta taxa dos filhos

“bastardos”, e considerada por alguns como resultado de reações que vem de encontro às

normas e aos valores da sociedade dominante.

Na Europa, a tendência burguesa de sanear a rua, retirando dela os mendigos e

órfãos, adotando o modelo nuclear, teve implantação difícil e somente se verifica

consolidada no início do século XX. A exemplo dessa dificuldade européia, a família

15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Novo Código Civil. Texto comparado. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2003. p. 17 e segs. 16 D’INCA, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa .in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 223. 17 FONSECA, Cláudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 520.

30

brasileira não abraça imediatamente o modelo familiar moderno, o nuclear, havendo uma

enorme variedade de formas familiares no Brasil.

No Brasil, em especial entre as famílias mais pobres, esta alteração não se verifica

de imediato, nas favelas e bairros mais humildes há o hábito de abrir as portas aos

agregados, tornando extensa a família, conforme conclui Cláudia Fonseca, em seu artigo

“Ser Mulher, Mãe e Pobre”, em suas reflexões finais. Segundo a autora, há provas de que

a urbanização não traz a nuclearização inevitável da família; muitas vezes ao contrário, as

redes de parentesco são fortalecidas.18

Atendendo aos reclames da sociedade em transformação, de maneira mais intensa a

partir da segunda metade do século XX, verificou-se significativa evolução na legislação

brasileira, bem como na doutrina e jurisprudência.

A Lei 4.121 de 27/8/1962, também conhecida como Estatuto da Mulher Casada,

representa um grande passo, pondo fim à incapacidade relativa da mulher casada.

Todavia, somente com o advento da Constituição da República de 1988,

estabeleceu-se a isonomia de tratamento entre o homem e a mulher no âmbito familiar,

bem como a igualdade jurídica de todos os filhos, independentemente da origem da

filiação.

A Constituição passa a disciplinar a família brasileira, atendendo aos anseios

sociais, modernizando o sentido e adequando-se à realidade vivida na contemporaneidade.

Assim, as relações socioafetivas que dão origem aos casamentos e às uniões

estáveis têm seus efeitos regidos por ela, pelo Código Civil e pelas leis extravagantes.

A Constituição de 1988 traz ainda mudança significativa no que concerne à relação

entre pais e filhos, invertendo substancialmente o espectro de direitos e deveres na relação

paterno-filial. A criança passa a ser titular de amplos direitos que devem ser observados

com prioridade absoluta.

Outro grande passo do legislador constitucional foi o de reconhecer como entidade

familiar as uniões estáveis e as chamadas famílias monoparentais, em particular quando se

18 A autora aduz que muitos pesquisadores no Brasil têm ressaltado dinâmicas particulares que fogem do modelo nuclear. Salienta, inclusive, o fato de que os pesquisadores devem se prevenir das conclusões fáceis, já que comparar a história da família brasileira com a européia não é tarefa simples, sendo que a comparação se torna realmente útil quando usada para ressaltar as diferenças e, por conseguinte, as especificidades históricas de cada contexto. FONSECA, Cláudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 520.

31

recorda que a família, inicialmente, era definida amplamente como o conjunto de pessoas

que descendem de um mesmo tronco ancestral, compreendendo os ascendentes,

descendentes e colaterais e mais os ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge, que

se denominam parentes por afinidade. Por sua vez, em sentido restrito, definia-se como o

grupo formado por pais e filhos.

A despatrimonialização do Direito Civil, como nova tendência normativa-cultural,

confere ênfase à noção de família centrada na dignidade da pessoa humana e na

solidariedade social. A tendência atual, esposada pela Constituição, orienta-se no sentido

de consagrar o status familiae às uniões não formalizadas pelo casamento e ao núcleo

formado por um dos pais e seus descendentes.

Vale ressaltar que a legislação freqüentemente amplia o conceito de família,

considerando como tal o grupo formado pelas pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob

a autoridade de um titular.

No mundo ocidental, vislumbra-se cada vez mais o desfazimento da idéia de poder

e supremacia de um membro, igualando os direitos familiares. Na esteira desta nova

ordem da igualdade dos membros familiares, o Código Civil de 2002 adotou o “poder

familiar” como sucedâneo do “pátrio poder”, tratado no Código Civil de 1916.

A expressão pátrio poder, com todas as conseqüências que lhe são inerentes, já não

se coaduna com as situações e vínculos que se estabelecem na sociedade moderna. Em

outras palavras; as novas formas de família não admitem, nem se coadunam com a

centralização da autoridade familiar na pessoa do homem. Na prática, de há muito se

observa tendência majoritária de famílias que são formadas por mães, separadas ou

solteiras, e seus filhos, não se justificando a manutenção das disposições que deixavam ao

alvedrio do pai as decisões a respeito dos filhos.

Na verdade, o poder familiar constitui verdadeiro ofício, uma situação de direito-

dever, sendo conseqüência da parentalidade.19

Por sua vez, a alteração constitucional em relação à igualdade de direitos dos

filhos, havidos ou não do casamento ou por adoção, das mais importantes no direito de

19 “O poder familiar (potesta genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses.” Massimo Bianca, italiano. 10.259/01, 10.455/02 e 10.741/03 apud LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado, XVI, São Paulo: Atlas, 2003. p.188.

32

família brasileiro, vem constitucionalizar a situação fática vedando qualquer tipo de

discriminação.

A presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, que vigorou absoluta durante

séculos, incompatibiliza-se com o princípio da igualdade, por isso, na atualidade, admite-

se a presunção juris tantum, já que acolhe prova em contrário.

Todavia, a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant se utiliza até que seja

questionada, evitando-se a incerteza da paternidade. Assim, nos termos do Código Civil de

2002, presumem-se concebidos na constância do casamento, os filhos gerados 180 dias,

pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, os nascidos nos 300 dias

subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, separação, nulidade, anulação,

dissolução; os havidos por fecundação artificial homóloga ou por inseminação artificial

heteróloga, desde que com prévia autorização do marido, havidos a qualquer tempo dos

embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.20

O simples fato de a Constituição vedar a discriminação entre os filhos, por si só,

não é capaz de afastar tal discriminação, nem tornar simples as relações entre pais e filhos.

Ultrapassada a visão romanista de que o homem é o chefe de família, tratando o

poder familiar não somente como um poder, mas um misto de direitos e deveres, em que

se constituem e mantêm vivos os laços que unem pais e filhos, passa-se a identificar a

efetividade dos verdadeiros laços que usualmente estão subjacentes no âmbito dessa união.

De fato, a condição que transforma as relações entre pessoas, ligadas ou não pela

identidade biológica, em pais e filhos, é a existência do afeto. Analisando subjetivamente

essas famílias, há que se identificar o afeto para que se tenha estado de pai e estado de

filho. Todavia, esse caminho não é tão simples de percorrer como pode parecer.

Seja constituída de pais biológicos e seus filhos, pai e filhos, mãe e filhos, pais

adotivos e seus filhos, pais e filhos advindos de procriação artificial, enfim, qualquer que

seja a família, o diferencial não é mais o título documental, o registro do nascimento, mas

sim a relação de afeto, já que o chamado poder familiar deve ser exercido com afeição.

Na nova visão da família surgem inúmeras dúvidas no que diz respeito às

conseqüências das relações entre seus sujeitos, tais como: limitar os direitos e deveres,

como identificar quem são os sujeitos, quais estão excluídos e como se excluem.

20 Art. 1.597 e incisos do Código Civil.

33

À primeira vista, pode-se afirmar que os laços que unem pais e filhos, numa via de

mão-dupla, ainda que de etnias, sociedades e religiões diversas, conduzem ao

enriquecimento da vida afetivo-emocional desses sujeitos, de tal maneira que os poderes-

deveres são concedidos não somente no interesse dos filhos, mas também dos pais. Nessa

acepção, pelo menos do ponto de vista teórico e global, o interesse dos pais está

definitivamente condicionado ao interesse dos filhos, ou seja, da sua realização e

desenvolvimento como pessoa.

Verificam-se, desta forma, inúmeras alterações no transcorrer da evolução do

conceito familiar, no direito brasileiro, até a maturação constitucional de 1988, com a

adoção da entidade familiar como instituição protegida pelo Estado, o que, todavia, não

significa que a mesma se encontre estanque e impassível a novas e profundas

modificações.

As transformações sociológicas determinam o novo estilo de vida, repercutindo

intensamente na organização da família. Desta forma, as vertentes observadas pelo direito

positivo, inúmeras vezes, não conseguem acompanhar a velocidade das mesmas, assim

como não acompanhamos a velocidade da luz.

A transferência da função educacional, o enfraquecimento da influência da Igreja, a

transformação da família extensa em nuclear, a fuga das conseqüências jurídicas do

casamento, o movimento de libertação feminina ocasionaram transformações legislativas,

desde a igualdade da mulher casada até a inseminação artificial.

A expansão do que se entende por família ou relações familiares restou elevada a

patamar constitucional, acompanhando de perto a tendência mundial, já que esta idéia não

é só do direito, mas também da sociologia, da psicologia, da antropologia, ante a evidência

de que a família não se restringia às uniões advindas do casamento.21

No dizer de Fachin, a família, como realidade sociológica que é, antecede o direito,

não podendo restar aprisionada a um conceito fechado e, ainda, que: “Essa família como

21 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do Numerus Clausus in Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 1.

34

realidade sociológica é plural, como plurais são as aspirações afetivas que instituem o

fenômeno familiar.”22

De suma importância a comunhão dos dois desígnios, quais sejam, a proteção da

família e a dignidade da pessoa humana, ambos constitucionalmente remediados. A

preservação da família, em qualquer das suas modalidades, é indispensável para que se

realize o princípio da dignidade humana.23

A convergência dos institutos é tanta que se tem um como fim imediato do outro,

já que a família é essencial para o desenvolvimento da personalidade humana. A formação

da relação familiar se faz necessária para a construção da pessoa e para a concretização do

projeto de felicidade.24

Na evolução das relações familiares na realidade brasileira, a Constituição da

República de 1988 põe a salvo a família advinda do casamento, da união estável, as

monoparentais e as formadas por qualquer dos pais e seus descendentes.

A família hoje se caracteriza pelo grupo de pessoas unidas para o desenvolvimento

da pessoa humana, fundadas pelo afeto, pela auto-ajuda, e pela solidariedade.

No dizer de Gustavo Tepedino, “À família, no direito positivo brasileiro, é

atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importante

papel na promoção da dignidade humana”. E ainda sinaliza para a importância do

cumprimento deste papel, inclusive na questão da tutela jurídica, acrescentando, “merecerá

tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova

a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes.”25

22 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.261. 23 Idem. “A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o lócus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana”, p. 7. 24 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Constitucional à Família (ou Famílias Sociológicas versus Famílias Reconhecidas pelo Direito: um Bosquejo para uma Aproximação Conceitual à Luz da Legalidade Constitucional). in Temas Atuais de Direito e Processo de Família.Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2004, p.21. 25 TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada em matrimônio in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 326.

35

A felicidade individual dos membros da família passa a ser o ideal a ser perseguido

pela nova família, em que são primordiais as relações fundadas no afeto, na solidariedade

e na cooperação, proclamando esta idéia, a diretriz da nova família, a família

eudemonista.26

Alargado o conceito de família pela Constituição, restou afastado o modelo da

família romanista, patriarcal e hierarquizado, donde a transformação, através do processo

social, faz com que se considere família todas aquelas relações que se fundem no afeto,

ainda que este se desdobre no desafeto futuro, ou seja, desde que seja ela a forma de

relação social constitutiva da espécie humana.

Daí a importância de se analisar as relações parentais fundadas no afeto e estas sim

capazes de gerar deveres e direitos. A simples herança genética já demonstrou,

historicamente, não ser suficiente para caracterizar a paternidade e a maternidade no

sentido da afeição, como se observa claramente no instituto da adoção, em que se

compreende como filho, sem qualquer discriminação, o adotado, que não possui qualquer

semelhança genética com os adotantes.

Partindo desta idéia ainda tem-se a pedra de toque nas relações familiares, qual seja

a vedação à discriminação dos filhos sob pena de inconstitucionalidade. Todavia, é sabido

que não basta a inconstitucionalidade, por si só, para exterminar as díspares situações

ocorridas no dia-a-dia, que afastam a aparente simplicidade das relações decorrentes da

filiação, pai e filho, mãe e filho, para as inúmeras hipóteses em que não se configuram

relações de afeto, este sim o verdadeiro fio condutor das relações parentais.

Acertada e irreparável a idéia de que a paternidade não é um dado, e que ela se

constrói no exercício do cotidiano.27 A paternidade, considerada como verdade

sociológica, é aquela que se apresenta como fruto do nascimento emocional muito mais do

que o fisiológico, ou seja, mais no afeto do que no DNA.28

26 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.21. “eudemonista. (...)Partidário do eudemonismo. eudemonismo. (...)Doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, i.e., que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade.” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. 2ª edição 27 FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade – Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte. Del Rey.1996, p. 28. 28 Idem, p. 37.

36

O andar, a passos largos, da sociedade tem que ser acompanhado de perto pelas

instituições, sob pena de cheirar a mofo e não perceber as lacunas deixadas pelo

legislador. Para isso, o papel criador que o juiz exerce no caso concreto, uma vez que o

mesmo não poderá deixar de existir, sob o argumento da ausência de norma, devendo

observar-se os critérios do art. 4°, da Lei de Introdução ao Código Civil, e os princípios

constitucionais, que funcionam como normas.

O direito de família é indubitavelmente a área em que mais se constata mudança,

vivenciando a civilização humana a reformulação do conceito de família, fundado agora

em valores e princípios diversos de outrora.

A transformação da família, tornando-se pluralista, local privilegiado para a

comunhão de afetos e afirmação da dignidade humana, identifica bem a travessia da

“família de sangue” à “família do afeto”, em que a relação paterno-filial encontra, nos

princípios constitucionais, parâmetros de aplicabilidade e efetividade, em busca da

afirmação e do desenvolvimento da pessoa humana.

2.1 A Função Social Da Família

No caminhar da evolução das relações familiares, se fazendo necessária a

regularização das diversas espécies de entidades familiares, os direitos e deveres destas

relações, assim como a função social desta nova família, o art. 227 da Constituição da

República, inserido no Capítulo “Da Família, Da Criança, Do Adolescente e Do Idoso”,

preconiza, como dever da família, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar

e comunitária, além de salvaguardá-los de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão.

A Constituição da República de 1988 enumera os deveres da família, alinhavando

em seus dispositivos toda a função social da entidade fundada nas relações de afeto, nas

relações de índole pessoal, voltada para o desenvolvimento da pessoa humana.

37

A apresentação das regras constitucionais pertinentes à família demonstra, por si

só, as transformações sofridas pela mais antiga forma de comunidade humana, que sempre

se firmou como instituição social.

As influências históricas alteram os fundamentos da própria família. A vigência

dos novos valores, juntamente com o desenvolvimento científico, atingindo limites que

não se sonhavam alcançar, muda o foco da preocupação social.

Nesse diapasão, a ciência jurídica deixa de se preocupar com a proteção

patrimonial para se preocupar com a pessoa humana, o que se vislumbra assegurado pelo

direito positivo brasileiro, capitaneado pela principiologia constitucional.

A proteção à família ali assegurada se destina à proteção máxima de seus

membros, visando o seu mais importante papel de assegurar a promoção da dignidade

humana.

A garantia patrimonial se vê sepultada como fundamento do direito de família, já

que o que importa é a tutela jurídica da pessoa humana, em busca da máxima de que o

homem nasce para ser feliz, direito decorrente do princípio da dignidade humana.

Nesse sentido se manifesta Gustavo Tepedino, para quem a família é a formação

social privilegiada para o desenvolvimento da pessoa humana, tendo a mesma deixado de

ser uma sociedade hierarquizada para se tornar uma sociedade democrática.29

A tutela dos interesses dos membros da família constitui o pressuposto legitimador

da entidade familiar, o novo prisma que inspira a sociedade contemporânea se define na

sociedade familiar, a família passa a ter como escopo precípuo a solidariedade social e

demais condições necessárias para o aperfeiçoamento e progresso da pessoa humana que

compõem a família.30

29 TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 395. 30 Assim Pietro Perlingieri: “O interesse dessa perspectiva de estudo afunda as suas raízes na particularidade da ‘formação social’ família, na sua função constitucionalmente relevante e na peculiar solidariedade que caracteriza as suas vicissitudes internas, inspiradas na igual dignidade moral e jurídica dos seus componentes e à unidade familiar, entendida como comunhão – ainda que não mais atual – de sentimentos e de afetos, isto é de vida e de história.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 179.

38

A proteção da pessoa humana é o fundamento da tutela do núcleo familiar, não

havendo mais proteção à família pela família, senão em virtude dos seres humanos que a

integram. Estabelecida, portanto, a concepção eudemonista da família. 31

A concepção moderna da família, construída sob este novo aspecto da realização

da espécie humana, se identifica no Decreto 99.710/90, a Convenção Internacional sobre

os Direitos da Criança – ONU/1989, em que se conceitua a família como “núcleo

fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus

membros e, em particular, às crianças”.

Diante disto, se verifica que a função da família contemporânea se sobrepõe à

visão patrimonialista de outrora. Reafirmando a idéia da solidariedade social e do afeto, a

família não pode ser concebida como uma pessoa jurídica, sujeito de direitos autônomos.

A titularidade do direito pertence a cada membro do grupo familiar, a família é no dizer de

Pietro Perlingieri “formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao

desenvolvimento da personalidade de seus participantes”.32

Nesta compreensão, a busca da dignidade humana sobrepuja valores meramente

patrimoniais, asseverando, Cristiano Chaves de Farias, ser necessário compreender a

família como sistema democrático, substituindo a feição centralizadora e patriarcal por um

espaço aberto ao diálogo entre os seus membros, almejando a confiança recíproca.33

Donde conclui-se que incabível o desnivelamento da proteção da pessoa humana,

sob o argumento de proteger a instituição familiar, sob pena de se violar o princípio

constitucional da dignidade humana. 34

A nova visão da família, em que o objetivo primordial é promover e desenvolver a

personalidade de seus membros, traz à tona a verdadeira função social da família e seus

31 Ensina Fachin: “Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.” FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família. Elementos Críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 31/32. 32 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 178. 33 FARIAS, Cristiano Chaves de. A Separação Judicial à Luz do Garantismo Constitucional: A Afirmação da Dignidade Humana como um réquiem para a culpa na Dissolução do Casamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.15. 34 Ibdem, op. cit. p. 16.

39

verdadeiros fundamentos, valorizando as funções afetivas de seus membros,

transformando o núcleo familiar em refúgio aos dissabores do dia-a-dia.

O indivíduo, assim, não existe mais para a família, esta é que existe para o seu

desenvolvimento pessoal, em busca da felicidade.35

A sociedade busca na intimidade familiar o sossego e a ajuda dos seus pares,

avançando para a compreensão socioafetiva das relações, deixando de lado os laços

meramente financeiros, em busca do ideal de felicidade, no qual devem preponderar a

solidariedade e o afeto.

Nesta linha de raciocínio, toda e qualquer forma de violação da dignidade do

homem, ainda que sob o pretexto de garantia da proteção familiar, é descabida, já que

inconstitucional, e para isso retorna-se aos artigos da Constituição da República de 1988

referentes à família.

A leitura do artigo 226 ao 230 revela que o centro da tutela constitucional se

transfere do casamento para as relações familiares, quer as decorrentes daquele instituto,

quer as decorrentes das demais feições familiares; e que a proteção daquela família

tradicional, reprodutora dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à

tutela da pessoa humana, essencialmente, segundo Gustavo Tepedino, “funcionalizada à

dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da

personalidade dos filhos”.

Até porque a própria Constituição salvaguarda, como princípio fundamental da

República, inciso III do art. 1°, a dignidade da pessoa humana, impedindo a superposição

de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de

instituição como a família, ou seja, instituição com status constitucional.36

A dignidade da pessoa humana, tida como princípio constitucional fundamental,

colocada, portanto, no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o lugar

apropriado para seu enraizamento e desenvolvimento.37

35 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.32. 36 TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-constitucional das Relações Familiares in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. pp. 349/350. 37 Neste sentido Guilherme Calmon:“As relações familiares, portanto, passaram a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí

40

Nesta ordem de idéias, ensina Pietro Perlingieri, em síntese, quando se refere à

família como formação social, que exprimir a problemática dos direitos fundamentais na

família como se esta fosse um corpo autônomo, supra-ordenado e potencialmente

repressivo corresponde a um enfoque inadequado, uma vez que o valor central de

referência na família é sempre a pessoa, conforme fundamentado no art. 2° da

Constituição da República Italiana.38

Entendendo-se a família como instrumento do desenvolvimento da pessoa humana,

ou seja, que o indivíduo não existe mais para a família e sim o inverso, preponderando a

igualdade e a solidariedade entre seus membros, a função social da família consistiria,

assim, na realização da pessoa humana, com a viabilização da sua construção e o

desenvolvimento de suas melhores potencialidades.

2.2 O Dever de Solidariedade

Construído o vínculo por meio do afeto nas relações familiares, surge o dever de

solidariedade que tem por finalidade a própria função social da família, qual seja, a tutela

de seus membros, em busca da formação da pessoa humana.

A solidariedade entre os sujeitos que integram a relação a familiar é, antes de se

considerar dever, verdadeira característica desta relação.

As relações familiares, em qualquer espécie, são tuteladas como espaço onde os

integrantes da família possam satisfazer suas aspirações afetivas e no qual prevaleça o

valor da solidariedade. Por sua vez, a solidariedade se apresenta como fundamento maior

da proteção jurídica aos integrantes da família. Findas as relações de afeto que deram

origem às relações familiares, persiste o dever de solidariedade, já que o mesmo é

instrumental à dignidade da pessoa humana.39

O dever de solidariedade se justifica ainda mais no que tange à instrumentalidade

dos filhos oriundos das relações familiares. a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente da sua espécie.” GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva civil-constitucional in Problemas de direito civil-constitucional.Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 520. 38 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 247. 39 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Parentesco Parabiológico. Fratenidade Socioafetiva. Possibilidade Jurídica. Efeitos que podem ensejar. Rio de Janeiro: Errata Revista Forense, vol. 388, p.261.

41

3 Os Direitos e Deveres da Relação Paterno-Filial. O Poder Familiar

Capitaneada pela nova feição familiar, como teia de solidariedade, afeto e ética,

onde se verifica a valorização definitiva e inescondível da pessoa humana, a família tem

que assumir um papel funcionalizado, servindo como ambiente propício para a promoção

e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, valores,

esperanças, que caracterizem a base para o alcance da felicidade.40

A relação familiar constitui o lugar onde seus membros obtêm a formação social, o

local de onde se espera a personificação do ser humano. A família proporciona os

parâmetros éticos e culturais para os indivíduos, sendo requisito para o processo de

humanização da pessoa.

É aquele lugar em que filhos e filhas encontram referências, garantia de laços

sólidos, célula de humanidade no seio do inumano universal.

A fim de proporcionar a promoção e a realização da personalidade dos membros da

relação familiar, mister se faz observar uma série de deveres e direitos inerentes à família,

seja ela monoparental, oriunda do casamento, da união estável, recomposta ou de qualquer

que seja a espécie.

O direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,

à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária deve

ser garantido pela família a seus membros, além de caber à família o dever de

salvaguardá-los da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e

opressão, estando, tais direitos e deveres, devidamente enumerados na Constituição da

República (art. 227, caput).

Na família, a pessoa é acolhida e acolhe, devendo prevalecer o sentimento de amor.

É na família que o ser humano deve experimentar a positividade de pertencer a um lar,

muito bem parafraseado por Cristiano Chaves de Farias, ao conceber como lar a

abreviação da expressão lugar de afeto e respeito.41

40 FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit. p. 20/24. 41 FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit. p. 24.

42

De fato, a família deve ser o lugar em que a pessoa encontra o aconchego para as

relações de afeto, fundamento este original e final das relações familiares, para que se

busque ali, naquele ambiente propício, a realização dos direitos garantidos

constitucionalmente.

Nas relações familiares tem-se como fator preponderante o vínculo da filiação, que

desencadeia os demais vínculos de parentesco, sendo certo que interessa por ora analisar

os direitos e deveres oriundos da filiação.

A Constituição da República de 1988 tratou de dar ao direito da criança e do

adolescente uma configuração especial. A elevação destes direitos ao nível de norma

constitucional promove a integral proteção aos mesmos, sobrelevando a intervenção

estatal e a responsabilidade familiar e da sociedade com seus entes.

Além dos já citados direitos relacionados no caput do art. 227 da Constituição da

República, a regra esculpida no §6°, do mesmo artigo, é de suma importância para os

avanços da sociedade. Naquele momento, o legislador constituinte, diante dos reclames da

sociedade, identifica a discriminação entre os filhos havidos fora do casamento,

adulterinos ou incestuosos, reconhecendo-lhes os mesmos direitos e qualificações,

vedando qualquer tipo de designação discriminatória referente à filiação.

Ao lado dos direitos e deveres garantidos constitucionalmente, o legislador

ordinário enumera os decorrentes da relação filial, no intuito, inclusive, de garantir a

observância destes no âmbito familiar.

No que tange à igualdade entre os filhos havidos ou não da relação de casamento,

ou por adoção, ao contrário do antigo diploma civilista, o Código Civil repete a regra

constitucional, conforme se verifica no Capítulo II, do Livro IV, artigo 1.596, no qual se lê

que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações

discriminatórias relativas à filiação.

A repersonalização das regras de direito privado se faz notar no dispositivo em tela

já que se verifica a observância da adequação, sobretudo, ao relevante e inafastável

princípio constitucional da igualdade, passando o novo Código Civil a proteger de maneira

igual todos os membros da família, primando, assim, pela proteção à pessoa.

43

A valorização do homem como centro dos interesses, norteados pelo princípio da

igualdade e da dignidade humana, é o novo paradigma do Direito Civil.42

Assim, a desigualdade entre os filhos, outra faceta da família patriarcal, é

rechaçada do ordenamento jurídico brasileiro, contribuindo a norma ordinária para

reforçar sua natureza de fundamento, assentado no princípio da igualdade, não havendo

que se permitir qualquer tratamento desigual em relação aos filhos, independentemente de

sua origem, quer no que tange às relações pessoais, quer nas patrimoniais.43

Os direitos e deveres oriundos da filiação não se esgotam; os mandamentos

constitucionais, contudo, fundamentam o poder familiar ao qual se sujeita o filho enquanto

menor.

O Código Civil adota a denominação “poder de família” para tratar da autoridade

parental. O poder familiar, ou autoridade parental como preferem algumas legislações

estrangeiras, como a francesa44 e a americana45, se traduz na autoridade pessoal e

patrimonial atribuída aos pais sobre os filhos menores, no exclusivo interesse destes

últimos. Está compreendido no poder familiar o conjunto de direitos e deveres dos pais em

relação aos filhos menores, crianças e adolescentes, tendo por finalidade seus interesses.

Este poder visa garantir a proteção constitucional preestabelecida. O interesse dos

pais está definitivamente condicionado ao interesse dos filhos, ou seja, ao interesse da

realização deste como pessoa em desenvolvimento.

A lei civil manteve praticamente intacta a legislação referente ao pátrio poder,

trazendo poucas inovações, inclusive quanto à nomenclatura, já que a maioria dos 42 Neste sentido, adverte Fachin: “Tal acepção acerca do direito foi possível devido à compreensão de que o sistema jurídico deve pautar-se nas normas constitucionais que, por sua natureza principiológica, fornecem o instrumento ideal para que um direito poroso e sensível à realidade se perfaça. Eis a índole constitucionalista do Direito Civil contemporâneo que no campo da filiação se expressa (aquele direito atinente ao vínculo de parentesco natural em linha reta de primeiro grau que se estabelece entre pais e filhos, ou ainda, entre os pais que os recebem como se os tivessem gerado), em especial com a interpretação de suas normas à luz do princípio da igualdade.” FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 47. 43 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.40. 44 “Art. 371-1 do Código Civil francês: (L. nº 20002-305 du 4 mars 2002) L’ autorité parentale est un ensemble de droits et de devoirs ayant pour finalité l’intérêt de l’enfant. Elle appartient aux père et mere jusqu’à la majorité ou l’emancipation de l’enfant pour le protéger dans sa sécurité, sa santé et as moralité, pour assurer son éducation et permettre son développement, dans le respect du à sa personne. Les parents associent l’enfant aux décisions qui le concernent, selon son âge et son degree de maturité.” 45 KRAUSE, Harry D. Family law. St. Paul: West Publishing, 1991, p.191 in LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693.São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.40.

44

doutrinadores entende ter andado mal o legislador, uma vez que poderia ter sido adotada a

expressão autoridade parental ou familiar preferida pela legislação estrangeira.

A expressão adotada pelo legislador brasileiro, no entanto, tem que ser utilizada

com tal dimensão, a dimensão que se verifica na expressão autoridade parental, ou seja,

como exercício de função ou munus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade do

outro.

Como conseqüência da relação de filiação, o poder familiar é limitado, já que ao

Estado se reserva o controle sobre ele, devendo sempre ser exercido no interesse do

menor, entendido aqui, repita-se, mais como interesse existencial do que patrimonial.

