Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

Preview:

Citation preview

RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4,15-26·2010 15

O anti-narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo1

EduardoViveirosdeCastro2

O Anti-Narciso éo títulodeum livroquenuncavouescrever,masquebrinco,à laBorges,queumdiavou.ÉumaespéciedeversãoparaaAntropologiadoanti-Édipo.SeÉdipoévistocomoprotagonistadapsicanálise,eucostumoprovocarmeuscolegasdeprofissãodizendoqueonossoénarciso.nossaprofissãopareceobcecadaemsaberoquedistingue“nós”dosoutros.Oquetorna“nós”,oshomens,tãoespeciaisdiantedorestodacriação?Ouoquediferencia“nós”,osocidentais,ou“nós”,ossujeitosdosdiscursosan-tropológicos,daquelasoutrassociedadesquenãofazemAntropologia?nãoesqueçamosqueAntropologiaéoestudodohomem,mas,aomesmotempo,dohomemmaisdiferentepossíveldaquelequeenunciaodiscursodaAntropologia:oselvagem,oprimitivo.

AAntropologiapossuicomoquestãofundadoradeterminarocritériofundamentalquedistingueosujeitododiscursoantropológicodetudoaquiloquenãoéele,istoé,tudoaquiloquenãoé“nós”:onãoocidental,onãomoderno,ouonãohumano.Oqueessesoutrosnãotêmqueosconstituemcomo“nãonós”?Equandosetratadedizerqueelessãocomonós,aAntropologiaexperimentaestaafirmaçãocomoumaconquista:“Osoutrostambémsãocomonós”.Comosetudoqueosoutrosprecisassemser,paraseralgumacoisa,fossesercomonós.Existe,naAntropologia,essaespéciedenarcisismoimplícito,que,aomesmotempo,éumadisciplinaquelutacontraissoequeestásempreprecisamenteco-locandoemquestãoosignificadodessepronometãocômodoqueéo“nós”,atrásdoqualseescondemtantosoutros.nós,osocidentais?nós,osbrasileiros?nós,oshomens,emoposiçãoàsmulheres?Ounós,oshumanos,emoposiçãoaosnãohumanos?naverdade,aAntropologiaéumadiscussãodequemsomosnós.Masnãodequaléanossaessênciadohumano,esimquemdiz“nós”emquecondições.nãoseiatéquepontoissoétãodiferentedapsicanálise.

AAntropologianãotemumnometranquiloparaesseoutroqueelaestuda:sãoosnãoocidentais,osnãomodernos,osnãocapitalistas.Ésempreum“nãoalgo”,um“nãonós”,definidodemaneiraprivativa.AAntropologiaclassicamentegiraemtornodeoqueessesoutrosnãotêmqueostornamdiferentesdenós.Seráocapitalismoagrandediferen-ça?Ouseráoindividualismo?Seráaracionalidade?FoinaGréciaquetudocomeçou?FoiemRomaquetudocomeçou?FoinaRevoluçãoIndustrialquetudocomeçou?Ou,quan-dosetratadeoporum“nãonós”quenãoéumhumano,oquenóstemosquenostornadiferentesdoreinoanimal?Alinguagem?Otrabalho?Ointerdito,aregra?Aneotenia,ocórtex?Ahipercorticalização,ametaintencionalidade?Ou,parareunir todasessasdife-rençasnumadiferençamaisantigaemaistradicional,seráqueéaalmaimortaloquenosdistinguedorestodacriação?

1 ConferênciaproferidanaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSPem7.3.2010.2 Antropólogo,professordeEtnologiadoMuseunacionalUFRJ.

16 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

Todasessasausênciassãomuitosemelhantes.Parecequeoproblemaéqueaprópriaquestão–“Oquenostornadiferentesdosoutros?”–jácontémemsiaresposta:deumladonóse,dooutro,eles–osoutros,quepodemserváriosoutros,poucoimporta,porqueoquenos interessanaverdadesomosnós.Éaíqueháonarcisismoeoantinarcisismoconstantes.Osujeitododiscursoantropológicoperguntaroquenosfazdiferentedosou-trosjáéumaresposta,porqueoqueimportanãosãoeles,esimnós.Ouseja,aAntropolo-giacomeça–estaéminhateseprovocativaparaosmeuscolegas–quandoelacomeçaarecusaraquestão“oqueéprópriodohomem?”.Recusarestaquestão,ameuver,éogestoinicialdeumaAntropologiacontemporânea.Recusarissonãoquerdizerqueohomemnãotenhaumaessência,ouquesuaexistênciaprecedaasuaessência.Ouqueoserdoho-meméaliberdadeeaindeterminação.Trata-sededizer,aocontrário,queaquestão“Oqueéohomem?”tornou-seumaquestãoimpossíveldeserrespondidasemhipocrisia.Semquesesigarepetindoemoutraspalavrasqueoprópriodohomeménãoternadadepróprio–oquenósestamosdizendohámuitotempo–,queohomemsecaracterizajustamenteporsuaindeterminação.Ohomeméaqueleseraquem,porchegarporúltimonacriação,foidadoopoderdetertodosospoderese,portanto,ohomemnãotemnadadepróprio.EsseéumtemaclássiconaMitologiaocidental.Comoéprópriodohomemser“nãoternadadepróprio”parecelhedardireitosilimitadossobreaspropriedadesalheias.

