12
Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 44, n. 4, 15-26 · 2010 15 O Anti-Narciso: lugar e função da Antropologia no mundo contemporâneo 1 Eduardo Viveiros de Castro 2 O Anti-Narciso é o título de um livro que nunca vou escrever, mas que brinco, à la Borges, que um dia vou. É uma espécie de versão para a Antropologia do anti-Édipo. Se Édipo é visto como protagonista da psicanálise, eu costumo provocar meus colegas de profissão dizendo que o nosso é narciso. nossa profissão parece obcecada em saber o que distingue “nós” dos outros. O que torna “nós”, os homens, tão especiais diante do resto da criação? Ou o que diferencia “nós”, os ocidentais, ou “nós”, os sujeitos dos discursos an- tropológicos, daquelas outras sociedades que não fazem Antropologia? não esqueçamos que Antropologia é o estudo do homem, mas, ao mesmo tempo, do homem mais diferente possível daquele que enuncia o discurso da Antropologia: o selvagem, o primitivo. A Antropologia possui como questão fundadora determinar o critério fundamental que distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele, isto é, tudo aquilo que não é “nós”: o não ocidental, o não moderno, ou o não humano. O que esses outros não têm que os constituem como “não nós”? E quando se trata de dizer que eles são como nós, a Antropologia experimenta esta afirmação como uma conquista: “Os outros também são como nós”. Como se tudo que os outros precisassem ser, para ser alguma coisa, fosse ser como nós. Existe, na Antropologia, essa espécie de narcisismo implícito, que, ao mesmo tempo, é uma disciplina que luta contra isso e que está sempre precisamente co- locando em questão o significado desse pronome tão cômodo que é o “nós”, atrás do qual se escondem tantos outros. nós, os ocidentais? nós, os brasileiros? nós, os homens, em oposição às mulheres? Ou nós, os humanos, em oposição aos não humanos? na verdade, a Antropologia é uma discussão de quem somos nós. Mas não de qual é a nossa essência do humano, e sim quem diz “nós” em que condições. não sei até que ponto isso é tão diferente da psicanálise. A Antropologia não tem um nome tranquilo para esse outro que ela estuda: são os não ocidentais, os não modernos, os não capitalistas. É sempre um “não algo”, um “não nós”, definido de maneira privativa. A Antropologia classicamente gira em torno de o que esses outros não têm que os tornam diferentes de nós. Será o capitalismo a grande diferen- ça? Ou será o individualismo? Será a racionalidade? Foi na Grécia que tudo começou? Foi em Roma que tudo começou? Foi na Revolução Industrial que tudo começou? Ou, quan- do se trata de opor um “não nós” que não é um humano, o que nós temos que nos torna diferentes do reino animal? A linguagem? O trabalho? O interdito, a regra? A neotenia, o córtex? A hipercorticalização, a metaintencionalidade? Ou, para reunir todas essas dife- renças numa diferença mais antiga e mais tradicional, será que é a alma imortal o que nos distingue do resto da criação? 1 Conferência proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP em 7.3.2010. 2 Antropólogo, professor de Etnologia do Museu nacional UFRJ.

Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4,15-26·2010 15

O anti-narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo1

EduardoViveirosdeCastro2

O Anti-Narciso éo títulodeum livroquenuncavouescrever,masquebrinco,à laBorges,queumdiavou.ÉumaespéciedeversãoparaaAntropologiadoanti-Édipo.SeÉdipoévistocomoprotagonistadapsicanálise,eucostumoprovocarmeuscolegasdeprofissãodizendoqueonossoénarciso.nossaprofissãopareceobcecadaemsaberoquedistingue“nós”dosoutros.Oquetorna“nós”,oshomens,tãoespeciaisdiantedorestodacriação?Ouoquediferencia“nós”,osocidentais,ou“nós”,ossujeitosdosdiscursosan-tropológicos,daquelasoutrassociedadesquenãofazemAntropologia?nãoesqueçamosqueAntropologiaéoestudodohomem,mas,aomesmotempo,dohomemmaisdiferentepossíveldaquelequeenunciaodiscursodaAntropologia:oselvagem,oprimitivo.

AAntropologiapossuicomoquestãofundadoradeterminarocritériofundamentalquedistingueosujeitododiscursoantropológicodetudoaquiloquenãoéele,istoé,tudoaquiloquenãoé“nós”:onãoocidental,onãomoderno,ouonãohumano.Oqueessesoutrosnãotêmqueosconstituemcomo“nãonós”?Equandosetratadedizerqueelessãocomonós,aAntropologiaexperimentaestaafirmaçãocomoumaconquista:“Osoutrostambémsãocomonós”.Comosetudoqueosoutrosprecisassemser,paraseralgumacoisa,fossesercomonós.Existe,naAntropologia,essaespéciedenarcisismoimplícito,que,aomesmotempo,éumadisciplinaquelutacontraissoequeestásempreprecisamenteco-locandoemquestãoosignificadodessepronometãocômodoqueéo“nós”,atrásdoqualseescondemtantosoutros.nós,osocidentais?nós,osbrasileiros?nós,oshomens,emoposiçãoàsmulheres?Ounós,oshumanos,emoposiçãoaosnãohumanos?naverdade,aAntropologiaéumadiscussãodequemsomosnós.Masnãodequaléanossaessênciadohumano,esimquemdiz“nós”emquecondições.nãoseiatéquepontoissoétãodiferentedapsicanálise.

AAntropologianãotemumnometranquiloparaesseoutroqueelaestuda:sãoosnãoocidentais,osnãomodernos,osnãocapitalistas.Ésempreum“nãoalgo”,um“nãonós”,definidodemaneiraprivativa.AAntropologiaclassicamentegiraemtornodeoqueessesoutrosnãotêmqueostornamdiferentesdenós.Seráocapitalismoagrandediferen-ça?Ouseráoindividualismo?Seráaracionalidade?FoinaGréciaquetudocomeçou?FoiemRomaquetudocomeçou?FoinaRevoluçãoIndustrialquetudocomeçou?Ou,quan-dosetratadeoporum“nãonós”quenãoéumhumano,oquenóstemosquenostornadiferentesdoreinoanimal?Alinguagem?Otrabalho?Ointerdito,aregra?Aneotenia,ocórtex?Ahipercorticalização,ametaintencionalidade?Ou,parareunir todasessasdife-rençasnumadiferençamaisantigaemaistradicional,seráqueéaalmaimortaloquenosdistinguedorestodacriação?