No que tange às regras do Estatuto da Criança e do Adolescente referentes ao

poder familiar, estas continuam em vigor, não se vislumbrando qualquer antinomia entre

os dois textos legais, só tendo havido a derrogação do diploma legal no que tange à

expressão “pátrio poder”, agora substituída por “poder familiar”.

O poder familiar é abrangente a todas as entidades familiares e sempre será

exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe. A cada dever do filho

corresponde um direito do pai ou da mãe e vice-e-versa. A convivência dos pais não é pré-

requisito para a titularidade do poder familiar.

No exercício deste poder compete aos pais: dirigir-lhes a criação e educação; tê-los

em sua companhia e guarda; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

nomear-lhes tutor; representá-los até os 16 anos nos atos da vida civil e assisti-los após

esta idade; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; exigir que lhes prestem

obediência, respeito e os serviços próprios da idade e condição.46

46 “Art. 1.634 do Código Civil - Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.” “Artigo 22 do ECA - Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.”

45

A finalidade do poder familiar, conforme já salientado, é o interesse da criança e

do adolescente. Os pais não exercem poderes e competências privadas, mas direitos

vinculados a deveres, deveres estes cujos titulares são os filhos.

A evolução da formação da personalidade do menor se verifica a partir do

momento em que são cumpridos os deveres oriundos naturalmente da relação entre pais e

filhos, a integridade psíquica da pessoa humana, sua estruturação, está diretamente

interligada à compreensão do mister de ser pai, de ser mãe, sendo essencial o dever de

afeto.

A criação e a educação são direitos constitucionalmente assegurados pelo art. 205

da CR/8847, que poderão e deverão ser exercidas livremente, atendo-se sempre ao melhor

interesse da criança ou adolescente, havendo previsão legal expressa deste dever, no

sentido de que os pais devem matricular os filhos na rede regular de ensino, ECA, art.

5548, cujo descumprimento sujeita o responsável à pena de detenção de quinze dias a um

mês, caso praticado sem justa causa, caracterizado, ainda, o crime de abandono intelectual

do art. 246 do Código Penal.49

A educação dos filhos deve ser compreendida em sua noção mais ampla, incluindo

educação escolar, moral, política, profissional, a formação em geral do filho como pessoa

em desenvolvimento.

No dizer de Sílvio Rodrigues, é o dever principal que incumbe aos pais, “quem põe

filhos no mundo deve provê-los com os elementos materiais para a sua sobrevivência”,

fornecendo-lhes educação, de acordo com seus recursos, a fim de propiciar aos mesmos a

capacidade de ganhar a vida e ser útil à sociedade.50

47 “Art. 205 da CR - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 48 “Art. 55 do ECA - Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.” 49 “Art. 246 do Código Penal – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.” 50 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Direito de Família. Vol. 6, São Paulo: Saraiva, 2002. p. 403.

46

Da mesma forma, o abandono material que se insere no dever de sustento

indispensável à criação da criança e do adolescente caracteriza a conduta tipificada no art.

244 do Código Penal.51

O dever de obediência dos filhos tem, em contrapartida, o dever dos pais de não

utilizarem a autoridade parental em intuito que se afaste do interesse da criança e do

adolescente. Atitudes contrárias ao melhor interesse do menor poderão ser consideradas

abuso de autoridade, já que o poder familiar não é irrestrito.52

O abuso do poder familiar pode se verificar, inclusive, no que diz respeito a outro

poder-dever oriundo do instituto, o de exigir a prática de serviços próprios da idade e

condição. Tal fato chega a gerar desconforto na doutrina, já que a regra esculpida na lei

civil se afasta da Constituição, sendo até incompatível com ela, configurando a conduta

como exploração da vulnerabilidade dos filhos menores, verdadeiro abuso,

constitucionalmente rechaçado no § 4° do art. 227 da CR/88.53

A guarda e a companhia dos filhos se enquadram nos direitos e deveres dos pais,

cabendo a ambos exercê-las e buscá-las no caso de privação. A situação híbrida do poder

familiar se verifica nesta hipótese de maneira clara e cristalina, uma vez que é, ao mesmo

tempo, direito e dever do pai ter o filho em sua companhia e exercer a sua guarda.54

Ofício que é o poder familiar não permite seu livre exercício. A guarda e a

companhia dos filhos devem ser exercidas pelos pais, não cabendo a estes a subjetividade

da escolha. Há que ser cumprido este poder-dever a fim de que se observe o melhor

51 “Art. 244 do Código Penal – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.” 52 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 221. 53 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.211. 54 Desta forma, Perlingieri: “Uma situação híbrida que não pode ser reconduzida às situações subjetivas tradicionalmente definidas ativas e passivas é a potestà. À potesta dos pais (pátrio poder) [. . .] configuram situações denominadas potestà. Esta constitui um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever: como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los. O exercício da potestà não é livre, arbitrário, mas necessário no interesse de outrem ou, mais especificamente, no interesse de um terceiro ou da coletividade.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 129.

47

interesse da criança ou adolescente, não podendo este ficar ao alvedrio do arbítrio do pai

ou da mãe em tê-los em sua companhia ou ser seu guardião.

Da mesma forma que o descumprimento do dever de prover a educação dos filhos

menores, sem justa causa, caracteriza o abandono intelectual, deixar de ter o filho sob sua

guarda ou sob sua companhia também gera conseqüências.

O pai que deixa de conviver com o filho, entregando-o a terceiro, cuja companhia

sabe ou deveria saber, não ser a melhor para seus filhos, deixa de atender aos melhores

interesses da criança ou adolescente, incidindo nas penas do art. 245 do Código Penal55ou

até mesmo do art. 238 da Lei 8.069/9056, já que restaria caracterizado o crime de entrega

de filho menor à pessoa inidônea ou se adequaria à conduta típica daquele que promete ou

efetiva a entrega de filho a terceiro, mediante paga ou recompensa, hipótese daquele

último dispositivo legal.

Ainda que não se trate de conduta que se tipifique em qualquer dos tipos penais

anteriormente descritos, a mesma, por si só, se adequa àquela do art. 249 do Estatuto da

Criança e do Adolescente57, para a qual o legislador optou por apenar o infrator

pecuniariamente.

Na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo, o direito à companhia dos filhos tem como

contrapartida o direito dos filhos à companhia dos pais e à convivência familiar, direito

este constitucionalmente atribuído. 58

O direito dos pais de ter a guarda e a companhia dos filhos os permite a fixação do

domicílio, a vigilância, o direito de ir e vir, de se relacionar com terceiros, parentes ou não,

de organizar o cotidiano, todos estes exercidos em busca da formação da pessoa humana,

sempre visando o melhor interesse da criança e do adolescente, sem perder de vista que

em sendo ofício, não cabe ao titular do direito-dever exercê-lo a seu bel prazer.

55 “Art. 245 do C.P – Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.” 56 “Art. 238 do ECA – Promover ou efetivar entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa. Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.” 57 “Art. 249 do ECA – Descumprir dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio-poder ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.” 58 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado XVI. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. Artigos 1.591 a 1.693. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2003. p.210.

48

Os deveres da família com os filhos, crianças e adolescentes, correspondem aos

diretos fundamentais destes, integrando os denominados direitos humanos.

Os deveres e direitos inerentes da relação entre pais e filhos, assim, visam garantir

que o filho esteja preparado para uma vida independente em sociedade, devendo, portanto,

ser garantida a aplicabilidade dos princípios constitucionais norteadores da manutenção da

dignidade da pessoa humana.

No intuito de garantir a eficácia da finalidade dos deveres e direitos inerentes à

relação paterno-filial, o direito à convivência saudável entre os mesmos se desenha como

de suma importância.

3.1 Do direito à convivência familiar

A convivência familiar é fundamental para o crescimento e a estruturação da

pessoa humana, garantida constitucionalmente, sendo reconhecido internacionalmente que

a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer

no seio da família, em ambiente de felicidade, amor e compreensão.

A criança e o adolescente têm o direito de viver com seus pais, desde que isto não

contrarie seus interesses, sendo certo que, no caso de pai e mãe não viverem juntos, quer

por conta da separação, quer por ausência de qualquer vínculo entre os mesmos, é dado ao

filho conviver com ambos e suas respectivas famílias.

Assim como é direito do pai ou da mãe a visitação de seus filhos, é direito dos

filhos serem visitados pelos mesmos, ou seja, estarem em sua companhia, concretizando o

direito-dever constitucional da convivência familiar.

Tal direito só deixa de existir no caso em que a convivência familiar com um de

seus genitores seja comprovadamente inadequada, contrariando os interesses da criança.

Caso contrário, mister se faz que haja tal convivência, podendo o pai ou a mãe que se vir

preterido de tal direito buscá-lo através da medida judicial cabível. Amparados no mesmo

paradigma constitucional estão os familiares que ensejam a possibilidade, por exemplo, de

os avós estarem em companhia de seus netos.

Neste sentido, com especial sensibilidade, se posiciona Paulo Luiz Netto Lôbo,

para quem o direito à companhia não exclui o direito do filho menor de estar em

49

companhia dos avós, constituindo, segundo o autor, a sua vedação verdadeiro abuso do

poder familiar.59

Este direito à convivência com os avós já se encontra consagrado, inclusive, na

jurisprudência pátria.60

Havendo a dissolução da sociedade conjugal ou da união estável, ou ainda em

sendo a prole advinda de qualquer outro tipo de relacionamento, família natural, biológica

ou consangüínea, ou que advenha do vínculo da adoção, o direito à convivência familiar

deve estar assegurado.61

O poder familiar é destinado a proteger o filho; os poderes e as prerrogativas são

conferidos aos pais a fim de facilitar o cumprimento do referido munus, não podendo

qualquer deles se abster de cumpri-los sob qualquer fundamento. O descumprimento só se

admitiria em caso de total impossibilidade, cominando-se ao mesmo a perda do poder

familiar, nos casos expressamente previstos na legislação correspondente.62

O abandono do filho, por si só, poderá causar a perda do poder familiar, o que se

dará por ato judicial. Ocorre que, nem sempre se verifica o abandono material gerador

desta perda, mas o abandono moral.

59 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do Poder Familiar. In Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey – IBDFAM, 2005. p. 158. 60 “Apelação Cível - Família - Regulamentação de visitas. - Admite-se que os avós paternos tenham direito à visitação dos netos, quando demonstrado o benefício aos menores quanto a esta convivência, em que se manifesta o afeto recíproco entre os avós e seus netos. Rejeição da preliminar. Improvimento do recurso” (Ap. Cív. 03.022/02 4ª Cam. Cív. Rel. Sidney Hartung). 61 Neste sentido, Rachel Pacheco Ribeiro de Souza: “Não raro, após o desenlace, os pais, e muitas vezes os próprios operadores do direito, esquecem-se de que, mesmo que a guarda seja exercida unilateralmente, o poder familiar cabe a ambos os genitores, casados ou não. É comum assistirmos a um verdadeiro vilipêndio da essência do poder familiar quando o guardião monopoliza em suas mãos as decisões que dizem respeito à vida dos filhos, recusando a participação do não-guardião nessa tarefa. O filho, já abalado pela separação dos pais, vê-se ainda mais prejudicado, diante do sentimento de vazio e de abandono causado pelo afastamento do não-guardião. A ruptura, embora dolorida para os filhos, poderia ser muito melhor vivenciada se os genitores continuassem a ser pais e mães, de forma efetiva, apesar da separação. O maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito, e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento deles fracassou. Os filhos são cruelmente penalizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar a morte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipo de relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura”. SOUZA, Raquel Pacheco Ribeiro de. A tirania do guardião. Disponível na Internet: http://www.ibdfam.com.br. Acesso em 23 de abril de 2007. 62 “Art. 1.638 do CC - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”

50

Na atualidade da sociedade brasileira, em que se depara, dia-a-dia, com a violência

e a miséria das ruas, há que se ressalvar o abandono material praticado pelas famílias de

baixa renda, nas quais crianças de tenra idade se vêem sujeitas à própria sorte no

desamparo das avenidas.

Não se trata de isentar de culpa os inúmeros pais e mães miseráveis da sociedade

brasileira; é que o abandono, muitas vezes, se origina do desamparo do Poder Público em

relação a estas famílias, em que prolifera o desemprego dos pais e, conseqüentemente, o

desamparo e a fome dos filhos, questão esta de enorme complexidade, da qual não se

pretende tratar neste trabalho.

É de se ressaltar que o abandono dos filhos, quando não adquire feições selvagens,

de certa forma é acobertado pela própria sociedade, sendo este um dado histórico.

Mencione-se, inclusive, o fato de que durante os séculos XVIII e XIX as Santas Casas do

Rio de Janeiro e de Salvador acolheram 50 mil enjeitados, havendo como formas de

auxílio aos abandonados, implementadas pelo governo, o patrocínio feito pelas câmaras às

“famílias criadeiras”, aquelas que acolhiam os enjeitados, e a “Roda dos Expostos”,

instaladas nas Santas Casas, que recebiam os abandonados através de um cilindro que unia

a rua ao interior da Casa de Misericórdia, sem que em qualquer das hipóteses houvesse a

instauração de inquéritos a fim de apurar a responsabilidade pelo abandono.63

O abandono, nestes casos, poderia ser visto como verdadeira forma paradoxal de se

proteger a criança, menos cruel que o infanticídio, uma vez que enjeitar o filho não

constituía crime, nem acarretava a perda do pátrio poder, podendo as mães recuperar o

filho abandonado na Roda ou entregue à “família criadeira”.64

Os abandonos deste gênero, ocorridos na atualidade, quando bebês ou crianças são

entregues ou deixados em hospitais, em orfanatos, instituições públicas ou privadas de

caridade, caso não se caracterizem como crimes graves65, não geram perquirição criminal,

63 VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. in História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 190/194. 64 Assinala Renato Pinto Venâncio que: “A existência de numerosas instituições destinadas a enjeitados revela, em certo sentido, uma atitude complacente das autoridades metropolitanas em relação ao abandono. O mesmo não podemos afirmar quando o assunto é infanticídio ou aborto. Considerados criminosos, eram tomados também como práticas heréticas e demoníacas.” VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. ob. cit. p. 204. 65 Exemplo que chocou a sociedade brasileira, tomando dimensão pela imprensa o do caso do “bebê de Pampulha”, bebê de dois meses resgatado com vida da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, em janeiro de 2006, tendo os bombeiros e as equipes de resgate sido chamadas por pessoas que viram uma mulher

51

apesar de serem punidos pela lei penal, sendo as crianças encaminhadas para instituições a

fim de serem adotadas, aguardando nos abrigos públicos a sorte que o destino lhes

prepara, muitos deles sobreviventes de uma catástrofe anunciada.

Nestas hipóteses, se faz necessária a efetivação das garantias constitucionais pelo

Estado, através das medidas protetivas ali asseguradas, como, por exemplo, a de prestação

de assistência social objetivando a proteção da família (art. 203, inciso I da CR), assim

como aquelas fundamentais, relacionadas no art. 5° da Constituição da República, sem as

quais se torna inviável a vida em sociedade, sob pena de tornar os cidadãos espectadores e

personagens do colapso social que se avizinha.

O que não se coaduna e não se deve admitir é que estes abandonos se verifiquem

entre as famílias constituídas de pais e mães estruturados, pessoas capazes de discernir e

cumprir com as conseqüências de terem gerado um filho.

A falta de convivência familiar deve ser rechaçada, buscando, cada personagem

desta relação, os caminhos que lhe forem abertos para remediar a situação, autorizando-se,

desta forma, a busca e apreensão de filho que se encontre em poder de terceiro, os direitos

de guarda e visitação, entre outras medidas processuais garantidoras dos direitos e deveres

dos pais.

O direito de ter filho e o direito do filho à convivência familiar haverá de ser

ponderado, a fim de que se solucionem as questões advindas dos conflitos emanados das

relações entre eles. Nesta ponderação, importante a observância do melhor interesse da

criança, já que este deve prevalecer sobre o interesse de qualquer outro envolvido na

querela.

3.2 O melhor interesse da criança

A criança, dada sua vulnerabilidade, necessita de cuidados e proteção especiais.

Esta concepção não existia na sociedade medieval, não havia a consciência da

particularidade que a distingue do adulto.

jogando a criança na lagoa, na altura do Museu de Arte da Pampulha, sendo o mesmo socorrido e levado a um hospital. Encontrada, a mãe foi presa, se referindo ao bebê como “essa droga de bebê” respondendo por crime de tentativa de homicídio junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

52

O século XIV descortina a distinção das mesmas para os adultos, o que se observa

até mesmo nas artes, segundo narrativa de Philippe Ariès,66 tendo a evolução da sociedade

dado às crianças trajes diferentes, concedendo particularidade aos infantes. Esta evolução,

anotada pelo citado autor, coincide com o instituto surgido na Inglaterra, de prerrogativa

de proteção de pessoas incapazes e de suas propriedades, pelo Rei e pela Coroa, o parens

patriae.67

O instituto resultou na proteção especial para crianças e loucos, havendo uma

conscientização da particularidade infantil, sendo que, na época em que surgiu, a criança

era considerada coisa pertencente ao pai.68

A preocupação da civilização com a criança, em razão do seu bem-estar e do futuro

das gerações evolui, e a criança passa a ser considerada como sujeito, tendo na Declaração

de Genebra, de 1924, sido indicado que a criança teria proteção especial. Na elaboração

das Declarações Universal e Internacional, além dos demais Tratados e Declarações de

seus direitos, restaram adotadas regras especiais de proteção às mesmas.

O Decreto n° 99.710/90 ratifica a Convenção Internacional dos Direitos da

Criança, realizada em 1989, pela ONU, ampliando a proteção antes conferida pela

Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, estabelecendo que todas as ações

relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas, tribunais,

autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o

interesse maior da criança.

As regras atinentes às crianças levam em conta as relevantes declarações e tratados

estabelecidos sobre os direitos humanos, os reafirmando. Na esteira do pensamento

mundial de que a criança ou adolescente, em virtude de sua falta de maturidade física e

psíquica, necessita desta proteção e dos cuidados especiais, a legislação pátria procura

salvaguardar seus interesses, fundada no princípio maior da dignidade da pessoa humana.

A Constituição da República, anterior ao encontro da ONU que deu ensejo ao

decreto supracitado, já trazia em seu corpo os direitos essenciais à pessoa humana, com

especial cuidado no que tange às crianças e adolescentes.

66 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Familiar. Trad. Dora Flaksman. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. p. 156. 67 PEREIRA, Tânia da Silva. O Melhor interesse da criança. in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.01. 68 PEREIRA, Tânia da Silva. Ibidem. p.102.

53

O art. 227 da Constituição trata de assegurar os direitos dos infantes e

adolescentes, apontando como responsáveis pelo implemento desses direitos, o Estado,

através dos programas sociais, como: saúde, educação, cultura, lazer e esporte; e a família,

terreno propício para o desenvolvimento da pessoa humana.

Posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como fundamento

de validade a Constituição, e editado após a Convenção Internacional dos Direitos da

Criança, trata do direito à convivência familiar de forma a que se atenda ao interesse da

criança ou adolescente, dando como certo o seu direito de ser criado e educado no seio de

sua família.

A legislação brasileira se refere ao maior interesse da criança, todavia este pode ser

entendido como o de melhor qualidade, uma vez que a orientação dos diplomas dos quais

provém é no sentido de atender ao interesse de melhor qualidade para a criança ou o

adolescente.69

A idéia atual de que a família possui, como função social, o desenvolvimento da

personalidade humana tem maior relevância em relação às crianças e aos adolescentes. A

família não é titular de um interesse separado e autônomo, devendo prevalecer o interesse

daqueles que pertencem a ela, em especial a criança.

Independentemente do fato de a criança ou de o adolescente se encontrar no seio

familiar, seus interesses devem ter maior relevância, sendo do conteúdo da função parental

o princípio da proteção destes interesses, diante da existência de um indivíduo em

formação.

Neste sentido, a lei civil disciplina regras sobre a guarda dos filhos, trazendo em

seu bojo a importância de se observar seu melhor interesse, optando por mantê-los sob a

guarda daqueles que demonstrem melhores condições de exercê-la, levando em conta,

inclusive, a relação de afeto existente entre os mesmos.

Da mesma forma, os deveres dos pais estão esculpidos nas regras do exercício do

poder familiar, no Código Civil, onde resta evidente a finalidade de realizá-los em

benefício do filho.

69 PEREIRA, Tânia da Silva. “O melhor interesse da criança” in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.06.

54

A ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a proteção

especial à infância e à adolescência, por parte da Constituição, as regras do ECA e do

Código Civil, incorporando ao ordenamento jurídico pátrio o melhor interesse da criança,

têm sido entendidas como consagração deste instituto e como princípio de caráter

normativo, evidenciando a necessidade de sua ponderação em relação aos demais

princípios constitucionais.70

Na escolha de opções em que se encontra em jogo o interesse da criança e o de

outra pessoa, este, diante de sua superioridade, deve prevalecer, se manifestando o melhor

interesse da criança, no momento da ponderação dos princípios como realização do

princípio da dignidade da pessoa humana. 71

Resta manifesta, assim, a prevalência do direito fundamental da criança e do

adolescente de atingirem a idade adulta, cercados de cuidados e garantias materiais e

morais adequadas, havendo que se nortear pelo melhor interesse da criança, a fim de

garantir sua proteção integral.

O princípio do melhor interesse da criança expresso no ordenamento brasileiro,

fundado que é na cláusula geral de dignidade da pessoa humana, se concretiza na análise

dos casos fáticos em que, diante das pretensões resistidas, deva prevalecer a superioridade

do interesse da criança ao interesse alheio, principalmente quando o interesse alheio for

meramente patrimonial e em especial de qualquer de seus genitores.

70 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do melhor interesse da criança. in O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar. Coord. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.06 71 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O princípio do melhor interesse da criança. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. coord. Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17.

55

4 A Repersonalização

4.1 Dos direitos da personalidade

A conceituação dos direitos da personalidade não é matéria pacífica entre a

doutrina, existindo controvérsias a respeito do tema, em especial no que diz respeito à

natureza e ao conteúdo, bem como quanto à tipicidade ou atipicidade de tais direitos.

Na questão da tipicidade e atipicidade, afirma-se, em síntese, que os direitos da

personalidade são típicos, isto é, previstos expressamente na legislação. Fora das hipóteses

expressamente previstas em lei (na Constituição, no Código Civil, nas demais leis), não

haveria direitos da personalidade.

Por sua vez, os adeptos da atipicidade dos direitos da personalidade entendem que

a garantia da tutela da dignidade da pessoa humana, como valor fundamental, permite

estender a tutela a situações não previstas em lei, já que seu conteúdo não se limitaria a

atender aos direitos previstos tipicamente pela Constituição e demais leis.72

Esta garantia à tutela da dignidade da pessoa afastaria de vez a idéia da tipicidade

dos direitos da personalidade, passando a se ter verdadeira cláusula geral de tutela da

pessoa, ante a presença do princípio fundamental da dignidade humana.73

Deixando-se de lado a enumeração taxativa dos direitos da personalidade, há a

discussão a respeito de serem estes pertencentes à categoria dos direitos subjetivos ou não,

também sem fundamento, segundo a orientação da doutrina moderna. Concluindo que a

personalidade humana não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas em uma

complexidade de situações que podem ou não configurar direito subjetivo; dentre elas os

poderes, os interesses legítimos, as pretensões, a autoridade parental, os ônus; entende a

melhor doutrina que deva ser superada também esta discussão dogmática sobre o tema.74

72 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 155. 73 Ensina Maria Celina: “Não há mais, de fato, que se discutir sobre uma enumeração taxativa ou exemplificativa dos direitos da personalidade, porque se está em presença, a partir do princípio constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.118. 74 PERLINGIERI ensina: “A esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre o sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica (...). Onde o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve

56

No direito brasileiro, a ordem constitucional passa a considerar a personalidade

como reduto de poder do indivíduo, no qual será exercida sua titularidade, como valor

máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, submetendo a atividade

econômica a novos critérios de validade.

Assim, a pessoa humana estaria resguardada em qualquer momento que não atenda

à realização da personalidade, inclusive da atividade econômica, mediante direitos

subjetivos previstos expressamente no texto Constitucional ou na legislação específica ou

restringindo a tutela de ato jurídico patrimonial ou não.75

A Constituição se encarrega de considerar a personalidade como valor

fundamental, concedendo proteção integral aos direitos da personalidade. Esta proteção

impõe limites ao legislador ordinário, no que tange à regulamentação dos direitos da

personalidade, tendo este reserva legal limitada, no sentido de que é dado ao mesmo impor

restrições às garantias individuais ou sociais, somente quando estas atendam à própria

dignidade da pessoa humana.

A promoção da dignidade da pessoa humana passa a ser o fundamento da ordem

legal, não importando se os direitos que visem garantir esta promoção estejam ou não

tipificados. Havendo violação ao princípio da dignidade humana, o titular do direito da

personalidade pode exigir a atuação do ordenamento jurídico, tendo a faculdade de

satisfazer seus interesses, vinculado à sua decisão, na defesa da sua vida, honra,

privacidade, dentro do autorizado pelas normas.

Tal diretriz estabelecida pelo legislador constituinte leva à conclusão de que a

tutela da personalidade não pode ficar adstrita a hipóteses previamente estabelecidas, mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação. A tutela da pessoa não pode ser fracionada em isoladas fattispecie concretas, em autônomas hipóteses não comunicáveis entre si, mas deve ser apresentada como problema unitário, dado o seu fundamento representado pela unidade do valor da pessoa. Este não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, em isoladas ocasiões, como nas teorias atomísticas.” PERLINGIERI, Pietro. ob. cit. p.155. Na doutrina pátria: MORAES, Maria Celina Bodin de. Ob.cit. p. 118; TEPEDINO, Gustavo, para quem: “Segundo Pietro Perlingieri, principal artífice desta corrente doutrinária, a personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a uma ‘relação jurídica-tipo’ ou a um ‘novelo de direitos subjetivos típicos’, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para atender às possívies situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela juridica.” TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.45. 75 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.47.

57

direitos humanos ou situações jurídicas de direito privado, uma vez que a pessoa requer

proteção integrada que supere a dicotomia do direito público e direito privado, garantindo-

se a promoção da dignidade humana.

As técnicas de proteção à pessoa humana, consubstanciadas na doutrina da

tipificação dos direitos da personalidade, se mostram, assim, insuficientes, ante a

evidência das inúmeras situações diferenciadas que demandam das relações humanas e

não se ajustam àquelas previamente determinadas que, nem por isso, fulcradas na

dignidade da pessoa humana, podem ficar ao alvedrio de solução adequada.

Entende-se, então, os direitos da personalidade como direitos e garantias

constitucionais, atrelados à idéia desta promoção da pessoa humana, sem se ater à

necessidade da previsão expressa em lei destes direitos, uma vez decorrentes dos preceitos

constitucionais, capitaneados pela dignidade da pessoa humana.

Tais preceitos são inseridos na Constituição da República como princípios

fundamentais, precedendo topograficamente aos demais capítulos, condicionando as

normas do corpo constitucional, assim como as demais normas jurídicas, definindo, assim,

uma nova ordem pública, elevando ao ápice a dignidade da pessoa humana.76

Passa-se ao estudo sintético deste direito, valor fundamental do ordenamento

jurídico, que baseia todas as situações existenciais emanadas das inúmeras e imprevisíveis

exigências decorrentes do progresso do ser humano.

4.2 Dignidade da Pessoa Humana e Solidariedade Social. Princípios Constitucionais.

A função do Estado, a partir da Modernidade, passa a ser a de garantir a ordem, a

defesa de seu território, a seguridade social, a educação, entre outras, tendo como melhor

instrumento, para ordenar as competências e atribuições, a lei. E a lei capaz de

efetivamente obrigar a todos os entes políticos é a lei com status de Lei Constitucional.77

A Constituição assume o papel importante de conferir unidade e coerência a uma

determinada ordem nacional, na medida em que é e deve ser respeitada.

76 TEPEDINO, Gustavo. Direitos Humanos e Relações Jurídicas Privadas. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.67. 77 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 123.

58

No dizer de Canotilho, o problema da legitimidade da Constituição não consiste

somente num debate filosófico-jurídico sobre a fundamentação última das normas, mas

também na justificação da existência de um poder ou domínio sobre os homens e a

aceitação desse domínio por parte destes.78

Necessária a sintonia do regime com aquilo que a Sociedade Política e a Sociedade

Civil consideram justo na esfera comunitária, para que haja aceitação e adesão à existência

e continuidade de uma ordem constitucional.

O direito e a norma constitucional legítimos devem se apoiar num pacto consensual

entre os cidadãos da comunidade, a partir dos pressupostos e requisitos invioláveis e

indisponíveis, que versam sobre as prerrogativas fundamentais do próprio gênero humano,

conquistadas a duras penas na história.

A mais razoável e racional justificação e fundamentação da legitimidade

constitucional repousa na autoridade dos direitos humanos fundamentais.

Os direitos fundamentais constituem a conditio sine qua non do Estado

democrático de direito, encontrando sua vertente no princípio da dignidade da pessoa

humana, sendo este, portanto, o elemento comum à matéria dos direitos fundamentais, daí

a íntima vinculação entre o princípio da dignidade humana e os direitos fundamentais,

asseverada por boa parte da doutrina.79

Os princípios constitucionais, enquanto normas, desempenham a função de dar

fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática

normativa. Sendo normas, tornam-se as normas supremas do ordenamento, servindo de

pautas ou critérios para a avaliação de todos os conteúdos constitucionais e

infraconstitucionais. As normas das normas.

