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Trecho A Terra Inteira e O Céu Infinito

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Confira o trecho do livro A Terra Inteira e O Céu Infinito, lançamento de abril pelo selo Leytoras

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Parte I

Uma vez, um velho Buda falou:

Para o ser-tempo, parado no cume da montanha mais alta,Para o ser-tempo, nadando no leito mais fundo do mar,Para o ser-tempo, um demônio com três cabeças e oito braços,Para o ser-tempo, os cinco metros de ouro do corpo de um Buda,Para o ser-tempo, o bastão de um monge ou o espanta-moscas1 de um mestre,Para o ser-tempo, um pilar ou um farol,Para o ser-tempo, qualquer José ou Maria,2

Para o ser-tempo, a terra inteira e o céu infinito.

– Dōgen Zenji, “Para o ser-tempo”3

1 Japonês hossu – um espanta-moscas feito de rabo de cavalo que o monge zen-budista car-rega consigo.

2 Japonês chōsan rishi – literalmente, o terceiro filho de Zhang e quarto filho de Li; uma expressão idiomática que significa “qualquer pessoa comum”. Traduzi como “qualquer José ou Maria”, mas poderia muito bem ter traduzido como “qualquer João, Manuel ou Jorge”.

3 Eihei Dōgen Zenji (1200-1253) – mestre zen japonês e autor de Shōbōgenzō (O tesouro do verdadeiro olho do dharma). “Para o ser-tempo” (Uji) é o décimo primeiro capítulo.

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Nao

1.

Oi!Meu nome é Nao e eu sou um ser-tempo. Você sabe o que é um ser-tempo?

Bem, se você me der um minutinho, eu explico.Um ser-tempo é alguém que existe no tempo, e isso quer dizer você, e eu, e to-

dos nós que estamos aqui, ou já estivemos, ou que um dia estarão. Quanto a mim, estou neste exato instante sentada em um café onde as garçonetes usam uniformes de empregada doméstica, em Akiba, a Cidade Elétrica, escutando uma canção melancólica que toca em algum ponto do seu passado, que também é o meu pre-sente, escrevendo isto e me perguntando sobre você, em algum momento do meu futuro. E se você está lendo isto, talvez também esteja se perguntando sobre mim.

Você se pergunta sobre mim.Eu me pergunto sobre você.Quem é você e o que está fazendo?Você está em um vagão do metrô de Nova York, se segurando numa correia,

ou está de molho na sua banheira de hidromassagem em Sunnyvale?Está se bronzeando em uma praia arenosa em Phuket ou está fazendo as

unhas dos pés em Abu Dhabi?Você é homem ou mulher ou está no meio-termo?Sua namorada está preparando um jantar gostoso para você ou você vai

comer macarrão chinês direto da caixa?Você está encolhido, de costas viradas para a sua esposa roncadora, ou es-

pera com ansiedade que seu lindo amante termine o banho para fazer amor apaixonado com ele?

Você tem um gato e ele está sentado no seu colo? A cabeça dele cheira a cedro e ar doce e fresco?

Na verdade, não tem muita importância porque, quando você ler isto, tudo estará diferente, e você não estará em nenhum lugar específico, folheando à toa as páginas deste livro, que por acaso é o diário dos meus últimos dias na Terra, se perguntando se você deve continuar a leitura.

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E se você resolver não ler mais, ei, problema nenhum, porque não era você que eu esperava, de qualquer forma. Mas se decidir levar a leitura adiante, então imagina só? Você é meu tipo de ser-tempo e juntos vamos criar mágica!

2.

Ui. Que idiotice. Preciso me sair melhor. Aposto que você está se perguntando que menina imbecil seria capaz de escrever palavras como essas.

Bom, eu seria.Nao seria.Nao sou eu, Naoko Yasutani, que é o meu nome completo, mas você pode

me chamar de Nao, já que é assim que todo mundo me chama. E é melhor eu contar um pouco mais de mim se a gente vai continuar se encontrando desse jeito…! ☺

Na verdade, pouca coisa mudou. Continuo sentada no café da Cidade Elé-trica Akiba, e Edith Pilaf entoa outra canção melancólica, e Babette acabou de me servir um café e tomei um golinho. Babette é minha garçonete e também uma amiga nova, e meu café é Blue Mountain e o bebo puro, o que é incomum para uma adolescente, mas, sem dúvida, é como um café de qualidade deve ser tomado caso você tenha algum respeito pelo grão amargo.

