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20#Março#2016#04:30 poemas#filipe leal fotografias#josefina melo Equinócio da Primavera

Equinócio da Primavera

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Page 1: Equinócio da Primavera

20#Março#2016#04:30

poemas#filipe lealfotografias#josefina melo

Equinócio da Primavera

Page 2: Equinócio da Primavera

Alma – A promessa de infinito e de sabedoria

Amor – O apaziguamento do coração

Asas – A perfeição do corpo

Casa – O ponte de partida e de chegada

Desejo – A pulsão lunar incendiando o corpo

Filhos – O renovar da esperança

Horizonte – A certeza de uma viagem por iniciar

Leveza – O peso de um sorriso

Língua – A serpente ardilosa

Mar – O infinito onde o corpo pode mergulhar

Memória – O amnésico alimento da felicidade

Mulher – A insinuação do eterno mistério

Poema – A palavra perfurando o quotidiano

Raízes – A origem ancestral da verticalidade

Ritual – A resistência do corpo ao instinto animal

Rosto – O palco das emoções

Ruinas – A possibilidade da reconstrução

Rumor – O trilho de frescura que incendeia a cal

Sede – A busca das fontes secretas

Silêncio – O lugar onde se escondem as palavras

Sonho – O ato de construir o futuro

poemáriocolecção de palavras preciosas recolhidas no quotidiano

Page 3: Equinócio da Primavera

SEQUÊNCIA#01

dias de outono

Page 4: Equinócio da Primavera

Crio uma mnemónica do desejo, decorando as partes secretas e húmidas do teu corpo,

revivendo os gestos quentes e fermentes com que me desarrumaste os sentidos,

enquanto, dentro das madrugadas, descobríamos rios navegáveis até à fonte.

Sôfregos, bebíamos as águas puras e saciávamos vorazmente todas as sedes.

Fazíamos o amor, com a ancestral sabedoria animal. Era verão e tudo era possível.

Agora, crio um poemário de outono, recolhendo das árvores e dos livros

as últimas folhas onde leio as memórias dos dias em que fomos felizes.

Page 5: Equinócio da Primavera

Há pecados que não se podem cometer. Sei que a sua lenta expiação purifica a alma

mas não revivifica o coração. Consolida-se inexoravelmente uma memória de cinzas,

de ruinas e de imperfeições. Estou só. Nada sobrou para além de mim. O silêncio

tornou-se compacto e as palavras perderam o seu sentido seminal. Nada nasce delas.

No escuro, não ouso sequer respirar. Temo que o latejar do corpo me denuncie

à voracidade dos animais noturnos que me depredam a pureza, a esperança e a coragem.

Reduzo os dias ao essencial: comer, beber, dormir; meditar, sonhar, esperar.

Page 6: Equinócio da Primavera

Nestes dias imensos de outono alimento-me pacientemente de poemas,

de fotos antigas e de cartas de amor. Hiberno no aconchego da memória

de um sol permanente, do riso das crianças e dos momentos infinitos.

Respiro devagar para conter a voz e para sentir o coração ainda entorpecido.

O corpo reduzido a um ponto microscópico é mais fácil de esconder.

Só as sombras e as cicatrizes o denunciam. Estou exausto de mim.

Prevejo que o inverno chegará de forma repentina, irremediável e definitiva.

Page 7: Equinócio da Primavera

Há muito que deixei de visitar os amigos. Não sei o que lhes dizer acerca de mim,

nem que provas palpáveis lhes posso apresentar que demonstrem quem sou.

As suas casas são-me incómodas. Sinto-me imenso, não caibo por entre as paredes.

Não lhes sei explicar onde acabo eu e começa o mar. Digo-lhes os cais e os barcos,

a vontade de navegar, recomendam-me os mapas, as rotas e os destinos.

Não lhes sei explicar onde acabo eu e começa o silêncio. Digo-lhes as palavras e os poemas,

a vontade de revelar, recomendam-me a gramática, a estilística e a ortografia.

Page 8: Equinócio da Primavera

Saio de casa para trespassar o dia com a certeza da noite. Canso metodicamente o corpo

até doer, até não restarem forças para resistir ao sono ou para rememorar os sonhos.

Quando saio de casa a cidade fica maior, as distâncias aumentam incomensuravelmente.

Percorro todas as ruas sem definir previamente os caminhos que trilho, sem cobiçar o horizonte,

sem parar para chegar, sem entrar nas casas. Sem olhar os rostos, procuro-te

sabendo-te impossível de encontrar, na cidade os teus passos não deixam vestígios.

