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Você já viu a chuva cair?
Peça em um ato e nove cenas
Cenário despojado: uma igreja rústica, sem sinal de símbolos religiosos nas paredes ou
quaisquer outros. Uma espécie de altar no centro do palco, ao fundo. O altar é como
uma pequena varanda, com cerca baixa, no centro três de acesso. No centro, como
fosse uma mesa nua de celebração, mais nada. No lado esquerdo do palco, um
confessionário, com cortina de veludo vermelho protegendo o interior. No lado direito,
uma espécie de sacristia, mais com aspecto de estábulo. As cores das paredes são
escuras, de chumbo e a madeira da varanda, do confessionário e da sacristia, mais
escuras, em tom marrom escuro.
AUTOR – Um homem trágico e bêbado.
DIRETOR – Todo diretor de teatro é um tipo estranho e poderoso.
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GENERAL – General aposentado vira produtor e investe no projeto.
MULHER – Namorada do autor ganha papel na peça, porque é namorada do autor.
PADRE – Não sabe exatamente o que faz na peça. Tenta fazer o melhor possível. Mas
também não sabe o que é melhor.
ARLEQUIM – Sabe que é importante no teatro.
ATOR – Romântico, se apaixona pela atriz.
PRESO – Contratado para assassinar alguém.
CENA I
Cenário: interior de uma igreja. O autor surge cambaleante. Luz fraca no palco. Luz
sobre o autor.
AUTOR (Andrajoso, como o ébrio de Vicente Celestino, abraçado a uma garrafa) – Oi
gente! Vocês ainda estão aí? (Dá uma risada, ergue a mão num gesto que pode ser
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interpretado como deixa para lá! Com voz de bêbado, acrescenta). É só uma
brincadeira. É só uma brincadeira. É claro que vocês estão aí.
AUTOR – Me chamam Cadelão. Eu sou o autor. O Cadelão. (Cambaleando). Eu vou
contar uma coisa para vocês: eu digo para, porque “pra vocês” é muita intimidade. Eu
sou uma pessoa formal. For-mal. É, for-mal.
AUTOR (Acariciando a garrafa com fosse um bebê) – Mas a verdade é que sou uma
pessoa trágica. Sim, uma pessoa trágica. Por isso é que eu gosto do Vicente Celestino.
Um homem trágico até na alma. Trágico até na garrafa. (Se equilibrando com a garrafa
embaixo do braço e de pé para a platéia). Um homem é trágico.Ou então não passa de
um grande palhaço. Simples.
AUTOR (Ri) – E se ele for um palhaço ele é um comediante. Não está certo?
(Sussurrando para o público). A minha namorada atua na peça. Ela é uma gata. Uma
ga-ta. Sabe o que ela me disse? (Imitando voz de mulher). Acho que vou ficar muito
nervosa. Mas estou feliz. Trata-se de um privilégio trabalhar no teatro. É tão bom que as
pessoas acreditem no meu trabalho. Gostaria de saber como é a minha personagem. E,
depois, quero fazer novela.
AUTOR (Irritado e trágico) – No-ve-la. O diabo inventou a novela. E a novela matou o
teatro. Portanto, meus amigos, é o diabo que está querendo acabar com o teatro. Mas
eu não vou deixar. Entre eu e o diabo eu sou mais eu (cambaleia e quase cai. Se
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equilibra. Fica triste, tenta conter o choro). Não se assustem com o que eu vou dizer: os
autores estão morrendo. Há alguém matando os autores. A verdade é que hoje em dia
qualquer um pode ser um autor. (Gesticulando com uma expressão bêbada e o braço
meio torto) Tem um traficante, que faz cada interferência de matar. Eu falei
interferência? Performance (fica em silêncio).
MULHER (Entrando assustada) – Eu estava te procurando. (Olha para a garrafa). Oh,
meu Deus! Você de novo com ela. E agora como é que vai ser?
AUTOR (Com uma expressão ausente) – Como é que vai ser o quê?
MULHER – Eu gostaria de saber como é a personagem?
AUTOR – É uma mulher.
MULHER – Só isso?
AUTOR (Procurando ser galante) – E você acha que existe algo mais sublime que isso:
mulher.
MULHER – Mas e o texto?
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AUTOR – Não posso dizer.
MULHER – Não?!
AUTOR – Não.
MULHER – Porque, não?
AUTOR (Sarcástico) – Por que eu sei o quão é difícil para uma mulher guardar segredo.
MULHER (Afastando-se perturbada) – Não adianta, neste estado ele não fala nada. E
eu preciso do texto. Eu preciso ler alguma coisa. Ele vai chegar (volta-se para o autor).
Ele disse que vai me pedir o texto e se não souber vai me amarrar em uma roda, com a
boca amordaçada. Eu acho que ele não gosta de mim (barulho de porta se abrindo). Eu
acho que é ele.
AUTOR (Para a platéia) – Eu vou lhes dizer uma coisa: toda obra de arte é uma infinita
solidão. Se o público as julga fácil é porque não entrou em seu coração.
MULHER (Assustada) – Acho que vou embora (e se afasta).
AUTOR (Fica sozinho em cena. Um vulto se aproxima. Ouve-se um tiro. O autor cai
lentamente, fica de joelhos, abraçado à garrafa, como fosse um bebê. Ele olha
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fixamente para o público e diz tristemente) – Eu não disse que os autores estão
morrendo? Não disse? (E dobra sobre si mesmo).
(A sombra se afasta e um pouco depois outra sombra se funde com a primeira e
aproxima-se de um canto. O corpo do autor fica amontoado sobre si em outra
extremidade).
O preso entra, olha em volta, admirado e depois de alguns minutos:
PRESO - Que lindo!! Como é bonito aqui. (Falando para o público como a um
acompanhante imaginário). Sai hoje da penitenciária. Fiquei dez anos preso. Dez!!! Não
foram nove. E muito menos onze. (Contando nos dedos). Foram dez anos.
PRESO – Quem me soltou (em tom de confidência)... Quem me soltou foi o produtor.
Por isto estou aqui. Ele disse que tem um serviço para mim. Um serviço!!! (Com
orgulho) E eu sei fazer serviços.
PRESO (contorcendo as mãos, com medo) – Mas eu não quero voltar para a
penitenciária. Prefiro morrer. Eu quero fazer o bem. Fazer o legal. O que for da lei. Eu
digo a lei dos homens, que tem mais códigos e artigos.
PRESO – Lá na penitenciária não é o que dizem. Um lugar fino, de pessoas educadas.
Nada disso. Lá é ruim. As pessoas são preguiçosas e mau humoradas, jamais dizem
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Bom Dia, como vai Senhor!!!
PRESO (Vê as flores. Olha para os lados e arranca a metade das flores de um vaso
perto do altar) – Vou levar para um amigo no cemitério. Ele gosta de flores. Ele está
morto e não pode mais colher flores.
PRESO (Vai saindo devagar. Pára e diz) – Depois vou fazer meu serviço. Mas eu não
quero voltar para a penitenciária.
PRESO (Somente então vê o corpo do autor no chão) – Um presunto na igreja. Que
coisa terrível, um crime na catedral. Ihhh!!! Estou ferrado. Mal sai da prisão e já sou
suspeito. Eu sou o suspeito.
PRESO (Aproximando-se do autor e olhando-o com atenção) – E pelo jeito nem é o tipo
que devo procurar. (Ergue as mãos sujas de sangue). Minhas mãos estão sujas de
sangue. Preciso lavá-las. Vou procurar uma torneira (Ele pega as suas flores e sai com
elas, sorrateiro, assustado).
CENA II
Dois homens sentados diante de uma mesa, na sacristia. Ao lado da mesa, uma mulher
amordaçada e amarrada a uma roda de carroça.
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ARLEQUIM – O Cadelão morreu! O Cadelão morreu!
ATOR – Que aconteceu com ele?
ARLEQUIM – Ele bebeu até entupir o buxo, caiu no chão da igreja e morreu com um
buraco no peito.
ATOR – No peito?