Princípios constitucionais fazem transparecer uma superlegalidade material e se

tornam fonte primária do ordenamento, afigurando-se como pedra de toque ou critério

com que se aferem os conteúdos constitucionais, em sua dimensão normativa mais

elevada. Os princípios podem ser sempre tomados como dimensões paradigmáticas de

uma ordem constitucional justa, à luz de critérios historicamente sedimentados.

Evidenciam mais do que comandos generalíssimos estampados em normas, em normas da

78 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.111. 79 SHNEIDER, H.P. in SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.70.

59

Constituição. Expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores

éticos e sociais como fundantes de uma idéia de Estado e de Sociedade.80

Os princípios não expressam somente uma natureza jurídica, mas também política,

ideológica e social, como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer sistema

jurídico. Expressam uma natureza política, ideológica e social, normativamente

predominante, cuja eficácia no plano da práxis jurídica deve se impor de forma altaneira e

efetiva.81

Os princípios são postos no ápice da pirâmide normativa, elevando-se ao grau de

norma das normas, de fonte das fontes, a viga-mestre do sistema, o penhor da

constitucionalidade das regras da Constituição. As normas-chaves de todo o sistema

jurídico.82

O constituinte brasileiro de 1988 deixou nítida a intenção de garantir aos princípios

fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem

constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, outorgando, ao princípio fundamental

da dignidade humana, a necessária relevância, localizando-o no início do texto, logo após

o preâmbulo.

4.3 Dignidade Da Pessoa Humana Como Princípio Constitucional

A dignidade deve ser entendida como qualidade moral que infunde respeito;

consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza. Dignidade provinda do latim

dignus, como aquele que merece estima e honra, aquele que é importante.83

O avanço dos Direitos Humanos ocorrido a partir dos séculos XVIII e XIX, com a

humanização dos processos sancionatórios e das garantias processuais penais, passando a

se dar maior importância aos direitos da pessoa humana e aos sujeitos de direito, é

significativo. Todavia, a discussão em torno dos direitos da cidadania e dos direitos

fundamentais continua em constante ebulição.

80 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.168. 81 LEAL, Rogério Gesta. op. cit., p.168 82 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 2006. p.286. 83 MORAES, Maria Celina Bodin de. ob. cit., p.77.

60

A Declaração dos Direitos Humanos, com a Independência dos Estados Unidos,

expressão primeira destes direitos, juntamente com a Revolução Francesa, se tornou fonte

de adoção nos sistemas jurídicos e nas organizações políticas.

As Declarações, assim, serviram para a célere e eficaz evolução dos direitos

humanos, tendo importante papel na internacionalização e na constitucionalização destes

direitos, passando os mesmos a assumir caráter universal.

Tal internacionalização não se percebe de imediato, sendo necessária a

incorporação aos ordenamentos jurídicos constituídos, sob pena de não poderem ser objeto

de implementação estatal, em que pesem os pontos negativos da positivação dos direitos.

Ao lado desta afirmativa, não se pode deixar de mencionar que a conceituação dos

direitos fundamentais é verdadeira problemática, que gera inúmeros estudos doutrinários,

devendo se ter em mente que um conceito satisfatório dos direitos fundamentais somente

pode ser obtido com relação a uma ordem constitucional concreta, já que exigiria tanto

uma determinação hermenêutica quanto uma construção dogmática vinculada ao texto

constitucional vigente.

O que é fundamental para determinado Estado pode não ser para outro e vice-

versa, o que não impede de se verificar a existência de categorias universais e consensuais,

no que diz respeito à fundamentalidade, como valores da vida, da liberdade, da igualdade e

da dignidade humana.84

Desta forma, a integração das posições jurídicas concernentes às pessoas que, do

ponto de vista do direito constitucional positivo, foram integradas ao texto constitucional e

retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, é considerada direito

fundamental.85

A Constituição da República de 1988, reconhecendo que o Estado existe em função

da pessoa humana, constituindo esta a finalidade precípua e não o meio da atividade

estatal, no intuito de protegê-la (pessoa humana), já traz, logo após o preâmbulo, como

fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, como

anteriormente ressaltado.

84 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.90/91. 85 SARLET, ob. cit, p.91.

61

O reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio da dignidade da

pessoa humana revela evolução constitucional sem precedentes, ressaltando-se a evolução

da Constituição pátria, uma vez que a inclusão do valor fundamental da dignidade da

pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições após a

consagração pela Declaração Universal da ONU, de 1948, sendo certo que muitos países

integrantes não chegaram a incluir o princípio em seus textos constitucionais. 86

A idéia de que ser digno é ser pessoa, ou seja, da dignidade como qualidade

inerente ao ser humano, encontra sua origem já na ideologia cristã e no pensamento

clássico. O homem, como criatura à imagem e semelhança de Deus, foi a premissa da qual

o cristianismo extraiu a conseqüência de que o ser humano é dotado de um valor próprio

intrínseco, não podendo ser transformado em objeto ou mero instrumento.

A percepção de que seres humanos são diversos das coisas naturais inicia no século

XV, com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo,

prosseguindo nos séculos seguintes, donde surge a idéia de civilização, chegando ao

período do positivismo, no qual Auguste Comte desenvolve a idéia do homem como ser

social.87

O processo de racionalização e laicização da concepção da dignidade da pessoa

humana, que ocorre nos séculos XVII e XVIII, não afasta a noção fundamental da

igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade, destacando-se a concepção

kantiana da dignidade que parte da autonomia ética do ser humano, o fundamento da

dignidade, não podendo, o ser humano, ser tratado, nem por ele próprio, como mero

objeto.88

A dignidade, qualidade intrínseca do ser humano, irrenunciável e inalienável, é

algo que se respeita e se protege, não podendo lhe ser concedida nem retirada, pois

inerente aquele, englobando, necessariamente, o respeito e a proteção da integridade física

e mental do indivíduo. Daí decorrem as vedações às penas de morte, às práticas de tortura,

penas de natureza corporal, limitações de meios de prova, limitações ao uso do próprio

corpo, das experiências científicas com o ser humano, tornando-se indispensável, na

esteira do pensamento kantiano, a preservação da dignidade da pessoa humana.

86 SARLET, ob. cit, p.113. 87 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002. p.272. 88 SARLET, op. cit. p. 116.

62

O valor da dignidade da pessoa humana e a perseguição por sua preservação

ensejam a garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família,

assumindo relevo especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de

seguridade social, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à

asseguração de uma existência com dignidade. 89

À luz do que preconiza o art. 1° da Declaração Universal da ONU de que “todos os

seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e

consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”, em que esta

razão e consciência, denominador comum de todos os homens, expressariam a sua

igualdade, mister se faz a garantia da isonomia de todos os seres humanos, como

pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana, não se podendo

submeter o homem a tratamento discriminatório e arbitrário.

Da mesma forma, a garantia à identidade pessoal do indivíduo, respeitando-se tudo

aquilo que esteja associado ao livre desenvolvimento de sua personalidade, “bem como ao

direito de autodeterminação sobre os assuntos que dizem respeito à sua esfera particular,

assim como à garantia de um espaço privativo no âmbito do qual o indivíduo se encontra

resguardado contra ingerências na sua esfera pessoal”. 90

A conclusão a que se chega é a de que a dignidade da pessoa humana depende do

respeito a estes pressupostos, sob pena de não se efetivar.91

No dizer de Ana Paula de Barcellos, o núcleo da dignidade humana se encontra na

idéia de um mínimo existencial, sem o qual não é possível que a pessoa tenha condições

materiais de existência, sendo essencial, segundo este raciocínio, a educação fundamental,

a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça, o “quarteto” necessário

para tornar possível a concretização da dignidade humana.92

89 SARLET, op. cit. p.122. 90 SARLET, ibidem, p.122. 91 Merece transcrição a análise de Ingo Sarlet: “O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa humana.” op. cit, p.122. 92 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.247 e segs.

63

Outro não é o entendimento de Maria Celina Bodin de Moraes quando trata do

princípio da dignidade da pessoa humana, ao afirmar que o substrato material da dignidade

se desdobra em quatro postulados: o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos

outros como sujeitos iguais a ele, merecedores do mesmo respeito à integridade

psicofísica, dotados de vontade livre e autodeterminação e, partes do grupo social, tendo a

garantia de não serem marginalizados. Corolários desta elaboração, segundo a autora,

seriam os princípios da igualdade, da integridade física e moral, da liberdade e da

solidariedade.93

Nas relações paterno-filiais, a fim de que de fato se efetive e concretize a dignidade

da pessoa humana, há que se respeitar todos aqueles deveres inerentes ao poder familiar,

todos aqueles direitos das crianças e adolescentes, assim como os institutos garantidores

dos mesmos, e o princípio do melhor interesse da criança, sob pena de lesão aos direitos

da personalidade, passíveis de ressarcimento.

O objetivo do presente estudo não é o de se aprofundar na análise do princípio da

dignidade humana, já que a matéria é extensa e de profunda complexidade; as menções

feitas acima pretendem tão-somente enfatizar a necessidade da tutela deste direito

fundamental, em especial no que diz respeito às relações paterno-filiais, visando a tutela

prioritária da vulnerabilidade humana.

À luz do pensamento moderno no qual a igualdade, a integridade psicofísica, a

liberdade e a solidariedade são corolários do princípio da dignidade humana, essenciais

para o mínimo existencial da pessoa humana, passa-se a tecer comentários sobre os

referidos princípios, no intuito de fundamentar a necessidade de se responsabilizar aqueles

que devem ser os garantidores deste mínimo existencial, em especial em relação às

pessoas em formação, crianças e adolescentes.

93 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17.

64

4.3.1 A igualdade constitucional, fundamento jurídico da dignidade humana, e as

relações paterno-filiais

No sucinto relato sobre o princípio da dignidade humana, restou concluído que o

fundamento jurídico da mesma se manifesta, inicialmente, no princípio da igualdade, ou

seja, no direito de não receber qualquer tratamento discriminatório, no direito de ter

direitos iguais aos de todos os demais, consubstanciado na igualdade formal, de que todos

são iguais perante a lei, e no direito de ser tratado desigualmente, consubstanciado, por sua

vez, na igualdade substancial, ou seja, tratar os desiguais, em conformidade com as suas

desigualdades.

Assim, o princípio constitucional da igualdade é um dos princípios estruturantes

dos direitos fundamentais, assumindo relevância no que diz respeito à concretização dos

direitos constitucionais, é informador da ordem constitucional, garantidor do direito

fundamental da dignidade da pessoa humana.

O princípio da igualdade, presente no caput do art. 5° da Constituição da República

de 1988,94 determina a proibição da discriminação social, sendo a referida proibição

princípio vinculativo dos Direitos Humanos e Fundamentais, presente nas Declarações dos

Direitos Humanos, internacionalizado e constitucionalizado na modernidade.

A formalização meramente abstrata do princípio da igualdade não foi capaz de

contornar as desigualdades concretas, gerando tratamentos desiguais incompatíveis com a

universalidade da regra de direito, necessária a previsão expressa quanto à proibição, pelo

ordenamento jurídico, da adoção de certos critérios de diferenciação, como se verifica no

inciso IV do art. 3° e no art. 227, §6° da CR.95

94 Art. 5°: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.” 95 Art. 3°, IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Art. 227, §6° “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

65

Tais critérios proibitivos de diferenciação são exigências inarredáveis do aspecto

formal do princípio da igualdade.96

No que tange à discriminação filial, a própria Constituição da República, no § 6°

do citado artigo, determina que os filhos serão iguais em direitos e qualificações sejam

eles havidos ou não das relações do casamento ou por adoção.

O tratamento desigual em relação aos filhos, portanto, deve ser rechaçado, sob

pena de violação de princípio constitucional. A prática discriminatória, sem fundamentos,

o que se verifica quando há tal tratamento desigual em relação aos filhos, poderá ensejar

lesões passíveis de ressarcimento. No momento da ponderação dos princípios, como se

verá adiante, este preceito poderá ser fundamental para nortear as decisões judiciais que

envolvam os deveres paterno-filiais.

4.3.2 A integridade física e moral da criança e do adolescente garantida por meio da

convivência paterno-filial

A proteção à dignidade da pessoa humana não se encerra no princípio da

igualdade; além de dever ser garantido o tratamento igualitário à pessoa humana, esta deve

ser garantida em sua integridade psicofísica, não se resumindo este princípio à idéia inicial

de que ninguém será submetido à tortura, ou a tratamento desumano ou degradante.

De fato, o direito de não ser torturado, assim como o de outras garantias penais, se

encontra agasalhado por este princípio, havendo previsão expressa no texto constitucional

(inciso III do art. 5° da CR). Todavia, não se encerra aí a importância do princípio, sendo

o mesmo de suma importância na esfera civil, na qual se mostra relevante para garantir

direitos da personalidade, bem como para fundamentar a necessidade do cumprimento do

dever familiar.

Os direitos da personalidade têm sido garantidos com a observância de tal princípio

constitucional, em especial o direito à saúde, se inserindo aí o direito ao próprio corpo, à

vida, à imagem, à identidade pessoal, à honra, à saúde mental.

96 RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.45.

66

A pessoa humana, para se ver mantida em sua integralidade psíquica e física,

necessita do atendimento de suas necessidades mínimas, o que tem início com a garantia

do presente princípio, na qual se considera como contido o direito à existência digna.97

A integridade psíquica e física da criança e do adolescente, a fim de que esta tenha

uma formação digna de ser humano, não se observa tão-somente com o incremento das

necessidades básicas, mas também com a observância de todos aqueles direitos

constitucionalmente assegurados, incluídos o imprescindível direito à convivência familiar

e o direito ao afeto.

4.3.3 A liberdade das escolhas individuais e seus limites garantidores da dignidade

humana

A liberdade individual (pessoal, física e de movimento), analisada como direito de

liberdade, costumava ser caracterizada como liberdade negativa, que se identificaria com

direitos negativos, os de natureza defensiva, se inserindo aí o direito de não ser obrigado a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei (inciso II do art. 5° da CR).98

A liberdade negativa compreenderia, assim, tanto a ausência de impedimento, a

possibilidade de fazer, quanto a ausência de constrangimento, a possibilidade de não fazer,

e como as ações humanas são previstas em normas, tal assertiva consistiria em fazer tudo

o que as leis permitem ou não proíbem, e, ainda, que permitem não fazer.

Nesse sentido se incluiriam a liberdades de ter ou não religião, a liberdade de

consciência, de crença, de locomoção, de trabalho, de fazer ou não parte de uma

associação.

Por outro lado, a liberdade positiva consistiria naquele direito de o sujeito orientar

seu próprio querer, no sentido de uma finalidade, sem ser determinado pelos outros, o que

caracterizaria a autonomia, ou seja, a possibilidade de se mover para uma finalidade sem

ser movido. O indivíduo se submeteria à sua própria vontade.99

97 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.539. 98 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. In Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.17. 99 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro:Ediouro, 2002. p.51

67

O tema da liberdade, assim como sua distinção em positiva e negativa, é extenso

não sendo objetivo do presente estudo. Porém é importante frisar que a liberdade negativa

e a liberdade positiva não se implicam e não se excluem, já que uma ampla margem de

liberdades negativas das pessoas (as liberdades civis) é a condição necessária para o

exercício da liberdade positiva do conjunto (a liberdade política).

Seguindo esta idéia de liberdades, o Código Civil de 1916 tinha como sujeito de

direitos aquele que velava por seus familiares e seus bens, desvinculado dos interesses

sociais. Os interesses privados prevaleciam aos interesses públicos, com poucas exceções.

Esta idéia era questionada, no que tange aos poderes que possuía a pessoa para

dispor de si, de seu corpo, de sua vida, sem ferir a ordem pública, a moral e os bons

costumes, então princípios fundantes do ordenamento jurídico (art. 17 da Lei de

Introdução ao Código Civil).100

O princípio constitucional da liberdade, redesenhado pelos novos paradigmas nos

quais a pessoa prevalece ao patrimônio, devendo ser tutelada a dignidade da pessoa

humana, faz com que a questão tome outro caminho.

Atualmente, mister se faz que a vontade do titular do direito se encontre em

consonância com o interesse social, constituindo o princípio da liberdade individual uma

perspectiva de privacidade, intimidade, de livre exercício da vida privada, em que o sujeito

se encontra livre para fazer suas próprias escolhas individuais, seu projeto de vida. 101

Todavia, a este direito de liberdade individual se contrapõe o interesse social,

devendo ser exercido dentro do contexto social, em especial em relação às demais pessoas,

o que se verifica nas relações entre pais e filhos, nas quais os direitos e deveres de um

devem sempre estar em consonância com os do outro, em especial aqueles significativos

para a realização da pessoa humana, para a garantia da sua dignidade.

100 Art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil - “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.” 101 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.43.

68

4.4 O interesse social. O princípio constitucional da solidariedade social

O Direito se oferece na atualidade como instrumento por excelência indispensável

para a promoção da pessoa humana, sendo que cabe a esta pôr em prática a solidariedade

social.

A proteção da pessoa humana é a principal preocupação do ordenamento jurídico

moderno, o qual, assumindo as transformações ocorridas na sociedade, espelhou a ordem

civil.

Neste sentido, foi atribuída às situações jurídicas extrapatrimoniais menor

relevância em prol das prioridades de proteção e garantia à pessoa humana. Advém daí a

idéia de se dar prevalência ao melhor interesse da criança e do adolescente e aos membros

da família.

O inciso III do art. 1° da Constituição da República de 1988, ao conceber a

dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, se

adequa a esta nova ordem mundial.

Entre os princípios fundamentais estatuídos como objetivos a serem perquiridos

pela República Federativa do Brasil, se encontra o princípio da solidariedade social, no

inciso III do art. 3°.

O princípio da solidariedade social é princípio jurídico inovador que deve ser

levado em conta não somente na elaboração da legislação ordinária e na execução das

políticas públicas, como também nos momentos de interpretação e aplicação do direito,

por todos os membros da sociedade.

A solidariedade social deriva da consciência racional dos interesses em comum,

interesses que implicam a obrigação moral de cada membro da sociedade, seja o que for

que possa querer, dever fazê-lo, pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro,

reconhecendo no outro a si mesmo.102

Através da solidariedade social se pretende alcançar a dignidade humana,

identificando-se o princípio com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma

102 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.112.

69

existência digna, comum a todos os membros da sociedade, sem que haja exclusão ou

marginalização.

A elevação da solidariedade social à condição de princípio geral do ordenamento

jurídico é de relevante significado, no sentido de que ainda que não se possa obrigar

alguém a ter bons sentimentos em relação ao próximo, pode se obrigar que esse se

comporte como se sentisse, o que se pode observar e exemplificar nas relações familiares,

em que a solidariedade pode ser identificada como fundamento.103

O projeto solidarista começa a ser lentamente realizado no Brasil, onde se observa,

além das criações legislativas, como a do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza,

(que tem como finalidade viabilizar o acesso a todos os brasileiros a níveis dignos de

subsistência), decisões fundamentadas no princípio da solidariedade social.

O princípio da solidariedade social, assim, deve ter como meta prioritária a

realização da pessoa humana com dignidade, corolário que é do princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana.

103 Conforme ressalta Maria Celina Bodin de Moraes: “Em relação à violação daquilo que não pode ser considerado um direito subjetivo, nem uma faculdade, tampouco um poder-dever, a solidariedade, no entanto, pode se dizer fundamento daquelas lesões que tenham no grupo a sua ocasião de realização: assim, ela abrangeria os danos sofridos no âmbito familiar nas mais diversas medidas, desde a lesão à capacidade procriadora ou sexual do cônjuge até a violência sexual praticada contra filha menor, do descumprimento da pensão alimentícia de filho, do não reconhecimento voluntário de filho ou a criação de dificuldades a esse reconhecimento, à falta de visitação (...)” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, p.116.

70

II – FAMÍLIA, SOCIEDADE E ESTADO: AUTONOMIA E INTERVENÇÃO

1 Visão panorâmica da intervenção estatal ao longo dos tempos na relação familiar

entre pais e filhos

A família, célula social por excelência, como já mencionado, em sua visão

tradicional, na qual se concedia a um de seus membros poder e supremacia, compreendida

por aqueles elementos oriundos do mesmo tronco ancestral, com seus ascendentes,

descendentes e colaterais, passa por inovações durante os séculos.

Tradicionalmente a família era regulada em suas relações pessoais, patrimoniais e

assistenciais, de modo que não se suprisse a autonomia do chefe de família, expressão esta

criada para definir a posição do marido-pai na esfera familiar. Esse tratamento tinha como

fundamento a manutenção da paz, concedendo-se ao varão a possibilidade de estabelecer

as regras e normas vigentes no âmbito de sua família.

A preservação da família tradicional foi perseguida durante anos, tendo sido

trazidas as inovações em doses homeopáticas, com o correr dos anos, não se disseminando

totalmente a idéia de chefes de famílias e seus direitos e deveres.

Através dos árduos caminhos percorridos, mulheres e filhos buscam sempre novas

soluções para os conflitos que teimam em surgir na vida da família, seja ela agora em sua

visão nuclear, tradicional ou moderna. Nessa caminhada, se observa que os antigos chefes

de família também passaram a sofrer intercorrências.

A proteção à pessoa do chefe de família e sua posição tradicional junto à

sociedade, com as inúmeras variações que lhe cabiam, como a ilegitimidade dos filhos

concebidos fora do casamento e a ilegitimidade das relações familiares que não se

adequassem ao tradicional casamento, trazem resquícios inconfundíveis. Da mesma forma,

as funções exercidas dentro do modelo tradicional de família que teimam em existir, ainda

sob a égide das novas formas de família.

A ingerência do Estado nas relações familiares, em todas as suas vertentes, se torna

cada dia mais evidente, em que pese às inúmeras possibilidades de solução autônoma de

determinadas situações.

71

A idéia não é justificar a intervenção estatal em matérias já decididas entre os

familiares ou as de cunho meramente patrimonial, havendo, inclusive, norma legal

expressa vedando a interferência na comunhão de vida instituída pela família, o que se

observa na leitura do art. 1.513 do Código Civil.104

O que deve sim o Estado assegurar é o cumprimento daquilo com o que se

preocupa o texto constitucional, ou seja, a assistência à família, na pessoa de cada um dos

que a integram (§ 8° do art. 226 da CR).105

No dizer de Pietro Perlingieri, a delineada função serviente da família explica o

papel da intervenção do Estado na comunidade familiar, se traduzindo, em geral, na

necessidade de que seja respeitado o valor da pessoa na vida interna da comunidade, por

ser uma questão de que toda comunidade deve se inspirar no princípio da democracia.106

Neste diapasão, inadequado o enfoque da família como corpo autônomo. A

autonomia da comunidade familiar paralisaria o poder normativo do ordenamento jurídico.

O valor central de referência é sempre a pessoa e o reconhecimento dos direitos

fundamentais, daí se afastar a imunidade da família ao controle do Estado. As relações

familiares e suas inúmeras conseqüências não podem ser ignoradas externamente, não se

isentando de juízos de valor em confrontação com os valores fundamentais vigentes, a

ordem pública.

Na seqüência deste pensamento, passa a se identificar a constitucionalização do

direito civil, a necessidade de adequação deste aos princípios constitucionais e sua

despatrimonialização, afastada a idéia de público e privado, como uma nova tendência

normativa-cultural, com orientação focada na idéia de que o limite inviolável do

comportamento das pessoas em suas relações sociais é a dignidade da pessoa humana - e

que, portanto, devem estar centradas nesta e na solidariedade social.

Nesse sentido, é autorizada a ingerência do Estado nas situações em que a ausência

de afeto entre pessoas unidas pelos laços familiares gera danos de ordem moral. Os

deveres parentais, surgidos ou não de relações familiares, oriundos que são da paternidade 104 “Art. 1.513 do Código Civil – É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” 105 “Art. 226 da CR – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §8° - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” 106 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p.247/249.

72

e maternidade, submetem-se ao ordenamento jurídico a fim de proporcionar ao ser

humano envolvido a plenitude do princípio da dignidade humana.

2 A intervenção estatal como garantia do exercício do poder familiar segundo o

melhor interesse da criança

A Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente,

como já observado, trouxeram mudanças paradigmáticas às relações entre pais e filhos,

passando a cheirar a mofo o pátrio poder, substituído pela nova função familiar de

promover a personalidade de seus membros, sendo atribuído aos pais o munus da criação e

educação de seus filhos, através do poder familiar.

Entendendo a família como instrumento promotor da personalidade de seus

membros, em especial crianças e adolescentes, deve ser revisitada a dicotomia entre o

direito público e o direito privado, a fim de que esta tome outros parâmetros, já que a

constitucionalização do Direito Privado acarretou a releitura dos institutos jurídicos,

inclusive o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, que tem novo conteúdo e

extensão, dentro da interpretação principiológica da Constituição.107

A família, em seu modelo liberal-burguês, se fundava na sua preservação como

instituição, cujo interesse prevalecia ao interesse de seus membros, gozando de imunidade,

subtraindo-se da mesma a intervenção estatal, já que possuía suas normas e princípios

próprios, passando a casa a ser consagrada como espaço distinto do espaço público.

Argumenta Perlingieri que a imunidade da família, ou seja, a subtração das

vicissitudes internas da família ao controle do Estado, já que esta se verifica como

comunidade autônoma, portadora da própria subjetividade, corpo originário em relação ao

Estado, se torna incompatível com o ordenamento constitucional vigente, uma vez que

suprime o desenvolvimento da pessoa humana em prol da coesão da inaceitável lógica

corporativa.108

107 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro – São Paulo - Recife: Renovar. 2005, p.48. 108 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.247/249.

73

Ocorre que as vicissitudes e intercorrências da família terminam por levar à

intervenção estatal.

Esta intervenção se verifica, conforme noticia Michele Perrot, visando, em

primeiro lugar, as famílias pobres, que se multiplicaram no começo do século XX, ditas

como incapazes de desempenhar seu papel, em especial em relação aos filhos, ante a

necessidade de se atender o melhor interesse da criança.109

A luta travada entre o pai e os outros, a história da vida privada oitocentista,110 ante

as resistências encontradas contra a autoridade sem limites do poder do pai, busca na

intervenção estatal a solução dos conflitos internos.

A família, no seu modelo burguês, no qual a ingerência estatal era ínfima e

entendida como arbitrária, afrontando a autoridade do pater, não mais se justifica, sendo

extirpada como modelo ideal, uma vez que não atende aos novos paradigmas da

sociedade, em especial da promoção da dignidade humana.

A dignidade humana representa o limite inviolável do exercício da autoridade

familiar, possibilitando a interferência do Estado neste núcleo, a fim de garantir esta

limitação.

Esta ingerência torna inquestionável que a família deixou de ser uma unidade para

ser uma pluralidade de convivência, na qual o melhor interesse da criança deve ser

atendido, sob pena de se ter que recorrer ao Estado para a solução dos conflitos.

Assim, as intervenções estatais no direito de família, em virtude da nova função

que a mesma deve exercer, com a constitucionalização daquele direito, põem em xeque a

dicotomia do público e do privado, logo o “privado não é mais o direito das relações

‘domésticas’ da família, e o público não é mais, apenas, o direito que diz respeito ao

Estado e ao político”. 111

O conjunto de regras e princípios referentes ao direito de família continua se

enquadrando no direito privado, já que a constituição da família é um ato de liberdade,

109 PERROT, Michelle (Org.). História da vida Privada. volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.116. 110 PERROT, Michelle (Org.). História da vida Privada. ob. cit. p.131. 111Salienta Fachin, para quem: “(...) no mesmo horizonte, haveria o Direito Público de Família e o Direito Privado de Família, semicircunferências, partes de um todo, distintas mas congruentes, separadas porém ‘interagindo’”. FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.74.

74

seja ela matrimonializada ou não, assim como a extinção desta relação, sendo, portanto,

atos da autonomia privada.

Esta se encontra agora com uma nova dimensão, onde há publicização da família,

já que, constitucionalizada, orientada por aqueles novos princípios.112

Nesta ordem de idéias se encontram os mecanismos de intervenção estatal na

esfera familiar, em especial, no exercício da autoridade parental.

O Estado, no intuito de garantir o melhor interesse da criança e do adolescente,

verdadeiro princípio fundamental, interfere nas relações familiares, a partir do novo

ordenamento constitucional, cabendo, inicialmente, prestar a tutela da criança e do

adolescente, independentemente da situação em que se encontre, através de proteção

integral.113Assegurar os direitos fundamentais com prioridade às crianças e aos

adolescentes, protegendo-os da negligência, discriminação, exploração, violação,

crueldade e opressão, são as diretrizes adotadas para a política pública de atendimento.

A proteção deve ser assegurada pelo Estado encontrando-se o paciente sob o manto

da família ou não, ou seja, a autoridade familiar deve ser exercida de maneira a resguardar

os direitos fundamentais da criança sob pena de interferência estatal.