1 ConferênciaproferidanaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSPem7.3.2010.2 Antropólogo,professordeEtnologiadoMuseunacionalUFRJ.

Page 2: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

16 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

Todasessasausênciassãomuitosemelhantes.Parecequeoproblemaéqueaprópriaquestão–“Oquenostornadiferentesdosoutros?”–jácontémemsiaresposta:deumladonóse,dooutro,eles–osoutros,quepodemserváriosoutros,poucoimporta,porqueoquenos interessanaverdadesomosnós.Éaíqueháonarcisismoeoantinarcisismoconstantes.Osujeitododiscursoantropológicoperguntaroquenosfazdiferentedosou-trosjáéumaresposta,porqueoqueimportanãosãoeles,esimnós.Ouseja,aAntropolo-giacomeça–estaéminhateseprovocativaparaosmeuscolegas–quandoelacomeçaarecusaraquestão“oqueéprópriodohomem?”.Recusarestaquestão,ameuver,éogestoinicialdeumaAntropologiacontemporânea.Recusarissonãoquerdizerqueohomemnãotenhaumaessência,ouquesuaexistênciaprecedaasuaessência.Ouqueoserdoho-meméaliberdadeeaindeterminação.Trata-sededizer,aocontrário,queaquestão“Oqueéohomem?”tornou-seumaquestãoimpossíveldeserrespondidasemhipocrisia.Semquesesigarepetindoemoutraspalavrasqueoprópriodohomeménãoternadadepróprio–oquenósestamosdizendohámuitotempo–,queohomemsecaracterizajustamenteporsuaindeterminação.Ohomeméaqueleseraquem,porchegarporúltimonacriação,foidadoopoderdetertodosospoderese,portanto,ohomemnãotemnadadepróprio.EsseéumtemaclássiconaMitologiaocidental.Comoéprópriodohomemser“nãoternadadepróprio”parecelhedardireitosilimitadossobreaspropriedadesalheias.

Istoéumamaneiradedizerqueestamosnumacriseecológicagravíssima,queéumacrisecultural,equesurgeprecisamenteportermoscolocadodemaisaquestão“Oqueéprópriodohomem?”ou“Oquenostornatãoespeciais?”.Oquenostornatãoespeciaiséquesomosumaespéciequetemacapacidadededistinguirnãosóasimesmo,masto-dasasoutrasespéciesdoplaneta,oquenãochegaaserumprivilégio.Essaideiadequeoprópriodohomeménãoternadadepróprioéumarespostaquejátemmilêniosnanossatradiçãoocidental,equejustificaoantropocentrismo.Asideiasdaausência,dafinitude,dafalta,seriamcomoqueadistinçãoqueaespéciecarrega,essefardo,embenefício(diriamoscínicos)dorestantedacriação,àmaneiradeumapesadacondecoração.Ohomemseriaoanimaluniversal,aqueleparaquemexisteouniverso,seseguirmosHeidegger.Eletemessacuriosadefiniçãodequeosseresinanimadosnãotêmmundo,osseresanimados,masnãohumanos,sãopobresemmundoeohomeméumserricoemmundo.Heideggertemumafrasefamosaquediz:“nemmesmoacotoviavêaclareira”.Aclareiraéessaabertura,oabismosobreoqualohomemsedebruça.EusempreacheicuriosocomoHeideggersabiaqueacotovianãoviaaclareira.Somoslevadosasuspeitarqueoshumanosnãoocidentaissãoapenasremediadosemmundo.Porquericosemmundomesmo,sónós.nóssomososhumanosacabados,osmilionáriosemmundo,osacumuladoresdemundo,ou,parausaraexpressãodeHeidegger,osconfiguradoresdemundo.Estranhamaneiradesedepreciar.

Emoutraspalavras,ametafísicaocidentaldefatopareceserafontedetodososco-lonialismosquesoubemosinventar.Achoquecontraissotemosde,aomudaroproblema,mudaraformadaresposta.Contraessesgrandesdivisores–nóseosoutros,oshumanoseosanimais,osocidentaiseosnãoocidentais–,temosdefazerocontrário:proliferaraspequenasmultiplicidades.nãoonarcisismodaspequenasdiferenças,aquelecélebrequeFreuddetectou,masoqueagentepoderiachamarde“oanti-narcisismodasvariaçõesin-finitesimais”.nãosetratadeformaalguma,comolembrouDerrida,desequestionarissoepregarumaaboliçãodasfronteirasqueseparamoshumanosdosnãohumanos,aspessoasdascoisas,ossignosdomundoetc.Asfantasiasfusionaisnãoestãoemquestão.Trata-se,decertamaneira,detornarinfinitamentecomplexaessalinhaqueseparaohumanodonão

Page 3: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 17

humano.Quebichonãoégente,atéosbichossabem,nãoéprecisosergenteparasaberdisso.Masqueessadiferençaécomplexa,istoestásempreemjogo.

AAntropologiacomeçajustamentequandocolocamosessasdiferençasemquestão,emvezdenosrefugiarmosnelapara,emseguida,explorarmosonossoprópriocontinenteedescobrirmosoqueéprópriodohomem.EoqueavulgatametafísicaocidentalclássicaentendecomocaracterísticodohumanoédemasiadoparecidocomoqueaAntropologiaentendiacomosendocaracterísticadoocidentalporoposiçãoaonãoocidental.Ésuspei-tamentesemelhante.Porexemplo,aoposiçãoentreumuniversodeimagenseumuniver-sodeconceitos;umuniversoemqueos significados sãomuitocontextualizadosversusummundoondearazãoaspiraàuniversalidade;ummundoemqueaspessoasvivemnopresenteversusummundomarcadopelaatemporalidade.Por issoqueeudiziaque,noocidente,oshumanosestãoparaosanimaisassimcomoosocidentaisestãoparaosoutros.Emoutraspalavras,estoufalandodeumametafísicaracista,queéametafísicaespecista,queéametafísicatout court.Comoseumfrancêsestivesseparaumarawetéassimcomoumchimpanzéestivesseparaumapedra.Oucomoseumeuropeufosseumprimatamaisneotênicodoqueumaraweté,porqueascaracterísticasquedistinguemumhumanodonãohumanosemostramdemaneiramaisacabadaentrenós.Ésempreadmirávelacoinci-dência:entretodososhumanos,nóssomososmaishumanos.Háqueseduvidardisso.