Puxei a meia para cima e cocei a parte de trás do joelho.Alisei as pregas da saia para que ficassem bem arrumadas sobre as minhas

coxas.Coloquei meu cabelo, que bate no ombro, atrás da orelha direita, que tem

cinco furos, mas agora deixo que ele caia no meu rosto de novo porque o otaku4 de colarinho branco sentado na mesa ao lado está me encarando, e isso me causa arrepios embora eu também ache divertido. Estou usando meu uniforme de aluna do ginásio e dá para ver pelo jeito como olha para o meu corpo que ele tem um enorme fetiche por colegiais e, se este é o caso, então o que é que ele está fazendo em um café com garçonetes vestidas de empregadas? Quer dizer, que burro!

4 otaku ( ) – fã ou fanático obsessivo, pessoa viciada em computadores, nerd.

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Mas nunca se sabe. Tudo muda, e tudo é possível, então talvez eu mude de ideia em relação a ele também. Talvez nos próximos minutos ele se incline de um jeito desastrado na minha direção e me diga algo surpreendentemente belo, e eu seja tomada de carinho por ele apesar do cabelo oleoso e da pele ruim, e eu acabe concordando em conversar um pouquinho com ele, e uma hora ele me convide para fazer compras, e, se me convencer de que está loucamente apaixonado por mim, eu vá a uma loja de departamento com ele e deixe que ele me compre um cardigã fofinho, um keitai5 ou uma bolsinha, embora seja óbvio que ele não tem muito dinheiro. Depois, talvez a gente vá a uma boate e beba uns coquetéis, e corra para um motel com banheira de hidromassagem grande e, depois de tomar-mos banho, assim que eu começar a me sentir à vontade com ele, sua verdadeira natureza surja de repente, e ele me amarre e enfie o saco plástico do meu cardigã novo na minha cabeça e me estupre, e horas depois a polícia encontre o meu corpo nu inanimado curvado num ângulo estranho no chão, ao lado da enorme cama redonda coberta de pele de zebra.

Ou talvez ele só me peça para estrangulá-lo de leve com a minha calcinha enquanto se excita com o belo aroma.

Ou talvez nenhuma dessas coisas aconteça fora da minha mente e da sua, porque, como eu já disse, juntos estamos criando mágica, pelo menos por enquanto.

3.

Você ainda está aí? Acabei de reler o que escrevi sobre o otaku de colarinho branco e quero me desculpar. Foi obsceno. Não foi um bom começo.

Não quero te causar a impressão errada. Não sou uma imbecil. Sei que o nome da Edith Pilaf não é Pilaf. E não sou uma garota obscena nem uma hentai.6 Na verdade, não sou uma grande fã de hentai, então, se esse for o seu caso, faça o favor de largar este livro agora mesmo e não ler mais, ok? Você só vai se decepcionar e perder tempo, porque este livro não vai ser o diário secreto

5 keitai ( ) – telefone celular.6 hentai ( ) – pervertido, depravado sexual.

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de uma garota devassa, repleta de fantasias cor-de-rosa e fetiches obscenos. Não é o que você está pensando, já que o objetivo que tenho para escrevê-lo antes de morrer é contar a história de vida fascinante da minha bisavó de 104 anos, uma monja zen-budista.

É provável que você não ache monjas muito fascinantes, mas a minha bi-savó é, e de modo algum no sentido devasso. Tenho certeza de que existem montes de monjas devassas por aí… bom, talvez nem tantas monjas devassas assim, mas monges devassos, sem dúvida, há monges pervertidos espalhados por tudo quanto é canto… mas meu diário não vai falar sobre eles ou o com-portamento bizarro deles.

Este diário vai contar a história de vida real da minha bisavó Yasutani Jiko. Ela foi monja e romancista e Nova Mulher7 da era Taishō.8 Também foi uma anarquista e feminista que teve inúmeros amantes, tanto homens como mulhe-res, mas nunca foi devassa ou obscena. E, por mais que talvez eu acabe mencio-nando alguns de seus casos amorosos, tudo o que escrever será historicamente verdadeiro e fortalecedor para as mulheres, e não um bando de bobagens rela-tivas a gueixas. Portanto, se devassidões obscenas são sua fonte de prazer, faça o favor de fechar este livro e entregá-lo à sua esposa ou amigo e assim poupar bastante tempo e trabalho.

