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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras [...] e o NEGRO : um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro Helena Maria Gramiscelli Magalhães Belo Horizonte 2008

[] e o NEGRO : um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro · discursos, percebo a hegemonia do humor normal sobre o humor negro. No Brasil, reiterando o prestígio desse humor

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

[...] e o NEGRO :

um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro

Helena Maria Gramiscelli Magalhães

Belo Horizonte 2008

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Helena Maria Gramiscelli Magalhães

[...] e o NEGRO AMARELOU: um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa. Orientador: Hugo Mari

Belo Horizonte 2008

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Magalhães, Helena Maria Gramiscelli M188 [...] e o negro amarelou: um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro.

Belo Horizonte, 2007.

263f. Orientador: Hugo Mari

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras.

Bibliografia.

1. Humor. 2. Humor negro brasileiro 3. Análise do discurso I. Mari, Hugo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. III. Título.

CDU: 869.0(81)

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Helena Maria Gramiscelli Magalhães [...] e o Negro Amarelou: um estudo sobre o humor negro verbal brasileiro Tese apresentada à banca examinadora para a defesa pública no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC MINAS.

________________________________________________________ Hugo Mari - Orientador

(PUC-MINAS)

________________________________________________________

Ângela Tonelli Vaz Leão (PUC-MINAS)

________________________________________________________ Magda Veloso Fernandes de Tolentino

(FUNREI)

________________________________________________________ Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva

(UFMG)

________________________________________________________ Paulo Henrique Aguiar Mendes

(PUC - MINAS)

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DEDICATÓRIA

Aos amores de minha vida, ausentes e presentes, sem os quais nada seria viável.

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AGRADECIMENTOS

Várias pessoas estiveram comigo ao longo desta caminhada e me facilitaram chegar até aqui. Não importa o modo como o fizeram: material, intelectual, emocional ou espiritual e nem importam os nomes, mas sua disponibilidade e seu desprendimento. Por isso, sou-lhes eternamente grata.

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Tempo que foge: Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados, que não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio. Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de "confrontação", onde "tiramos fatos a limpo". Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral. Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: "As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos". Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos. Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a "última hora"; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com seus verdadeiros amigos. Caminhar perto deles nunca será perda de tempo. (Autor desconhecido)

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RESUMO

Diferentemente do gênero humor e do riso, o subgênero humor negro não tem desfrutado do privilégio de, desde a Antigüidade, ser contemplado com muitos estudos ou teorias. No Brasil, por exemplo, ele sequer constitui alvo da atenção de sociólogos, filósofos, psicólogos ou lingüistas. Na literatura estrangeira ocidental, se em algum momento os autores se interessaram por esse subgênero do humor, analisaram-no, geralmente, sob os aspectos históricos e psicológicos. Por essas razões, o objetivo deste trabalho é a descrição do humor negro do Brasil. Para empreender essa tarefa, são utilizados os trabalhos de Verena Alberti, George Minois, Thomas Veatch, Victor Raskin, Salvatore Attardo e Sírio Possenti por narrarem a história do riso e por delinearem as condições de construção do texto de humor, o trabalho de André Breton por discorrer a filosofia do subgênero humor negro e, principalmente, o do historiador Elias Thomé Saliba, por descrever a representação humorística na história brasileira e por apontar o momento do surgimento do humor negro do Brasil. Levando-se em conta que tanto a linguagem quanto os sujeitos envolvidos se instituem e se definem na interação e que dela sentidos múltiplos emergem, analisam-se a relação entre língua, interlocutores e (inter) discursos e os mecanismos lingüístico-discursivo-pragmáticos da construção de textos de humor negro brasileiro. Esses procedimentos, que acabam por revelar as visões que a rede social brasileira tem sobre ética, moral e verdade, são valiosos para se esclarecer a questão do efeito perlocucional-riso dos brasileiros, diante dos textos de humor negro. Este trabalho visa, em síntese, a descrever o humor negro brasileiro, classificar seus textos e, em última e sintética instância, apresentar uma proposta de utilização de textos de humor como material didático valioso para o ensino da língua portuguesa do Brasil. Palavras-chave: Humor; Humor negro brasileiro; Análise do discurso; Ensino.

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ABSTRACT

Unlike laughter and humor, black humor, as a sub-genre of humor, has not been privileged with theories and studies that, since ancient times, have been aimed at investigating and describing humor as a genre. In Brazil, for example, black humor has not been the focus of sociological, philosophical, psychological or linguistic studies. As to foreign literature the focus of the few researchers who had shown some interest in discussing the subject was merely historical or psychological. This is the reason why this work investigates and describes Brazilian verbal black humor. To accomplish this task the author has the support not only of Verena Alberti, George Minois, Thomas Veatch, Victor Raskin, Salvatore Attardo and Sírio Possenti, whose works supply the history and the conditions necessary for the construction of humor as a genre, but also of Elias Thomé Saliba and Andre Breton, the former because his work points at the foundations of black humor in Brazil and the latter for his work provides the investigation with the bases of black humor. Considering that both the language and the subjects involved are established and defined during interaction, and that it is interaction that yields the multiple senses of the text, the author investigates the relation between language, interlocutors and (inter)discourses, as well as the various linguistic-pragmatic mechanisms used in the construction of Brazilian black humor. These strategies, which end up by unveiling the views of the Brazilian social network about ethics and morality, are crucial to explain the perlocucional effects of black humor among Brazilians. Therefore, this work aims at describing Brazilian black humor, classifying its texts and, additionally, at presenting a proposal for the use of those texts as valuable teaching material for the teaching of Portuguese in the country. Key words: Humor; Brazilian black humor; Discourse analysis; Teaching

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: Ilustração das relações temperamentos e elementos da natureza .........................24 FIGURA 2: Ilustração dos elementos da natureza e de quatro características........................24 FIGURA 3: Charge ilustração de humor vermelho do Brasil. .................................................54 FIGURA 4: Charge...................................................................................................................64 FIGURA 5: Três condições da construção do texto de humor.................................................98 FIGURA 6: Pintura surrealista de Dali ..................................................................................108 FIGURA 7: Ilustração do HNb antropofágico .......................................................................140 FIGURA 8: Tiras como ilustração de: negro é humor negro? ...............................................151 FIGURA 9: Ilustração de situação complexa da vida insolúvel para muitos. ........................237

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Quatro humores e suas diversas associações com o mundo...............................26 QUADRO 2: Ilustração da configuração da construção do humor ..........................................69 QUADRO 3: Ilustração das condições para se construir o texto de humor. ............................97 QUADRO 4: Princípios de HNb ............................................................................................161 QUADRO 5: Iustração síntese da comparação entre o HN e o HNb.....................................170 QUADRO 6: Tipologia do HNb.............................................................................................170 QUADRO 7: Ilustração da relação entre fatores pragmáticos e respectivos efeitos perlocucionais.........................................................................................................................186 QUADRO 8: Quadro ilustração dos Princípios de HNb ........................................................206 QUADRO 9: Ilustração de temas, tipologia do HNb e seus efeitos.......................................206 QUADRO 10: Ilustração dos tipos e temas do HNb..............................................................213 QUADRO 11: Ilustração da representação da escala de níveis no HNb................................213 QUADRO 12: Ilustração dos princípios de construção do HNb............................................214 QUADRO14: Ilustração da construção do HNb risível .........................................................214

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LISTA DE SIGLAS

ACD - Análise Crítica do Discurso

AD - Análise do discurso

ADOT - Análise do discurso orientada para o texto

AIs - Aleivosias Infantis

FD - Formação discursiva

FDs – Formações discursivas

HC - Heterogeneidade constitutiva

HM - Heterogeneidade Mostrada

HN - Humor Negro

HNb - Humor Negro brasileiro

HV - Humor Vermelho

N - Normalidade

S - Simultaneidade

V - Violação

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................................ 13 2 ADJUNTO CIRCUNSTANCIAL................................................................................................................... 22 2.1 Você sofre do fígado e não sabe.......................................................................................22 2.2 Sofrendo do fígado a quatro mãos ..................................................................................29 2.3 Sofriam do fígado e sabiam .............................................................................................34 2.4 Sofrendo do fígado e, com certeza, sabendo...................................................................38 2.5 Minois, O Riso e o Escárnio do professor-historiador...................................................44 2.6 Breton, a Luz da Terra do Humor Negro........................................................................51 2.7 As Raízes do Saliba: o Brasil descobre que sofre do fígado..........................................54 2.8 Os Possentis humores do Sírio.........................................................................................60 3 PREDICATIVO DO OBJETO ....................................................................................................................... 64 3.1 O humor, despretensiosamente. ......................................................................................66 3.2 Por uma definição de humor ...........................................................................................74 3.2.1 De comicidade - humoricidade e ironia...........................................................................78 3.2.2 De percepção, emoção, mente, pensamento e língua. .....................................................83 3.2.3 Teorias de humor .............................................................................................................86 3.2.3.1 Teoria semântica do humor verbal...............................................................................86 3.2.3.2 Uma Teoria de Humor..................................................................................................95 3.2.3.3 HV e HN comparativamente.......................................................................................105 4 OBJETO ......................................................................................................................................................... 108 4.1 Resíduos de HN no mundo.............................................................................................109 4.2 Breton e sua “revolta superior da mente”....................................................................113 4.3 O surgimento do humor negro verbal brasileiro (HNb).............................................126 4.3.1 As raízes do humor negro brasileiro nas Raízes do Saliba............................................127 4.3.2 A literatura subsidia o HNb...........................................................................................134 4.3.2.1 Humanitas...................................................................................................................135 4.3.2.2 Antropofagia...............................................................................................................138 4.3.2.3 Pós - Modernismo.......................................................................................................145 4.3.2.3.1 Brasiliana................................................................................................................148 4.3.2.3.2 Festival de Besteira - FEBEAPÁ...........................................................................149 4.4 Por uma Descrição do HNb ...........................................................................................152 4.4.1 Questões ........................................................................................................................153 4.4.2 Heterogeneidade e os interlocutores no HNb................................................................153 4.4.3 Por uma visão de moral subjetiva brasileira..................................................................156 4.4.4 As seis fontes do conhecimento (FCs) ..........................................................................161 4.4.5 Mecanismo Lógico: Verdade x Não-verdade................................................................164 4.5 Descrição do HNB - Tipologia.........................................................................................166 4.5.1 Quando a verdade dança, dançam as cores e os temas: classificação do HNb..............166 4.5.1.1 Os 3Ms - Morte, Macabro e Mórbido. .......................................................................177 4.5.1.2 Os 2Ds - Doenças e Diferenças..................................................................................188

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4.5.1.2.1 Doenças ...................................................................................................................189 4.5.1.2.2 Diferenças ...............................................................................................................192 4.5.1.2.3 A diferença na deficiência......................................................................................200 4.5.2 Aleivosias infantis (AIs)................................................................................................207 4.5.3 Considerações sobre Objeto ..........................................................................................215 4.5.3.1 Preliminares ...............................................................................................................215 4.5.3.2 Da metodologia e procedimentos ...............................................................................216 4.5.3.3 Sobre Metaficção........................................................................................................218 4.5.3.4 A língua do humor e a do HNb...................................................................................220 4.5.3.5 O humor, o humor negro e a voz feminina.................................................................222 4.5.3.6 Finalizando.................................................................................................................224 5 PARENTÉTICO CONCLUSIVO................................................................................................................. 229 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICA E BIBLIOGRAFIA............................................................................ 239

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1 INTRODUÇÃO

Circulam em todos os tempos e em diversos idiomas, diferentes discursos sobre o

humor em bibliografias de pesquisadores, historiadores e lingüistas. Ao estudar esses

discursos, percebo a hegemonia do humor normal sobre o humor negro. No Brasil, reiterando

o prestígio desse humor normal, existem trabalhos que o descrevem, mas apenas

historicamente; sobre o humor negro não encontro registro algum de teorias.

Neste trabalho, proponho-me a descrever, classificar o humor negro verbal brasileiro e

analisar os mecanismos lingüístico-discursivos utilizados para a construção de textos desse

subgênero, isto é, trabalhar com as estratégias de organização-produção, com o

funcionamento dos textos de humor negro brasileiro. Para isso, discuto teorias sobre o humor,

visando a avaliar se, e o quanto, elas são aplicáveis às circunstâncias e ocorrências do humor

negro brasileiro, objetivo árduo de ser atingido por causa das dificuldades de se lidar com a

relatividade das percepções e das reações.

Em meu texto, brinco com o enigma do risismo e privilegio o como e não o porquê do

humor. Por isso, as questões fisiológicas são abandonadas e as psicológicas ficam em estado

latente, conclamadas tão somente como modificadores internos, ou quando muito, atributos

dos mecanismos de produção, ou como elementos intervenientes da moral subjetiva brasileira.

Transito, às vezes, inconsciente e tangencialmente, pelos caminhos do porquê, por não ser

fácil dissociá-lo do como.

Analiso o comportamento lingüístico-discursivo e pragmático não só de textos do

humor normal, a que passo doravante a chamar de humor vermelho (HV) 1, como também os

de humor negro (HN) de Breton (1997) 2 e do humor negro brasileiro (HNb) para evidenciar

que, como tudo mais no mundo, esses humores sofrem mudanças substanciais de variadas

ordens que acabam por clivar-lhes o perfil, provocando mudanças nas percepções, recepções,

interpretações e reações, o que acaba redundando num modo brasileiro de ler o humor negro.

Meu interesse pelo estudo desse tema surge, primeiramente, por não existirem, no

Brasil, teorias sobre o humor, ou sobre seu subgênero humor negro; segundo, pela minha

curiosidade pelo modo como os textos e discursos do HN são construídos, lidos. Finalmente,

1 Cor que adquirem os rostos de algumas pessoas, quando riem diante desses textos, que devem mesmo fazer rir, deixando-as, às vezes, rubras ou até vertendo lágrimas tal a intensidade do riso. 2 Anthology of Black Humor – obra organizada pelo poeta e ensaísta francês André Breton, em 1936, na qual reúne autores que corroboram suas idéias sobre humor negro.

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por minha aspiração por um ensino da língua portuguesa que estimule o educador a desbotar,

avermelhar, amarelar ou a ficar palha (já que o verbo empalhar aqui não se aplica!), e desafiar

o aluno a proceder do mesmo modo.

Evidencio que a língua é um sistema de categorias abstratas que opera por oposições.

Reitero que não se podem entender as sentenças apenas pela combinação dos significados de

suas palavras ordenadas para formar frases, mas pela conjunção dessa combinação com a

intenção dos autores e com as posições dos interlocutores construídos na interação, e

veiculados por expressões lingüísticas escolhidas pelo autor e moldadas pela cultura, pelo

conhecimento anterior, pelos contextos sócio-históricos; enfim, os enunciados3 como

discurso. Reportando Possenti, afirmo que

[...] uma concepção discursiva de texto e de leitura supõe que jamais se lê um texto na sua qualidade de enunciado (produto), mas sempre na sua qualidade de discurso. O simples fato de ler impossibilita que o texto esteja aí como produto, já que ler é um processo e 'ler' um verbo transitivo. (POSSENTI apud AMARAL, 2001, p. 1).

Discuto os conflitos entre o HN de Breton e o HNb que se exacerbam, quando postos

sob a exegese da cultura brasileira. Essa constatação suscita duas questões: o HN bretoniano

não provocaria o riso da maioria dos ouvintes/leitores brasileiros e o HNb pode ou não

provocar o riso e, se o faz, é sob condições distintas daquelas do HN do poeta francês. Note-

se que não ser o texto de HNb risível, não seria o caso de quem ri por último ri (tardado),

aspecto que exigiria fundamentação teórica sobre o porquê do riso que não constitui o

enfoque deste trabalho.

Aponto que no humor ocorre uma dança das cores que se evidencia ao longo de sua

história, quando o marrom-esverdeado se transforma em negro, o vermelho desbota em rosa

ou amarelo, e o negro pode ficar vermelho, mas também desbotar em amarelo ou na cor palha.

Evidencio, assim, a fragilidade dos termos incompatíveis, visto que o antônimo de negro

deveria ser branco ou alvo e não vermelho, amarelo e palha. Ah, essas metáforas...

Essa dança acontece, porque alguns textos de HNb não acatam as definições do HN

bretoniano e nem se enquadram totalmente à sua filosofia, carecendo, portanto, de análise e

3 Gilles Deleuze (2005) entre as páginas 13-24, ao contrastar palavras, frases, proposições e enunciados explica que as proposições seriam hierarquias verticais, dispostas umas sobre as outras, que as frases estariam dispostas numa lateralidade, em que uma parece responder a outra. Os enunciados se instalam numa diagonal “que torna legível o que não era apreendido de nenhum outro lugar. Uma família de enunciados, o enunciado, diz o francês, são multiplicidades. Enunciados não são palavras, frases ou proposições, mas formações discursivas”.

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classificação. Por isso, analiso mecanismos lingüísticos que marcam a produção de tiras,

charges, textos-piada, frases de efeito e aforismos de HV, HN e HNb e classifico os textos de

HNb, na tentativa de fornecer subsídios para esclarecer a construção do texto de HNb.

Finalmente, discuto razões possíveis para as diversas percepções, recepções e reações dos

brasileiros diante desse subgênero de humor.

A análise lingüístico-discursiva dos textos de HV, HN e de HNb, trabalho

multifacetado porque possibilita a abertura de outras vertentes para o ensino, para a AD de

outros gêneros e para avançar na questão da leitura, auxilia-me na tarefa a que me proponho:

analisar o HN bretoniano, compará-lo ao humor negro do Brasil, descrever e classificar este

humor e apontar razões da minha proposta para uma inserção sistemática de textos de humor

nos materiais didáticos de língua portuguesa.

Embaso as análises de textos, também, com o suporte das idéias convergentes de

Pêcheux (1990, 1998), de Foucault (1995, 1989) e Fairclough (1992), no que tange à

abordagem desses autores ao discurso, sem, no entanto, discorrer detalhadamente sobre suas

obras. Pêcheux, grosso modo, considera o discurso - que para ele fica entre a linguagem e a

ideologia - como prática social de produção de textos. Isso significa que todo discurso é

construção social e não individual, e que só pode ser analisado considerando seu contexto

histórico-social, suas condições de produção; desse modo o discurso reflete uma visão de

mundo determinada, necessariamente, vinculada à de seus autores e à rede social em que

vivem. Abro, pois, esse espaço de compreensão a que Pêcheux chama de entremeio, cujo

objeto de estudo é o discurso. Assim, é na interface das áreas de estudo e das disciplinas que

se pode propor a reflexão discursiva.

Resumidamente, por sua vez, Foucault, em algumas de suas obras, trata

principalmente do tema poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Para ele, o

poder não pode ser localizado em uma instituição, ou no Estado, pois isso inviabilizaria tomá-

lo como proposta pelos marxistas. O poder não seria algo cedido a, ou emanado de, um

soberano (concepção contratual jurídico-política), mas de relação de forças. Se assim é, o

poder se encontraria em qualquer lugar, logo, uma pessoa está constantemente atravessada por

relações de poder e não pode se considerar independente delas. Para Foucault, o poder não

somente reprime e inculca valores, mas também produz efeitos de verdade e saber,

constituindo verdades, práticas, subjetividades e gerando contraposições e reações. Em

resumo, o próprio poder geraria a luta, a subversão à ordem estabelecida. Idéias consideradas

anteriormente por outros autores.

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Seguindo essa linha de pensamento, a proposta de ensino em meu trabalho inclui a

questão hegemônico-ideológica, contemplada na AD proposta por Fairclough (2001) 4 de

forte influência marxista, trabalho bem conhecido e imprescindível para a análise de

quaisquer textos e, obviamente, para a dos de HV, de HN e a dos de HNb. Tomo esse trabalho

de Fairclough como referencial teórico para as reflexões sobre linguagem, que se coloca em

relação às Ciências Humanas, refletindo a relação sujeito-linguagem-história, em sua auto-

eco-organização5, e que tem como objeto o (inter) discurso6, lugar onde ocorre essa relação e

os sujeitos são instituídos. Nesse trabalho, entre outras coisas, o sociólogo propõe a leitura

criteriosa das formações sociais e ideológicas que emergem dos textos e que deve se prestar a

mostrar o indivíduo à rede social e a rede social ao indivíduo e a transformá-lo.

Pondero, então, que as teorias sobre a AD que utilizo em meu texto são vias múltiplas,

diferentes possibilidades de compreensão de um problema posto diferentemente por cada

autor e que oferecem alternativas de pontos de vista e ampliam a visão de mundo. Todas elas,

à sua maneira, subsidiam o objetivo de promover a transformação dos indivíduos para atuar

no mundo. Por isso, nenhuma delas sofre discriminação em meu texto, pelo contrário, eu as

acato como caminhos teóricos que respondem e co-respondem, em parte, às necessidades de

reflexão que se apresentarem.

Porque creio que a gramática sintagmática e a oracional ainda têm merecido atenção

dos profissionais do ensino da língua ao tratar dos textos, em detrimento de uma concepção

discursiva do texto, é que meu trabalho traz uma proposta: a implementação de uma

pedagogia culturalmente sensível que contemple sistematicamente o trabalho com os textos

humorísticos, tratando-os não apenas como instância momentânea de lazer, ou momento de

discussões leves e superficiais, mas como instrumentos eficientes para se ensinar e discutir a

estrutura formal e conceitual da língua e seu funcionamento discursivo.

O objetivo desse ensino é a construção de um leitor competente e autônomo e o

incentivo à produção escrita de textos desse gênero, quem sabe, até com o surgimento de

novos humoristas verbais e de não-verbais. Para isso, sugiro o estudo das condições de

4 Discourse and social change (1992). 5 Relativo ao princípio da auto-eco-organização, cunhado por Edgar Morin: o ser humano é produto, produtor, e reprodutor, é autônomo e dependente, condições inseparáveis do ser humano e, por isso, são auto-eco-organizadores, envolvem sua autonomia na dependência da cultura/língua. Essa organização se regenera permanentemente a partir da morte de células, que ao final, determinará a morte do homem; morte e vida são complementares e antagônicas. (MORIN, 2006) 6 Grosso modo, é “o conjunto de unidades discursivas com as quais um discurso particular entra em relação explícita ou implícita”. “E uma articulação contraditória de formações discursivas que se referem às formações ideológicas antagônicas.“ (COURTINE apud CHARAUDEAU; MANIGUENEAU, 2006, p. 286)

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construção dos textos, dos enunciados e das correlações da linguagem (sistemas e produtos

simbólicos) da evidência das manifestações culturais e de cunho estético e social que se

caracterizem por um olhar os processos discursivos do ponto de vista da recepção e produção

dos textos. Em resumo, almejo um ensino produtivo da língua que transcenda o estudo do

texto no nível das palavras e atente para a análise da articulação das formas discursivas,

mediante um trabalho docente com vistas à formação integral.

Minha argumentação teórica e minhas análises dos textos humorísticos têm como

intuito esclarecer mais sobre a língua portuguesa do Brasil e sobre as relações entre a

linguagem, não só como sistema de signos, mas assumida como exercício pelo sujeito, e o

discurso, enfatizando o impacto dessas relações sobre os problemas desse ensino e suas

soluções. Isso serve para embasar minha proposta de ensino.

No capítulo 2, que denomino Adjunto Circunstancial, percorro a trajetória histórico-

etimológica dos termos humor e humor negro. Pontuo suas peculiaridades, justifico as razões

que levam os antigos a criarem esses dois sintagmas, acompanho a bifurcação, o

comportamento e os efeitos de um e de outro tipo de humor. Justifico, assim, o porquê de

estas expressões manterem-se como tal na Antigüidade, ao longo da Idade Média, entrarem no

século XIX e enfrentarem descobertas médico-científicas que derrubam alguns de seus

conceitos, crenças e interpretações, chegarem ao século XX e, finalmente, aos nossos dias,

sempre com a mesma designação, em que pese seu percurso conturbado e multifacetado.

Teorias médico-científicas e doutrinais à parte, a verdade é que ninguém jamais se interessou

por rebatizar as duas expressões.

Narro como, nesse percurso, o HV e o HN são sócio-historicamente construídos, como

tudo mais o é. Minha narrativa evidencia um privilegiamento contínuo do HV e do riso,

sempre agraciados com teorias e estudos, em detrimento do HN. Essa preferência pelo HV

desnuda questões históricas da disseminação e inculcação de valores simbólicos e materiais

nas sociedades que redundam num assujeitamento determinado pelas (inter)relações de poder

social, político, econômico e religioso que marcam a história do mundo e acabam decidindo a

predileção por esse ou aquele humor, ou pela maldição deles. Para encetar essa tarefa, utilizo

também os trabalhos de Bergson (1987), Minois (1998), Breton (1997), Saliba (2001), Alberti

(2002) e Possenti (2001), além daqueles sobre AD citados, porque desempenham papel

fundamental para a constituição, descrição e classificação do HNb e embasando minha

proposta de um trabalho pedagógico com os textos de humor.

Procuro mostrar também que existe uma linha de estudos históricos que tem como

filosofia usar os produtos culturais criados pela sociedade para estudar e compreender certa

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época. Para isso se presta com propriedade o texto de humor, como comprova Elias Thomé

Saliba em seu livro “Raízes do Riso” (2002), obra pioneira e primorosa pela contribuição

inestimável sobre a histórica do humor do Brasil e pelo olhar crítico e criterioso do historiador

para narrar os eventos sociais, políticos e econômicos dos períodos que sua narrativa abrange.

Além de retrato fiel e interessante do Brasil, da Belle Époque à era do Rádio, e de mostrar que

a história do HV caminha paralelamente à da formação da identidade do povo brasileiro e de

sua evolução, o texto de Saliba também revela, talvez inconscientemente, as origem do HN

nacional.

Escolho Possenti (2002), sobretudo, por optar pela análise lingüística dos textos de

humor, relegando a um segundo plano as questões fisiológicas, filosóficas e psicológicas, já

tratadas exaustivamente em outros trabalhos; porém, em minhas análises tento avançar na

questão discursivo-pragmática e na do papel dos sujeitos no discurso do humor.

Alicerço minha argumentação teórica com o auxílio de Alberti (2002) por seu

competente e inovador percurso sobre a história do humor no mundo. Sirvo-me da teoria dos

Atos de Fala de Austin (1962 e da Filosofia-teoria de HN de André Breton (1997), esta para

fundamentar minha argumentação sobre a definição, constituição e descrição do HNb e

minhas análises do discurso do material do HNb compilado. Finalmente, utilizo como

bibliografia complementar o trabalho de Duarte (2006), por sua elegante, inspiradora e

esclarecedora visão do humor e da ironia nos textos literários e o valioso artigo de Lobo

(1997), por fazer considerações interessantes e precisas sobre uma teoria do humor e por

discutir a posição da voz feminina na escrita sobre humor.

No capítulo 3, Predicativo do Objeto, primeiramente descrevo o humor sob meu ponto

de vista, empírica e brasileiramente. A seguir, detenho-me nas teorias de humor de Victor

Raskin (1985) e Thomas Veatch (1998) e nos trabalhos de Salvatore Attardo e Victor Raskin

(1991 e 1994), comparo o HV ao HN, contrasto a teoria de HV de Veatch com a de Raskin,

para apontar em que circunstâncias o trabalho de Veatch avança o de Raskin e como os

trabalhos de ambos contribuem para o entendimento sobre o HV e o HNb. Analiso lingüística

e discursivamente alguns textos de HV e revisito o trabalho de Alberti sobre o riso e o de

Duarte sobre ironia e humor na literatura.

Apesar de o foco de meu trabalho ser a língua e o discurso, algumas vezes resvalo por

outros aspectos de análise citados, por necessidade de esclarecer alguns pontos sobre a

produção do texto de humor e porque a língua, por si só, não decide a questão da recepção e

da interpretação desses textos e muito menos a da reação dos ouvintes. Perseguir essa trilha

acaba me fornecendo dados preciosos, não só para o esclarecimento de questões que, de tão

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enraizadas, tornam-se máximas na cultura, como, por exemplo, a impossibilidade de

equivalência das piadas entre as línguas, mas também para desanuviar alguns pontos sobre o

HN bretoniano, até então obscuros para mim.

No capítulo 4, a que atribuo o nome Objeto, exponho idéias recentes sobre o HN e

retomo brevemente a Antologia do Humor Negro. Na impossibilidade de tratar de todos os

textos dessa Antologia, teço breves considerações sobre alguns deles. Analiso o prefácio da

Antologia, e alguns outros prefácios que Breton escreve para apresentar cada um de seus

colaboradores, porque neles pode-se ler a filosofia do HN que fornece bases para minha

argumentação sobre a origem e constituição do HNb e para subsidiar minhas análises de

textos desse subgênero. Todo esse material se mostra imprescindível para o estudo do HNb.

Os textos dos quarenta e cinco colaboradores da Antologia constituem não apenas exemplos

da literatura que Breton considera HN, mas também o espelho da sociedade, da arte, da

política e da literatura da época em que eles vivem, o que transforma a Antologia em um

marco histórico tão contundente que decide o percurso, o destino e o papel do HN no mundo.

A seguir, comparando o HN bretoniano ao HNb, aponto alguns possíveis lugares no

tempo, na história, na evolução da sociedade e na literatura brasileiras nos quais estariam

plantadas as sementes que brotariam e montariam o cenário para o surgimento do HNb.

Trato, na seqüência, especificamente do HNb e, salvaguardados certos parâmetros,

mostro em que aspectos o HN bretoniano influencia, mas se distancia do HNb do Brasil.

Descrevo o HNb, analiso lingüística, discursiva e pragmaticamente alguns de seus textos, com

o intuito de classificá-lo e dividi-lo segundo temas e subtemas, suprindo algumas razões para

tal divisão. Essa análise procura espelhar também, do ponto de vista cultural brasileiro, o

modo como o texto de HNb é construído e como repercute nos ouvintes/leitores.

No capítulo 5, denominado Parentético Conclusivo, defendo a inserção sistemática do

texto humorístico no material de ensino da língua materna, sem distinção de gênero e

subgênero e a utilização desses textos como meios de formar leitores proficientes,

competentes em língua e preparados para atuar no mundo.

O corpus de estudo e de análise é material compilado de alguns espetáculos e shows

teatrais, da TV, de filmes e outros veículos de comunicação e sítios da Internet, entre os anos

de 2000 e 2004. A compilação desse corpus é trabalho absolutamente empírico realizado nos

diferentes redutos em que escuto e anoto os enunciados e detecto percepções e reações dos

ouvintes/leitores. A negociação do sentido é feita entre:

1) interlocutores-leitores/ouvintes ausentes - textos escritos e veiculados nos meios de

comunicação (jornais, livros, revistas, rádio, almanaques, TV, correio eletrônico, sítios da

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Internet etc.);

2) interlocutores presentes - textos de algumas artes cênicas, em situações, às vezes,

perturbadoras, ou inusitadas, nas quais aspectos importantes se perdem na fragilidade de uma

observação que, embora presencial, é dificultada pela interferência de efeitos perlocucionais

como riso, gargalhadas, aplausos, vaias, lágrimas, suspiros e tosse, movimentação de retirada

no meio do espetáculo, ovação de pé - às vezes feita com tomates - etc. e em meio à

mastigação de pipoca, abertura de embalagens de chocolate e balas, suspiros de namorados,

fatores que, reiteradas vezes, distraem a atenção.

Assim, acabo navegando “por mares nunca dantes navegados” ao descrever, analisar e

classificar o subgênero HNb em cuja história e evolução não encontro no Brasil, até então,

qualquer registro de teorias ou estudos.

Construo grande parte do texto deste trabalho, propositalmente, privilegiando o

pronome eu para assumir posicionamentos sobre o HNb e não para garantir um discurso

homogêneo ou original, que esse não existe, já que quaisquer discursos revelam a presença de

múltiplas vozes que neles perambulam, juntamente com as formações discursivas (FDs) 7 que

deles insistem em aflorar. Apesar desse privilegiamento pelo eu, a exemplo de Kierkegaard

(2005), utilizo, às vezes, também o sujeito se, para distanciar-me do texto e o nós para

conclamar o leitor a comigo dividir responsabilidades.

Devido ao tema de meu trabalho ser o humor, não me impus, e nem me foi

(sensatamente) imposta, uma linguagem excessivamente comportada. O estilo brincalhão e

dialogal, e por vezes irreverente, é mantido, porque para esse tipo de tema, o estilo acadêmico

parece-me ter um quê de fingido ou teatral, que pode fazer o leitor desconfiar de uma máscara

que eu estaria adotando para alcançar meu objetivo de defender minhas “teses”. Na verdade,

imito esse procedimento de Kierkegaard (2005) 8 que, em sua dissertação analisa irônica, séria

e humoristicamente a ironia de Sócrates.

Não pude furtar-me, também a humorizar meu texto por vezes, a fazer jogos

lingüísticos e conclamar meu leitor-enunciatário a dialogar e a compartilhar esse humor, pois,

o homem é dialógico e, nesse sentido, o diálogo mesmo que na ausência física daquele

interlocutor abre terreno para a negociação dos sentidos à distância. Afinal, conheço meu

7 FD - noção introduzida por Foucault que, grosso modo, as entendia como conjuntos de enunciados que podem ser associados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas, como as sociais e as ideológicas. A noção foi reformulada por Pêcheux no quadro da AD que propunha que toda formação social caracterizável por certa relação entre classes sociais, implica a existência de posições políticas e ideológicas, que não são feitas de um indivíduo, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de antagonismos, de aliança ou de dominação. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006) 8 O Conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates – dissertação defendida em 1841.