São tantos os lugares onde te imagino que não sei por onde começar. Parto.

Page 9: Equinócio da Primavera

SEQUÊNCIA#02

história de mágoas

Page 10: Equinócio da Primavera

Vai ficando de nós uma breve história de mágoas. Tudo se resume à memória

dos pequenos momentos de imperfeição, lastro que nos impede de voar,

de sermos animais guiados pela sede. Sussurramos segredos intransmissíveis pelo ar.

Oiço-te pronunciar uma palavra que evoca o fim de todas as coisas. Há palavras

que parasitam a alma, nos roubam a coragem e a vontade. O esquecimento é uma morte

lenta e doce; adormecemos dentro do outro. Talvez nem reparemos nas pequenas flores

que foram esvoaçando do nosso corpo enquanto chorávamos sem motivo aparente.

Vai ficando de ti uma breve história de mágoas. Inalo o cheiro doce da memória,

que me entorpece os sentidos. Odor de rosas. Sopro vegetal abrindo caminhos

por entre as pedras, procurando entre as casas e as pessoas que partem.

A imensidão da cidade depende da agudeza dos olhos. Mapa de lugares,

desertos e abismos, em que tudo ganha uma espessura translúcida,

como se fosse possível saber de cor as fontes ou pronunciar o nome de todas as ruas.

A alma de todas as coisas com que te exorcizo, com que te evoco para trazer de volta.

Vai ficando de mim uma breve história de mágoas. Retrato a preto e branco que acentua

as sombras da alma. Roupa envelhecida e molhada. Tenho que perder o hábito

de pôr à prova a minha coragem, de me lançar ao mar e esperar que um barco passe.

Saber a geometria exata de todos os caminhos possíveis entre duas casas,

quando o calor nos dilacera e analisa o corpo armazenando-o em frágeis e

pequenos frasquinhos de essências. Os passos rápidos mas inseguros com que corro

atrás de mim, deixando um trilho fresco de verdura acabada de semear.

Page 11: Equinócio da Primavera

SEQUÊNCIA#03

sedimentação da morte

Page 12: Equinócio da Primavera

Marcas-me para a morte urgindo-me com a frescura segregada pelas rosas.

Page 13: Equinócio da Primavera

Marcas-me para a morte urgindo-me com a frescura segregada pelas rosas.

Penetras a minha mente com um dedo ardente e perfeito. Devoras o meu corpo

como uma oferenda à devastação das feridas vagarosas. Surpreendes-me

na impossibilidade de converter os signos da terra e do céu em palavras e

esperas que perca a capacidade de me suspender por sobre os abismos.

Procuras o silêncio derradeiro, aquele que me separa de todas as coisas.

Sempre soube o silêncio com uma irremediável sedimentação da morte.

Page 14: Equinócio da Primavera

Sempre soube o silêncio com uma irremediável sedimentação da morte.

Page 15: Equinócio da Primavera

O que germina na sombra tem mais sede. E o seu coração pulsa num rumor selvagem

adivinhando os lugares secretos onde a lua oculta as minhas sombras. Nem os pássaros

pressentem a sofreguidão com que a luz perpendicular me devora as asas.

O veneno amnésico que se liberta das rosas destruídas pelos meus passos,

quando o ar sustenta um olhar mais demorado que encontra desprevenidos

os meus pensamentos mais secretos e serenos. É perigoso ser feliz. Tudo em nós

se torna mais frágil, mais dócil e mais transparente; desperta a ferocidade dos bichos.

Page 16: Equinócio da Primavera

Não explico porque me guiam os ritmos lunares e o oculto rumor do sangue.

Mas, enquanto dormia, feridas vagarosas sorveram a frescura da minha boca,

impossibilitando a nomeação das coisas do mundo. Talvez, talvez o espanto

me tenha desalinhado os pensamentos mais secretos ou a ignorância não seja

suficiente para dar leveza ao coração. Não explico porque me foi marcado o corpo

com carreiros de cinza e os olhos cobertos de sal. Mas, enquanto sonhava,

o ar tornou-se mais compacto, impossibilitando a natural propagação da luz.

Não explico o súbito amadurecimento dos frutos ou a cegueira dos pássaros.