Emoutraspalavras,oobjetivodaAntropologiacontemporâneanãopodesermaisodeencontraressesdiferentessucedâneosdaglândulapinealquefazoshumanosdiferentesdorestodanatureza.Anaturezanãopodialigarmenosparaadiferençaentreoshumanoseorestodanatureza,comovemosprovasabundantesànossavolta.Osantropólogosesta-rãomaisbemocupadosestudandoasdiferençasqueoshumanossãoefetivamentecapazesdefazer.Adiferençaentreoshumanoseosdemaisviventeséapenasumadiferençaentremuitasquenósfazemos.nãoénecessariamenteamaisnítida,amaisestávelouamaisim-portante.AAntropologiatemdeparardesepreocuparcomoqueéohumano,porqueháquestõesquesóserespondemquandonãoseascoloca,eessamepareceseruma.

Ofilósofo,quandosevêdiantedeumadaquelasquestõesdificílimas–porexemplo,“qualéadiferençaentreoshumanoseosnãohumanos?”,“oquedistingueanaturezadacultura?”–,está,emgeral,reduzidoaosmétodosclássicosdisponíveisdafilosofia:ovirarparadentro,aintrospecção,acríticadoconceito.Oantropólogotemumavantagem:elepodesevirarparaoladoeperguntarparaosíndios–ousejaláquemeleestude–oqueelesachamdessaquestão.Ointeressanteéquerarasvezeslheocorreperguntaraosoutros,porqueelepensaquejásabearespostaequersimplesmentevercomoarespostadosoutrosseadequaàrespostaqueelejátem.Elevailásimplesmenteconferirseosoutrossabemoqueelesabe,quandoaquestãodedescobrirseosoutrossabemoqueelenãosabe,emgeral,nãolhepassapelacabeça.Et pour cause!Seelenãosabe,comopoderiasaberquenãosabe?Masoantropólogotemessavantagemdepodervirarparaoladoeperguntar.FoiistoqueeutenteifazerdiantedaquestãofundadoradaAntropologia,“oqueéohumano?”.Ou,paradizerdeumamaneiramenosgenérica,“qualadiferençaentrenaturezaecultura?Existediferençaentrenaturezaecultura?Essadiferençaéestável,fixaenítida?Ouéumadiferençainstável,móvel,obscuraeconfusa?Éumadiferençahistoricamenteconstituída?Éumadiferençaculturalouumadiferençanatural?Ouéumadiferençaqueestásituadanumlugarnãolocalizável,paraalémdadiferençaqueelainstituientrenaturezaecultura?”.Diantedessasquestões,nãohá36respostas,masumasquatrooucinco.Algumas,agentenuncaouviu–provavelmenteestaéaapostadoantropólogoquevaiparaocampo.Seé

Page 4: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

18 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

parairatéooutroladodomundo,énaexpectativadequehajarespostasdiferentese–aexpectativaaindamaisexcitante–perguntasdiferentes.Eque,portanto,aquestãonãoédeencontrarasrespostasqueosíndios(ousejaláquemfor)dãoàsnossasperguntas–porquesempreentendemosqueasnossasperguntassãoasperguntasquetodoserhumanofaz–,mascolocarsobsuspeitaestepressupostoeimaginarquetalvezasperguntas,elaspróprias,sejamoutras.Eaínósestamosrealmentediantedeumproblemainteressante.

Oqueeuestousugerindo,antesdechegaràrespostaqueosíndiosdãoaessasques-tões,équetemosduasconcepçõesradicalmenteantagônicasdeAntropologiae,ousodizer,deCiênciasHumanas–incluindoaíPsicanálise,Psicologia,Sociologia,todasessas–entreasquaiséprecisoescolher.Aminhaescolhaéclara,masissonãoquerdizerqueeuachequesejaaúnicaouaboa.Temosumaimagemdoconhecimentoantropológico,oudasciências humanas emgeral, como sendoo resultadoda aplicaçãode conceitos que sãoextrínsecosaoqueestamosestudando.Agente jásabedeantemão,porexemplo,oquesãorelaçõessociais,cognição,psiquismo,parentesco,religião,política,economia,evamoslánofimdomundoparavercomoessasentidadesserealizamnesteounaquelecontextoetnográfico.nóstemosoconceitoequeremossimplesmentevercomoeleépreenchido.Comosabemos,essasentidadesse realizam,emgeral,pelascostasdos interessados.Osinteressadosrealizamsemrealizar–nosentidoinglêsdapalavra–queestãorealizandoessesconceitos.Dooutrolado,comoalternativaaisto–eesteéojogodelinguagemqueeuproponhocomosendomaiscaracterísticodaAntropologiacontemporânea–,umaideiadoconhecimentoantropológicocomoenvolvendoapressuposição fundamentaldequeosprocedimentosquecaracterizamainvestigaçãosãoconceitualmentedamesmaordemqueosprocedimentosinvestigados.Seoshumanossãodefatotodosiguais,éprecisoqueanossainvestigaçãosejaalgodamesmanaturezadoqueestamosinvestigando.nãopode-mosafirmarqueoshomenssãotodosiguais,porumlado,eretirarissocomaoutramão.Seoshumanossãotodosiguais,antropólogosestudamantropólogos,psicanalistasestu-dampsicanalistase,portanto,nãoháondecolocarassimetrianessainvestigação.Temosdeassumirqueosprocedimentosdeconhecimentosãoequivalentes–umaequivalênciaqueproduzumanãoequivalênciaradicaldorestotodo.PorqueaquelaprimeiraconcepçãodeAntropologiadequeeufalavaimaginaquecadaculturaoucadasociedadeéumaespéciedesoluçãoespecíficaparaumproblemagenéricodacondiçãohumana.naverdade,agenteimaginacadasociedadecomoquepreenchendoumaformauniversal–conceito–comumconteúdoparticular,esquecendoqueessaformauniversaléonossoconteúdoparticular.