Istoéumamaneiradedizerqueestamosnumacriseecológicagravíssima,queéumacrisecultural,equesurgeprecisamenteportermoscolocadodemaisaquestão“Oqueéprópriodohomem?”ou“Oquenostornatãoespeciais?”.Oquenostornatãoespeciaiséquesomosumaespéciequetemacapacidadededistinguirnãosóasimesmo,masto-dasasoutrasespéciesdoplaneta,oquenãochegaaserumprivilégio.Essaideiadequeoprópriodohomeménãoternadadepróprioéumarespostaquejátemmilêniosnanossatradiçãoocidental,equejustificaoantropocentrismo.Asideiasdaausência,dafinitude,dafalta,seriamcomoqueadistinçãoqueaespéciecarrega,essefardo,embenefício(diriamoscínicos)dorestantedacriação,àmaneiradeumapesadacondecoração.Ohomemseriaoanimaluniversal,aqueleparaquemexisteouniverso,seseguirmosHeidegger.Eletemessacuriosadefiniçãodequeosseresinanimadosnãotêmmundo,osseresanimados,masnãohumanos,sãopobresemmundoeohomeméumserricoemmundo.Heideggertemumafrasefamosaquediz:“nemmesmoacotoviavêaclareira”.Aclareiraéessaabertura,oabismosobreoqualohomemsedebruça.EusempreacheicuriosocomoHeideggersabiaqueacotovianãoviaaclareira.Somoslevadosasuspeitarqueoshumanosnãoocidentaissãoapenasremediadosemmundo.Porquericosemmundomesmo,sónós.nóssomososhumanosacabados,osmilionáriosemmundo,osacumuladoresdemundo,ou,parausaraexpressãodeHeidegger,osconfiguradoresdemundo.Estranhamaneiradesedepreciar.

Emoutraspalavras,ametafísicaocidentaldefatopareceserafontedetodososco-lonialismosquesoubemosinventar.Achoquecontraissotemosde,aomudaroproblema,mudaraformadaresposta.Contraessesgrandesdivisores–nóseosoutros,oshumanoseosanimais,osocidentaiseosnãoocidentais–,temosdefazerocontrário:proliferaraspequenasmultiplicidades.nãoonarcisismodaspequenasdiferenças,aquelecélebrequeFreuddetectou,masoqueagentepoderiachamarde“oanti-narcisismodasvariaçõesin-finitesimais”.nãosetratadeformaalguma,comolembrouDerrida,desequestionarissoepregarumaaboliçãodasfronteirasqueseparamoshumanosdosnãohumanos,aspessoasdascoisas,ossignosdomundoetc.Asfantasiasfusionaisnãoestãoemquestão.Trata-se,decertamaneira,detornarinfinitamentecomplexaessalinhaqueseparaohumanodonão

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 17

humano.Quebichonãoégente,atéosbichossabem,nãoéprecisosergenteparasaberdisso.Masqueessadiferençaécomplexa,istoestásempreemjogo.

AAntropologiacomeçajustamentequandocolocamosessasdiferençasemquestão,emvezdenosrefugiarmosnelapara,emseguida,explorarmosonossoprópriocontinenteedescobrirmosoqueéprópriodohomem.EoqueavulgatametafísicaocidentalclássicaentendecomocaracterísticodohumanoédemasiadoparecidocomoqueaAntropologiaentendiacomosendocaracterísticadoocidentalporoposiçãoaonãoocidental.Ésuspei-tamentesemelhante.Porexemplo,aoposiçãoentreumuniversodeimagenseumuniver-sodeconceitos;umuniversoemqueos significados sãomuitocontextualizadosversusummundoondearazãoaspiraàuniversalidade;ummundoemqueaspessoasvivemnopresenteversusummundomarcadopelaatemporalidade.Por issoqueeudiziaque,noocidente,oshumanosestãoparaosanimaisassimcomoosocidentaisestãoparaosoutros.Emoutraspalavras,estoufalandodeumametafísicaracista,queéametafísicaespecista,queéametafísicatout court.Comoseumfrancêsestivesseparaumarawetéassimcomoumchimpanzéestivesseparaumapedra.Oucomoseumeuropeufosseumprimatamaisneotênicodoqueumaraweté,porqueascaracterísticasquedistinguemumhumanodonãohumanosemostramdemaneiramaisacabadaentrenós.Ésempreadmirávelacoinci-dência:entretodososhumanos,nóssomososmaishumanos.Háqueseduvidardisso.

Emoutraspalavras,oobjetivodaAntropologiacontemporâneanãopodesermaisodeencontraressesdiferentessucedâneosdaglândulapinealquefazoshumanosdiferentesdorestodanatureza.Anaturezanãopodialigarmenosparaadiferençaentreoshumanoseorestodanatureza,comovemosprovasabundantesànossavolta.Osantropólogosesta-rãomaisbemocupadosestudandoasdiferençasqueoshumanossãoefetivamentecapazesdefazer.Adiferençaentreoshumanoseosdemaisviventeséapenasumadiferençaentremuitasquenósfazemos.nãoénecessariamenteamaisnítida,amaisestávelouamaisim-portante.AAntropologiatemdeparardesepreocuparcomoqueéohumano,porqueháquestõesquesóserespondemquandonãoseascoloca,eessamepareceseruma.

Ofilósofo,quandosevêdiantedeumadaquelasquestõesdificílimas–porexemplo,“qualéadiferençaentreoshumanoseosnãohumanos?”,“oquedistingueanaturezadacultura?”–,está,emgeral,reduzidoaosmétodosclássicosdisponíveisdafilosofia:ovirarparadentro,aintrospecção,acríticadoconceito.Oantropólogotemumavantagem:elepodesevirarparaoladoeperguntarparaosíndios–ousejaláquemeleestude–oqueelesachamdessaquestão.Ointeressanteéquerarasvezeslheocorreperguntaraosoutros,porqueelepensaquejásabearespostaequersimplesmentevercomoarespostadosoutrosseadequaàrespostaqueelejátem.Elevailásimplesmenteconferirseosoutrossabemoqueelesabe,quandoaquestãodedescobrirseosoutrossabemoqueelenãosabe,emgeral,nãolhepassapelacabeça.Et pour cause!Seelenãosabe,comopoderiasaberquenãosabe?Masoantropólogotemessavantagemdepodervirarparaoladoeperguntar.FoiistoqueeutenteifazerdiantedaquestãofundadoradaAntropologia,“oqueéohumano?”.Ou,paradizerdeumamaneiramenosgenérica,“qualadiferençaentrenaturezaecultura?Existediferençaentrenaturezaecultura?Essadiferençaéestável,fixaenítida?Ouéumadiferençainstável,móvel,obscuraeconfusa?Éumadiferençahistoricamenteconstituída?Éumadiferençaculturalouumadiferençanatural?Ouéumadiferençaqueestásituadanumlugarnãolocalizável,paraalémdadiferençaqueelainstituientrenaturezaecultura?”.Diantedessasquestões,nãohá36respostas,masumasquatrooucinco.Algumas,agentenuncaouviu–provavelmenteestaéaapostadoantropólogoquevaiparaocampo.Seé