Mas, enquanto despertava, cicatrizes vivas inscreveram o destino na minha mão,

impossibilitando a concretização dos gestos do amor. Talvez, talvez seja possível

reduzir os cinco sentidos a um discernimento oculto ou a loucura seja a ciência

de um fluir muito mais profundo. Não explico porque me lancei para o abismo

com a certeza de não conseguir sobreviver. Mas, enquanto mergulhava,

o corpo tornou-se mais leve, impossibilitando a feroz penetração da dor.

Page 17: Equinócio da Primavera
Page 18: Equinócio da Primavera

Não explico porque me guiam os ritmos lunares e o oculto rumor do sangue.

Mas, enquanto dormia, feridas vagarosas sorveram a frescura da minha boca,

impossibilitando a nomeação das coisas do mundo. Talvez, talvez o espanto

me tenha desalinhado os pensamentos mais secretos ou a ignorância não seja

suficiente para dar leveza ao coração. Não explico porque me foi marcado o corpo

com carreiros de cinza e os olhos cobertos de sal. Mas, enquanto sonhava,

o ar tornou-se mais compacto, impossibilitando a natural propagação da luz.

Não explico o súbito amadurecimento dos frutos ou a cegueira dos pássaros.

Mas, enquanto despertava, cicatrizes vivas inscreveram o destino na minha mão,

impossibilitando a concretização dos gestos do amor. Talvez, talvez seja possível

reduzir os cinco sentidos a um discernimento oculto ou a loucura seja a ciência

de um fluir muito mais profundo. Não explico porque me lancei para o abismo

com a certeza de não conseguir sobreviver. Mas, enquanto mergulhava,

o corpo tornou-se mais leve, impossibilitando a feroz penetração da dor.

Page 19: Equinócio da Primavera

Pudesses mesmo assim saber o lugar e o momento e encontraria talvez um refúgio,

entrepondo a voz entre corpo e a alma, invocando um a um todos os rituais

de iniciação da sensibilidade para a dor. As florestas que os teus gestos contêm

e a luminosidade do verbo que conjugas quando abandonas o teu corpo aos bichos,

esses cruéis portadores de beijos impios e profundos. Talvez prefiras fecundar a terra

com o teu sangue a deixar que alguém te descubra enquanto dormes,

enquanto alinhavas na carne e na pedra a tua breve memória epigráfica.

Page 20: Equinócio da Primavera

Ficaste sem coração, a dor era maior do que a esperança. A tua mente era uma sombra

brilhando no escuro, absorvendo desesperadamente a luz . Sabias que não se escolhem

os caminhos nas encruzilhadas, mas não encontraste o rumo para os teus passos. O opróbrio

rasgou o teu útero e devastou o mundo, o silêncio devorou as palavras. As más notícias

chegam sempre de madrugada, como se precisássemos da claridade para ver a morte.

Nenhum ritual nos prepara para o descarnar da alma e para a corrupção do corpo.

Vivemos todos entre o céu e o inferno, no purgatório da consciência e da memória.

Page 21: Equinócio da Primavera

SEQUÊNCIA#04

leveza dos pássaros

Page 22: Equinócio da Primavera

O sol de inverno é mais lento e breve, torna os contornos do rosto mais suaves,

os sorrisos mais luminosos e as juras de amor mais sábias. Ícaro aguarda pacientemente

que as suas asas se consolidem enquanto suspende o corpo por sobre os labirintos

da cidade. Resiste à tentação do voo vertical. Recorda os dias em que os anjos ainda habitavam

os telhados das igrejas e metiam conversa com as moças que passavam. Recorda os dias

em que os anjos foram renegados por resistirem à voracidade da luz, à fragilidade das asas

e à tentação dos odores do incenso e da flor de laranjeira. Ícaro prefere o mel à cera.

Page 23: Equinócio da Primavera

Espero pacientemente que me cresçam as asas e me seja concedida a leveza dos pássaros.

Não me conformo com a aritmética das horas, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos.

É impossível fazer luto dos vivos. E eu sinto-te viva, completa e intensa dentro de mim.

Espero o súbito. Algo que me apanhe desprevenido. Uma voz que chame pelo meu nome,

um olhar quente e familiar, um subtil toque no ombro, um entrelaçar de corpos num abraço.

E, por brevíssimos momentos de insensatez, deixo que o desejo me incendei o sexo,

enquanto te imagino completamente nua, enquanto te recordo detalhadamente o corpo.

Page 24: Equinócio da Primavera

SEQUÊNCIA#05

amor de inverno

Page 25: Equinócio da Primavera

Busco refúgio para o meu coração berbere. Talvez um gesto, uma palavra, um oásis.