ARLEQUIM – Sim. Mas aberto pelo lado de trás.
ATOR (declamando) - Nasci artista, fui cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma
escola de canto. O meu nome pouco a pouco foi crescendo, crescendo, crescendo, até
ficar bem grandão e chegar aos píncaros da glória.
ARLEQUIM – Porque você está falando assim?
ATOR (explicando) – Homenagem ao Cadelão. Ele gostava de declamar. Posso
continuar?
ARLEQUIM – Claro, continue.
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ATOR - Durante a minha trajetória, tive amores. Todos juraram-me amor eterno. Mas
acabaram fugindo com outros, deixando-me a saudade e um baita par de chifres, além
da dor de corno que é a dor mais profunda e filha da puta que existe no mundo. Uma
noite quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor. Essa
jovem veio a ser, mais tarde, a minha legítima esposa.
ARLEQUIM – E mais tarde ela, também, meteu chifres no Cadelão!
ATOR – Como você sabe?
ARLEQUIM – Com este currículo, não dá outra.
ATOR – É verdade (e voltando a declamar): Um dia quando eu cantava A Força do
Destino, ela fugiu com outro deixando-me uma carta E, nesta carta, um adeus. Eu não
pude mais cantar.
ARLEQUIM – Ué, que aconteceu?
ATOR – Não sei. Toda vez que chegava nesta parte o Cadelão já estava bêbado e
adormecia.
ARLEQUIM (olhando a mulher amordaçada) – E esta aí, quem é?
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ATOR – É a última namorada do Cadelão.
ARLEQUIM – E o que ela faz?
ATOR – Como vou saber! Desde que cheguei aqui ela esta assim, com a boca
amordaçada.
ARLEQUIM (levanta-se e vai até mulher e pergunta) – Porque a deixaram aí, dona, feito
uma Medéia acorrentada?
O ator levanta-se, vai até a mulher e tira a mordaça de sua boca. Ela respira fundo e
responde.
MULHER – Roubei o fogo do Cadelão. Antes de mim, era um homem fogoso. Depois,
tornou-se apenas um homem apagado, um bêbado, que escrevia coisas horríveis!
ATOR – Apenas isso?
MULHER – Não apenas isso. Mais que isso. Eu não li a Senhorita X.
ATOR – Mas isto é crime?
MULHER – Para o Cadelão, não era um crime. Mas para alguém é, porque eu disse
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que li.
ATOR – Não, você disse que não leu.
MULHER – Não, eu disse a você que não li. Mas disse a alguém que li.
ATOR – E este alguém, tão cruel assim, quem é?
MULHER – O diretor.
(O diretor entra)
DIRETOR (imponente, arrogante, olha com desdém para o ator e indaga a mulher) –
Você leu Senhorita X, do Strindberg?
MULHER – Claro que li.
DIRETOR – Que você achou do comportamento dela?
MULHER – Repugnante. A senhorita X tomou o baseado da Senhorita Y, que ficou
revoltada. As duas brigaram por causa disto e também porque a Senhorita X queria
jogar bilhar, mas o taco dela era curto demais.
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ATOR – Ela ficou maluca, não é nada disso!
DIRETOR – Agora você entende porque ela esta aí?
ATOR (se aproximando e dando conselhos a Mulher) – Mas Senhorita X e Senhorita Y
são a mesma pessoa. Porque você não diz isto a ele? O seu processo será arquivado,
você será absolvida.
MULHER – Mas eu não li a peça.
ATOR – E porque você não leu? Você é a atriz principal.
MULHER – Porque era muito longa.
ATOR – Mas tem somente uma página.
MULHER - (ar de cansaço, esgotada de tudo aquilo) – Foi o que eu disse. É muito
longa.
ATOR (dirigindo-se ao diretor) – Mesmo assim, acho injusto você tratá-la como uma
Medéia.
DIRETOR – Mas ela errou.
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ATOR (fazendo expressão de assombro) – Sim, é claro. Mas você não é Deus, não é
Zeus e muito menos o rei dos Pirineus.
DIRETOR – Mas eu posso tirá-lo da peça.
ATOR – Sim, isto você pode. Mas eu também posso recorrer ao general.
DIRETOR – O general tem coisas mais importante a fazer. O general, neste momento,
certamente está trabalhando.
ATOR – Blasfêmia! Blasfêmia! Blasfêmia! Generais não trabalham, jamais.
DIRETOR – Não fale tão alto o que não pode ser dito. E tem mais: os últimos serão os
primeiros e quando não for, vice-versa.
A conversa entre os dois assume o tom de uma grande discussão.
ATOR – Fique sabendo, quem ri por último, ri melhor.
DIRETOR – E quem não ri, fica sério.
ARLEQUIM (que observava a cena de longe, intervém) – Por favor, por favor, senhores.
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Olhem para a platéia. Ela está vendo tudo.
ATOR – O público merece respeito. É o nosso patrão. Sem ele estaríamos no olho da
rua.
DIRETOR (colocando a mão em concha sobre os olhos para ver o público) – Platéia. É
tudo gentinha empombada, que se engravata em busca de emoções e prazer
intelectual. Não é gente comum, como os outros. São perigosos.
ATOR (para Arlequim) – Ele é um neurótico, um sujeito nervoso.
ARLEQUIM – Ele anda muito estressado e agindo de forma suspeita.
ATOR – Ele é suspeito?
ARLEQUIM (pensativo) – Não havia pensado nisso, até agora. É possível. Tudo é
possível.
DIRETOR (no fundo do palco, gritando) – Eu tenho planos. Tenho coisas a fazer.
Coisas importantes. Alvissareiras.
ATOR – É melhor soltar a mulher, não há motivo para ficar amarrada.
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ARLEQUIM – Vamos emancipar a garota.
A luz cobre a cena.
O diretor se afasta bruscamente.
Cena III
(O ator senta-se ao lado da mulher nos degraus do altar. A mulher tem um estranho
embrulho no colo)
ATOR – Olá! Sente-se melhor?
MULHER – Sim, mas estou indignada. Estou há meia hora pensando coisas. E algumas
coisas que eu penso, são terríveis. E outras são especulações.
ATOR – Especulações sobre um tema específico.
MULHER – Sim, evidentemente.
ATOR – E o que?
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MULHER – Por exemplo, nem tive tempo de casar e já sou viúva. Além disso, você
reparou como acontecem coisas estranhas no teatro hoje em dia?
ATOR – Sim, no teatro hodierno. É evidente.
MULHER – Não, não é preciso ser vidente para perceber. Basta você dar uma olhada
por aí.
ATOR - Percebe-se que você é uma moça de fino trato. As suas mãos são longas e
finas. E você não sorri tão facilmente. Os seus lábios são puros e ligeiramente
obscenos. Como é que veio parar no teatro?
MULHER – Ah, está no sangue de minha família. Está no sangue.
ATOR – Concordo. Às vezes o teatro é uma coisa muito sanguinária. (Demonstrando
interesse pela mulher). Você deveria usar óculos escuros e deixar uma mecha de
cabelos cair sobre o rosto. Ficaria ainda mais distinta e misteriosa.
MULHER – Obrigada. Minha mãe me disse para não aceitar elogios de estranhos.
ATOR – No que ela está muito certa. Alguns elogios são muito eloqüentes. Você disse
que o teatro está em seu sangue?
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MULHER – Sim, claro. Minha mãe me disse. Esquece a medicina e a engenharia. Hoje
em dia quem quer ganhar dinheiro deve fazer televisão, cinema ou propaganda. É mais
negócio. Mas antes, para quem tiver juízo, deve passar pelo teatro. Enriquece o
currículo, dá prestígio e respeito.
ATOR (disfarçando sua decepção) – Bons conselhos. Mães servem pelo menos para
isto, para dar bons conselhos. Percebe-se que você é uma moça de boa família.
MULHER (envaidecida) – Sim. Eu sou. Minha avó é uma pessoa muito prática. Ela é
idosa e tem um problema na perna. Mas, veja bem, ela ainda encontra tempo para ficar
grávida.