18 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

parairatéooutroladodomundo,énaexpectativadequehajarespostasdiferentese–aexpectativaaindamaisexcitante–perguntasdiferentes.Eque,portanto,aquestãonãoédeencontrarasrespostasqueosíndios(ousejaláquemfor)dãoàsnossasperguntas–porquesempreentendemosqueasnossasperguntassãoasperguntasquetodoserhumanofaz–,mascolocarsobsuspeitaestepressupostoeimaginarquetalvezasperguntas,elaspróprias,sejamoutras.Eaínósestamosrealmentediantedeumproblemainteressante.

Oqueeuestousugerindo,antesdechegaràrespostaqueosíndiosdãoaessasques-tões,équetemosduasconcepçõesradicalmenteantagônicasdeAntropologiae,ousodizer,deCiênciasHumanas–incluindoaíPsicanálise,Psicologia,Sociologia,todasessas–entreasquaiséprecisoescolher.Aminhaescolhaéclara,masissonãoquerdizerqueeuachequesejaaúnicaouaboa.Temosumaimagemdoconhecimentoantropológico,oudasciências humanas emgeral, como sendoo resultadoda aplicaçãode conceitos que sãoextrínsecosaoqueestamosestudando.Agente jásabedeantemão,porexemplo,oquesãorelaçõessociais,cognição,psiquismo,parentesco,religião,política,economia,evamoslánofimdomundoparavercomoessasentidadesserealizamnesteounaquelecontextoetnográfico.nóstemosoconceitoequeremossimplesmentevercomoeleépreenchido.Comosabemos,essasentidadesse realizam,emgeral,pelascostasdos interessados.Osinteressadosrealizamsemrealizar–nosentidoinglêsdapalavra–queestãorealizandoessesconceitos.Dooutrolado,comoalternativaaisto–eesteéojogodelinguagemqueeuproponhocomosendomaiscaracterísticodaAntropologiacontemporânea–,umaideiadoconhecimentoantropológicocomoenvolvendoapressuposição fundamentaldequeosprocedimentosquecaracterizamainvestigaçãosãoconceitualmentedamesmaordemqueosprocedimentosinvestigados.Seoshumanossãodefatotodosiguais,éprecisoqueanossainvestigaçãosejaalgodamesmanaturezadoqueestamosinvestigando.nãopode-mosafirmarqueoshomenssãotodosiguais,porumlado,eretirarissocomaoutramão.Seoshumanossãotodosiguais,antropólogosestudamantropólogos,psicanalistasestu-dampsicanalistase,portanto,nãoháondecolocarassimetrianessainvestigação.Temosdeassumirqueosprocedimentosdeconhecimentosãoequivalentes–umaequivalênciaqueproduzumanãoequivalênciaradicaldorestotodo.PorqueaquelaprimeiraconcepçãodeAntropologiadequeeufalavaimaginaquecadaculturaoucadasociedadeéumaespéciedesoluçãoespecíficaparaumproblemagenéricodacondiçãohumana.naverdade,agenteimaginacadasociedadecomoquepreenchendoumaformauniversal–conceito–comumconteúdoparticular,esquecendoqueessaformauniversaléonossoconteúdoparticular.

AsegundaconcepçãodeAntropologia,aocontrário,suspeitaqueosproblemasse-jamradicalmentediversose,sobretudo,elapartedoprincípio,ameuverfundamental,dequeoantropólogonãosabedeantemãoquaissãoosproblemasquecaracterizamaquelasociedade.Estenãosabernãoéempírico.Éumnãosaberpropriamentetranscendental,umaignorância,umanesciênciaconstitutivadadisciplina.“Eunãoseioqueinteressaaeles”,enãosimplesmente:“Eunãoseicomoelesrespondemaoqueinteressaamim”.OqueaAntropologiapõeemrelaçãonestecasonãosãodiferentessoluçõesculturaisparaumproblemanaturalcomum:“Comoasolução‘proibiçãodoincesto’aumproblemauni-versalévividoemcadasociedade?”OqueasegundaconcepçãodeAntropologiacolocaemrelaçãosãoproblemasdiferentes,nãoumproblemaúnicoesuasdiferentessoluções.AartedaAntropologia–eeuousariadizeraartedasCiênciasHumanas,ouoquetornaasCiênciasHumanasumaarte–éaartededeterminarosproblemaspostosporcadacultura,nãoadeacharsoluçõesparaosproblemaspostospelanossa.Porquenósnãopodemoster

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 19

apretensãoridículadeimaginarquetodasasculturasestejampreocupadascomosnossosproblemasequeexistam,sobretudo,pararesolvê-los:“Vamosvercomoosíndiosresolvemnossosproblemasderelaçãocomanatureza”.Eficamosdecepcionadosquandovemosqueosíndios,primeiro,têmoutrosproblemase,segundo,nãoresolvemosnossos.Assoluçõesdelesnãoservemparanósportodasasrazõesdomundo.Desdeporquesãosociedadescompletamentediferentesatéporquenãovieramaomundopararesolverosnossosproble-mas.Essaéumafortetomadadeconsciência,émaisumadaquelasferidasantinarcísicas.Portanto,sónoscabesaberquaissãoosproblemasdelesecomoarelaçãodosproblemaspodenostirardenossosprópriosimpasses,quenãosãoosdeles.