AsegundaconcepçãodeAntropologia,aocontrário,suspeitaqueosproblemasse-jamradicalmentediversose,sobretudo,elapartedoprincípio,ameuverfundamental,dequeoantropólogonãosabedeantemãoquaissãoosproblemasquecaracterizamaquelasociedade.Estenãosabernãoéempírico.Éumnãosaberpropriamentetranscendental,umaignorância,umanesciênciaconstitutivadadisciplina.“Eunãoseioqueinteressaaeles”,enãosimplesmente:“Eunãoseicomoelesrespondemaoqueinteressaamim”.OqueaAntropologiapõeemrelaçãonestecasonãosãodiferentessoluçõesculturaisparaumproblemanaturalcomum:“Comoasolução‘proibiçãodoincesto’aumproblemauni-versalévividoemcadasociedade?”OqueasegundaconcepçãodeAntropologiacolocaemrelaçãosãoproblemasdiferentes,nãoumproblemaúnicoesuasdiferentessoluções.AartedaAntropologia–eeuousariadizeraartedasCiênciasHumanas,ouoquetornaasCiênciasHumanasumaarte–éaartededeterminarosproblemaspostosporcadacultura,nãoadeacharsoluçõesparaosproblemaspostospelanossa.Porquenósnãopodemoster

Page 5: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 19

apretensãoridículadeimaginarquetodasasculturasestejampreocupadascomosnossosproblemasequeexistam,sobretudo,pararesolvê-los:“Vamosvercomoosíndiosresolvemnossosproblemasderelaçãocomanatureza”.Eficamosdecepcionadosquandovemosqueosíndios,primeiro,têmoutrosproblemase,segundo,nãoresolvemosnossos.Assoluçõesdelesnãoservemparanósportodasasrazõesdomundo.Desdeporquesãosociedadescompletamentediferentesatéporquenãovieramaomundopararesolverosnossosproble-mas.Essaéumafortetomadadeconsciência,émaisumadaquelasferidasantinarcísicas.Portanto,sónoscabesaberquaissãoosproblemasdelesecomoarelaçãodosproblemaspodenostirardenossosprópriosimpasses,quenãosãoosdeles.

Emtodosossentidos,historicamente,epistemicamente,oproblemaqueconstituiaAntropologiaéodasrelaçõesentrenaturezaecultura.Tem-seaideiadequetodofenô-menohumanoconsistenumaimbricaçãocomplexaentredimensõesuniversais(própriasdaespéciehumanaenquantoespéciezoológica)edimensõesculturais(própriasdecadasociedadeenquantoespéciesociológica).Écomoseohomemfosseumserduplo–océ-lebrehomo duplexdeDurkheim–porquepossuiumladonaturaleumladocultural;umladoindividualeumladosocial;umladoprivadoeumladopúblico.Éessaideiadequeohomeméumserdivididoesóohomeméumserdividido.Osanimaiseosdeusessãoseresunilaterais,completos,cadaumaseumodo.Osanimaissãosócorpo,sóinstinto,eosdeusessãosóespírito, só instituição.Oshomens,aocontrário, têmdeconvivercomessaduplaherança,essaduplatara,domacacoedoanjoe,portanto,todooproblemadaAntropologiaéadministrar,adjudicar,alocarapartedomacacoeapartedoanjo,quesãocompletamenteopostas–aindaqueemalgumasculturaselassejamamesma.AAntropo-logiaestáassentadanumadicotomiafundadoraentrenaturezaeculturaquetemváriosavataresnahistóriadadisciplinaemesmoantes–nafilosofiagrega,comPhysisenomos,porexemplo.ApartirdoséculoXVIII,aoposição“naturezaecultura”ganhamaisoume-nosessenomeesetornaumpoucoonomegenéricoparaessacondiçãohumana,divididaentreumaspectopropriamentehumanoeumaspectoqueohomemcompartilhacomorestodacriação.Classicamente,estáassociadaàpolaridadefundamentalnoocidente,emparticulardepoisdoCristianismo,entrecorpoealma,emqueocorpoénaturezaeaalmaécultura.Emalemão,“CiênciasHumanas”sediz“CiênciasdoEspírito”,“CiênciasdaAlma”.Éaideiadequeaalmaéadimensãocultural.AsCiênciasHumanasnãosãosimplesmenteumramodaZoologiaporqueoshomenstêmalgumacoisaamais.Podeseramenos–umafalta,umaausência–maséumafelix culpa,umafaltaquepotencializaohomemelhedáessaarrogânciaconhecida.

Diantedestequadro,aquestãoqueoantropólogopodesecolocar–comoaAn-tropologiacolocouclassicamente–écomoessaoposição“naturezaecultura”seexprimenasmitologiasdeoutrasculturase,emseguida,reconfortar-seemverquetodosossereshumanosdistinguemigualmenteossereshumanosdorestodosseresnãohumanos.Seháalgohumano,éaideiadequeoshumanossãodiferentesdosnãohumanose,comisso,pode-sevoltarparacasasabendooquejásesabiaantesdesair.Aalternativaaisso,comoeujádisse,évirarparaoladoeperguntarparaoseuanfitrião,juntoaoqualvocêresolveumorarporalgumtempo.Paraoíndioaraweté,aquestãonãofariaomenorsentidoporqueeunãosaberiacolocá-lanessestermosparaumíndioaraweté.nãoporqueelenãotenhacapacidadedeentendê-la,massimplesmenteporqueeunãotenhocapacidadedeformulá-lanumalinguagemdessetipo:“Oquevocêsachamdaoposição‘naturezaecultura’?”.Pri-meiro,porqueeunãoseidizernaturezanemculturaemaraweté.Depois,porquenodia

Page 6: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

20 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

emqueeusouber,eunãoprecisomaisdizer,porque,decertamaneira,estaeraaquestão:“comosedizistonessalíngua?”.

nóstemosessaideiadequeossereshumanossãoumcasosui generisnacriação,umanimalqueseautotranscendeu,eque,portanto,éanimalporumlado,masnãoéporoutro.Etodaquestãoé:Ondefoi?Quandocomeçou?Foiopecadooriginal?Foialinguagem?FoiÉdipo?Foiosimbólico?Foiotrabalho?Foiacorticalização?Foiopolegaroponível?Aperguntaé:“Comoéissonomundoindígena?Seráqueéamesmacoisa?”