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leitor-modelo9 e sei que ele preencherá os interstícios de meu texto. Espero não estar

cometendo com essas condutas deslizes à escrita acadêmica. Estou certa, porém, de que não

há violação e, se alguma forma de transgressão for flagrada, será apenas dentro dos moldes

das três condições de construção do humor de Veatch (1998): normalidade, violação e

simultaneidade, um pacto entre meu leitor-enunciatário e eu, locutor-enunciador, irônica e

humoristicamente.

Finalmente, espero que meu trabalho contribua de alguma forma para o melhor

entendimento sobre o funcionamento do português do Brasil e para um ensino efetivo,

prazeroso, humorístico e cômico, no bom sentido, é claro. Confio que meu estudo não se

transforme numa piada de “mau gosto” do HN, ou numa piada de HV, cujo efeito

perlocucional não seja o riso, mas o muxoxo, a sem-gracesa, a repulsa, o constrangimento, ou

o deboche.

9 Leitor-modelo - sintagma cunhado por Umberto Eco em Lector in Fabula: narratologia, 1979. Segundo Eco, o autor prevê o leitor e dele espera movimentos cooperativos para a construção do “não-dito”, que o leitor preencha os interstícios do texto para a atualização de seu conteúdo.

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2 ADJUNTO CIRCUNSTANCIAL

2.1 Você sofre do fígado e não sabe

“Você sofre do fígado e não sabe”, diz a sabedoria popular dos brasileiros. Essa

sabedoria possibilita projetar o passado no presente, aguçar curiosidades e viabilizar

investigações sobre sociedade, história, cultura e linguagem. Mas o que “fazem” essas pessoas

quando “dizem” (AUSTIN, 1962) esse dito popular? Elas se referem ao humor.

Humor, assim transcrito em várias línguas ocidentais, do grego khymó e do latim

humor significa líquido, fluido do corpo, sentido usado nas teorias da Antiguidade, para

explicar o comportamento do corpo e da mente.

Por volta de 400 a.C, na interseção entre filosofia natural e patologia médica e a partir

das doutrinas dos filósofos gregos Empédocles e Pitágoras e do médico Hipócrates, surge uma

teoria que sustenta ter o corpo humano quatro humores: sangue, fleuma (muco, catarro), bílis

amarela e bílis negra, esta anteriormente marrom-esverdeada. Os gregos e os romanos

acreditam que o excesso ou o déficit de cada um desses humores que lubrificam o corpo,

fazendo-o mais forte ou mais fraco, afetam a personalidade, o estado de espírito e a saúde, isto

é, estando em equilíbrio, os líquidos mantêm a pessoa saudável e emocionalmente sã.

De acordo com a análise geral que os gregos fazem sobre a influência desses humores

nos estados de espírito, surgem teorias populares que atribuem ligação íntima entre os humores

e: as estações do ano, as idades da vida - juventude, fase adulta, envelhecimento e velhice -, as

partes do dia - a manhã, o meio dia, o entardecer e a noite e os planetas Vulcanus, Netuno,

Minerva, Saturno.

Conta a história que Hipócrates10 é o criador dessa teoria dos humores, a “Teoria

Humoral ou Humoralista” e da “Doutrina dos Quatro Temperamentos”, que mantêm seu

prestígio e popularidade como teorias médicas durante séculos.

Segundo a patologia humoral de Hipócrates, quando uma pessoa é acometida de uma

enfermidade, há uma tendência natural para sua cura, isto é, a natureza (Physis) encontra

meios de equilibrar a desarmonia dos humores (discrasia), restaurando o estado anterior de

10 Hipócrates de Cós (460 a.C. - 380 a.C.), médico grego da Antigüidade, uma das mais notáveis personalidades da medicina; chamado de “pai da medicina”. É com as palavras de Hipócrates que, durante a formatura, os formandos de Medicina do Brasil juram não fazer o que muitos deles andam fazendo.

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harmonia (eucrasia). Para a recuperação do enfermo, deve-se proceder à eliminação do humor

excedente ou alterado. O médico pode auxiliar o poder curativo da Natureza, retirando do

corpo o humor em excesso, ou “defeituoso”, para restaurar o equilíbrio. Com esta finalidade,

surgem os quatro principais métodos terapêuticos: sangria, purgativos, eméticos11 e clisteres12.

Teofrastos13 e outros filósofos desenvolvem um conjunto de “caracteres” baseados nos

humores. Os indivíduos que possuem excesso de sangue no corpo são chamados sangüíneos;

os com muito muco/catarro, fleumáticos; os com muita bílis amarela, coléricos e os com

excesso de bílis negra, melancólicos. Essas idéias contribuem para as comédias de caráter de

Menandro14 e, mais tarde, para as de Plauto15. São os humores influenciando o corpo, a vida e

a arte.

Por sua vez, Galeno de Pérgamo16, no século II DC, a partir dos textos hipocráticos17,

revitaliza a teoria humoral antiga, formulando conceitos sobre anatomia, fisiologia, etiologia,

higiene, dietética e terapêutica que permanecem como verdades inquestionáveis durante

quatorze séculos.

A medicina humorística que Galeno sistematiza, ressalta que o corpo humano

saudável éresultante do equilíbrio de quatro temperamentos: sangüíneo, fleumático, bilioso

amarelo e bilioso negro. Mudam-se os rótulos, mas a essência da teoria permanece. O médico

grego propõe, então, a teoria dos temperamentos, sempre associados às forças da natureza.

Associando as idéias de Hipócrates, às de Teofrastos, de outros filósofos e às de Galeno, os

humores estariam relacionados aos elementos da natureza da seguinte forma:

11 Do gego. eme(ein), medicamento ou droga que induz a ânsia de vômito. 12 Aparelhagem utilizada para introduzir água no corpo para reduzir o intervalo das evacuações. 13 Tirtanos de nascimento, dramaturgo grego, principal representante da Nova Comédia, nascido em Atenas Filho de pais ricos. Herda seu gosto pelo drama cômico de seu tio Alexis. 14 Dyskolos Menandro - Dramaturgo grego. 342-291 a.C. 15 Sucessor de Aristóteles na escola Peripatética, nasceu em Éresos, na Lésbia, em c. 372 a.C. A ele é atribuída a primeira mensagem de garrafa de que se tem registro, para mostrar que o Mar Mediterrâneo era formado por uma enseada do Oceano Atlântico. 16 Cláudio Galeno (c.129 - c.199) - médico grego, uma das maiores figuras da medicina da Antigüidade depois de Hipócrates. Entre outras contribuições para a medicina, provou que era sangue, e não ar, o que corria nas artérias, que os rins secretavam urina e que os nervos saiam do cérebro. 17 Textos de caráter geral: 1a - Sobre a arte da medicina e 1b - Sobre o comportamento do médico. Os livros são: textos de conteúdo anátomo-fisiológico, textos dietéticos, textos de patologia geral, textos de patologia especial, textos de conteúdo terapêutico, textos cirúrgicos, textos de conteúdo variado. Os "livros" da Coleção Hipocrática, escritos por vários autores e em várias épocas, são considerados os textos básicos da medicina no Ocidente até fins do século XVIII, quando as modernas descobertas da ciência, a partir do século XIX, suplantam sua importância nas escolas médicas.

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Figura 1: Ilustração das relações temperamentos e elementos da natureza Fonte: Iatroquímica, química médica, 2007.

Figura 2: Ilustração dos elementos da natureza e de quatro características. Fonte: Wikipédia, La enciclopédia livre, 2005.

Fleumático, temperamento associado ao elemento água, origina-se da fleuma, humor

frio e úmido gerado no cérebro. O fleumático seria um indivíduo estável emocionalmente,

calmo, sereno, equilibrado e, por isso, a vida para ele é feliz e descompromissada; raramente

explode em risos ou em raiva. É apegado à rotina e, por isso, sente dificuldade em aceitar

mudanças e tende à estagnação, até mesmo à emocional, como acontece com as águas

represadas. Admira a passividade e demonstra pouco empenho para atingir seus objetivos e é

bondoso e alegre, mas sua timidez pode inibir seu entusiasmo, tornando-o preguiçoso e

resistente a mudanças.

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Colérico (bilioso amarelo), temperamento provocado pela bílis amarela, é associado

ao fogo. O termo colérico causa confusão, às vezes, por evocar a idéia de ira, porém, ao

contrário do sentido que assume posteriormente, o indivíduo colérico se revela generoso,

otimista, geralmente bem humorado, cordial, cheio de vitalidade e exuberância, mas muitas

vezes de gosto duvidoso e, por vezes, falta-lhe senso de medidas. É intensamente ativo, mas

instável em suas escolhas por trabalho. Interessa-lhe a política, crê no progresso, é

revolucionário, dinâmico, constante e se entrega de corpo e alma ao trabalho escolhido para o

qual despende extraordinária energia, sendo essa sua mais acentuada característica. Se, por

vezes, explode em cólera violenta, isso não constitui de modo algum, um traço permanente,

nem mesmo dominante de seu comportamento.

Melancólico (bilioso negro), temperamento desencadeado pela bílis negra (do grego

µελας (melas= negra) e χολη (kholé = bílis)), é associado ao elemento terra. Descrita como

uma doença diferente entre os anos 400 e 500 a.C. nos trabalhos de Hipócrates, a melancolia

caracteriza-se não apenas pela presença da tristeza, insônia, indisposição, irritação, agitação e

aversão aos alimentos, mas também por se crer que seja provocada pelo sofrimento, pelo

medo e pela mágoa, quando constantes ou prolongados. Um melancólico é sombrio, quente,

impetuoso responsável e perfeccionista e possui grande poder de realização, sabendo levar

suas empreitadas a cabo. A seriedade como conduz suas metas e a profundidade de seu

pensamento levam-no a conquistar facilmente a confiança dos outros, mas para atingir o

sucesso, precisa fortalecer sua vontade. Seu coração é cheio de compaixão e interesse pela dor

alheia. O pessimismo e a falta de humor podem atrapalhar seus relacionamentos.

Porque as pessoas acreditam que existem humores que regem o corpo, surgem crenças

médico-folclóricas de que a perda dos líquidos é uma forma de morte. É em meio a todas

essas crenças, superstições e práticas que duram séculos, que o humor começa aos poucos a

deixar de designar o material líquido para se converter “em uma modalidade especial de

gracejo”, preocupada “mais com a seriedade do que com a alegria”. É o que afirma Cazamian

citado por Machline et al. (2004), que, ao discutir essa concepção do humor, esclarece que ela

teria sua origem na Inglaterra e, talvez, raízes na teoria humoralista da Antigüidade.

Segundo Joubert, citado por Alberti (2002, p. 111), “em todas essas combinações de

[humor] riso e saúde, reconhece-se a concepção médico-filosófica da eutimia (euthymia= bom

espírito, bom ânimo), estratégia de cura e de manutenção da saúde através do riso e da

alegria”, aspecto já decantado na Carta de Demócrito a Damagetus18. Assim, a melancolia

18 A Carta, que parece datar da segunda metade do século I a.C é, na verdade escrita por Demócrito, apesar de atribuída, durante muito tempo, a Hipócrates.

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pode ser curada pelos objetos agradáveis, pela alegria e pela companhia dos jovens que

possuem poder de rejuvenescer o homem, prolongar-lhe a vida e curar a melancolia. Sem a

eutimia, da melancolia para outras doenças graves decorrentes do “mau humor” seria um

pulo. Assim, surgem posteriormente transtornos como o bipolar, também conhecido como

psicose maníaca depressiva, a conhecida PMD (em que a coisa fica preta e não negra, e vá a

gente entender a semântica das cores!), a doença afetivo bipolar e outras variações do humor a

ela associadas, como a ciclotimia, hipotimia e o transtorno misto do humor, entre outros.

Abaixo um esquema da forma definitiva da teoria dos humores, estabelecida por

Galeno, a partir dos textos hipocráticos, que mostra a relação dos humores com o ser humano

e com a natureza na Antigüidade e que correspondência teria na Modernidade:

Humores Estação Elementos Órgãos Qualidades Temperamentos na Antigüidade

Temperamentos na

Modernidade

Características na

Antiguidade

Sangue Primavera Ar Fígado Quente e úmido Sangüíneo Artesão

Corajoso, esperançoso, prestativo, amoroso.

Bílis amarela Verão Fogo

Vesícula biliar, bexiga

Quente e seca Colérico Idealista

Irritadiço, agressivo, mal

humorado.

Bílis negra Outono Terra Baço Frio e

seco Melancólico Guardião

Desanimado, irritável e propenso à

insônia.

Fleuma Inverno Água Cérebro

e pulmões

Frio e úmido Fleumático Racional Calmo,

racional

Quadro 1: Quatro humores e suas diversas associações com o mundo Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre, 2005.

A teoria dos humores como líquidos, que acompanha a visão que se tem do corpo

humano durante vários séculos e a doutrina da patologia humoral, que orienta a Medicina por

mais de 2.000 anos, persistem até o século XVI. A partir daí, começam a perder terreno para

novas pesquisas científicas, como a iatroquímica19, ou química médica, que começa a exercer

influência na medicina entre os anos 1500 e 1650.

19 A Iatroquímica teve origem na alquimia, pois, naquela época, somente a alquimia adotava métodos e equipamentos experimentais de investigação. O alquimista, na busca de obter a transmutação dos metais ou o elixir da longa vida, ia misturando e combinando materiais, desenvolvendo novas técnicas e fabricando equipamentos de laboratório.

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Segundo Cazamian, o inglês Ben Jonson20, no final do século XVI, utiliza a palavra

inglesa humour para definir a personalidade extravagante, aplicando a teoria dos humores.

Seria Jonson, portanto, o responsável por atribuir um cunho definitivamente cômico ao

humor, graças a duas acepções: “uma idiossincrasia ocasionada por uma compleição natural,

porém fora do comum; ou, em vez de genuína, uma excentricidade simulada e, portanto,

falsa” (CAZAMIAN apud MACHLINE et al., 2004, p. 472), sendo que a segunda se adapta

melhor à derrisão. O termo humor, no sentido moderno de “graça”, ou daquilo que é

engraçado, finalmente, tem registro pela primeira vez em 1705, quando é introduzido o uso do

termo humor, no sentido moderno de tendência para o gracejo. Portanto, para a tristeza dos

brasileiros, além de terem inventado o futebol, os ingleses seriam também os responsáveis

pela visão de “engraçado” do humor, como o vemos até hoje: a qualidade de ser risível ou

cômico, uma maneira normal de as pessoas responderem às emoções, um estado de espírito

ou sentimento temporário, uma virada impulsiva do espírito e quase sempre ilógica, entre

outras explicações. A literatura de todos os países exibe, no entanto, desde tempos muito

anteriores ao uso efetivo da palavra humor, a tendência a mostrar de maneira jocosa as

incoerências da sociedade e a caçoar do absurdo e do ridículo.

Essas idéias gregas sobre humor, que datam do período anterior ao de Sócrates, entram

na Idade Média, passam à Renascença, prevalecem e dominam a medicina dessas épocas,

influenciando profundamente o pensamento e a cultura europeus no século XVII e XVIII e,

devido a isso, reaparecem periodicamente nas artes, como no drama, por exemplo.

São práticas médicas típicas do século XVIII a sangria e o uso das sanguessugas -

substitutas da sangria -, vermes dotados de uma ventosa na extremidade proximal que sugam

entre 10 a 15ml de sangue com o objetivo de eliminar as impurezas do sangue de quaisquer

outros tipos de humores responsáveis pelos estados febris ou mórbidos, ou considerados

causadores de doenças. Outras panacéias de aceitação universal perduram até o início do

século XIX, como as mencionadas: ingestão de purgativos, uso das ventosas, dos eméticos e

clisteres e, também, o das lísteres21, recurso do qual a medicina do passado se utiliza para o

tratamento das mais diversas doenças, especialmente as do aparelho respiratório, como a

pneumonia e a pleurisia. A aplicação dessas lísteres, e mais especificamente a das ventosas

20 Dramaturgo clássico, 1572-1637. 21 Lapides sui generis (pedras especiais), fóssil encontrado e descrito pelo cientista naturalista e médico inglês Martin Lister (1638-1712), em 1678. De seu sobrenome advém o nome da pedra.

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exerce ação antiflogística22 nas vísceras, removendo os líquidos em excesso.

O uso sistemático dessas panacéias é objeto de acerbadas críticas por parte de

escritores e artistas que não poupam sátiras irreverentes sobre essa terapêutica polivalente,

mas duvidosa. A mais célebre delas, certamente, deve-se à divertida comédia de Molière

intitulada O doente imaginário23. Na Antigüidade, paira também a estranha crença de que a

bílis negra é absorvida no baço, porque esse órgão possui aparência avermelhada, bem escura.

Essas idéias todas chegam até o século XIX, sendo afastadas somente em 1858, com a

publicação das pesquisas de Rudolf Virchow24 sobre a nova patologia celular, fundamentada

nas alterações celulares causadas pelas doenças que substitui a milenar doutrina da patologia

humoral, o que representou um marco na evolução da medicina. Os órgãos e os tecidos

deixam de ser considerados como massas consistentes resultantes da solidificação dos

humores e passam a ser vistos como aglomerados de células individuais, adaptadas à natureza

e função de cada órgão. Surgem, então, trabalhos sobre a estrutura celular dos seres vivos,

graças ao desenvolvimento da microscopia e outras descobertas como a do mecanismo do

tromboembolismo e a divulgação de outras pesquisas que vêm esclarecer definitivamente o

funcionamento do sistema circulatório, descartando aquela visão do passado. Um desses

trabalhos é o do brasileiro Vital Brasil, que faz caírem por terra essas idéias, no final do

século XIX, quando “os progressos da physiologia e as victórias alcançadas pelo méthodo

experimental vieram a offerecer elementos mais sólidos para o estabelecimento de theorias

sobre o assumpto.” (BRASIL, 1892, p.1) 25. Com essas pesquisas todas e com a explicação

sobre o funcionamento do sistema circulatório, fica esclarecido que o baço não é um órgão

que secreta bílis, mas que possui células que têm função hematopoética. 26.

Reiterando, os médicos da Antigüidade e da Idade Média acreditam que o corpo

secreta dois tipos de bílis: uma amarela uma negra. Se a bílis amarela é derramada, a pessoa 22 Antiflogístico seria uma substância analgésica que trata inflamações. O médico George Stahl (início do século XVIII), ao explicar o mecanismo da combustão elaborou “A Teoria do Flogisto”, na qual explica que todas as substâncias que se queimam têm na sua constituição um elemento comum: "o flogisto", isto é, o "ar do fogo". Imaginava-se que o fogo era alimentado através da retirada do flogisto das substâncias em combustão. Essa teoria teve grande influência na interpretação da febre e da inflamação. 23 Le malade imaginaire, última peça escrita por Molière em 1683 que conta a história de Argon, o hipocondríaco e põe em questão a medicina, seus valores, seu poder e suas mazelas. 24 Rudolf Ludwig Karl (1821-1901) médico alemão e grande pesquisador. 25 Original da tese/dissertação, conservando a ortografia da época: VITAL BRASIL. Funções do Baço. 1892. (These inaugural) Apresentada à Cadeira de Physiolcgia Theorica E Experimental. Proposições, Tres Sobre cada uma das Cadeiras da Faculdade. Apresentada À Faculdade de Medicina do Rio De Janeiro, em 15 de dez. de 1891 e perante ella defendida e approvada plenamente, em 9 de Janeiro de 1892.Typografia carioca. R. TH Othoni 143.Escritório do Jornal do Agricultor. (Conservada a grafia da época em que Vital defende sua tese). 26 Também hematopoiética (Hemato, ou hemo, “sangue” e poiésis, “fazer”). Além do baço, outros órgãos e tecidos fazem parte de um sistema do corpo que fabrica leucócitos e hemácias, como por exemplo, o tutano da maioria dos ossos, baço, as amídalas e os linfonodos, entre outros.

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fica de bom humor; se a derramada é a negra, de mau humor, isto é, a pessoa fica ao sabor das

decisões do fígado e do corpo, e sujeita aos “transtornos do humor”. Talvez sem terem

consciência disso tudo, as pessoas usam esse sentido, quando afirmam que alguém “sofre do

fígado e não sabe”. Na verdade, elas querem dizer que esse alguém está indisposto, ou seja,

desagradável, como se estivesse com o gosto da bílis negra na boca. Pela mesma razão,

quando alguém diz: “você está amargo”, quer dizer que você está de mau humor, com mau

estado de espírito; se uma pessoa lhe diz: “você precisa desopilar o fígado” significa que deve

rir bastante, divertir-se e espantar (expelir) os maus humores, os fluidos negros negativos.

O humor que interessa ao meu trabalho é a bílis negra, pois a associação das palavras

humor e negro (líquido + negro) forma o sintagma e subgênero humor negro, objeto de minha

pesquisa. Muitas culturas estrangeiras conservam durante certo tempo a expressão marrom-

esverdeada para o fluido ruim da bílis e este, posteriormente, passa a ser chamado de negro,

modificador interno mantido até nossos dias. No Brasil, dizem que a bílis é amarelo-

esverdeada, mas o sintagma HN conserva a negritude, sem preconceito.

Pelo lido, diferentes tipos de humores apelam aos estados físicos do ser humano, às

emoções e aos sentimentos, o que talvez explique a escolha pelo enfoque predominantemente

médico-psicológico de alguns investigadores do humor. Enfoques à parte, o fato é que os

humores variam de acordo com a cultura, numa mesma cultura e de uma cultura à outra. Mas

isso não significa que não existam humores equivalentes em diferentes culturas, pois há temas

que são universais, comuns aos povos. Há textos de humor em português que podem ter

equivalência em outras línguas e vice-versa, porque o que conta, segundo Raskin (1985) não é

apenas o significado usado para provocar o riso, mas também a capacidade de estabelecer

relações com a linguagem, a de fazer comparação entre elementos situacionais, a de perceber

a intencionalidade discursiva. Se o discurso adjacente ou a situação extralingüística não

explicitarem o contexto, essa tarefa caberá aos conhecimentos prévios. Além da relação entre

sentenças e contexto, a percepção também se atrela aos conhecimentos do leitor, à sua

memória discursiva e principalmente à sua capacidade cognitiva de estabelecer associações.

Além disso, é preciso um conhecimento compartilhado, ingrediente fundamental para a

percepção, construção da significação e reação de quaisquer textos.

2. 2 Sofrendo do fígado a quatro mãos

Uma pesquisa em alguns sítios na Internet vem comprovar uma quantidade

representativa de textos de humor que são traduzidos a contento, do espanhol, do italiano, do

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francês e do inglês (e, com certeza, de outras línguas) para o português, salvaguardados

alguns aspectos lingüísticos e extralingüísticos. Essas traduções revelam os critérios

cuidadosos por que se pautam os tradutores, no intuito de preservarem as especificidades da

cultura brasileira, ao mesmo tempo conseguindo manter o sentido do texto na língua fonte.

Vejamos um exemplo disso no texto abaixo.

Texto de humor 1

Necesito un trabajo. Tengo 15 hijos. I need a job. I have 15 children. ¿Y que otra cosa más es capaz de hacer? And what else can you do?

- Preciso de um emprego. Tenho 15 filhos. - E que mais o senhor sabe fazer?27

Os enunciados parecem manter o mesmo padrão e o mesmo sentido nas três línguas. O

como do humor encontra-se na incongruência introduzida pela palavra mais (más, else),

marcadora da idéia de que fazer sexo com eficiência é um item a se considerar em currículos,

habilidade que, associada à pergunta geralmente feita pelos empregadores (o que você sabe

fazer?), traz o humor e o riso. O conhecimento prévio tem de ser acionado para relacionar a

necessidade do trabalho ao sustento dos 15 filhos, sem que essa relação de causalidade se

manifeste na superfície do texto. Os termos And, Y, E, else, más e mais conduzem à inferência

de que a habilidade de um garanhão competente não o qualifica para um emprego. É isso que

quer veicular a ironia da fala do personagem-enunciatário, ironia que contamina todo o texto.

A ironia de que falo aqui é aquela que

[...] pode ter formas diversas e funções extremamente diversificadas, em que há, pelo menos, dois graus de evidencia: um primeiro, em que o dito irônico quer ser percebido como tal, e um segundo – caso da ironia humoresque -, em que o objetivo é manter a ambigüidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo (DUARTE, 2006, p. 18).

27 POSSENTI, 2001, p.32

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A ironia, então, permite ver que “a língua não tem significados fixos”, que o texto

pode trazer “armadilhas e jogos de enganos dos quais (o enunciatário/ouvinte/leitor) deve

participar”. (DUARTE, 2006, p. 19).

Na versão do espanhol, no enunciado Y que otra cosa más es capaz de hacer, o

sintagma otra cosa é mantido por questões de “colocação-cristalização”. Leia-se esse duo com

o sentido de: o quê vai com o quê? Na do português, no enunciado que (outra coisa) mais o

senhor sabe fazer, o sintagma outra coisa é apagado por questão de economia lingüística e o

sentido da expressão (ser) “capaz de fazer” das outras línguas é mantido em português, pois

há equivalência com “sabe fazer”. Apesar das diferenças, o mesmo sentido se mantém nas

três línguas.

Possenti (2002) afirma que quem não analisa os aspectos lingüísticos dos textos de

humor geralmente argumenta o óbvio, apresentando obviedades inúteis que ele classifica

como “os lugares comuns, mais comuns sobre as piadas”, como por exemplo, que “as piadas

são culturais” e que por essa razão não se transferem de um idioma a outro. O lingüista

pondera que “a rigor tudo é cultural” e que “todos os povos produzem piadas, mas [...] elas

versam sobre poucos tópicos, sempre os mesmos, e apenas variam como decorrência de certas

especificidades lingüísticas” (POSSENTI, 2002, p. 42-44).

No entanto, uma questão permanece em suspenso no ato de fala do personagem-

enunciador: é ponto pacífico na cultura dos países anglo-fônicos famílias terem 15 filhos?

Esse aspecto descaracterizaria o texto como uma piada na cultura anglo-fônica? Se o

enunciador afirmasse “tenho cinco, quatro ou dois filhos”, faria diferença? Seria o aspecto

cultural “lugar [tão]-comum dos mais comuns”? (POSSENTI, 2002, p. 41).

Um exemplo de um texto de humor para o qual não caberia correspondente em

português seria:

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Texto de humor 2

No seriado Married with Children, do Warner Channel, a família Bundy é americana atípica; são corruptos, não trabalham, não gostam de estudar, cozinhar, limpar a casa, lavar a roupa etc. Além disso, roubam pertences dos outros. Al e Maggie Bundy têm dois filhos: Kelly, uma jovem loura e Bud, o inteligente. Num de seus eventos infratores são pegos em flagrante e encaminhados ao tribunal. Kelly causa distúrbios e desordens no sagrado recinto do tribunal, falando em voz alta, andando pela sala, às tontas, enfim, desacatando a autoridade constituída. O caos se instala. O Juiz se enerva e explode:

Judge: Order, order in court! Kelly: I want a cheeseburger and a soda, your Honor. - Juiz: Silêncio, silêncio, no tribunal! - Kelly: Quero um cheeseburger e um refrigerante, Seu Juiz.

Para se entender essa piada, é preciso analisar o texto no inglês, sem usar o português.

Eu enfoco os aspectos semânticos e de acordo com a percepção e “inteligência” do

personagem-enunciatário, Kelly Bundy. Não é o falante que tem o direito de subverter a

língua? O texto se presta a justificar a não equivalência de certas piadas em português.

A polifonia acusa a presença de várias vozes: a do locutor empírico, a do personagem-

enunciador e a do personagem-enunciatário. O personagem-enunciador deseja que o

personagem-enunciatário Kelly, interprete os enunciados Order, order (in court!) como os

substantivos “Silêncio, silêncio!” (no tribunal) que com modalização ordem introduzem o

primeiro plano de leitura. O locutor empírico, no entanto, deseja que o personagem-

enunciatário interprete o termo Order como “Faça seu pedido! (Peça!)”, introduzindo com

isso o segundo plano de leitura. O termo order é ambíguo em inglês, já que pode ser usado

também como verbo cujo sentido é fazer pedidos de bebidas e refeições em restaurantes. A

opção de Kelly pelo segundo plano de leitura causa o humor e provoca o riso.

Em português, como o termo ordenar não é usado para procedimentos em restaurantes,

ele não pode trazer ambigüidade, ingrediente lingüístico fundamental para a geração do

humor do texto em inglês, o que impossibilita a contrapartida no português. É a isso que

parece se referir Possenti (2002) ao mencionar as “especificidades lingüísticas” que

impediriam a equivalência de uma piada de uma língua para a outra.

Finalmente, a própria família Bundy é uma contraposição ao que se apregoa sobre o

modo de ser das famílias americanas em geral, o que por si só traz o humor e provoca o riso

dos americanos, de outros falantes anglo-fônicos e, talvez, de falantes não anglo-fônicos com

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competência lingüística em inglês.

Note-se a semelhança de construção entre o texto anterior e o que se segue e como ele

corrobora os enunciados de Possenti sobre “as especificidades lingüísticas”, citadas

anteriormente. O humor do texto abaixo, construído com ambigüidade fonológica, não

encontraria equivalência em inglês, pelas mesmas razões que o de Kelly anteriormente não a

encontra em português.

Texto de humor 3

A Loira arrumou um emprego de manobrista num restaurante.

Logo, chega o primeiro cliente para retirar o carro, que diz: - O Celta preto.

A Loira responde:

- Tá sim... e acho que vai chover.

Na mesma linha de raciocínio da não-eqüivalência, e da assertiva de Possenti (2002),

que diz que “piadas são culturais”, analiso o texto seguinte:

Texto de Humor 4

Three men, an Italian, a French man and a Portuguese went for a job interview in England. Before the interview, they are told that they must compose one sentence in English containing three main words: GREEN, PINK, and YELLOW The Italian was the first: I wake up in the morning. I see the YELLOW sun. I see the GREEN grass, and I think to myself, I hope it will be a PINK day. The French was the next: I wake up in the morning, I eat a YELLOW banana, a GREEN pepper and in the evening I watch the PINK panther on TV. The last one was the Portuguese: I wake up in the morning; I hear the phone GREEN... GREEN... GREEN..., I PINK up the phone and I say YELLOW?

Estereótipo à parte, é preciso, primeiramente, que o ouvinte/leitor tenha competência

comunicativa em inglês, já que de nada vale traduzir a piada para o português no intuito de

compreendê-la ou interpretá-la.

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Para deflagrar o humor e provocar o riso são utilizados jogos lingüísticos com a

onomatopéia e a ambigüidade fonológica, evidenciadas em Green, Green, Green,

(ambigüidade fonológica entre a cor green, que significa “verde”, e o som do telefone “trim,

trim”), pink (ambigüidade entre pink, “rosa”, e pick, verbo que significa “pegar o telefone

para atender”) e yellow (ambigüidade fonológica entre a cor amarela e a função fática da

linguagem “Alô?”).

Pelo lido, não há consenso sobre as equivalências dos textos de humor entre as

línguas. Alguns possuem equivalentes, outros não, por razões diversas: sociais, culturais,

pragmáticas, históricas e, naturalmente, lingüísticas. Apenas não se deve generalizar, pode ser

o que quer dizer Possenti (2002).

2.3 Sofriam do fígado e sabiam

Desde que o mundo é mundo, as pessoas têm pensado e escrito muito sobre o riso. A

Psicologia, a Filosofia, a Sociologia e a Literatura, entre outras, contam já com uma longa

tradição sobre as reflexões a respeito do riso e em seus escritos existem diversas tentativas de

explicação para esse fenômeno. Historicamente, pesquisas e teorias sobre o riso têm sido alvo

de estudos de vários pensadores e filósofos. Hipócrates, Platão, Aristóteles, Cícero,

Quintiliano, Demócrito, Heráclito etc. dão espaço ao riso na Antigüidade. Com base no

trabalho de Alberti (2002), aponto, entre outros: no século XVI, Laurent Joubert28; nos

séculos XVII e XVIII, Hobbes29, Shaftesbury30 e Hutcheson31; nos séculos XVIII, XIX e XX,

Jean Paul32, Kant33, Schopenhauer34, Spencer35, Darwin36, Bergson37, Bataille38, Baudelaire39,

28 Tratado do riso, contendo sua essência, suas causas e seus maravilhosos efeitos, curiosamente pesquisados, refletidos e observados. Arrogâncias à parte, esse trabalho é o único da Renascença escrito em francês e, dos analisados por Alberti (2002, p. 108-109), é o único que faz elogio ao riso como uma das (várias) maravilhas da alma. 29 The English works of Thomas Hobbes of Malmesbury. 30 Characteristics of men, manners, opinions, times. 31 Collected works of Francis Hutcheson. 32 Werke in zwölf Bänden. 33 Immanuel Kants werke. 34 Werke in zehen Bänden. 35 On the physiology of laughter. 36 The expression of the emotions in man and animals. 37 Le rire: essai sur la signification du comique. 38 Oeuvres complètes. 39 De l’essence du rire, et généralement du comique dans les arts plastiques.

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Le Goff40 e Freud41. Eu acrescentaria ainda um trabalho de Uwe Wirth (1983), em que o autor

faz uma mescla entre os textos “Insights teóricos sobre o processo de interpretação” e

“Considerações sobre o cômico, o carnaval e o humor” de Umberto Eco, nos trabalhos “O

Cômico e a Regra”, “As Molduras da Liberdade Cômica” e “Pirandello Ridens”. A literatura

é farta e ampara o prestígio de que desfruta o riso na história do pensamento. E é o que, com

certeza, leva Alberti (2002, p. 34) a concluir: “não me parece que novas teorias do riso sejam

necessárias, a menos que elas introduzam algo novo”, opinião que corroboro.