ATOR (surpreso) – Ora, que dedicação. Ela certamente gosta muito de crianças!
MULHER – Não, exatamente. Ela tem mais privilégios nos ônibus e nas filas dos
bancos.
(A mulher abre o embrulho que mantém sobre o colo e tira uma caveira)
MULHER (entusiasmada) – Olha o que minha avó me deu quando criança. Não é uma
gracinha?
O ator pega a caveira, olha-a com seriedade e diz solene:
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ATOR – Não é completo o ator que não sabe empunhar uma caveira.
MULHER – E eu não sei disso? Além de empunhar a caveira, ele deve dizer as
palavras mágicas: ser ou não ser, eis a questão!
ATOR – É, mais ou menos isso.
MULHER – Isto é clássico.
ATOR (empostando a voz) - Hum! esse indivíduo talvez tenha sido em seu tempo um
grande comprador de terras, com seus títulos debitórios e obrigações de solver, com
suas ficções legais para transformar em domínio pleno a propriedade vinculada, seus
duplos fiadores, seus expedientes para invalidar gravames: é este o final de tais
chicanas, e o resultado de tais simulações, ficar com o solerte crânio cheio de pura
sujeira?
MULHER – Nossa, você está conversando com a caveira?
ATOR – Estou tentando. Mas presumo que ela não queira conversa.
MULHER – Claro que não, bobinho. Não está vendo que ela está morta?
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ATOR – Oh, é verdade (pega a caveira e devolve para a mulher). Eu tenho este
péssimo hábito de acreditar que as caveiras falam.
MULHER – Não se condene. Todos temos nossos defeitos.
ATOR (surpreso) – E qual é o seu?
MULHER (sincera) – Medo. Tenho medo. O correto seria dizer, eu tenho muito medo.
ATOR – Ter medo não é um defeito. É apenas uma reação diante do inesperado, de um
perigo, de um inimigo mais armado que nós. Todos temos medo, um dia ou outro na
vida. O medo da morte é um dos mais comuns. Os valentes tem medo e os covardes
tem medo. A diferença talvez seja que o medo dos covardes seja mais intenso e
perigoso, porque pode produzir situações desastradas ou vilanias, traições ou
constrangimentos.
MULHER (ainda não convencida) – Talvez. Mas eu, às vezes, sinto medo somente da
possibilidade de sentir medo. E, quando menos percebo, já estou sentindo medo. Ou
seja, é um medo dentro de outro medo.
ATOR – Agora, por exemplo, você tem medo de alguma coisa?
MULHER – Ora, mas claro. (Pegando no braço do ator, olhando para os lados, temendo
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ser ouvida) Vou lhe confessar. Eu tenho medo do diretor.
ATOR – Mas o que ele pode fazer?
MULHER – Não sei. Sinto que é capaz de fazer coisas. De me prejudicar. Ou de me
matar. Ouvi histórias vagas sobre ele. Histórias terríveis. (Confidenciando). Ele é um
escrivão e trabalha em cartório. Eu sei que tenho medo dele.
ATOR (tentando reduzir a importância do problema) – Ele é somente um diretor.
MULHER – Você sabe, ele me amarrou uma vez. Na segunda vez, o sibarita pode me
amarrar e abusar de mim. Até aí, tudo bem. E na terceira, o que ele fará?
ATOR – Sim, o que ele fará?
MULHER – Me matar, por exemplo. Passar mel no meu corpo e espalhar formigas. Me
sujar de excrementos. Me chicotear. E muito mais.
ATOR – Muito mais?
MULHER – Sim. Ele pode me cobrar impostos, por exemplo. Há algo mais terrível que
impostos?
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ATOR – Não queria lhe ofender, mas tem muitos diretores fazendo isto e coisas piores,
por aí. O teatro hoje em dia não é uma profissão saudável. Ao contrário, é muito
perigosa.
MULHER – Tremo só em pensar no que ele está pensando.
ATOR (aproveita a fragilidade da mulher para atraí-la a seus braços) – Coitada. Está
realmente tremendo. Não se preocupe. Eu a protegerei. Ele não lhe fará mal. Eu vou
falar com ele.
MULHER (se animando) – Você faria por mim?
ATOR (vaidoso) – Claro. E porque não faria?
MULHER (aliviada) – Obrigada, senhor. Como estou feliz!
ATOR (malicioso) – Já que você está tão feliz, poderia também me fazer feliz. Aí
seriamos duas pessoas felizes, mesmo que não seja pelo mesmo motivo.
MULHER (desconfiada) – Se o seu pai o visse me assediando de forma tão assanhada,
o que ele diria?
ATOR (maledicente) – Meu pai era um esnobe. Já morreu de trombada, mas era um
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caminhoneiro esnobe. Ele certamente diria: você, um grande ator, comendo estas
porcarias?
MULHER (ofendida) – Agradeço suas palavras. Porém estou segura que não as
mereço.
ATOR – Não se ofenda. Ele diria isso. Mas eu, não. Eu diria: perdão, há muito tempo
que meus olhos não vêem uma mulher tão bonita.
MULHER – Isto é elegante! E eu responderia: o máximo que seus olhos vêem são
gravatas masculinas.
Os dois riem divertidos e saem abraçados.
CENA IV
No interior da Igreja
O general aparece do fundo do altar, ao mesmo tempo que o Arlequim, cada um por um
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lado.
ARLEQUIM - O que é isso? Rúcula?? Espinafre? Isso é brócolis?
GENERAL - Não, sou um general.
ARLEQUIM - Mas os generais vegetam?
GENERAL - Sim, alguns. Procuro serviço. Me disseram que aqui precisam de
produtores.
ARLEQUIM - Mas você é um produtor?
GENERAL - Sou um general. Um homem humano, um fardado sensível. Eu quero
produzir uma peça bonita, com ideais aristotélicos. Ou aristocráticos.
ARLEQUIM - Ihhh!!! Ainda existe isso?
GENERAL - Meu histórico de vida é amplo. Morei no exercito, amei no exército e tomei
chuva no quartel. Colhi uva, passei fome e muita roupa.
ARLEQUIM – Eu nunca passei fome. Eu comi bastante. Comi uma vez até empurrar o
cocô.
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GENERAL – Que nojo! (olha ao redor). Que falta de respeito. (Preocupado em falar de
si). Apesar de tudo, minha história de vida é muito bacana. E apesar de bacana, sempre
pensei em morrer.
ARLEQUIM – Morrer não é fácil. É preciso técnica, coragem, abnegação.
GENERAL – Cheguei a pensar em me suicidar, tomar remédio para dormir e pedir pra
alguém me dar um tiro na cabeça.
ARLEQUIM (espantado) – Mas isto não é mais suicídio. Já é assassinato.
GENERAL - Sim, mas aí eu não seria testemunha.
ARLEQUIM – O senhor é um sujeito muito estranho!
GENERAL – O senhor quer dizer que eu sou um perfeito idiota?
ARLEQUIM (olhando-o com desconfiança, colocando as mãos na cintura, em tom de
desafio) – Não disse isto. E porque eu deveria dirimir esta questão?
GENERAL – Porque? Ora, porque!!! Por se sou um perfeito idiota, vou ser um general.
E se não for, vou ser um aeronauta, que é mais legal!
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ARLEQUIM (sacaneando o general) – Então, eu presumo o senhor deva ser um
general.
GENERAL (não se importando) – Ah, muito bem! Então vamos confessar.
ARLEQUIM (assustado) – Confessar, porque?
GENERAL – Ora, ora, todos somos pecadores. E somente através da confissão,
nossos pecados serão perdoados.
ARLEQUIM – Mas quem vai confessar quem?
GENERAL – Simples, está vendo aquele confessionário?
ARLEQUIM – Sim!!!
GENERAL – Quem chegar primeiro e entrar no confessionário será o confessor. Quem
for segundo, será o homem do padre. Ou melhor, o pecador.
Os dois correm. O general chega primeiro e posta-se diante da porta do confessionário,
impedindo Arlequim de entrar.