4.

Acho que é importante ter objetivos claros na vida, não acha? Principalmente se não te resta muita coisa. Porque, se você não tiver objetivos claros, o seu tempo pode se esgotar e, quando o dia chegar, você vai se pegar de pé no para-peito de um prédio alto, ou sentada na cama com um frasco de comprimidos na mão, pensando, Merda! Dei mole. Se ao menos tivesse estabelecido objetivos claros para mim!

7 Termo usado no Japão no início dos anos 1900 para descrever mulheres progressistas e instruídas que rejeitavam os limites impostos pelos papéis de gênero tradicionais.

8 Era Taishō, 1912-1926, assim designada em homenagem ao imperador Taishō, também chamada de Democracia Taishō: um período curto de liberalização social e política, que termi-nou com a tomada de poder pela direita militar que levou à Segunda Guerra Mundial.

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Estou te dizendo isso porque, na verdade, não vou estar aqui por muito tempo, e é bom que você saiba disso logo para não criar suposições. Suposições são um saco. São que nem expectativas. Suposições e expectativas matam qual-quer relação, então você e eu não vamos entrar nessa, ok?

A verdade é que muito em breve vou me diplomar no tempo, ou talvez seja melhor não dizer que vou me diplomar porque assim fica parecendo que na verdade alcancei meus objetivos e mereço seguir em frente, quando a realidade é que acabei de fazer 16 anos e não realizei absolutamente nada. Zero. Nadica. Pareço patética? Não era a minha intenção. Só quero ser justa. Talvez, em vez de me diplomar, deva dizer que vou me desligar do tempo. Me desligar. Sair do tempo. Abandonar a minha existência. Estou contando os momentos.

Um…Dois…Três…Quatro…Opa, já sei! Vamos contar os momentos juntos!9

9 Para mais considerações a respeito de momentos zen, ver o Apêndice A.

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Ruth

1.

Uma centelha minúscula atraiu o olhar de Ruth, um brilhinho de sol refletido formando um ângulo, escapando por baixo de um gigantesco emaranhado de alga seca, que o mar empurrara para a areia na maré alta. Imaginou que fosse o brilho de uma águas-vivas agonizante e quase pisou em cima. As praias estavam inundadas de água-viva naqueles tempos, do tipo vermelho monstruoso que causava queimaduras e parecia feridas ao longo da costa.

No entanto, algo a levou a parar. Ela se inclinou e cutucou o monte de algas com a ponta do tênis e depois o revirou com um graveto. Desenredando as algas que pareciam chicotes, deslocou o objeto o suficiente para ver que aquilo que cintilava ali embaixo não era uma água-viva agonizante, mas uma coisa de plás-tico, um saco. Não era de surpreender. O oceano estava cheio de plástico. Cavou um pouco mais, até conseguir levantar o saco pela ponta. Era mais pesado do que esperava, um saco plástico danificado, coberto de cracas que se espalhavam pela superfície como borbulhas na pele. Devia estar no mar havia muito tempo, pon-derou. Dentro do saco, viu um indício de algo vermelho, o lixo de alguém, sem dúvida, jogado no mar ou deixado para trás após um piquenique ou uma rave. O mar sempre trazia coisas e as levava de volta: linhas de pesca, boias, latas de cerveja, brinquedos de plástico, tampões, tênis da Nike. Uns anos antes, eram pés arrancados. As pessoas os encontravam por todos os lados na ilha de Vancouver, atirados na areia pelas ondas. Acharam um exatamente naquela praia. Ninguém sabia explicar o que havia acontecido com o resto dos corpos. Ruth não queria pensar no que poderia estar apodrecendo dentro do saco. Atirou-o mais longe. Terminaria a caminhada e o pegaria na volta, levaria para casa e o jogaria fora.

2.

– O que é isto? – perguntou seu marido no vestíbulo.Ruth preparava o jantar, picando cenouras e se concentrando.

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– Isto aqui – repetiu Oliver, já que ela não respondeu.Ela ergueu o olhar. Ele estava na porta da cozinha, balançando o saco plás-

tico grande e danificado com os dedos. Ela o deixara na varanda, com o intuito de jogá-lo no lixo, mas acabara se distraindo.