Esta interferência estatal nas relações familiares, em especial na autoridade

familiar, a fim de garantir o melhor interesse da criança, pode se manifestar de várias

formas, não ocorrendo somente em situações extremas, podendo se dar por meio das ações

governamentais ou não governamentais, como no caso de formação de mecanismos

estabelecidos na Constituição e no ECA de participação da sociedade civil na gestão

destes interesses, incluindo políticas públicas de educação e saúde.114

112 FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.76. 113 Assim se manifesta Bernardo Castelo Branco: “Tem sido marcante o intervencionismo estatal em certas relações jurídicas de caráter privado, com a visível preocupação de proteger aqueles que, de certo modo, se acham em posição de hipossuficiência na tutela de seus direitos. Assim ocorre no disciplinamento das relações de consumo, no abrandamento do caráter antes absoluto dos direitos inerentes à propriedade, na adoção da teoria do risco como elemento determinante da responsabilidade civil em certas atividades, só para citar alguns exemplos. A mesma tendência se observa, embora de maneira tímida, no direito de família.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.20. 114 Sobre o tema, quando trata da função educativa e o pátrio poder, PERLINGIERI adverte: “O papel primário na satisfação da necessidade-direito à educação é portanto do casal. As intervenções, entre as quais assume um especial significado aquela do juiz, em via subsidiária, são orientadas a facilitar o normal andamento da família e a eliminar, por outro lado, os obstáculos, os abusos, os desvios. (...) O exercício do Pátrio Poder se concentra exclusivamente no interesse do menor. Interesse existencial, mais que patrimonial,

75

Nos casos extremos, em que se impõe aplicação de medidas aos pais, como a

colocação dos filhos em famílias substitutas, o que se observa na adoção ou na guarda

provisória, poderá ocorrer a suspensão, a restrição ou a perda do poder familiar.

que deve ser individuado em relação às circunstâncias concretas, no respeito à historicidade da família.(...) É indispensável que o interesse do menor se realize não somente com a intervenção do juiz, mas sobretudo com uma organização da comunidade, através de instituições pluralisticamente entendidas, idôneas para constituir suportes destinados a realizar uma intensa atividade de colaboração e prevenção que facilite o cumprimento das complexas tarefas familiares e contribua a remover os obstáculos que mesmo de fato impeçam a sua atuação.” PERLINGIERI, Pietro. ob. cit. p. 259.

76

3 Da Suspensão à Perda do Poder Familiar

A autoridade paterna, com a constitucionalização do direito civil, em especial no

que tange às normas de direito de família, não ficou imune a esta publicização,

considerando-se um munus, em que se ressaltam os deveres, sujeitos à intervenção estatal.

No exercício deste munus se verifica a preponderância, mencionada anteriormente,

do interesse da criança ou do adolescente, no intuito maior de realizá-los como pessoas em

formação.

Por sua vez, o legislador prevê que, havendo lesão aos direitos dos filhos, crianças

ou adolescentes, visando preservar a formação da personalidade destes, o Estado possa

realizar o controle ostensivo sobre os detentores deste poder familiar, pais ou

responsáveis. Este controle ostensivo poderá resultar na suspensão, na restrição e até

mesmo na perda da autoridade parental.

O Estatuto da Criança e do Adolescente trata de reconhecer que as medidas

protetivas ali garantidas são aplicáveis sempre que os direitos previstos no estatuto sejam

violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, conforme se observa da

leitura do inciso II do art. 98.115

A falta se caracterizaria por uma ação comissiva do pai que causa lesão à

personalidade do filho. A omissão um ato omissivo, ou seja, o pai ou responsável deixa de

praticar, por negligência, um ato exigido por lei, que causa dano ao filho; e a terceira

hipótese seria o abuso de direito.

As duas primeiras hipóteses, portanto, dizem respeito a atos comissivos ou

omissivos atentatórios à personalidade do filho. A última figura se refere ao abuso de

direito, hipótese referendada pelo Código Civil, no art. 1.637,116 não se restringindo, no

Estatuto da Criança e do Adolescente, à matéria patrimonial.

No caso, o Estatuto reprime também o abuso de direito em relação aos direitos da

personalidade dos filhos, ou seja, também impede que, em nome dos direitos subjetivos 115 Art. 98 do ECA – “As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:(...) II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável.” 116 Art. 1.637 do Código Civil – “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.”

77

conferidos aos pais, sejam sacrificados os valores atinentes à tutela da personalidade da

criança, já que o poder familiar deve ser exercido voltado ao interesse e ao bem-estar do

filho, preservando-se sua dignidade como pessoa humana.117

O art. 1.637 do Código Civil, conforme mencionado, trata do abuso de autoridade,

o que se dá quando o pai ou a mãe falta aos deveres inerentes ao poder familiar ou arruína

os bens dos filhos, caso em que poderá ser suspenso tal poder.

A suspensão pode ser total ou parcial para a prática de determinados atos, visando

a segurança do interesse do filho menor.

A atitude tomada pelos pais que não atentem à finalidade do instituto do poder

familiar, qual seja a proteção dos filhos, pode se verificar quando os mesmos utilizem de

modo indevido o patrimônio do menor; quando deixem de proporcionar educação àqueles,

submetendo-os à tarefa do lar ou a subempregos; quando deixem de prestar-lhes

assistência moral ou material; quando deixem os mesmos ao alvedrio das mazelas das

ruas; enfim, nas inúmeras hipóteses em que se descumpra o poder-dever que lhes cabe, é

possível a intervenção estatal, que pode até culminar na perda deste poder.

Por sua vez, o Código Civil traz, no já citado art. 1.638, as hipóteses em que pode

ocorrer a perda do poder familiar, sendo elas o castigo imoderado do filho; o abandono; a

prática de atos contrários à moral e aos bons costumes e a incidência reiterada na prática

do abuso de autoridade, prevista no art. 1.637.

Além da perda ou suspensão do poder familiar, existem as penas pecuniárias e as

restritivas, sobre as quais faz-se menção quando do estudo dos deveres e direitos

existentes entre pais e filhos.

117Tepedino traz exemplos de casos que se adequam à hipótese: “Merece destaque, em primeiro lugar, interessante caso atinente à guarda de filho menor, onde o pai separado judicialmente, alegando o direito de visita, opunha-se à viagem do filho de um ano e três meses para o exterior, em companhia da mãe, que pretendia permanecer seis meses em Londres, para a realização de um curso importante para a sua carreira. Na espécie, o filho, concebido durante a vida em comum, nasceu após a separação judicial, restando sob a guarda materna. A oposição do pai à viagem, não obstante decorresse do legítimo direito de visitar o filho menor, foi considerada ‘abusiva e injusta’ pela doutrina, diante do interesse do menor em não se separar da mãe, e da relevância da viagem para a carreira desta, com direta repercussão na formação da personalidade do filho. Em situação diversa, também foi considerado abuso de direito a recusa do pai em permitir que os filhos se avistassem com os avós, considerando-se o interesse do menor prevalente sobre a discricionariedade do pai, na titularidade do pátrio poder.” TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 425.

78

Interessa a conseqüência civil dos atos contrários à finalidade do poder familiar,

sendo certo que estes não excluem a possibilidade daquelas penalidades.

Voltando às hipóteses do art. 1.638 do Código Civil, diz-se que o campo de

incidência é aberto, sempre na perspectiva do melhor interesse da criança. A perda do

poder familiar é medida excepcional, que precederá de processo judicial, somente

permitida nos casos previstos em lei.118

A primeira hipótese é bastante criticada, já que há proibição expressa à prática de

lesões corporais, se vedando, para tanto, os castigos físicos, que configuram violência,

ainda que causem lesões leves. A violência doméstica é preocupação constante do

legislador, tendo gerado, inclusive, a edição de lei específica para estes casos (Lei

11.540/2006) com agravamento de penas e restrições a benefícios constitucionais àqueles

ofensores.

A tolerância ao castigo moderado, a contrario sensu do dispositivo legal, estaria

indo contra o princípio fundamental da Constituição da República, sendo atentatório à

dignidade humana, portanto, inconstitucional no que tange à autorização aos castigos

moderados.

O abandono do filho, inciso II do art. 1.638 do Código Civil, deve ser visto como

aquele abandono injustificado, lembrando sempre da excepcionalidade da medida que

suprime o poder familiar.

Todas as hipóteses capazes de acarretar a perda do poder familiar deverão ser

objeto de análise, no caso concreto, uma vez que sopesando as provas e razões trazidas se

chegará à solução que atenda ao melhor interesse da criança.

3.1 O contra sensu da perda do poder familiar

Ressalvadas as hipóteses em que se observa como melhor interesse da criança a

perda do poder familiar, esta parece um contra sensu quando se está diante do abandono

moral.

118 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Do direito de família. Do direito pessoal. Das relações de parentesco. Vol.XVIII. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.259.

79

O abandono moral que, em tese, justificaria a perda do poder familiar, já que se

enquadra em uma das hipóteses antevistas pelo legislador, que integram o tipo do artigo

1.638 do Código Civil, poderá ocorrer sem que, necessariamente, se verifique o abandono

material.

Aquele pai ou aquela mãe ausente, que cumpre com seu dever alimentar, poderá se

ver isento dos deveres inerentes à paternidade, caso ocorra a perda do seu poder familiar

diante do abandono moral.

O poder familiar é, antes de tudo, um dever, como já salientou-se anteriormente,

não podendo ser sequer transferido, daí a excepcionalidade das causas que podem

acarretar a suspensão ou perda deste munus.119

Parece que seria o caso de privilegiar conduta contrária à lei. Portanto, apenar o pai

ou a mãe ausente moralmente com a perda do poder familiar, em algumas hipóteses, seria

um benefício concedido ao infrator.

Este abandono poderá gerar não somente a tipificação dos crimes já relacionados

anteriormente no presente estudo, como também aquela infração administrativa, cuja

sanção é de ordem pecuniária, prevista no artigo 249 do Estatuto da Criança e do

Adolescente, esta sim capaz, caso devidamente aplicável aos casos concretos, de compelir

aqueles ao cumprimento dos deveres inerentes ao exercício da paternidade, que não deve

ficar ao alvedrio da vontade própria daquela pessoa maior e capaz de realizar as suas

escolhas de vida, dentre elas, as de maior importância, no que tange à pessoa humana, a de

ser pai ou mãe, já que inafastáveis para a formação desta.

Nesta esteira de entendimento, não é dado ao pai ou mãe ausente, que deixa o filho

ao alvedrio da própria sorte, no que tange à formação da personalidade, alegar a seu favor

motivo justo para a obtenção de um verdadeiro benefício, a perda do poder familiar, já que

ninguém, em direito, pode alegar a própria torpeza em proveito próprio.

119 Ensina FACHIN quanto às características das relações familiares: “(...) a intransferibilidade. Posições jurídicas indelegáveis. Não se transfere a condição de pai como se transmite a condição de proprietário. Quem é titular de um objeto que está no tráfego jurídico pode, obviamente, desfazer-se dessa titularidade. Todavia, quem é titular de uma posição jurídica no Direito de Família não pode dela se desfazer. É regra que comporta exceções, como na destituição da autoridade parental. Assim mesmo, intransferível ao se tratar de estado (status) da pessoa, isto é, de sua qualificação jurídica. Esse estado da pessoa não pode ser objeto da relação jurídica.” Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Direito de Família. Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.76.

80

A perda do poder familiar, nestes casos, resultaria em verdadeiro benefício,

privilegiando-se o genitor ausente.120

A falta de afeto não é a única perda irremediável com a destituição do poder

familiar; poderá também acarretar o abandono material, este sim impassível de dúvida,

quer na doutrina, na jurisprudência e na legislação, como inadmissível e punível, com lei

especial que o garante, a lei de alimentos.

Desta forma, deve ser analisada a verdadeira razão para a perda do poder familiar,

com o estudo, inclusive, quanto à não-incidência em determinadas hipóteses de abandono

moral, a não ser que se exclua desta perda os deveres oriundos das relações paterno-filiais,

entre eles o dever à prestação de alimentos.

120 A propósito Bernardo Castelo Branco, comenta sobre o abandono material que pode ser objeto de analogia ao abandono moral: “A natureza essencial daquele dever se traduz na circunstância de poder ser reclamado até mesmo quando os pais tenham sido destituídos do poder familiar, como defende Santos Neto ao afirmar que: ‘Não poderia ser diferente, porque, do contrário, a perda do pátrio poder apresenta caráter punitivo, acabaria por premiar os infratores, liberando-os do encargo que descumpriram. A medida destina-se a privá-los de prerrogativas, e não livrá-los de responsabilidades. É a interpretação que se impõe à luz da proteção aos interesses dos menores’.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.190.

81

4 A Necessidade de se Responsabilizar o Abandono Moral

A par desta idéia, surgem as vozes no sentido de se responsabilizar civilmente

aquele pai ou mãe ausente, que abandona moralmente o filho, em que pese cumprir com a

obrigação material de sustento deste.

Ante a importância de todos os princípios fundamentais, do novo paradigma do

direito civil constitucional, no qual as normas de direito público têm maior aplicação junto

ao direito privado, em especial ao direito de família e a sua nova cara, transmudada a

conceituação do próprio instituto da família, visto agora como meio de promoção e

desenvolvimento da personalidade de seus membros, a ausência injustificada do pai ou da

mãe deve ser rechaçada, sob pena de causar ao filho perda irreparável, podendo ser

atingida sua dignidade, ante, sobretudo, à falta das raízes e origens que estruturam a

personalidade humana.

A valorização das funções afetivas de seus membros, transformando o núcleo

familiar em refúgio aos dissabores do dia-a-dia, verdadeira função da família, deve ser

resguardada, inclusive, quanto às ações de seus próprios membros.

A aura de impenetrabilidade que se criou em torno das relações familiares não mais

se justifica. As lesões porventura causadas por ações praticadas dentro destas relações

deverão, assim, se sujeitar às regras da responsabilidade civil.121

O melhor, com certeza, para as relações familiares não consiste na reparação civil.

O ideal seria que a solução para as divergências familiares, os percalços aos quais estão

sujeitos os seres humanos, nas suas trocas e convivências, se desse no âmbito destas

próprias relações, sem que houvesse necessidade de intervenção do Estado.

O respeito, a compreensão e o afeto, e ainda todos aqueles direitos e deveres

oriundos da relação familiar deveriam pautar as condutas dos membros familiares, sendo

desnecessário o recurso a soluções outras, muito menos a de ressarcimento de danos.

121 Neste sentido, Bernardo Castelo Branco: “(...) a idéia segundo a qual as relações de família são impermeáveis às regras da responsabilidade civil já não encontra sentido, à medida que os diferentes membros desse núcleo social, não importando o papel em que nele exerçam, gozam de ampla proteção relativamente aos direitos dos quais são titulares, especialmente os ligados à personalidade, sendo inadmissível que os responsáveis por eventual violação permaneçam imunes à respectiva sanção, mesmo quando a infração se dê nos limites de uma relação jurídica de caráter especial, como é a relação de direito de família.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.19.

82

Na realidade das relações humanas, em especial e hodiernamente nas relações

familiares, se está sempre diante de desavenças, em que prevalece o egoísmo, a violência,

a intolerância, a ausência de seus membros.

No âmbito das relações entre pais e filhos, estas condutas, por vezes, têm o condão

de lesionar os filhos, conforme já ressaltado, atingindo a sua dignidade humana.

O poder familiar deve ser exercido pelo pai ou pela mãe, no sentido de serem

resguardados os direitos da personalidade dos filhos, de ser garantida a formação da

pessoa humana, tendo como idéia central o fato de que os filhos necessitam de maior

proteção em relação a estes direitos e que, portanto, este deve ser o seu verdadeiro

intuito.122

Compreendendo estas idéias, se pretende, a partir de agora, uni-las ao principal

objetivo da ordem jurídica, de proteger o lícito e reprimir o ilícito.

A intenção, ao certo, não é patrimonializar o direito de família, tampouco

propugnar a obtenção de vantagens econômicas nas relações familiares, substituindo o

afeto e todas as suas vertentes, essenciais à formação da pessoa humana, por indenizações

pecuniárias, tornando patrimoniais os vínculos familiares.

O que se pretende é, diante dos princípios constitucionais, da releitura do direito

civil, analisar de forma diferente as relações familiares, para que se possa coibir os atos

praticados no interior destas relações, capazes de causarem lesões aos direitos da

personalidade dos filhos, em especial no que tange à ausência da figura paterna ou

materna, lesões de cunho extrapatrimoniais, ensejadoras de danos morais.

Tomados de uma nova consciência, em especial, o fato de que tais condutas

poderão gerar indenizações futuras, a esperança é criar uma nova mentalidade naqueles

pais e mães ausentes que tanto mal causam a seus rebentos. O ressarcimento, nestes casos,

seria, portanto, um instrumento sancionador e inibidor das ofensas aos direitos

fundamentais do ser humano, no intuito de coibir as condutas que prejudiquem os filhos na

relação familiar.123

122 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. p.20. 123 Neste mesmo sentido Bernardo Castelo Branco: “(...) a reparação pecuniária, nesse caso particular, não se constitui em meio insidioso de enriquecimento à custa da desagregação familiar, mas um instrumento ao mesmo tempo sancionador e inibidor dessas ofensas.”, ob. cit, p. 22.

83

III – AUSÊNCIA DE AFETO E O DANO MORAL SANCIONATÓRIO

1 Evolução da Responsabilidade Civil – Uma síntese apertada

A responsabilidade, fenômeno da vida social, encontra sua noção jurídica, antes

mesmo da codificação, seja na Lei do Talião, no Código Hamurabi ou na Lei das XII

Tábuas. Ainda que não passasse de um direito à vingança, a responsabilidade existe desde

o início das comunidades, segundo notoriamente se tem notícia.124

Por sua vez, os princípios gerais da responsabilidade civil são notados através da

expressão latina “Honeste vivere, alterum non laedare, suum cuique tribuere”. Seriam

eles: viver honestamente, não ofender a outrem, dar a cada um o que é seu.

Aquele que se via lesado, ofendido, ia buscar sua vingança, a seu próprio modo e a

seu livre arbítrio, não sendo esta vingança reprimida e tampouco mensurada, tendo-se em

conta tão somente o mal praticado, sem que fosse questionada a voluntariedade da conduta

que o teria ocasionado.

Esta vingança sem limites dura até a Lei do Talião, quando passa a vigorar a idéia

da correspondência, o “olho por olho, dente por dente”. Tal solução fora questionada por

Cristo, segundo quem a melhor solução seria a da misericórdia.

Evoluindo, ainda na Antigüidade a vingança passa a ser substituída pela

composição ou ressarcimento, ficando exclusivamente a critério do lesado a maneira de

ser ressarcido ou composto o dano.125

A composição ou ressarcimento, a critério do lesado, com um verdadeiro quadro de

compensações, é o que se nota no Código de Hamurabi e na Lei das XII Tábuas e, ainda,

na atualidade, entre algumas comunidades islâmicas, prevendo diferentes penas corporais

para delitos contra a vida, a honra e, inclusive, delitos contra o patrimônio.

No direito romano prevalece a distinção entre os delitos praticados. Caso fosse

atingida a ordem pública a reparação importava em pena, desde patrimonial até castigos e

a morte; sendo a ofensa de caráter privado, a reparação tinha caráter econômico.126

124 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.17. 125 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. p. 17. 126 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.34.

84

A solução romana faz emergir, através da Lei Aquília, a responsabilidade subjetiva

fundada na culpa. A Lex Aquilia, no dizer de Carlos Roberto Gonçalves, se torna o germe

da jurisprudência clássica e fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana.127

A responsabilidade civil fundada na culpa, a responsabilidade subjetiva, evolui,

abandonando-se a idéia da Lei de Talião e das XII Tábuas, consolidando-se a

possibilidade de reparação sempre que houvesse culpa, ainda que em grau leve.

O direito romano, em especial a lei aquiliana, influencia o direito francês, alçando

a culpa à condição de aspecto central da responsabilidade civil, o que se verifica no

Código de Napoleão de 1804, em que há todo o desenvolvimento da teoria da

responsabilidade subjetiva, com sua sistematização que, por sua vez, se reflete em todas as

legislações romano-germânicas posteriores, inclusive a brasileira.

A teoria da responsabilidade civil subjetiva foi adotada pelo legislador brasileiro no

Código Civil de 1916, conforme se observa da leitura do art. 159: “Aquele que, por ação

ou omissão voluntária, negligência, ou imperícia, violar direito, ou causar prejuízo a

outrem, fica obrigado a reparar o dano.”

Todavia, a evolução da responsabilidade civil não pára por aí.

Diante das injustiças observadas com a Revolução Industrial, a partir da qual a

existência de barbáries e a discrepância entre as classes sociais se fazem presentes pela

influência cada vez maior do capital, a culpa restou inviável de ser comprovada em

determinadas situações, prevalecendo razão sempre aos mais fortes, restando ao lesado a

resignação.

A situação leva ao aprofundamento da teoria da responsabilidade objetiva, já nos

meados do século XIX, principalmente na França, tendo como precursores da idéia

Josserand, Georges Ripert, Savatier, seguidos pelos brasileiros Clóvis Bevilácqua, Alvino

Lima, Agostinho Alvim, José de Aguiar Dias, Orlando Gomes e San Tiago Dantas.128

Através da responsabilidade objetiva se pretendia dar maior atenção às vítimas,

adquirindo importância a teoria do risco, na qual a responsabilidade se assenta na mera

prática da atividade perigosa ou na utilização de instrumentos de produção que oferecem

risco pela manipulação ou controle.

127 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.5. 128 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Op. cit. p. 34 e STOCCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 76.

85

A responsabilidade, assim, surge exclusivamente do fato, não se questionando a

culpa na conduta. Importa a esta teoria assegurar o ressarcimento, verificando-se tão-

somente se ocorreu o evento e deste emanou o prejuízo, sendo o autor do fato o

responsável.

A matéria gera inúmeras controvérsias na doutrina. Alguns não admitindo a teoria

do risco, outros entendendo-a como substitutiva da doutrina da culpa. Prevalece a idéia

atual de que as duas teorias convivem, a culpa como a noção básica e o princípio geral

definidor da responsabilidade e a teoria do risco restrita às hipóteses especialmente

previstas.129

O princípio da responsabilidade civil objetiva já encontrava seu lugar no direito

brasileiro, antes do advento do Novo Código Civil, casuisticamente em artigos para casos

específicos do Código Civil (arts. 1.521 a 1.523 do CC/1916), na legislação sobre acidente

de trabalho, na que regulava as relações de transporte, na Constituição da República de

1988 (art. 37, §6°, responsabilidade civil do Estado), no Código de Defesa do

Consumidor.

O Novo Código Civil de 2002, por sua vez, contempla a proteção com base na

culpa e na atividade de risco, contendo cláusulas gerais, tanto para a responsabilidade

subjetiva como para a objetiva (arts. 186, parágrafo único do 927, 187, 936, 937, 939,

928).

Conclui-se, com a apertada síntese da evolução da responsabilidade civil que, ao

lado do direito de família, esta demonstra ser instituto sujeito a profundas transformações,

tendo levado Louis Josserand a afirmar que o termo mais adequado para se referir ao que

ocorreu com a responsabilidade civil seria revolução, já que tão rápido e fulminante o

movimento que a levou aos novos destinos.130

A responsabilidade civil passa a ter importância extremamente relevante como

instrumento de equilíbrio social capaz de promover a sanção e a prevenção de condutas

lesivas aos interesses individuais e coletivos, a fim de garantir a máxima moral do

princípio do neminem ladere.

129 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.271. 130 JOSSERAND, Louis. Evolução da Responsabilidade Civil. Trad. De Raul Lima. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 548.

86

A evolução ou revolução por que passou o ramo da responsabilidade civil traz à

atualidade a noção da responsabilidade fundada muito mais na importância da pessoa

humana e em sua dignidade. A proteção da pessoa humana faz com que o direito civil

abandone o seu caráter meramente patrimonial e passe a se dedicar à tutela dos direitos

fundamentais, surgindo, assim, a reparabilidade dos danos essencialmente morais.

1.1 Visão Geral dos Pressupostos da Responsabilidade Civil Subjetiva: a Conduta

Culposa, o Nexo Causal e o Dano

No que tange à responsabilidade subjetiva ficou claro que a mesma se funda na

culpa, se concretizando no ato ilícito, sendo necessário os seguintes pressupostos para sua

caracterização, quando extracontratual: conduta culposa, nexo de causalidade e dano.

No Código Civil de 2002, a responsabilidade civil subjetiva que faz parte da

essência do Direito, da sua ética e moral, decorrendo do princípio de que ninguém pode

causar dano a outrem, encontra, no dizer de Sérgio Cavalieri Filho, verdadeira cláusula

geral, com a conjugação dos artigos 186 e 927, uma vez que dispõe o artigo 927 que

aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo, sendo o ato

ilícito conceituado, no art. 186, como aquela ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, que viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.131

O art. 186 do Código Civil, portanto, traz expressamente os pressupostos da

responsabilidade civil subjetiva. A conduta culposa que causa dano a outrem ensejando o

dever de reparar que adquire relevância jurídica, seja ela caracterizada por uma ação ou

omissão.

Trata-se da exteriorização da atividade humana através de um comportamento

voluntário. A ação seria a forma mais evidente da exteriorização desta conduta, sendo

juridicamente relevante, em matéria de responsabilidade civil, quando cause lesão a

outrem que enseje o dever de reparação.

131 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 23.

87

O mesmo se revela nas condutas omissivas, em que o deixar de fazer tem o condão

de causar lesão a outra pessoa, passível de reparação; é a inatividade, abstenção de uma

conduta devida, é aquilo que se faz não fazendo.132

A relevância da conduta omissiva se verifica quando o agente causador tem o dever

jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado danoso. Este dever advém da

lei, do negócio jurídico ou da própria conduta anterior que cria o risco do resultado.133

Ressalte-se que a conduta culposa voluntária, pressuposto da responsabilidade

civil, é aquela em que basta que exista um mínimo de participação subjetiva, uma

manifestação do querer suficiente para afastar o resultado puramente mecânico; a culpa

relevante para a responsabilidade civil é aquela ampla, englobando o dolo e a culpa.

O dever de cuidado deve nortear a conduta humana, isto é, esta deve ser pautada de

modo a não causar dano a ninguém.

Por sua vez, o desrespeito ao dever que origine um prejuízo, ou seja, o resultado

causado pela violação do dever, caracteriza o nexo causal, outro pressuposto da

responsabilidade subjetiva. A relação entre o dano e a conduta.

É preciso, portanto, que haja uma relação de causa e efeito entre a conduta ilícita

praticada pelo agente e o dano sofrido pela vítima.

O nexo causal é de suma importância para a caracterização da responsabilidade

civil, podendo haver responsabilidade sem culpa, mas não sem nexo de causalidade, sendo

assim elemento indispensável para a responsabilidade civil.

Concluindo, o nexo causal é elemento necessário para se identificar quem foi o

causador do dano, se o dano causado teve origem naquela conduta do agente. Assim, para

se intentar a ação de reparação é preciso demonstrar que sem o fato alegado o dano não se

teria produzido.134

O último dos pressupostos, o dano, é igualmente essencial para que se caracterize a

responsabilidade civil, já que sem dano não haveria que se falar em ressarcimento. Pode

haver responsabilidade penal, mas não civil. 132 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Op.cit. p. 24. 133 Novamente CAVALIERI, concluindo: “Em suma, só pode ser responsabilizado por omissão quem tiver o dever jurídico de agir, vale dizer, estiver numa situação jurídica que o obrigue a impedir a ocorrência do resultado. Se assim não fosse, toda e qualquer omissão seria relevante e, conseqüentemente, todos teriam contas a prestar à Justiça.” CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. ob. cit. p. 25. 134 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.107.

88

A indenização sem dano caracterizaria o enriquecimento sem causa, rechaçado

pelo ordenamento jurídico, sendo o objetivo da indenização a reparação do dano sofrido,

seja ele material ou simplesmente moral (art. 186 do CC).

Se a vítima não sofrer prejuízo não haverá ressarcimento, não sendo o dano,

portanto, fato constitutivo do direito, mas determinante do dever de indenizar.135

Assim, o dano é corolário natural da responsabilidade civil e a vítima deverá

comprovar o prejuízo para ser indenizada. Provado o dano, procura-se a reparação através

da reposição das coisas como eram antes. A idéia é repor as coisas ao status quo ante.

Não sendo viável a reparação ao status quo ante se faz necessário que o

ressarcimento se dê através de substituição, que se verifica, geralmente, em espécie, ou

seja, através do pagamento de perdas e danos.

O dano sofrido poderá se caracterizar por um dano material ou moral. O material

atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima. Neste patrimônio se incluiriam não

somente os bens patrimoniais propriamente ditos, como os bens personalíssimos, tais

como o nome, a saúde, a imagem, etc., o dano patrimonial indireto.

O dano moral se caracterizaria como aquele que não é material, que diz respeito a

sofrimento causado por perda não pecuniária.

1.2 A conduta omissiva do pai e da mãe, o dever legal de convivência, a lesão à

dignidade do filho e o nexo causal

Analise-se, à luz dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, a conduta

daquele pai ou daquela mãe, que possui um dever inerente ao estado de pai, do poder

familiar, o dever de convivência, unido ao dever de solidariedade e ao afeto como

elemento estrutural da pessoa humana, garantidor da formação desta pessoa humana, e

deixa de estar com a mesma, sem que haja qualquer excludente da ilicitude desta conduta,

se causadora de lesão à dignidade desta pessoa humana.

135 CAVALIERI conceitua: “o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é a lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão em patrimonial e moral.”CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 71.

89

Vislumbrada a conduta omissiva daquele que tem o dever constitucional de

garantir a formação da pessoa humana, através da ausência, frustrando o direito de

convivência da criança e do adolescente, e o nexo causal entre esta conduta ilícita e a lesão

da dignidade da pessoa humana, devidamente comprovada, resta evidente o dano moral

sofrido e o direito de ressarcimento.