Como enigma que surge bastante anteriormente ao aparecimento das teorias do humor,

o riso, mais que o humor, é foco de uma preocupação maior por parte dos filósofos, ao longo

da evolução humana e da história do pensamento, interessados em entender e explicar suas

causas. Afinal, o ser humano começa a rir por volta dos quarenta e quarenta e cinco dias de

vida, e aí não pára mais, e seu riso, obviamente, não é provocado pelo humor, e muito menos

pela ironia, mas por um bom estado de alma, conforme os pensadores da Antigüidade.

Segundo os entendidos, o bebê ri dormindo, não acordado, o que significa dizer que o riso dos

bebês é involuntário. O riso voluntário somente surge no período da vida em que se desperta

para o humor, para a ironia e para o cômico, fase em que se começa a penetrar os meandros da

percepção, do entendimento e também da maldade no coração, segundo os cristãos.

Em que pese o longo período em que se crê no pensamento e nas teorias dos fisiólogos

e médicos da Antigüidade clássica e da era medieval sobre a influência dos humores no corpo

e no espírito, a longevidade dessas teorias não garante ao humor, posição de destaque na

abundante literatura sobre o riso, sendo este sempre abordado paralelamente ao cômico. É o

que aponta o livro de Alberti (2002), obra criteriosa e detalhista em que a historiadora refaz a

trajetória da história do pensamento sobre as formas de pensar o riso e o risível que saltam de

certos textos antigos, principalmente os de Platão, Aristóteles, Cícero e Quintiliano.

Quanto ao riso na modernidade, ela afirma: De modo esquemático, pode-se dizer que, para as teorias clássicas, o sério e a gravidade coincidem com a verdade, de modo que o não sério (o espaço do riso) é o não-verdadeiro. Na abordagem moderna, o sério e a gravidade não coincidem mais com a verdade; o riso continua a ser o não sério, mas isso, agora, é positivo, porque significa que ele pode ir para além do sério e atingir uma realidade “mais real” que a do pensado. O não-sério passa a ser mais “verdadeiro” que o sério, fazendo com que a significação do riso se torne “mais fundamental”. Dir-se-ia que uma teoria do riso que não incorpore essa mudança não é mais possível [...]. (ALBERTI, 2002, p. 197).

40 Rire au Moyen Age. 41 Der Witz seine Beziehung zum Unbewußten.

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A historiadora admite que “o mistério do riso propositalmente se mantém; o riso não é

o efeito de uma paixão, não tem um princípio físico ou moral e deve continuar incógnito”

(ALBERTI, 2002, p. 206). Ela está certa: riso é incógnita e permanecerá como tal, apesar de

todos os esforços das teorias para explicá-lo.

Em seu trabalho, Alberti (2002) não contempla muitos autores que tratam

concomitantemente do riso e do humor. Cita, por exemplo, John Moreall, para quem “a

essência do riso torna-se condição para o conhecimento de nossa natureza”. “O necessário”,

diz ele, “é uma teoria completa do riso e do humor” (MOREALL, apud ALBERTI, 2002, p.

26) com o que concordo. Porém, no todo da obra de Alberti, o termo humor não desfruta de

prestígio, ou é comentado apenas en passant.

Ao analisar a divisão do risível42 de Jean Paul, a historiadora estranha as diferenças

entre os elementos, porque os considera reflexos um do outro. Ela estranha, ainda, Jean Paul

tratar o humor como gênero do cômico, quando ele afirma que “o problema é que essa divisão

serve de base ao exame dos “gêneros do cômico”, como o humor e a ironia, que se

diferenciam segundo a combinação dos três elementos, resultando em sentenças cada vez

mais herméticas” (ALBERTI, 2002, p. 169). Surpreende-me, também, essa idéia de o humor e

a ironia serem gêneros do cômico, visto que, por um lado, o humor e o cômico são entendidos

como certo estado mental propício ao riso, embora não possuam a mesma origem ou história.

Definido como “defeito ou torpeza que não causa dor, nem destruição” (ALBERTI, 2002, p.

46), o termo cômico se origina da comédia grega que constitui uma forma desprestigiada de

arte por retratar as ações humanas baixas, enquanto a tragédia, que retrata as ações humanas

nobres, desfruta de prestígio na Antigüidade.

O humor, como mencionado, origina-se da teoria humoral e dos efeitos dos humores

(líquidos) no corpo e no espírito. Por outro lado, pode-se afirmar que o humor é a mais

subjetiva e também a mais individual manifestação, particularidade da espécie humana pela

coragem e elevação que pressupõe. Portanto, o que o distingue das formas do cômico é a sua

independência em relação à dialética e a despreocupação pela função social. Trata-se,

portanto, de uma categoria intrinsecamente enraizada na personalidade, fazendo parte dela e,

às vezes, até definindo-a. É por isso que se diz que existem tantos humores quanto existem

humoristas. Assim, uma distinção, hoje, entre humor e cômico seria temerária e talvez 42 A saber, contraste objetivo, contraste sensível e contraste subjetivo, divisão que engloba os três elementos do risível: contradição, ação ou situação do ser risível e a relação contemplada pelos sentidos. (ALBERTI, 2002, p. 169)

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supérflua, visto que eles parecem se entrelaçar nas várias culturas ocidentais, já que ambos

são formas de entretenimento e comunicação humanas, cujo objetivo é fazer rir.

Em relação ao duo comicidade-humor e à ironia, temas dos quais eu trato na seção

3.2.1 Humoricidade, Comicidade e Ironia, do capítulo 3, eu considero o duo mais antigo,

porque suponho que o eterno seja mais antigo que o temporal. E, se, por um lado, a produção

singular da ironia é o momento, ela fica dominada, reduzida a esse momento, e “a essência

não é outra coisa senão o fenômeno, o fenômeno não é outra coisa senão a essência”

(KIERKEGAARD 2005, p. 276). Por outro, não se entenda com isso que a ironia perca sua

significação ou que ela seja deposta, porque, justamente quando o indivíduo está corretamente

orientado a usá-la, sua ironia é limitada, controlada, e é aí que ela adquire significação justa,

validade verdadeira, mas não eterna. A ironia tem esse caráter efêmero que o humor, por ser

um estado de espírito, pode não ter; ele pode ser permanente. Ele pode prescindir da ironia e

ela dele.

Diferentemente de Alberti (2002), que toma o cômico e o riso como objetos de seu

estudo, eu faço do humor o “Predicativo do Objeto” e do HN o “Objeto” e trato o riso como

efeito perlocucional43 do humor. Não me preocupo muito com as conceituações de humor e

riso, na certeza de que elas acabam perambulando pelo meu texto e assombrando-o como um

fantasma e porque o riso já é foco de inúmeros trabalhos ao longo da história da evolução do

pensamento. Aristóteles44, por exemplo, por mais sisudo e circunspeto que possa parecer nas

obras em que defende seus conceitos de ética e política, ou mesmo em sua Poética, também

se dá conta do direito exclusivo do homem de rir: o homem é a única criatura que ri; e ri dos

outro, segundo Leon Eliachar, e é o único também que sabe que a morte é uma certeza

absoluta, “e ainda assim, se surpreende com ela”, completa Arnaldo Jabor45. O filósofo grego

considera que o humor consiste no prazer de se rir daquilo que é desagradável ou aponta

defeitos. Estaria ele preconizando a violação, o desvio à normalidade da teoria de Veatch que

surgiria apenas em 1998, ou os temas do HN de André Breton de 1936?

Na sua famosa obra A República, Platão vê o hábito de rir como uma manifestação de

arrogância, muitas vezes injustificada e condena o uso do humor nas suas diversas

manifestações. Cícero em De Oratore aponta que o humor é construído sob formas diversas:

43De acordo com Austin (1972), os atos de fala são: o locucional - as expressões lingüísticas usadas para os proferimentos; o ilocucional - grosso modo, a intenção do falante - e o perlocucional - aquele que veicula a intenção do autor. O efeito perlocucional seria a reação que o ato ilocucional provoca no personagem-enunciatário ou no ouvinte/leitor-enunciatário; no caso do humor, o riso, o não-riso, a gargalhada, o constrangimento, o horror, o desgosto, a náusea etc. 44 384 a.C. - 322 a.C. 45 Comentário obtido em reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo de televisão, em set. 2002.

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palavras interpretadas literalmente, metáfora, ambigüidade, comparação, equívocos,

contradição, falsas expectativas, surpresa, absurdo (farsa), ridículo, ironia, simplicidade

presumida, declaração abrandada, narrativa, fábulas, provérbios, caricatura, alegoria, desvio de

valor, expressões antiéticas, erros de ortografia, mímica. Seu escrito assume posição de relevo

na teorização do humor.

É bastante conhecida a afirmativa de Kant de que o "o riso é uma afecção proveniente

da transformação súbita de uma expectativa tensionada em nada” (KANT apud ALBERTI,

2002, p. 162). Para ele, é na contradição entre a expectativa e a realidade que reside a essência

do cômico. O filósofo considera o humor um sintoma de argúcia e o riso uma conseqüência da

tensão que subitamente se dilui, quando entra em jogo algo absurdo e incoerente. Isso provoca

prazer não só intelectual como físico, o que, para Kant citado pro Albert (2002) evidencia o

vínculo indissolúvel entre o corpo e o espírito. Porém, para ele, o riso não seria provocado por

se considerar alguém inferior, mas simplesmente por uma reação desencadeada por um

processo que ocorre na nossa própria compreensão. Já Schopenhauer, adepto da teoria do

contraste como Kant, crê que o cômico resulta da incongruência entre uma idéia e o objeto real

a que se pretende aplicar essa idéia. Por seu lado, outros teóricos sugerem o absurdo e a

incoerência como causas do cômico.

A procura pela essência do riso e do risível leva alguns historiadores, filósofos,

psicanalistas e profissionais de outras áreas à produção de literatura que faz acender a

discussão sobre o humor, escrita essa que evidencia certa desarticulação, mas também a valiosa

diversificação das definições clássicas que subsidiam o percurso do riso e do humor – este, às

vezes, como passageiro clandestino.

Portanto, considero essenciais para a compreensão do fenômeno do humor e do seu

efeito perlocucional “riso” os trabalhos de Henri Bergson (1987); George Minois (1998);

André Breton (1997); Elias Thomé Saliba (2002) e Sírio Possenti (1998, 2002), embora não

haja espaço neste texto para discuti-los exaustivamente. Partindo de perspectivas e dimensões

distintas, esses trabalhos enfocam o caráter sócio-histórico do humor, do cômico e do riso,

agilizando sua compreensão.

2. 4 Sofrendo do fígado e, com certeza, sabendo.

O historiador e filósofo francês Henri Bergson contribui efetivamente à pesquisa sobre

humor, com um dos mais conhecidos e citados textos sobre o riso: O Riso (1987) reúne três

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artigos de fundamental importância para a compreensão do humor. Nessa obra, Bergson afirma

que o humor é fenômeno exclusivamente humano, dirigido à inteligência, com o que discorda

Darwin46, segundo Alberti (2002). A historiadora conta que, ao tratar dos aspectos fisiológicos

do riso nos animais, Darwin pondera que “a expressão do riso ultrapassa o gênero humano e se

estenderia aos nossos ancestrais primitivos, os macacos” (ALBERTI, 2002, p. 182). Mas,

teriam nossos irmãos primatas inteligência suficiente para contornar o fato de que, se o humor

e o cômico são fenômenos dirigidos à inteligência, as emoções seriam empecilhos ao seu

desencadeamento? Por outro lado, Bergson (1987, p.19) afirma que uma “anestesia

momentânea do coração seria necessária para que o humor se instalasse e produzisse o efeito

riso”. Teriam nossos ancestrais tal estado de coração para rirem?

O foco do livro de Bergson (1987) é que o riso, e conseqüentemente o humor, tem uma

função social moralizante, a que conduziria ao aperfeiçoamento do Homem e, por essa razão,

seu meio é a sociedade. O filósofo francês considera o riso e o humor como desvios negativos

e, por isso, devem ter a tarefa de corrigir e de restabelecer a ordem social e da vida - função

corretiva do riso. Essas são as afirmativas que Alberti (2002) questiona, como afirmo

anteriormente, e o francês as confirma, quando explica que pesquisa “os procedimentos de

fabricação do cômico” e a intenção da sociedade quando ri, isto é, “a causa especial de

desarmonia que produz o efeito cômico” e conclui que “essa causa é atentatória à vida social”

(BERGSON, apud ALBERTI, 2002, p. 186). Com isso, ele retoma a questão do ridículo e a da

utilidade de sua aplicação, outra questão abordada cem anos antes por outros autores. Ele ainda

arremata, dizendo que “o riso deve preencher certas exigências da vida em comum, deve ter

um significado social” (BERGSON, 1987, p. 21); “o riso é um fato social passível de ser

isolado pela sociologia, que nasce como ciência” (ALBERTI, 2002, p. 186), assertiva com a

qual corrobora Saliba (2002, p. 22), ao lidar com o aspecto social do humor, como aponto mais

adiante.

Um dos méritos do trabalho de Bergson é a introdução da questão de que nem todo

absurdo é cômico; somente aquele que constitui uma inversão especial do bom senso é

realmente cômico, aquele que modela as coisas de acordo com a idéia e não o oposto. O

francês cita D. Quixote como exemplo de absurdidade que é cômica e eu completaria com

uma absurdidade que advém da contaminação do real pelo imaginário; afinal, “o homem é

este animal louco cuja loucura inventou a razão” como afirma Castoríades, citado por Morin

(2003, p. 54); assim, o louco de La Mancha, espírito obstinado e que não age conforme o bom

46 Alberti se refere ao fato de o biólogo inglês Charles Darwin, na obra Expressão das emoções no homem e nos animais, tentar descobrir se os macacos, a exemplo dos humanos, também vertem lágrimas quando riem.

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senso, que é a bondade em pessoa e que só vê o bem nas pessoas, faz seus compatriotas rirem.

Mas sua lógica é a dos sonhos, aquela que se alinha ao teorema de Bergson: “o absurdo

cômico é de mesma natureza que o dos sonhos” (ALBERTI, 2002, p. 190). E é essa

absurdidade cômica, marcadora da presença concomitante do homo sapiens e do homo

demens, e por que não do homo faber, de que trata Morin (2006), que leva Cervantes à Santa

Inquisição. À época. isso significa responder ao Santo Tribunal a contento, de acordo com os

postulados da Santa Madre Igreja, isto é, negar o homo demens para escapar da fogueira.

Outro aspecto interessante na obra do historiador francês é sua afirmativa de que o

escracho começa quando termina a comoção, pois há estados de alma que levam à comoção

tão logo os conhecemos: alegrias e tristezas com as quais simpatizamos, paixões e vícios que

provocam surpresas dolorosas, terror ou piedade. Quando a pessoa deixa de se comover por

seu próximo, só aí pode começar a comédia, aquilo que Bergson denomina “enrijecimento

para a vida social”. Tudo isso é sério, e às vezes trágico, e embasa a elucidação de alguns

conflitos entre as teorias de HV e de HN das quais trato no capítulo 3.

A teoria de Bergson (1987) baseia-se nos comportamentos inflexíveis, em contextos

impróprios, nos estereótipos rígidos, inadequados e nas compulsões. Para ele são objetos de

humor e riso: os vícios, a distração, os trocadilhos e os automatismos. Um aspecto que se

destaca em sua teoria é aquilo que ele denomina “le méchanique” versus “le vivant”, (o

mecânico versus o vivo), ou seja, uma situação engraçada surge toda vez que um elemento

humano atua como máquina, isto é, sempre que o “mecânico” se sobrepuser ao “vivo”, mas a

visão da comicidade estaria na fusão entre esse mecânico e esse vivo e o humor se fixaria no

contraste entre os elementos mecânicos e os elementos vivos. É o que se vê nas exibições dos

palhaços de circo, ou no humor atlético dos malabaristas.

Bergson destaca como tipos de humor, o “humor de situação”, o “de palavras“, o “das

formas e dos movimentos” e o “de caráter”. O humor de situação seria resultante [...] da repetição de um determinado acontecimento ou da inversão dos papéis dos personagens, diante de uma dada situação. Poderia, ainda, resultar daquilo que o historiador chama de “interferência das séries”, isto é, uma situação seria engraçada, se pertencesse a dois acontecimentos independentes e, se, simultaneamente, fosse interpretada com dois sentidos. (BERGSON, 1987, p.74).

Será que posso perceber coincidência entre as idéias nos trabalhos de Raskin e Attardo

(1985, 1991, 1994), que desenvolvem trabalhos sobre teoria baseada na incongruência de dois

scripts que se justapõem e a de Veatch (1998) que tem como critérios de construção a

violação, normalidade e simultaneidade?

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O “humor de palavras” seria originado da aplicação dos processos de “repetição”,

“inversão” e “interferência” à linguagem e poderia incluir, ainda, a “transposição”, como na

paródia, por exemplo, na qual se faz a transposição de um evento solene para um familiar. Por

outro lado, o exagero, produto do processo de transposição da grandeza ou do valor dos

objetos, também poderia fazer parte desse tipo de humor. O “humor das formas” resultaria,

essencialmente, da rigidez da fisionomia, e o “humor dos movimentos” teria origem nas

atitudes, nos gestos ou movimentos mecânicos desempenhados repetitivamente. Bergson

acrescenta os artifícios da comédia a esse tipo de humor, dando como exemplos “a repetição

periódica de uma palavra ou de uma cena, a intervenção simétrica dos papéis, o

desenvolvimento geométrico dos qüiproquós” (BERGSON, 1987, p. 37). O filósofo considera

a linguagem uma obra humana, sendo essa a razão pela qual ela pode produzir efeitos risíveis.

Por fim, o “humor de caráter” seria derivado essencialmente de dois aspectos: ou da

marginalização social do personagem, ou da distração do próprio personagem, tipo de humor

muito usado em comédias de costumes, como na Commedia del´ Arte.

Bergson trata o humor como trote social que embute o sentido de humilhar, quando

alguém arroga a si certa superioridade. Daí, ele considerar a comédia o gênero mais próximo

da vida e não o drama. No Brasil, estaríamos sempre mais para Tiririca, Tom Cavalcanti ou

Adamastor Pitaco, do que para Shakespeare, embora os sérios reivindiquem as dores do

mundo como marketing para o engrandecimento de espírito. Dos trechos nos quais ele retoma

essa questão da “superioridade” do riso, Bergson deduz que o homem ri para corrigir a

rigidez, não por superioridade, ou orgulho. É a esta altura que se percebe que a causa do riso

do homem se desloca; não se posta mais nele, mas na sociedade.

As questões da superioridade e da não-aceitação do humor já são tratadas em teorias

anteriores que primeiramente definem a aceitação como princípio básico para o cômico e o

humor. Também, antes de Bergson, outros mestres, como Platão, Hobbes e Baudelaire já

falam de uma teoria do humor que passeia pela “superioridade”, ou seja, a atitude de

ridicularizar os outros ou rir de alguém com ar superior. Baudelaire alhures, no entanto,

aponta que ser superior é sentir o deleite, o prazer, o encanto do homem frente também ao

grotesco, à decadência da humanidade, à ignorância e à miséria, ou seja, o humor seria

resultante de um erro ou desvio olhado com ares superiores por quem se considerasse

superior, mas não especificamente com o intuito de humilhar o outro. Teriam essas idéias

raízes no riso de Demócrito? De qualquer modo, já se tem aqui uma idéia de distanciamento,

condição imposta por alguns autores para que haja humor e para que se ria, pois, olhar com

ares superiores remete a uma forma de afastamento.

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A publicação do livro de Bergson em 1900 ocorre em meio à invenção do

cinematógrafo, 1895, pelos irmãos Lumière47 que juntamente com George Meliès criam o

cinema. O cinema permite a experiência coletiva do tempo como simultaneidade. Por isso,

Bergson abraça a idéia da ruptura com o tempo cronológico e o mergulho no tempo

psicológico, na duração do tempo (SALIBA, 2002), porque a elaboração do cômico emerge

da superposição e da inversão das dimensões têmporo-espaciais. Essa é, a meu ver, uma das

grandes contribuições de Bergson para os estudos do humor e do riso, já que o tempo, como

entidade, não existe.

Outra contribuição do historiador é a observação sobre o ser humano:

equivocadamente, este concentra sua atenção nos aspectos físicos da metáfora do humor. Para

mim, isso seria afirmar que o humor estaria sendo lido como resultante da interpretação literal

das metáforas, se é que essa literalidade existe, e se lembrarmos Morin (2006, p. 92), quando

diz: “a metáfora fornece previsões que a língua puramente objetiva ou denotativa não pode

fornecer”. Por isso, a afirmativa de Bergson é pertinente, visto que a observação apenas do

lado físico da metáfora não se enquadraria em teorias posteriores que apregoariam não existir

dicotomia, mas um elo indissolúvel, entre forma e significado, embora essa não seja ainda

uma questão tão pacífica.

Como aponto anteriormente, Bergson enfoca a função social do riso e a essência do

risível para ele estaria na sociedade e não na natureza humana. Sírio Possenti desconfia dessa

função social precípua do humor e rebate, dizendo que ela se qualifica como mais um “lugar

comum dos mais comuns sobre as piadas” (POSSENTI, 2002, p. 41), não a considerando

como elemento fundamental do processo de construção dos mecanismos do humor e, por isso,

esse gênero não deve ser avaliado especificamente, ou somente, sobre esse prisma. Ele diz: Se é verdade que existem piadas que criticam, não se deve esquecer que elas, de fato, reproduzem, e só indiretamente, discursos que circulam de alguma forma. [...] o que é novo nas piadas é certamente sua forma - por isso, uma boa piada, como um bom poema, não pode ser medida por seu efeito social, crítico, por sua colaboração para a queda de um poderoso. (POSSENTI, 2002, p. 49, grifo nosso).

A função social e de crítica nem sempre são obrigatórias, é o que ele quer dizer, creio.

Outros teóricos, por outro lado, consideram que é só porque o cômico pode assumir uma

dimensão social é que, aliado à sátira, ele pode cumprir uma função didática associada não só à

47 Louis e Auguste Lumière. O cinematógrafo teria sido inventado, na verdade, por Léon Bouly em 1892 que teria perdido sua patente, registrada novamente pelos irmãos Lumière em 1895.

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correção dos costumes, mas à diversão. Essa seria, também, uma função moralizadora do

cômico, que deixa marcas fortes na literatura do humor e diferencia as abordagens de algumas

obras. Bergson atrela ao texto de humor as funções social e didática, destinadas a instruir e

alertar a sociedade em relação aos eventos e a moralizar os costumes e, talvez, corrigir. Disso

discordaria André Breton frontalmente, porque afirma que “o humor [negro] não pode ser

explicado e não se presta a fins didáticos” (BRETON, 1997, p. xiv). É meu ponto de vista, por

razões pragmático-empíricas, que o autor do texto de humor pode até não ter a intenção

primária de crítica social, mas ele não pode impedir que o personagem-enunciatário e o

ouvinte/leitor leiam essa crítica em seu discurso, correções e moralizações à parte.

Saliba (2002), por sua vez, é bastante elucidativo no tocante a essa função social: o

humor pode ser fonte de prazer, aprendizagem, além de veicular a crítica social. O historiador

confirma sua posição, ao comentar sobre o trabalho do jornalista Hypólito da Silva. Diz

Saliba que

[...] o mais interessante na esquecida produção de Hypólito da Silva é que sua verve cômica, exposta nos momentos de engajamento por uma causa, resvalava para além da polarização social entre senhor e escravo, - por referências desmistificadoras dos mais diversos interesses sociais. (SALIBA, 2002, p. 59).

Numa flagrante demonstração da função social dos textos jornalísticos de humor do

Brasil da Belle Époque, dado seu caráter de ataque ferrenho às instituições e às figuras

políticas do final do século XIX e início do XX, Saliba complementa:

[...] o mais interessante nessa produção é que, embora a chacota seja dirigida contra algo ou alguém, há sempre alguns momentos nos quais seus autores parecem perder o controle - momentos em que é possível desnudar ou desmistificar, para além dos meros objetos da sátira ou da derrisão, alguns aspectos ou elementos coletivos ou sociais. (SALIBA, 2002, p. 57, grifo nosso).

Tudo isso sedimentado pelo fato de que os jornalistas da Belle Époque têm em mente

fustigar explicitamente a monarquia, já eles estão engajados nas causas republicana e

abolicionista. Em síntese, para Bergson (1987) a função social remete à correção da

sociedade, para Possenti (2002) e Saliba (2002) a função seria a da crítica social, sem intenção

de corrigir, punir ou restabelecer a ordem moral e social. A meu ver, uma análise associada a

esse ângulo didático poderia se estender à escola, com os objetivos de provocar o indivíduo a

se posicionar diante dos fatos e da vida e de suscitar questionamentos outros, para além dos

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mencionados na introdução deste trabalho. Isso seria direcionar os cidadãos para a

transformação, nos moldes dos trabalhos de Foucault, Pêcheux e Fairclough, mediante uma

prática discursiva que não se limite a levar o indivíduo a se conscientizar da importância de

seu papel sócio-histórico, mas a se transformar para atuar na sociedade, até como agente

multiplicador. No entanto, algures, alguém afirma que não basta transformar o indivíduo, mas

o grupo, a rede, social como um todo. Solução ou impasse? Assunto para discussão em classe?

2.5 Minois, O Riso e o Escárnio do professor-historiador.

Como mencionado, Aristóteles afirma na Antigüidade que o ser humano tem duas

características que o diferenciam dos outros animais: “é o único que sabe que vai morrer e que

ri”. Esse riso não existiria exatamente para consolar o homem dessa amarga tristeza? Essa

indagação filosófica e perspicaz de George Minois (1998) é apenas uma, entre outras tantas,

importantes questões sobre o humor e o riso apontadas em seu livro. Observo, de antemão,

que Minois atrela o humor ao riso, ou melhor, atribui ao riso certa parceria com o humor.

Em seu livro A História do Riso e do Escárnio (1998), Minois refaz a trajetória do

humor, veiculando-a ao modo como o ser humano utiliza o humor e o riso ao longo da

História. Para o historiador francês, o humor e o riso são fenômenos que ajudam a esclarecer a

história da humanidade, além de dar respostas fundamentais sobre o homem, diante do dilema

da existência e da morte. Sua narrativa mostra que a exaltação ou a execração do humor

revelam o zeitgeist, as visões de mundo que constituem, sem dúvida, contribuições notáveis

para esclarecer a própria evolução humana.

A narrativa de a História do Riso divide-se em três partes: o riso divino, o riso

diabólico e o riso humano. A primeira remete à Antigüidade clássica em que o riso contempla

a liberdade suprema dos deuses, já que é propriedade deles, ficando esse riso negado ao povo;

a segunda parte explica o riso da Idade Média, proibido pela Igreja, por ele ser obra do diabo;

a terceira trata do riso do homem, sendo esse, no meu ponto de vista, um dos efeitos

perlocucionais do humor, um dos modos como o ser humano vê o mundo e enfrenta o fato de

que a morte é iminente.

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Comento a seguir, brevemente, os capítulos do livro de Minois para evidenciar o

significado e a contribuição da obra do francês para minha pesquisa, ciente de que os títulos48

dos quinze capítulos de seu livro já falariam por si.

O livro começa delineando o mistério do riso dos gregos antigos nos mitos e o contato

perigoso com o divino, este o próprio mito, e os termos riso e morte. Observo, novamente,

que o autor trata o humor e o riso como parceiros (quase) inseparáveis. Descreve o riso das

festas e retorna ao caos e à recriação. Narra o riso de Dioniso e a festa dionisíaca, transita pela

comédia, comenta a obra de Aristófanes. Finalmente, aborda o riso arcaico dos

contemporâneos de Homero, riso que oscila entre agressão e triunfo.

Minois (1998) descreve desde aspectos diversos do humor e da ironia de Sócrates,

legítimo introdutor do conceito de ironia, “o primeiro a introduzir a ironia no mundo” 49

(KIERKEGAARD, 2005, p. 19), até a zombaria de Luciano50. Nesse trajeto, distanciada da

ironia socratiana, é introduzida a ironia como obra do demônio; estaria aí a primeira desforra

do diabo? Trata dos agelastas51, dos escritos do período de Pitágoras a Platão, de Aristóteles e

do homem comum, e depois descreve o risus, satírico e grotesco. Descreve o adoçamento do

riso, dos bufões, das blagues, do riso cético de Demócrito52, “o homem que ri”. 53 Trata ainda

do riso cínico e insano de Diógenes, desbocado e impudico, misto de homo sapiens e demens,

mas, também, bastante faber.

Aborda a seguir o humor na Roma antiga, do homem rude do campo, dos tipos

variados de sátiras, expressão do gênio romano, da política e da capacidade de autoderrisão.

Traça um perfil do lado negro do riso romano: o grotesco (base para o HN, para o mau humor

ou para o mal do humor?) e também o riso festivo das saturnais54 e das lupercais55.

48 1. O riso inatingível dos deuses; 2. A humanização do riso pelos filósofos gregos; 3. O riso unificado dos latinos; 4. Diabolização do riso na Alta Idade Média; 5. O riso unânime da festa medieval; 6. Rir e fazer, Rir na Idade Média; 7. O riso e o medo na Baixa Idade Média; 8. A gargalhada ensurdecedora do Renascimento; 9. Acabou o riso amargo do burlesco; 10. Do riso polido à zombaria; 11. O riso e os ídolos no século XIX; 12. Filosofia do riso e riso filosófico; 13. O século XX; 14. Morrer de rir; 15. O século XX, morte do riso. 49 Dissertação de mestrado na qual apresenta quinze teses sobre a ironia de Sócrates, defendidas na Faculdade de Filosofia de Copenhagen, Dinamarca, em 1841. 50 Luciano de Samósata (125-190 d.C.), historiador e filósofo. Escreve Como escrever história, único tratado da Antigüidade sobre historiografia que chegou até nós. Em seus escritos ele pretende servir ao leitor "riso sob filosofia", ou seja, a sátira a serviço da atitude filosófica, na linha do antigo cinismo. 51 Neologismo criado por Rabelais para designar as pessoas que não riem. Porque não riem, Rabelais as considerava perigosas. 52 Filósofo pré-socrático, c. 460-352 a.C., considerado louco por seus conterrâneos por rir de quase tudo. Mas por essa mesma loucura é considerado por Hipócrates como um homem sábio, que a todos deveria ensinar. 53 Em aposição a Heráclito (c. 540-470 a.C.), “o filósofo que chora”, sempre triste devido à condição do homem. 54 As Saturnais eram importantes festividades romanas que também se denominam "festa dos escravos", já que nelas os escravos recebiam comida extra, tempo livre e outos benefícios. Ocorriam no início do ano, duravam sete dias de diversão bélica, banquetes e troca de roupas, e eram realizadas em homenagem ao deus da agricultura, Saturno.

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Finalmente, trata do riso catártico da comédia, da decadência romana e do declínio do riso, até

seu quase “desaparecimento”, com o início da Idade Média.

Minois chega à Idade Média narrando o processo de diabolização do riso pelas

autoridades eclesiásticas. Ressalta a figura do teólogo cristão João Crisóstomo56 que convida

o homem para um novo combate contra o riso e até o proíbe; ele pondera que o riso tem muito

do inferno e do demo e que é louvável mortificar-se e entristecer-se, ao invés de se alegrar e

rir. “As lágrimas da compunção constituem imitação do Cristo, o qual muitas vezes os

evangelistas mostram chorando; nunca comentam, porém, não somente sobre o riso, mas nem

sobre um tranqüilo sorriso dele” 57. A alegria torna-se crime; é a Igreja Católica opondo-se à

visão otimista e alegre da vida, ao pregar a seriedade e a gravidade. Burlada estas normas, diz

o clero, sua alma pode ser condenada ao inferno governado pelo diabo, o anticristo, aquele

que ri e zomba do mundo e de todos. Por essas razões, a zombaria e o escárnio são

substantivos tolerados apenas em festas pagãs, como o carnaval, por exemplo. Baseado na

afirmativa da época de que Jesus jamais rira, o autor mostra a evolução do cômico bíblico,

levantando satiricamente a questão: Jesus (não) riu (mesmo?).

Minois retrata o riso agressivo das alegres sociedades e o riso da loucura negativa ao

da positiva de Erasmo58, descreve a festa sob vigilância na qual há o controle do riso e a

presença de um litígio entre o riso sagrado/cristão e o profano/pagão. “Há um tempo para rir,

um tempo para chorar”, diz a Bíblia. Minois conta que o riso é tratado como conseqüência do

pecado original. Será que isso quer dizer que, além de ter comido a maçã e ser punido por

Deus, Adão ainda teria rido? Se sim, daí o riso ter sido conseqüência do primeiro pecado - só

pode ser isso. O francês conta como o riso e o humor são banidos dos mosteiros e como sua

proibição leva os indivíduos a rirem sozinhos, às escondidas. Aí, só há tempo para chorar.

Fala da diabolização da mulher, dos horrores das perseguições da Inquisição às bruxas e aos

feiticeiros e dos castigos por ela impostos aos transgressores. Haja fogueira!