Omundoameríndiotemummodoespecíficodeconceberascoisas.Classicamenteéoqueosantropólogoschamamdeanimismo.Aideiadequeomundointeiroécompostodepessoas.Aespéciehumananãoéaúnicadotadadascaracterísticasquenós,ocidentais,damosaela.Asárvoresfalamoupensam,osanimaissãogente(pordebaixodaquelaapa-rênciaanimalelesserevelam,quandoestãolongedasnossasvistas,comosendoiguaisanós).Emsuma,essaideiadequeomundoéummundoencantado,emquetudoéanima-do.nósimaginamos,emgeral,queomundoanimadoéummundomuitoreconfortanteequeperderessaanimaçãodomundoéumaquedanoreal.Acaídanorealédescobrirmosqueomundonãoéigualamim.Etem-seaideiadequeosíndiosestãonessafase,numestágio transicional,naquelemomentoemque tudoéanimado.Enós imaginamosquenessemundotudoémuitoconfortável.Possogarantirquenãoé.Aocontrário,setudoéhumano,tudosetornaextremamenteperigoso.Setodasascoisassãodotadasdeintenção,devontade,deraciocínioedecapacidadedecomunicação,administraromundo,viver,torna-seumatarefamuitoperigosa–muitomaisdoqueparanós,quesótemosdetemernósmesmos.Se tudoécomonósmesmos,oproblematorna-semuitomaior.Esseani-mismoindígenacomeçaporessaideiadequetodososseressãohumanos,possuemumaessênciahumana,porbaixodesuaaparêncianãohumanoide.Éumaideiamuitocomum.Osíndiosfalam:“Osanimaissãogente,osanimaissãocomonós.Elestêmessaaparênciadebicho,masquandoelessaemdanossafrente,elestiramessapeleanimal,queécomoumaroupa”. Istoé, eles se revelamcomoantropomórficos, como idênticosanós, comofeitosdamesmaforma.Quandoseolhamentresi,elesseveemcomogente.Quandoumaonçaolhaparaoutraonça,elanãovêumaonça,elavêumapessoa.Equecadaespécie,naverdade–éumpoucoaconclusãoquevocêpodetirardosmitos–épotencialmentedotadadessefundocomumdehumanidade,equetodaespécieéhumanaparasimesma.Isto,traduzidoemlinguagemcomum,éanimismo:tudoégente,éummundodefadas,ummundoencantado.Eelesnormalmentedizemqueessaparteinvisível,essecomponentein-visíveldosanimais,dasplantas,dasoutrasespécies,queéhumanoide,éoquechamamdealma.Aalmadoanimaléhumana.Todososanimaispossuemumaalmahumana,dondeaideiadeanimismo.Issotemumaalmae,tendoumaalma,essaalmaénecessariamentesemelhanteànossa.

Entãoosanimaisseveemcomogente.Todosseveemcomogente,masissonãosig-nificaqueelesnosvejamcomogente,anós,humanos.Cadaespéciesóvêasicomogenteenãoasoutras,coisaquepodemos,aliás,comprovarnósmesmos.Osíndiosestãoper-feitamenteconscientesdequeestacaracterísticadesevercomogenteéacoisamaisbemdistribuídadomundo.Então,nãoéummundoemquetudoéhumano.Tudoéhumano,mas,aomesmotempo,nadaéhumano.Osporcosdomato,quandoveemoshumanos,nãonosveemcomogente,elesnosveemcomoonçasoucomoespíritoscanibais,porquenósmatamosecomemososporcos.Sevocêcomeporcoéporquevocênãoéporco.Sevocêcomegenteéporquevocênãoégente.Damesmaforma,asonças,quecomemoshumanos,

Page 7: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 21

nãonosveemcomohumanos.Elasseveemcomohumanasenosveemcomoporcos,vistoquenosatacamecomem,exatamentecomonósfazemoscomosporcos.

Existeumaespéciedeconcepçãoumpoucosobomodelodacadeiatrófica,dapresaedopredador,emquecadasersevênocentro,comotendoumpredadoràdireitaeumapresaàesquerda.Asimesmo,sevêcomocongênere,comohumano.Osporcosseveemcomohumanos,veemoshumanoscomoonçaseveemasfrutasqueelescomemcomopor-cos.Cadaespéciesósevêasimesmacomogente,oquecolocaimediatamenteoproblemaqueésaber,afinaldecontas,oqueéessahumanidadedequetodososseresdispõem.Emaisainda:colocaimediatamenteoproblemadequeacondiçãohumanaéprofundamenteincerta,porquedependedoolhodooutro.Ouseja,aideiatranquilizadoradequeseafirmarhumanoéumaafirmaçãodechegada,torna-semuitotrabalhosa.Éumaconquista,umalutaconstanteentreospontosdevistaquepovoamouniverso.Porquesetudoéhumano,vocênuncasabecomquemvocêestátratando.Aideiaclássicadomundoindígenaéque,diantedeumanimalquevocêencontranamataparacaçar,éfundamentalnãoenxergaroladohumanodele.Sevocêchegaravê-locomohumano,eleganhouaguerraevocêpas-souparaoladodele.Vocêsetornouumanimalcomoele,porquefoicapazdevê-locomohumanoe,portanto,perdeuasuahumanidadeenquantotal.Emoutraspalavras,vocêsetornouumanimal,vocêestádoente.Vocêtevesuaalmaraptadaporaquelasubjetividadealienígena.Eessametáforadaperspectivaéquemefezchamaressaconfiguraçãode“Pers-pectivismo”:aideiadequeomundoédiferenteparacadaespécie.

Aprimeiraimpressãoquedáessaideiaédeummalcomoonossorelativismocul-tural.Ora,os índiossãorelativistas–maisaindadoquenós,maisradicais.Elesnãosódizemquecadaculturavêomundodeumjeito,comoextrapolamdizendoquecadaespé-cievêomundodeumjeito.Enãohánadadeespantosonisso,sobretudoporqueanossaafirmaçãosupõequeomundonãosemexe,omundoéumsó.Ospontosdevistavariam,masomundoficaquieto.Masseomundomudacomavisão,estamosnorelativismo,umacoisadodiabo.Odiaboémúltiplo,amentiraémúltipla,masaverdadeéuma,Deuséumsó.Odiaboéopaidamentira,opaidasilusões,opaidastransformaçõese,portanto,orelativismoéumacoisaperigosíssima.nãoéporacasoqueaprimeiradeclaraçãodoatualPapa tenhasidoumacondenação formaldorelativismocomosendoa raizde todososmalesmodernos.nãoéafome,nãoéaopressão.Tudoissoseseguedorelativismo,queevidentementeéaconsequênciadoateísmogeneralizado,dafaltadeDeusnomundo.SemDeus,tudoépermitido.Então,aimpressãoquedáéqueosíndiossãorelativistas.Ouseja,pós-modernos.Ouseja,maismodernosquenós.Ouseja,aindamais“nós”quenós. Jáchegaramondeagentequeria,masaindanãochegou.Istoé,maisumavezosíndiosestãolápara resolverosnossosproblemas. Se você, entretanto, for veroqueos índios estãodizendo,nãoérelativismo.Esteéumexemploclássicodeque,aoperguntarparaoíndio,rompem-seasdicotomiasqueconstituemascondiçõesdainteligibilidadedomundoparanósou,podemoschamar,asgradesdaprisãoquenosprotege.Estasgradessãoaideiadeumanaturezauniversal,ummundoexteriorestáveleobjetivo;eumaculturaparticular,ummundointernovariávelesubjetivo–omundodalinguagem,dosigno,daconvenção,datradição,daeducação.Dooutrolado,omundodafísica,frio,impessoal,externo,ex-trínseco,queestáláforaequenãopodialigarmenosparaoqueagenteachadele.Estaéanossaideiadecomoomundofunciona.