– Ah, larga isso – disse. – É lixo. Um troço que peguei na praia. Não traz isso para dentro de casa, por favor. – Por que precisava explicar?

– Mas tem alguma coisa aqui dentro – ele declarou. – Você não quer saber o que é?

– Não – ela respondeu. – O jantar está quase pronto.Ele o levou para dentro da casa mesmo assim e o pôs na mesa da cozinha,

espalhando areia. Foi inevitável. Era da sua natureza a necessidade de saber, de desmontar as coisas e às vezes montá-las de novo. O freezer estava cheio de mortalhas plásticas que continham carcaçazinhas de pássaros, musaranhos e outros bichos pequenos que o gato levara para dentro, à espera da dissecação e do empalhamento.

– Não é só um saco – ele informou, abrindo cuidadosamente o fecho do primeiro e pondo-o de lado. – São sacos dentro de sacos.

O gato, atraído pela agitação, pulou na mesa para ajudar. Não tinha permissão para subir na mesa. O gato tinha nome, Schrödinger, mas nunca o usavam. Oliver o chamava de Peste, que vez por outra se transformava em Pesto. Estava sempre fazendo coisas erradas, estripando esquilos no meio da cozinha, deixando órgãos pequeninos e luzidios, rins e intestinos, bem na porta do quarto dos dois, e Ruth pisava neles de pés descalços a caminho do banheiro durante a noite. Formavam uma equipe, Oliver e o gato. Quando Oliver ia ao segundo andar, o gato ia ao se-gundo andar. Quando Oliver descia para comer, o gato descia para comer. Quando Oliver saía para fazer xixi, o gato saía para fazer xixi. Agora Ruth observava os dois examinando o conteúdo dos sacos plásticos. Estremeceu, imaginando o fedor de um piquenique apodrecido, ou algo pior, que fosse arruinar a fragrância da refei-ção. Sopa de lentilha. Tomariam sopa de lentilha e comeriam salada no jantar, e ela havia acabado de pôr alecrim.

– Que tal você dissecar o seu lixo na varanda?– Foi você que pegou – ele disse. – E, de qualquer forma, acho que não é

lixo. Foi muito bem embalado. – Ele continuou o descasque forense.Ruth fungou, mas só sentia o cheiro de areia, sal e mar.

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De repente, ele caiu na gargalhada. – Olha, Pesto! – ele disse. – É para você! Uma lancheira da Hello Kitty!– Por favor! – pediu Ruth, sentindo desespero.– E tem alguma coisa dentro…– Estou falando sério! Não quero que você abra isso aqui. Leva lá para

fora…Mas já era tarde demais.

3.

Ele havia esticado os sacos, deixando um em cima do outro em ordem de-crescente de tamanho e depois arrumando o conteúdo em três pilhas or-ganizadas: um montinho de cartas escritas à mão; um livro grosso de capa vermelha desbotada; um relógio de pulso antigo e resistente com fundo preto opaco e mostrador luminoso. Ao lado ficou a lancheira da Hello Kitty, que protegera os artigos dos efeitos corrosivos do mar. O gato farejava a lan-cheira. Ruth o pegou e o largou no chão. Depois voltou sua atenção para os objetos sobre a mesa.

As cartas pareciam ter sido escritas em japonês. A capa do livro fora impres-sa em francês. O relógio ostentava marcas gravadas no verso que eram difíceis de decifrar, portanto Oliver pegou o iPhone e usou o aplicativo de microscópio para examinar o entalhe.

– Acho que também é japonês – disse.Ruth folheou as cartas, tentando distinguir os caracteres escritos em tinta

azul desbotada. – A letra é antiga e cursiva. Linda, mas não entendo uma palavra. – Pôs

as cartas em cima da mesa e pegou o relógio da mão dele. – É. São números japoneses. Mas não é uma data. Yon, nana, san, hachi, nana. Quatro, sete, três, oito, sete. Será que não é o número de série?

Aproximou o relógio do ouvido e tentou escutar o tique-taque, mas estava quebrado. Deixou-o na mesa e pegou a lancheira vermelha. O tom vermelho que se insinuava através do plástico danificado era o que a levara a confundir o saco com uma água-viva. Quanto tempo passara boiando no oceano antes de

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ser jogada na areia? A borda da tampa da lancheira era vedada por um elástico. Apanhou o livro, surpreendentemente seco; a capa de tecido era macia e puída, as pontas arredondadas pelo manuseio descuidado. Ela levou a borda até o na-riz e inalou o aroma bolorento das folhas mofadas e da poeira. Olhou o título.