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GENERAL – Arrá! Eu ganhei. Agora, você vai contar os seus pecados.
ARLEQUIM (decepcionado, cara de choro) – Muito bem, bere-bem, bem-bem!!
GENERAL – Assim que se fala (entra no confessionário, enquanto Arlequim ajoelha no
outro lado).
ARLEQUIM – Que devo dizer?
GENERAL – Vamos lá, meu filho! Eu quero toda a verdade. Eu quero a verdade
peladinha na minha frente.
ARLEQUIM – Mas eu tenho vergonha! Isto é falta de pudor.
GENERAL – Você vai ter de confessar tudo! Todas as suas safadezas.
ARLEQUIM – E seu eu não tiver?
GENERAL – As que você viu, pensou, eu quero saber das suas safadezas!!!
ARLEQUIM (resignado) – Eu sei que o que fiz foi errado. Mas que diabo, o importante é
competir.
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GENERAL – Infelizes são os heróis que não tem países.
ARLEQUIM – O meu pecado é não ter fé. Você tem que ter fé no seu caminho,
entende? Ser como uma capivara. Sem ofender as capivaras! Sem ofender as
capivaras! Mas as danadas acreditam no caminho.
GENERAL – Eu nunca tive fé. No entanto, eu nunca desisti. E por isso eu estou aqui.
(De repente, curioso). O que você faz?
ARLEQUIM - Eu sou um místico.
GENERAL - E o que vem a ser isto?
ARLEQUIM - É um cara que ouve vozes. Elas sussurram no seu ouvido e você avisa as
pessoas.
GENERAL - Então você também é maluco!!!
ARLEQUIM - Não, eu sou muito ciência, mas acredito em Deus. Eu sou do tipo que
chega de mansinho e diz pra ele: Oi, cara, como cê tá? Cê tá legal!! Sabe, general, a
gente pode chegar pra Deus e falar numa boa: E aí, bicho, tudo bem?
GENERAL - Mas, ele responde?
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Trovoadas, raios, a igreja fica escura e começa a chover no lado de fora. A luz hesita e
volta.
ARLEQUIM – O patrão falou. E agora, você quer saber mais alguma coisa?
GENERAL (assustado) – Acho melhor a gente encerrar o assunto e cair fora.
Antes que os dois saiam da igreja, o diretor e o ator entram pela porta da frente.
Enquanto Arlequim foge, o General esconde-se no confessionário, puxando a cortina
vermelha.
CENA V
ATOR (olhando para os lados)- É aqui que o general trabalha?
DIRETOR – Sim, no confessionário. Ele trabalha ali, onde arranca confissões das
pessoas. (Sussurrando). Sabe, ele é muito supersticioso e mentiroso.
ATOR – Mas um general tem o direito de ser supersticioso.
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DIRETOR – Um general, não. Mas um padre, sim. Por isso eu vou te dar uma camiseta
com um desenho de um alecrim.
ATOR – O alecrim espanta mau olhado. E tem o cheiro gostoso.
DIRETOR - Nada! Ele fede a suor, ele e seu irmão, o pierrô.
ATOR – Você está falando do Arlequim.
DIRETOR – Claro, do alecrim.
ATOR – Parou de chover. Olha a lua. Ontem ela estava ali e hoje ela está do outro lado.
Será que que a lua fica dançando de um lado para o outro como um pêndulo para nos
enganar???
DIRETOR – Em inglês lua é moon. Você já leu algum livro em inglês?
ATOR – Nem nunca vi. Eu sei que em português, moon é mugido de vaca.
DIRETOR – Que horror! Os atores hoje em dia não lêem nada, nem seus textos. E
acreditam que no fim, tudo vai dar certo.
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ATOR – Você se ofenderia se eu recusasse esta camiseta?
DIRETOR – Claro, seria uma ofensa. Eu poderia me irritar.
ATOR – (severo, devolvendo a camiseta) - Você já pensou sobre o personagem que
você representa aos olhos das outras pessoas?
DIRETOR – Sem rodeios, por favor: o que você está querendo dizer?
ATOR – Aquela mulher que você amarrou na roda não roeu a roupa do rei de Roma.
(Desafiador) Entende o que eu quero dizer?
DIRETOR (perplexo) – Não.
ATOR - Ela não merecia aquele tratamento. Ela o teme, mais que ao próprio demônio.
DIRETOR (satisfeito com a revelação) – Mas é isso é formidável! Neste mundo só
existem dois tipos de pessoas; as que metem medo e as que tem medo. Só se respeita
a quem se teme.
ATOR – Seus sentimentos mais profundos revelam uma pessoa mesquinha, perversa e
pior de tudo, confusa.
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DIRETOR – Você está sendo ambíguo: me comparou ao demônio e não acho que o
demônio seja confuso. Ele, por tudo que se lê, parece um sujeito bem decidido.
ATOR – Você fala de um demônio. O inferno está cheio de demônios, dos claros, dos
decididos, dos confusos e dos medíocres.
DIRETOR (impressionado) – Eu não havia pensado nesta possibilidade. Mas, voltemos
ao caso da mulher. Vamos dizer que você esteja certo. O que queria que eu fizesse?
ATOR – Que percebesse claramente suas falhas e fraquezas, não para ser um fraco,
mas para se superar e ser digno de admiração e do verdadeiro respeito humano.
DIRETOR (com expressão de desdém) – Ora, ora. Belas palavras! Mas também
aborrecidas. Eu não pretendo encarar os fatos com bom humor e também ser digno de
respeitos verdadeiros. Prefiro os respeitos falsos que são mais honestos e verdadeiros.
Além disso, a natureza ignora o bom humor. Se você fosse um observador atento
perceberia que a natureza é simplesmente mal humorada.
ATOR (suplicante) – Eu gostaria de lhe pedir que deixasse a mulher em paz.
DIRETOR – E, porque faria isso?
ATOR – Porque a vida é melhor quando nos tratamos com amor e respeito.
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DIRETOR – Mais bobagens. Meras bobagens. Muitas bobagens. Discussões
conceituais, pura teoria política (olhando desconfiado para o ator). Você, por acaso,
ama esta mulher?
ATOR (romântico e sonhador) – Sim. Eu a amo desde o primeiro momento em que a vi
amarrada naquela roda imunda, com a boca agradavelmente amordaçada. Quem
resiste a uma mulher assim?
DIRETOR – Percebeu a virtude da maldade? Se eu não a tivesse amarrado na roda,
você não teria se comovido e não estaria, agora, apaixonado por ela.
ATOR (indignado com o cinismo do diretor) – Não seja cruel.
DIRETOR (repentinamente amável) – Diga-me. Você seria capaz de dar a vida por esta
mulher que ama?
ATOR (convicto) – Não duvide de meu sentimento, senhor. Ele é forte.
DIRETOR (insistindo amavelmente) – Eu vou deixar a mulher em paz. Mas, você não
respondeu objetivamente a minha pergunta. Por isso vou repeti-la: você seria capaz de
dar a vida por ela?
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ATOR (com gestos dramáticos) – Se mil vidas tivesse, todas daria por ela. (Olha o
diretor, comovente) Sim, quantas vezes fosse necessário.
DIRETOR (satisfeito) – Não seja exagerado, uma vez só é suficiente (enfia a mão no
paletó, tira o revolver, aponta para o ator e atira)
ATOR (incrédulo) – O que você fez?
DIRETOR – Nada.
ATOR – Porque você fez isso?
DIRETOR – Porque sim. A vida é assim, um grande espetáculo. Chega uma hora que
você tem que eliminar alguém. Hoje foi você. Sabe por quê?
ATOR (com a mão ensangüentada, não acreditando no que está acontecendo) – Não,
por quê?
DIRETOR – Se não fosse você, seria eu. É o show da vida. Ou o show da morte. É
muito perigoso um homem apaixonado andando por aí. Pode ser atropelado ou
atropelar alguém.
ATOR – Você poderia ter feito diferente. Poderia ter lutado comigo, ter apertado o meu
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pescoço e assim teria a chance de ver a minha língua vermelha, entre meus dentes
brancos.