Ao tratar do riso medieval Minois retoma o carnaval, questionando seu caráter cristão

ou pagão. Explica o “charivari” 59 , ou seja, o riso de defesa dos costumes. Fala da festa dos

55 Festas que eram celebradas em Roma em honra de Pã, destruidor dos lobos, ou em memória da loba que alimentou Rômulo e Remo. Era costume sacrificar duas cabras e um cão, de cujas peles faziam-se chicotes. Nessas ocasiões muitos rapazes, nus até a cintura, corriam as ruas de Roma brandindo os chicotes e batendo em todos quanto encontrassem. (WIKIPEDIA, 2006). 56 Nascido na Antioquia, (347 - 407), teólogo e escritor cristão, Patriarca de Constantinopla no fim do século IV e início do V. 57 WIKEPÉDIA, a enciclopédia livre. Palavras de João Crisóstomo, 2004. 58 Erasmo de Rotterdam (1467 - 1536) - humanista e teólogo holandês, autor de O Elogio da Loucura. 59 Serenata e desfiles jocosos, festa que atuava como forma de protesto contra os chamados casamentos socialmente inaceitáveis, como os das viúvas que ainda não tinham completado o período estipulado para o luto, noivas grávidas, rapazes jovens que se envolviam com viúvas etc.

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bobos da corte e dos príncipes e reis tolos que precisam de um sátiro inteligente a lhes soprar

insensatez nos ouvidos. Fala da autoderrisão clerical e da “Festa do Asno” do século XV,

teatro mascarado que ridiculariza o clero e no qual também a crítica política e social é feita

publicamente através de farsas e pantomimas, em que se usam máscaras e disfarces que

caricaturam o poder local. É o riso dos mais fracos socialmente que só a repetida condenação

dos concílios consegue suprimir. Nesse contexto, narra o riso das cidades, dos campos e do

castelo medieval.

Aborda a amoralidade do riso das fábulas, o riso individualista da farsa, o riso do

mundo cortesão, o riso diabólico e maquiavélico de Merlin, mágico do rei Arthur. Descreve

ainda o riso satírico dos moralistas e o conservador dos pregadores, o riso impertinente dos

clérigos, o riso racional do bobo da corte, o bom e o mau riso do teólogo e o não-riso dos

agelastas medievais.

Prosseguindo em sua narrativa, Minois mergulha nos escritos de Rabelais. Comenta

sobre o mundo da comédia rabelaisiana e de suas ambigüidades, fala de um riso criador e de

um riso destruidor, mas demonstra que Rabelais vê o riso como o melhor que há no ser

humano. Descreve da vertigem rabelaisiana ao riso trágico de Agrippa d’Aubigné60 e ao

sucesso do bobo do rei (com o perdão da pobre ambigüidade.). Trata da natureza humana que

considera o riso como arma ofensiva. Aponta o nascimento da caricatura, das variações

nacionais do riso e o advento do humor. Cita as várias coleções de histórias engraçadas sobre o

riso dos cortesãos. Chega a Shakespeare, mestre maior da tragédia, da comédia, da

tragicomédia, da ironia e de seus jogos com as paixões humanas.

O historiador francês retoma a grande ofensiva político-religiosa do sério entre os

séculos XVI e XVIII para explicar o protesto contra o carnaval e a carnavalização e contra

aqueles denominados risonhos, que seriam loucos e que, por isso, deveriam estar no hospício.

Com a expressão fim de festa Minois refere-se ao desaparecimento da festa dos bobos da corte

e à extinção da figura do bobo do rei; comenta sobre Jean-Baptiste Thiers61, testemunha

ocular e autoral da repressão do riso. Descreve as incursões dos autores espirituais e

pregadores contra o riso. Comenta sobre Heráclito, “o filósofo que chora”, entristecido pela

condição vã e ridícula do homem, e se opõe ao riso que condena. Narra sobre a função moral

60 Théodore Agrippa d'Aubigné (1552-1630). Companheiro de guerra de Henrique IV, calvinista convicto, historiador, autor de Tragiques. 61 Doutor em teologia, autor do livro que sintetiza as proibições da Igreja em relação ao riso. É o Tratado dos jogos e diversões que podem ser permitidos ou que devem ser proibidos aos cristãos segundo as regras da Igreja e o sentimento dos pais, de 1686.

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do riso. Chega a Hobbes e à defesa da suprema cordialidade, violada não como degradação do

outro, mas por pura diversão. Agora, então, descreve a recomendação à valorização do riso,

mas não com ufanismo extremado. É o riso como orgulho dos fracos e a superioridade

daquele que ri.

Merece destaque especial na obra de Minois o interessante relato sobre os índios

brasileiros no século XVI feito pelo calvinista Jean de Léry, que ao Rio de Janeiro para se

instalar numa pequena comunidade francesa, fundada na cidade conhecida como França

Antártica, conforme relato de Sá (2003). Léry observa curioso, e atentamente, o

comportamento dos índios do Brasil e ao regressar à França, em 1578, escreve o livro

História de uma Viagem Feita ao Brasil, no qual se confessa surpreso diante do riso

permanente dos índios brasileiros. “É um povo que foge da melancolia”, diz. “Eles detestam

os taciturnos, mesquinhos e melancólicos”. Segundo o calvinista, os índios riem do trejeito

fidalgo dos europeus, de suas mesuras e pompa, da moda européia, dos trajes ridículos e

coloridos dos homens, dos enfeites em suas vestes e penachos em suas cabeças. Aliás, os

índios riem de quase tudo, inclusive fazem galhofa com seus próprios hábitos alimentares.

(LÉRY apud MINOIS, 1998). Certa ocasião, Léry chega a pensar que seria o prato principal

do cardápio dos silvícolas canibais. Que alívio, apenas mero susto. Aí, os índios riem dele às

bandeiras despregadas. Léry é europeu e veste esquisito, mas tem um medo mais escancarado

do que a gargalhada dos selvagens. E num é que os silvícolas do Brasil fizeram humor negro

com o francês?

Minois conta que agora o humor é tratado como vacina contra o desespero, e que é

recomendável viver e morrer zombando. Fala de um Regimento da Calotte: uma

“comicocracia” contra o absolutismo (1702-1752); trata da zombaria de salão, de

Shaftesbury62, de seu humor contra o fanatismo e de sua liberdade no emprego do “ridículo”,

condicionada pela liberdade da nação, da vida pública e do que pode ser ridicularizado.

Minois trata ainda do riso popular visto pelos pintores, talvez um álibi da burguesia, e do riso

das festas populares a que ele denomina “contestador”.

Minois relata o escárnio nas polêmicas políticas, sociais e religiosas, dos aristocratas,

do partido do riso (1789-1790) e da tática do riso parlamentar na Constituinte francesa, da

caricatura como instrumento do riso revolucionário e da mascarada revolucionária, ou o riso

“ameaçador”. Discorre sobre a festa oficial: o riso seria o ópio do povo? Fala da sátira

política, da ironia e da mistificação, das variedades da sátira social européia, do suposto

62 Anthony Ashley Cooper, terceiro conde de Shaftesbury (ASHLEY apud ALBERTI, 2002, p. 133)

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humor francês e do riso gaulês bebum. Ao narrar sobre os humores e risos internacionais, cita

as obras de Oscar Wilde e Mark Twain como marcos da luta em favor da liberdade do riso.

Retrata a Igreja do século XIX e seu posicionamento ainda contra o riso: “Vamos matá-los

pelo riso” (no meu entender enunciado ambíguo) e propõe a derrisão anticlerical e anti-

religiosa.

Ainda no século XIX, Minois retrata os debates sobre o riso que abordam as situações

que vão do grotesco ao absurdo. O historiador volta a Hegel e à seriedade dialética, à obra de

Kierkegaard e o riso do desespero e, naturalmente, a Nietzsche e ao riso do super-homem.

Descreve o trabalho de Bergson e sua mecânica social do riso; fala de Freud e do riso como

economia de energia e como transgressão, do humor como desafio, do “riso assassino” de

Jean-Paul, do riso cavalo de Tróia do inferno e da desforra do diabo; cita Baudelaire: o riso é

satânico, logo humano, obra do século XIX que retrata o riso diabólico e despreza a aura dos

artistas e de Deus. Rir dos pobres também era um pendor deste “maldito francês”.

Minois completa o século com o riso antiburguês de Hugo e de O Homem que Ri63, os

risos de fim-de-século e o do começo do século XX, dos zutistas64 e dos fumistas. Tudo muito

bem descrito, com riqueza de detalhes e dados histórico-sociais preciosos que propiciam

leitura prazerosa, além de fazer um panorama valioso sobre a história do riso e da evolução

humana.

É opinião do historiador que o riso no século XX perde sua força. Ele discute as festas

tecno para estabelecer uma diferença entre as folias modernas e os festivais antigos e o riso:

agora, o homem é apenas mais um indivíduo perdido no grupo e o riso perdido nas festas, ao

contrário do passado, quando a festa é associada ao riso, este possível em razão do seu caráter

coletivo e excepcional (carnaval, saturnais, lupercais), que permite estabelecer deslocamento e

divertimento. Isso tudo corrobora o que diria Gilles Lipovetski citado por Sá, posteriormente: um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem, apareceu. Ele caracteriza o humor da moda, do texto jornalístico, dos jogos radiofônicos e televisivos, do bar... Não há mais festa do espírito no riso, a esculhambação dionisíaca deu lugar ao “cool”. (LIPOVETSKI apud SA, 2003, p.1).

Minois descreve agora o humor e o riso das catástrofes, da era da derrisão universal,

detalha Dada65, mostrando como esse movimento procura chocar um público mais ligado a

63 Romance no qual o personagem Gwynplaine é seqüestrado quando garoto e, por ordem do rei, desfigurado, o que o deixa com o rosto esculpido num perpétuo sorriso macabro que incomoda. Vira atração de circo e torna-se um famoso palhaço. 64 Grupo de escritores que se reuniam no Café Chat Noir e que usavam a expressão-saudação Zut! 65 Forma contraída de Dadaísmo, movimento criado por um grupo de artistas, em 1915, chefiados por Tristan Tzara, poeta judeu francês, que se reunia em cafés em Zurich. Caracterizou-se por negar todas as tradições

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valores tradicionais e libertar a imaginação via destruição das noções artísticas convencionais.

Seu pessimismo é atribuído a uma reação de desilusão causada pela Primeira Guerra Mundial.

Discorre também o surrealismo emergente e o humor que a todos e a tudo serve,

transformando-se, por isso, numa demanda social.

Minois chega, então, a André Breton e Jacques Vaché, este define que o humor negro

é uma “revolta superior da mente”66 (BRETON, 1997). Trata da universalidade do riso, sob o

ponto de vista dos antropólogos, do humor como polidez do desespero e da necessidade da

ironia no mundo contemporâneo. Teria ele lido a tese XV de Kierkegaard (2005, p. 19) e seu

posicionamento sobre a ironia, quando diz: “como toda filosofia inicia pela dúvida, assim

também inicia pela ironia toda vida que se chamará digna do homem”?

O francês retoma a questão da possibilidade de reconciliação entre o riso e a religião, e

até mesmo, quem sabe, da criação de uma fé humorística. E, destacando, ainda, a importância

de André Breton, descreve o profano e o sagrado, os tabus, o erotismo e a repressão sexual,

temas constantes na pintura surrealista de Dali e na obra de Freud. Descreve o reflexo de todo

esse momento nas artes cênicas, no teatro e no cinema, o riso e toda a arte moderna de

representação.

Finalizando a trajetória histórica de seu livro, Minois discorre a desforra do diabo, a

diversificação da sátira política em que os próprios políticos asseguram sua promoção pelo

riso, ao participarem de uma “política-espetáculo”. Nesse caso, o político é o “palhaço”, isto

é, o político que está sendo alvo de zombaria desempenha esse papel, neutralizando a força

desse instrumento. “Diante de uma sociedade humorística, os políticos cultivam a imagem de

humorista; o riso político não provoca mais a subversão do sistema”. O humorista-político-

palhaço de hoje “não ameaça os políticos do momento, e estes evitam puni-lo.” Ele desfecha:

“a propagação excessiva da zombaria política tornou-a banal, ou seja, destituiu-a da função de

denúncia”. Além disso, a figura do político palhaço e a ausência de punição do humorista-

político funcionam como meio de neutralizar as críticas a eles feitas.

Minois descreve ainda o riso e a festa contemporâneos, antevendo seu divórcio.

Aborda os estudos de Konrad Lorenz67 sobre o riso como agressão ritualizada e comenta

sociais e artísticas; tinha como base um anarquismo niilista e o slogan (de Bakunin): "a destruição também é criação". O movimento era contrário à burguesia e ao naturalismo, identificado como "a penetração psicológica dos motivos do burguês" e os artistas buscavam a destruição da arte acadêmica e tinham grande admiração pela arte abstrata. O acaso era extremamente valorizado pelos dadaístas, bem como o absurdo. Tinham tendências claramente anti-racionais e irônicas. O objetivo máximo do grupo era o escândalo. O movimento durou apenas o período entre as duas Grandes Guerras. 66 A superior revolt of mind (BRETON, 1997). 67 Zoólogo austríaco que dividiu o prêmio Nobel de Medicina com outros dois cientistas, em 1973. Estudou o fenômeno da agressão nos amimais e nos humanos.

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sobre a banalização e a midiatização do riso na sociedade humorística. Finalmente, levanta a

questão: chegamos ao fim do riso?

Resumindo, até aqui, o humor surge como líquido, e o riso como paixão (pathós), na

Antiguidade; na Idade Média o riso é crime e, por isso, “desaparece” 68 e, a partir do

Renascimento, com o abalo das crenças, ele reaparece para colocar em questão a religião no

século XVIII, o regime monarquista no século XIX e o autoritarismo no século XX. Como

negar sua função social ou de denúncia? Qual seria sua função no terceiro milênio?

Em pleno século XXI, sob a égide do capitalismo globalizado, o ser humano,

infelizmente, domestica o poder derrisório do riso. No atual mundo do politicamente correto,

o componente agressivo do humor e do riso fica desvitalizado. O político “palhaço” está mais

presente do que nunca e seus substitutos estão à espreita. Embora pareça estar por toda parte,

na publicidade, na televisão, nos jornais, na internet, nas artes e nas transmissões esportivas,

mais do que nunca o humor não passa de uma máscara para esconder a profunda agonia do

existir e da certeza inconteste da morte. Assim falou Minois, e a História, o humor e o riso

explicam a evolução humana. E se Minois e eu derrapamos em algum detalhe sobre a história

do humor e do riso, merecemos perdão; afinal, quem disse que a história, sobretudo a das

mentalidades, é uma ciência exata?

2.6 Breton, a Luz da Terra do Humor Negro

Fundador do surrealismo - juntamente com Philippe Soupault e Louis Aragon, após

um encontro em Nantes em 1916 - e teórico mais importante desse movimento, Breton69 é

considerado pelos europeus como uma das mais importantes figuras literárias do século XX.

Seus trabalhos mais conhecidos incluem Nadja, Amor louco, os dois Manifestos do

Surrealismo, Os campos magnéticos (este em co-autoria de Philippe Soupault), Luz da Terra

e Antologia do Humor Negro, este, segundo Breton, base para as idéias surrealistas.

68 O termo é aqui usado com o sentido de que fica proibida por lei a manifestação pública individual ou coletiva, por ser o riso considerado diabólico, uma forma de loucura que poderia levar os risonhos à morte pela fogueira. O riso fica fadado à clandestinidade, o que não deve levar à conclusão de que não tenha havido produção humorística ou apresentações públicas de peças, porque, segundo alguns autores, houve. 69 André Breton (1896-1966), poeta e ensaísta francês, membro mais importante do movimento surrealista.

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Os surrealistas crêem que podem ir além, projetando-se na vida e na sociedade, para

transformá-la. Sua filosofia rechaça discussões puramente formais no campo da estética. O

Surrealismo é visto como “automatismo psíquico puro”, através do qual uma tentativa é feita

para expressar, verbalmente, por via da escrita ou de qualquer outra modalidade, o verdadeiro

funcionamento do pensamento. Prega a “ditadura do pensamento, na ausência total do

controle pela razão, excluída qualquer preocupação estética ou moral” (BRETON, 1997). E,

em que pesem as críticas ao movimento, é inegável sua importância, por deixar como herança

uma maciça produção e um inestimável e diversificado acervo de obras literárias, visuais e

cênicas.

Em seu Segundo Manifesto, Breton afirma que os surrealistas lutam para atingir o

"point de l'esprit”, já que “tudo leva a crer que existe certo ponto de espírito no qual a vida e a

morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o

baixo não mais serão vistos como contradições”. Seria, a meu ver, em vão que se procurasse

dar à atividade surrealista um outro móvel que não fosse a esperança de determinação desse

ponto. Essas, também, seriam bases para a aceitação do HN.

O HN, um dos conceitos viscerais das atividades surrealistas, é cunhado e definido70

por Jacques Vaché71 e transcrito na Antologia de Humor Negro72 que Breton organiza. Ela

inclui trabalhos de quarenta e cinco autores, para os quais o poeta francês escreve um prefácio

biográfico e crítico, situando-os no surrealismo e no contexto do HN. Alguns dos

colaboradores são bastante conhecidos e entre eles encontram-se aqueles a quem ele mais

admira como Swift73, para Breton o primeiro humorista negro (mas de raça branca), Vaché,

Sade, Kafka, Rimbaud, Jarry, Poe, Carroll, Duchamp, Gide, Nietizche, Rimbaud, Picasso,

Dali, Baudelaire, este último, para Breton, o mais importante representante do HN. Alguns

dos autores são (por mim) desconhecidos até então, como Christian Dietrich Grabbe, Petros

Borel, Jakob van Hoddis, Jean-Pierre Duprey e Eleonora Carrington, uma das duas vozes

femininas na Antologia, que comparece com o surpreendente conto “A debutante” 74, também

conhecido como “A hiena vai à festa”. (BRETON, 1997, p. 337-340).

Após problemas com a publicação e recusa do comitê de censura da guerra em aprová-

la, a Antologia foi liberada em 1945, com grande sigilo e colocada à venda aos poucos, 70 A superior revolt of mind. (BRETON, 1997, p. xvi). 71 Vaché, amigo íntimo de Breton e um dos colaboradores da Antologia de Humor Negro. Conheceu Breton durante a Primeira Guerra Mundial. 72 Anthology of black humor, 1997. 73 Jonathan Swift, um dos 45 colaboradores da Antologia. Considerado por Breton como o verdadeiro introdutor do humor negro, é o criador do conceito de humor negro europeu, no começo do século XVIII. 74 The Debutante.

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levando anos para chamar a atenção dos leitores. Uma nova edição é traduzida para o inglês

por Mark Polizzotti e publicada em 1997; é a que utilizo.

No prefácio da Antologia, Breton (1997) escreve que o “humor negro é o oposto da

jovialidade, da alegria ou do sarcasmo; é uma reviravolta sempre absurda do espírito,

parcialmente macabra e parcialmente irônica e inimiga mortal do sentimentalismo [...]”75

(BRETON, 1997, p.vi). O poeta francês explica a natureza do HN, sempre rebelde e contrária

ao senso comum e estabelece a filosofia que molda esse subgênero do humor. Aponta

elementos vitais que permanecem como fundamentos para a construção e a compreensão de

textos de HN, como o imprevisto/previsto, as contradições dilacerantes, analogias/ e

correspondências, atração pelo mal, incompatibilidade que permeia essa atração, dramas

íntimos, amor sublime/degradação, o ser humano degradado/o sujeito criador; satanismo

romântico (mas sempre sob nova dimensão), transgressão como opção e escândalo como

conseqüência, causa-efeito, desafio ao religioso, à literatura vigente e ao socialmente correto,

queda do homem e do demônio; unidade autor-obra, dissipação e trabalho intelectual,

subversão dos parâmetros do gosto, elogio à imaginação, irrupção do maravilhoso, o

maravilhoso contra o mistério e o contraponto ao realismo fantástico (mágico) e ironia, tudo

isso presente, vivo, voraz e materializado por via da linguagem.

Vale destacar o prefácio destinado a apresentar Baudelaire76 no qual Breton (1997, p.

99) afirma que algumas produções daquele poeta revelam que “o humor negro é uma parte da

essência orgânica de Baudelaire”. Considerado por Breton como o representante legítimo do

HN, no todo de sua obra, Baudelaire (1955) evidencia sempre uma preocupação por manter o

ethos filosófico-religioso, assim como uma reflexão persistente sobre a dualidade do homem,

tema que outros autores na Antologia abordam, mesmo que sub-repticiamente. Baudelaire

advoga ter o ser humano duas postulações simultâneas: uma em direção a Deus, outra em

direção do Diabo, dualidade que o leva a atender a dois Senhores. Não seriam eles o homo

sapiens e o homo demens de Cervantes77, Morin (2006) e Demócrito? A loucura que sustenta

a expressão servir a dois senhores, talvez explique parte do efeito perlocucional sorriso

provocado por alguns textos da Antologia a qual retomo no capítulo 4, quando trato

especificamente do humor negro verbal brasileiro.

75 “[…] black humor is the opposite of joy, wit and sarcasm. It is a partly macabre, partly ironic, often absurd turn of spirit that constitutes the mortal enemy of sentimentality”. 76 Denominado “O Vidraceiro Embusteiro” 76, The Shoddy Glazier. 77 Miguel de Cervantes (1605-1615), no romance D. Quixote de La Mancha, do original em espanhol, “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”, apresenta o personagem D. Quixote, o homo demens e sapiens. O romance foi escrito em duas etapas.

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Apesar de ter sido Breton a reunir e organizar os trabalhos sobre HN em 1936 e a

publicar a primeira edição da Antologia em 1945, não é ele o criador do termo HN, mas sim

Jacques Vaché, em 1916, quando estabelece os princípios do humor negro os quais Breton

coleta e lança como bases para o surrealismo francês.

2.7 As Raízes do Saliba: o Brasil descobre que sofre do fígado

Figura 3: Charge ilustração de humor vermelho do Brasil. Fonte: Sítio Humor, 1992

Das caricaturas às charges, dos anúncios comerciais aos poemas satíricos, das paródias

às anedotas, das piadas aos textos jornalísticos satíricos e irônicos, o historiador Elias Thomé

Saliba (2002) faz em “Raízes do Riso” a representação humorística na história brasileira. Ele

mergulha na riqueza cultural e na efervescência criativa da produção de humor do Brasil, num

período que abrange desde a Belle Époque, período que se inicia anos antes da Proclamação

da República (1889) e penetra no século XX, até os primeiros anos da era do Rádio.

A obra, narrativa gratificante e preciosa, espelha um período de transformações

vertiginosas, de ebulição e produção culturais. Em seu livro, Saliba revigora o estudo da

história cultural do Brasil e inova a reflexão sobre como o humor adquire espaço na vida

nacional. Conta como as movimentações dos estratos políticos, históricos e sociais que

brotam no país redundam naquela rica produção de material humorístico impresso e oral,

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motivados pelo descontentamento com o II Império, com a Escravatura e depois com a

República. O historiador paulista trata o riso como “parceiro” do humor, a exemplo de

Bergson (1987) e Minois (1998).

Conta Saliba que as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo contam com a criação

volumosa e mordaz dos humoristas dos textos do teatro de revista, das charges e sátiras e dos

articulistas nas colunas dos jornais etc. São Paulo, metrópole burguesa, vive em pleno clima

de euforia coletiva, pelo contundente desenvolvimento urbano já a partir da primeira década,

do século XX. Em meio a uma sociedade forjada pela imigração sempre crescente, mas, ao

mesmo tempo, encarando os resquícios culturais dos escravos no passado, ambos convivem

com a ambivalência marcada por preconceitos velados, pela angústia da manutenção de traços

sociais coloniais e imperiais e pelas transformações da emergente sociedade burguesa.

Nesse turbulento período de final da Belle Époque, num período coincidente com a

vigência do surrealismo na Europa, eclode a Semana de Arte Moderna, movimento que

desnuda a história, a política e a sociedade do país, contribuindo, involuntariamente, ainda

mais para a discriminação e marginalização dos humoristas, chargistas e autores de textos

humorísticos do teatro de revista. Como atesta Saliba, os intelectuais da época afirmam que o

que humoristas escrevem não é literatura, assertiva que demonstra o descaso da alta literatura

pelos autores dos textos de humor; eles ficam, por isso, relegados a um segundo plano,

esquecidos ou mesmo marginalizados, talvez devido à própria efemeridade de algumas de

suas produções humorísticas. Mas Saliba ressalva a valiosa contribuição desses humoristas e

de suas produções para a modernização do país, para o nascimento de um jornalismo novo e

empreendedor, para as primeiras manifestações do cômico no teatro, na imprensa, no Rádio e

no cinema.

O historiador afirma que o que parece marcar o distanciamento radical “entre o

modernismo paulista e esta obscura produção humorística foi o visceral caráter anárquico e

antiprogramático desta última”. (SALIBA, 2002, p. 156). Ele chama os cronistas paulistas da

época de obscuros, afastados das escolas literárias e à margem do movimento modernista de

1922. Afirma que a situação dos humoristas paulistas é diferente da situação dos humoristas

do Rio de Janeiro, cidade onde não há “grupalismo e, no limite, o monolitismo das elites

paulistas” (SALIBA, 2002, p. 165). Porém, de um modo ou de outro, todos os humoristas da

época são párias da literatura, marginais das letras que redigem textos “menores”, destituídos

de, ou com pouco valor literário. Como mencionado, esse desprestígio é ainda herança-

resquício de eventos sociais, políticos e religiosos de um passado recente.

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Os exemplos de produção de humor no livro são inúmeros, ricos, escolhidos cautelosa

e criteriosamente para demonstrar a rica produção da época, ricamente ilustrada. Saliba

compila anedotas, piadas/chistes, charges, sátiras, paródias, crônicas em jornais, adivinhações,

jingles, frases de efeito, aforismos, ilustrações, caricaturas, fotos, textos para o teatro de

revistas e quaisquer tipos que se prestem, ou não, a criticar e desvelar a sociedade, a política, a

religião e o ser humano daquela época.

São de fundamental importância, e gostosamente interessantes, os textos com os quais

o escritor evidencia a personalidade perspicaz dos satiricistas e parodistas para manusear o

humor. Exemplos disso são os textos em que os humoristas articulistas usam a fonética na

produção de textos em que aportuguesam o francês, mostrando maestria para expor a forte

influência e mostrar o grande prestígio de que essa língua desfruta no Brasil à época.

Demonstram domínio e competência comunicativa em ambas as línguas, construindo, no

dizer de Saliba, “um efeito humorístico criado pela própria linguagem” (SALIBA, 2002,

p.107). Entre os articulistas, destacam-se Bastos Tigre e Leal Santos, colaboradores da revista

semanal Careta para a qual escrevem uma seção cômica, “a francófona seção”, chamada “La

Carète Économique”, na qual eles se encarregam de fazer contestações de variadas ordens

numa “língua macarrônica”. Vejamos como um desses articulistas macarrônicos franco-

brasileiros se opõe a uma tese, amplamente difundida naquela época, de que “o povo

brasileiro é um povo triste”. Le bresiliere est um peuve essentiellement triste, a dit une fois um chroniste qui naturellement avait perdu sa sogre quand escrivit une telle asniere. Et ouçant cette phrase autres chronistes l´ont repetue tants fois qui au fin d´aucun temps la chose passa en julgué. Entretant, la chose est une mentire de cet tamagne. (SALIBA, 2002, p. 107)

Ao retratar o carnaval, corroborando ainda a idéia de que não somos um povo triste,

escreve outro desses articulistas:

Non, par le contraire. Nous, bresileirs, somes la gente plus festeire et brincalhone de l´Univers. Les imigrants puis, ne se devent lever par les informations des chronistes, esperant encontrer ici gensts qui chorent le die entier. Quand chegue l´heure de se divertir, le gent bien sait comme le fait. Em tant que cet an nous déjà avons tenu um Carneval et pour les mois que vient allons tenir autre, tout cet pour commemorer dignement la mort du grand patriot Baron du Rie Blanc. (SALIBA, 2002, p. 108).

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Fechando as criações dessa língua macarrônica, estão pérolas, algumas das quais vêm

a se tornar clássicos do português do Brasil como: “Nous avons nade avec le poisson; pour

anglais voir; les politiques botent ses manguinhes de foure; dans le bois sans cachorre; de

penser mourrut um burre; l´oiel de la rue”. Surge assim um tipo de humor, agora com

roupagem e cores brasileiras, em que se nota uma submissão da língua aos fonemas, à

fonética e à observação criteriosa da fala, apontando para a importância das expressões

lingüísticas como mecanismos de deflagração dos sentidos.

Ao descrever e analisar o humor da época com estilo, precisão vocabular e riqueza de

detalhes, além de trazer a grata lembrança dos nomes dos humoristas, cartunistas, parodistas,

satiricistas, chargistas, artistas e pintores mais consagrados do país no período que sua obra

abrange, o historiador destaca que os humoristas da época veiculam uma criação humorística

rica, hilária. Assim, diz ele, “na exorbitância léxica [...], no trocadilho e na afetação [...], tudo

parece, era sacrificado à ginástica verbal da sátira” (SALIBA, 2002, p. 83), a que Tigre chama

de jogos de “palavras rápidas, portáteis na memória” (TIGRE apud SALIBA, 2002, p. 118),

de que são exemplos os reclames sobre o Tônico Bayer: “Fortifica quem o toma, quem o toma

forte fica”, o conhecido refrão “Se é Bayer é bom” e o da loja Primavera: “Comprem na

primavera e... verão!” (SALIBA, 2002, p. 86-87). Nessa linha satírica, escreve Bastos Tigre

em um dos raros prefácios a um de seus mais prodigiosos livros de máximas humorísticas78:

“Penso, logo... eis isto.” (TIGRE apud SALIBA, 2002, p. 118).

E, no entanto, o HN não merece destaque explícito no escrito de Saliba (2002),

embora dele dados preciosos possam ser extraídos para a composição do HN brasileiro, como,

por exemplo, a descrição, em várias páginas (p.112-124) daquilo que o historiador chama de

textos de “bom humor” e textos de “mau humor”, com o perdão da ambigüidade pobre. Dado

seu tom surreal, de pilhéria agressiva e de galhofa proscrita, esse conteúdo aponta a origem e

formação do HN brasileiro, além de fornecer informações substanciais para a construção do

HNb-risível. Trato desse assunto no capítulo 4, quando empresto do texto de Saliba as

informações que considero sua contribuição mais valiosa para a constituição do HN do Brasil.

Nenhum registro de ocorrências de contribuições para a formação do HNb é encontrado

anteriormente, pelo menos, não tão obviamente.

A 1ª Grande Guerra põe fim ao excesso de otimismo da Belle Époque. A Revolução

Russa (1917), deflagrada em meio à Primeira Guerra Mundial, conduz a classe trabalhadora

ao poder. A “ameaça” do comunismo alastra-se pelo mundo. Naturalmente, esse período

78 Penso, logo.... eis isto: humorismos graves, ironias, agudas, evidencias paradoxais, por D. Xiquote, Rio de Janeiro, Typografia do Coelho, 1923. pg 12.

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conturbado e inquieto reflete o espírito caótico e violento que se projeta nas diversas correntes

artísticas. São as “vanguardas européias”, movimentos experimentais de caráter agressivo que

rompem radicalmente com os padrões de arte tradicional, provocando polêmicas, debates e

embates acalorados nos meios em que se difundem. Defende-se o irracionalismo, valoriza-se

o decadentismo simbolista79, bem como os estudos psicológicos de Sigmund Freud e a teoria

de Henri Bergson, pensadores que rejeitam a análise positivista e buscam uma compreensão

mais subjetiva e interior do homem para a solução de seus problemas. Toda essa plêiade de

acontecimentos vem influenciar as sociedades em todo o mundo.

Na seqüência dos acontecimentos, estão as repercussões de outros eventos mundiais,

sempre refletindo no Brasil e influenciando a sociedade, a política, as artes, a literatura e a

vida brasileiras, como o crack da Bolsa de Nova York, e como conseqüência a Grande

Depressão americana, e a ascensão de Getúlio no Brasil em 1931, governo de exceção, a

ditadura. O Rádio sofre censura por decretos-lei do ditador Getúlio Vargas. A mordaça da

imprensa e dos meios de comunicação resgata, salvaguardadas as devidas proporções,

dimensões e causas, a guerra ao humor e ao riso do período medieval e, de certo modo, a

história se repete: a repressão só troca nomes, de endereço, de tempo e lugar. A seguir a

queima do café, o Golpe de Estado (1937); vem a Segunda Grande Guerra (1940-1945) que

acarreta outras conseqüências histórico-sociais e econômicas. Saliba desemboca, então, entre

os anos 40 e 50, no humor da era dourada do Rádio.

Segundo conta Saliba, o humorista Cornélio Pires no anúncio de seu filme “O Sacy”

diz “não foi difícil a passagem do humorismo verbal da Belle Époque para a radiofonia,

sobretudo, pela proximidade do primeiro com a oralidade” (SALIBA, 2002, p. 239). Pires é

pioneiro em gravações em discos de suas crônicas e anedotas que são utilizadas no Rádio sem

maiores elaborações. É criação sua o personagem Joaquim Bentinho que usa em seu programa

de Rádio para dar informes pitorescos sobre a “guerra paulista” 80, com humor e pilhéria.