– À la recherche du temps perdu – leu em voz alta. – Par Marcel Proust.

4.

Gostavam de livros, todos os livros, mas em especial dos antigos, e eles trans-bordavam pela casa. Havia livros por todos os lados, empilhados em estantes e amontoados no chão, nas cadeiras, nos degraus da escada, mas nem Ruth nem Oliver ligavam. Ruth era romancista, e romancistas, Oliver afirmava, tinham que ter gatos e livros. E, realmente, comprar livros era o consolo que ela encon-trava por ter se mudado para uma ilha remota no meio de Desolation Sound, onde a biblioteca pública era uma salinha úmida em cima de um centro comu-nitário infestado de crianças. Além da seção vasta e cheia de dobras de litera-tura juvenil e alguns títulos adultos populares, a coleção da biblioteca parecia consistir primordialmente de livros sobre jardinagem, enlatamento, seguran-ça alimentícia, energia alternativa, cura alternativa e escolarização alternativa. Ruth sentia falta da abundância e diversidade das bibliotecas urbanas, de suas amplidões silenciosas, e quando ela e Oliver se mudaram para a ilhota concor-daram que ela poderia encomendar qualquer livro que quisesse, e Ruth o fazia. Pesquisa era o nome que ela dava a isso, embora no final das contas ele lesse a maioria e ela lesse uns poucos. Ruth simplesmente gostava de tê-los por perto. Havia pouco tempo, no entanto, começara a reparar que a umidade da maresia dilatava as folhas e que as traças tinham se alojado nas lombadas. Quando abria as capas, sentia o cheiro de mofo. Isso a entristecia.

– Em busca do tempo perdido – disse, traduzindo o título em dourado desgastado, estampado na lombada de tecido vermelho. – Nunca li.

– Eu também não – declarou Oliver. – Mas acho que não vou tentar ler em francês.

– Mm – ela murmurou, concordando, mas abriu o livro mesmo assim, curiosa para ver se conseguia entender as primeiras linhas. Esperava um fólio

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marcado pelo tempo, impresso numa fonte antiga, portanto estava totalmente despreparada para a letra roxa de adolescente que se esparramava pela folha. Parecia um sacrilégio, e ficou tão chocada que quase deixou o livro cair das mãos.

5.

Letras impressas são previsíveis e impessoais, transmitindo informações numa transação maquinal com os olhos do leitor.

Letras de mão, em contrapartida, resistem aos olhos, revelam seus significa-dos aos poucos e são pessoais como a pele.

Ruth fitou a página. As palavras roxas estavam, em sua grande maioria, em inglês, com alguns caracteres japoneses aqui e ali, mas seus olhos não estavam exatamente absorvendo o significado deles, mas uma sensação percebida, som-bria e sentimental, da presença da autora. Os dedos que seguraram a caneta de tinta roxa devem ter sido de uma menina, uma adolescente. A letra, aquelas marcas roxas cheias de volteios gravadas na folha, preservava seus estados de espírito e angústias, e no instante em que Ruth pôs os olhos na folha, não teve dúvida de que as pontas dos dedos da menina eram rosadas e úmidas e de que roía as unhas até o sabugo.

Ruth examinou as letras mais de perto. Eram arredondadas e um pouco des-leixadas (como imaginava que a menina também fosse), mas estavam mais ou menos de pé e marchavam com coragem pela folha num ritmo bom, não às pressas, mas tampouco fazendo hora. Às vezes, no fim da linha, se amontoavam um pouco, como pessoas se acotovelando para entrar no elevador ou no vagão do metrô quando as portas estão se fechando. A curiosidade de Ruth foi estimu-lada. Estava claro que se tratava de uma espécie de diário. Tornou a inspecionar a capa. Será que devia lê-lo? Agora de propósito, abriu na primeira página, com uma vaga sensação de malícia, como uma bisbilhoteira ou alguém que olha pelo buraco da fechadura. Romancistas gastam boa parte do tempo metendo o nariz na vida dos outros. Não era uma sensação desconhecida para Ruth.

Oi!, ela leu. Meu nome é Nao e eu sou um ser-tempo. Você sabe o que é um ser-tempo?…

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