DIRETOR (Visivelmente irritado, com desdém) - Desculpe o mal jeito. Mas, já que o
matei, por favor, morra!!!
ATOR (percebendo que realmente vai morrer com o ferimento) – Estúpido!!! Não sabe o
favor que me fez. Viver – e ainda mais ao lado de sujeitos como você – é o verdadeiro
tormento. Viver já é uma longa jornada em que se paga dívidas; eu não pedi para
nascer, não pedir para viver e, tampouco, pedi para morrer. Nada mais perfeito. Eu não
engendrei a minha morte. E, no entanto, você assim o fez. Alguém não poderia fazê-lo
sem prejuízo a seu próprio espírito. Eu morro, morro amando alguém. É mais decente
que viver odiando o mundo.
DIRETOR (incomodado com o fato de o ator não morrer de uma vez) – Cale a boca e
morra!!!
ATOR – O que eu quero dizer é que, ao morrer eu pressinto, não estou mal. Enquanto
você – lamento dizer isso – você irá para o inferno!!! (desaba no chão pesadamente)
DIRETOR (depois de conferir que realmente está morto, olha-o com desprezo) –
Amante estúpido! Defunto patético! Eu avisei: eu posso eliminar. O que fiz foi nada além
de exercitar o meu poder (olhando o público). E quanto a vocês, não me importam o
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que estejam pensando. Isto é, se é que pensam alguma coisa. Não se vangloriem, não
são os únicos a me odiarem (e sai de cena, abrupto)
CENA VI
O tiro e a conversa na catedral atraem o padre, Arlequim e a Mulher.
PADRE – Que zoeira é essa na casa do Senhor? (olhando o corpo do ator no meio da
igreja). Um cadáver? Mas que faz aqui um cadáver? (olhando para o confessionário,
percebe que há alguém). Quem está aí dentro, responda!!
GENERAL (abrindo a cortina do confessionário) – Eu estou aqui.
ARLEQUIM – Nossa, o cadáver do ator. Certamente matou-o o diretor. Porque o autor
já está morto.
MULHER – Sim, até agora não sabemos quem matou o Cadelão.
PADRE – E quem ver a ser o Cadelão?
MULHER – Ora, não sabeis? O autor. E quem o matou foi o diretor (para o público), e
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isto o que eu digo é apenas uma presunção. Ele tentou me matar usando um
argumento ignóbil. E se agora o ator aparece morto, o suspeito é o diretor.
GENERAL (dentro do confessionário) – Não me perguntem nada. Eu nada vi, porque a
cortina me impediu.
ARLEQUIM – O diretor tem ciúmes do autor e do ator. E eu acho que de mim também.
PADRE – E por quê?
ARLEQUIM – Porque os nossos nomes começam com a letra A. E a letra A é a primeira
letra do alfabeto.
PADRE – Não faz sentido.
MULHER – Faz sentido. Ele não pode matar o produtor, porque precisa dele.
PADRE – E quem é o produtor?
MULHER e o ARLEQUIM (apontam o general) – Ele.
MULHER – Então ele vai matar o Arlequim.
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ARLEQUIM – Eu? Porque logo eu?
MULHER – Porque o seu nome começa com a letra A.
ARLEQUIM – Mas eu não faço a menor questão. E porque ele não me matou antes?
MULHER – Porque Arlequim é mais emblemático, mais bem relacionado, tem amizades
importantes no exterior.
ARLEQUIM (nervoso) – Emblemático? Sou apático, sorumbático, pneumático, um
homem de plástico. (Histérico) Vocês sabem o que eu sou: sou um abacate morrendo
de medo!!! Mas eu não quero ser vítima. E se for, quero ser a última. Agora não estou
com com aspecto para morrer. Não estou preparado.
MULHER – Vítima não tem aspecto. Vítima é vítima. Pronto. Ponto. Além disso,
somente a sua velha e simples modéstia o impede de assumir que é a próxima vítima.
ARLEQUIM – Eu não sou modesto. Eu sou covarde.
PADRE (tentando entender as coisas, virando-se para o general) – Primeiro, eu
gostaria de saber o que o senhor faz aí dentro, no confessionário.
GENERAL – Estou ouvindo confissões.
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PADRE – Mas o senhor não é padre!
GENERAL – E daí! O senhor também não general e está dando ordens. Além disso, um
general sabe usar melhor as confissões que os padres.
PADRE – Que sacrilégio. Confundes tortura com remissão dos pecados. Sai já daí.
GENERAL (saindo do confessionário) – Tudo bem, eu saio. Mas é melhor mudar de
assunto, porque há um cadáver, há um crime e há um suspeito.
PADRE – E o senhor que é militar e ainda o produtor de tudo isto poderia muito bem
começar a trabalhar um pouco em vez de bisbilhotar confessionários.
GENERAL (como um detetive investigando o local do crime) – Mas não há uma
evidência para prendermos o diretor. Há somente um cadáver. O que é um cadáver?
Nada mais que um homem morto. Isto, somente, em si, não representa nada a não ser
a ausência de vida.
ARLEQUIM – Conversa fiada. Há um crime aqui. E todo mundo faz de conta que não
há nada.
MULHER – Me parece que todo mundo é cúmplice. Todos sabem e não falam nada.
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Não seria o senhor também, general, cúmplice destas mortes. Da morte do autor, do
ator e quem sabe do público.
GENERAL – Não coloque o público nisso. Ele pagou para ver e não para matar.
MULHER – Olhe, Arlequim, só a cara desta gente. Em sã consciência, você diria que
todo mundo sentado ali é realmente inocente?
ARLEQUIM (medroso) – Há algo de podre, eu sei e não é minha vaca.
PADRE – Não há evidências de que estas mortes no teatro sejam obra do público. Mas
precisamos descobrir quem está matando quem. E porque.
GENERAL – Não sei se isto é importante.
MULHER – Sim, é importante, porque podemos ser as próximas vítimas.
PADRE – Vítimas de quem?
MULHER – Do diretor. O diretor é promíscuo. Ele passa a mão da cabeça das
mocinhas, lambe os beiços e diz – ai loviú.
ARLEQUIM – Sim, precisamos salvar o teatro.
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PADRE – Claro que não idiota, precisamos salvar a nossa pele.
GENERAL (desconfiado) – Não estou gostando desta conversa. É sempre assim.
Procuram um culpado. Depois vão querer o chefe do culpado. E aí começam as
injustiças.
ARLEQUIM (para a Mulher) – Você realmente tem motivos para não gostar do diretor?
Digo, além das suspeitas, que são meras suspeitas.
MULHER – Ele me confidenciou que o preço das azaléias subiu cinquenta por cento no
mercado paralelo.
ARLEQUIM – Um absurdo!
MULHER – Ele diz coisas estranhas.
ARLEQUIM – Por exemplo?
MULHER – Ele fala em nome dos godos, dos vândalos, dos hunos e também dos
sarracenos.
PADRE – Isto é muito grave.
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MULHER – Eu desconfio que ele tem prazeres mistos.
GENERAL – Que vem a ser isto?
ARLEQUIM – Prazeres intelectuais e liberalmente sensuais.
GENERAL (impressionado) – Ohhh!!!!
PADRE – É claro que há uma tendência do homem de tirar do outro, mais do que lhe
dá. De impedir que o outro tenha vantagens sociais. De ultrapassar, mais que isso, de
tentar ofuscar o caminho alheio em direção aos louros. Mas achar que ele usou um 38 é
demais. É simplesmente chocante.
ARLEQUIM (irônico) – Além de fatal.
GENERAL – Sem contar, muito eficiente.
MULHER – Eu diria – arbitrário. Muito arbitrário. Um método seletivo arcaico.
PADRE (exasperado) – Ainda, assim, antiético.
ARLEQUIM – E quanto ao cadáver do ator?
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PADRE – Vamos levá-lo para a sacristia. Um cadáver, ás vezes, pode ser muito útil.