Emtodosossentidos,historicamente,epistemicamente,oproblemaqueconstituiaAntropologiaéodasrelaçõesentrenaturezaecultura.Tem-seaideiadequetodofenô-menohumanoconsistenumaimbricaçãocomplexaentredimensõesuniversais(própriasdaespéciehumanaenquantoespéciezoológica)edimensõesculturais(própriasdecadasociedadeenquantoespéciesociológica).Écomoseohomemfosseumserduplo–océ-lebrehomo duplexdeDurkheim–porquepossuiumladonaturaleumladocultural;umladoindividualeumladosocial;umladoprivadoeumladopúblico.Éessaideiadequeohomeméumserdivididoesóohomeméumserdividido.Osanimaiseosdeusessãoseresunilaterais,completos,cadaumaseumodo.Osanimaissãosócorpo,sóinstinto,eosdeusessãosóespírito, só instituição.Oshomens,aocontrário, têmdeconvivercomessaduplaherança,essaduplatara,domacacoedoanjoe,portanto,todooproblemadaAntropologiaéadministrar,adjudicar,alocarapartedomacacoeapartedoanjo,quesãocompletamenteopostas–aindaqueemalgumasculturaselassejamamesma.AAntropo-logiaestáassentadanumadicotomiafundadoraentrenaturezaeculturaquetemváriosavataresnahistóriadadisciplinaemesmoantes–nafilosofiagrega,comPhysisenomos,porexemplo.ApartirdoséculoXVIII,aoposição“naturezaecultura”ganhamaisoume-nosessenomeesetornaumpoucoonomegenéricoparaessacondiçãohumana,divididaentreumaspectopropriamentehumanoeumaspectoqueohomemcompartilhacomorestodacriação.Classicamente,estáassociadaàpolaridadefundamentalnoocidente,emparticulardepoisdoCristianismo,entrecorpoealma,emqueocorpoénaturezaeaalmaécultura.Emalemão,“CiênciasHumanas”sediz“CiênciasdoEspírito”,“CiênciasdaAlma”.Éaideiadequeaalmaéadimensãocultural.AsCiênciasHumanasnãosãosimplesmenteumramodaZoologiaporqueoshomenstêmalgumacoisaamais.Podeseramenos–umafalta,umaausência–maséumafelix culpa,umafaltaquepotencializaohomemelhedáessaarrogânciaconhecida.

Diantedestequadro,aquestãoqueoantropólogopodesecolocar–comoaAn-tropologiacolocouclassicamente–écomoessaoposição“naturezaecultura”seexprimenasmitologiasdeoutrasculturase,emseguida,reconfortar-seemverquetodosossereshumanosdistinguemigualmenteossereshumanosdorestodosseresnãohumanos.Seháalgohumano,éaideiadequeoshumanossãodiferentesdosnãohumanose,comisso,pode-sevoltarparacasasabendooquejásesabiaantesdesair.Aalternativaaisso,comoeujádisse,évirarparaoladoeperguntarparaoseuanfitrião,juntoaoqualvocêresolveumorarporalgumtempo.Paraoíndioaraweté,aquestãonãofariaomenorsentidoporqueeunãosaberiacolocá-lanessestermosparaumíndioaraweté.nãoporqueelenãotenhacapacidadedeentendê-la,massimplesmenteporqueeunãotenhocapacidadedeformulá-lanumalinguagemdessetipo:“Oquevocêsachamdaoposição‘naturezaecultura’?”.Pri-meiro,porqueeunãoseidizernaturezanemculturaemaraweté.Depois,porquenodia

20 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

emqueeusouber,eunãoprecisomaisdizer,porque,decertamaneira,estaeraaquestão:“comosedizistonessalíngua?”.

nóstemosessaideiadequeossereshumanossãoumcasosui generisnacriação,umanimalqueseautotranscendeu,eque,portanto,éanimalporumlado,masnãoéporoutro.Etodaquestãoé:Ondefoi?Quandocomeçou?Foiopecadooriginal?Foialinguagem?FoiÉdipo?Foiosimbólico?Foiotrabalho?Foiacorticalização?Foiopolegaroponível?Aperguntaé:“Comoéissonomundoindígena?Seráqueéamesmacoisa?”

Omundoameríndiotemummodoespecíficodeconceberascoisas.Classicamenteéoqueosantropólogoschamamdeanimismo.Aideiadequeomundointeiroécompostodepessoas.Aespéciehumananãoéaúnicadotadadascaracterísticasquenós,ocidentais,damosaela.Asárvoresfalamoupensam,osanimaissãogente(pordebaixodaquelaapa-rênciaanimalelesserevelam,quandoestãolongedasnossasvistas,comosendoiguaisanós).Emsuma,essaideiadequeomundoéummundoencantado,emquetudoéanima-do.nósimaginamos,emgeral,queomundoanimadoéummundomuitoreconfortanteequeperderessaanimaçãodomundoéumaquedanoreal.Acaídanorealédescobrirmosqueomundonãoéigualamim.Etem-seaideiadequeosíndiosestãonessafase,numestágio transicional,naquelemomentoemque tudoéanimado.Enós imaginamosquenessemundotudoémuitoconfortável.Possogarantirquenãoé.Aocontrário,setudoéhumano,tudosetornaextremamenteperigoso.Setodasascoisassãodotadasdeintenção,devontade,deraciocínioedecapacidadedecomunicação,administraromundo,viver,torna-seumatarefamuitoperigosa–muitomaisdoqueparanós,quesótemosdetemernósmesmos.Se tudoécomonósmesmos,oproblematorna-semuitomaior.Esseani-mismoindígenacomeçaporessaideiadequetodososseressãohumanos,possuemumaessênciahumana,porbaixodesuaaparêncianãohumanoide.Éumaideiamuitocomum.Osíndiosfalam:“Osanimaissãogente,osanimaissãocomonós.Elestêmessaaparênciadebicho,masquandoelessaemdanossafrente,elestiramessapeleanimal,queécomoumaroupa”. Istoé, eles se revelamcomoantropomórficos, como idênticosanós, comofeitosdamesmaforma.Quandoseolhamentresi,elesseveemcomogente.Quandoumaonçaolhaparaoutraonça,elanãovêumaonça,elavêumapessoa.Equecadaespécie,naverdade–éumpoucoaconclusãoquevocêpodetirardosmitos–épotencialmentedotadadessefundocomumdehumanidade,equetodaespécieéhumanaparasimesma.Isto,traduzidoemlinguagemcomum,éanimismo:tudoégente,éummundodefadas,ummundoencantado.Eelesnormalmentedizemqueessaparteinvisível,essecomponentein-visíveldosanimais,dasplantas,dasoutrasespécies,queéhumanoide,éoquechamamdealma.Aalmadoanimaléhumana.Todososanimaispossuemumaalmahumana,dondeaideiadeanimismo.Issotemumaalmae,tendoumaalma,essaalmaénecessariamentesemelhanteànossa.