Saliba lista humoristas que se vinculam ao Rádio, após a Belle Époque e relata suas

preferências por mesclarem o trabalho de animadores-humoristas com o de compositores e o

de intérpretes musicais. Cita figuras conhecidas (para os antigos), como Ademar Casé,

Henrique Foréis Domingues (Almirante), Renato Murce (também produtor de cinema e 79 A expressão descreve uma sensibilidade estética que ocorre no final do século XIX que se contrapõe ao realismo e o naturalismo. Refere-se mais diretamente ao modo pejorativo como é designado um grupo de jovens intelectuais franceses que compartilha uma visão pessimista do mundo, mas de inclinação estética marcada pelo subjetivismo, pela descoberta do universo inconsciente e pelo gosto das dimensões misteriosas da existência. 80 A Revolução Constitucionalista, Revolução de 32 ou Guerra Paulista, foi o movimento armado ocorrido no Brasil entre Julho e Outubro de 1932 visando à derrubada do governo provisório de Getúlio Vargas e àinstituição de um regime constitucional, após a supressão da Constituição de 1891 pela Revolução de 1930. Foi o primeiro grande levantea contra o governo de Getúlio Vargas.

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esposo da atriz Eliana), Lamartine Babo, Noel Rosa (estes como criadores de jingles

publicitários humorísticos radiofônicos), Juó Bananére, Marcondes Machado e Adoniran

Barbosa (o “voz de lixa”). e também outras menos conhecidas do público de hoje. O

historiador paulista cita como criações humorísticas ligadas à música os trabalhos de José do

Patrocínio Filho, Raul Pederneiras, Oduvaldo Viana e Antonio Torres, estes dois músicos de

teatro e autores de textos para o teatro de revista e burletas. Saliba retrata esse teatro de

revista, gênero que propicia aproximar os humoristas de um público maior e diversificado,

sem que eles percam de vista que, apesar da busca por outra linguagem, afastada do

parnasianismo, do simbolismo e até do modernismo, não fazem “literatura”, mas apenas

música, revista, publicidade.

Saliba (2002), como não poderia deixar de ser, comenta sobre Aparício Fernando de

Brinkerhorff Torelly, o decantado Barão de Itararé, político, jornalista, poeta e humorista

gaúcho, falecido em 1971 que trabalha para uma coluna no jornal A Manhã, para a qual redige

paródias e sonetos-piada. A ele são atribuídos ditos populares, provérbios e máximas como

“quem empresta aos pobres... Adeus!”; “quando pobre come galinha, um deles está doente” e

“este mundo é redondo, mas está ficando muito chato” (SALIBA, 2002, p. 235), em que os

textos são manipulados e transgredidos lingüisticamente, misturados e “degradados ao

realismo chocante do conteúdo prosaico ou canhestro, rompendo com a expectativa de

verdade que o provérbio e/ou a máxima criam”. O Barão foi o primeiro humorista a ter um pé

no circuito da cultura popular e o outro na culta, afirma Saliba.

Em sua narrativa, Saliba lembra Lamartine Babo, Ari Barroso, José Luís Calazans, o

Jararaca, da imortal dupla caipira Jararaca e Ratinho (nada a ver com o dolardário ex-

comunicador (?) do SBT), Silvino Neto (pai do humorista Paulo Silvino da Rede Globo de

Televisão) e atrizes revisteiras como Mara Rúbia, Eros Volúsia e Dercy Gonçalves, esta com

100 anos de idade e segundo ela, na (ac)ativa.

Segundo Saliba, Bastos Tigre torna-se parceiro de muitos dos compositores

humoristas e artistas citados, inclusive de Lamartine Babo, no final dos anos 20 e início dos

anos 30, anos em que o humor do país é muito influenciado pelo então emergente cinema

falado americano, tornando-se alvo de paródias de Vadico e Noel Rosa, por exemplo.

Entre os anos 20 e 50, o humorismo radiofônico desfruta de sucesso e de uma longa

lista de humoristas competentes que aqui não comporta listar. Limito-me a lembrar o

parodista milongueiro Zé Fidelis e os comediantes Lauro Borges e Castro Barbosa, e destes

dois últimos o saudoso (para os saudosistas) e bem sucedido programa humorístico PRK30.

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Reitero que não detecto na literatura brasileira obras que tratem de teorias sobre humor

ou sobre HN, nem atualmente, nem nos períodos anteriores aos descritos por Saliba (2002),

que abrange os anos de 1855 a 1950. Existem registros de que o período colonial e o Primeiro

Império possuem textos de humor, sendo sua existência devida à efervescência e a influência

da Literatura européia, acrescida de eventos históricos como a vinda da família real

portuguesa para o país, em 1808, trazendo consigo inúmeros benefícios e progressos ao

Brasil; entre eles a implantação da Imprensa Régia, a fundação do Banco do Brasil, da

Biblioteca Nacional e da Faculdade de Medicina, assim como as primeiras leis que regem o

ensino formal. Também, no final do Primeiro Império, ocorre um surto de progresso

industrial, fruto da evolução em vários níveis nos países europeus, cujos produtos, juntamente

com vários compêndios científicos e livros de literatura, são trazidos para o Brasil pelo

Visconde de Mauá, Irineu Evangelista de Souza. Todos esses eventos, naturalmente, vêm

influenciar o já rico e prodigioso acervo literário brasileiro e a produção do humor.

Raízes do Riso mostra, assim, como já o fazem os historiadores Minois (1998) e

Alberti (2002), mas de modo diferenciado, que existe uma linha dos estudos históricos sobre o

humor que tem como objetivo usar os produtos culturais criados pela rede social para estudar

e ajudar a compreender uma determinada época. A isso se presta bastante a contento o livro

de Saliba, porque mostra aos brasileiros quão freqüentemente o humor perpassa suas vidas,

descreve a evolução social e cultural brasileira, acompanha a formação da nova sociedade e a

busca incessante dos brasileiros por uma identidade nacional, descortinando a evolução

humana em geral e a do brasileiro em especial. Raízes do Riso se transforma para mim em

nova reflexão sobre a história social do Brasil, sobre a linguagem, a língua, o humor e o HN

brasileiro.

2.8 Os Possentis Humores do Sírio

O resultado das várias investigações, estudos, escritos e pesquisas empreendidos sobre

humor durante muito tempo, resulta, a meu ver, em “Os humores da língua - análises

lingüísticas de piadas”, livro de Sírio Possenti (2002).

Nesse livro, além de empreender um passeio pelas propostas de algumas teorias de

humor, apontando seus problemas e qualidades, o lingüista se concentra na análise dos

aspectos lingüísticos envolvidos na construção do humor; ou seja, mostra como funcionam as

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piadas, transita por muitas nuances do humor e do riso e enfatiza técnicas e aspectos

determinantes para a leitura desse gênero, além de apontar algumas vantagens dos textos de

piada para o desenvolvimento da leitura. Outros aspectos, embora relevantes para outros tipos

de análises, são propositalmente menos considerados. Como uma das justificativas para sua

escolha por esse caminho, Possenti recorre a Freud, argumentando que, para este, o “chiste

consiste fundamentalmente numa certa técnica, na forma, e não num conteúdo ou num

sentido”. (FREUD, apud POSSENTI, 2002, p.17). A exemplo de Possenti, trilho os caminhos

da técnica e da forma, porém enveredo também por uma análise lingüístico-discursivo-

pragmática de textos de humor vermelho e de humor negro. Uso esse procedimento, certa de

que a língua “encarna” e deflagra o sentido do texto, e consciente de que uma análise, mesmo

que eleja a língua como foco, conta sempre com o concurso de vários outros aspectos para

descrever textos desse gênero e subsidiar a construção de seu sentido, com o que, estou certa,

Possenti também concorda. Prova disso é que Possenti (2002, p. 23) argumenta que os

elementos utilizados para alcançar o humor são os mais variados. Chama a atenção para que

se observe na leitura e produção de piadas, por exemplo, a exigência de sempre se acionar um

mecanismo, quer sintático, morfológico, semântico ou fonológico, para se encaminhar ao

sentido, mas que “o efeito de humor deve ser considerado como não especificamente

lingüístico, sendo a língua apenas (apenas?), e o ponto de interrogação é de Possenti, um meio

entre outros para provocar esse efeito de sentido”.

Os ensaios de Os humores da língua também convencem, sem maiores dificuldades,

que estudar textos de humor pode redundar em bastante prazer, porque eles são bastante

sedutores. O que gera essa sedução, segundo o autor, é que esses textos de humor geralmente

lidam com temas socialmente controvertidos e polêmicos, por isso operam frequentemente

com estereótipos e tabus, porque veiculam uma “visão simplificada dos problemas, tornando-

os assim mais facilmente inteligíveis e palatáveis”. Possenti (2002, p. 26) afirma que “as

piadas evocam quase sempre um discurso proibido, subterrâneo, não-oficial, que talvez não

pudesse ser sustentado através de outras formas”.

No meu ponto de vista, apesar de se propor a uma análise lingüística dos textos de

humor, e ele a faz, Possenti (2002) trata as piadas com “pena meio leve (sutil)” no tocante aos

aspectos discursivo-pragmáticos, geralmente tratados en passant. O autor aponta e analisa os

mecanismos lingüísticos com os quais se constroem o texto de humor, explica o como,

aspecto interessante de um trabalho pertinente e oportuno, valorizado pelas escolhas

primorosas dos textos-piadas. Segundo a contracapa do livro, “por estar escrito numa

linguagem que é menos técnica que a dos lingüistas quando escrevem para outros lingüistas, o

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livro é acessível a não especialistas”, decisão sábia de Possenti que não utiliza termos

complexos da nomenclatura da lingüística e da AD. Daí, talvez, decorra também a leveza

(sutileza) da pena.

As considerações feitas sobre os conteúdos das obras dos autores selecionados e as

explanações sobre a etimologia do termo humor completam o panorama histórico-etimológico

do capítulo 2 e preparam o capítulo 3, no qual trilho as teorias de humor que embasam meu

trabalho, além de discorrer os aspectos em que o HV e o HN convergem ou divergem,

justificando o porquê do enunciado [...] e o negro amarelou.

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Na Comédia humana, a Vida até Vale a Pena, se a Risada não For Pequena. (BERNARDO, Gustavo)

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3 PREDICATIVO DO OBJETO

Texto de humor 5

Figura 4: Charge Fonte: Humortadela, 1993.

Entender esse texto requer o acionamento do conhecimento prévio sobre o Presidente

Itamar Franco e seu lendário topete, bem como sobre o ocorrido em seu camarote, durante

certo carnaval no Rio de Janeiro e que gera essa charge. A atriz Lílian Ramos, convidada a

partilhar do camarim do Presidente, traja uma mini-saia, sem usar a peça íntima inferior. Daí,

os fotógrafos estarem estourando flashes mil.

O locutor-empírico usa a ironia para revelar a intencionalidade que o personagem-

enunciador não deixa ler em seus enunciados: esse pessoal não adora fotografar seu topete,

mas a nudez “das partes” da atriz. A charge81 satiriza, assim, a inusitada ingenuidade e a

81 Forma de história em quadrinho que, a exemplo da caricatura, da tira e do cartum se vincularia ao gênero crônica, devido à sua estrutura textual e por suas características, como a subjetividade da narração, brevidade, reescritura fantasiosa e narrativa em primeira pessoa de um acontecimento que é o alvo das atenções. A charge objetiva satirizar um evento atual e, por isso, é temporal; torna-se tão antiga quanto o fato.

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vaidade do Presidente, que se torna o próprio alvo82·.

No capítulo anterior, percorro a trajetória do Adjunto Circunstancial do humor, por

considerar impossível discorrer teorias do humor e do HN, sem um alicerce histórico-

etimológico. Aponto as origens dos dois termos e narro a história do humor desde a

Antiguidade até o século XXI. Concluo que os gregos antigos mistificam o humor, os

medievalistas o renegam, os renascentistas o recuperam, os modernistas o desmistificam e os

contemporâneos o domesticam e o desvitalizam. Evidencio que os escritos sobre o humor

contribuem para o entendimento sobre a história, a sociedade e a cultura e ajudam ainda a

explicar a evolução do homem. É revelam a história do humor e sua etimologia.

Nesse percurso, a história do humor é, antes de qualquer coisa, a história das teorias

do humor, que pode ou não se distanciar do riso, seu parceiro nem sempre inseparável, mas a

meu ver, seu efeito perlocucional predileto. O humor coça o raciocínio, o riso o desatrela.

Segundo Saliba (2002), o humor é sentimento contrário, deflagrado pela língua e provocado

pela reflexão, conseqüência de um solavanco mental que pode ser fugaz como promessa de

políticos em ano de eleição, como a ironia ou como a gargalhada e o riso. Conforme

Wittgenstein (1967) 83 o humor não é um estado de espírito (psicológico?), mas uma visão de

mundo (pragmática?); o riso pode ser efeito de linguagem.

Para uma pessoa rir, vinte e cinco músculos se contraem. Na gargalhada, uma espécie

de riso ao cubo ocorre entre outras centenas de reações bioquímicas, a pulsação cardíaca

aumenta, a circulação sangüínea acelera, os músculos se contraem. O que nunca se aclara é a

natureza exata dessas reações, pois remetem ás percepções. Portanto, é preciso levar em conta

também a dificuldade de se lidar com a prática e a teoria do riso. A teoria é obviamente mais

fácil de seguir, devido ao seu trajeto histórico e pelo fato de ser muito mais evolutiva. Já a

prática é bem mais difícil de perceber, pois suas fontes são sempre heteróclitas e dispersas, e

muitas vezes enganadoras e difusas. A prática do humor e do riso evolui de maneira muito

mais lenta e imperceptível que a teoria. Teoria e prática, ontem como hoje, sempre o mesmo

conflito universal; e a prática, quase sempre impraticável.

Traçar conjuntamente a história da prática e da teoria do humor e do riso é com

certeza fascinante, além de ser tarefa viável, como comprovam Saliba (2002) e Minois (1998),

mas nada fácil. No jogo conflitante da teoria do riso e da prática do riso, como efeito

perlocucional do humor, o francês aponta em seu livro que atualmente vivemos uma

dualidade contraditória: a impressão de que o riso está voltando, já que está presente em toda

82 Uma das FCs - fontes do conhecimento - de que trato no capítulo 4. 83 Da obra Aforismos.

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parte, mas, por outro lado, que o homem ri cada vez menos, apesar de as ciências alardearem

os méritos e os benefícios quase milagrosos do riso para a saúde e a mente, tópicos dos quais

não trato com detalhes nesta investigação.

Neste capítulo, descrevo o humor do meu ponto de vista, despretensiosamente, teço

algumas considerações sobre percepção, emoção, mente/pensamento e língua, revisito

conceitos de humor para subsidiar o predicativo do HN. Transito pelas teorias de humor de

Raskin (1985); Raskin e Attardo (1991, 1994) e analiso a de Veatch (1998), contrasto as

teorias de HV de Veatch e Raskin para estabelecer diferenças entre ambas e mostrar em que a

teoria de Veatch avança a de Raskin (1985). Finalmente, comparo o HV e o HN à luz das

teorias selecionadas com o suporte da análise de alguns textos de humor.

3.1 O humor, despretensiosamente.

Apesar dos avanços da ciência e da tecnologia nas últimas décadas, muitas pessoas

ainda são supersticiosas e contraditórias. O ser humano escolhe prioridades tragicômicas. Por

isso, algumas pessoas dão bilhões de reais, euros ou dólares às igrejas, e praticamente nada, a

não ser opiniões contrárias, à pesquisa médica que poderia realmente preservar ou salvar

vidas. Depois, elas se perguntam por que seus entes queridos estão doentes ou morrem jovens.

Elas quase sempre ingerem e bebem alimentos nada saudáveis, e ainda assim querem viver

para sempre, acreditam na guerra santa, o que é uma tragicomédia letal. São vingativas e

aprovam uma forma de castigo cruel se um doente mental mata um membro de sua família,

mas ficam desesperadas, quando seus cachorrinhos e gatinhos morrem; no entanto, reagem

pacificamente ao assassinato de milhares de pessoas na Guerra do Golfo e de outras tantas no

Iraque, e acatam as atitudes que violam virtualmente todos os artigos da antiga convenção de

Genebra, dentro do Iraque hoje. Falo do mundo incomum do humor? Sim, estou falando do

nosso conflitante mundo cômico e irracional, em que realidade, fantasia e ficção se misturam,

sem justificativa causal. Nele, pássaros voam debaixo d’água, canudos de plástico sugam o

refrigerante, doces fabricam as pessoas, bichos comandam as crianças, animais amam,

escolhem, dialogam. O mais interessante sobre esse mundo maluco é que ele pode ser

verdadeiro, lugar de verdade que a mente criativa pode ver e construir. Para entender isso, é

preciso descobrir o que é o humor e como é criado.

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Preciso ver o humor como a coisa menos importante e, ao mesmo tempo, a coisa mais

importante do mundo. Saber como o humor funciona e como criá-lo são coisas que podem

mudar pontos de vista, e às vezes até a vida. Como o humor opera? Onde o encontramos?

Para início de conversa, ele não está em um lugar específico (como a mente também não!) e

também não acontece por si só. Primeiramente, esclareço alguns aspectos sobre o que penso

do humor e discuto teorias de humor e, ao analisar textos de humor, desço a alguns detalhes

sobre essas teorias e depois mesclo tudo.

Não rio apenas. Rio de alguma coisa. O humor não é apenas um sentimento dentro de

mim, nem dor, nem dor agradável. O humor é algo sobre o qual penso e que me faz rir – logo,

deve envolver o pensamento. Se este não existe, não há humor. O pensamento está nas

pessoas e, como nada é em si mesmo engraçado, se as pessoas não existissem nada seria

engraçado. Nós é que fazemos as coisas serem sérias ou engraçadas. É claro, somos o único

tipo de animal que ri, e aqui hienas são excluídas, devido à presença do traço +irracional.

Pelas barbas do Profeta, acabei de descobrir que somos culpados pela existência do humor!

Resta-me o castigo: descobrir como se faz isso. E aí a questão.

O humor é um pensamento que causa bons sentimentos e riso. Não é só pensamento,

não é só riso, mas ambos. Primeiro vem o pensamento, depois o sentimento. Certos tipos de

pensamentos produzem o humor? Só alguns. Certos tipos de estruturas lingüísticas produzem

o riso? Sozinhas? Sozinhas nenhuma delas, nem algumas.

Vejamos o texto abaixo.

Texto de humor 6

Baiana vende acarajés no calçadão do Rio de Janeiro. - O que você colocou nesses bolinhos de feijão? Pergunta a moça carioca curiosa, diante do sabor da iguaria. - Arroz, minha linda, responde a baiana do acarajé. 84

Qual teria sido o efeito perlocucional, isto é, que reação o ato de fala da baiana

provoca na carioca? Não sei; surpresa, talvez, mas se havia gente por perto, deve ter rido. Mas

que palavras no texto acima provocam o riso dos circunstantes? Alguém poderia arriscar

escolhendo o arroz, e é ele também, porque o arroz é a guilhotina verbal que provoca o

84 Humortadela, 2005.

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solavanco mental, que juntamente com a ironia gera o humor e pode provocar o riso, ou um

sorriso. Porém, o que há de engraçado no termo arroz? Nada. Em si, ele não provoca ou porta

humor, nem causa o riso. Quem coloca graça nele é o ser humano, com sua mente criativa e

seu conhecimento prévio (epistemológico e empírico), a partir da língua. É isso mesmo: nós é

que construímos a rede do humor. Mas sou cartesiana, penso, logo exijo: como se faz isso?

Os bolinhos de feijão estão deliciosos, mas as baianas não os fazem com arroz, porque

não é procedimento culinário apropriado. É simples e é só isso: a incongruência torna o texto

(meio) engraçado: dizer que os bolos de feijão são feitos de arroz. Mas, e se a baiana tivesse

respondido que os bolinhos são feitos “de feijão”, haveria humor? Creio que sim, pois assim

como o termo arroz gera humor pela incongruência embasada no conhecimento prévio de que

bolinhos de feijão são feitos com feijão, o termo feijão pode suscitar humor por redundância.

Devido à possibilidade da ocorrência de ambas a incongruência e a redundância no texto em

questão, eu discordo da idéia de que apenas um significado emergiria, como advoga Raskin

(1985). Assim, a incongruência e a redundância constituem mecanismos lingüísticos, mas não

condições, que podem ser acionados na construção de alguns textos de humor brasileiro.

Observo que a ironia, marca da polifonia, acusa a presença de uma segunda voz,

aquela que diz o oposto (“Feijão, sua burrona!”) do que afirma o personagem-enunciatário em

“Arroz, minha linda...”, e pode ainda me remeter, tanto à “burrice” da compradora, quanto à

da vendedora, já que a pobre compradora poderia apenas querer saber o “pulo do gato” da

receita de iguaria tão especialmente deliciosa, suposição esta sustentada pelo uso do termo

curiosa, no texto. Isso porque “é da essência da ironia jamais desmascarar-se de um lado,

enquanto do outro lado lhe é igualmente essencial trocar de máscara”, no dizer de

Kierkegaard. (2005, p. 51)

Em resumo, fazer humor é cometer um desvio, é violar a normalidade. No texto em

questão, essa violação é ativada com a escolha lexical do termo arroz (bolinhos de feijão são

feitos com o próprio). Assim, num texto de humor há subversão, ou transgressão a quaisquer

normas estabelecidas e aceitas, e elas não têm de ser necessariamente rígidas ou sérias, como

as de ordem moral ou religiosa, mas podem ser corriqueiras, “suaves”, como no texto do arroz

em questão. Na verdade, ocorre um desdobramento: ver-se surpreso diante de algo inusitado,

às vezes até indignado, mas perceber que, simultaneamente, existe normalidade. Essas duas

matrizes se justapõem e quando a incongruência-redundância é entendida, o humor emerge. É

o que apregoam as teorias de Raskin (1985); Raskin e Attardo (1991, 1994) e Veatch (1998),

das quais trato mais à frente.

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Complementando a discussão sobre o texto da baiana do acarajé, descrevo a

configuração que compõe, a meu ver, o texto de HV: em primeiro lugar, o labirinto

contextual, o contexto situacional, isto é, uma rua no Rio de Janeiro, onde a ambulante baiana

vende seus produtos, os transeuntes passam e dentre eles os possíveis clientes e a compra do

bolinho. Em segundo lugar, a escolha das expressões da língua – principalmente a do arroz –

que veiculam incongruência irônica (ou redundância irônica, em outros contextos) para coçar

o raciocínio e ocasionar um solavanco mental, ou seja, um “curto-circuito”, uma leve surpresa

ou impacto causados pela superposição de duas matrizes presentes no texto. Tudo isso ocorre

durante e concomitantemente à arquitetura conceitual, ou seja, a engenharia das atividades

mentais. Finalmente, o resíduo não-verbal, o efeito perlocucional, a reação riso ou não-riso.

Aí se posta a “articulação dos elementos que formam o sentido, uma sintaxe, uma semântica

do discurso”, segundo Fiorin (2005). Assim, é tecida a rede do humor com a qual se provoca

o riso. Sintetizo minha configuração sobre a construção do HV, no quadro que se segue.

LABIRINTO CONTEXTUAL + GUILHOTINA VERBAL +

SOLAVANCO MENTAL + ARQUITETURA CONCEPTUAL =

RESÍDUO85 NÃO-VERBAL Quadro 2: Ilustração da configuração da construção do humor Fonte: Dados da pesquisa

Como diz MacLuhan, o riso é “espirro da mente: duas cadeias discrepantes de

pensamento unidas por uma espécie de nó acústico”. (MACLUHAN, apud SALIBA, 2002, p.

81). Mas “riso é raciocínio.“ (SALIBA, 2002, p. 132) 86, e também língua (cultura) e

pragmatismo.

Então, se o humor acontece quando achamos que um desvio, uma transgressão, uma

violação às normas são cometidos, para sermos críticos, precisamos nos certificar de que isso

ocorre. Uso um exemplo bem simplório: um aluno escreve no quadro: 3+3 = 5. Isso pode

causar o riso, mas não o fato isolado, porque pode causar a ira do professor. Por que alguém

ri, em vez de se zangar com o erro? O professor pensa: “a resposta está errada e isso é ruim”, 85 No sentido de vestígio, resto, sobra. 86 Na apresentação de Tagarela, p. 3, 1902.

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e os alunos que riem estão pensando algo como: “a resposta está errada! Que situação

ridícula, que carinha idiota, que papel de bobo esse menino fez! Esse menino é ridículo, é

risível”.

No entanto, se a transgressão for considerada nociva, não haverá humor. Por exemplo:

se o menino que erra a conta anteriormente é portador da síndrome de Down ou for autista, a

nocividade emerge e o riso desaparece. Também, se alguém escorrega numa casca de banana

e cai, eu rio, mas paro de rir se esse alguém tem uma fratura exposta, ou abre a cabeça ao

colidir com o chão, desmaia e uma ambulância tem de ser acionada. Isto é, a ocorrência que

antes causa o humor, agora enfrenta a nocividade e, por isso, perde a graça, causa

consternação. Assim, para que algo seja engraçado, não podemos levar a violação às regras a

sério, violação aqui entendida como a introdução de um elemento que fira a normalidade

cultural. Resumindo, o humor envolve o pensamento de que há um desvio, uma violação,

mas que (apesar disso) tudo deve estar bem.

Segundo Attardo e Raskin (1994), o humor seria também um misto de sabedoria e

amor. A sensibilidade, a ternura, o calor seriam a essência do humor. Posso até corroborar

suas idéias - meio, ou quase românticas -, mas o que se exige, no mínimo, é aceitar a violação.

Aceitação do humor pode também demandar natureza receptiva, visão positiva, interesse e

otimismo; consideração, compreensão, simpatia, bondade, caridade, generosidade,

compaixão, magnanimidade; responsividade e flexibilidade de pensamento. Humor

envolveria ainda o perdão. Agora também posso rir de minhas, às vezes, inusitadas

afirmativas, esperando que haja, segundo Attardo e Raskin, aceitação para elas. Os aspectos

“aceitação e nocividade” do texto e o ato de “levar as coisas a sério”, elementos necessários

ao humor, servem não só para eu discutir algumas das facetas do HV, mas também embasar a

discussão sobre o HNb.

Que tipo de erro produz o humor? Existem tantos tipos de humor quanto existem tipos

de erros, porém nem todos agradam a todo mundo. As pessoas têm visões e gostos diferentes

e, afinal, elitismo no humor ou na estética não cai bem. E as estruturas lingüísticas, a

materialização da construção do sentido que leva ao riso, decidem tudo? As palavras são

engraçadas, ambíguas, metafóricas, metonímicas, maldosas, portam ou veiculam o sentido

que nos faz rir? Não; sozinhas, não, como já afirmo anteriormente. Aqui não cabe o “antes só

que mal acompanhado”; vale a companhia que não é má e, com certeza, imprescindível.

A esta altura algumas questões emergem. Ao escolher as expressões lingüísticas, ao

utilizá-las para construir o texto que provoca o riso, o autor seguiria um padrão? Há um

modelo lingüístico que controle, por exemplo, a criação de alguns estereótipos como louras e

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portugueses são burros, ou judeu, turco e árabe são sovinas? Existe um modelo, um padrão

para as piadas que envolvem personagens de várias nacionalidades, e dentre estas se inclui o

brasileiro que é geralmente o último que fala, e seus enunciados são sempre mais perspicazes

e conclusivos? É meu patriotismo que me leva a crer que brasileiros são melhores, mais

astutos, afetuosos e receptivos? E Joãozinho, existe um padrão de construção, uma

gramática/sintaxe, um determinado número de estruturas ou modelo lingüístico a ser seguido

para se produzirem as histórias protagonizadas por esse personagem-peste tão conhecido e

amado pelos brasileiros? Afinal, existe uma língua para se construir o humor?

Analisemos o texto a seguir.

Texto de humor 7

Joãozinho completa nove anos. Seu pai chega para o filho diz: - Joãozinho, você fez nove anos. Já podemos falar sobre isso. Quer saber como as crianças nascem? Joãozinho, nervoso, diz: - Não, pai, não quero saber, não. O pai surpreso, pergunta: - Por que, filho?Joãozinho, aos prantos, diz: - Quando eu tinha seis anos, contaram-me que Cinderela e as sereias não existiam; aos sete, contaram-me que cegonhas não existem e aos oito descobri que o Papai Noel é você. Se eu descobrir que os adultos não trepam, não vou ter mais razão para viver! 87

A normalidade (o pai querer contar como nascem as crianças) e a violação (o menino

não querer saber a verdade, acrescidas das razões alegadas para a recusa a ouvir essa verdade)

são os dois scripts que se superpõem (RASKIN, 1985). Para entender esse texto, como

quaisquer outros, o ouvinte precisa remeter a seus saberes e crenças prévios e comprimir e

descomprimir, no dizer de Fauconnier e Turner (2002), algumas “relações vitais” 88, como as

de tempo e espaço, para projetar no presente ficções inculcadas na infância. A infância de

Joãozinho percorre a história do texto-piada, apontando para sua conjunção com o saber, isto

é, os fatos da infância vão desnudando numa seqüência cronológica a descoberta de verdades

essenciais da vida, (e a cada uma delas vem a desilusão) como sexo, infância e adultice, estes

dois últimos passagens do não-saber ao saber.

87 Piada contada por Tom Cavalcanti (personagem João Canabrava) no programa A Escolinha do Professor Raimundo, Rede Globo de Televisão, 1996. 88 Em seu livro, The Way we Think: conceptual integrations and the mind´s hidden complexities, os autores apontam o acionamento da compressão e descompressão das relações vitais (comparação, tempo, espaço, etc.) como uma estratégia essencial para a construção do sentido dos textos.

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Os sintagmas nominais Papai Noel, Cinderela, sereias e cegonha são escolhidos para

veicular a ilusão da inocência, desfeita nos enunciados “Se eu descobrir que os adultos não

trepam, não terei mais razão para viver!”. Nesses enunciados, a escolha por “trepam” (que

nem o corretor do computador acata), em detrimento de outros termos mais conservadores e

elegantes como fazer amor ou transar, servem para nos levar à dedução de que Joãozinho não

é mais inocente em relação às certas coisas do mundo.

A polifonia89 nos enunciados “Se eu descobrir que os adultos não trepam, não terei

mais razão para viver!”, é marcada pela ironia que subverte a fronteira entre o que é assumido

pelo personagem-enunciatário e o que não é; essa ironia denuncia a presença de outra voz na

enunciação que diz o contrário do que Joãozinho quer que o personagem-enunciador

compreenda: que ele quer fazer sexo. Assim, a ironia faz surgir dois efeitos, um de não

assumir e outro de discordância em relação ao que se fala. Um índice da presença da ironia

no texto em questão poderia ser o ponto de exclamação, porém, na ausência de outros índices,

resta o apoio do contexto para resgatar elementos contraditórios, estes característicos da

ironia.

Nem sempre é fácil circunscrever a extensão da ironia, tropo que alguns autores

consideram agressivo e outros, atitude defensiva. Eu classificaria a ironia desse texto-piada

como paradoxal, porque o personagem-enunciatário “invalida sua própria enunciação no

próprio movimento pelo qual a enuncia” (CHARAUDEAUX; MAINGUENEAU, 2006, p.

216). Além disso, “fazer ironia não é inscrever-se falsamente de maneira mimética contra o

ato de fala anterior ou virtual, em todo o caso, exterior, do outro. É inscrever-se falsamente

contra sua própria enunciação, apesar de produzi-la.” (BERRENDONNER apud

CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 216).

O valor ilocucional indiciado nas guilhotinas verbais finais desarma a pseudo-rede de

condicionalidade que, na verdade, tem valor semântico: se eu tiver confirmação de que os

adultos não trepam [...]. Todos esses componentes, somados à rede de negação e o contexto

dão o suporte à construção da rede de ironia. Essas guilhotinas desencadeiam o solavanco

mental, acionam a arquitetura conceptual e desembocam no resíduo não-verbal (riso).

89 Um dos planos das da heterogeneidade, a mostrada (e não marcada) “identificada combinando-se a seleção de índices textuais ou paratextuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal.” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 261) Outros exemplos desse tipo de heterogeneidade seriam o pastiche, as alusões, o discurso indireto livre etc. Esse tipo de heterogeneidade se contrapõe à mostrada e marcada que é a assinalada de modo unívoco; pode ser o caso do discurso direto, aspas etc. O outro plano da heterogeneidade é a constitutiva “que não é marcada em superfície, mas a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma FD”. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 75).

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O humor, então, além de criado por um desvio - seja ele da crença, do desejado,

esperado, ideal, honesto, do certo, inteligível, conhecido, possível, provável, próprio, real,

razoável, útil ou comum, familiar, ou seja, o desvio em relação às regras e padrões

estabelecidos -, é construído com base nas coisas que não se podem entender, na contradição,

na incongruência, na ambigüidade, na redundância, naquilo que não faz sentido, na ilusão, no

fato de as coisas serem o que não são (ATTARDO, 2001), e ainda assim o serem, acrescento

eu. E porque as coisas que acontecem são tão estranhas e incompreensíveis, o ser humano

reage a elas rindo. Ele espera que algo esperado ocorra, e em vez disso “o inesperado faz uma

surpresa”. 90 É como aguar as plantas e elas virarem pássaros; é como soprar a areia e ela virar

vento; pode ser pior ainda: é como aplaudir Elis Regina e descobrir que a Kelly Key é que

está agradecendo os aplausos.

Geralmente, para criar o humor posso aplicar uma forma comum, básica: "A é B,"

como em “Minha amiga é uma anta”, minha amiga (A) é uma anta (B). Combino duas coisas

diferentes para criar humor e metáfora, como em: a lógica é masculina, a emoção é feminina,

as mulheres são machos homólogos, o espaço é uma caixa sem tampa, sem base e sem lados,

peixes são frutos do mar, uma linha reta é um círculo achatado e espichado, ciúme é coisa

química. Posso estender essas construções diferentes e ampliar as idéias para coisas ainda

mais inusitadas, como: eram duas vezes duas meninas que [...], mundos crescem em árvores,

álgebra de emoções, “é inverno profundo na bolsa de Lorde Timon” 91. Ou podemos

simplesmente descrever uma palavra com modificadores: planeta (en) quadrado; modess

vivendi, homo-sapoens; nevava nervosamente.