A doutrina pátria vem se manifestando a respeito do tema de maneira esparsa e

mais voltada às outras lesões sofridas nas relações familiares, mas já há importantes

manifestações no sentido da reparação civil ante a ausência da figura do genitor.136

Considerando aplicável a teoria da responsabilidade civil ao direito de família,

corroborado pelos princípios constitucionais e a nova visão civil-constitucional do direito,

pelo que, somando-se toda aquela primeira parte do estudo a esta da responsabilidade

civil, em especial, o dano moral que se segue, faz-se necessária a adequação da hipótese a

fim de possibilitar ao intérprete sua aplicação ao dano moral entre pais e filhos,

principalmente, no que tange a ausência paterno-filial.

Desta forma, o que se pretende, conforme já se deixou claro anteriormente, não é

fomentar a discórdia nas relações familiares, tampouco patrimonializar estas relações,

antes sim, chamar aos pais e às mães a responsabilidade pelos danos morais causados a

seus filhos.

2 O Dano Moral e a Evolução Histórica

A responsabilidade pelos danos causados ao outro é o meio ou o modo de impor a

todos o dever de responder por seus atos, traduzindo, assim, a noção de Justiça existente

no grupo social estratificado.137

A teoria da responsabilidade civil visa a restabelecer o equilíbrio da ordem ou o

equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais ou materiais advindos

136 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil in Jurisprudência Comentada por Maria Celina Bodin de Moraes – RBDF n° 31. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 137 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 60.

90

das condutas lesivas ao interesse do outro. É a tradução do dever moral de não prejudicar o

outro, ou seja, o neminem ladere.

Havendo lesão ao direito do outro, o lesado tem direito a buscar, visando ao

equilíbrio social, a reparação jurídica a esta lesão, recorrendo ao Judiciário, que não

poderá negar o reconhecimento, caso comprovado.

Surgirá a responsabilidade civil e o direito à reparação do dano quando ocorrer a

conduta culposa, o nexo causal e o dano. A conduta poderá ter caráter comissivo ou

omissivo, podendo o ato ser lícito ou ilícito. O dano se caracteriza pela perda de um bem

ou pela diminuição parcial ou total do bem, enquanto que o nexo causal é o liame entre a

ação e o dano, a relação direta entre a conduta e o resultado lesivo.

A responsabilidade civil poderá ser subjetiva, embasada na culpa, e deverá ser

examinada a vontade presente na ação, se dolosa ou culposa, ou objetiva. Não será

discutida a culpa, bastando o risco, ou seja, deverá ser verificado o nexo causal entre a

ação e o dano.

O dano causado pelo ato lesivo poderá ser tão-somente de cunho material, de

cunho material e moral ou tão-somente de cunho moral. Enquanto o dano material tem

como efeito um prejuízo econômico ou pecuniário, que pode ser objeto de análise

matemática, o dano moral refere-se a prejuízos, inúmeras vezes incalculáveis, já que diz

respeito aos sentimentos, ao afeto, ao intelecto da pessoa lesada, aos direitos

personalíssimos, às lesões à dignidade da pessoa humana.

A teoria do dano moral sofreu resistência para se firmar, tendo, aos poucos,

vencido posições contrárias, até vir a ser assegurada pelo texto constitucional.

Inicialmente, os doutrinadores não reconheciam a reparação do dano moral, se

negava sua ressarcibilidade por ser o mesmo inestimável. Assim, sob a égide do Código

Civil de 1916, a indenização por morte se restringia aos danos materiais e à prestação de

alimentos, nos termos do art. 137 daquele Diploma Civil.

Posteriormente esta passou a ser possível quando autônoma, ou seja, quando não

viesse cumulada com o dano material, argumentando-se que o dano material absorveria o

dano moral.

91

Mais adiante, o STF passou a admitir que o ressarcimento pelo dano moral fosse

pleiteado cumulativamente com o dano material, desde que quem o pleiteasse fosse a

própria vítima.138

A indenização pela morte de filho menor foi o marco para a mudança de

pensamento do direito em relação ao dano moral, culminando com o verbete n° 491 da

Súmula do STF: “É indenizável o acidente que causa a morte de filho menor, ainda que

não exerça trabalho remunerado.”139

Ainda que houvesse um resquício de fundamento no dano material, causado pela

perda da expectativa de colaboração do filho no custeio da família, restou evidente a

intenção de indenizar o sofrimento causado pela perda.

A reparação pelo dano moral não busca o retorno ao status quo ante, já que em

sede de dano moral o que se busca não é restaurar aquilo que não se pode reconstruir, mas

tão-somente amenizar a dor sofrida pelo ato praticado.140

A consagração desta idéia se verifica ante a mudança da consciência coletiva

acerca do conceito de justiça, passando a ser evidente o que antes era inconcebível, não se

podendo ignorar que não era a dor que estava sendo paga, mas a vítima é que estava sendo

compensada em dinheiro no intuito de que lhe fosse abrandada a dor sofrida. 141

No direito brasileiro, esta consagração da reparabilidade do dano moral ocorre com

a Constituição da República de 1988 elegendo a dignidade humana como um dos

fundamentos do Estado Democrático de Direito, caracterizando o direito subjetivo

138 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 79. 139 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.251. 140 Argumenta Wilson Melo da Silva em sua obra clássica sobre o dano moral: “Na ocorrência da lesão manda o direito ou a eqüidade que se não deixe o lesado ao desamparo de sua própria sorte. E tanto faz que tal lesão tenha ocorrido no campo de seus bens materiais ou na esfera daqueles outros bens seus, de natureza ideal. O que importa, o que é mister, é a reparação, pelo critério da equivalência econômica, num caso, ou pelo critério da simples compensação, de mera satisfação, como o queiram, no outro. Estar-se-ia diante de um dano a cuja reparação prover-se, esta é que a realidade. E muito embora, na hipótese do dano moral, a reparação se torne um tanto ou quanto dificultosa, não poderíamos, por isso, negar-lhe reparação. Seria ilógico, absurdo e mesmo injurídico que uma dificuldade de ordem material contribuísse para uma injustiça. A pureza de um princípio não poderia, jamais, ser imolada a uma questão contingente.” SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.561. 141 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Ob. cit. p. 147.

92

constitucional à dignidade, concedendo ao dano moral maior dimensão, sob o

entendimento de que qualquer violação do direito à dignidade se traduz em dano moral. 142

Por sua vez, o Código Civil de 2002 se refere expressamente ao dano moral em seu

art. 186, tornando inócua qualquer discussão a respeito da reparação pelo dano moral. 143

No direito brasileiro, portanto, o dano moral ganha patamar constitucional, ao ter a

Constituição da República de 1988, eleito como fundamento do Estado Democrático de

Direito, a dignidade humana assentada na idéia de reparação do dano moral como eficaz

instrumento de garantia daquele valor fundamental.

2.1 A constitucionalização do dano moral

Esta verdadeira constitucionalização do dano moral, a par da constitucionalização

do próprio direito civil, não pode mais ser ignorada por seus operadores. Para tanto, a

solução para os conflitos não se encontra estagnada a um dispositivo legal. O ordenamento

jurídico inteiro deve ser analisado para a solução da querela, em particular os princípios

constitucionais fundamentais, que caracterizam a verdadeira base desta interpretação.

A dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, nova determinante

constitucional, tem na tutela da pessoa humana e na sua dignidade o objetivo a ser

perseguido em sede de responsabilidade civil. Tal assertiva se verifica partindo-se da

premissa de que a unidade do ordenamento jurídico é dada pela tutela à pessoa humana e à

sua dignidade.144

O Código Civil, por sua vez, deve ser interpretado de acordo com esta nova

determinante, qual seja, interpretado segundo a Constituição; assim, também os

dispositivos que tratam da pessoa humana e de sua dignidade e, conseqüentemente, do

dano moral, visto este como instrumento garantidor da reparação de possíveis lesões à

dignidade.

142 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros Editora, 2003, 4ª edição. p. 95. 143 BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.47. 144 Neste sentido, Maria Celina Bodin de Moraes, para quem a unidade do ordenamento é dada pela tutela da pessoa humana e de sua dignidade. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003. p. 182.

93

O objetivo perseguido pelo ressarcimento do dano moral é garantir a dignidade da

pessoa humana em qualquer situação da vida social em que algum aspecto de sua

personalidade esteja ameaçado ou tenha sido lesado.145

A Constituição, nesta esteira deste raciocínio, torna expressamente possível a

reparação do dano moral como instrumento posto à disposição daquele que porventura

vier a sofrer lesão não puramente patrimonial. Isto se observa com a leitura de alguns

dispositivos constitucionais (art. 5°, incisos V, X). Constitucionalizado, assim, o dano

moral.

2.2 A Difícil Tarefa de Conceituar o Dano Moral

Ultrapassada a questão da indenização ou não do dano moral que teve seu percurso

sombrio findando na constitucionalização, a fim de proporcionar a proteção total à

dignidade da pessoa humana, passa-se à discussão a respeito da conceituação do dano

moral, à discussão do que se constitui afinal em dano moral.146

Alguns conceituam o dano moral partindo de um conceito negativo, ou seja, o dano

moral como todo aquele que não tivesse cunho patrimonial, isto é, dano moral é qualquer

sofrimento que não é causado por perda pecuniária, que não atinge o patrimônio da vítima.

Por outro lado, há o conceito positivo, segundo o qual o dano moral seria a dor,

vexame, sofrimento, angústia, desconforto, humilhação, enfim, a dor da alma.147

Para Pontes de Miranda o dano moral é aquele que só atinge o ofendido como ser

humano, sem que haja repercussão no patrimônio.148

Wilson Melo da Silva define o dano moral como a lesão sofrida pelo sujeito em

seu patrimônio ideal, entendendo como patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio

material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. Para o

145 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. ob. cit. p. 182 146 Neste sentido, Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho: “Enfim, o que configura e o que não configura o dano moral? Este é o ponto de partida para o equacionamento de todas as questões relacionadas com o dano moral, inclusive quanto à sua valoração.” DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. XIII. coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.99. 147 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 79. 148 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Vol. XXVI. Rio de Janeiro: Forense. 1996. p.30.

94

autor, o elemento característico do dano moral é a dor, tomando o termo em sentido

amplo, abrangendo os sofrimentos físicos e morais.149

Conceituando o dano moral, José de Aguiar Dias, para quem o dano é uno, não se

devendo discriminar o mesmo em patrimonial e extrapatrimonial em atenção à origem,

mas aos efeitos, afirma que o dano moral é a reação psicológica à injúria, são as dores

físicas e morais que o homem experimenta em face da lesão. 150

Arnaldo Rizzardo, por sua vez, aduz que o dano moral é aquele que atinge direitos

eminentemente espirituais ou morais, como a honra, a paz, a liberdade física, a

tranqüilidade de espírito, a reputação, entre outros, sem repercussão no patrimônio do

lesado, atingindo somente valores precípuos da vida, como a paz, a liberdade individual, a

integridade física, a honra, a tranqüilidade de espírito e demais sagrados afetos.151

O Superior Tribunal de Justiça exclui do rol do dano moral os aborrecimentos

triviais a que estão sujeitos os cidadãos no dia-a-dia, como as filas de atendimento, a falta

de estacionamentos, os engarrafamentos etc.152

Neste sentido, Sergio Cavalieri afirma que só deve ser reputado como dano moral,

a dor, o vexame, o sofrimento ou a humilhação que interfira de modo anormal no

comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústias e desequilíbrio

em seu bem-estar.153

149 SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.01 e 02. 150 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.740/741. 151 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.246. 152 “Responsabilidade civil. Multa de trânsito indevidamente cobrada. Repetição de indébito. Indenização. Dano moral. Dano presumido. Valor reparatório. Critérios para fixação. (...) 3. Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc. No caso dos autos, o autor foi obrigado, sob pena de não-licenciamento de seu veículo, a pagar multa que já tinha sido reconhecida, há mais de dois anos, como indevida pela própria administração do DAER, tendo sido, inclusive, tratado com grosseria pelos agentes da entidade. Destarte, cabe a indenização por dano moral. (...) 5. Recurso especial provido.” REesp. n° 608.918 – RS, da 1ª Turma, j. em 20.05.2004. 153 Continua: “Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exarcebada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da modalidade de nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são tão intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.” CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 80.

95

Afirma, ainda, que todos os conceitos tradicionais de dano moral tiveram que ser

revistos ante a ótica da Constituição de 1988, já que esta coloca o homem no vértice do

ordenamento jurídico, transformando-o em fio condutor de todos os ramos do direito.

Tendo a Constituição consagrado a dignidade humana como verdadeiro direito subjetivo

constitucional, deu ao dano moral nova feição e maior dimensão, já que a dignidade é a

base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos; assim,

dano moral nada mais é do que violação do direito à dignidade.154

Yussef Said Cahali, para quem parece mais razoável caracterizar o dano moral por

seus próprios elementos, entende como dano moral tudo aquilo que molesta gravemente a

alma humana, ferindo-lhe seriamente os valores fundamentais inerentes à sua

personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, não havendo,

portanto, como enumerá-los exaustivamente.155

Da mesma forma, Carlos Alberto Bittar qualifica os danos morais como aqueles

danos em razão à esfera da subjetividade, do plano valorativo da pessoa na sociedade. 156

Na visão contemporânea de Maria Celina Bodin de Moraes, constitui dano moral a

lesão a qualquer dos aspectos componentes da dignidade humana – dignidade esta que se

encontra fundada em quatro substratos e, portanto, corporificada no conjunto dos

princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade.157

Diante dos inúmeros conceitos se pretendeu e se pretende dar ao dano moral a

relevância do deslinde da questão, se faz importante se passar à discussão sobre a

indenização do referido dano, já que o mesmo, segundo o entendimento contemporâneo de

Cavalieri e Maria Celina, se constitui por lesão à dignidade humana, valor supremo do

Estado Democrático de Direito, que se pretende garantir.

Ante a impossibilidade de se ressarcir o prejuízo sofrido através do retorno ao

estado anterior, já que o mesmo não se recompõe, se pretende, ao menos, compensar o mal

sofrido, a dor da alma, proporcionando ao lesado uma sensação de alento ou comodidade,

154 DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sergio. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. XIII. coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.101 e CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 80. 155 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2ª edição. 1998. p.20. 156 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. São Paulo: RT, 1992. p.41. 157 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.327.

96

através de uma reparação pecuniária, ao mesmo tempo em que se impõe ao responsável

pelo dano uma sanção.

A certeza da necessidade de indenizar o dano moral já se vai ao longe, com toda a

matéria legislada e eivada a patamar constitucional, mas a discussão sobre o caráter desta

indenização permanece.

2.3 O Caráter Compensatório e Sancionador

A evolução do dano moral a par de toda a revolução da responsabilidade civil,

tendo-se no dano o pressuposto daquela última, torna extreme de dúvida a sua reparação.

O dano moral deve ser indenizado, não se justificando, numa sociedade avançada,

que se repare somente o dano material, ainda que irrisório, e se deixem de lado as dores da

alma. Isto seria patrimonializar o direito, dizer que o legislador somente se interessa por

aquilo que tem valor econômico.158

A impossibilidade de se restaurar o status quo ante, portanto, não foi motivo

suficiente para impedir a superação da discussão e a consagração da reparação.

Assim, ainda que não se possa falar em indenização, por ser da origem da palavra a

devolução do patrimônio ao estado anterior, o que não se coaduna com o dano moral, uma

vez referente a lesão extrapatrimonial, não há que se olvidar da reparação.

A questão pode ser considerada como meramente terminológica já que o legislador

constitucional não fez distinção, conforme se observa do inciso X do art. 5° da CR, que se

refere à indenização do dano moral.

Deixada para trás a idéia de que só o tempo é capaz de curar as dores da alma, se

põe a questão da compensação ao dano sofrido.

A reparação se faz imperiosa, quer se dê pelo critério da equivalência econômica,

inviável no que diz respeito ao dano moral, quer pelo critério da compensação, da mera

158 Aguiar Dias, citando os irmãos Mazeaud: “Mazeuad e Mazeaud, analisando as teorias propostas para a solução da questão, pronunciam-se, com o seu grande prestígio, pela reparabilidade.(...).‘O direito, ciência humana, deve resignar-se a soluções imperfeitas como a reparação, no verdadeiro sentido da palavra. Cumpre ver, nas perdas e danos atribuídos à vítima, não o dinheiro em si, mas tudo o que ele pode proporcionar no domínio material ou moral.” DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994. 9ª edição. p.747.

97

satisfação, que se traduz pelo respeito por aquilo que se é (pessoas humanas) e não

somente por aquilo que se tem.159

O que se pretende com a reparação, portanto, nada mais é do que a compensação

do sofrimento experimentado através de indenização pecuniária que permita que o lesado

tenha experiências outras, visando a amenização das angústias e dissabores, como melhor

lhe convier.

A compensação poderá não ser aquela procurada, poderá não ser tão amenizadora

diante da imensa dor sofrida. Sendo certo que não se poder mensurar tal dor, estando a

mesma no caráter subjetivo do lesado, todavia se procura chegar o mais próximo possível

da reparação ou da satisfação do espírito.

O que não se pode admitir é voltar ao início das discussões a respeito dos institutos

e deixar sem reparação o lesado em sua dor moral, sob qualquer fundamento, muito menos

sob o fundamento da impossibilidade de simetria do dano ao ressarcimento.

Tampouco se deve afastar o ressarcimento, sob o argumento de que se criará uma

nova mentalidade nas relações, como fomentar a indústria do dano moral, a substituição

das condutas lícitas pelas reparações, o que inviabilizaria a condenação à indenização aos

pais ausentes, sendo fundamento este de algumas decisões contrárias ao ressarcimento.

Demonstrada a lesão à dignidade da pessoa humana, não há que se afastar a

reparação.

Indiscutível o caráter compensatório, melhor sorte não tem o caráter sancionador, o

punitivo.

Conforme salientado anteriormente, a divisão entre o direito público e privado

deixava a cargo do Estado a punição da lesão ao bem jurídico de ordem pública, enquanto

que ao particular restava buscar a indenização pelas lesões aos bens jurídicos de ordem

privada, daí a divisão entre o direito penal e o direito civil, considerando-se aqueles

primeiros, inicialmente, como exclusivamente de cunho penal. Por sua vez, a conduta que

estava sujeita à reparação civil restringia-se à conduta voluntária, negligente ou dolosa. 159 Neste sentido Wilson Melo da Silva: “O que se proclama, o que se repete a cada passo, é que os sofrimentos morais não se devem pesar ou medir segundo as regras clássicas da equivalência econômica ou segundo os mesmos modelos cânones usuais na pesagem dos puros danos patrimoniais.” E, continua: “A regra do neminem laedere é ampla. E para utilizarmo-nos do mesmo linguajar de IHERING, devemos e podemos esperar que se nos respeite não apenas naquilo que temos, mas, também, naquilo que somos.” SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.01 e 02.

98

Na responsabilidade penal há a investigação da culpabilidade do criminoso e da

anti-sociabilidade do seu ato; na responsabilidade civil destaca-se a pessoa da vítima,

buscando restaurar o direito violado, por meio de indenização dos danos que lhe foram

causados.160

A separação entre pena e indenização retirava da indenização qualquer conotação

punitiva, sendo exclusiva do Estado, e a reparação civil exclusiva do cidadão.

A indenização por dano moral se restringiria à compensação da lesão, excluída

qualquer conotação punitiva.

Todavia, embora esta seja a idéia inicial adotada pelo legislador ordinário, já que

não há qualquer dispositivo161 que contemple o caráter punitivo, a doutrina e a

jurisprudência atual têm inúmeros adeptos à punição.162

Para os adeptos do caráter sancionador do dano moral, a satisfação deste dano visa,

além de atenuar o sofrimento, prevenir ofensas futuras, fazendo com que o ofensor não

deseje repetir o comportamento, servindo, ainda, como exemplo, para que não se queira

imitá-lo.

A reparação do dano moral teria, segundo este entendimento, duplo aspecto,

compensatório e punitivo, este último impondo uma penalidade exemplar ao ofensor,

consistindo na diminuição do patrimônio com transferência da quantia ao patrimônio do

lesado.163

O caráter sancionador ou preventivo, aliás, foi considerado como princípio da

própria responsabilidade civil, estranhado o fato de nunca ter se dado a importância

160 SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Reparação Civil na Separação e no Divórcio. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 133. 161 “Adianta-se que o novo Código Civil, em nenhuma de suas numerosas disposições sobre a responsabilidade civil contempla o caráter punitivo.” MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.217. 162 CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, SILVIO RODRIGUES, SERGIO CAVALIERI, CARLOS ALBERTO BITTAR entre outros. Para Caio Mário: “Quando se cuida de dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: ‘caráter punitivo’ para que o causador do dano, pelo fato da condenação se veja castigado pela ofensa que praticou; e ‘caráter compensatório’ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.” Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997, 8ª edição, p. 55. 163 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Ob. Cit. p.219.

99

merecida ao referido princípio, ante o entendimento da prevenção como essencial para a

manutenção da ordem pública.164

A idéia está em fazer com que o lesante e a sociedade fiquem advertidos quanto à

inaceitabilidade da conduta, de modo que o valor da condenação punitiva se consubstancie

em montante expressivo, que faça com que este sinta a resposta da ordem jurídica aos

efeitos da lesão.

Ao lado desta idéia, a da teoria do desestímulo, cuida-se sempre para que não haja

o enriquecimento excessivo do lesado.165

Este caráter punitivo das indenizações detectado nos punitive damages americanos

e seus valores absurdamente fixados seriam objeto de infindáveis críticas, considerados

como causadores da crise da responsabilidade civil nos Estados Unidos, a partir dos anos

1990, tendo sido estabelecidos naquele país, em diversos Estados, tetos legais para as

indenizações a esse título.166

A versão punitiva não é totalmente estranha ao direito civil brasileiro. Encontra-se

algo parecido na cláusula penal. Esta não parece, contudo, ser a finalidade do direito civil

pátrio, cuja finalidade é a compensação que não se encontra na punição, função exclusiva

do Estado.

164 Aguiar Dias citando Marton sobre o tema. DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol.II. Rio de Janeiro: Forense, 1994.9ª edição. p.97/98. 165 A respeito do caráter pedagógico da reparação, vejamos a jurisprudência: - APELAÇÃO CÍVEL 2006.001.54973 - Des. Mauro Dickstein – julg.: 27/02/2007 – 16ª Câm. Cív. TJ/RJ – “Indenizatória. Danos morais. Autor atingido na calçada por espelho retrovisor. Condenação da ré no pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 2.000,00. Danos materiais consistentes em três dias de incapacidade, tomando-se por base o valor de um salário mínimo. Apelação. Provimento parcial. Afasta-se o requerimento de condenação da apelada em litigância de má-fé. Montante que não guardou a parcela de razoabilidade que deve nortear as indenizações desta natureza. Majoração do valor da reparação para quantia que melhor atenda ao caráter compensatório / pedagógico da indenização, que visa reprimir a conduta danosa e, ao mesmo tempo, satisfaça a compensação do sofrimento e da humilhação do lesado. Reforma da sentença. Provimento parcial do recurso”. E, no mesmo sentido o STJ: Resp. 355392/RJ Min. Rel. Castro Filho. “DANO MORAL. REPARAÇÃO. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO DO VALOR. CONDENAÇÃO ANTERIOR, EM QUANTIA MENOR. Na fixação do valor da condenação por dano moral, deve o julgador atender a certos critérios, tais como nível cultural do causador do dano; condição sócio-econômica do ofensor e do ofendido; intensidade do dolo ou grau da culpa (se for o caso) do autor da ofensa; efeitos do dano no psiquismo do ofendido e as repercussões do fato na comunidade em que vive a vítima. Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares, sem que sirva, entretanto, a condenação de contributo a enriquecimentos injustificáveis. Verificada condenação anterior, de outro órgão de imprensa, em quantia bem inferior, por fatos análogos, é lícito ao STJ conhecer do recurso pela alínea c do permissivo constitucional e reduzir o valor arbitrado a título de reparação. Recurso conhecido e, por maioria, provido.” (grifos nossos) DJ 17.06.2002 p. 258. 166 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.252.

100

Diz-se que adotando sem restrições o caráter punitivo, deixando-o ao arbítrio do

juiz, há o risco de ocorrer a violação do princípio constitucional da legalidade, segundo o

qual não há crime e não há pena sem lei anterior que os defina, fora as garantias

processuais penais.167

A reparação civil não poderia se traduzir, assim, em uma pena privada. A

responsabilidade civil visa a pessoa do ofendido e seu ressarcimento e não a pessoa do

ofensor. O que se pretende no juízo cível é recompor a conseqüência do delito, não se

cuidando do delito em si. 168

Diante de todas as querelas advindas da possibilidade ou não da adoção do caráter

punitivo nas questões do dano moral, esta parece ser merecedora de análise específica,

sendo aplicada somente a situações excepcionais, sérias e potencialmente causadoras de

lesões a grande número de pessoas, seguindo entendimento de Maria Celina Bodin de

Moraes, para quem a razão será a função preventivo-precautória que o caráter punitivo

detém em relação às dimensões do universo a ser protegido169.

Parece que o caráter punitivo se adequaria bem à hipótese do dano moral nas

relações entre pais e filhos, se traduzindo em verdadeira sanção ao pai ausente que

descumpre com seus deveres oriundos da paternidade, submetendo-se, não somente às

sanções penais, já anteriormente mencionadas (item 2.3.1), mas à sanção civil, quer a

reparação compensatória e ainda a de caráter punitivo, através desta condenação presente

no art. 249 do ECA, superada assim a idéia daqueles que a renegam em razão do nulla

poena sine lege.

Em que pese o entendimento asseverado, tem-se consciência de que o presente

estudo não pode ter o condão de adentrar em tema tão tormentoso e passível de diversos

entendimentos.

167 Novamente Maria Celina Bodin de Moraes: “A este respeito, é de se ressaltar ainda que grande parte dos danos morais, aos quais se pode impor o caráter punitivo, configura-se também como crime. Abre-se, com o caráter punitivo, não apenas uma brecha, mas uma verdadeira fenda num sistema que sempre buscou oferecer todas as garantias contra o injustificável bis in eadem. O ofensor, neste caso, estaria sendo punido duplamente, tanto em sede civil como em sede penal, considerando-se, ainda, de relevo o fato de que as sanções pecuniárias cíveis têm potencial para exceder em muito, as correspondentes do juízo criminal.” MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.217. 168 SILVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Forense. 1999. 3ª edição. p.573. 169 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.263.

101

Veja-se, então, o dano moral nas relações entre pais e filhos propriamente ditas e as

hipóteses que se pretende analisar, em especial aquela que se faz objetivo central do

estudo, a ausência do pai ou da mãe e a lesão à dignidade humana do filho.

2.4 O Dano Moral e as Relações Paterno-Filiais

Fundado no princípio da secularização da culpa no direito de família, na

prevalência da igualdade, da liberdade, dos interesses dos sujeitos da relação familiar, da

felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana,

poderá se fundamentar que não há que se falar em culpa nas relações oriundas do afeto e

em responsabilidade civil nestas relações, e que o dano moral somente teria cabimento nas

hipóteses em que houvesse a comprovação do ilícito penal, que ensejaria desta forma a

indenização moral.170

Ocorre que o ato ilícito poderá ou não ser ilícito penal. Por sua vez, o ilícito civil é

passível de indenização moral também nas relações advindas do direito de família.

Acrescente-se que no direito brasileiro, diante da legislação vigente, não há impedimentos

para a aplicação das regras e princípios da responsabilidade civil nas relações parentais.

A preservação da família, em qualquer de suas modalidades, é indispensável para

que se realize o princípio da dignidade da pessoa humana, chegando a se dizer que um

instituto tem como fim imediato o outro.

A importância da análise das relações familiares e de todos os direitos e deveres

oriundos destas relações, em especial a relação entre pais e filhos, do poder familiar, do

direito à convivência familiar, do princípio do melhor interesse da criança (aqui entendida

como criança e adolescente), do afeto como elemento estrutural à formação da pessoa

humana, bem como os princípios que norteiam o intérprete na função de proteger o valor

maior, a dignidade humana, culminando com a adoção de uma verdadeira cláusula geral

de tutela, se dá no momento de pôr em prática todas estas noções, para que se busque

prevenir, garantir ou até mesmo indenizar qualquer lesão porventura sofrida pelos

membros daquelas relações.

170 WELTER, Belmiro Pedro. A Secularização da Culpa no Direito de Família. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 05 de julho de 2004.

102

O sistema atual coloca à disposição, para tutelar os direitos da personalidade e as

lesões à dignidade da pessoa humana, uma série de mecanismos práticos, ainda que estas

não se traduzam em lesões patrimoniais.

A intervenção estatal foi analisada no que diz respeito à função preventiva e

punitiva das condutas lesivas à personalidade dos filhos menores, em relação à gravidade

que importe na necessidade da direta intervenção estatal, através dos órgãos de controle,

como os Conselhos Tutelares, o Ministério Público, entre outros. Todavia, nem sempre

esta intervenção se vislumbra como necessária ou como a melhor solução.

Da mesma forma, a punição penal pura e simples não tem o condão de amenizar o

sofrimento da vítima, figura principal da responsabilidade civil.