ARLEQUIM – Aquilo não é um estábulo?
PADRE – Então, vamos para o estábulo.
ARLEQUIM – E, se for uma sacristia?
PADRE – Então, vamos para a sacristia.
ARLEQUIM – Decida-se de uma vez.
PADRE – Eu me decidi: vamos para lá (e aponta a sacristia, com a sua roda de
carroça).
Saem o padre, Arlequim e a Mulher. O General volta sorrateiro para o confessionário e
puxa a cortina, para se esconder.
CENA VII
ARLEQUIM (surgindo para o diretor que escreve alguma coisa no altar, como fosse
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uma mesa) – Não há ninguém aqui para fazer fumaça?
DIRETOR – Com o que?
ARLEQUIM – Com a maquininha de fazer fumaça.
DIRETOR – Máquina de fazer fumaça?
ARLEQUIM – Aquelas, imprescindíveis nas montagens do Sr. Thomas.
DIRETOR – Ah, do Sr. Thomas. Ele está aí?
ARLEQUIM – Não, claro que não. Porque haveria de estar?
DIRETOR – Não sei.
ARLEQUIM – Mas o certo é que ele não está.
DIRETOR – Ah, o Sr. Thomas. O que aquele idiota tem a ver conosco?
ARLEQUIM – Positivamente, nada.
DIRETOR – Então porque fala nele e na maquininha do Sr. Thomas fazer fumaça?
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ARLEQUIM (olha para os lados) – Seria útil para nos dois nos ocultarmos.
DIRETOR – Ocultarmos de quem?
ARLEQUIM (Conspirador) – Dos outros. Tenho algumas coisas interessantes para lhe
falar. E, sinceramente, não gostaria de ser visto as confidenciando.
DIRETOR (pela primeira vez prestando atenção no Arlequim) – É que coisas são estas?
ARLEQUIM – Uma conspiração em andamento contra o senhor.
DIRETOR (deixa de fazer o que estava fazendo para dar mais atenção ao Arlequim) –
Vamos lá, de que se trata?
ARLEQUIM – O padre e a mulher suspeitam que o senhor está eliminando autores e
atores e pretendem eliminá-lo antes, para não serem eliminados.
DIRETOR (soltando um largo sorriso) – Ora, mas estou perfeitamente a par de tudo
isto.
ARLEQUIM (assustado) – Como sabe?
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DIRETOR – Porque sou o diretor. E tudo aqui corre de acordo com o que acredito ser o
melhor. Nada me escapa, nem as conspirações.
ARLEQUIM (decepcionado) – Ora, não faz sentido.
DIRETOR – E porque deveria fazer? Ou não fazer? Faz absolutamente sentido. Como
poderia não fazer absolutamente sentido. E tem mais: detesto puxas-sacos.
ARLEQUIM (ofendido) – E porque?
DIRETOR (arrogante) – Me fazem perder tempo.
ARLEQUIM – Me humilhaste. E me ofendeste. Vou ofender também a sua honra, para
obrigá-lo a se bater em duelo comigo.
DIRETOR (desafiador) – E como faria?
ARLEQUIM – Simplesmente dizendo em alto e bom som que você não passa de um
diretorzinho de merda, confuso, arrogante, incompetente e assassino.
DIRETOR – Arlequim, você sempre foi um bosta. E tem mais, não me ofendeu. Em alto
e bom som, vá para o inferno.
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ARLEQUIM – Vou, mas te levo junto.
DIRETOR – Vai sozinho e mal acompanhado.
ARLEQUIM (tomando pose de duelo) – Ah, é? Então se aprepare para o duelo. Se
aprepare, diretor, que não vai ficar pedra sobre pedra.
DIRETOR (deixando o altar, se apruma e volteia, iniciando o ritual para o duelo com
Arlequim) – Estou preparando seu fantasiado.
ARLEQUIM – Você num brinca comigo
Que eu não sou batizado
Num tive cordão de umbigo
E deixei muito diretor capado.
DIRETOR – Você pensa que eu assusto
Seu matuto traiçoeiro
Sou diretor a muito custo
E já ganhei muito dinheiro.
ARLEQUIM – Você é um capitalista
Um coisa ruim, um chinfrin
Não pensa que um vigarista
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Vai enganar o Arlequim
DIRETOR – Arlequim ou Pierrô
Para mim é a mesma meleca
Dou e tiro, tiro e dou
Faço você virar traveca
ARLEQUIM - Não faça esse horror
Que posso me zangar
Faço você virar Dona Flor
Doidinha pra me beijar
DIRETOR – Isso nunca será feito
Pois eu nesse momento
Estou arrumando um jeito
Pra você virar jumento
ARLEQUIM – Faça essa besteira
Que acabo com sua vida
Com um coice na moleira
Te abro grande ferida
DIRETOR – Antes que isso aconteça
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Vou encerrar o assunto
Arlequim não me aborreça
Vire de vez um defunto.
Arlequim perde o fôlego, leva as mãos à garganta, se contorce e cai no chão, como
tivesse um enfarte.
DIRETOR – Comigo é assim. Na pereba. Na bucha.
(General saindo de seu canto, escondido no confessionário)
GENERAL – Eu ouvi tudo. O que você fez?
DIRETOR – O que você viu.
GENERAL – Mas o que eu vi?
DIRETOR – Tudo, oras.
GENERAL (olhando o corpo de Arlequim) – Ele morreu mesmo ou é encenação?
DIRETOR – Mortinho, mortinho.
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GENERAL (desconfiado) – Foi você quem matou os outros?
DIRETOR – E quem mais poderia ser?
GENERAL – Mas, deste jeito, você acaba com o elenco e com o meu investimento.
DIRETOR – É uma possibilidade.
GENERAL – Mas isto é grave!
DIRETOR – Porque? O dinheiro? Pense de outra forma: o público, que aí está, já pagou
o ingresso. E de outra forma, você não precisa pagar autor e atores, essa burocracia.
Tudo se passa como fosse uma greve, um bando de rebeldes querendo subverter a
ordem natural das coisas. E que acontece? São eliminados: sem salário, sem justa
causa, sem ações judiciais, sem gastar um tostão...
GENERAL – Bem, neste caso, a coisas é tão grave assim.
DIRETOR – Foi o que disse.
GENERAL (lembrando-se de que a peça não acabou) – E quanto aos outros?
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DIRETOR – Chegará a vez deles. Não se preocupe.
CENA VIII
A igreja esta sombria. Altar na penumbra, ao fundo o confessionário e no centro o
diretor entre a mulher e o padre. O general sentou em um banco. Os quatro fumam
charuto. E estão sérios.
GENERAL (depois de dar uma longa baforada e olhar a fumaça do charuto subir) –
Devo fazer uma autocrítica. Acho que cometi um erro.
PADRE – Eu concordo plenamente.
GENERAL – Mas eu não disse nada, ainda?
PADRE – O senhor disse que errou.
GENERAL – Sim, mas não disse onde. E antes que você me interrompa, vou continuar.
Eu errei...
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PADRE – Eu concordo.
GENERAL (ignorando a impertinência do padre) - ...porque não deveria ter chamado
vocês para esta peça. Foi um grande equívoco. Ela não é vanguarda, tampouco
retaguarda. Não é bombordo, muito menos estibordo. É avançada? Ou uma retirada? E
vocês, quem são? Realmente, não sei.
PADRE – Foi um erro ou um equívoco? As duas coisas não pode ser...
GENERAL – Foi um erro chamar vocês. E foi um equívoco ainda maior convidar
(apontando o diretor) você para dirigi-la. Só fui tomar consciência disso quando os
mortos foram aparecendo. Agora sei que os militares não deveriam ser envolver com
teatro. (Apontando para o padre). E isto que digo é um equívoco e não um erro.
MULHER – Palavras sensatas. Antes tarde que nunca.
PADRE (em tom de censura) – Militares também não deveriam usurpar atividades
alheias e arrancar confissões de maneira equivocada.