Osíndiosnãoestãodizendoquecadaespécievêomundodeumjeito.Osíndiosdi-zemqueasonçassãogenteparaelas.Então,quandovocêvêumaonçanomatocomendoo

Page 8: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

22 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

corpodeumanimalqueelamatou,bebendoseusangue,elesdizemque,naverdade,nãoéissoqueestáacontecendo.Aonçaestátomandocerveja.Paraela,oqueestáaliéumhuma-nofestejandocomumacuiadecerveja.Quandovocêvêumaantaseespojandonaqueleslamaçaisqueficamnabeiradorioparatiraroscarrapatos,elaestánumacasacerimonialfazendoumritualqueaquelatribopratica.Eassimvai.Ouseja,osanimaisvivemtodossobomododacultura,exatamentecomonós.Asonçasfazemoqueoshumanosfazem.Elas tomamcerveja; elas secasamcomumparenteespecíficoqueaquela triboentendequeéoparenteapropriado;elastêmchefes,têmpajés,têmdoenças.Hátodoumprocessodetransmutaçãodeperspectivaquemudacompletamenteoconteúdodascoisasquandonarradasdooutrolado.

Boapartedosmitos indígenasconsisteprecisamenteemnarrardemodocômicoosequívocosquesurgemquandovocêpassadeumaperspectivaparaoutra.Sãocomunsmitosemqueoíndioestáperdidonafloresta,morrendodefome,eencontraumaaldeiaperdidanamata,depessoasmuitobonitas.Elepedecomidaeouve:“Claro!Vamostrazerparavocêumpratodepeixeassadocombatatas”.Oíndioachaumamaravilha,maschegaumacuiacheiadevíscerashumanascruas,sangrando.Elediz:“Issoaquinãoépeixeassa-do.”,masarespostaé:“Éclaroqueé!”.Aconclusãodomitoéaseguinte:oíndiosedácontadequeseissoépeixe,essaspessoasnãosãopessoas.Talvezsejamonças,quecomemtripascruas,masqueveemaquilocomopeixe.

Osíndiosnãoestãodizendoqueéomesmomundoecadaespécieovêdeumjeito.Estãodizendoquecadaespécievêomundoexatamentedamesmamaneira.Todomundotemcerveja,tempajé,temcasacerimonial,temrede.Oaparelhodaculturaéomesmo.Ascategoriassãoasmesmas,osconceitossãoosmesmos,omundoémobiliadodamesmaforma,sobtodosospontosdevista.Oquemudaéomundoenãoomododevê-lo.Apala-vracervejasignificacervejaparanósesignificacervejaparaasonças.Maselanãoserefereàmesmacoisa.Quandoaonçadizcerveja,euvejosangue,masoqueaonçaquerdizerquandodizcervejaéamesmacoisaqueeu:umabebidaboaqueeutomocoletivamenteeficoembriagado.Masparaumhumano,aquilonãoécerveja.Oproblemaéoinversodonosso.Imaginamosquecadaculturavêomundodeumjeitodiferente,maseuconsigotra-duzirumaculturanaoutra,porqueeutenhoummundoláforaparaservirdegarantia.Écomoseasculturasfossemvastosvocabuláriosdesinônimos.Qualéosinônimodecervejanaquelaoutralíngua?Comosefossepassardeumalínguaparaoutraatravésdeumacoisaestávelqueestáforadalinguagemequepermitequeeuconecteistocomaquilo.Oqueosíndiosestãoformulandoéexatamenteocontrário.Éaideiadeummundohomônimoenãosinônimo,emquevocêtemasmesmaspalavras,osmesmosconceitos,masquesere-feremacoisasinteiramentediferentes.nãoécomodogecachorro.Écomomangaemanga(mangaofrutoemangadaroupa).UmantropólogointerpretaaAntropologia,normal-mente,comoumatarefadeencontrarossinônimos:“comoelesdizemasmesmascoisascomoutraspalavras?”,porqueascoisassãoasmesmas,omundoéomesmo,osproblemashumanossãoosmesmos.Vamosverapenasquaissãoaspalavrasqueelesusam.Vamostraduziralinguagemdelesnanossalinguagem.

Eseoproblemanãofossedelinguagem,masdemundo?Estaéaquestãotalcomoalinguagemindígenaformulaascoisas.Donossopontodevista,oquemudaéopontodevista.Omundopermaneceidênticoeestanque,háumabarreiraontológicaentreomundoealinguagem.Paraosíndios,oproblemanãoéalinguagem,éomundo.Todomundodizamesmacoisa,todomundoégente.Paraosíndios,issovaijuntocomofatodequeaalma

Page 9: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 23

éidênticaemtodososseres.Assim,todososseressãohumanosetodososseresveemascoisascomooshumanosveem.Entãoaperguntaé:ondeestáadiferença?Seasonçassãogentecomonós,porquenósnãoasvemoscomogentenemelasnosveemcomogente?nestemundo,adiferençasurgenocorpo.Osíndiosdizemissoclaramente:“Asonçasnãosãocomoagenteporqueocorpodelasédiferentedonosso.Aalmaéigual,masocorpoéoutro.”Enquantonossamaneiradeconceberéocontrário:osnossoscorpossãoiguais,numcertoplanofundamental(somostodosfeitosdecarneeosso,decarbono,deDnA,épelocorpoquenósnoscomunicamos).Aalma,aocontrário,éolugarondenosdistingui-mos.Temosamesmaalmaimortal,masosconteúdosdaalmasãoolugarondeadiferençasecoloca.Dondeaimportânciaquedamosàcultura,umatributodaalma,àeducação,umprocessodetransformaçãodaalma,eàconversãoespiritual,comomodelodamudança.Paraosíndios,adiferençanãoestánaalma,estánocorpo.Éocorpoquemudaesãoasafecçõescorporaisquesetornamcríticasparapensaradiferença.Porissoocorpoindígenaétãosobredeterminadoesteticamente.Eleémarcado,perfurado,pintado,adornado,mo-dificado,porqueénocorpoquevocêtemqueatuarparaproduzirumhumanorealmentehumano.