Por sua vez, a idéia de que a família se encontra isenta das incursões do direito à

reparação restou abandonada e cheirando a mofo, não devendo o intérprete se coadunar a

tal figura do passado.171

A dignidade da pessoa humana, como valor supremo da personalidade humana e

do Estado Democrático de Direito, deve estar preservada não só no que diz respeito aos

relacionamentos interpessoais fora do âmbito familiar, como naquele seio.

Havendo lesão à dignidade da pessoa humana, através de violação a quaisquer

daqueles direitos ditos como da personalidade, impõe-se a reparação.

Quanto à autoria destas lesões, não há restrição à responsabilidade, podendo assim

ser autor a mãe ou o pai.

As crianças e os adolescentes merecem proteção especial, tendo o legislador

constituinte eivado àquele patamar o princípio segundo o qual deve prevalecer o melhor

interesse da criança.

Este aspecto, somado a todos aqueles outros amplamente debatidos, resultam na

tutela à sua integridade física, psíquica e moral, se inserindo aí o direito à reparação

extrapatrimonial.

O descumprimento dos deveres oriundos do poder familiar enseja, assim, a

possibilidade de o filho buscar em juízo a reparação pelos danos causados em sua

conseqüência.

171MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.56.

103

O simples fato de se estar diante da possibilidade de se perquirir em juízo

reparação pela lesão à dignidade não está a significar que haja a troca daqueles deveres por

simples indenizações civis.

Não se pretende fomentar a “indústria do dano moral”, conforme anteriormente

salientado, objeto de um item específico deste estudo. A lesão deverá ser objeto do caso

em concreto.

Há notícia de vários tipos de lesão à dignidade da pessoa humana nas relações

entre pais e filhos, não se podendo esgotar, no presente estudo, as inúmeras possibilidades

em que a lesão ocorre.

Haverá situações em que a conduta ilícita poderá causar lesão ao direito do outro

genitor, e, não somente em relação ao filho, como quando a lesão se der por obstrução ao

exercício do direito de visitas.

Nesta hipótese, o genitor privado de seu direito de convivência com o filho terá

direito à reparação civil, assim como poderá proporcionar ao filho, obstruído do seu direito

de convivência familiar, tal reparação.

Importa aqui a reparação a que faz jus o filho, verdadeiro titular do direito à

convivência familiar, mas não se pode negar a possibilidade do genitor, privado da visita,

de ver ressarcido seu dano. 172

O princípio do melhor interesse da criança poderá fazer com que o direito de

visitas seja restrito ou até mesmo que seja vedado, já tendo sido analisada, inclusive, a

possibilidade da suspensão e perda do poder familiar, o que poderia levar à negativa

daquele direito.

Todavia, resta evidente que esta limitação ao poder familiar, levando sempre em

conta o melhor interesse da criança, deverá ser objeto de decisão judicial, não cabendo

esta deliberação ficar a critério do genitor guardião.

De outro modo, cabível a reparação civil.

172 Neste sentido Bernardo Castelo Branco: “Temos presente, portanto, todos os elementos necessários à caracterização da responsabilidade civil por dano moral, não restando dúvida de que nas hipóteses de obstrução injustificada ao exercício do direito de visitas incorre o responsável na prática de comportamento capaz de estabelecer o dever de reparar o dano experimentado pelo derradeiro beneficiário desse direito, ou seja, o próprio menor.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.184.

104

O mesmo se diga na investigação de paternidade ou reconhecimento de

paternidade, em que o filho se vê privado da paternidade, ao alvedrio da mãe, que

entendeu melhor não esclarecer ao mesmo a verdade da filiação.

Outra hipótese se vislumbra na negativa injustificada da paternidade na

investigação, sendo possível a sua cumulação com a investigatória. A negativa

injustificada, objeto de análise no caso em concreto, poderá atingir o filho, lesando-o em

sua dignidade ante a demora no reconhecimento de paternidade que se tem como certa,

assim como a falta do estabelecimento da filiação genética.

A matéria é controvertida, assim como toda matéria de indenização nas relações

familiares, fundando-se a tese contrária na impossibilidade de se indenizar moralmente

aquele que ainda não era pai, sob a alegação de que a sentença na ação de investigação de

paternidade teria caráter constitutivo.173

Este caráter constitutivo da sentença, na ação de investigação de paternidade,

parece superado ante a opinião majoritária da doutrina no sentido de se tratar de sentença

declaratória.174

Superado o caráter da sentença, é cabível novamente a reparação civil quando

ocorre a negativa injustificada, sob o argumento de que o reconhecimento voluntário é um

dever do pai, não se tratando de ato discricionário.

A omissão ou a resistência ao reconhecimento paterno constitui conduta passível

de gerar a obrigação de reparação do dano moral. Faz-se necessária a prova da culpa

daquele genitor, podendo ser excluída tal responsabilidade, caso reste comprovada a culpa

da mãe, conforme anteriormente mencionado, aquela que oculta a paternidade ou se

mantém inerte ao dever de reclamar o reconhecimento.175

173 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: RT, 1998. p.662. 174 OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de. A Nova Lei de Investigação de Paternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.p.188/192. No mesmo sentido já se manifestava Yussef para quem a sentença na investigação é declaratória, preexistindo à sentença o estado filial, tendo a mesma efeitos ex tunc. CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. São Paulo: RT, 1998. p.662 175 Novamente Bernardo Castelo Branco: “Logo, o oferecimento de resistência injusta ao reconhecimento configura inegável afronta ao direito do filho, da qual, como já vimos, resultam inúmeras conseqüências de ordem social, com nefastos reflexos sobre a saúde psíquica e formação da personalidade do infante rejeitado.” BRANCO, Bernardo Castelo. Dano Moral no Direito de Família. São Paulo: Editora Método, 2006. p.126 e 133/134.

105

Outros inúmeros casos poderão advir das relações entre pais e filhos e resultarem

em lesão à dignidade humana, não sendo possível, tampouco sendo objeto do presente

estudo, elaborar rol exaustivo das mesmas.

Passa-se a analisar a hipótese que mais interessa ao estudo, e que parece de suma

importância a permear as relações futuras entre pais e filhos, assim como as decisões

jurisprudenciais. A hipótese da ausência da figura paterna ou materna, configurando falta

de afeto na relação filial e, conseqüentemente, a lesão que dá ensejo ao dano moral.

3 O pai e a mãe ausentes e a lesão à dignidade do filho A convivência familiar, interpretada, após o advento da Constituição de 1988,

como direito, é pressuposto para o crescimento e estruturação da pessoa humana, em

especial na pessoa dos filhos menores, conforme já alinhavado na seção do direito à

convivência familiar (3.1, do Título I).

Atendendo-se ao princípio do melhor interesse da criança, é direito do filho

conviver com seus pais, ainda que os mesmos não dividam o mesmo lar, devendo os

genitores colaborar para que esta convivência aconteça, de forma que o filho receba o tão

valioso afeto de ambos.

Por outro lado, é sabido que o melhor interesse da criança poderá determinar que a

mesma se abstenha de ter contato com um ou ambos os genitores. Estas situações devem

ocorrer somente nos casos expressos, mediante decisão judicial fundamentada, após o

devido processo legal, como dito anteriormente.

Na maioria dos casos, o rompimento ocorrido nas relações familiares, as

separações e divórcios acabam por dar causa a rompimentos e afastamento entre aqueles e

seus frutos e, conseqüentemente, lesões à dignidade da pessoa dos filhos ensejando as

ações reparatórias.176

Da mesma forma, dão causa a lesões à dignidade dos filhos a falta de convivência e

de afeto daqueles pais que não os reconhecem a bom tempo, perpetrando situações de

desamparo, por razões incontáveis.

176 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47.

106

Em qualquer destas hipóteses, comprovada a conduta, o nexo causal e a lesão, resta

identificada a necessidade de reparação.

Fundamenta os entendimentos contrários ao referido ressarcimento o fato de que o

afeto não pode ser cobrado, não pode ser exigido dos pais em relação aos filhos, podendo

ser exigida tão somente a assistência material.

Durante a explanação dos fundamentos trazidos no presente estudo, procura-se

demonstrar a fragilidade deste argumento, bem como os inúmeros motivos que

possibilitam o referido ressarcimento, retirando dele qualquer idéia de ilegalidade e

amoralidade.

Os argumentos trazidos no que tange à nova função da família, à aplicação dos

princípios constitucionais, à necessidade da intervenção estatal nas relações familiares, ao

novo semblante da responsabilidade civil, fazem possível identificar inúmeras razões

legais e constitucionais para, em busca da proteção ao princípio da dignidade da pessoa

humana, sem precisar se recorrer à criatividade do julgador, fundamentar o cabimento do

ressarcimento civil pela falta de afeto entre pais e filhos.

Nos casos em que a ausência e a falta de afeto ocorrem após o rompimento da

união dos pais, mister se faz ressaltar que as intercorrências havidas entre aqueles não

podem significar justificativa para o rompimento dos laços com os filhos, sob pena de

deixarem de cumprir com os deveres oriundos do poder familiar, garantidos

constitucionalmente.

Já foi esclarecido anteriormente que a conduta do abandono moral do filho,

independentemente do abandono material, é tipificada como infração administrativa pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente (art.249).177Assim como o abandono intelectual é

tipificado pelo Código Penal (art. 246).

A afirmação de que a falta de prazer na paternidade não pode resultar em

convivência entre estes não pode justificar a negligência do filho. Nas hipóteses em que a

paternidade é preestabelecida, ou seja, nos casos em que a ausência ocorre após o

rompimento das relações de afeto entre genitores, o argumento não convence.

177 “Art. 249 do ECA – Descumprir dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio-poder ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.”

107

Tal argumento serviria de base para fundamentar aquelas hipóteses em que a

paternidade não é estabelecida inicialmente. Nos casos em que decorre de uma ação de

investigação de paternidade, por exemplo, no qual se diz que não há satisfação do pai em

ter o filho, o que, a todo evidente, ora se questiona.

A Constituição da República põe a salvo os direitos dos filhos, inclusive o de não

serem discriminados, ante a isonomia entre eles.

Outrossim, é sabido que no Brasil é proibido o aborto, sendo crime previsto no art.

124 do Código Penal. 178

É sabido, ainda, que, com as exceções das contracepções através das reproduções

assistidas, os filhos são frutos de relações entre homens e mulheres, sendo, portanto,

ambos responsáveis por estes.

Por sua vez, verifica-se que no Brasil não ocorre esta responsabilidade pela

paternidade de maneira generalizada, sendo estimado em 30% o número anual de crianças

sem paternidade estabelecidas, atribuídas ao “sexismo”, permitindo aos homens que se

eximam da responsabilidade pelo sustento e criação dos filhos, sob o fundamento de que

os relacionamentos não passaram de aventuras e que não há vontade de ser pai, portanto

não há afeto, tampouco responsabilidade.179

A ausência da convivência sadia entre pais e filhos causa profundas marcas na

personalidade da criança, conforme estudos psiquiátricos, sendo a ausência uma das

causadoras, inclusive, da crescente violência e delinqüência juvenil, que assola

principalmente as camadas mais desfavorecidas da sociedade.

178 “Art. 124 do Código Penal – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.” Neste sentido Celina de Moraes: “Portanto, pode mesmo não haver qualquer ‘prazer’ ou ‘satisfação’ em ter um filho gerado acidentalmente. No entanto, sendo o aborto proibido, este é um encargo que deve ser assumido tanto pela mãe quanto pelo pai, de quem a lei espera e exige que, a prescindir de seus mais íntimos sentimentos, assuma, perante a sociedade e o Estado, isto é, perante a comunidade de adultos, a responsabilidade pela criação e sustento da criança.” MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47. 179 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47, que ressalta: “No Brasil, ocorre a blindagem do pai, que não se sente obrigado a reconhecer filhos concebidos fora do casamento ou em relações não estáveis.’ É o resultado de séculos de patriarcalismo que ainda hoje se manifesta.”

108

Negligenciar esta assertiva, sob qualquer fundamento, é por demais retrógrado e

preconceituoso, até porque o fundamento da responsabilidade civil não é mais o autor da

conduta e sua culpa e sim a primazia da vítima, que não pode ficar irressarcida.

É caso de modernizar-se ainda mais, e tirar do papel o direito de família brasileiro,

que se encontra entre os mais avançados do mundo, passando a responsabilizar a

paternidade, já que a responsabilidade parental aqui recai em número considerável na

pessoa da mãe.180

Existindo a família para o indivíduo e não mais aquele para esta, os filhos menores,

em especial, devem encontrar ali solidariedade e afeto, sendo dever dos pais, sejam eles

pais por opção ou por acidente, velar pelos filhos, no intuito de garantir a proteção à

dignidade humana, independentemente do fato de haver ou não amor nestas relações,181

até porque, é notório o conhecimento de que a convivência muitas vezes constrói o afeto,

sendo exemplo disso as adoções e as famílias recompostas.

A ausência de um dos pais resulta em tristeza, insegurança, insatisfação, angústia,

sentimento de falta, com efeitos quase sempre de ordem psíquica, como a depressão, a

ansiedade, além de traumas outros, o que se repugna pela consciência comum e pelos

princípios constitucionais, em especial da solidariedade familiar.182

Outrossim, a lesão à dignidade da pessoa humana está a determinar o surgimento

do dever de indenizar. Quando a dignidade é ofendida há que se reparar o dano sofrido,

restando, tão-somente, a discussão quanto à forma de se indenizar e os critérios a serem

adotados para indenizar.

Portanto, a relevância do aspecto da personalidade humana, constitucionalmente

assegurada, deve encontrar resguardo na esfera judicial, sob pena de se tornar inócua a

cláusula geral de tutela.

180 MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. ob. cit. p.56. 181 Para Maria Celina de Moraes evidente o direito ao ressarcimento nestas hipóteses: “Portanto, é evidente que a lei não exige que um pai ame seus filhos, mas ela demanda que o pai se comporte como se os amasse, criando-os, educando-os e sustentando-os. Tal responsabilidade não é facultativa. É a lei a impor o dever, além do sustento, de criação e educação dos filhos (art. 1.634, I e II, CC e arts. 3°, 4° e 5°, entre outros, do ECA). Uma das conseqüências do descumprimento desses deveres é a perda do poder familiar (art. 1637, CC), mas não é a única. Uma vez que foram lesados interesses constitucionalmente protegidos do filho (ex vi do art. 227, CF) impõe-se a reparação dos danos morais que a negligência no desempenho dos deveres parentais gerou”. MORAES, Maria Celina Bodin. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.47. 182 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.693.

109

3.1 A exclusão do nexo causal - isenção do dever de indenizar

A responsabilidade pela falta de afeto, consubstanciada pela ausência paterna ou

materna nas relações entre pais e filhos, todavia, não parece se caracterizar como

responsabilidade objetiva.

A comprovação de qualquer causa excludente do nexo causal poderá isentar o

genitor de responsabilidade.

Identifica-se a exclusão da responsabilidade pelo fato de que a ninguém é dado

responder por resultado que não tenha causado. Isto pode se verificar naquelas hipóteses

em que pessoas que deveriam responder por deveres jurídicos que aparentemente deram

causa não são os verdadeiros responsáveis, diante do exame técnico da relação de

causalidade.

O dano poderá ter decorrido de outra causa, ou de circunstância que as impedia de

cumprir a obrigação por aquela pessoa chamada a responder.183

As causas de exclusão da responsabilidade seriam o caso fortuito, a força maior, o

fato exclusivo da vítima ou de terceiro.

3.2 Fato exclusivo da vítima

No caso em tela, é difícil excluir o nexo de causalidade com fulcro no fato

exclusivo da vítima, já que à criança e ao adolescente não se pode dar a opção pelo

convívio ou não com os pais, devendo estes providenciar para que as situações de

afastamento entre os mesmos se solucionem, cabendo aos pais incentivarem a visitação e

estadia dos filhos menores com os genitores que, porventura, não residam na mesma casa.

Cabe aqui anotação a respeito da possibilidade da propositura da ação de

responsabilidade civil por dano moral face o abandono, a falta de convivência e falta de

afeto, após finda a menoridade.

183 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 63.

110

A princípio, entende-se ser possível, desde que comprovada que a ausência na fase

infante ou adolescente gerou o referido dano, já que o afeto é essencial à formação da

pessoa humana, de suma importância na psique da pessoa em formação, conforme

amplamente salientado.

A falta de afeto após a formação da personalidade, por sua vez, parece não ser

capaz de fundamentar reparação por dano moral, o que não impede que a reparação seja

proposta fundada em razões outras das relações familiares.

Portanto, voltando ao fato exclusivo da vítima, falando de crianças e de

adolescentes, não se vislumbra, a princípio, qualquer fato por elas causados que possa

isentar um pai ou uma mãe de prestar assistência moral ao filho, a não ser na remota

chance de abandono do lar pela criança ou adolescente.

3.3 Fato de terceiro

O ato praticado pelo terceiro deve dar causa exclusivamente ao evento danoso. É o

que se observa, por exemplo, no caso da mãe ou do pai que obstrui o direito de visitas do

outro, causando, assim, a ausência, a falta de convivência familiar e do afeto.

Conforme ressaltado, quando da menção à referida hipótese, caberá, nestes casos,

inclusive, a reparação do próprio pai ou mãe privado do direito, sendo possível ao filho

perquirir em detrimento daquele outro o dano causado.

A ausência do pai ou da mãe, então, ocorre por interferência de pessoas distintas do

pai ou do filho. A participação do terceiro altera a relação causal. Ocorre o dano,

identifica-se o responsável aparente, mas não ocorre a responsabilidade, porque foi a

conduta do terceiro que interveio para negar a equação agente-vítima, afastando do autor o

nexo de causalidade.184

Esta participação do terceiro poderá se verificar de modo a excluir parcial ou

totalmente a responsabilidade do pai. Tal assertiva é facilmente evidenciada no caso

daqueles pais que, obstruídos do direito de convivência com os filhos pelo outro genitor,

nada fazem para ver garantido o seu direito-dever, uma vez que a legislação põe a salvo tal

direito e garante meios de tutela dos mesmos.

184 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense. 1997, p.301.

111

3.4 As famílias recompostas. Padrastos e Madrastas. A ausência de lesão

As famílias recompostas seriam aquelas formadas por um dos pais, seus filhos e

um terceiro, companheiro ou companheira da jornada familiar.

Nestas famílias recompostas ou reconstituídas, muitas vezes a figura ausente é

substituída, fazendo aquela nova personagem o papel daquele outro, sem que com isso se

verifique qualquer tipo de prejuízo à formação da pessoa dos filhos menores oriundos da

relação anterior.

Os inúmeros casos de separações, dissoluções e divórcios, seguidos de novos

relacionamentos, fazem aumentar cada vez mais o número de famílias onde convivem

filhos de diversos relacionamentos.

O que interessa verificar nestes casos é se, ainda que haja a ausência da

maternidade ou paternidade biológica, há o exercício da paternidade ou maternidade pelo

terceiro, crescendo a criança ou o adolescente em ambiente de afeto, atenção, conforto,

caso em que não se configuraria a lesão à dignidade.185

Ausente a lesão, é excluída a responsabilidade civil, ainda que social e

moralmente reprovável a conduta do pai ou da mãe ausente, sujeita, inclusive, às sanções

administrativas e penais.

A lesão, todavia, poderá ser objeto de análise no caso concreto, por meio de provas

produzidas pela vítima, assim como por prova pericial.

185 Neste sentido Celina de Moraes: “(...) Para a configuração de dano moral à integridade psíquica de filho, será preciso que tenha havido por parte do pai (ou da mãe) e a ausência de uma figura substitutiva. Se alguém ‘faz as vezes’ de pai (ou de mãe), desempenhando suas funções, não há dano a ser reparado, não obstante o comportamento moralmente condenável do genitor biológico. Não é de se admitir qualquer caráter punitivo à reparação do dano moral. Não se trata pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (eventual ‘dano causado’), mas de reparar o dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com uma figura substitutiva, configurando-se, então, só aí, o que se chamou de ‘ausência de pai’ (isto é, ausência de uma figura paterna).” MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.59.

112

3.5 A prova pericial

A lesão à dignidade da pessoa humana causada pela ausência materna ou paterna,

configurando dano moral sujeito à reparação civil, a princípio, não precisaria de prova

para restar caracterizada.

A responsabilidade civil pelo dano moral resulta do próprio evento, ou seja, do

próprio dano moral, sendo suficiente a violação do interesse constitucionalmente

protegido, no caso a dignidade da pessoa do filho.186

A idéia de que a responsabilidade civil por dano moral resulta do próprio dano é a

posição do Superior Tribunal de Justiça em diversos recursos sobre o tema.187

Verificado o evento danoso surge a necessidade de reparação; não havendo que se

falar em prova do prejuízo, a prova deve se restringir ao fato que gerou o dano moral.

Nos casos acima citados, necessária se fará a comprovação da lesão, a fim de

afastar a alegação do pai ou da mãe ausente, isto é, no caso das famílias recompostas, por

exemplo, caso haja outra pessoa exercendo o papel de mãe ou pai na relação paternal,

havendo a substituição, esta em sendo alegada pelo réu, poderá ser objeto de prova

pericial. Veja-se.

Em alguns casos a reconstrução da família, com as substituições das figuras

paternas ou maternas, atendem às necessidades da criança ou do adolescente na formação

de sua personalidade, não configurando qualquer lesão a ausência do pai ou da mãe

estabelecidos no registro de nascimento.

Outras vezes, essa substituição não garante a verdadeira formação da

personalidade. Nos casos concretos podem ser observadas crianças e adolescentes com

profundas marcas, em sua psique, por terem sido criados sem a figura do pai ou da mãe

estabelecidos ante a sua ausência injustificada, não sendo padrastos e madrastas capazes

de suprir tal desamparo.

186 Afirma Celina de Moraes: “(...) parece correto afirmar que o dano moral acha-se in re ipsa, uma vez que, para sua configuração, será suficiente a violação de um interesse constitucionalmente protegido, relativo ao princípio da dignidade humana, independentemente de qualquer outra prova.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.62. 187 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.266.

113

Neste caso, ante a alegação do agente, no caso réu na querela, poderá ser realizada

a prova pericial, por meio de exames psicológicos e sociais a fim de que reste identificada

e isenta de dúvida a lesão à dignidade apta a produzir dano moral.

O mesmo se diga em relação àquelas hipóteses em que a ausência se dê por culpa

exclusiva do terceiro, que se encontre em companhia do filho, que obstrua o direito de

visitação, onde a prova médica do fato danoso e da titularidade da ofensa se faz

imprescindível, inclusive, para isentar de culpa aquele que fora obstruído em seu direito.

Assim, não se identificando qualquer excludente de ilicitude, comprovada a lesão,

passa-se à ponderação dos princípios constitucionais envolvidos a fim de tornar certo o

direito à reparação.

4 Aplicabilidade dos princípios constitucionais – o norte do intérprete

Os princípios constitucionais são elementos racionais justificadores da sociedade

contemporânea, do próprio Estado e da Jurisdição. Os direitos humanos fundamentais

foram contemplados no capítulo inicial da Constituição da República brasileira de 1988,

tendo sido conferida, no texto constitucional, imediata eficácia aos mesmos, sendo

inserida, inclusive, cláusula de imutabilidade ou com garantia de eternidade, as chamadas

cláusulas pétreas (art. 60, §4°, IV da CR).188

Por sua vez, a Constituição de 1988 incluiu, em seu sistema, instrumentos

garantidores das instituições, que conduzem ao aperfeiçoamento dos direitos que são por

ela declarados e constituídos e cuja inviolabilidade ela assegura.

As garantias constitucionais estão contidas em procedimentos específicos e

institutos concebidos para assegurar, em casos concretos e quando houver ameaça ou lesão

aos direitos fundamentais, que se restabeleçam plena e eficazmente os direitos

comprometidos. Assim, tais prerrogativas são mecanismos específicos e próprios do

188 “Art. 60 da C.R – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4° - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais.”

114

sistema constitucional nacional, garantidores do que é firmado como direitos

fundamentais.

Ressalte-se que as Constituições, assim como as normas de direitos internacionais

relativas aos direitos humanos e fundamentais, insistem em resguardar tais direitos ainda

no plano da ameaça, entendendo que o melhor cuidado a se tomar em relação a estes

direitos é o da prevenção.

No inciso XXXV, do art. 5°, da Constituição da República, o constituinte

aperfeiçoou a qualidade dos instrumentos garantidores destes direitos, assegurando que a

lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos.

Outrossim, qualquer interpretação da norma jurídica constitucional ou

infraconstitucional deve ter, como escopo primeiro, a criação de condições para que a

norma interpretada tenha eficácia sempre no sentido da realização dos princípios e valores

constitucionais e, principalmente, sempre, da ideologia constitucionalmente adotada.

O papel do juiz, enquanto guardião dos direitos constitucionais e

infraconstitucionais, com a constitucionalização dos direitos humanos fundamentais, passa

a ser mais relevante, já que é aquele que se dota de melhores condições para assegurar a

eficácia jurídica destes direitos, especialmente quando se apresentar quadro de ameaça ou

violação dos mesmos.

A jurisdição é direito fundamental, expresso tanto no plano internacional, quanto

no plano interno dos diferentes Estados (art. 5, inciso XXXV, da CR), sendo que, se não

houver jurisdição constitucional eficiente e internacional efetiva, os direitos humanos se

tornam vulneráveis e dependentes das eventuais condições das sociedades, dos governos e

dos governantes.

A função do Estado-Juiz, portanto, é de suma importância para a efetivação destes

direitos, para a aplicação dos princípios constitucionais.

Na atualidade, algumas decisões isoladas procuram fundamentar suas razões de

decidir em princípios constitucionais, visando garantir prestações jurisdicionais mais

justas e coerentes com os direitos humanos fundamentais.

As violações cotidianas destes direitos levam à conclusão da urgência da

necessidade de sua adequada interpretação, através da aplicação dos princípios

115

constitucionais, para que estes não permaneçam isolados e desformes da realidade social

vivenciada.

A infringência de um princípio seria muito mais grave do que a violação de uma

norma, já que há ofensa ao sistema de comando e, portanto, subversão aos valores

fundamentais.189

Os operadores do direito não podem se furtar à busca pela efetividade dos direitos

humanos e fundamentais, devendo, no caso concreto, decidir a favor destes, ainda que não

haja previsão no ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto dos princípios

constitucionais, em especial aqui no que tange ao tema das relações entre pais e filhos,

utilizando-se dos princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade, da

solidariedade social, todos estes capitaneados pelo princípio da dignidade da pessoa

humana. 190

Tais princípios, entendidos como normas supremas, capazes de servir como

comandos gerais, devem guiar o caminho da interpretação.

No sentido trazido aos princípios por Dworkin191, estes contêm maior carga

valorativa, fundamento ético, indicando determinada direção a seguir. Neste novo

paradigma, os princípios constitucionais passam a ser a síntese dos valores abrigados no

ordenamento jurídico.

Nesta ordem de idéias, o intérprete deve se nortear nos referidos princípios,

identificando o princípio que rege o assunto a ser analisado, passando do mais genérico ao

mais específico, até formular a regra que vai reger a espécie.192

189 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.230. 190 Neste sentido Barroso e Barcellos afirmam que: “O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do reencontro com a Ética – ao qual, no Brasil, se deve agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder Público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade”. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.337. 191 DWORKIN, Ronald. O autor estabelece as diferenças entre princípios e regras, onde as regras são aplicada segundo o critério do tudo ou nada (all or nothing) e os princípios são enunciados genéricos. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução Nelson Boeira. p.39/46. 192 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.151.

116

Luís Roberto Barroso destaca o papel prático dos princípios dentro do

ordenamento jurídico constitucional, afirmando que, em primeiro lugar, cabe aos mesmos

embasar as decisões políticas fundamentais, fincando os alicerces e traçando as linhas

mestras das instituições; em segundo lugar, ser o fio condutor dos diferentes segmentos da

Constituição, dando unidade ao sistema normativo, compatibilizando as normas à primeira

vista contraditórias; e por último, naquilo que mais interessa, condicionar a atuação dos

poderes públicos, Executivo, Legislativo e Judiciário, pautando a interpretação e aplicação

de todas as normas jurídicas vigentes no ordenamento.193

A larga margem de abstração, generalidade e expansão dos princípios permite ao

intérprete superar aquilo que está previsto em lei para encontrar, no caso concreto, uma

solução mais justa que se adeque à espécie, buscando a proteção da dignidade da pessoa

humana.

Nesta busca o intérprete não pode se afastar do fato de que a aplicação do direito

não é apenas um ato de conhecimento, mas também um ato de vontade, ou seja, o

distanciamento do intérprete do caso concreto a ser analisado é impossível, o intérprete

sempre terá seu próprio conhecimento sobre o tema, formado através de sua vivência.194

Todavia, suas conclusões devem estar de olho naquele caso concreto, com as nuances e

diferenças, onde as leis devem ser adaptadas a fim de garantir a solução adequada, dentro

das inúmeras possibilidades que se abrem ante a interpretação das normas com suas

palavras, significados e significantes.