Para fazer esse tipo de humor basta combinar palavras e coisas diferentes, exatamente

como fazem os poetas e os humoristas. A princípio, essa combinação, ou metáfora, parece não

fazer sentido, mas em seguida descubro que pode haver algum sentido, verdadeiro. Por

exemplo, se digo a alguém “Você é verde”, pode ser sandice. Se disser a uma cantora novata

que ela é verde, é verdadeiro no contexto do começo da carreira dela. Pensamentos

metafóricos são engraçados, porque o que parece sem sentido, à primeira vista, faz sentido

num segundo olhar. Nosso verde vira planta e vira inexperiência e o humor insight vermelho,

bem clarinho.

As crianças dão exemplos de como fazer esse tipo de humor: elas são, como todos os

seres humanos, metonímicas e metafóricas. Por exemplo, Camila freqüenta uma escola em

90 Johnnie Alf, na canção, Eu e a Brisa, dos anos 70. 91 “Tis deepest winter in Lord Timon’s purse.” Shakespeare, Timon of Athens 3.4.14.

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que a diretora se chama Conceição. Não se lembrando do termo diretora, ela pergunta à

priminha de quatro anos: “como se chama a dona Conceição da sua escola?” Crianças podem

criar uma pesquisa de matemática pura, desenhar um casaco com três mangas, uma xícara

com abertura-boca pintada de batom rosa, colher de pele pintada, aceitam que petróleo é o

sangue dos árabes, que “cor-de-rosa é vermelho devagarzinho” 92 e dizem que dormir é

trancar os olhos, ou tirar férias da vida e que sonhar é viver dormindo. Freud, Miller e Lacan

aplaudiriam essa definição de sonho, e a presença da ambigüidade também. Há vários meios, lingüísticos e extralingüísticos, de se criar humor que englobam: a

gramática, a sintaxe, morfologia, fonologia, semântica, o conhecimento anterior (empírico e

enciclopédico) e os recursos não-verbais, com os quais é tecida a rede humorística que inclui

o uso de: fingimento de se ser aquilo que não se é, exposição do oposto do que se pensa,

imitação das pessoas, comparação de pessoas a animais e coisas, subestimação das pessoas e

coisas, tratamento das coisas ou idéias como animais ou pessoas; combinação de coisas de

diferentes tipos, interpretações equivocadas de sentido, anúncio de algo que não faz sentido;

classificação errônea, associação de algo valioso a algo sem valor ou mesmo trivial,

nomeação das coisas pelos nomes errados, assertivas e analogias falsas, erros inofensivos,

reação honesta quando não se espera isso, soluções inesperadas ou inusitadas, confirmação do

óbvio; falas irrelevantes, linguajar diferente; conduta ilógica ou irracional, hipocrisia ou

alusões e exagero, entre tantos.

Para saber os tipos de desvios que se podem cometer e realmente se cometem, é

preciso saber quais tipos de humor são construídos. Freqüentemente são ditas coisas

consideradas verdadeiras, mas que em verdade são falsas. Então, vale mostrar que muito dos

pensamentos considerados verdadeiros, de fato não fazem sentido. Acredito ser por essa razão

que Wittgenstein (1968, p. 464) diz a seus alunos: “Meu objetivo é ensinar a vocês a

transitarem do sem sentido camuflado para o sem sentido descarado. Isso é ensinar com

humor”.

3.2 Por uma definição de humor

Definir humor continua sendo um dilema Eu diria, como o fazem outros autores, que

defini-lo é como dissecar uma rã: o procedimento a nada leva e a rã ainda morre antes do final

92 FULGENCIO, Lúcia, 2007.

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do processo. Podemos entendê-lo de vários modos: como uma das linguagens importantes do

homem, como o amor e a beleza ou como uma estratégia de vida. O humor é próprio da

maioria das culturas, não só em suas modalidades verbal e não-verbal, mas também como

concepção de vida, como posição filosófica que dá origem a diferentes conceitos e categorias.

Entretanto, não existem nem palavras suficientes, nem precisão semântica para expressar

todos os conceitos inerentes ao humor.

Há um consenso sobre humor entre os autores das teorias investigadas, em relação ao

modo como eles o analisam que vai sustentar o modo como eles o definem. Humor para eles é

cognição, pensamento, emoção, percepção, subversão. Eu digo que o humor exige inteireza,

totalidade e integração de elementos operando simultaneamente: língua, meta emoção,

conhecimento empírico e epistemológico, percepção e atividade mental. Corroboro os autores

pesquisados quanto às suas várias idéias de que: o humor é ambigüidade irresolúvel e o riso é

um afeto que resulta do súbito aniquilamento da tensão de uma expectativa, a transformação

de expectativa tensa em nada (KANT apud FREUD, 1960), que é “percepção do contrário”

(PIRANDELLO apud SALIBA, 2002, p. 24) e avesso ao senso comum; que ele é “solavanco

mental” e “epifania da emoção que se dilui na vida cotidiana” (SALIBA, 2002, p. 31).

“Assim é, se lhe parece”. 93

Millôr Fernandes advoga alhures que fazer humor é adotar uma forma completamente

desinibida e descondicionada de ver as coisas. Para esclarecer o enunciado de Millôr, recorro

a outro humorista brasileiro, Leon Eliachar, que deu a seguinte definição premiada com a

“Palma de Ouro” 94: “humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há duas

espécies de humorismo: o trágico e o cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir, o

cômico é o que é verdadeiramente trágico para se fazer”. Essa linha de raciocínio também

prepara os caminhos para a descrição do HNb.

Peculiar no HV é que ele pode ser provocado voluntária ou involuntariamente. No

primeiro caso, ele evidencia uma atitude intelectual e lingüística do autor que produz o seu

texto com uma postura reflexiva e consciente: é o humor voluntário, construído

propositalmente para tentar provocar o riso. Mas há o humor involuntário, como quando

como cometemos uma gafe, um ato falho, uma distração ou mesmo por ignorância,

ingenuidade, inocência, por não compartilhar o conhecimento, sem perceber que o fazemos,

como por exemplo, em: perguntaram às minhas irmãs, quando eram pequenas: “Vocês são

93 Nome de uma peça teatral do dramaturgo italiano Luigi Pirandello. 94 Na IX Exposição Internacional de Humorismo realizada em 1956, em Bordighera, Itália.

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gêmeas?” Resposta: “Não, mineiras”. 95 Peculiar no humor é que ele chama a atenção do

leitor para essas possíveis, ilimitadas, inusitadas e incontroláveis incursões da linguagem.

Em todas as épocas, têm-se pesquisado sobre o humor e o riso com o intuito de defini-

los, sendo, por isso, escritos muitos tratados sobre os temas. Então, para me safar dessa tarefa,

pelo menos momentaneamente, para fustigar os afoitos e atender aos perfeccionistas de

plantão, uso a definição de Raul Pederneiras citado por SALIBA (2002) sobre riso, e não uma

minha, com o perdão da cacofonia, ou ambigüidade fonológica para alguns. O som do riso é produzido por uma inspiração profunda, seguida de contrações curtas, interrompidas e espasmódicas do tórax e especialmente do diafragma. O grande zigomático, músculo simbólico do riso, alongado, achatado, estreito, insere-se próximo do ângulo externo do osso malar e na parte cutânea correspondente à comissura dos lábios, elevando estes, na contração, para dentro e para fora. Único que exprime completamente alegria a sua direção curva de concavidade superior, forma na pele o sulco nasolabial. Eleva a pele para o ângulo externo do olho avolumando-se junto à maçã, onde forma pregas raiadas, com o auxílio da orbicular inferior da pálpebra. O grande zigomático – associado com as fibras musculares do esfíncter palpebral, do frontal ou do triângulo dos lábios – desenha no rosto humano um movimento oblíquo para o alto e exteriormente das comissuras labiais; ou uma curva da linha nasolabial de convexidade inferior, ou ainda, um intumescimento forte das maçãs do rosto e uma pequena elevação da pálpebra inferior. Afinal, é desta associação variável do zigomático com as outras fibras musculares da face que nasce uma escalada do riso, uma taxionomia das inumeráveis formas do riso. (PEDERNEIRAS apud SALIBA, 2002, p.134).

Se tivéssemos consciência dessas ocorrências todas, teríamos preguiça de rir.

Freud (1938) apresenta uma classificação no domínio psicológico e psicanalítico cujo

elemento motriz é a emoção, e diz que o humor se subdivide em vários tipos, cada um deles

pertencente à natureza peculiar da emoção que cede lugar ao prazer humorístico. Porém, o

humor exige talento, perspicácia, percepção, reflexão, sutileza, crítica, contradição filosófica,

oposição, ironia, além de humanidade, tolerância, perdão, ingenuidade etc. Mas não trato em

meu texto de todos esses ingredientes imprescindíveis para a efetivação do HV, nem dos

vários tipos desse humor, por já serem exaustivamente discutidos, analisados e

exemplificados nas teorias clássicas, modernas e nas vigentes. Limito-me, pois, a tecer

considerações sobre os elementos que devem embasar a discussão sobre o HN e o HNb.

O HV engloba componentes filosóficos e requer posicionamentos; ele pode apontar

para o relativismo e o ceticismo, englobar esses componentes de modo mais sublimado, por

assim dizer, e pode ser a expressão máxima estética e filosófica. Pode, ainda, ser intelectual,

95 Contribuição-fala de Beatriz Lucca em fev. 2007.

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em oposição à comicidade96 e ao chiste, estes menos refinados ou às vezes considerados

vulgares.

O humorismo, derivado do humor, é freqüentemente impregnado de poetização,

sublimação, intelectualização, melancolia, originalidade e ironia leve. Pode, assim, fazer o

jogo do contraste e da oposição. É usado para expressar ou dominar uma doutrina, um estilo,

uma filosofia ou um sistema literário. Seu efeito perlocucional pode ser um sorriso ou um

convite à reflexão, mas esse efeito pode ser também manifestado em seu aspecto mais prático

e vulgar, sem preocupações artísticas, sociais, políticas, filosóficas ou estéticas que

caracterizam o humorismo puro. O humor pode abrir-se a críticas sociais, a despeito dos

protestos dos que afirmam que não têm intenção de atribuir aos seus textos de humor uma

função (de crítica) social e dos que querem defender certa imparcialidade ou neutralidade (?)

ao seu discurso. As formações discursivas afloram, deixando emergir a função crítica,

independente de sua vontade. Ainda que mal comparando, seria um caso semelhante ao que

ocorre, como sugere Searle (2005), com o texto de ficção: ficção é texto literário? Segundo o

lingüista, cabe ao autor identificá-lo como ficção e ao leitor decidir se é literário. Corroboro o

pensamento de Searle, o que não significa que eu esteja tentando definir literatura, temerário

procedimento que eu jamais ousaria. Na mesma medida, há sempre uma máscara no texto de

humor. É o que Freud chama de burla alegre.

Os autores que trabalham com o humor valorizam todos esses recursos lingüísticos e

enunciativos, mas trabalham também com alguns outros aspectos, entre eles a inovação e a

subversão. A inovação deve ser entendida como uma nova forma de perceber velhas fórmulas

sem preconceitos, sem ojeriza pelos estereótipos, sem repetir do mesmo modo o já sabido. O

que muda, então, não são os temas, nem a língua, mas o modo de abordá-los. O humorista usa

abordagens diferenciadas com a mesma língua. Através delas, a subversão e o inconformismo

são revelados, concretizados no rompimento das regras e dos padrões e materializados em

recursos lingüísticos. Alguns idealistas modernos afirmam que são os desobedientes que

movimentam o mundo. Rabelais, Baudelaire, Rimbaud e Breton se encantariam ao ouvir essa

afirmativa e Shakespeare sorriria irônico, doce e amargamente.

96 Comicidade vulgar - quando se remete ao teatro grego da Antigüidade, a comédia seria uma forma menor de arte teatral, em contraposição à arte de prestígio, a tragédia. A comicidade herda de algum modo esse rótulo, durante muito tempo.

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3.2.1 De comicidade - humoricidade e ironia

A comicidade, a qualidade daquilo que é cômico, é derivada da humoricidade, sendo a

comédia, que é o uso de humor nas artes cênicas, sua mais expressiva forma de manifestação.

Também pode significar um espetáculo que recorre intensivamente ao humor. De forma geral,

"comédia" é o que é engraçado, que faz rir.

No surgimento do teatro na Grécia, a arte era representada, essencialmente, por duas

máscaras: a máscara da tragédia (drama) e a máscara da comédia. Aristóteles, em sua Arte

Poética, para diferenciar comédia de tragédia (esta, segundo ele originada do ditirambo), diz

que enquanto esta última trata essencialmente de homens superiores (heróis), a comédia fala

sobre os homens inferiores (pessoas comuns da polis). Isso pode ser comprovado através da

divisão dos júris que analisam os espetáculos durante os antigos festivais de Teatro, na

Grécia. Ser escolhido como jurado de tragédia é a comprovação de nobreza e de posição de

alta representatividade na sociedade. Já o júri da comédia era formado por cinco pessoas

sorteadas da platéia, do povo.

Posteriormente, o que vai ser apresentado como renovação na comédia é a tomada de

consciência de dois níveis do cômico, ou seja, a comicidade do baixo e alto ventre. O cômico

do baixo ventre está ligado à construção do riso com alusões ao grotesco libidinoso, ao

anedotário escatológico, ao sarcasmo, ao grotesco, à manipulação das ações humanas baixas.

O cômico do alto ventre liga o riso ao coração, à inteligência com o qual se procura rir não de,

mas com a manipulação das ações humanas altas. A comicidade é herança do que mais tarde

vem a ser definido como humour - humor -, apesar de o humor já existir, no sentido de

disposição do espírito e não como teoria, anteriormente à comicidade.

O que é o cômico? Aristóteles afirma que o cômico é a impressão produzida por um

erro isento de culpa, que se acompanha de certa falsidade (na situação, nas circunstâncias, no

aspecto físico), que só produz riso e não pesar ou dano a quem o contemple. Não é fácil

perceber isso. Freud (1938) também acha importante esta reação física e psíquica no homem e

destaca que o humor, e aqui já o mistura ao cômico, é a mais alta manifestação da adaptação

do indivíduo. Citado por Breton (1997, p.xviii), o psicanalista austríaco completa: “como a

argúcia e o cômico, o humor tem em si um elemento libertador. Mas tem também algo bom e

sublime que os dois outros modos de causar prazer por via da atividade intelectual não

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possuem”. 97 O humor não resigna, desafia: não implica apenas o triunfo do eu, mas também

o princípio do prazer que se encontra ao afirmar-se, apesar das realidades exteriores

desfavoráveis. No entanto, Carlos Drummond de Andrade diria alhures que “o humorismo é a

aptidão para despertar nos outros a alegria que não sentimos”.

Falta emoção à comicidade, dizem os teóricos, a menos que se lhe acrescente ternura,

como nas comédias de Chaplin. Seus componentes também são as oposições, o disparate sem

exagero, a incongruência. A comicidade produziria o riso ao escamotear o ridículo, através de

uma técnica de degradação e desvalorização, além da utilização do engano e do embuste mal-

intencionado. Baudelaire (1955, p. 309), diz que “o cômico é um signo de infinita grandeza e

de infinita miséria; e é a colisão desses dois infinitos que libera o riso”.

Conforme os meios usados e a intenção do autor, a comicidade desemboca na

paródia98. Comicidade é definida também como a transposição de algo estranho para o

familiar, com o intuito de burlar. Ela é também esse lado da pessoa que a assemelha a uma

coisa, aspecto dos acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um tipo

particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim o movimento sem a vida.

Exprime, portanto, uma imperfeição individual ou coletiva que exige correção imediata. O

riso seria essa correção.

Já se sabe, nem tudo o que faz rir é humor ou cômico. Há o riso inteligente, aquele que

nos faz rir, porque nos faz pensar de forma construtiva, ou aquele riso que aflora ao rosto por

razões simples como quando somos apresentados a alguém. Há a comicidade grotesca que é

apenas instrumento de divertimento, nem sempre com uma linguagem democrática, já que se

ri dos outros, em vez de rir com os outros. Essa comicidade grotesca é uma forma destrutiva

de comunicação, porque não cria um diálogo universalista, mas seletivo, rompe as pontes de

abrangência, fechando-se em tribalismos, em sectarismos. A humoricidade e a comicidade

visam ambas ao riso, este definido como “uma questão cultural, e só se pode consumá-lo,

quando há pontos comuns de diálogo e compreensão. O riso é um gesto social que ressalta e

reprime certa distração especial dos homens e dos acontecimentos”. (BERGSON, 2001, p.

65). “O rígido, o estereótipo, o mecânico, por oposição ao flexível, ao mutável, ao vivo, a

distração por oposição à atenção, enfim o automatismo por oposição à atividade livre, eis, em

suma, o que o riso ressalta e gostaria de corrigir” (BERGSON, 2001, p.97), e o faz quando 97 Like wit and the comic, humor has in it a liberating element. But it has also something fine and elevating, which is lacking in the other two ways of deriving pleasure from intellectual activity. 98 A paródia é uma imitação, na maioria das vezes cômica, de uma composição literária, uma imitação burlesca. A paródia surge a partir de uma nova interpretação, da recriação de uma obra já existente e, em geral, consagrada. Seu objetivo é adaptar a obra original a um novo contexto, passando diferentes versões para um lado mais despojado, e aproveitando o sucesso da obra original para passar um pouco de alegria. (WIKIPEDIA, 2007)

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provocado pelo humor ou pelo cômico.

Quanto à ironia, do grego eiróneia, “interrogação” 99, posteriormente assume o sentido

também de “ignorância fingida ou simulada”. A ironia tem, geralmente, concepções e

interpretações que se originam da filosofia socrática e da escrita dramática (tragédia). No

primeiro sentido, a ironia é técnica de ensino professada por Sócrates, através da qual o

filósofo não fornece a informação diretamente, mas procede a uma série de perguntas com o

objetivo de levar o indivíduo a chegar ao conhecimento desejado, através do questionamento,

ou a ter consciência clara dos limites de seu conhecimento, e que seja ele a construí-lo. Em

outras palavras, a ironia seria a confissão da ignorância e o desejo explícito de aprender

quando interrogado, inicialmente, sobre o sentido de uma palavra, e posteriormente sobre

qualquer assunto. E Sócrates nem conhecia a teoria Cognitivista-Construtivista.

O outro sentido de ironia, de que se muitos se utilizam, é a ironia dramática que

consiste no efeito que se provoca ao fazer o público entender uma incongruência entre o

contexto de situação e as falas que a acompanham, enquanto os personagens na cena não a

percebem. Ela seria um estilo literário que emprega contrastes para conseguir efeitos retóricos

ou humorísticos. Nessa linha de raciocínio, a ironia teria interpretações várias como: a) uso

das palavras para expressar algo diferente e freqüentemente oposto ao sentido literal; b) uma

expressão ou fala marcada por um contraste deliberado entre o sentido pretendido e o

aparente; c) incongruência entre o que devia se esperar e o que realmente acontece; d) estilo

literário.

Em relação ao humor e à ironia, parece-me ser correto pensar que o humor é o inverso

da ironia no que concerne às verdades, pois se na ironia falo x querendo dizer y, no sentido de

esconder o “verdadeiro” sentido ou a “verdade”, no humor o sujeito mostraria essa “verdade”,

deixando escondido esse dizer. Entre o humor e a ironia, considero o humor mais antigo

porque suponho que o eterno seja mais antigo que o temporal; a ironia tem esse caráter

passageiro e o humor é estado de espírito, portanto pode não ser tão transitório.

Kierkegaard (2005, p.186) 100, afirma que “o cômico arranca o indivíduo da existência

mediata e isso é o aspecto libertador, mas depois o deixa flutuando como o esquife de

Maomé, segundo a lenda, entre dois magnetos, dois pólos, um de atração e o outro de

repulsão”. Nas palavras do filósofo, o humor “contém um ceticismo mais profundo do que a

99 Ao pé da letra significa a arte de interrogar. É método, através do qual Sócrates convidava o interlocutor o tomar conhecimento de seu próprio pensamento, levando-o a compreender que ignora o que acreditava saber, aoo reconhecimento de sua própria ignorância. 100 O livro citado é a dissertação de Kierkegaard defendida em 1841 para obter o título de mestre em teologia e filosofia na Universidade de Copenhagen.

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ironia; pois nele tudo gira não mais ao redor da finitude, e sim além da pecabilidade; [...]”.

Nessa linha de pensamento, ele sustenta que:

o ceticismo do humor se relaciona com o da ironia da mesma maneira que a ignorância se relaciona com a antiga proposição: credo quia absurdum (creio porque é absurdo); mas o humor contém também uma positividade muito mais profunda, pois ele se movimenta não em determinações humanas, mas sim teantrópicas. (KIERKEGAARD, 2005, p. 280)

Segundo ele, ainda, “a figura de linguagem irônica supera imediatamente a si mesma,

na medida [sic] que o orador pressupõe que os ouvintes o compreendem, e deste modo,

através de uma negação do fenômeno imediato, a essência acaba identificando-se com o

fenômeno.” e complementa, dizendo que “a forma mais corrente de ironia consiste em

dizermos num tom sério o que [...] contudo [sic] não é pensado seriamente“

(KIERKEGAARD, 2005, p. 216). Em linguagem bem simples, a ironia resume-se em dizer o

contrário do que se diz, implicando, portanto “o reconhecimento da potencialidade de mentira

explícita na linguagem”. (DUARTE, 2006, p. 18).

Uma contribuição valiosa de Kierkegaard (2005, p. 19) sobre a ironia é, sem dúvida, a

contida na tese VIII da sua dissertação, “a ironia, enquanto infinita e absoluta negatividade

[sic] é a indicação mais leve e mais exígua da subjetividade”. E ainda, nas palavras finais da

mesma dissertação, Kierkegaard (2005, p. 280) afirma que, “na medida, enfim, que a questão

pudesse ser a da “validade eterna” da ironia, aí, esta questão só poderia encontrar sua resposta

quando se entrasse no terreno do humor”, com o que corroboro, pois o humor e o cômico

jamais encontrarão parceira mais fiel e íntima do que a ironia.

A ironia escamoteia o que se quer dizer e o que se diz. Teríamos então de inverter a

teoria de Austin (1992) e de Searle (1979) de que “dizer é fazer”? Não dizer o que se diz seria

não fazer? Melhor, então, calar e não fazer? Não é o que demonstra Shakespeare. Em sua

ironia dramática, ele escreve:

Texto de humor 8

Bobo: “ Sabeis, meu rapaz, qual a diferença entre um bobo amargo e um bobo doce”? 101 O

101 Fool. Dost thou know the difference, my boy, between a bitter fool and a sweet fool? (Shakespeare, King Lear, Ato 1, Cena 4.

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Bobo é um personagem sagaz, influente e importante na peça, porque suas tiradas

cômicas sempre revelam a exata dimensão das tolices e insanidades do Rei. Sempre em tom

metade sério e metade irônico, os comentários do Bobo são usados como única fonte de

sabedoria, coerência e insight na Corte. É o que o texto em questão revela.

Observe-se que Shakespeare, o Freud do século XVI, usa bobo amargo

propositalmente em (pseudo) oposição a bobo doce. Amargo engano, doce ilusão. Não há

oposição lingüística e, ainda assim, a língua é escolhida propositalmente para burlar. O

enfoque dos enunciados posta-se nas expressões qual a diferença e o núcleo do sintagma

nominal bobo (o da Corte) que desnuda a intenção do dramaturgo de mostrar que a tal

diferença não existe: não há diferença entre um bobo amargo e um bobo doce, pois um bobo é

um bobo, não importando seu sabor. Os modificadores são descartáveis, pois o oposto de

bobo amargo seria esperto doce, sintagma ao qual, estou certa, o genial dramaturgo jamais

daria um segundo de sua atenção.

O que conta, na realidade, é o intervalo entre falar e querer dizer, isto é, a ironia que é

magistralmente tecida pela escolha genial das expressões lingüísticas e pela inspiração do

Poeta, que desnuda a presença de outras vozes no discurso (locutor empírico, personagem-

enunciador, personagem-enunciatário) para provoca o humor. É a incongruência da

mensagem que possibilita o potencial entendimento emergente. O efeito é obtido com êxito,

pois a argúcia faz vacilar a ordem lingüística num átimo, numa centelha, e nesse mesmo

intervalo de tempo o sem sentido é descoberto. Em resumo, os erros da vida criam a

tragicomédia; se aceitos, eles criam o humor e o insight; se não aceitos, criam a tragédia.

Nisso e em outras tantas coisas, o Bardo sempre é Mestre.

A ironia é o espaço do impensado e do indizível; é eivada de subentendidos, omissões,

alusões, silêncios que objetivam o mal-entendido, sendo este, na opinião de Jacques Allain

Miller (1999, p. 37) “a essência da comunicação”. Ironia é também antífrase astuta com

intenção de enganar; é malabarismo enunciativo cujo intuito é “manter a ambigüidade e

demonstrar a impossibilidade de um sentido claro e definitivo” (DUARTE, 2006, p. 18). Ela

se forja nos fluxos e refluxos da vida, no tecido sócio-cultural; envolve também inteligência,

porque esta é componente dela, do jogo do intelecto. É ela que estabelece uma relação de

cumplicidade entre leitor e os interlocutores na cena enunciativa.

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3.2.2 De percepção, emoção, mente, pensamento e língua.

É muito irônico o fato de as análises sobre humor serem tão incompreensível e

contraditoriamente sérias. Por isso, em minha tese, ao invés de tratar da seriedade

desumorizada, trato da humoricidade séria. O humor é coisa engraçada. Quando rimos,

penetramos um mundo em que todas as coisas inacreditáveis e inusitadas acontecem e nesse

mundo, creio, grande parte das crenças mais comuns está bastante afastada da verdade, isto é,

elas seriam piadas desvirtuadas. Contrariamente à crença de que as emoções são sentimentos

irracionais, há aqueles que crêem que as emoções são pensamentos.

A maioria das pessoas se acha racional, mas racionalidade - fornecer uma justificativa

causal (Searle, 1990) - não é disciplina dos currículos escolares. Também, não há cursos sobre

como sentir emoções; elas não são ensinadas na escola, como o samba, que não se aprende na

escola. Mas elas estão por aí, pois, existem estudos que sustentam que somos

aproximadamente 75% emoções negativas, ou seja, que seríamos quase todos irracionais,

desescolarizados e emocionalmente perturbados. A maioria das pessoas acha que realmente

existem coisas como idéias, sempre quando estas lhes são apresentadas como novidades. Essa

gente ignora aquilo que os filósofos já sabem há muito tempo: que idéias como tais não

existem. Também falam de ética e do tempo, mas nada estudam sobre esses temas, e por isso

não têm idéia de que eles, em si, são basicamente desprovidos de significação. Ignoram o que

já foi demonstrado: que o tempo como tal não existe, não “pára”, não “passa” ou “voa”, e que

termos como ética e moral são palavras vazias em contextos abertos. Assim falam os

filósofos.

Em minhas discussões sobre os textos de humor, além de priorizar o duo língua-

discurso, faço, também, incursões breves em alguns aspectos da filosofia da linguagem, e em

alguns emocionais, porque contribuem para explicar os mecanismos de construção do humor.

Uso esse procedimento, também, porque Wittgenstein (1968) e outros filósofos da linguagem

comum afirmam que a emoção é “jogo lingüístico”, por incluir o uso da língua em contexto

concreto, e porque seu sentido é forjado, tanto pelo contexto de uso da língua quanto pela

situação. Evito, porém, uma reflexão muito genérica ao excluir a discussão sobre categorias

complexas como o mentalismo e o relativismo lingüístico, porque existem muitos autores e

tendências que contemplam esses temas, mas eles nem sempre mantêm, dentro da história da

lingüística, relações muito amistosas ou muito estreitas com essas categorias complexas. Por

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exemplo, Wittgenstein, já que ele opta por uma dimensão pragmática, até como forma de

contornar certas dificuldades. No entanto, abordo superficialmente a relação entre linguagem,

pensamento e epistemologia da língua, do ponto de vista de alguns autores, por acreditar que

essa temática pode ajudar a explicar minha escolha pelo modo de ver e analisar o humor. Eu

pensaria o humor como uma forma de vida, por seu teor pragmático, e até porque a discussão

sobre o HN de Breton e o HN brasileiro também se apóia nessa categoria.

Wittgenstein e Aristóteles atribuem à língua primazia epistemológica. O primeiro

chama os usos da língua de “formas de vida e essa forma de vida é uma permissibilidade”

(WITTGENSTEIN, 1998, p. 328). Isso quer dizer que a língua, como a aprendemos, é uma

experiência primária que não pode ser explicada por um outro tipo de experiência qualquer.

Ao se referir à “forma de vida”, Wittgenstein refere-se à noção de que vivemos nossa língua,

ou que ela é uma forma básica de vida. “Forma de vida” significa não só “língua da vida”,

mas também “vida da língua”. Já que a língua tem primazia epistemológica, deve-se

considerar a existência de uma “permissibilidade” - e esta não se posta nas noções de que

existem pensamentos, objetos ou comportamentos - para além da qual não se pode ir. “Será

que apenas os que possuem a habilidade de falar podem? Os que dominam o uso da língua?”

(WITTGENSTEIN, 1968, p.174). Logicamente, não.

Wittgenstein (1968, p. 330) questiona: “pensar é um modo de falar?” No entanto, os

testes de inteligência geralmente lidam apenas com a habilidade lingüística. Não há acesso

direto ao pensamento puro. O conhecimento não é traduzido em palavras quando expresso,

isto é, “as palavras não são uma tradução de alguma coisa que estivera lá antes delas”

(WITTGENSTEIN, 1967, p. 191).

Mesmo as pessoas que não crêem nessa premissa têm de dizer algo e, se o fazem é por

meio das palavras que usam; devem, portanto, admitir que possam se comunicar com os

outros e pressupor o sentido, a língua e a comunicação. A própria existência da língua explica

o fato de ela ter primazia epistemológica, mas o pensamento não pode explicar a si mesmo; é

um termo pseudopsicológico e vago. O uso da língua nos fornece um paradigma concreto para

aquilo que geralmente chamamos de pensamento. A palavra pensamento, ela mesma, faz parte

da língua. Pode-se ter “língua” sem “pensamento”, mas não o termo “pensamento” sem a

língua.

Pensamento e linguagem são ainda como o ovo e a galinha: ainda não sei quem veio

antes, em que pesem pesquisas recentes e esclarecedoras sobre o enigma. Também ainda não

sei quem veio primeiro, se Adão e Eva ou o homem das cavernas, porque o casal falava com

Deus e um com o outro, segundo a Bíblia, enquanto o segundo apenas emitia apenas

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grunhidos. Ter-se-ia essa língua do primeiro casal se perdido no meio do caminho?

O fato é que não fica claro se eu tenho condições de saber o que é o pensamento, se

não sei uma língua ou não tenho uma linguagem. É difícil imaginar que eu possa ter primeiro

pensamentos e só depois expressá-los, pois, isso significa que eu poderia saber como eu

pensaria caso nunca tivesse aprendido uma língua ou uma linguagem. Então valeria dizer que

eu saberia o que é pensar, de forma inteiramente independente da língua ou da linguagem.

Mas não é o caso, porque já tenho uma língua. Platão, citado por Kierkegaard (2005, p. 215),

observa que “todo pensar é um falar”, pois, “na medida [sic] que eu falo, o pensamento, o

sentido mental, é a essência, a palavra é o fenômeno”. Por isso, a meu ver, a linguagem é ou

constitui grande parte daquilo que chamo de pensamento. Ainda assim, nunca ouvi alguém

dizer “você devia falar bem antes de pensar”, o que me remete à idéia de que é consenso entre

as pessoas que elas “sabem” que pensam primeiro e falam depois. Ah, esses chavões, falares e

falácias...

O senso comum considera que o pensamento é um fluxo de consciência, uma

composição de um comboio de idéias, uma associação de idéias, uma química mental etc. No

entanto, não há evidências da existência das idéias como entidades (na verdade, nem da

mente). As idéias fazem parte da máquina ficcional da mente. Como sugere a hipótese de

Whorf-Sapir102, “a língua em parte constitui a realidade”, mas Kierkegaard (2005) alega que a

realidade é sempre dada, histórica. Whorf (1956, p. 66) escreve ainda: “pensar é

essencialmente uma atividade lingüística”. Pergunto: falar não seria também um modo de

pensar?