Entãoosanimaisseveemcomogente.Todosseveemcomogente,masissonãosig-nificaqueelesnosvejamcomogente,anós,humanos.Cadaespéciesóvêasicomogenteenãoasoutras,coisaquepodemos,aliás,comprovarnósmesmos.Osíndiosestãoper-feitamenteconscientesdequeestacaracterísticadesevercomogenteéacoisamaisbemdistribuídadomundo.Então,nãoéummundoemquetudoéhumano.Tudoéhumano,mas,aomesmotempo,nadaéhumano.Osporcosdomato,quandoveemoshumanos,nãonosveemcomogente,elesnosveemcomoonçasoucomoespíritoscanibais,porquenósmatamosecomemososporcos.Sevocêcomeporcoéporquevocênãoéporco.Sevocêcomegenteéporquevocênãoégente.Damesmaforma,asonças,quecomemoshumanos,

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 21

nãonosveemcomohumanos.Elasseveemcomohumanasenosveemcomoporcos,vistoquenosatacamecomem,exatamentecomonósfazemoscomosporcos.

Existeumaespéciedeconcepçãoumpoucosobomodelodacadeiatrófica,dapresaedopredador,emquecadasersevênocentro,comotendoumpredadoràdireitaeumapresaàesquerda.Asimesmo,sevêcomocongênere,comohumano.Osporcosseveemcomohumanos,veemoshumanoscomoonçaseveemasfrutasqueelescomemcomopor-cos.Cadaespéciesósevêasimesmacomogente,oquecolocaimediatamenteoproblemaqueésaber,afinaldecontas,oqueéessahumanidadedequetodososseresdispõem.Emaisainda:colocaimediatamenteoproblemadequeacondiçãohumanaéprofundamenteincerta,porquedependedoolhodooutro.Ouseja,aideiatranquilizadoradequeseafirmarhumanoéumaafirmaçãodechegada,torna-semuitotrabalhosa.Éumaconquista,umalutaconstanteentreospontosdevistaquepovoamouniverso.Porquesetudoéhumano,vocênuncasabecomquemvocêestátratando.Aideiaclássicadomundoindígenaéque,diantedeumanimalquevocêencontranamataparacaçar,éfundamentalnãoenxergaroladohumanodele.Sevocêchegaravê-locomohumano,eleganhouaguerraevocêpas-souparaoladodele.Vocêsetornouumanimalcomoele,porquefoicapazdevê-locomohumanoe,portanto,perdeuasuahumanidadeenquantotal.Emoutraspalavras,vocêsetornouumanimal,vocêestádoente.Vocêtevesuaalmaraptadaporaquelasubjetividadealienígena.Eessametáforadaperspectivaéquemefezchamaressaconfiguraçãode“Pers-pectivismo”:aideiadequeomundoédiferenteparacadaespécie.

Aprimeiraimpressãoquedáessaideiaédeummalcomoonossorelativismocul-tural.Ora,os índiossãorelativistas–maisaindadoquenós,maisradicais.Elesnãosódizemquecadaculturavêomundodeumjeito,comoextrapolamdizendoquecadaespé-cievêomundodeumjeito.Enãohánadadeespantosonisso,sobretudoporqueanossaafirmaçãosupõequeomundonãosemexe,omundoéumsó.Ospontosdevistavariam,masomundoficaquieto.Masseomundomudacomavisão,estamosnorelativismo,umacoisadodiabo.Odiaboémúltiplo,amentiraémúltipla,masaverdadeéuma,Deuséumsó.Odiaboéopaidamentira,opaidasilusões,opaidastransformaçõese,portanto,orelativismoéumacoisaperigosíssima.nãoéporacasoqueaprimeiradeclaraçãodoatualPapa tenhasidoumacondenação formaldorelativismocomosendoa raizde todososmalesmodernos.nãoéafome,nãoéaopressão.Tudoissoseseguedorelativismo,queevidentementeéaconsequênciadoateísmogeneralizado,dafaltadeDeusnomundo.SemDeus,tudoépermitido.Então,aimpressãoquedáéqueosíndiossãorelativistas.Ouseja,pós-modernos.Ouseja,maismodernosquenós.Ouseja,aindamais“nós”quenós. Jáchegaramondeagentequeria,masaindanãochegou.Istoé,maisumavezosíndiosestãolápara resolverosnossosproblemas. Se você, entretanto, for veroqueos índios estãodizendo,nãoérelativismo.Esteéumexemploclássicodeque,aoperguntarparaoíndio,rompem-seasdicotomiasqueconstituemascondiçõesdainteligibilidadedomundoparanósou,podemoschamar,asgradesdaprisãoquenosprotege.Estasgradessãoaideiadeumanaturezauniversal,ummundoexteriorestáveleobjetivo;eumaculturaparticular,ummundointernovariávelesubjetivo–omundodalinguagem,dosigno,daconvenção,datradição,daeducação.Dooutrolado,omundodafísica,frio,impessoal,externo,ex-trínseco,queestáláforaequenãopodialigarmenosparaoqueagenteachadele.Estaéanossaideiadecomoomundofunciona.