TodaestaanálisecomeçouquandoeumedebruceisobreumaanedotaqueoLévi-StrausscontanoRaça e história.AanedotaédeQuevedo,umcronistaespanholnaAmé-ricadoséculoXVI,etratadodebateentreoscolonosespanhóisnaépoca:“Osíndiostêmalma?Elessãohumanos?”Osespanhóismandaramumacomissãodeinquéritocompostaporpadreseteólogosparaverificar,in loco,seosíndiostinhamounãoalma.Mandaramumaequipede,digamosassim,protopsicanalistas,parainvestigarseosíndioseramgenteousesótinhamaparênciadegente.Enquantoisso,dizLévi-Strauss,osíndiospegavamosespanhóisqueelesconseguiamcapturarnaguerra,matavam,colocavamemcanoascheiasd’água e esperavam,paraver seo corpoapodrecia.Faziamumaexperiência físicaparaver:“Essepessoalégente?Vamosverseocorpodelesédeverdadeousesãoespíritos”.Lévi-Straussdiz:“Osespanhóiseosíndiossãotragicamenteiguaisnofatodeduvidaremliminarmentedahumanidadeumdooutro.Elesseequivalemnumcertoponto”.Elecon-cluidestaanedotaafamosamoralparadoxal:obárbaroé,antesdemaisnada,aquelequeacreditanabarbárie.Epelaanedotadele,todomundoacreditanabarbárie.Somostodosbárbaros,exceto,provavelmente,oantropólogo,quenãoacreditaembarbárie.Maisumavez:vivanós!Aanedotaéparamostrarqueooutrodooutroéomesmo.Écomoseooutrodoíndiofosseomesmoqueomeuoutro:onãohumano.Emoutraspalavras,énaalterida-dequenosassemelhamos.Essaéaironiadaanedotalevistraussiana.

Entretanto,ooutrodooutronãoéexatamenteomesmo.Oproblemadosespanhóiserasaberseosíndiostinhamalma.Oproblemadosíndioserasaberseosespanhóisti-nhamcorpo.Aquestãodosespanhóisnãoeraseeleseramdecarneeosso.Decarneeosso,elesevidentementeeram.Aquestãoerasabersealémdecarneeossoelestinhamalma.Dooutrolado,paraosíndios,nãohaviadúvidaqueosespanhóistinhamalma,porquebichotambémtem.Oproblemaerasaberseeleseramsóalma,seeleseramespíritos.Entãonãoéomesmoproblema.Ou,antes:éomesmoproblema,masvistodemaneiracompletamentediferente.Oquetornavaohumano,humano,paraosespanhóis,eraaalma;paraosíndios,eraocorpo.

nasociedadeameríndia,éaculturaqueéuniversal.Éaculturaqueaproximatodosospontosdevista,todasasespécies,todasassociedades.Oquedistinguecadaespécie,oucadapontodevista,éanatureza,ou,parausaranossalinguagem,ocorpo.Éocorpoque

Page 10: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

24 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

separa,éaalmaqueune.Porissonóschamamosdeanimistas,comopoderíamosnoscha-mardematerialistas,oudecorporalistas,vistoquenósachamosqueocorpojuntatudo.Issoexplicatambémporquetemosessaobsessãocomaquestãodaeducaçãoedaconver-são,enquanto,paraosíndios,paraalgumacoisamudar,éprecisoqueseajasobreocorpo.Setodososseresseveemcomohumanos,comoeuproduzoumaimagempropriamentehumanadocorpo?Setodososseressãohumanos,oquetornaaminhaespéciehumana?Éprecisoqueeumeconstituaumcorpomenosgenéricoqueessecorpocomquetodasasespéciesseveem.Daíesseparadoxotipicamenteindígena,emqueoíndiosetornatantomaishumanoquantomaisfantasiadodeanimalelesemostra.Émuitoimportantequeelepeguepartesdeanimaisdiferenteseproduzaumaquimera,umcorpohumanocomoscorposanimais.

Comisso,oqueéespecificamentehumanonãoéohomo sapiens,comoparanós.Éatribotal.Paraosarawetésadistinçãoentreumaraweté,umcaiapóeumbranconãoéonto-logicamentediferentedadistinçãoentreumaraweté,umaonçaeumtucano.Aespéciehu-mana,enquantotal,nãoéaespécienatural(homo sapiens),nãoéumacategoriapregnantecomoéparanós.Oqueépregnanteparaeleséacategoriadossóciosdoprópriogrupo–“humanomesmo,sóeu”.Háestecuriosoparadoxo:osarawetésdizemqueosanimaissãogenteeoscaiapóssãobichos,porqueéumatriboparticularmenteagressiva.nósfazemosoduploinversodisto:caiapóéclaroqueégenteeonçanãoégentedeformaalguma.Ouseja,osíndiosparecemmaisavarosnasuaextensãodahumanidadee,aomesmotempo,deumagenerosidadeexcessiva.Istoparecefaltaeexcessoporquenósmesmostemosumaoutraeconomiamuitorígidadoqueéhumanoedoquenãoéhumano.Eminglês,diz-sehumankind,queéhumanidadeenquantoespécie,ehumanity,queéhumanidadeenquan-tocondição.Emportuguês,entendemosqueacondiçãohumanasópodeseratribuídaàespéciehumana.Entendemosqueacondiçãosegueaespécie.Seeuidentificoalgocomohomo sapiens,tenhodedaraeleosfamososDireitosHumanos.Paraosíndioséoinverso:acondiçãoprecedeaespécie.Épossível,dopontodevistadestaconcepção,umcasamentointerespecífico.Seosanimaissãogente,nãoseadmiraquenosmitososhomenssecasemcomasonças,seunamàsárvores,quehajatodoumtráfego.