A interpretação, porventura diferente e inovadora, não torna as idéias e as teorias

anteriores falsas ou erradas, mas simplesmente são soluções mais adequadas aos novos

paradigmas e modelos da época atual, sendo este o melhor remédio para que a opinião

preestabelecida de um determinado tema não se perpetue, e não fiquemos engessados por

nossos dogmas.195

Por sua vez, neste caminho pelo encontro da justiça, o intérprete deve ter em mente

a idéia de explorar as potencialidades positivas da dogmática jurídica, investindo naquela

193 Ibidem, p.156. 194 Ibidem. p.309. 195 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002. p.86/88.

117

interpretação principiológica, fundado nos novos valores, sem estar compromissado com a

razão anterior.196

Na relação entre pais e filhos há interesses diversos, em que os titulares de direitos

também são titulares de deveres jurídicos. Assim, os princípios constitucionais, como

normas jurídicas que são, devem ser utilizados como parâmetros do entendimento e da

aplicação.197

Aos princípios constitucionais, portanto, é concedido, como insistentemente

mencionado, o poder de nortear o intérprete em busca da solução mais justa à hipótese,

ainda que, por vezes, ante a colisão de um ou mais destes princípios, como no caso do

princípio da liberdade do pai e do melhor interesse da criança, seja necessária a

ponderação dos mesmos em busca da razão possível.

4.1 A ponderação dos princípios

A norma vale ou não vale juridicamente e quando vale e é aplicável a um caso,

significa que suas conseqüências jurídicas também valem. Por outro lado, os princípios,

em determinadas circunstâncias, cedem a outro, sem que contudo se tenha tornado nulo

aquele que foi abdicado, estando-se diante da preponderância do princípio de maior

peso.198

A operacionalização desta preponderância se dá por meio do juízo de

proporcionalidade. Esta preponderância, quando estão em jogo direitos fundamentais no

caso concreto, se verifica através da ponderação em razão do bem que se pretenda tutelar.

A relativização da aplicação de uma norma de direito fundamental traz ínsita a existência

de várias possibilidades jurídicas de realização de tais direitos.

A demarcação de forças entre um princípio e outro não fica adstrita ao entender do

operador, levando-se a cabo, no momento da interpretação, os valores humanos e jurídicos 196 BARROSO, Luís Roberto. O autor se manifesta sobre a influência decisiva da teoria crítica do direito para o surgimento da geração menos dogmática: “(...) é impossível desconsiderar a influência decisiva que a teoria crítica teve no surgimento de uma geração menos dogmática, mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos compromissos com o status quo”. in Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.317. 197 PERLINGIERI, Pietro. Normas Constitucionais nas Relações Privadas. Versão xerocopiada da Palestra de Direito Civil ministrada pelo Professor no dia 25 de agosto de 1998, no Rio de Janeiro. 198 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.172.

118

já pacificados pelo tempo e pela história, aqui compreendidos pelos direitos humanos e

fundamentais.

As normas-princípios, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, são disposições

fundamentais que se irradiam sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e

servindo de critérios para sua exata compreensão e inteligência.199

Para Dworkin, a idéia de princípio diz respeito a um tipo de norma cuja observação

é um requisito de justiça e eqüidade. As regras jurídicas, assim, operariam num esquema

de tudo ou nada, ou seja, o nexo entre fatos e conclusão jurídica, através de uma regra, é

automático, importando tão-somente aferir sobre sua validade ou não dentro do sistema;

enquanto que os princípios não estabelecem nexo direto entre os fatos e a conclusão

jurídica, se fazendo necessária, geralmente, uma comparação entre os princípios

encontrados e tratados, não se resolvendo esta comparação através da superveniência de

um deles e supressão de outro, continuando ambos a existirem, ainda que um deles

prevaleça. 200

Da mesma forma se manifesta Canotilho sobre a colisão de princípios. Para o

autor, deve se aceitar que os princípios não obedecem à lógica do tudo ou nada, podendo

ser objeto de ponderação e concordância prática, consoante seu peso e as circunstâncias do

caso concreto. 201

Nesta ponderação, levando em consideração os elementos do caso concreto, deverá

o intérprete fazer uma interação não formalista com a norma, a fim de chegar à conclusão

justa, inserida na linha do direito vigente, através dos princípios.

Havendo conflito entre duas ou mais situações jurídicas em que estejam ambas

amparadas por princípios, portanto, princípios de igual importância, deverá se recorrer à

ponderação, determinando-se o alcance da dignidade da pessoa humana. Tal ponderação

encontrará, assim, uma meta, a busca pela efetiva aplicação do princípio da dignidade da

pessoa humana, a cláusula geral de tutela da pessoa.

199 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.230. 200 DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p.42/43. 201 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p.190.

119

4.2 A cláusula geral de tutela da pessoa

A solução encontrada pela doutrina na hipótese de colisão dos princípios

constitucionais encontra limite no princípio da dignidade da pessoa humana.

A garantia especial concedida a toda e qualquer pessoa humana de ver tutelada sua

dignidade, se efetiva, no momento em que, havendo colisão de interesses nas relações

privadas em que esteja em jogo qualquer dos direitos da personalidade contra qualquer

direito patrimonial, deva prevalecer, na interpretação, os princípios que sirvam para

proteger a dignidade da pessoa humana.

No que tange ao tema em questão, a dignidade da pessoa humana dimensiona toda

a matéria referente ao direito de família, sendo que, após o advento da Constituição da

República de 1988, ocorreram alterações no que tange às relações familiares, tendo sido

estabelecidos novos valores, principalmente nas relações entre pais e filhos.

As entidades familiares passam a exercer uma nova função social: a função de

realizar a personalidade de seus membros, em especial os filhos. Esta função enseja a idéia

de que não mais se justifica a manutenção da entidade familiar, a não ser para que haja o

desenvolvimento da personalidade de seus membros.

Os valores patrimoniais da família passaram a ocupar lugar de menor importância

nas relações familiares, no sentido de que não se justifica mais a manutenção de relações

fundadas nos interesses patrimoniais, em detrimento do desenvolvimento saudável dos

filhos, ocorrendo, então, a verdadeira despatrimonialização destas relações.202

A par desta despatrimonialização, a família, informada pelo preceito fundamental

da dignidade da pessoa humana e pela prioridade reservada às crianças e aos adolescentes,

em que se assegura o direito dos filhos, inclusive no que diz respeito a expressar opiniões

(art. 16, inciso I do ECA), 203 participando de maneira igualitária na relação, deixa de ser

uma sociedade hierarquizada para ser uma sociedade democrática.

A Constituição elege a dignidade da pessoa humana como fundamento,

subordinando as relações jurídicas patrimoniais a valores existenciais, em especial as

202 TEPEDINO, Gustavo.. A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-constitucional. in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 395. 203 “Art. 16 do ECA – O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – opinião e expressão; (...).”

120

relações advindas do vínculo familiar, em que se prioriza a pessoa do filho e seu melhor

interesse.

A cláusula geral de tutela da pessoa, introduzida no direito brasileiro pelo

constituinte, no inciso III, do art. 1°, da Constituição da República, subordina a vontade

privada ao respeito à dignidade da pessoa humana.

Esta regra evidencia que em todas as ocasiões em que houver um conflito entre

uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, prevalecerá

a existencial, em consonância com os ditames constitucionais que estabelecem como valor

primordial a dignidade da pessoa humana.

O que se pretende proteger, ante a cláusula geral de tutela da pessoa, é o valor da

personalidade humana, sem qualquer limitação, ressalvadas as hipóteses em que tal valor

se contraponha a igual valor, de outra pessoa, ou da sua personalidade.204

Desta forma, não se poderá negar tutela a quem pretenda garantia de um aspecto de

sua existência para o qual não haja previsão específica, uma vez que aquele interesse é

relevante constitucionalmente, devendo encontrar resguardo também na esfera judicial,

sob pena de se tornar inócua a cláusula geral de tutela e violado o princípio constitucional

da dignidade da pessoa humana, donde se conclui que os demais direitos que se

relacionam com os direitos da personalidade, abrigados sob o manto da Constituição da

República, nada mais são do que garantidores do valor cardeal do sistema.205

Realizando a ponderação dos princípios constitucionais, utilizando-se da cláusula

geral de tutela, o intérprete poderá adaptar situações que não encontrem previsões

expressas na legislação, para prestar, aos interessados, a tutela que priorize sempre a

pessoa, sendo este seu objeto, já que o conteúdo da referida cláusula não se limita a

204 Ensina Perlingieri: “A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.155/156. 205 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.128.

121

resumir direitos tipicamente previstos por outros artigos da Constituição, permitindo

estender a tutela a situações atípicas. 206

Na hipótese específica do direito à convivência com a família e o descumprimento

pelo pai ou pela mãe, bem como as conseqüências advindas desta ausência na formação da

personalidade do filho, caracterizando lesão ao livre desenvolvimento da pessoa humana,

com efeitos nocivos à sua personalidade, poderá se dar a reparabilidade deste dano, a fim

de que se garanta que a violação à dignidade humana não fique sem ressarcimento.

4.3 Critério valorativo para a compensação – o papel do juiz no arbitramento do

valor indenizatório – a necessidade da fundamentação

Encerrada a discussão quanto ao cabimento do ressarcimento, nova controvérsia se

avizinha, esta a respeito dos critérios valorativos a serem utilizados para o ressarcimento.

A ausência de critérios para a fixação da compensação do dano moral na legislação

brasileira, em que pese o recente Código Civil, faz surgir inúmeras teorias a respeito do

tema.

O Código Civil de 2002 deixou de apreciar mais de perto as questões referentes ao

dano moral, limitando-se a mencioná-lo, de maneira singela, no art. 186.207 O que poderia

ser o especial momento para o enfrentamento de inúmeras querelas, através da adaptação

ao texto constitucional, não teve bom proveito.

A falta de preocupação do legislador com o dano moral deixa inalterada a situação

dos critérios para a fixação da compensação, deparando-se, o julgador, sempre com o

206 Novamente Perlingieri, sobre a cláusula geral da tutela da pessoa humana: “o seu conteúdo não se limita a resumir os direitos tipicamente previstos por outros artigos da Constituição, mas permite estender a tutela a situações atípicas” E, ainda, “Nenhuma previsão especial pode ser exaustiva e deixaria de fora algumas manifestações e exigências da pessoa que, mesmo com o progredir da sociedade, exigem uma consideração positiva.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.155. No mesmo sentido, Maria Celina : “Daí sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do ordenamento constitucional, e, portanto, tutela também em via judicial.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar. 2003, p.127. 207 “Art. 186 do Código Civil – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

122

mesmo problema nos litígios em que este envolva a condenação, a inexistência de critérios

uniformes e definidos para arbitrar um valor adequado à hipótese.208

A idéia de critérios pré-fixados, através de tarifação, não parece, segundo a

doutrina, ser a melhor a solucionar o problema, já que estanque e fechado, não permitindo

que se faça a análise do caso em concreto, primordial no que se refere à compensação por

dano moral.209

Tal critério seria igualmente inconveniente pelo fato de que o causador do dano já

saberia de antemão o valor da indenização devida pela prática de seu ato ilícito,

concluindo algumas vezes pelas vantagens da prática do ato.210

Diante da ausência de qualquer outro critério pré-estabelecido pelo legislador,

prevalece o critério do arbitramento pelo julgador, nos termos do art. 946 do Código

Civil,211 combinado com o Código de Processo Civil, que determina que as perdas e danos

se apuram através de liquidação por artigos ou por arbitramento, sendo o arbitramento a

adequada ao dano moral.

O livre arbítrio do juiz, todavia, deverá ser seguido de alguns parâmetros, sob pena

de se estar sempre diante do seu poder discricionário, através de critérios subjetivos e

aleatórios.

Esta é a maior crítica da doutrina, já que não há defesa eficaz contra a estimativa a

que a lei não submeta qualquer outro critério, que não o do livremente escolhido pelo

julgador, uma vez que exorbitante ou ínfima será sempre legal.212

Inicialmente, se utilizava o Código Brasileiro de Telecomunicações, já revogado,

para a fixação, através de aplicação analógica, passando a se adotar, posteriormente, a Lei

de Imprensa, também por aplicação analógica.213

208 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva.2003, p.569. 209 Neste sentido Rui Stoco: “Evidente que não é esse o critério que preconizamos, pois seria um sistema não só fechado, hermético, mas ‘burro’, na medida em que não permite à individualização da sanção segundo as circunstâncias objetivas do fato e subjetivas dos agentes.” STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: RT. 2004, p.1670. 210 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. ob. cit. p.569. 211 “Art. 946 do Código Civil – Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual determinar.” 212 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. ob. cit. p.569. 213 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. ob. cit. p.1.695 e segs.

123

Outros critérios foram sendo adotados, como a aplicação analógica de normas

estabelecidas em leis especiais, a capacidade econômica de quem indeniza, o dúplice

caráter da indenização, o critério da teoria do valor do desestímulo, do estabelecimento de

quantia fixa, da condição social e econômica dos envolvidos, entre outros vários.

Diante das inúmeras possibilidades, sobressai o critério do arbitramento, sendo este

o caminho determinado pelo legislador (parágrafo único do art. 950 e do art. 953 do

Código Civil).214

À falta de um critério objetivo e uniforme para a fixação do dano moral, resta ao

juiz a tarefa de arbitrá-lo, caso a caso, de acordo com o bom senso, de modo a não deixar

de fixar valor razoável e justo para a indenização pelo dano sofrido.

Assim, se impõe uma indenização justa, que seja suficiente para reparar o dano,

sem que se obtenha com isso uma fonte de lucro.

Em especial, no que diz respeito ao dano moral, causado pela ausência do pai ou da

mãe na relação com seus filhos, a indenização deve ser fixada de modo que não torne mais

cômoda e fácil a substituição do afeto, através da atenção, carinho e amor imprescindíveis

para a formação da pessoa humana, por simples compensação pecuniária.

Por outro lado, não há que se falar em indenizações exorbitantes que

comprometam a capacidade do pai ou da mãe em cumprir com as demais obrigações com

os filhos, inclusive as de cunho patrimonial, tampouco com a continuidade da relação, já

que a intenção maior da condenação deve ser a consciência da necessidade de exercer

corretamente o poder familiar.

Os critérios devem ser utilizados de forma que não sejam produzidas decisões

aptas a fomentar a “indústria do dano moral”, sob pena de se desmoralizar o instituto,

tendo nossos Tribunais se manifestado desta forma.215

214 Assim Cavalieri: “(...) Não há realmente, outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser pelo arbitramento judicial. Cabe ao juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio, atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do ofensor, estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral.”CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 88. 215 “Sem dúvida alguma, a Constituição Federal vigente agasalhou de maneira mais ampla possível a indenização por dano moral. Porém, ele não é devido incondicionalmente, devendo ser examinado caso a caso, para que ações como estas não criem a indústria do dano moral” (1°TACSP- 7ª C.- Ap. 762.989-6 – Rel.Álvares LÔBO – j. 16.03.1999 – RT 766/260) in STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. ob. cit. p.1.673.

124

Repita-se, outrossim, que o livre-arbítrio do juiz deve ser seguido de alguns

parâmetros, sendo as referidas decisões devidamente fundamentadas. Os parâmetros

devem ser aqueles existentes na doutrina, na lei ou na própria jurisprudência, norteando a

complexa tarefa de quantificar os danos à pessoa humana.

Os critérios utilizados deverão ser critérios lógicos, explicitados de forma clara nas

decisões, a fim de que se assegurem decisões justas e racionais e não somente escolhas

sem precedentes e decisões arbitrárias, já que o que se espera é o arbitramento do dano

moral e não a arbitrariedade do juízo.216

A fundamentação das decisões, portanto, se impõe. Somente desta forma se poderá

analisar no caso em concreto a racionalidade das decisões judiciais, requisito mínimo

essencial (art. 131 do CPC)217 para a sistematização do ordenamento.218

A idéia da fundamentação tem razão de importância no fato de que as decisões, em

sua maioria, obedecem a critérios de razoabilidade, no momento da fixação da

indenização. Nesta esteira de entendimento, deve ser bem fundamentada a decisão, para se

entender a lógica do razoável, utilizada pelo julgador.

A par deste entendimento, no IX Encontro dos Tribunais de Alçada realizado em

São Paulo, restou aprovada a seguinte recomendação: “Na fixação do dano moral, deverá

o juiz, atendendo-se ao nexo de causalidade inscrito no art. 1.060 do Código Civil (de

1916), levar em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade na apuração do

quantum, atendidas as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado.”219

Pretende-se, na lógica do razoável, que os critérios utilizados, devidamente

fundamentados, atinjam a compensação do dano moral, pela lesão à dignidade humana, de

modo a atender ao máximo possível a vítima, de forma proporcional, sem que com isso

gere um enriquecimento ilícito.

216 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.270 e 272. 217 Art. 131 do Código de Processo Civil – O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento. 218 Conclui Celina de Moraes: “Sua precisa motivação faz-se imperiosa: ela é parte essencial da garantia fundamental do direito a um processo justo; é remédio contra o arbítrio” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.275. 219 CAVALIERI, FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2007, 7ª edição. p. 91.

125

O dano que se pretende compensar com a indenização deve estar assim

eficazmente delimitado, de modo a impedir o fomento à indústria do dano moral.

4.4 A proliferação das ações indenizatórias por dano moral

Ao lado de toda a concepção da reparação do dano moral pela ausência do pai ou

da mãe na relação com os filhos, se encontra a idéia do perigo da patrimonialização destas

relações, ante a possibilidade de se mensurar o afeto e transformá-lo em mera quantia

reparatória.

Vozes se levantam contra a possibilidade da reparação, sob pena de se tornar mais

uma das hipóteses de reparação por dano moral a assoberbar os Tribunais, se

transformando em meio de obtenção de dinheiro fácil, verdadeiros enriquecimentos

ilícitos, que devem ser rechaçados.

De fato, em tese, se justifica a preocupação da doutrina e dos Tribunais, diante dos

números apresentados pelas estatísticas a respeito da quantidade de ações propostas

visando indenizações diversas, por infindáveis razões, muita das vezes banais e que

nenhuma lesão causa, como naquelas em que se dá o mero dissabor, aborrecimento, que

deveriam estar fora da órbita do dano moral.

Estas sim são capazes de banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em

busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos, causando este verdadeiro pré-

conceito com aqueles que pretendem buscar, em juízo, verdadeira compensação pelas

lesões à dignidade. 220

Deve-se lembrar da lição de Pontes de Miranda: “mais contra a razão ou o

sentimento seria ter-se como irressarcível o que tão feriu o ser humano, que há de

considerar o interesse moral e intelectual acima do interesse econômico, porque se trata de

ser humano. A recuperação pecuniária é um dos caminhos: se não se tomou esse caminho,

pré-elimina-se a tutela dos interesses mais relevantes.”221

220 Novamente Celina de Moraes: “A valoração do dano moral exige que se parta de algumas premissas já delineadas: em primeiro lugar, é preciso poder diferenciar os interesses merecedores da proteção do ordenamento daqueles interesses que são caprichosos, fúteis ou que signifiquem meros aborrecimentos ou transtornos do dia-a-dia.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais ob.cit. p.303. 221 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense. 1966, t.52, p 319.

126

Daí a importância de se ter em mente o conceito de dano moral como aquele

sugerido por Maria Celina Bodin de Moraes, que entende que vincular o dano moral

unicamente à ofensa de valores ou interesses constitucionalmente protegidos, contidos no

conceito de dignidade humana, impede o fomento à chamada “indústria do dano moral”,

constituindo salvaguarda invencível contra a expansão dos danos ressarcíveis sem

mensuração. Assim, estaria indo ao encontro da tendência contemporânea de atribuir à

responsabilidade civil o papel de proteção mínima e constante aos direitos fundamentais,

com vistas à atuação da dignidade.222

O que não se deve admitir é excluir da apreciação e taxar como incabível a

reparação civil pela ausência paterna ou materna na relação com os filhos, tendo em vista

os inúmeros fundamentos que a tornam perfeitamente viável, sob pena de se violar a

cláusula geral da tutela da pessoa humana.

4.5 Análise do caso concreto

Os julgados sobre o tema ora em estudo são poucos, surgindo até o momento

notícia de ações esparsas pelo país. No intuito de ilustrar o presente, passa-se a algumas

destas decisões, iniciando-se pela do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial

(REsp 757.411/ MG), onde foi Relator o Ministro, Fernando Gonçalves, Órgão Julgador -

Quarta Turma, no dia 29 de novembro de 2005, que se manifestou contrário à indenização

por dano moral no caso de abandono moral, reformando a sentença de 1° grau que julgara

procedente o pedido, com a seguinte ementa e acórdão:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.

DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a

prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código

Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial

conhecido e provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma

do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a

222 MORAES, Maria Celina Bodin. Dos Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. in Revista Brasileira de Direito de Família. n° 31. Porto Alegre. Síntese. IBDFAM. 2005, p.53.

127

seguir, por maioria, conhecer do recurso e lhe dar provimento. Votou vencido o Ministro

Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge

Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro Relator.”

Verifica-se, da leitura da ementa que, por maioria, os Ministros do STJ que

participaram do julgamento do referido Recurso Especial entenderam pela inexistência do

direito do filho ao recebimento de indenização pelo pai por dano moral no caso do

abandono moral, por não haver previsão legal para tanto, somente a sanção civil da perda

do poder familiar, afirmando, ainda, que a procedência da indenização dificultaria o

retorno ao convívio social entre pai e filho.

O voto do Ministro Relator, Ministro Fernando Gonçalves, afasta a possibilidade

de indenização no caso do abandono moral por entender inexistir a possibilidade de

reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916:

“A questão da indenização por abandono moral é nova no Direito Brasileiro. Há

notícia de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul, outra de São Paulo e

a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento desta Corte. A

demanda processada na Comarca de Capão da Canoa-RS foi julgada procedente, tendo

sido o pai condenado, por abandono moral e afetivo da filha de nove anos, ao pagamento

de indenização no valor correspondente a duzentos salários mínimos. A sentença,

proferida em agosto de 2003, teve trânsito em julgado, vez que não houve recurso do réu,

revel na ação. Cumpre ressaltar que a representante do Ministério Público que teve

atuação no caso entendeu que “não cabe ao Judiciário condenar alguém ao pagamento de

indenização por desamor”, salientando não poder ser a questão resolvida com base na

reparação financeira.

O Juízo da 31ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo-SP, a seu turno, condenou

um pai a indenizar sua filha, reconhecendo que, conquanto fuja à razoabilidade que um

filho ingresse com ação contra seu pai, por não ter dele recebido afeto, “a paternidade não

gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto

independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua

companhia.”

128

A matéria é polêmica e alcançar uma solução não prescinde do enfrentamento de

um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais

danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de

reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica

social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo

que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim,

situações anteriormente tidas como “fatos da vida” hoje são tratadas como danos que

merecem a atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da

pessoa.

Os que defendem a inclusão do abandono moral como dano indenizável

reconhecem ser impossível compelir alguém a amar, mas afirmam que "a indenização

conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus

deveres, mas atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a

dissuasória.”(Indenização por Abandono Afetivo, Luiz Felipe Brasil Santos, in ADV -

Seleções Jurídicas, fevereiro de 2005).

Nesse sentido, também as palavras da advogada Cláudia Maria da Silva: "Não se

trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema em foco - ,

tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja

alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai

do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser

cessada e evitada, por reprovável e grave.” ( Descumprimento do Dever de Convivência

Familiar e Indenização por Danos á Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de

Direito de Família, Ano VI, n° 25 – Ago-Set 2004)

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento,

guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder

familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24,

quanto no Código Civil, art. 1.638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a

determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai,

já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando

eficientemente aos indivíduos que o Direito e a Sociedade não se compadecem com a

129

conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que

defendem a indenização pelo abandono moral.

Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a

guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra

o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender

exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi

preterido no relacionamento amoroso.

No caso em análise, o magistrado de primeira instância alerta, verbis:

"De sua vez, indica o estudo social o sentimento de

indignação do autor ante o tentame paterno de redução do

pensionamento alimentício, estando a refletir, tal quadro

circunstancial, propósito pecuniário incompatível às

motivações psíquicas noticiadas na Inicial (fls. 74)(...)Tais

elementos fático-probatórios conduzem à ilação pela qual o

tormento experimentado pelo autor tem por nascedouro e

vertedouro o traumático processo de separação judicial

vivenciado por seus pais, inscrevendo-se o sentimento de

angústia dentre os consectários de tal embate emocional,

donde inviável inculpar-se exclusivamente o réu por todas

as idiossincrasias pessoais supervenientes ao crepúsculo da

paixão."(fls. 83)

Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a

indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente

para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado

daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?

Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando

em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o

amparo do amor dos filhos, valendo transcrever trecho do conto "Para o aniversário de um

pai muito ausente", a título de reflexão (Colocando o "I" no pingo... E Outras Idéias

Jurídicas e Sociais, Jayme Vita Roso, RG Editores, 2005):

130

“O Corriere della Sera, famoso matutino italiano, na coluna

de Paolo Mieli, que estampa cartas selecionadas dos

leitores, de tempos em tempos alguma respondida por ele,

no dia 15 de junho de 2002, publicou uma, escrita por uma

senhora da cidade de Bari, com o título "Votos da filha, pelo

aniversário do pai". Narra Glória Smaldini, como se

apresentou a remetente, e escreve: "Caro Mieli, hoje meu

pai faz 67 anos. Separou-nos a vida e, no meu coração, vivo

uma relação conflitual, porque me considero sua filha ´não

aproveitada´. Aos três anos fui levada a um colégio interno,

onde permaneci até a maioridade. Meu pai deixara minha

mãe para tornar a se casar com uma senhora. Não conheço

seus dois outros filhos, porque, no dizer dele, a segunda

mulher ´não quer misturar as famílias´.Faz 30 anos que nos

relacionamos à distância, vemo-nos esporadicamente e

presumo que isso ocorra sem que saiba a segunda mulher.

Esperava que a velhice lhe trouxesse sabedoria e bom

senso, dissipando antigos rancores. Hoje, aos 39 anos,

encontro-me ainda a esperar. Como meu pai é leitor do

Corriere, peço-lhe abrigar em suas páginas meus

cumprimentos para meu pai que não aproveitei.”

Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de

se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não

atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é

providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e

dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme

acima esclarecido.

Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a

manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a

indenização pleiteada.

131

Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do

Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de

indenização.

Diante do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para afastar a

possibilidade de indenização nos casos de abandono moral.”

Verifica-se da leitura do voto do Ministro Relator que o mesmo leva em

consideração inicialmente a questão do dano extrapatrimonial passível de reparação

pecuniária, entendendo o mesmo que o ordenamento jurídico estabelece como punição ao

abandono moral a perda do poder familiar, se encarregando o Estado desta função

punitiva, não se configurando assim a possibilidade de indenizar o abandono moral.

Aduz, ainda, que a suposta indenização atenderia à ambição financeira daquele

genitor que esteve em companhia do filho abandonado, já que, segundo o mesmo, a

pretensão indenizatória teria condão de vingança daquele outro.

Alega, inclusive, que a indenização afastaria o convívio entre pais e filhos, não

atendendo, assim, o objetivo de reparação pretendido.

Por fim, afirma que escapa ao Judiciário obrigar alguém a amar ou manter

relacionamento afetivo, ainda que filho.

Por sua vez, no voto vencido, o Ministro dissidente, Ministro Barros Monteiro,

aduz que o direito ao recebimento da indenização por dano moral existe na hipótese do

abandono moral pelo pai, em decorrência da violação do dever do pai, de assistência

moral, existindo, assim, o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade, sendo irrelevante a

previsão de outra modalidade de sanção civil:

“Sr. Presidente, rogo vênia para dissentir do entendimento manifestado por V.Exa.

e pelos eminentes Ministros Aldir Passarinho Junior e Jorge Scartezzini. O Tribunal de

Alçada de Minas Gerais condenou o réu a pagar 44 mil reais por entender configurado nos

autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como por reconhecer a conduta

ilícita do genitor ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho,

deixando assim de preservar os laços da paternidade. Esses fatos são incontroversos.

Penso que daí decorre uma conduta ilícita da parte do genitor que, ao lado do dever de

132

assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de

acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto.

Como se sabe, na norma do art. 159 do Código Civil de 1916, está subentendido o

prejuízo de cunho moral, que agora está explícito no Código novo. Leio o art.186:

“Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar

direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Creio que é essa a hipótese dos autos. Haveria, sim, uma excludente de

responsabilidade se o réu, no caso o progenitor, demonstrasse a ocorrência de força maior,

o que me parece não ter sequer sido cogitado no acórdão recorrido. De maneira que, no

caso, ocorreram a conduta ilícita, o dano e o nexo de causalidade. O dano resta

evidenciado com o sofrimento, com a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor durante

todo esse tempo.

Considero, pois, ser devida a indenização por dano moral no caso, sem cogitar de,

eventualmente, ajustar ou não o quantum devido, porque me parece que esse aspecto não

é objeto do recurso.

Penso também, que a destituição do poder familiar, que é uma sanção do Direito de

Família, não interfere na indenização por dano moral, ou seja, a indenização é devida além

dessa outra sanção prevista não só no Estatuto da Criança e do Adolescente, como também

no Código Civil anterior e no atual.

Por essas razões, rogando vênia mais uma vez, não conheço do recurso especial.”

(DJ 27.03.2006 p. 299RB vol. 510 p. 20 RJM vol. 175 p. 438 RT vol. 849 p. 228)

A decisão polêmica do Superior Tribunal de Justiça se baseia na impossibilidade

de se responsabilizar civilmente um pai pelo abandono moral de seu filho através da

fixação de uma indenização sob o argumento de que à hipótese não se adequam aquelas

típicas da responsabilidade civil, não se podendo obrigar alguém a amar ou manter

relacionamento afetivo, não sendo alcançada qualquer finalidade com a indenização

pleiteada. A pretendida indenização não encontraria amparo legal, não se caracterizando a

responsabilidade civil do art. 159 do Código Civil.