Osíndiosnãoestãodizendoquecadaespécievêomundodeumjeito.Osíndiosdi-zemqueasonçassãogenteparaelas.Então,quandovocêvêumaonçanomatocomendoo

22 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

corpodeumanimalqueelamatou,bebendoseusangue,elesdizemque,naverdade,nãoéissoqueestáacontecendo.Aonçaestátomandocerveja.Paraela,oqueestáaliéumhuma-nofestejandocomumacuiadecerveja.Quandovocêvêumaantaseespojandonaqueleslamaçaisqueficamnabeiradorioparatiraroscarrapatos,elaestánumacasacerimonialfazendoumritualqueaquelatribopratica.Eassimvai.Ouseja,osanimaisvivemtodossobomododacultura,exatamentecomonós.Asonçasfazemoqueoshumanosfazem.Elas tomamcerveja; elas secasamcomumparenteespecíficoqueaquela triboentendequeéoparenteapropriado;elastêmchefes,têmpajés,têmdoenças.Hátodoumprocessodetransmutaçãodeperspectivaquemudacompletamenteoconteúdodascoisasquandonarradasdooutrolado.

Boapartedosmitos indígenasconsisteprecisamenteemnarrardemodocômicoosequívocosquesurgemquandovocêpassadeumaperspectivaparaoutra.Sãocomunsmitosemqueoíndioestáperdidonafloresta,morrendodefome,eencontraumaaldeiaperdidanamata,depessoasmuitobonitas.Elepedecomidaeouve:“Claro!Vamostrazerparavocêumpratodepeixeassadocombatatas”.Oíndioachaumamaravilha,maschegaumacuiacheiadevíscerashumanascruas,sangrando.Elediz:“Issoaquinãoépeixeassa-do.”,masarespostaé:“Éclaroqueé!”.Aconclusãodomitoéaseguinte:oíndiosedácontadequeseissoépeixe,essaspessoasnãosãopessoas.Talvezsejamonças,quecomemtripascruas,masqueveemaquilocomopeixe.

Osíndiosnãoestãodizendoqueéomesmomundoecadaespécieovêdeumjeito.Estãodizendoquecadaespécievêomundoexatamentedamesmamaneira.Todomundotemcerveja,tempajé,temcasacerimonial,temrede.Oaparelhodaculturaéomesmo.Ascategoriassãoasmesmas,osconceitossãoosmesmos,omundoémobiliadodamesmaforma,sobtodosospontosdevista.Oquemudaéomundoenãoomododevê-lo.Apala-vracervejasignificacervejaparanósesignificacervejaparaasonças.Maselanãoserefereàmesmacoisa.Quandoaonçadizcerveja,euvejosangue,masoqueaonçaquerdizerquandodizcervejaéamesmacoisaqueeu:umabebidaboaqueeutomocoletivamenteeficoembriagado.Masparaumhumano,aquilonãoécerveja.Oproblemaéoinversodonosso.Imaginamosquecadaculturavêomundodeumjeitodiferente,maseuconsigotra-duzirumaculturanaoutra,porqueeutenhoummundoláforaparaservirdegarantia.Écomoseasculturasfossemvastosvocabuláriosdesinônimos.Qualéosinônimodecervejanaquelaoutralíngua?Comosefossepassardeumalínguaparaoutraatravésdeumacoisaestávelqueestáforadalinguagemequepermitequeeuconecteistocomaquilo.Oqueosíndiosestãoformulandoéexatamenteocontrário.Éaideiadeummundohomônimoenãosinônimo,emquevocêtemasmesmaspalavras,osmesmosconceitos,masquesere-feremacoisasinteiramentediferentes.nãoécomodogecachorro.Écomomangaemanga(mangaofrutoemangadaroupa).UmantropólogointerpretaaAntropologia,normal-mente,comoumatarefadeencontrarossinônimos:“comoelesdizemasmesmascoisascomoutraspalavras?”,porqueascoisassãoasmesmas,omundoéomesmo,osproblemashumanossãoosmesmos.Vamosverapenasquaissãoaspalavrasqueelesusam.Vamostraduziralinguagemdelesnanossalinguagem.

Eseoproblemanãofossedelinguagem,masdemundo?Estaéaquestãotalcomoalinguagemindígenaformulaascoisas.Donossopontodevista,oquemudaéopontodevista.Omundopermaneceidênticoeestanque,háumabarreiraontológicaentreomundoealinguagem.Paraosíndios,oproblemanãoéalinguagem,éomundo.Todomundodizamesmacoisa,todomundoégente.Paraosíndios,issovaijuntocomofatodequeaalma

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 23

éidênticaemtodososseres.Assim,todososseressãohumanosetodososseresveemascoisascomooshumanosveem.Entãoaperguntaé:ondeestáadiferença?Seasonçassãogentecomonós,porquenósnãoasvemoscomogentenemelasnosveemcomogente?nestemundo,adiferençasurgenocorpo.Osíndiosdizemissoclaramente:“Asonçasnãosãocomoagenteporqueocorpodelasédiferentedonosso.Aalmaéigual,masocorpoéoutro.”Enquantonossamaneiradeconceberéocontrário:osnossoscorpossãoiguais,numcertoplanofundamental(somostodosfeitosdecarneeosso,decarbono,deDnA,épelocorpoquenósnoscomunicamos).Aalma,aocontrário,éolugarondenosdistingui-mos.Temosamesmaalmaimortal,masosconteúdosdaalmasãoolugarondeadiferençasecoloca.Dondeaimportânciaquedamosàcultura,umatributodaalma,àeducação,umprocessodetransformaçãodaalma,eàconversãoespiritual,comomodelodamudança.Paraosíndios,adiferençanãoestánaalma,estánocorpo.Éocorpoquemudaesãoasafecçõescorporaisquesetornamcríticasparapensaradiferença.Porissoocorpoindígenaétãosobredeterminadoesteticamente.Eleémarcado,perfurado,pintado,adornado,mo-dificado,porqueénocorpoquevocêtemqueatuarparaproduzirumhumanorealmentehumano.