Penso que a língua não é apenas uma forma de comportamento; o comportamento é

uma forma de jogo lingüístico, jogo de usar e falar sobre a palavra comportamento. E esse

comportamento é pautado pelo pragmatismo que o impregna. Mas afinal, por que temos de

dizer, em relação ao pensamento e à linguagem, qual deles vem antes e qual vem depois? Não

podem ocorrer em simultaneidade (S), como acontece com os critérios necessários e

suficientes - violação (V) e normalidade (N) - para que ocorra o humor como propõe a teoria

de humor de Veatch (1998)? Não é verdade também que o homem é produto da sociedade e

produtor dela? Por que a língua não poderia ser produto e produtora-reprodutora do

pensamento? 102 Edward Sapir e Benjamim Lee Whorf, nos anos 50 apregoam que as pessoas vivem segundo suas culturas em universos mentais muito distintos que estão exprimidos (e talvez determinados) pelas línguas diferentes que falam. Deste modo, também o estudo das estruturas de uma língua pode levar a elucidação de uma concepção de um mundo que a acompanhe. Esta proposição suscitou o entusiasmo de uma geração inteira de antropólogos, psicólogos e de lingüistas americanos e, em menor escala, europeus, nos anos 40 e 50, antes de ser enfraquecida pela corrente cognitivista

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3.2.3 Teorias de humor

Teorias são geralmente abstratas, e às vezes, consideradas (como) piadas. Os

humoristas e comediantes não vêem muita utilidade nas teorias de humor, o cidadão comum

não vê nenhuma, mas os lingüistas e filósofos as encaram, embora ainda continuem curiosos,

à procura de uma que decida algumas coisas, mas não tudo – tarefa inexeqüível, pelo menos

até hoje.

Abordo conjuntamente a seguir as teorias de Raskin103 (1985), Raskin e Attardo104

(1991, 1994) e Thomas Veatch (1998) 105, conferindo-lhes uma discussão comparativa,

primeiro por razões de concisão, e segundo porque a mescla dessas teorias aponta diferenças e

semelhanças que podem resultar num melhor entendimento sobre ambas.

3.2.3.1 Teoria semântica do humor verbal

A Teoria Semântica do Humor Verbal, Semântica dos Scripts, ou dos esquemas

incompatíveis, elaborada por Victor Raskin (1985), é um dos mais completos, meticulosos e

conhecidos livros no século XX sobre o humor e o riso. Ela se insere no domínio da

semântica cognitiva. O objetivo de Raskin é estabelecer um modelo formal da competência

humorística e apontar que combinações cedem lugar a estruturas humorísticas e quais não

cedem.

Pensando em um formato de teoria semântica que fornecesse um parâmetro norteador

para todas as instâncias enunciativas do humor, Raskin sustenta a idéia de que o humor é

simplesmente a repentina percepção da incongruência entre conceito e objeto real, sendo,

portanto, um jogo de relações de desapropriações, paradoxos e dissimilaridades. Para entender

tais relações, o leitor deve imaginar e comparar os elementos do labirinto situacional,

interpretando o significado das incongruências. Nesse processo, apenas um script se sobrepõe

ao outro, fazendo emergir apenas uma interpretação. Segundo o lingüista, depois disso é que

os textos são interpretados com um único significado, momento no qual o leitor também

103 SSTVH - Semantic Script Theory of Verbal Humor 104 GTVH - General Theory of Verbal Humor 105 A Theory of Humor

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percebe a intencionalidade discursiva. Em outras palavras, o leitor é capaz de captar a

direcionalidade da forma enunciativa do texto, qual a sua função e quais são as peças que

compõem o jogo humorístico. A meu ver, porém, não é sempre que apenas um significado

pode emergir, como explico anteriormente no texto da baiana do acarajé, neste mesmo

capítulo.

O princípio básico da incongruência, presente em toda espécie de humor, é exposto

por Raskin (1985) como algo lingüístico, ou visual, que faz as pessoas rirem. Daí, a idéia de

que o ridículo torna-se a veia propulsora da comédia, como acreditava Aristóteles: o ridículo

pode ser definido como um erro ou uma deformidade não passível de dor ou dano para os

outros. Dessa forma, as pessoas riem das estranhezas que lhes são inesperadas. Estas não

causam dor ou dano, porque são criadas para um jogo específico, em que tudo é permitido, ao

mesmo tempo em que se torna agradável e provoca o riso. É por isso que nas charges

políticas, por exemplo, são permitidos políticos caricaturados, com corpos de animais, narizes

de Pinocchio, figuras humanas com cabeças de bichos e fisionomias diabólicas. Em síntese,

tudo o que seria irreal ou imaginário.

Segundo os postulados de Chomsky, a habilidade de o falante nativo julgar uma

sentença como gramatical ou agramatical faz parte de sua competência lingüístico-

comunicativa. Raskin (1985) se apropria desse postulado e remete essa habilidade para o

reconhecimento dos elementos engraçados de um texto e para a construção do humor. A

natureza do risível é construída no plano lingüístico, através de uma consciência gramatical e

a partir do conhecimento anterior, de inferências, coerência e contexto. Sob esse prisma uma

sentença pode ser gramatical, desde que tenha sentido para o falante.

Do ponto de vista de Raskin, seus predecessores, como Bergson e Fry, por exemplo,

trazem grandes contribuições à semântica do humor. A principal contribuição de Bergson foi

apresentar uma classificação do humor propondo a distinção entre humor expresso e humor

criado. Dentro dessa visão, Raskin acredita que ambas as formas, natural e espontânea,

correspondem ao humor espontâneo, portanto não-intencional, enquanto o humor criado

admite determinadas intenções e situações que direcionam a construção do humor. Nessa

linha de pensamento, o ridículo estaria atrelado à intenção e o jogo de palavras às técnicas, ou

seja, o ridículo estaria associado ao modo como se constrói o humor verbal, a partir do uso

das figuras de linguagem e da retórica como ironia, ambigüidade, paródia, alusão e

pleonasmo.

Quanto aos textos de humor verbal, Raskin trabalha com as charadas, as piadas e as

anedotas. As piadas e as anedotas são histórias curtas, o que não constitui novidade, e

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engraçadas, sendo este o objetivo da piada. Entretanto, piadas nem sempre são engraçadas e

nem sempre resultam em risos, mas em vários outros tipos de emoções como ira, medo, e

tristeza. A piada pode ser definida como um item, uma manifestação, do humor, reduzido a

um ponto singular ou partícula. Sendo assim, podemos caracterizar esse humor das piadas

como um conjunto de vários elementos, como propõe Raskin.

A partir de sua análise, Raskin também deduz que os textos de humor verbal das

piadas são criados por um ou mais discursos sobrepostos cuja relação satisfaz as condições

lingüísticas para o texto ser engraçado. Gramaticalmente, seguindo a teoria lingüística

chomskyana, a percepção da sobreposição de discursos faz parte da competência lingüística

do leitor, que inclui habilidades de consciência de pressuposições, coerência, contexto e

apropriações. As implicaturas também são levadas em consideração pelo autor, como o uso de

sentido figurado, a partir dos quais os mundos possíveis (realidades criadas) são entendidos.

Assim, em conformidade com a teoria semântica proposta por Fry, citado por Raskin

na obra em questão, e com a teoria lingüística sobre gramaticalidade das sentenças de

Chomsky, Raskin considera que as habilidades gerais do falante nativo são:

(i) a determinação do número de leituras (significados) de cada sentença;

(ii) o resgate do conteúdo de cada leitura;

(iii) a detecção de anomalias semânticas.

(iv) a percepção de relações entre sentenças.

Diante desse quadro teórico das habilidades dos falantes, pode-se inferir que o humor

requer a percepção106 de todos os elementos que constituem a relação de leituras,

ambigüidades e paráfrases (relações entre sentenças), uma vez que a elas compete a ligação

indireta com um determinado fato discursivo de qualquer natureza. Sob esse prisma, Raskin

acredita que toda sentença é percebida em algum contexto, porém, caso o contexto não seja

explicitado pelo discurso adjacente ou pela situação extralingüística, o leitor usará seus

conhecimentos prévios. Portanto, além da relação entre sentenças e contexto, a percepção

também se atrela às habilidades/conhecimentos do leitor, à sua memória discursiva e

principalmente à sua capacidade cognitiva de estabelecer associações.

No que concerne à ambigüidade, o lingüista afirma que os falantes nativos têm a

consciência da ambigüidade, mas não são capazes de processar o significado das sentenças

106 Componente adicionado pelo lingüista polonês Wladyslaw Chlopicki (1997) às “Fontes de Conhecimento” (FCs) criadas por Raskin e Attardo (1993), das quais tratarei mais adiante.

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ambíguas ao mesmo tempo. Logo, o que ocorre nesse processo é a relação entre contextos

discursivos diversos, em que o leitor estabelece o julgamento daquilo que é engraçado. É a

esta altura de seu trabalho que Raskin (1985) usa o termo “gatilho” como elemento básico que

faz disparar a “bala do riso”.

Em termos de regras semânticas, a habilidade de o falante combinar os significados

contribui para a interpretação semântica. Entretanto, Raskin admite que, além dos itens

lexicais, existem aqueles de ordem extralexical, ou seja, as propriedades semânticas evocadas

por palavras que não se encontram na superfície textual, mas que constroem um quadro

imagético dedutivo externo às sentenças. Muitas vezes, nessa espécie de construção sintática,

o gatilho do humor pode ser captado através da percepção desse quadro relacionado à

superfície sintática e ao contexto situacional.

Para esclarecer essa questão, Raskin usa os enunciados “Maria viu um gato preto e

imediatamente voltou para casa”, cuja dedução lógica é tirada da segunda oração, pois ela

aponta para a existência de certo medo por gato preto, em função de seu suposto malogro.

Considera a pressuposição relevante para se reconhecer uma das declarações como verdade.

Sendo assim, afirma ele, o falante nativo é capaz de perceber os discursos que subjazem ao

plano textual, através da pressuposição.

Considerada uma das marcas da heterogeneidade enunciativa, a pressuposição que

Raskin menciona ao tratar do exemplo “Maria viu o gato preto e imediatamente voltou para

casa” é entendida como um processo, no qual dois enunciadores se apresentam - E¹ e E² -,

sendo o primeiro responsável pelo pressuposto “gatos pretos são agourentos” e o segundo

pelo posto “Maria tem medo de gatos pretos”, conforme idéias de Ducrot, citado por Authier-

Revuz (1982). Esse é um dos pontos de vista dos lingüistas sobre pressuposição: os

pressupostos são tipos especiais de conteúdos inscritos nos enunciados e que remetem a

realidades supostas, compartilhadas entre os interlocutores e provenientes de seus saberes

prévios, tornando-se, assim, numa espécie de suporte sobre o qual os postos são formulados.

Por isso, são assumidos por um tipo de voz coletiva e, por essa razão, para Ducrot (1972), são

da ordem da polifonia enunciativa, com a qual E¹ seria assimilado ao locutor e E² à opinião

pública. Outro exemplo para esse tipo de pressuposição seria:

Contexto de situação - alguns intelectuais-poetas reunidos falam da produção de um

determinado poeta e suas opiniões divergem sobre a qualidade dessa produção, mas é

consenso que ela é bem fraca. Um deles diz: “Devido às críticas desfavoráveis, o poeta não

quis mais escrever”.

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Posto - “atualmente não escreve”,

Pressuposto - “escrevia antigamente”

Subentendido - (calculado por inferência a partir desse contexto de situação) poderia

ser “ele faria bem em não escrever mais”.

A pressuposição, diferentemente do subentendido, pode ser detectada por via de um

marcador lingüístico (no caso, mais). No entanto, a questão da pressuposição não é tão

simples, pois ela concorre com fenômenos como o da explicitação (e implicitação) 107 e do

não-dito, entre outros. Não é tarefa simples distinguir ou analisar esses conceitos, quando eles

não se encontram alinhados, ou não são comparados. Além disso, naturalmente, existem

outras maneiras de se observar o comportamento do fenômeno da pressuposição.

Uma segunda maneira seria a defendida por outros lingüistas: a pressuposição vista

como fenômeno ordinário, o sentido enciclopédico ou dicionarial do termo. Já sob a visão da

filosofia (lógica), a pressuposição é um processo em que os pressupostos de um enunciado

são identificados, geralmente, às condições que permitem que esse enunciado receba uma

reorientação e um valor de “verdade”. Já Kerbrat-Orecchioni (1978, p. 56), afirma que “toda

asserção é assumida explícita ou implicitamente, por um sujeito particular e é para este

sujeito, em primeiro lugar, que ela é verdadeira.” Um exemplo para a orientação desse

segundo tipo de pressuposição seria “Pedro impediu Maria de partir.”, que pressupõe: Maria

tentava partir. Utilizo em meu texto essas visões de pressuposição indiscriminadamente. A

pressuposição também merece tratamento de Ducrot (1972); Keenan (1971); Frege (1978),

entre outros.

No entanto, para Raskin (1985), a pressuposição também pode se localizar num plano

extralexical ao qual ele acrescenta a noção da recursividade semântica, ou seja, a interpretação

do leitor passa por várias combinações de operações chamadas gatilhos de recursividade

semântica. Estes são deflagrados por palavras que se referem a algo fora da sentença ou por

relações que são estabelecidas com a sentença anterior, além da percepção de alguma

informação pertinente não explicitada no discurso anterior. Nesse discurso, estão incluídos o

conhecimento de mundo, a lógica, as noções de senso comum, como também os padrões de

humor aceitos. Logo, o processo interpretativo de um texto implica a percepção de pistas

emprestadas pelo autor. Além da percepção das pressuposições, da recursividade semântica, 107 São processos mentais que consistem em manifestar, primeiramente, o que não está claramente expresso pelas palavras do enunciado, e segundo em não expressar claramente certas informações que ficam, portanto, latentes no enunciado. O autor escolhe, portanto, no seu ato de enunciação, explicitar ou não certas informações, deixando ao interlocutor a tarefa de descobrir aquelas que estão implícitas. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 233).

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das implicaturas e dos atos de fala indiretos, o falante ainda tem que elaborar inferências,

conjecturas, alusões e clichês, aos quais recorre a cada momento de interpretação do humor,

na busca pelo significado.

Com o intuito de estabelecer um formato de teoria semântica, Raskin, que também se

preocupa com a noção de significado, retoma (1967) para afirmar que a noção de significado

de uma palavra é seu “uso na linguagem”, ou seja, toma o significado como uso. Porém, o

autor não descarta a hipótese de que haja também certa propriedade inerente, quando levada

em conta a habilidade de se adaptar a palavra em diferentes enunciados. Isso talvez explique a

razão de as palavras poderem ser usadas com sentidos diferentes, apregoa Raskin.

Ao propor sua teoria semântica do humor, Raskin (1985) formula, ainda, que há duas

importantes premissas para o efeito de humor, ou seja, o texto ser compatível com duas

proposições que se opõem. Para ele, duas proposições superpostas são percebidas como

opostas em determinado contexto, e é com elas que o humor é criado sob três aspectos:

dicotomia real/irreal, oposição de discursos e categorias da existência humana. Também são

consideradas como oposições as dicotomias atual/não atual e absurdo/possível. Portanto, o

humor seria uma relação de proposições diversas, em que o sentido é produzido nas fendas,

nas interfaces dessas oposições. Muitas das vezes as proposições são expostas por alusão, na

qual a presença de outro fenômeno é marcada pela comparação entre o objeto alusivo e a

primeira proposição.

Na busca pela interpretação da piada que o fará rir, na visão do autor, o ouvinte não

espera que o falante lhe conte a verdade sobre os fatos ou observe pontos de informação

relevantes, mas percebe claramente a tentativa e a intenção do falante de fazê-lo rir. Dessa

forma, o objetivo do falante é atingido, quando a percepção do ouvinte se aproxima de sua

intenção. Segundo Raskin, toda pretensão de fazer humor começa com um impulso para fazer

uma piada que pode ser caracterizado como a razão, ou o conjunto de razões através do qual o

falante deseja provocar o riso em outrem. Mais especificamente, o lingüista aponta possíveis

razões psicológicas, fisiológicas ou sociológicas, com as quais o falante demonstra a intenção

de estabelecer relações afetivas de diversas ordens com o ouvinte.

Além das relações de oposição e da percepção da intenção do fazer rir, uma das

maiores contribuições de Raskin ao universo semântico é a noção do “gatilho semântico”, já

citado, ou simplesmente “gatilho”, que é um elemento que, segundo ele, é parte integrante de

qualquer piada que apresente dois aspectos semânticos distintos: ambigüidade ou contradição.

No processo de construção da piada, o gatilho pode ser entendido como o elemento capaz de

introduzir o segundo discurso à sombra do primeiro, estabelecendo a relação entre os dois, e

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principalmente impondo uma interpretação diferente da do primeiro. Em outras palavras, o

papel do gatilho é propor uma interpretação diferente que provoque o riso espontâneo.

Portanto, o desafio do humor é construir um texto evocando outro, o qual apresentará uma

oposição em suas proposições, deflagradas pelo jogo de significados por via da homonímia ou

da polissemia, ou de outros elementos semânticos, e fazer o texto ser risível.

Em sua teoria, Raskin aponta apenas três temas para se produzir o humor: étnico,

sexual e político. No humor sexual, o autor caracteriza o padrão de oposições de discursos

entre relações com o sexo em geral e a negação a ele. Em termos da construção da piada, esse

tipo de humor inclui uma nova categoria - combinar um significado sexual com um não-

sexual. Ou ainda fazer alusão a alguma obscenidade, seja na fonética, na imagem ou mesmo

no discurso lingüístico.

Quanto ao humor étnico, as oposições são atreladas às formações sociais (FDs) dos

falantes, e muito freqüentemente associadas ao que se pensa ser uma boa ou má etnia. Em

outras palavras, o autor acredita que a maioria das piadas de humor étnico é depreciativa.

Normalmente, a distorção lingüística é evocada na fonologia, isto é, pronuncia-se de maneira

diferente, sendo o gatilho necessário para a relação de oposições de identidade, além da

superioridade de um grupo sobre outro, da auto-exaltação, ou ainda a interferência de outras

categorias de humor como o sexual ou o político. É interessante observar, ainda, que o humor

étnico remete à discriminação que muitas vezes é associada a outro tema escolhido por

Raskin, o humor sexual, e que redundaria também em comparações de cunho social.

Ao tratar do humor político, Raskin alega que o humor é um jogo. Dos elementos

citados por Fry, os quais Raskin corrobora, incluem-se o sentimento de repulsa ou desprezo,

desconfiança, deboche e desesperança sob determinado aspecto, como ocorre nas charges

políticas, por exemplo, em que a figura do político é denegrida de forma persuasiva, a partir

das críticas convincentes e da opinião do autor. Sendo assim, o riso da piada estaria

diretamente atrelado à crítica à imagem política, crítica essa que desnuda pontos fracos,

falhas, escândalos, corrupções, impressões e ações.

Em síntese, além de afirmar que o texto de humor tem sempre como tópicos o sexo, a

política e o racismo, em torno dos quais girariam outros subtemas, o lingüista postula que

uma caracterização do chiste em termos semânticos deve conter os seguintes ingredientes: a)

uma mudança do modo de comunicação bona-fide para o modo não bona-fide de contar

piadas; b) um texto considerado chistoso; c) dois scripts (parcialmente) superpostos,

compatíveis com o texto; d) uma relação de oposição (incompatibilidade) entre os dois (como

em obscenidade/pureza, violência/não-violência, pobreza/riqueza, vida/morte, bem/mal etc.);

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e) um gatilho, implícito ou óbvio, que faculte a passagem de um script ao outro.

O ingrediente (b) um texto considerado chistoso, acima, parece-me dispensável,

porquanto estranho. Como seria isso? Para caracterizar um chiste é preciso ter um chiste, um

texto chistoso? Isso é tautologia pura, pleonasmo, vício de linguagem que faz o critério pobre

e inoperante. Penso que o que Raskin precisa é apenas de um texto que tenha os scripts que se

justaponham e sejam incompatíveis entre si, mas compatíveis com esse texto.

Outro ponto da teoria de Raskin a se considerar é que, em que pese seu trabalho

competente, o lingüista afirma que os temas do humor se reduzem a “sexo, etnia e política” e

seus subtemas, generalização perigosa, da qual discordo por não coadunar a verdade. Neste

trabalho mesmo, abordo textos que não se enquadram nos três tópicos, e nem nos subtópicos a

que se refere o lingüista. Exemplo disso é a maioria de textos de HNb irrisíveis e o texto da

“baiana do acarajé”, entre outros. Posso apenas crer que esses temas (sexo, política e racismo)

sejam mais recorrentes no humor americano, ou no de outras culturas, mas reduzir o humor a

esses três temas como parte de uma teoria é, se não incorreto, pelo menos temerário.

Não são apenas os elementos verbais que compõem um texto de humor. Porém, o que

interessa a uma análise que enfoque a língua é a descrição desses gatilhos e das causas que

fazem um texto compatível com mais de um script. Em outras palavras, a análise deve girar

em torno de “qual é a característica textual, verbal da piada” (POSSENTI, 2002, p. 23), ou

seja, do texto humorístico.

Raskin define, ainda, três fases para a construção do humor verbal. Na primeira, um

script é ativado; na segunda, a informação que é incompatível com esse script é ativada,

gerando ambigüidade; e na última fase, a ambigüidade é desfeita. O autor esclarece a respeito

dessas fases, analisando o seguinte exemplo:

The first thing that strikes a stranger in New York is a big car. 108

Segundo ele, a sentença é processada de tal modo que o primeiro sentido/script ativado

para o verbo strikes é, “surpreende”, imediatamente seguido da ativação do sentido/segundo

script de “colide”, depois que se lê o sintagma a big car. Como esses sentidos são ativados

simultaneamente, surge a ambigüidade, promovida pela polissemia do verbo strikes. Somente

quando essa ambigüidade é desfeita, o humor emerge. O humor não parece ser um curto

circuito lingüístico-mental? 108 “A primeira coisa que surpreende um turista em Nova York é uma limusine. / A primeira coisa que atropela um turista em Nova York é uma limusine”. Coloco o inglês no corpo do texto, por ser um exemplo de Raskin e porque uma análise dos enunciados em português não teria sentido.

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Raskin explica no texto anterior, ainda, que o primeiro sentido ativado para o verbo

strikes é “surpreende” (primeiro script), imediatamente seguido da ativação do sentido de

“colide” (segundo script). Com essa descrição, ele parece reconhecer que há uma ativação

consecutiva e não simultânea dos critérios. Mas creio que o autor não teria como descrever as

ocorrências desses critérios, se não optasse por uma seqüência qualquer. Segundo garantem

Veatch (1998), e o próprio Raskin, o que ocorre é uma justaposição simultânea dos scripts na

mente, como num curto circuito.

Para Raskin, do ponto de vista psicológico, humor e riso são apenas estratégias de

dissimular ou mascarar outros estados mentais, como a raiva, por exemplo. Isso explicaria

porque as pessoas costumam rir para disfarçar a timidez ou o nervosismo. Nessa linha de

pensamento, posso considerar que o riso, além de ser expressão de sentimentos de alegria,

felicidade, prazer e diversão, seria mecanismo de defesa. Posso ainda inferir que o humor,

enquanto estratégia para determinado fim, é de cunho intencional, pois aponta uma

direcionalidade no plano discursivo: atingir o interlocutor, embora o humor não mire

especificamente o indivíduo, ou a instituição, mas a própria condição humana.

Raskin apresenta ainda uma longa lista de termos que denomina incompatíveis:

maldade, violência, obscenidade, pobreza e morte, temas cuja violação o ser humano abomina

ver, ao passo que a não-violência, o não-obsceno, a riqueza, a vida e o bem estão em

conformidade com a ordem social e moral, sendo, por isso, acatados como aceitáveis e

desejáveis. Veatch (1998) corrobora a utilização daquela lista de termos incompatíveis de

Raskin como representando a normalidade versus a violação; com isso, esse autor quer dizer

que os dois scripts que se justapõem, atuando simultaneamente (S), oferecem condições

necessárias e suficientes para deslanchar o humor. Delineiam-se, então, semelhanças entre as

teorias dos dois autores.

Nos últimos anos, surgem outros pesquisadores que avançam a teoria de Raskin, entre

eles o próprio Raskin, com a Teoria Geral do Humor Verbal109, em parceria com Salvatore

Attardo (ATTARDO; RASKIN, 1994), na qual apresentam os seis componentes do humor

linearmente ordenados, chamados “Fontes de Conhecimento” (FCs) 110, a saber: oposição dos

scripts, mecanismo lógico, situação, alvo, língua e estratégia narrativa. Segundo o lingüista

polonês Chlopicki (1997), a única dessas FCs relacionada ao ser humano é “alvo” e que a

classificação de uma piada como sendo de polonês, de belga ou de judeu, advogada por

109 General Theory of Verbal Humor. 110 Do inglês KRs = Knowledge Resources.

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Attardo e Raskin, não basta para uma análise. Por isso, o polonês acrescenta outro

componente às fontes para o estudo do humor: a percepção. Todos os seis componentes são

importantes para explicar esses tipos de textos, embora eles nem sempre expliquem a virada

humorística, alega ele.

Pondero que, embora a inserção da percepção como um dos componentes das FCs seja

de importante lembrança para a análise do discurso do humor, Attardo e Raskin talvez não

tenham dado atenção a essa FC, porque contemplam em seu livro a língua do humor verbal e

não os aspectos psicológicos. Além disso, não me parece importante dar destaque a essa FC,

uma vez que fica inviável a interpretação de qualquer texto sem seu concurso. Trato mais

criteriosamente das FCs no capítulo 4, por serem imprescindíveis para a descrição do HNb.

3.2.3.2 Uma Teoria de Humor

Thomas Veatch (1998, p. 1) define humor como um “certo estado psicológico que

tende a produzir o riso” 111. Em sua teoria, o lingüista americano apregoa que três condições

são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para a ocorrência do humor:

normalidade (N), violação (V) e simultaneidade (S). As condições descrevem um estado

subjetivo de absurdidade emocional, porque uma situação é percebida como normal, mas

simultaneamente alguma crença ou algum princípio moral subjetivo, que deve ser respeitado

como ele espera, é violado. Essa é a grande contribuição de Veatch para a percepção,

descrição, construção e análise dos textos de humor.

Veatch afirma que, se as três condições conjuntamente suficientes estiverem presentes

na mente do indivíduo, então o humor também estará. Considera essa lógica muito simples, já

que na ausência de uma das três condições necessárias, a percepção de humor se inviabilizará,

por isso, N e V são categorias básicas de sua teoria. Como essas categorias se opõem, V é a

ausência de N, e N a ausência de V. Resumindo, N afirma que tudo está bem e V nega que

tudo esteja bem, que, ao contrário, algo vai mal.

111 [...] that certain psychological state which tends to produce laughter.

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Quanto à violação (V), de acordo com a teoria, as situações em que nada soar errado

para o ouvinte serão percebidas como sem graça. Observe-se que a percepção de uma

violação (V), em uma dada situação, atinge a ambos a situação e ao ouvinte. Isso quer dizer

que, uma dada situação pode não ter uma violação óbvia e, assim, não trazer humor. Por outro

lado, ao compartilhar essa mesma situação, um outro ouvinte, que pode ter ponto de vista

diferente do modo como as coisas devam ser, ou tenha diferentes crenças ou compromissos

em relação àqueles pontos de vista, com certeza perceberá o humor de modo diferente.

Portanto, a percepção do humor é duplamente subjetiva: no sentido de ser um evento

psicológico da subjetividade e no de terem os sujeitos diferentes percepções.

Não haverá percepção de humor, nem riso, se a situação não puder ser interpretada

como normal. Isso pode ocorrer, quando a normalidade se ausentar inteiramente, ou escapar à

percepção do ouvinte, devido a uma violação insuportável a uma crença ou a um princípio

muito enraizado na moral subjetiva do ouvinte. O ouvinte pode ainda se ofender ou se sentir

ameaçado, ao invés de se sentir alegre ou descontraído. O que a teoria apregoa é que não há

uma via única, mas várias interpretações possíveis de uma dada situação.

Em relação à simultaneidade (S), se as duas interpretações não forem feitas ao mesmo

tempo, a percepção do humor não ocorrerá. Só conjuntamente é que as condições necessárias

N e V podem forjar humor, mas nenhuma delas é suficiente sem a ocorrência da

simultaneidade. Isso explica o fato de algumas pessoas não manifestarem as reações

“previstas” diante de determinados textos de humor.

Veatch explica que as interpretações de N e V não são completamente independentes,

ao interagirem na mente, porque elas se justapõem. Se o ouvinte tiver uma relação muito

profunda com o princípio violado, talvez lhe seja impossível interpretar N e V ao mesmo

tempo, porque a violação é tão intensa que ela sobrepuja a normalidade. E, segundo Veatch, a

força relativa das duas interpretações é essencial; a interpretação da normalidade deve

sobrepor-se à da violação, ou ser sentida como mais real e correta, isto é, o ouvinte deve sentir

a situação como normal, sob controle, apesar da violação.

A teoria, à qual Veatch também denomina N+V+S, fica sintetizada nos três critérios

no quadro abaixo.

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1

NORMALIDADE

O ouvinte tem uma visão da situação como sendo normal.

2

VIOLAÇÃO

Um princípio moral subjetivo é violado.

3

SIMULTANEIDADE

A normalidade e a violação ocorrem na mente do ouvinte

ao mesmo tempo.

Quadro 3: Ilustração das condições para se construir o texto de humor. Fonte: A Theory of Humor, in Journal of Humor Research, Berlin: Mouton DeGruyter, May 1998.

O quadro aponta, em poucas (talvez imprecisas) palavras, que o humor acontece

quando parece que as coisas estão normais, enquanto, ao mesmo tempo, algo de errado ou

estranho ocorre. Uma violação às regras morais, éticas, sociais, religiosas etc. ocorre, mas, as

coisas estão bem ou normais, nunca más. Trocando em miúdos, apesar do óbvio paradoxo, o

humor é dor (emocional - V) que não fere (N). Comento essa última afirmativa mais à frente.

Como a mente não é uma máquina que opera do mesmo modo para todas as pessoas

em relação ao humor, nem algo que se possa manipular ou controlar, embora a fórmula de

Veatch venha descrita na ordem: Normalidade + Violação + Simultaneidade, nada garante a

manutenção dessa seqüência. Isso quer dizer que não se pode estabelecer uma ordem fixa de

percepção para o processamento da normalidade, ou da violação, pois as palavras podem ter

muitos significados e um deles (ou alguns, talvez) são mais fortes e mais proeminentes do

que outros. É certo que, se há violação, há uma normalidade e, se há uma normalidade, há

uma violação; são as contrafactualidades. Por isso, não é importante saber que opção o ser

humano faz por essa ou aquela condição para iniciar seu processamento da percepção de

quaisquer textos de humor. Mas, assim que detectadas, as duas condições se justapõem e são

interpretadas no mesmo instante, apesar da simultaneidade aparecer em terceiro lugar na

descrição de Veatch e no quadro acima. Por isso, as três condições também poderiam ser

assim representadas:

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NORMALIDADE VIOLAÇÃO SIMULTANEIDADE

Figura 5: Três condições da construção do texto de Humor

A simultaneidade (S) é ponto de interseção entre a violação (V) e a normalidade (N) e suas

cores são, obviamente, metáforas.

Texto de humor 9

Se você não encontrar sua meia laranja, não desanime... (Normalidade) Encontre seu meio limão, coloque açúcar, gelo, pinga e seja feliz! (Violação)

Tanto a normalidade quanto a violação giram em torno do dito popular “Toda pessoa

tem sua meia laranja”, se bem que “laranja madura na beira da estrada tá bichada, Zé, ou tem

marimbondo no pé” 112. O humor se deve à escolha cuidadosa das metáforas e do léxico que

forçam o texto a trilhar outro sentido. Observe-se que se ele acabasse em “meio limão”, o

texto teria outra intenção, um pouco azeda, mas também hilária.

112 Verso da canção do compositor Ataulfo Alves, dos anos50.

V

NS

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Retomando Veatch, ele propõe, além das três condições de construção de textos de

humor (N + V + S), uma “generalização das classes de oposições”, ao ampliar

consideravelmente, segundo ele, o repertório dos duos incompatíveis da teoria dos scripts de

Raskin, o que lhe permitiria pensar sobre temas mais complexos, de modo que se possa tentar

penetrar nos meandros de tópicos a que ele denomina misteriosos. É que, segundo Veatch, a

teoria de Raskin limita-se às piadas de humor verbal, não analisando aquilo que está fora do

âmbito da língua, o que parece uma visão reducionista-simplista da teoria dos scripts, porque

Raskin não pode lidar com aspectos extralingüísticos como o imagético, gestual, os suspiros,

o sobrolho distenso ou cerrado, e nem com diferenças de interpretações. Assim, ficam

relegados na teoria de Raskin, não só as diferenças de avaliações efetivas pelos diferentes

sujeitos, mas também as de tensões numa dada situação social, entre outros aspectos, os quais

Veatch acredita contemplar em sua teoria.

A Teoria do Humor de Veatch, segundo alguns críticos, seria supostamente completa e

um tanto ambiciosa. Entretanto, ele afirma que seu trabalho, intimamente atrelado à teoria de

Raskin, porque utiliza os scripts deste lingüista, constitui um avanço a ela, quando introduz as

condições de produção (N+V+S) do humor e ao trabalhar com o texto não-verbal. Em síntese,

Raskin toma como objeto de seu estudo o humor verbal e Veatch (1998) o não-verbal,

aspectos em que os dois trabalhos diferem. As duas teorias se complementam, razão pela qual

embaso meu trabalho de análise dos textos de HNb em ambas.