Ametamorfoseéotemafundamentalindígena,enquantoparanós,otemafunda-mentaléaconversão.Quandoentendemosqueoscorposjáestãoconectados,ametamor-fose,naverdade,nãomudamuito.Tantoéquepodemosfazerenxerto,transplante–aideiadetrocardecorponãonospareceabsurda.Podemosimaginaranossaalmamudandodecorpo.Oinversoéimpensávelparanós,impensávelnosentidodequeéumacontradiçãológica:eunãopossotrocardealmaemanteromesmocorpo,poisnãosoumaiseu,porqueoeuestálocalizadoevidentementenaalma.Vocêpodepegarsuaalmaejogarnumcorpomaisconveniente,masvocênãovaiquerertrocarsuaalmaparamanteromesmocorpo.Vocêquerumoutrocorpomelhor;agora, suaalma,vocêachaqueestámuitoboa.Porissoasculturasindígenasnãosãoculturasdepossessão.Aideiadealmasqueentramemcorposetomamcorposnãoéumaideiaimportantenasreligiõesameríndias.Éocontrá-rio:éasaídadaalma,paraocuparoutroscorpos,muitomaisdoqueaentradadealmasparaocuparoseucorpo.Oxamãouopajéindígenanãoéumpossesso,comoomédiumclássicoeuropeuouafricano,masum“excorporador”.Éalguémcujaalmasaiviajando,eéaalmaqueadotaospontosdevistadiferentesdasoutrasespéciesenãoumveículoparareceberaalmaalheia.

Page 11: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

OAnti-narciso:lugarefunçãodaAntropologianomundocontemporâneoEduardoViveirosdeCastro 25

Écomoseestivéssemosdiantedeummundoviradopeloavesso–oqueaindaéummododemasiadogrosseirodeconceberasdiferenças,masdáumaideiadecomo,nestemundo,asquestõesquedefinemaAntropologia,ouasCiênciasHumanasemgeral,nãopodemseformularnamesmalinguagem.Eaíficaodesafio:oqueseriaumaAntropologiaouumaPsicanáliseouumaSociologiafeitadestepontodevista?Ouseja,oqueacontecenãoéumamudançadeopiniãoemrelaçãoaumaessênciaobjetivaextrínseca,natural,mas,aocontrário,umatransformaçãodoreal.Mudançanãodesignificado,masdereferência.nãoéumamudançanalinguagem,masumamudançademundo.Oqueistoimplicaria?Estaéaquestãocomaqualeutenhomehavidodesdeentão.Comoconstituirumacontra-antropologianaqualohumanonãoémaisumapropriedadesingular,mas,aocontrário,apropriedademaisgeraldouniverso,ofundouniversaldosseres?Sepegarmosamitologiapopulardarwinistadequeoshumanosforamanimais,aanimalidadeéofundocomumquenosligaaorestodosanimais.Oqueosíndiosafirmaméexatamenteooposto.Ofundocomumdoseréahumanidade.Aregraéahumanidadeenãoaanimalidade.Porisso,osanimaiséqueforamhumanos.Elescontinuamsendohumanos,masagoratêmumaroupaanimalporcima,exatamentecomonóstemosumaroupahumanaporcima.Ahumanida-dedoanimalestásempreali,atrêscentímetrosdeprofundidade,porissoéprecisomuitocuidadoquandovocêtratacomumanimal,quandovocêmataumanimal,quandovocêcomeumanimal,porquevocênãosabeoquevocêestácomendo.Oumelhor,vocêsabe.Vocêdesconfiaquesaibaqueaquilonãoéumanimal.Aquiloéumapessoa.

Aalimentaçãoéumaregiãodegrandeansiedademetafísicanomundoindígenaporcontadofatodequetudoéhumano.Ocanibalismoéumtematãoimportantejustamenteporqueeleéaregraenãoaexceção.Éprecisoqueelesejaproduzidoritualmente,emcir-cunstânciasespecíficas,demaneiraliteralsobrehumanosdeverdade,paraqueofantasmadocanibalismocomosendoaregrasejacontroladosimbolicamente.Oequivalenteparanóséosolipsismo,oproblemado:“Sóeusouhumano”.Éafamosaquestão“comopossoprovarqueooutroégente?”.Questãocartesiana:aúnicacoisaqueeuseiéqueeusou.Aúnicacoisaqueeupossoprovar,alémdequalquerdúvida,porqueaprópriaformulaçãojásupõeaminhaexistência,équeeuexisto.Penso,logoexisto.Quantoaosoutros,jánãopos-sogarantir.Euprecisodeumahipóteseadicionalqualquer.Deus,algumacoisaquegarantaaexistênciadaschamadasoutrasmentes.Éonomequesedáhojeemfilosofia:oproblemadasoutrasmentes.Comoeupossoprovarquemeuinterlocutorégente,vistoqueaúnicaconsciênciaaquetenhoacessoprivilegiadoéaminha?Comopossogarantirquevocênãoéumrobô?Estaéumaquestãoqueatéhojeosfilósofoslevamasério.Omundoindígenaéocontrário.Tudoégente,oquenãofaltaéalma,oquenãofaltaésujeitonomundo.Oproblemajustamenteécomodessubjetivarestemundo,comoextrairdestemundooexces-sodesubjetividadeparaconstituirumobjeto.Comoéquepossomeindividualizardiantedeummundoqueésaturadodecomunicação?

Oproblemaclássicodahumanidadeéafaltadecomunicação.Senoscomunicásse-mos,tudosairiamuitobem.Osíndiostenderiamadizerexatamenteooposto.Éexcessodecomunicaçãooproblema.Temosdeaprenderacriarzonasdesilêncio,acriarbolsõesdeproteçãocontraessamúsicadefundo,esseruídocosmológicodefundo,queémuitoalto.Comoéqueeuconstituoumhumanocontraumfundoemquetudoéhumano?Écom-plicado.Paranós:comoeuconsigoconstituirumasociedadeseeutenhodificuldadeatéparareconhecerqueooutroégente?Comoconsigofazerummundosocialsenãoconsigoprovarquemeuvizinhoéumserhumanocomoeu?Tenhoqueinferirqueeleéumser

Page 12: Viveiros de Castro - Anti-Narciso - Antropologia

26 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.4·2010

humanocomoeu.Oproblemaindígenaécortar.Tudoestáconectado.Paranós,aocon-trário,estátudoseparado,tudoédadocomoseparadoeoproblemaéfazerasociedade,acomunicação,aconexão,ocontato.nomundoindígena,seéaocontrário,aAntropologiatemqueseraocontrário.Entãoficaaquestão:eaí?Comoéquenoshavemoscomisso?Porqueumacoisaécerta:osíndiossãoexatamentecomonós.Istoé,nãopodiamsermaisdiferentes.