TodaestaanálisecomeçouquandoeumedebruceisobreumaanedotaqueoLévi-StrausscontanoRaça e história.AanedotaédeQuevedo,umcronistaespanholnaAmé-ricadoséculoXVI,etratadodebateentreoscolonosespanhóisnaépoca:“Osíndiostêmalma?Elessãohumanos?”Osespanhóismandaramumacomissãodeinquéritocompostaporpadreseteólogosparaverificar,in loco,seosíndiostinhamounãoalma.Mandaramumaequipede,digamosassim,protopsicanalistas,parainvestigarseosíndioseramgenteousesótinhamaparênciadegente.Enquantoisso,dizLévi-Strauss,osíndiospegavamosespanhóisqueelesconseguiamcapturarnaguerra,matavam,colocavamemcanoascheiasd’água e esperavam,paraver seo corpoapodrecia.Faziamumaexperiência físicaparaver:“Essepessoalégente?Vamosverseocorpodelesédeverdadeousesãoespíritos”.Lévi-Straussdiz:“Osespanhóiseosíndiossãotragicamenteiguaisnofatodeduvidaremliminarmentedahumanidadeumdooutro.Elesseequivalemnumcertoponto”.Elecon-cluidestaanedotaafamosamoralparadoxal:obárbaroé,antesdemaisnada,aquelequeacreditanabarbárie.Epelaanedotadele,todomundoacreditanabarbárie.Somostodosbárbaros,exceto,provavelmente,oantropólogo,quenãoacreditaembarbárie.Maisumavez:vivanós!Aanedotaéparamostrarqueooutrodooutroéomesmo.Écomoseooutrodoíndiofosseomesmoqueomeuoutro:onãohumano.Emoutraspalavras,énaalterida-dequenosassemelhamos.Essaéaironiadaanedotalevistraussiana.

Entretanto,ooutrodooutronãoéexatamenteomesmo.Oproblemadosespanhóiserasaberseosíndiostinhamalma.Oproblemadosíndioserasaberseosespanhóisti-nhamcorpo.Aquestãodosespanhóisnãoeraseeleseramdecarneeosso.Decarneeosso,elesevidentementeeram.Aquestãoerasabersealémdecarneeossoelestinhamalma.Dooutrolado,paraosíndios,nãohaviadúvidaqueosespanhóistinhamalma,porquebichotambémtem.Oproblemaerasaberseeleseramsóalma,seeleseramespíritos.Entãonãoéomesmoproblema.Ou,antes:éomesmoproblema,masvistodemaneiracompletamentediferente.Oquetornavaohumano,humano,paraosespanhóis,eraaalma;paraosíndios,eraocorpo.

nasociedadeameríndia,éaculturaqueéuniversal.Éaculturaqueaproximatodosospontosdevista,todasasespécies,todasassociedades.Oquedistinguecadaespécie,oucadapontodevista,éanatureza,ou,parausaranossalinguagem,ocorpo.Éocorpoque

24 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

separa,éaalmaqueune.Porissonóschamamosdeanimistas,comopoderíamosnoscha-mardematerialistas,oudecorporalistas,vistoquenósachamosqueocorpojuntatudo.Issoexplicatambémporquetemosessaobsessãocomaquestãodaeducaçãoedaconver-são,enquanto,paraosíndios,paraalgumacoisamudar,éprecisoqueseajasobreocorpo.Setodososseresseveemcomohumanos,comoeuproduzoumaimagempropriamentehumanadocorpo?Setodososseressãohumanos,oquetornaaminhaespéciehumana?Éprecisoqueeumeconstituaumcorpomenosgenéricoqueessecorpocomquetodasasespéciesseveem.Daíesseparadoxotipicamenteindígena,emqueoíndiosetornatantomaishumanoquantomaisfantasiadodeanimalelesemostra.Émuitoimportantequeelepeguepartesdeanimaisdiferenteseproduzaumaquimera,umcorpohumanocomoscorposanimais.

Comisso,oqueéespecificamentehumanonãoéohomo sapiens,comoparanós.Éatribotal.Paraosarawetésadistinçãoentreumaraweté,umcaiapóeumbranconãoéonto-logicamentediferentedadistinçãoentreumaraweté,umaonçaeumtucano.Aespéciehu-mana,enquantotal,nãoéaespécienatural(homo sapiens),nãoéumacategoriapregnantecomoéparanós.Oqueépregnanteparaeleséacategoriadossóciosdoprópriogrupo–“humanomesmo,sóeu”.Háestecuriosoparadoxo:osarawetésdizemqueosanimaissãogenteeoscaiapóssãobichos,porqueéumatriboparticularmenteagressiva.nósfazemosoduploinversodisto:caiapóéclaroqueégenteeonçanãoégentedeformaalguma.Ouseja,osíndiosparecemmaisavarosnasuaextensãodahumanidadee,aomesmotempo,deumagenerosidadeexcessiva.Istoparecefaltaeexcessoporquenósmesmostemosumaoutraeconomiamuitorígidadoqueéhumanoedoquenãoéhumano.Eminglês,diz-sehumankind,queéhumanidadeenquantoespécie,ehumanity,queéhumanidadeenquan-tocondição.Emportuguês,entendemosqueacondiçãohumanasópodeseratribuídaàespéciehumana.Entendemosqueacondiçãosegueaespécie.Seeuidentificoalgocomohomo sapiens,tenhodedaraeleosfamososDireitosHumanos.Paraosíndioséoinverso:acondiçãoprecedeaespécie.Épossível,dopontodevistadestaconcepção,umcasamentointerespecífico.Seosanimaissãogente,nãoseadmiraquenosmitososhomenssecasemcomasonças,seunamàsárvores,quehajatodoumtráfego.