Outrossim, afirma o Ministro Relator que a condenação afastaria ainda mais o filho

do pai, obstaculizando futuro relacionamento entre os mesmos.

133

No voto vencido o Ministro revela seu entendimento contrário ao voto do Relator,

ressalvando a ilicitude da conduta do genitor que abandona moralmente o filho, deixando

de preservar os laços de paternidade, conduta esta geradora de sofrimento e dano à

dignidade do filho.

De fato, resta incontroversa a identificação do dano moral quando há lesão à

dignidade da pessoa humana, sendo certo que o afeto na formação da pessoa humana,

transcende a importância patrimonial destas relações.

A proteção da pessoa humana como fundamento da tutela do núcleo familiar,

consubstanciado aqui pela importância da presença dos genitores na formação da pessoa

humana, não pode ficar a desamparo das decisões judiciais.

A certeza do dano indenizável não pode se afastar pelo simples fato de haver a

possibilidade da perda do poder familiar. Não se trata de matéria de direito de família,

sendo certo que a simples perda do poder familiar, nestas hipóteses, pode caracterizar

verdadeiro prêmio para aquele que viola a dignidade da pessoa humana.

Da mesma forma criticável, a idéia do Relator no sentido de que a indenização

porventura fixada estaria beneficiando o outro genitor. A alegação de que o outro genitor

estaria movido por vingança ou por ódio, visando atingir aquele que abandonou a família

não deve afastar a possibilidade de se indenizar o dano à dignidade da pessoa do filho.

Trata-se de matéria estranha ao feito, assim como terceiro que não figura no mesmo, não

sendo possível fazer elucubrações a respeito de fato de terceiro que nem figura no

processo, de maneira a prejudicar o interesse daquele que teve lesionada a sua dignidade.

Quanto à impossibilidade de se obrigar alguém a amar ou se relacionar com o

outro, a todo evidente, não existe esta possibilidade através do Judiciário, mas

responsabilizar civilmente alguém pelo abandono poderá servir como exemplo para outros

pais e mães que abandonam seus filhos à própria sorte, tornando certa não a obrigação de

amar, mas a obrigação de cuidar, em todos os sentidos, em especial o cuidado moral com a

prole.

Nesta esteira de pensamento, acertado o voto vencido ao afirmar que o genitor

praticou conduta ilícita ao deixar de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de

acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto. Assim, ocorrendo a conduta ilícita, o dano e

o nexo de causalidade devida à indenização.

134

Na 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa no Rio Grande do Sul, em 2003, o Juiz

de Direito Mario Romano Maggioni condenou um pai ao pagamento de 200 salários

mínimos à filha, que abandonou material e psicologicamente, tendo sido o pai condenado

à revelia, transitando em julgado a referida decisão, por ausência de recurso. O Magistrado

entendeu que negar afeto é agredir a lei, não estando este apenas desrespeitando a função

de ordem moral, mas também a ordem legal, não educando bem o filho.

Em São Paulo, na 31ª Vara Cível, o juiz de Direito Luís Fernando Cirillo, em junho

de 2004, condenou um pai a pagar à filha indenização no valor de R$ 50.000,00

(cinqüenta mil reais) para reparação do dano moral e custeio do tratamento psicológico da

mesma, por entender que a perícia técnica constatou que a jovem apresentava sérios

conflitos em razão da rejeição perpetrada pelo pai; portanto, que as vicissitudes do

relacionamento entre as partes efetivamente provocaram danos relevantes à autora.

No dia 18 de janeiro de 2007, a juíza de Direito, Simone Ramalho Novaes então

titular da 1ª Vara Cível da Comarca de São Gonçalo, Rio de Janeiro, proferiu decisão

contrária à do Recurso Especial acima citado, condenando o réu, pai ausente, a indenizar o

autor na quantia de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) a título de danos morais,

sentença que se transcreve na íntegra, em anexo ao presente. Ressalte-se que o Ministério

Público opina, no referido feito, pela procedência sob os argumentos que fundamentam

esta dissertação.

Enfim, na prolação das sentenças de 1° grau proferidas em favor do dano moral,

observados os limites destas condenações, se verifica que na ponderação dos princípios

constitucionais em jogo, sobrepõe-se o princípio do melhor interesse da criança ou

adolescente ao princípio da liberdade do pai na forma como conduz a sua vida, em

especial a necessidade de visitar e conviver com o filho, fruto de relação finda ou

inexistente; já que afirmada a paternidade, deveres se originam da mesma que devem ser

cumpridos, a fim de possibilitar a tutela da dignidade da pessoa humana em formação.

A necessidade de se responsabilizar o abandono moral se faz urgente por tudo

aquilo que se expôs no presente estudo, a todo evidente sem que haja abusos, tampouco

que se deixe de fazer justiça em cada caso concreto.

135

CONCLUSÃO

A controvérsia da matéria em exame, em especial ante à ingerência estatal no que

diz respeito às relações familiares, à patrimonialização do afeto e à caracterização do dano

moral na lesão à dignidade da pessoa do filho sujeito ao abandono moral, bem como a

incidência das normas de responsabilidade civil naquelas relações de direito de família,

gera tamanha resistência a ensejar decisões diversas, longe, ao que tudo indica, de uma

pacificação a respeito do tema.

Analisando a travessia da “família de sangue” à “família do afeto”, em um

primeiro momento, buscou-se analisar a importância do afeto nas relações familiares,

partindo-se da premissa de que a família é uma realidade sociológica, anterior ao direito,

que não pode estar, portanto, aprisionada a conceitos estanques e fechados.

Analisa-se o afeto e sua importância, inclusive para identificar e estabelecer a

filiação, excepcionando-se as relações onde não há paternidade estabelecida por opção e a

impossibilidade de responsabilização daquele que não se conhece como pai ou mãe.

Assim, como se estuda a importância da substituição da figura, a importância do afeto que

se encontra nas famílias recompostas, que também afastaria o dano moral.

Da análise da nova função social da família, fez-se um singelo estudo da família no

direito brasileiro, passando pelo modelo romano, com a edição do Estatuto da Mulher

Casada em 1962, chegando até a Constituição da República de 1988, em especial à

isonomia entre homens e mulheres e os direitos e deveres da relação paterno-filial, para se

chegar à importância da dignidade da pessoa humana como elemento central da família.

Por meio dos princípios constitucionais, capitaneados pelo da dignidade da pessoa

humana, trouxe à baila a discussão a respeito dos limites e possibilidades de se ressarcir o

dano moral resultante do abandono afetivo nas relações paterno-filiais, sem, contudo,

perder de vista as nuances do cotidiano, dentre elas a reestruturação das famílias de sangue

ante o surgimento das famílias do afeto.

A partir da premissa da família como instituto aberto, delineada como espaço onde

as pessoas encontram aconchego, carinho, refúgio aos percalços do dia-a-dia, enfim, onde

comungam afeto, ao lado da premissa de que crianças e adolescentes, pessoas em

formação, necessitam deste afeto para obterem bom êxito na formação de suas

136

personalidades, delineou-se a intervenção estatal nas relações familiares a fim de que se

observe o melhor interesse da criança no exercício do munus decorrente do poder familiar.

Embalados pelo sentimento de afeto solidário inerente às relações familiares,

passou-se ao estudo da ausência de afeto e suas conseqüências.

O abandono afetivo nas relações paterno-filiais, evidenciado nas hipóteses em que

pais ou mães deixam de estar com seus filhos, tido como lesão à dignidade da pessoa

humana ensejaria, portanto, dano moral.

Observa-se que a inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos

morais consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os

direitos da personalidade, por não serem patrimoniais, encontram excelente campo de

aplicação nos danos morais, que têm a mesma natureza não-patrimonial. Ambos têm por

objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, os quais não dependem da relação com

os essenciais à realização da pessoa, ou seja, aquilo que é inato à pessoa e deve ser

tutelado pelo direito.

Os direitos da personalidade, nas vicissitudes por que passaram, sempre esbarraram

na dificuldade de se encontrar um mecanismo viável de tutela jurídica, quando da

ocorrência da lesão. Ante os fundamentos patrimonialistas que determinaram a concepção

do direito subjetivo, nos dois últimos séculos, os direitos de personalidade restaram

alheios à dogmática civilista. A recepção dos danos morais foi o elo que faltava, pois

constituem a sanção adequada ao descumprimento do dever absoluto de abstenção.

Ao lado disso, atém-se à idéia de ponderação dos princípios constitucionais

envolvidos, dos interesses contrapostos, sem perder de vista que os direitos da

personalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana e as violações a estes direitos

evidenciam os danos morais indenizáveis e deverão nortear as decisões e posições em

relação ao tema.

O estudo, a todo evidente, não pretende esgotar a matéria, tampouco tem a

pretensão de apresentar o domínio dos institutos envolvidos, mas apenas trazer ângulos,

aspectos, opiniões, luzes, para se percorrer caminhos, sempre em busca do ideal de justiça

e eqüidade.

A evolução do Direito de Família e a “revolução” da responsabilidade civil

permeiam estes caminhos.

137

Conhecida a divergência sobre o tema, quer em nossos Tribunais, quer na doutrina,

diante do novo perfil da família plural, sua função social, em que o afeto e a solidariedade

constituem os elementos caracterizadores destas relações familiares, essenciais à formação

da pessoa humana, procura-se traçar linhas para fundamentar o ressarcimento da lesão à

dignidade da pessoa humana, causada pelo abandono afetivo nas relações paterno-filiais.

Assim, o estudo apresentado se limita a anotações a respeito dos temas trazidos,

inesgotáveis por sua própria natureza mutante. Já que se tratam de relações humanas as

relações envolvidas, encerra-se a investigação com o anseio de que a mesma contribua de

alguma forma, ainda que pela crítica, com a dialética do assunto.

138

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146

ANEXO

SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL CAUSADO POR ABANDONO AFETIVO EM RELAÇÃO PATERNO-FILIAL.

COMARCA DE SÃO GONÇALO

JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CÍVEL

Processo nº 2005.004.017621-5 Ação de Indenização Autor : Victor Guilherme de Sá Cavalcante dos Santos, representado por sua genitora, Mirna de Sá Cavalcante Ré : Sergio Jose Correa dos Santos

S E N T E N Ç A

Vistos, etc.

Victor Guilherme de Sá Cavalcante dos Santos, representado por sua

genitora, Mirna de Sá Cavalcante propôs Ação de Indenização em face de Sergio Jose

Correa dos Santos, alegando, em síntese, que: a) obteve sua paternidade reconhecida

através de longa batalha judicial que teve início em 1992, onde após a realização do exame

por tipagem de DNA restou comprovado que o réu é o seu pai biológico; b) mesmo com a

paternidade reconhecida, hoje com 13 anos de idade, ainda se vê privado do direito ao

convívio com o genitor, ante a sua total falta de interesse na aproximação; c) a falta do

reconhecimento espontâneo e a ausência paterna até o presente momento de sua vida

gerou danos de ordem moral e material, sendo que este devidamente reparado pela ação de

alimentos, o que não ocorreu com o primeiro; d) a identidade é condição de suma

importância na vida do ser humano, motivo pelo qual viu o autor seu direito cerceado.

Diante dos argumentos expendidos, requereu a condenação do réu ao pagamento

do dano moral sofrido, em valor equivalente a 100 salários mínimos.

Inicial e documentos às fls. 02/25.

Manifestação do Ministério Público às fls. 27/27v.

Contestação e documentos às fls. 37/68, aduzindo, em resumo, que: a) teve apenas

eventual relação com a genitora do autor, motivo pelo qual a existência da dúvida quanto a

paternidade que lhe fora imputada por esta; b) após a confirmação da paternidade, com o

147

reconhecimento da criança passou a cumprir com as obrigações decorrentes da mesma; c)

tentou por diversas vezes aproximação com o menor, as quais foram impedidas pela

genitora, não conseguindo até o momento manter visitação regular; d) hoje encontra-se

casado e de cujo relacionamento adveio uma filha; e) a genitora do menor lhe causa uma

série de problemas, inclusive com sua atual família; e) o dano moral, caso existente,

deveria advir direto do autor quando adulto e não servir de anseio de sua genitora, motivo

pelo qual o pedido improcede.

Despacho às fls. 70.

Requerimento de provas às fls. 71/73.

Decisão às fls. 74.

Audiência de Instrução e Julgamento realizada às fls. 95/104.

Juntada de documentos às fls. 105/109.

Decisão às fls. 111 convertendo o julgamento em diligência, determinando a

realização de perícia.

Laudo psicológico acostado às fls. 117/119.

Manifestação das partes às fls. 124/128 e 129.

Parecer final do Ministério Público às fls. 131/137, opinando pela procedência do

pedido, com a condenação do réu ao pagamento de indenização a ser fixada pelo Juízo.

Relatados, decido.

Busca o autor com a presente demanda indenização por dano moral sofrido, em

virtude de abandono moral paterno.

Inicialmente, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a questão posta ao

debate. A matéria é bastante polêmica e demanda prudência e cautela na análise do caso

concreto.

As regras de experiência comum ensinam que as separações dos casais, na maioria

das vezes, são tormentosas e acabam gerando aos filhos havidos da união dificuldades no

trato com o cônjuge que não detém a guarda, seja por sentimentos de ódio e vingança que

lhes são transferidos por seus genitores, seja pelo abandono moral de um destes.

Em sendo assim, faz-se necessário uma maior atenção do Judiciário ao apreciar e

julgar pedidos de indenização com fundamento em abandono moral de genitor, a fim de

que a decisão não sirva somente de instrumento de vingança, mas sim de reparação de um

148

dano, de fato, suportado, com prejuízos na formação da personalidade e identidade da

criança.

O tema, como já dito, demanda inúmeras discussões e diferentes decisões, sendo

que nossos E. Tribunais Superiores ainda não firmaram entendimento predominantemente

favorável a questão, existindo apenas alguns julgados nos Estados do Rio Grande do Sul,

São Paulo e Minas Gerais.

Inobstante posicionamentos em sentido contrário e atentando para o caso em foco,

entendo ser perfeitamente possível a condenação de indenização por abandono moral de

genitor, que encontra guarida em nossa legislação pátria.

A anterior concepção de família teve como antecedente o modelo proveniente da

civilização romana. O pater famílias detinha o papel de senhor, sendo possuidor de todos

os direitos e bens da família de que era o titular.

O Código Civil de 1916 adotou a expressão “pátrio poder” como definição da

autoridade exercida pelos pais sobre os filhos menores, mas foi com a promulgação da

Constituição da República de 1988, que avançamos no tema. O princípio da dignidade da

pessoa humana erigido neste ordenamento jurídico ensejou que as relações familiares

passassem a ocorrer de acordo com a importância e individualidade de cada membro, a

começar pelo estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres inserido no art. 5º, I.

Desta forma a autoridade então exercida pelos pais transformou-se em poder de

proteção com relação aos filhos.

No capítulo que trata da família, da criança e do adolescente, dispôs ser: “dever da

família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à

cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além

de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão”. (art. 227 da CR).

Posteriormente entrou em vigor a Lei nº 8069/90 - Estatuto da Criança e do

Adolescente que reproduziu a norma constitucional, inserindo no art. 19 que: “Toda

criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,

excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e

comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias

149

entorpecentes”. Pela norma supra transcrita constata-se que o direito a ser educado e

criado no seio da família foi incluído entre os direitos fundamentais da criança e do

adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente representa real avanço na garantia dos

direitos menoristas estabelecidos pela Carta Magna, pois afastou, de uma vez, a concepção

de menores como objeto de intervenção por parte de quem os represente ou guarde, posto

que estes também são titulares de todos os direitos humanos.

E, não poderia ser diferente, posto que a família é condição indispensável para que

a vida se desenvolva regularmente, com a formação segura da personalidade do indivíduo.

Em comentários ao artigo do ECA, Maria do Rosário Leite Cintra, da Pastoral do

Menor de São Paulo, assim se manifestou: “Desabrochar para o mundo inclui um movimento de dentro para

fora, o que é garantido pelos impulsos vitais vinculados à

hereditariedade e à energia próprias do ser vivo. Mas este

movimento será potenciado ou diminuído, e até mesmo

obstaculizado, pelas condições ambientais: 60%, dizem os

entendidos, são garantidos pelo ambiente. Não basta pôr um ser

biológico no mundo, é fundamental complementar a sua criação

com a ambiência, o aconchego, o carinho e o afeto indispensáveis

ao ser humano, sem o que qualquer alimentação, medicamento ou

cuidado se torna ineficaz.

O ideal é que os filhos sejam planejados e desejados por seus pais

e que estes possam garantir-lhes a sobrevivência nas condições

adequadas. É fundamental, pois, que os adultos que geram a

criança a assumam e adotem.

A família é o lugar normal e natural de se efetuar a educação, de

se aprender o uso adequado da liberdade, e onde há a iniciação

gradativa no mundo do trabalho. É onde o ser humano em

desenvolvimento se sente protegido e de onde ele é lançado para

a sociedade e para o universo.” (in “Estatuto da Criança e do

Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais”, 3ª

edição, Malheiros Editores, pág. 85).

A legislação específica dispôs ainda, em seu art. 21, que: “O pátrio poder será

exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a

150

legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância,

recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência”.

E, complementa, incumbir aos pais: “o dever de sustento, guarda e educação dos

filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer

cumprir as determinações judiciais.”(art. 22 do ECA).

Em perfeita harmonia com as normas citadas, o novo Código Civil de 2002

estabeleceu que a responsabilidade dos pais em relação aos filhos é conjunta, atribuindo-

lhe o nome de “poder familiar”, disciplinado nos arts. 1630/1638.

Ao adotar referida expressão fixou a Lei Civil à autoridade aos componentes da

família da criança, definidas pela Constituição da República como entidades familiares,

seja esta constituída pelo casamento, pela união estável, pela família natural ou substituta.

Desta forma, o poder familiar foi instituído visando a proteção dos filhos menores,

por seus pais, na salvaguarda de seus direitos e deveres.

Em sendo assim, analisando os diplomas legais citados, chega-se a conclusão de

ser perfeitamente possível a condenação por abandono moral de filho com amparo em

nossa legislação.

A preocupação constante de alguns julgadores contrários a indenização por

abandono moral é no sentido de que se estaria incentivando a “indústria do dano moral” ao

conceder ao filho, abandonado pelo pai, indenização pecuniária.

Embora justificado o entendimento e considerando que muitas vezes a intenção

seja somente financeira, não se pode generalizar, sendo necessário examinar cada caso

isoladamente.

A banalização do dano moral e a mercantilização das relações extrapatrimoniais

irão sempre existir em um número de casos, valendo citar como exemplos, algumas

reclamações que crescem assustadoramente na Justiça, tais como, negativações individuais

no SPC e SERASA, corte indevido no fornecimento de energia elétrica, bloqueio de conta

e cartão de crédito, sem que haja comprovado inadimplemento por parte do titular,

bagagem extraviada, o sinal da loja que soa, porque o balconista esqueceu-se de retirar o

alarme do produto, a mercadoria que não foi entregue dentro do prazo estabelecido.

Enfim, inúmeras situações presenciadas pelos operadores do direito e que, na sua

grande maioria, são interpretadas como ofensa a dignidade moral da pessoa.

151

Assim, não podemos deixar de entender que o abandono moral do genitor, o seu

descaso com a saúde, educação e bem estar do filho não possa ser considerado como

ofensa à sua integridade moral, ao seu direito de personalidade, pois aí sim estaríamos

banalizando o dano moral.

Se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve

arcar com a responsabilidade por tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever

de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim,

todos esses direitos impostos pela Lei.

Ajunte-se a isso, ser imperioso considerar, conforme assinala Silvio Rodrigues, que

“ dentro da vida familiar o cuidado com a criação e educação da prole se apresenta como

questão mais relevante, porque as crianças de hoje serão os homens de amanhã, e nas

gerações futuras é que se assenta a esperança do porvir” (Direito de Família, volume 6,

pág. 368/371). Por essa razão que o Código Civil de 2002 pune com a perda do poder

familiar aquele que deixar o filho em abandono, entendido este não apenas o ato de deixar

o filho sem assistência financeira, mas também o descaso intencional pela sua criação.

É preciso atentarmos, ainda, para o fato de que “temos hoje o que pode ser

chamado de direito subjetivo constitucional à dignidade”., conforme assinalou o

Eminente Des. Sergio Cavalieri em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil”,

concluindo que “a Constituição deu ao dano moral uma nova feição e maior dimensão,

porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os valores morais, a

essência de todos os direitos personalíssimos.” (obra citada, pág. 94).

Portanto, violados esses direitos, hão de ser reparados pela via da indenização por

dano moral.

Analisado o direito, passa-se ao exame da hipótese vertente.

No caso em tela, o que se pode observar pelo depoimento do réu, corroborado pelo

laudo psicológico realizado, é de que, embora a aproximação entre pai e filho tenha sido

dificultada pela genitora do autor, esta poderia ter sido novamente obtida quando o menor

alcançou idade e discernimento suficientes, mas não foi o que ocorreu. O réu sequer se

valeu dos meios jurídicos próprios para obter regularmente a visitação do filho.

152

E, pior, mesmo tendo conhecimento da paternidade que lhe era imputada, não

promoveu o reconhecimento espontâneo, tendo aguardado o resultado de duas demandas

ajuizadas pela genitora do autor que teve início em 1992 e desfecho em 2004.

O que se constata é que nada foi feito. O réu deixou evidenciado sua total falta de

interesse pela vida do menor. Não existiu até o momento qualquer relacionamento entre

pai e filho.

O réu apenas limita-se a cumprir com o seu dever de alimentar, como se isto fosse

a única coisa importante na vida da criança.

Destaque-se parte do depoimento: “... que tomou conhecimento da gravidez quando a criança já

havia nascido e sua genitora já havia ajuizado ação de

investigação de paternidade, isto em 1992; que esta ação foi

julgada improcedente pela falta do exame de DNA, pois na época

não se fazia gratuitamente; ... que mesmo com a improcedência

da ação e a representante do menor afirmando que o mesmo era

seu filho não teve interesse em confirmar o fato, continuando a

negar a paternidade; que ninguém de sua família passou a se

relacionar com a criança; ... que não ajuizou ação de

regulamentação de visitas; que nunca parou para pensar nos

anos perdidos de relacionamento com seu filho; ... que nunca foi

a escola do menor, como também as festividades realizadas nesta

instituição; ... que os irmãos sabem da existência um do outro,

contudo, nunca foram apresentados”. (fls. 104).

Saliente-se, por ser de suma importância, que o indivíduo, muito antes do seu

nascimento, quando ainda é gerado no útero materno, necessita se abastecer não só de

alimento, mas sobretudo de amor, para se desenvolver sadiamente, nascendo para o mundo

e se tornando um homem/mulher seguro.

O que se pode concluir é que, mesmo a jurisprudência brasileira ainda sendo

reticente a questão, a situação dos filhos abandonados por seus pais representa um dos

maiores problemas sociais que assola o País e deve ser enfrentado sem temores e por todos

os enfoques e órgãos públicos.

Dissertanto sobre o tema, Maria Celina Bondim de Moraes, assim se manifestou: O víeis jurídico, já garantido pelo direito de família positivo,

passa pela conscientização de que a lei obriga e responsabiliza os

153

pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses

cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicológica dos

filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores

protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura

dano moral. Em caso de dano moral, determina também a

Constituição, no art. 5º, X, surge o dever de indenizar.

Conseqüentemente, o abandono moral gera reparação. Este não é

um raciocínio radical nem tampouco abstruso; ao contrário,

parece límpido e em consonância com o tempo presente.”

(RBDF, nº 31, Jurisprudência Comentada, pág. 66).

Em conclusão, entendo que o abandono moral praticado pelo réu desta ação trouxe

ao autor dano moral, caracterizado pela ofensa à sua dignidade em não ter tido a

assistência paterna, imprescindível ao seu desenvolvimento como cidadão, sendo, pois,

indenizável.

O dano moral, como exaustivamente demonstrado, atinge os bens da

personalidade, como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando

dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima.

Na configuração do dano moral é necessário a presença de algum ou de todos os

elementos mencionados anteriormente, tornando-se indispensável as regras de prudência,

de bom senso, das realidades da vida, devendo o Magistrado seguir a linha da lógica do

razoável, onde o mero dissabor ou mera sensibilidade não geram dano moral.

No caso em exame, o dano moral causado ao autor é inquestionável, justificando

uma satisfação pecuniária.

Não há critério rígido para a fixação do dano moral, razão pela qual a doutrina e a

jurisprudência são uniformes no sentido de deixar ao prudente arbítrio do Magistrado a

decisão, em cada caso, observando-se a gravidade do dano, a sua repercussão, as

condições sociais e econômicas do ofendido e do ofensor, o grau de culpa e a notoriedade

do lesado, além de constituir-se em um caráter punitivo, para que o seu ofensor não mais

pratique o mesmo ato lesivo, sem contudo, dar ensejo ao enriquecimento ilícito da vítima.

Cabe, pois, ao Julgador, no caso concreto, valendo-se dos poderes que lhe são

conferidos nos arts. 125 e seguintes do CPC e, diante dos elementos destacados acima,

fixar o quantum, proporcionando à vítima satisfação na justa medida do abalo sofrido.

154

Nem se diga que a falta de equivalência obstaria a indenização, pois no dizer de

José de Aguiar Dias: “Não é razão suficiente para não indenizar, e assim beneficiar o

responsável, o fato de não ser possível estabelecer equivalente exato, porque, em matéria

de dano moral, o arbitrário é até da essência das coisas.” (in “Da Responsabilidade

Civil”, Vol. II, 10ª edição, Editora Forense, pág. 739).

Em sendo assim, seguindo-se a trilha da lógica do razoável, fixo o dano moral em

R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais).

Pelo exposto, julgo procedente o pedido, condenando o réu a indenizar o autor o

dano moral sofrido no valor de R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais), acrescidos de juros

legais desde a citação e correção monetária desde a data da sentença.

Condeno, ainda, o réu nas custas processuais e honorários advocatícios de 10%

(dez por cento) sobre o valor da condenação, ressalvando, contudo, o art. 12, da Lei nº

1060/50.

P. R. I. Dê-se Ciência ao Ministério Público.

Com o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquive-se.

São Gonçalo, 18 de dezembro de 2006.

SIMONE RAMALHO NOVAES

Juíza de Direito

155

ÍNDICE RESUMO 7 ABSTRACT 8 INTRODUÇÃO 09 I - A Travessia da “Família de Sangue” à “Família do Afeto” 12 1. O afeto como elemento essencial à estruturação da pessoa humana 12 1.2. O afeto e as famílias recompostas 17 2. Evolução da família no direito brasileiro 20 2.1. Função social da família 28

2.2. O dever de solidariedade 32 3. Os Direitos e Deveres da Relação Paterno-Filial 33

3.1. Direito à convivência familiar 40

3.2. O melhor interesse da criança 43 4. A Repersonalização 47 4.1. Dos Direitos da Personalidade 47

4.2. Dignidade da Pessoa Humana e Solidariedade Social 49

4.3.A dignidade da pessoa humana como princípio constitucional 51

4.3.1. A igualdade 56

4.3.2. A integridade psicofísica 57

4.3.3. A liberdade 58

4.4. O interesse social. O princípio constitucional da solidariedade social 60 II - Família, Sociedade e Estado: Autonomia e Intervenção 62 1. Visão panorâmica da intervenção estatal ao longo dos tempos na relação familiar entre pais e filhos 62 2. A intervenção estatal como garantia do exercício do poder familiar segundo o melhor interesse da criança 64

156

3. Da suspensão à perda do poder familiar 68

3.1 O contra sensu da perda do poder familiar 70

4. A responsabilidade civil pelo abandono moral 73 III – Ausência do Afeto e o Dano Moral Sancionatório 75 1. Evolução da responsabilidade civil - uma síntese apertada 75 1.1. Visão geral dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva:

a conduta culposa, o nexo causal e o dano 78 1.2. A conduta omissiva do pai e da mãe, o dever legal de

convivência, a lesão à dignidade do filho e o nexo causal 80

2. O dano moral e evolução histórica 81 2.1. A constitucionalização do dano moral 84 2.2.A difícil tarefa de conceituar o dano moral 85 2.3. O caráter compensatório e sancionador 88

2.4. O dano moral e as relações entre pais e filhos 93

3. O pai e a mãe ausente e a lesão à dignidade do filho 97 3.1. A exclusão do nexo causal – isenção do dever de indenizar 101 3.2.. Fato exclusivo da vítima 101 3.3. Fato de terceiro 102 3.4. As famílias recompostas. Padrastos e madrastas. Ausência de lesão 103 3.5. A prova pericial 104

4. Aplicabilidade dos princípios constitucionais – o norte do intérprete 105 4.1. A ponderação dos princípios 109 4.2. A cláusula geral de tutela da pessoa 111 4.3. Critério valorativo para a compensação – o papel do juiz no arbitramento do valor indenizatório 113 4.4. A proliferação das ações indenizatórias por dano moral 117 4.5. Análise do caso concreto 118

CONCLUSÃO 127 REFERÊNCIAS 130 ANEXO 138