De ti guardo a memória ancestral do voo dos pássaros em busca do sul. No deserto

todos os caminhos são possíveis, só a sede e as estrelas nos guiam. Minha alma peregrina

busca sua plenitude no horizonte, na caminhada e no reencontro. O mapa da vida

impresso na palma da minha mão. A mnemónica que alimenta quotidianamente

a certeza que trespassa os minutos, os dias, as semanas, os meses, os anos, os séculos.

Em ti sacio a minha sede de água, de luz e de infinito. Em Ti sou mais Eu. Reconheço-te.

Page 26: Equinócio da Primavera

Suspendo o movimento do mundo e recentro meridianamente o meu corpo vegetal.

Mas um fogo ácido corroí-me a garganta, enquanto expando a voz através do ar,

enquanto evoco o teu nome húmido. Tudo em mim pede água, todo o corpo converge

para a boca. Sempre soube a sede como o mistério de encontrar as fontes mais secretas.

Por vezes ocorre-me que pactuas com o mar, resgatando-lhe a memória ou talvez o silêncio.

Nesses momentos, vejo a tua profunda alma azul. Pudesse eu somente ser um pássaro

absurdo com asas vegetais, e respiraria todo o azul do mundo, demoradamente.

Page 27: Equinócio da Primavera

A escuridão densifica a luz. E tu chegaste na mais escura das noites. Mulher de fogo

incendiando o meu mundo. Pitonisa grega revelando o meu destino. Felino voraz

devorando o meu corpo. Por esses dias eu procurava pacientemente entre as ruínas

e os silêncios a matéria poética. O meu mundo era tão frágil que só as palavras o sustentavam.

E eu lapidava as palavras como se fossem diamantes duros e brilhantes, preciosos e perfeitos.

Corpo. Alma. Coração. Memória. Sangue. Desejo. Cidade. Pecado. Floresta. Amor. Redenção.

Hoje sei que contigo a poesia vai para além das palavras e essa certeza ilumina os meus dias.

Page 28: Equinócio da Primavera

O amor de inverno tem raízes profundas, anuncia as florestas virgens por desbravar,

os pomares fecundos por devorar e os campos de flores por eclodir. Esta é a forma perfeita

do corpo: o ressurgir das cinzas, o húmus fértil. Renasço em ti. Sinto irromper a força no peito,

nos braços, nas mãos, nos dedos. A impaciência dos dias formigando nos meus gestos,

a vontade indómita de te agarrar por dentro, a curiosidade de saber por que sorris tão lentamente.

Hoje sei que o teu amor me protege e nutre contra os rigores do inverno. Hoje sei que consigo

escrever de coração leve e feliz. Hoje sei que a poesia é a forma perfeita da alma e do coração.

Page 29: Equinócio da Primavera

Com a delicadeza do teu tango entorpeces-me os cinco sentidos. O meu coração pulsa

ao teu ritmo, sigo intuitivamente o teu movimento, já nada em mim me pertence,

abandono-me a ti. Felina revelas-me as artes secretas do amor, os mistérios

do eterno feminino. Emerge em mim a pulsão masculina, a coregrafia tosca dos gestos,

o jogo condescendido do domínio. Sorris pois sabes que a lua prevalece sobre o sol

na gestação dos instintos e das pulsões. Inebrias-me com o odor de rosas incandescentes

ardendo por sob o teu ventre, possuis-me deixando-me penetrar horizontalmente o teu corpo.

Page 30: Equinócio da Primavera

Libertas os sentidos ocultos do corpo, segregas os odores lunares, embriagas-me.

Deixas que a noite me revele a razão verdadeira de seres eternamente mulher.

Oiço o chamamento sussurrado pela tua voz. Perco-me em ti. Busco instintivamente

na árvore da sabedoria, a mnemónica ancestral dos rituais que te incendeiem o desejo.

Percorro lentamente o teu corpo – a boca os lábios o pescoço os seios o ventre as coxas

o sexo –. Perco-me em ti. Os nossos dois corpos entrelaçam-se, fundem-se, completam-se.

Secreto e puro, surge o amor, incorruptível pelas palavras sibilinas que anunciam o pecado.

Page 31: Equinócio da Primavera

Secreto e puro, surge o amor, incorruptível pelas palavras sibilinas que anunciam o pecado.

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poemas#filipe lealfotografias#josefina melo

Equinócio da Primavera