Ametamorfoseéotemafundamentalindígena,enquantoparanós,otemafunda-mentaléaconversão.Quandoentendemosqueoscorposjáestãoconectados,ametamor-fose,naverdade,nãomudamuito.Tantoéquepodemosfazerenxerto,transplante–aideiadetrocardecorponãonospareceabsurda.Podemosimaginaranossaalmamudandodecorpo.Oinversoéimpensávelparanós,impensávelnosentidodequeéumacontradiçãológica:eunãopossotrocardealmaemanteromesmocorpo,poisnãosoumaiseu,porqueoeuestálocalizadoevidentementenaalma.Vocêpodepegarsuaalmaejogarnumcorpomaisconveniente,masvocênãovaiquerertrocarsuaalmaparamanteromesmocorpo.Vocêquerumoutrocorpomelhor;agora, suaalma,vocêachaqueestámuitoboa.Porissoasculturasindígenasnãosãoculturasdepossessão.Aideiadealmasqueentramemcorposetomamcorposnãoéumaideiaimportantenasreligiõesameríndias.Éocontrá-rio:éasaídadaalma,paraocuparoutroscorpos,muitomaisdoqueaentradadealmasparaocuparoseucorpo.Oxamãouopajéindígenanãoéumpossesso,comoomédiumclássicoeuropeuouafricano,masum“excorporador”.Éalguémcujaalmasaiviajando,eéaalmaqueadotaospontosdevistadiferentesdasoutrasespéciesenãoumveículoparareceberaalmaalheia.

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 25

Écomoseestivéssemosdiantedeummundoviradopeloavesso–oqueaindaéummododemasiadogrosseirodeconceberasdiferenças,masdáumaideiadecomo,nestemundo,asquestõesquedefinemaAntropologia,ouasCiênciasHumanasemgeral,nãopodemseformularnamesmalinguagem.Eaíficaodesafio:oqueseriaumaAntropologiaouumaPsicanáliseouumaSociologiafeitadestepontodevista?Ouseja,oqueacontecenãoéumamudançadeopiniãoemrelaçãoaumaessênciaobjetivaextrínseca,natural,mas,aocontrário,umatransformaçãodoreal.Mudançanãodesignificado,masdereferência.nãoéumamudançanalinguagem,masumamudançademundo.Oqueistoimplicaria?Estaéaquestãocomaqualeutenhomehavidodesdeentão.Comoconstituirumacontra-antropologianaqualohumanonãoémaisumapropriedadesingular,mas,aocontrário,apropriedademaisgeraldouniverso,ofundouniversaldosseres?Sepegarmosamitologiapopulardarwinistadequeoshumanosforamanimais,aanimalidadeéofundocomumquenosligaaorestodosanimais.Oqueosíndiosafirmaméexatamenteooposto.Ofundocomumdoseréahumanidade.Aregraéahumanidadeenãoaanimalidade.Porisso,osanimaiséqueforamhumanos.Elescontinuamsendohumanos,masagoratêmumaroupaanimalporcima,exatamentecomonóstemosumaroupahumanaporcima.Ahumanida-dedoanimalestásempreali,atrêscentímetrosdeprofundidade,porissoéprecisomuitocuidadoquandovocêtratacomumanimal,quandovocêmataumanimal,quandovocêcomeumanimal,porquevocênãosabeoquevocêestácomendo.Oumelhor,vocêsabe.Vocêdesconfiaquesaibaqueaquilonãoéumanimal.Aquiloéumapessoa.

Aalimentaçãoéumaregiãodegrandeansiedademetafísicanomundoindígenaporcontadofatodequetudoéhumano.Ocanibalismoéumtematãoimportantejustamenteporqueeleéaregraenãoaexceção.Éprecisoqueelesejaproduzidoritualmente,emcir-cunstânciasespecíficas,demaneiraliteralsobrehumanosdeverdade,paraqueofantasmadocanibalismocomosendoaregrasejacontroladosimbolicamente.Oequivalenteparanóséosolipsismo,oproblemado:“Sóeusouhumano”.Éafamosaquestão“comopossoprovarqueooutroégente?”.Questãocartesiana:aúnicacoisaqueeuseiéqueeusou.Aúnicacoisaqueeupossoprovar,alémdequalquerdúvida,porqueaprópriaformulaçãojásupõeaminhaexistência,équeeuexisto.Penso,logoexisto.Quantoaosoutros,jánãopos-sogarantir.Euprecisodeumahipóteseadicionalqualquer.Deus,algumacoisaquegarantaaexistênciadaschamadasoutrasmentes.Éonomequesedáhojeemfilosofia:oproblemadasoutrasmentes.Comoeupossoprovarquemeuinterlocutorégente,vistoqueaúnicaconsciênciaaquetenhoacessoprivilegiadoéaminha?Comopossogarantirquevocênãoéumrobô?Estaéumaquestãoqueatéhojeosfilósofoslevamasério.Omundoindígenaéocontrário.Tudoégente,oquenãofaltaéalma,oquenãofaltaésujeitonomundo.Oproblemajustamenteécomodessubjetivarestemundo,comoextrairdestemundooexces-sodesubjetividadeparaconstituirumobjeto.Comoéquepossomeindividualizardiantedeummundoqueésaturadodecomunicação?

Oproblemaclássicodahumanidadeéafaltadecomunicação.Senoscomunicásse-mos,tudosairiamuitobem.Osíndiostenderiamadizerexatamenteooposto.Éexcessodecomunicaçãooproblema.Temosdeaprenderacriarzonasdesilêncio,acriarbolsõesdeproteçãocontraessamúsicadefundo,esseruídocosmológicodefundo,queémuitoalto.Comoéqueeuconstituoumhumanocontraumfundoemquetudoéhumano?Écom-plicado.Paranós:comoeuconsigoconstituirumasociedadeseeutenhodificuldadeatéparareconhecerqueooutroégente?Comoconsigofazerummundosocialsenãoconsigoprovarquemeuvizinhoéumserhumanocomoeu?Tenhoqueinferirqueeleéumser

26 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

humanocomoeu.Oproblemaindígenaécortar.Tudoestáconectado.Paranós,aocon-trário,estátudoseparado,tudoédadocomoseparadoeoproblemaéfazerasociedade,acomunicação,aconexão,ocontato.nomundoindígena,seéaocontrário,aAntropologiatemqueseraocontrário.Entãoficaaquestão:eaí?Comoéquenoshavemoscomisso?Porqueumacoisaécerta:osíndiossãoexatamentecomonós.Istoé,nãopodiamsermaisdiferentes.