GENERAL – Este é outro assunto. Mas como ia dizendo, eu errei e quero consertar
meu erro simplesmente mandando vocês embora, para evitar uma carnificina.
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Todos os três protestam.
MULHER - Nada disso. Não tenho mais medo.
PADRE - É um desrespeito com o público.
DIRETOR – Se tem alguém com autoridade para dispensar alguém aqui, sou eu. Além
disso, foi você quem errou. Mas eu não errei. Se você quer sair, a porta é aquela. Nos
vamos ficar, para ver o que vai acontecer.
GENERAL – Você vai matar todo mundo. Isto não é um açougue.
DIRETOR – Como sabe?
GENERAL – Francamente, esta tudo errado: você matou o autor de cara deixando-nos
numa situação delicada. Avançamos sem saber o que estava acontecendo, à mercê de
nos mesmos. Matou o ator por um xilique, matou o Arlequim por ciúmes dele estar há
tempo no teatro e certamente mataria o padre – porque você é anticlerical – e mataria a
mulher porque você não gosta de mulheres. E mataria a mim, porque você certamente
é comunista e depois de matar todo mundo não precisaria mais de produtor.
DIRETOR – Elementar. Genial. É espantoso como pode deduzir o meu plano.
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PADRE – Meu filho, você reconhece o erro?
DIRETOR – Não sou seu filho, porra nenhuma.
GENERAL – Você acha correto o que fez? O autor, o ator, a moça e o padre são
importantes no teatro.
DIRETOR (irônico) – O teatro está morrendo, meu amigo. Ele está quase morto. Matei
apenas farsantes que não fazem falta ao teatro. Os autores! Não existem mais autores.
Um rico empresário escreve anedotas e compra o teatro, aluga os intérpretes e em
algumas ocasiões seduz o público com bonificações e bilhetes para sorteio. Temos uma
bela encenação em tudo isto. Isto é teatro?
MULHER – Você se refere a quem, meu caro?
DIRETOR - Ora, você sabe, o rei do concreto.
MULHER (ingênua) – Mas ele é um concretista!
DIRETOR – Quanto aos produtores, eis o que temos: um general. Se tirarem o general,
entra um político sem escrúpulo. Vocês chamam isto de teatro?
MULHER – Alguma coisa está errada. Mas não tudo. Algo do que diz faz sentido, mas
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não se pode julgar a árvore toda, porque um fruto apodreceu.
PADRE – Ela tem razão, meu filho. E não é porque uma coisa está errada, que
devemos sair matando todo mundo que encontrarmos.
DIRETOR (irritado) – Não sou seu filho, porra nenhuma. Quanto aos frutos, mulher,
você não entende nada de agricultura. Quando uma laranja está podre, ela ameaça a
árvore. E esta árvore ameaça o pomar. Quando um pé do algodoeiro está doente, toda
lavoura se perde. Basta você jogar um veneno letal em uma pequena parte do
reservatório de água, que uma cidade é ameaçada.
PADRE – Meu Deus, quanta amargura, quando ressentimento! Quanta falta de um
sucesso, de uma bela conta bancária.
DIRETOR (Se levantando, indo para o meio da sala) – Apesar de estar entre vocês há
algum tempo, a realidade é que vocês não me conhecem. E como pouca gente me
conhece, é preciso que eu me defina. Trabalho em cartório, mas sou escritor. Escritor
profissional. Um escritor profissional é aquele que vive do que escreve. Eu vivo do que
escrevo desde os 13 anos de idade.
MULHER – Mas isto é bonito! Que coisa maravilhosa (O padre e o general olham para
ela sem compreender tanta admiração).
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DIRETOR - Todo este tempo fui escrevente, escriba, escrivão, escriturário, enfim,
escritor. Nunca fui, isto quero deixar bem claro, um excremento.
PADRE – Mas ninguém o censurou.
GENERAL – Eu pelo menos nunca servi em nenhuma repartição da censura federal.
MULHER – Eu admiro os escritores, mesmo os medíocres. Tem até uma poesia para
os escritores medíocres, que gosto muito.
DIRETOR – Como!
MULHER (Levantando-se para declamar) – Ora direis, escrever besteiras. Por certo,
perdeste o tento. Elas são melhor que as goteiras. No interior de meu apartamento.
PADRE – Goteiras no apartamento?
GENERAL – Porque não?
DIRETOR – Porque não!
PADRE (intimidado) – Sim, porque não?
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MULHER – Hoje em dia existem muitas goteiras. E também muitos escritores.
DIRETOR – Sim, muitos. Os presidentes da República, os ex-presidentes da República,
senadores, alguns governadores, muitos prefeitos, dezenas de deputados, os
empresários, os desembargadores, centenas de juizes, os padres, os pilotos de corrida,
os jogadores de futebol, muitos, muitos, muitos...
MULHER – Mas isto é maravilhoso. Porque você está tão revoltado? Veja bem, você
não pode matá-los todos. Por isso, o mais certo seria deixá-los em paz.
PADRE – Eu concordo com ela, meu filho.
DIRETOR – Dizem que matei o autor. Sim, matei. Nada mais indecente e repugnante
que um autor de teatro. Para quê? Porque faz isso? Expandir seu ego até aquele
recanto até então desprezado pelos poderosos, a arte e a cultura? Ele quer fazer a sua
musiquinha e quer escrever: o Juquinha também esteve aqui. Comigo não, violão. Se é
para rodar a baiana, eu faço sozinho.
MULHER – Mesmo não concordando com o seu gesto, eu não posso deixar de dizer
que algo nestas tuas palavras contém o brilho da lucidez.
DIRETOR – Onde você leu isto?
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MULHER – O Cadelão escreveu. Acho tão lindo. (Endireitando-se). Mas porque o ator?
Que fez o ator contra você?
DIRETOR – Matei o ator. Mas foi o ator ou um ator. Ou alguém que surrupiou a fantasia
do ator? Matei o sujeito que troca favores com o canastrão que conhece os labirintos
dos palácios de onde retira o dinheiro. Este, cuja filha teve uma filha que está aqui a
meu lado. Traficantes de favores, tudo se resume a esta promíscua fantasia de favores.
PADRE – Mas o Arlequim não fez mal a ninguém!
DIRETOR – Matei-o de raiva. Ele é o verdadeiro ator que cede aos poderosos, que
deixa a sua arte morrer, que tenta sobreviver sendo mais vil que os seus corruptores.
Não merecia viver.
CENA IX
GENERAL (para o diretor) – Já que você me impediu de dispensá-los, acho melhor nos
livrarmos de você. Eu devo dizer que contratei alguém para matá-lo. Por este teu
temperamento, eu decidi ainda antes de começar, me livrar de você, de seu
insuportável mau humor, de seu ego monumental, que impede traduzir em espetáculo
toda sua genialidade. Por isso, nunca saiu da primeira peça. Me disseram, aquele, só
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matando. Pensei, por que não?
DIRETOR (amistoso, quase simpático) – Curioso, sempre estamos sempre pensando
em matar alguém.
GENERAL – É uma grande verdade.
DIRETOR – Então o que fiz tem um precedente aetico e imoral.
GENERAL (tentando se justificar) - Mas, depois de tudo que você fez, eu tenho andado
muito inseguro e para me sentir mais confortável acho melhor você deixar de existir.
DIRETOR – Acho que você agiu de forma prudente.
GENERAL – Sim, foi o melhor que pude fazer. Mas não se preocupe com as dívidas.
Tomei todas providências.
DIRETOR – E quem vai me matar?
GENERAL (como fosse alguma coisa sem importância) – Um presidiário. Pedi para
soltá-lo, somente para fazer este serviço. Fique tranqüilo, ele é um grande profissional.
Depois dou um jeito dele voltar para a penitenciária.
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DIRETOR – É muito perigoso ter sujeitos violentos soltos por aí.
PADRE – Sim, eu concordo plenamente.
DIRETOR (suspirando resignado) – E você sabe que arma ele vai usar?
GENERAL – Claro. Uma vaca.
MULHER - Que gracinha!
DIRETOR - Eu não gostava do Cadelão. Ele me enchia o saco. Depois descobri que
era daquele jeito porque bebia feito um gambá. Mas nunca o vi de outro jeito, sempre
fedendo e caindo na rua. E escrevendo, escrevendo, escrevendo. Ele não parava
nunca. Aquilo me irritava. Curioso, eu matei mas não sei como se morre. Não é
engraçado?
GENERAL - Não se preocupe, quando chegar a hora certa de você morrer, você saberá
o que fazer. As mortes são imprevisíveis, mas elas esperam que você faça algo.
Enquanto isso, não se deixe dominar pelo medo, que a incerteza causa. Resista ao
medo praticando alegria e respeito, sua presença deve criar benefícios para o mundo.
MULHER - A sua alegria deve ser um grande exemplo. Uma vez, quando eu estava no
corredor do hospital psiquiátrico, os doentes corriam como loucos.
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DIRETOR – Acho melhor ir andando (despede-se de todos. E antes de ir embora, diz).
Me desculpem os malentendidos.
GENERAL – Não se preocupe.
MULHER (chorando comovida, depois que o diretor sai em direção da platéia) - Há
muitas pessoas que vieram do nada e permanecem fiéis à sua origem.
O preso entra correndo, e procura o general.
GENERAL – Que aconteceu?
PRESO – Está tudo pronto.
GENERAL - Onde vai ser o serviço?
PRESO – No lado de fora (todos correm para a janela suspensa entre o palco e o
público).
MULHER (na janela) – Tem uma vaca torta comendo capim.
PADRE – A vaca é um animal tão natural.
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PRESO - Bobagem, vaca que se preza vai pro brejo.
MULHER – Ela foi mas voltou.
PADRE – Porque ela faria isso?
GENERAL – A vaca gosta de ir. Ela come a grama, capim, tudo são cenas comuns.
PRESO – Eu vou ver o ovo morrer?
GENERAL – Sim.
PRESO – Não.
PADRE– Diz um velho provérbio galês, se a vaca não corre, o ovo não morre.
MULHER – A vaca pisou sobre alguma coisa branca.
GENERAL – Deve ser o diretor, ele saiu há pouco de guarda-pó branco para tirar leite
da vaca.
MULHER – O diretor está com os braços abertos. O leite também é branco. O leite está
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no chão junto com o diretor, só que ele se esparramou e o leite não. Ela está parada,
olhando para cima.
PADRE – Quem?
MULHER – A vaca.
GENERAL – Não faça suspense, o diretor morreu?
MULHER – Eu acho que sim. Se não estiver morto, está fazendo alguma coisa muito
estranha que não saberia explicar.
PADRE – Que situação estranha. Como posso lamentar a morte do diretor se não sei
se ele morreu?
MULHER – Na dúvida, lamente assim mesmo. Lamentar é sempre elegante.
PADRE – Você tem razão, mocinha. (Ele lamenta) Tão jovem e sabedor das coisas do
mundo. Estou emocionado e muito, muito triste. Ele era como uma filho mais novo para
mim.
GENERAL – Pensando bem, era como meu irmão. Soa tão sutil. Sentiremos falta de
sua música, de seu riso, de suas cores. Perdi meu melhor amigo.
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PADRE – Ele era um bípede enquanto a vaca é um belo quadrúpede. Se ele tivesse
conhecido uma vaca, os dois formariam um belo par. A vaca daria o leite e diretor
beberia o leite, todas as manhãs. Mas uma coisa é certa, todo mundo sentirá a sua
falta.
MULHER – Ele terá seu lugar seguro na história do teatro, para sempre. (Hino da
Alemanha)
GENERAL (radiante) – Hoje foi um dia extraordinário.
MULHER (cortejando o general) – Quem tem bom gosto para cenas merece um
mecenas. Que bom um mecenas por perto. É chique, reconfortante, delicado. A vida
fica mais volátil.
PRESO – Hoje é abril. Wilson e Tânia estão fazendo o tradicional jantar de Natal para
os amigos.
GENERAL – Wilson foi o maior produtor de discos de jazz. Ele deveria morrer no
sábado da semana passada, mas adiou para quinta-feira , exatamente um dia antes de
Ralph Burns. Isto é coisa de cavalheiro.
PRESO – Sim, é verdade. A Dulce e o Eduardo também comemoram bodas de ouro
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com um jantar em família. (Para o padre) Você nunca gostou de bodas, não é mesmo?
PADRE – Não, nem de bodas, nem de cabras. Eu sempre fui um homem de respeito.
(Para o preso) E você não diz nada?
PRESO – Quando eu sinto frio eu prefiro ir ao cinema. Mas eles nunca me deixam sair.
PADRE – Eu detesto sentir frio. Eu costumo dizer; nunca sinta frio. E quando sentir:
volte, é melhor.
PRESO – Não estava chovendo quando vim. Mas a chuva me acompanhou de longe,
me seguindo. Eu fingi que não estava vendo e vim tranqüilamente, mas a chuva achou
que eu era o suspeito e me seguiu.
MULHER – Você não deveria ignorar a chuva. Isto não são bons modos.
PRESO – Vá ver que a chuva me perseguia porque era algo pessoal comigo. Digo
assim, algo pessoal. A chuva me molha sempre. E justamente eu!
PADRE – O dia lá fora está muito bonito. Deve estar terrivelmente quente.
GENERAL – Sim, está bonito, mas vai chover de novo.
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MULHER – Pois lhe digo, vai chover. A minha hérnia pulsa. As hérnias são como
relógios suíços que fazem tic-tac e pulsam. E a minha hérnia é um despertador.
Quando ela dói, então, é duas vezes um despertador. São sessenta segundos em um
minuto e sessenta minutos em uma hora. São vinte e quatro horas em um dia. E sete
dias numa semana. Trinta dias em um mês e quatro semanas também em um mês.
Doze meses em um ano.
GENERAL – Toda vez que sua hérnia dilata, ela diz algo?
MULHER – Sim a minha hérnia diz quando vai chover porque fica intumescida como um
grande pênis, pronto a explodir. E aí, sim, sei que vem chuva. E você gosta disso,
porque você gosta de chuva. Se sente importante porque ela corre atrás de você.
GENERAL – Digamos, assim. É bom sair na chuva com um guarda-chuva. Parece
distinto, às vezes. Em parte, pode ser elegante. Há algo cinematográfico, como alguém
estivesse nos observando. Filmando. Depois, a gente dá alguns passos para adiante,
recebe os respingos de chuva no rosto, sente-se melhor.
PADRE – Eu concordo. Aí, então, se faz meia volta para casa e se está definitivamente
pronto para tomar um chocolate quente.
GENERAL – É muito reconfortante saber que no fim, o fim sempre justifica os meios.
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MULHER – Claro. E também perceber que mais vale dois pássaros na mão, que um
pássaro voando.
PRESO – Perfeitamente!
PADRE – E é o que eu digo sempre: coisa começada, uma hora acaba.
MULHER – E quando acaba é hora de ir embora.
PADRE – Bem lembrado. Quem vai embora cai fora.
PRESO – Então eu vou embora. (Para o padre) E o senhor, para onde vai?
PADRE – Eu vou para Amsterdã morar com minha irmã.
MULHER – Que elegante!
O padre sai.
GENERAL (tristonho, cantarola) – Y si acaso yo muero en la guerra, y si mi cuerpo en la
sierra va a quedar, ay, Adelita, por Dios te lo ruego, que por mis huesos no vayas a
llorar.
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PRESO (preocupado) – Muito bem, agora que o padre se foi, quem vai dizer amem?
GENERAL – Boa pergunta. Hoje em dia ninguém diz amém.
MULHER – Eu digo amem se tudo terminar bem.
GENERAL – Grande idéia. Apaguem a luz.
PRESO – Fiat lux.
GENERAL – Apaguem a luz.
PRESO – Fiat lux.
GENERAL - Apaguem a luz.
PRESO – Fiat lux.
MULHER – Parem com essa porra!
Todos ficam quietos e imóveis.
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FIM
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