Menciono anteriormente que o humor é dor emocional (V) que não fere(N). Para

explicar isso, conclamo o pensamento de Sócrates e Platão, quando tratam do papel que as

emoções desempenham na vida do homem e na questão do riso e do risível. Sócrates é bem-

humorado, mas Platão considera o riso sinal de fraqueza, arrogância e o abomina; ambos

desenvolvem argumentos sobre o sujeito que ri e não sobre o objeto riso. Platão aponta que as

ações humanas são estimuladas por três fontes principais: o desejo, a emoção e o

conhecimento. E complementa afirmando que desejo, apetite, impulso, instinto, seriam uma

delas; emoção, entusiasmo, ambição, coragem, a segunda e conhecimento, pensamento,

inteligência, razão, a terceira. De modo geral, os filósofos explicam a ação do homem pela

razão, pela inteligência e pelo conhecimento. Assim, impulsos, instintos, emoções e ambições

sofreriam um polimento natural pelo cinzel do pensamento e, portanto, cada ação estaria

condicionada ao livre arbítrio, o que moldaria os desejos inconscientes conferindo-lhes uma

nova versão. Isso se aplicaria à psicanálise séculos depois e também ao humor e ao riso.

.Sócrates divide as pessoas em amigos (fracos) e inimigos, para lidar com a inveja -

dor da alma, uma das doenças espirituais, uma emoção, ou malícia, inveja (phtonos), segundo

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Platão. Quando se ri de um amigo, diz Sócrates, cometemos injustiça e experimentamos um

prazer cuja causa é a inveja. Porém, quando rimos dos inimigos, não há nem injustiça nem

inveja. Quando rimos de nossos amigos (fracos), misturamos o riso (prazer) e a inveja (dor), o

prazer e a dor, pois no dizer de Sócrates a inveja é uma “dor da alma” e o riso um prazer, e

ambos, a dor (da alma, emocional) e o prazer (falso, o riso), coexistem pacificamente nessas

ocasiões. O prazer que se experimenta no caso do humor é marcado por um engano:

pensamos experimentar um prazer puro, mas na verdade ele é mesclado com a dor, é um falso

prazer, é um prazer afecção, confirma Sócrates. Por isso, humor é dor emocional que provoca

o riso. A situação e os textos de humor a seguir procuram exemplificar essa dor emocional

que não fere, na cultura brasileira.

Humorista mineiro e criador de seus próprios textos, Geraldo Magela tripudia da

própria desventura de ter ficado cego na fase adulta, fazendo humor (negro) com a própria

desgraça. Conta ele113:

Certa vez, convidaram-me para ser olheiro da seleção brasileira de futebol na Copa do

Mundo, para que com minha visão pudesse fazer comentários sobre os jogadores de outras equipes estrangeiras. Meu modo de ver as coisas me ajudou muito.

A seguir, Magela descreve uma viagem:

Um dia fiz uma excursão a Paris e o guia me aconselhou a subir à Torre Eiffel de onde eu teria uma vista incrível da Cidade Luz; subi à Torre, paguei caro, mas nada vi.

Depois dessa visita à Europa, Magela conta aos apresentadores do programa que

decidiu escrever um livro intitulado “Magela: um ceguinho de olho no futuro”. Quando ouço

esses discursos de Magela, primeiramente sinto que há “algo errado”, e esse errado resulta em

efeitos emocionais. Sinto então uma dor da alma. Sei que o humorista é portador de

deficiência visual e sinto que fazer troça sobre sua diferença é violação; depois, penso no

modo como Sócrates e Platão argumentam sobre o riso e o humor: ele envolve dor e prazer.

Rio também desses textos de Magela com prazer, movida também pela auto-ironia que ele usa

113 Dados da entrevista de Geraldo Magela, numa participação no programa Hoje em dia, da Rede Record de Televisão. 24 jan. 2007.

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para compor seu texto.

A auto-ironia consiste na crítica do autor à sua própria imagem, que lhe permite

explicitar e até atacar seus defeitos antes do leitor e previamente se defender, ou ainda propor

certa conivência, até mesmo uma cumplicidade, com o personagem-enunciatário ou com o

leitor/ouvinte. Nesses casos, a ironia atua como autosuperação da subjetividade que vai aos

limites extremos, talvez a mais alta forma de distanciamento, mas, sobretudo, de liberdade, no

sentido usado por Morin (2006). Este filósofo comenta que “no contexto do pensamento

complexo114 temos de desenvolver não somente a crítica, mas a autocrítica, lutando contra a

supremacia da razão, a partir de um diálogo permanente com a coerência.” (MORIN apud

BÚRIGO, 2001, p.4). Em outras palavras, Magela neutraliza o ruído de si mesmo, mas, mais

do que isso, ele se esforça para se compreender e, nesse auto-esforço-exame, no qual ele

utiliza a autocrítica, esforça-se para reconhecer a mentira para si mesmo.

A auto-ironia é fenômeno que objetiva afetar o leitor, a tirá-lo do lugar comum. Por

essa razão, ela poderia ser tomada como um exercício de falsa ironia, o que é uma tolice, e

não pouco grave, pois, a ironia frontal, agressiva pode ofender, mas não desestabiliza, ao

contrário, dá a força de que o interlocutor precisa para defender com unhas e dentes os seus

clichês. Exemplo disso é a auto-ironia digressiva, também típica de Machado (Brás Cubas),

que utilmente força o leitor a ironizar a si mesmo, sem que ele o perceba de imediato, o que

efetivamente o desestabiliza. A técnica da ironia digressão, não é, obviamente, novidade

exclusiva da literatura nacional, pois, Cervantes já dela se utiliza em D. Quixote (1605) e

influencia Lawrence Sterne em Tristan Shandy115 , que influenciaria Diderot (Jacques le

Fataliste et son maître) 116. Por isso, no meu entender, a auto-ironia não só não é um exercício

de falsa ironia, mas se mostra, na verdade, como a mais eficiente das ironias, aquela a que se

114 Expressão usada por Edgar Morin em seu livro Introdução ao Pensamento Complexo (PC), (2001, pg. 177), como sendo algo capaz de tratar o real, de dialogar e de negociar com ele. O PC parte da simplificação, da falha do pensamento simplificador, unidimensional e recusa as conseqüências redutoras da simplificação [...]. O PC aspira ao conhecimento multidimensional, mas sabe que o conhecimento completo é impossível; ele não recusa a clareza, a ordem, o determinismo e apregoa que se deve estar alerta que o novo pode e vai surgir. É o ponto de partida para uma ação mais rica e menos mutiladora. 115 A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy foi originalmente publicado em vários volumes, os dois primeiros aparecendo em 1759, e os demais no decorrer dos dez anos seguintes. Narra a história de Tristan Shandy e de sua família, sendo Tristan o narrador. É registro paródico, herança ainda dos romances sentimentais, de cavalaria ou picarescos, mas que em muitos casos começam a estilhaçar as velhas convenções. Com humor considerado grosseiro, a obra hoje é vista como precurssora do fluxo de consciência. (WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre, 2007). 116 Romance (1773) do enciclopedista Denis Diderot em que ele insere um questionamento intelectual que, colocado com humor - da forma mais sutil a mais desbragada -, está no cerne de uma discussão filosófica fundamental sobre a condição humana. O livro, que revela também traços do romance picaresco importado da Espanha, constrói-se com uma sucessão de breves histórias e aventuras, contadas durante a viagem de Jacques (le valet) e seu nobre amo, pela França. A obra apresenta um refinado debate filosófico e digressivo, num só tempo acessível, sofisticado e enriquecedor.

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refere Kierkegaard (2005, p.19) na tese VIII de sua dissertação “a ironia, enquanto infinita e

absoluta negatividade, é a indicação mais leve e mais exígua da subjetividade”.

Magela se utiliza dessa subjetividade “mais leve e mais exígua” e faz humor com sua

própria desventura, o que quer dizer que introduz com essa (auto)ironia uma negatividade que

arromba sua subjetividade sem aniquilar o indivíduo, transformando-o naquele raro sujeito

que contrai a ironia e é capaz de superá-la. Consigo perceber, então, que nada há de errado em

rir com ele, pois se ele não se aniquila, se a verdade o faz conservar a alma intacta, também

posso aceitá-la. Essa é, portanto, uma dor que não dói, ou que dói apenas durante um átimo de

tempo. Essa mistura de emoções faz emergir aquela leveza de subjetividade, aquele certo

distanciamento em relação à negatividade-verdade da deficiência visual de Magela. Trato da

auto-ironia-galhofa de Magela em relação a si próprio também no capítulo 4, porque esse

procedimento do humorista vai subsidiar um princípio e um tipo de HNb. Porém, o trato que

dou à ironia em meu texto é tangencial, apenas como elemento desencadeador do humor e do

riso.

Segundo alguns psicólogos, a normalidade (N) e a violação (V) representam as

diferenças mais fundamentais e legítimas que podem ser descritas em termos de oposições

entre emoções (não-aversivo x aversivo, bem x não-bem, aceitável x inaceitável, positivo x

negativo, bem x mal etc.) O ponto central aqui é que, nessa visão, as diversas formas de

avaliação das emoções passam sempre também pelas avaliações negativas. O termo normal é

usado corretamente como ambíguo, ficando na interface das coisas neutras e positivas, que é a

razão pela qual é usado aqui, ou seja, a diferença de avaliação entre neutro e positivo é menos

importante que a distinção entre as avaliações de emoções negativas x não-negativas. Vale

dizer que a gama variada e intrincada de sentimentos e as multifacetadas nuanças de

interpretação das emoções humanas são derivadas dessa diferença, ou se enquadram nessa

distinção básica que subjaz todas as avaliações emocionais. É quase sempre possível

categorizar as emoções em termos da diferença entre os sentimentos negativos e os não-

negativos e essa diferença envolve outros aspectos importantes, mas que não constituem

objeto de meu estudo. Eu não digo que é impossível descrever o humor sem, às vezes,

resvalar em outros aspectos que não os lingüístico-discursivos?

A partir das reflexões desenvolvidas até o momento, concluo que a construção do

humor baseia-se na justaposição de dois scripts, um portando a violação (V) e o outro a

normalidade (N), esta entendida como regra ou convenção social, moral, ética, social,

religiosa, como padrões físicos e mentais construídos pela sociedade e a violação como

ruptura de expectativa diante dessas regras. Em resumo, as coisas são boas ou normais, mas

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não verdadeiramente más. E é assim que a dor emocional se explica, paradoxalmente.

Pergunto, então: como o discurso humorístico viola as regras sociais?

Umberto Eco (1997) afirma que o humor viola regras comumente aceitas

implicitamente. O efeito cômico é advindo de um recurso retórico que, numa determinada

moldura social ou intertextual, expõe a violação da regra sem, no entanto, explicitá-la no

discurso. Isso quer dizer que o humor baseia-se na compreensão explícita, mas não na

aceitação implícita das regras, e é aqui que a moral subjetiva entra em cena para acatar ou

rechaçar as regras. Por isso, o humor não é vítima da regra que pressupõe. Ele não finge

conduzir para além dos próprios limites, mas dá a sensação da estrutura dos limites,

complementa Eco. Ainda, segundo o filósofo italiano, o humor não promete libertação, mas

me lembra da presença de uma regra a qual não tenho mais razões para obedecer. Sendo

assim, o humor admite a lei e me faz sentir certa inquietação por viver sob o jugo dessa lei, ou

de qualquer outra. Em síntese, o humor ocorre quando as convenções e regras da sociedade

são violadas e eu sinto inquietação por me deixar subjugar por essa regra a que,

repentinamente, não sou mais forçado a me submeter. Quebra cabeças ou trava-línguas?

Retomo Veatch (1998) no ponto em que afirma acreditar que sua teoria deve regular não

só qualquer ocasião em que o humor não é percebido, mas também aquelas em que ele o é.

Um exemplo disso seria, segundo ele, a brincadeira que as mães fazem com seus bebês de

oito meses, ao se esconderem e aparecerem subitamente, dizendo Achooooôôô!117 Nessa

brincadeira, os critérios da teoria de Veatch (N= presença da mãe, +V = ausência temporária

da mãe) se aplicam. Nada de mau realmente ocorre; assim, a ausência dolorosa da mãe e a

visão normal da situação ocorrem simultaneamente na mente da criança. Essa seria também

uma das primeiras manifestações de percepção de humor das crianças que deflagraria outras,

por exemplo, os jogos e as brincadeiras do tipo esconde-esconde.

Em resumo, as mudanças abruptas nos scripts e as contorções na interpretação são

deflagradas pela ambigüidade, segundo Raskin (1985) e Attardo (1991), mas também pela

incongruência, redundância e contradição, entre outros aspectos materializados pelas formas

lingüísticas, o que explicaria o como do texto humorístico. Se assim é, sou capaz de analisar

qualquer texto de humor, simplesmente apontando o que poderia ser considerado como

violação e qual seria a normalidade. Vejamos como isso se aplica ao texto abaixo.

117 Em inglês, Veatch usa “Peekaboooo!”

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Texto de humor 10

Durante a aula de Boas Maneiras, a professora diz: - Zezinho, se você estivesse namorando uma moça fina e educada e, durante o jantar, precisasse ir ao banheiro, o que diria? - Segura as pontas aí que eu vou dar uma mijadinha. - Isso seria uma grosseria, uma completa falta de educação. Juquinha, como você diria? - Me desculpa, preciso ir ao banheiro, mas já volto. - Melhor, mas é desagradável mencionar o banheiro durante as refeições. E você, Joãozinho, seria capaz de usar sua inteligência para, ao menos uma vez, mostrar boas maneiras? - Eu diria "Minha prezada senhorita, peço licença para ausentar-me por um momento, pois, vou estender a mão a um grande amigo que pretendo lhe apresentar depois do jantar”.

Enquanto os demais personagens-enunciatários do texto são dirigidos pelo locutor-

enunciador para que o texto caminhe de modo a escamotear a subversão no texto e garantir a

normalidade (N), o locutor empírico manipula os enunciados de Joãozinho em direção à

violação (V), ao prazer, “falso prazer”, no dizer de Platão, citado por Alberti (2002, p. 44).

Nesse texto-piada, a violação ocorre devido à incongruência introduzida pelos atos de

fala indiretos e mecanismos lingüísticos, redes de metáfora e jogos de ironia utilizados nos

enunciados do personagem-enunciatário: “vou estender a mão para cumprimentar (pegar o

pênis), um grande amigo (ser humano, traço/homem/afetividade e pênis, traço/órgão sexual/

prazer), que pretendo lhe apresentar (socialmente e exibir), depois do jantar". Quem sabe,

talvez, Joãozinho até consiga que a moça cumprimente o amigo dele, goste dele e até o

convide para visitar sua casa.

Tudo parece simples, se eu perceber o humor nas piadas, mas pode ser complexo118

naquelas em que eu não achar humor. Não saber isso não é preocupante; pode-se rir, do

mesmo modo, de si mesmo. É o caso de: se souber cantar, cante; se não, ensine a cantar; se

souber escrever piadas, escreva-as; se não, pesquise seus mecanismos e descreva-as.

118 No sentido original do termo complexus: o que é tecido junto (MORIN, 2006, p. 89).

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3.2.3.3 HV e HN comparativamente

O riso e a gargalhada são objetivos do HV; a cor vermelha é como ficam as bochechas

do rosto quando se ri de certos textos e, também, quando o riso se faz acompanhar de lágrimas

por não se conseguir conter os movimentos musculares da face. Esse tipo de humor não

costuma causar dificuldades às análises que abrangem a emoção ou outros aspectos que não

os lingüísticos ou às descrições do humor. Há inúmeras dessas análises e quase sempre com

os mesmos enfoques: o porquê (cognitivas, psicológicas etc.) e o histórico do riso. Abro

exceção para o trabalho de Possenti (2002) que enfoca a questão lingüística dos textos de

humor e para o de Saliba (2002), análise histórica que traça o perfil do humor do Brasil, em

dado período histórico, como mencionado no item 2.6 do Capítulo 2. Por isso, outros

trabalhos somente se justificariam se introduzissem algum novo elemento.

O HV e o HN são imprevisíveis; não se consegue medi-los, cercá-los ou prevê-los

totalmente. Ambos seguem as condições estabelecidas por Veatch (1998): N+V+S. No

entanto, o fato é que o humor é discurso, e como tal, negro ou vermelho, é interiorizável.

Amedronta enunciadores, ouvintes e pesquisadores, pois o humor e o riso revelam “a verdade

do não-sério” (ALBERTI, 2002, p. 205). Eles são “respostas do corpo à impossibilidade de

resposta, e como essa resposta é dada e qual é o seu percurso físico não são importantes”.

(ALBERTI, 2002, p. 206). Daí o descaso pela análise da língua do humor.

Isso tudo posto e discutidas as teorias, reitero que o HV e o HN seguem os critérios da

teoria de Veatch (1998) e de Raskin (1985) e se encaixam na maioria dos princípios e

considerações feitas por diferentes lingüistas, filósofos e historiadores e, essencialmente, que

a função e o objetivo do humor são causar prazer e provocar e riso. Se assim é, vejamos o

texto abaixo.

Texto de humor 11

O garotinho faz inveja ao irmão mais velho: - Eu tenho uma bola, você não teem... Eu tenho um autorama, você não teem... - Eu tenho um minibuggy, você não teem... - Eu tenho um videogame, você não teem... Irmão:

- Você tem câncer, eu não teenhoô! 119

119 Humor Negro, por que não?, 2004.

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Boa parcela dos brasileiros, talvez, não abrisse espaço para que o riso se instalasse, ou

nem aceitasse esse texto como de humor. Isso significa que, em princípio, é transgredida a

idéia que apregoa não ser necessário fazer esforço para rir, ou que com o humor viola-se a

normalidade simultaneamente, sentindo-se a sensação de que mesmo com a violação algo está

normal.

Aqui, porém, do ponto de vista da cultura brasileira, não se trata de violar apenas a

normalidade moral, social ou ética, mas a piedade, a caridade, a fraternidade, princípios

básicos das crenças das religiões cristãs tão enraizadas na cultura e na rede social brasileira.

Feridos tais princípios, o riso constituiria uma última opção perlocucional, já que ele, aqui,

parece se esvaziar. Se assim é, teriam os agnósticos e os ateus mais facilidade para rir desse

tipo de humor? Obviamente, não, porque virtudes como a caridade, princípios como os da

ética, seriedade e moral e deveres como a honestidade, a retidão etc. são ensinados

independentemente de credos e religiões. Mas, e se os ateus tivessem dificuldade para rir

desses textos, seria necessário construir outra teoria para esse tipo de crenças, a de que Deus

não existe, ou a de que as pessoas não admitem sua existência? Certamente que não, porque

teorias devem conservar um caráter de aplicação genérica, que atenda à maioria dos eventos

de humor, senão não seria uma teoria, mas meros posicionamentos para cada caso específico.

Como mencionado, Bergson (1987) afirma que, quando a pessoa do próximo deixa de

nos comover, só aí pode começar a comédia. E começa com o que se poderia chamar de

enrijecimento para a vida social. Um menino ter câncer e seu irmão não se apiedar dele

provoca riso ou escárnio no ouvinte ou leitor brasileiro? Quando se instauraria a comédia?

Está mesmo a rede social brasileira preparada para aquele enrijecimento? As afirmativas

anteriores de Bergson, em sua íntegra, prestam-se à cultura brasileira?

O texto do menininho canceroso deixa de causar o efeito perlocucional riso, conforme

teorias do HV, para provocar uma seqüela oposta, a reprovação, a repulsa, constrangimento e o

muxoxo, a saia justa, a semgracesa que, quando muito, provocam um sorriso amarelo de falta

de graça, ou uma interrogação do tipo “o que devo dizer?” ou “o que devo fazer?” (já que dizer

é fazer120, e se faz quando se diz). O texto pode suscitar, ainda, certa condescendência,

acompanhada de monossílabos e gestuais fáticos, obviamente provocados por um desequilíbrio

(dor) emocional que aflora, se instala, e que no caso desse texto dói, causando uma sensação

desagradável.

120 Austin (1972)

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Contudo, há pessoas que riem desse tipo de textos classificados como HN por seu tema

- afinal, em relação à percepção e recepção do texto de humor e ao seu efeito perlocucional

não há unanimidade. Não rir desse humor não constitui falta de inteligência, porque se o fosse,

teria de haver unanimidade de interpretação; e, na verdade, algumas pessoas riem desse texto

naturalmente e não somente para agradar ao enunciador do discurso. Alguém se habilita a

atribuir a algum mecanismo lingüístico, ou a alguma técnica de construção do HNb, uma

explicação para esse riso?

O que temos então, sem dúvida, é uma primeira divisão dentro do subgênero humor

negro que ocorre em função do personagem-enunciatário, o “alvo” (geralmente, mas nem

sempre, um dos interlocutores na cena enunciativa), única das Fontes de Conhecimento (FCs)

que, segundo Chlopicki (1997), se refere ao ser humano, como mencionado neste capítulo,

seção 3.1. O efeito perlocucional não-riso causado por esse texto, além de apontar a violação

aos padrões sociais e religiosos, é elemento fundamental para eu levar em conta ao descrever e

analisar os textos de HNb e pensar classificações. É o que faço no capítulo seguinte.

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4 OBJETO

Figura 6: Pintura surrealista de Dali121 Fonte: Americano, 2001

O que constitui o Objeto de minha tese já é esboçado nos capítulos anteriores, na

medida em que ali já o deixo surgir, esforçando-me para abrir os caminhos de sua

conceituação e descrição. O HNb emerge aos poucos, pairando sobre o texto, enquanto

procuro orientar-me no fenômeno com base no conhecimento acumulado. Assim como nos

capítulos anteriores ocupei-me inteiramente do humor, destacando as teorias que dele tratam,

comparando-as, discorrendo-o sob meu ponto de vista, comparando o humor vermelho ao

negro e analisando a língua e o discurso de alguns textos de humor, assim também, o

conceito, a descrição e a análise do HNb que pairavam sempre no segundo plano, assumem

lugar definitivo neste capítulo, nele habitando de vez.

Para garantir esse lugar, discorro idéias recentes de alguns teóricos do HN, retomo a

filosofia do HN bretoniano abordada no Capítulo 2, seção 2. 6, pontuo na evolução da história

121 Salvador Felipe Jacinto Dali (1904-1989) nascido em Figueras, Catalunha, Espanha, um dos maiores artistas plásticos surrealistas contemporâneos. Expressava seu surrealismo pintando imagens “absurdas”, como esses tigres saídos da boca de um peixe. s da pintura surrealista da pintura surrealista.

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da sociedade e na literatura brasileiras momentos que teriam constituído o cenário para o

surgimento do HNb. A seguir, descrevo-o e analiso os mecanismos lingüísticos, discursivos e

pragmáticos de alguns de seus textos com o intuito de classificá-lo segundo tipos, temas e

subtemas.

Para descrever o humor negro recorro, primeiramente, a um jogo de sinonímia e

antonímia - este um aspecto polêmico e controvertido da semântica - para compará-lo ao HV,

conhecido como normal pela maioria dos povos ocidentais. Humor vermelho seria o oposto do

humor negro em suas origens gregas, ainda que o vermelho, à época, fosse amarelo (originado

da bílis amarela da qual advém o bom humor). Mas, vermelho nunca foi o oposto de negro, a

não ser metaforicamente. O oposto da cor negra seria a cor branca; a cor vermelha não

possuiria oposto. Assim, negro e vermelho não se opõem, mas se opõem. E ainda, a história do

humor estabelece que marrom-esverdeado é sinônimo de negro.

A verdade é que os humores desbotam na cultura brasileira: o vermelho pode permanecer

vermelho, mas desbotar em rosa e amarelar; o negro pode ficar ou desbotar em amarelo e (cor)

palha. Constato, então, que não se trata de um jogo de oposições e similaridades, mas de

metáforas, válvulas de escape da realidade e esta um clichê, segundo Morin (2006). Ah, essas

culturas e a semântica das cores... Teriam se dado conta disso os fisiólogos e filósofos da

Antigüidade e da era medieval, quando decidem que o humor ruim deveria se chamar negro?

4.1 Resíduos de HN no mundo

Segundo Vladimir Nabokov, “a realidade é artificial e estéril, grotesca, sem sentido”

(LOLITA, 1962) 122. O estilo vazio é deliberadamente inadequado, e a anarquia, o profano, o

ingênuo, as catástrofes, os horrores e as técnicas de pesadelo são transformados em terror; o

materialismo corrompe e traz o humor obsceno. Os criadores de um mundo indiferente, da

destruição e do absurdo do teatro do absurdo, dizem que o humor negro lida com a

absurdidade da vida e que o ser humano não tem destino nem direção. Eles consideram que as

dimensões sociais, éticas e estéticas, bem como os finais felizes, são coisas absurdas. Cito,

novamente, Nabokov:

122 Fala extraída do filme (1962) do diretor Stanley Kubrick, baseado no romance (1955) do mesmo nome de Vladimir Vladimirovich Nabokov, escritor russo (1899-1977)

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Somos criaturas de oportunidade num vazio absoluto. A meu ver, o humor negro é movimento sem unidade. O que alguns estudiosos dizem sobre isso é que o que não se vê é que deve ter pelo menos alguma aceitação, para que então se atinja a transcendência do absurdo. O humor em si não é absurdo; é a única coisa que pode nos dar esperança. (NABOKOV, 1962) 123

Para ele, então, o HN poderia ser aceito se os indivíduos transcendessem o horror e o

absurdo.

Leonard Feinberg124 (1978, p. 87) vê o HN como “agressão jocosa contra tudo, como

niilismo grotesco, como ausência de sentido, falta de objetividade, rejeição dos valores, como

galhofa surreal e sinistra”. Segundo ele, o que resta a fazer é rir das religiões e das guerras e

fazer paródia das tragédias. Já Jesse Bier, citado por Helitzer (1984) considera o humor negro

morbidez sem tato, cínico, negativo e indulgente. A perversidade do humor negro reflete a

própria perversidade da sociedade e torna o absurdo mais absurdo. Constitui, pois, vingança

para punir aqueles que punem. Possui uma qualidade escapista e libertadora.

John Morreall (1983), quando contrasta a incongruência entre as atitudes cômicas e as

trágicas com as visões da vida, argumenta que ambas são perspectivas válidas de vida, embora

lidem com temas negativos como morte, vício, perigo, erro, etc.. Segundo ele, o que distingue

a comédia da tragédia é, em grande parte, de um lado, a ausência nessa de emoções negativas,

como a tristeza, e de outro, o posicionamento contra a autopiedade; além disso, a visão cômica

é mais ampla, flexível e capaz de ser filosoficamente crítica, em vez de ser cega e seriamente

sombria. A mente cômica procura inconsistências, asneiras, falsidades e outras incongruências,

ele completa. Ainda assim, o senso comum, lúcida e brilhantemente, diante de algumas

histórias consagra: seria cômico, se não fosse tão trágico.

Para Tsur (1989), cuja descrição de HN coincide com a teoria de Raskin (1985) e

também com a fórmula de Veatch (1998), existe no HN um “súbito e decisivo deslocamento

dos scripts do horror e do humor, isto é, uma mudança de conjuntos mentais, em que o

primeiro script avisa sobre a presença de uma ameaça e o segundo a nega”. (TSUR, 1989, p.

253).

123 Fala do personagem Humbert Humbert (James Mason) personagem de meia idade que aluga um quarto na casa da irmã de Lolita (Dolores). O trecho é extraído do filme do diretor Stanley Kubrick (1962), baseado no romance (1955) do mesmo nome de Vladimir Vladimirovich Nabokov, escritor russo (1899-1977). 124 Dr. Leonard Feinberg (1914 -2006), professor de inglês nascido na Rússia e radicado nos Estados Unidos. A citação é de um artigo escrito em parceria com sua esposa Lílian Feinberg, intitulado The Secret of Humor (1978).

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Já Louis Hasley, citado por Pratt (1993, p. 112), diz que “o humor negro combina

humor e pessimismo, riso e pranto”, que o humor negro “é baseado nos textos que transitam

do ridículo ao grotesco, dando um sentido de desilusão metafísica total e de anulamento”. Não

há, segundo ele, divertimento suficiente, nem imparcialidade ou desprendimento para gerar

humor genuíno.

Então, dos escritos pesquisados, além de o HN configurar-se como um oxímoro, que

dialética e lingüisticamente anula as diferenças, unindo-as, é um insight da desmistificação

que vai tomando corpo e através do qual as pessoas podem ver o que está para além daquilo

que aparenta ser. Ele ajudaria a tratar das tristezas da vida noutro sentido, trazendo alívio

através do riso. Assim, é possível aprender a viver com o insolúvel e paradoxal, com os

poucos tabus que restam e com o lado negro da vida. Seria este negro uma referência à bílis

negra? Dificilmente; a vida (sem a intenção de acionar um sentido metafórico) não possui

fígado; teria ela um outro lado, o alvo? Existe um buraco negro no universo; seria o seu lado

oposto, o buraco alvo? Ah, sempre essas metáforas e antônimos...

Corroboro Barnes (1978) - e acredito que Veatch (1998) também o faria, quando ela

define o HN como metáfora dialética. Eu, porque aceito a idéia de que o humor além de

metáfora, é justaposição do humor e do horror, da comédia e da tragédia; e Veatch, porque

deixa antever que o horror e o humor são experienciados simultaneamente e fundidos para

emergir como síntese, o que coincide com sua fórmula sobre humor vermelho (N+V+S). As

afirmativas da lingüista servem, ainda, para se abrir espaço para uma das classificações do

HNb sobre o qual discorro mais à frente e para complementar a história, as definições e a

trajetória do HN, segundo teóricos, historiadores, filósofos e lingüistas.

Já se sabe que a maioria das teorias sobre HN peca por não levar em conta que ele

exige aceitação, e por desconsiderar que a construção de seus textos é orquestrada e regida

pela língua (cultura). O fato é que elas, como comentado, centram-se nos aspectos de natureza

psicológica e filosófica, negligenciando os aspectos lingüístico-discursivo-pragmáticos

fundamentais para a análise e descrição dos textos de HN. Afinal, é pela palavra que se

exprimem simultaneamente a verdade, a ilusão e a mentira que podem circundar ou construir

o humor negro. Contemplando também essas dimensões, analiso o texto abaixo.

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Texto de humor 12

Os ingleses Joaquimillian e Manoellington se encontram em Paris: - Sabe Manoellington, estou a uma semana em Paris e ainda não fui ao Louvre.

– Não te preocupes, Joaquimillian, isso deve ser intestino preso!!!125

As três condições necessárias e suficientes (Normalidade, Violação, Simultaneidade)

estabelecidas por Veatch (1988) também servem, como afirmado, à construção do humor e

são preenchidas plenamente nesse texto.

A escolha lexical pelos nomes significativos dos dois interlocutores ingleses requer do

ouvinte acionar o estereótipo, facilmente detectado no jogo lingüístico morfológico encenado

pela aglutinação nos termos Joaquimillian e Manoellington, que garante a manutenção desse

estereótipo.

O humor emerge do fato de o termo Louvre poder ser lido segundo uma isotopia126 da

arte e da necessidade fisiológica. Louvre é o conector127 da isotopia, já que nesse contexto é

termo polissêmico que permite a leitura dos dois planos distintos. Nessa leitura dupla, a

polifonia aponta para as vozes do personagem-enunciador que espera que o português leia o

termo Louvre como “museu”, e a do locutor-empírico que espera que o personagem-

enunciatário interprete o termo Louvre como “banheiro”. Esse enredamento no texto provoca

o riso e a intencionalidade é alcançada. Com essa análise, resgato e resumo o que os teóricos

como Raskin e Attardo (1994) e Veatch (1998) afirmam sobre a construção do HV: duas

proposições sobrepostas são percebidas simultaneamente como opostas em determinado

contexto e é com essa sobreposição que o humor é criado sob três aspectos: dicotomia

real/irreal, oposição de discursos e categorias da existência humana.

E ainda, outros teóricos, como Berger (1976), advogam que o humor seria o alívio do

insuportável por causar o riso, este como metamorfose por via do humor. Outros tantos

teóricos, como Possenti, alegam serem os textos de humor “veículos de discursos proibidos,

subterrâneos, nada ou pouco oficiais, tratando por isso de temas socialmente controversos,

que às vezes lidam com estereótipos que veiculam uma visão simplista dos problemas”

(POSSENTI, (2002, p. 26). Essas considerações se prestam a mostrar que esses discursos 125 Son Salvador, seção Esportes, Jornal Aqui, jun. 2006. 126 Considerando-se iteratividade a reprodução, na cadeia sintagmática, de grandezas idênticas ou comparáveis, situadas num mesmo nível de análise, entende-se por isotopia a iteratividade de classemas responsáveis pela homogeneidade do discurso. O termo foi criado por A. J. Greimas e apareceu pela primeira vez em 1966. Grosso modo, o termo indica a possibilidade de duas leituras diferentes de um mesmo termo ou expressão lingüística. 127 Estrutura lingüística que permite o trânsito de um plano de leitura a outro.

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proibidos têm uma relação direta com a questão da verdade na cultura do Brasil e,

conseqüentemente, influenciam a construção, a percepção e a interpretação do sentido dos

textos de HNb e as reações que provocam no ouvinte. Num aspecto, quase todos os teóricos

do humor pesquisados são unânimes: o humor deve trazer o riso ou a gargalhada, sem maiores

esforços. Seu objetivo é o prazer. Vejamos como o HN de Breton e o HNb acatam essa

unanimidade.

4.2 Breton e sua “revolta superior da mente”

Breton é considerado mundialmente o criador e o introdutor do HN no mundo, mas

Mark Polizzotti128 adverte que “apesar de sua aparência de modernidade, a prática do HN

retrocede a um tempo bem anterior a Breton e chega a Jonathan Swift, no início do século

XVIII” (BRETON, 1997, p. vi). O poeta francês tem consciência disso e, por isso, “considera

Swift o verdadeiro precursor do humor negro e surrealista em função de sua malícia”

(BRETON, 1997, p. vii).

Influenciado por escritos não publicados de Rimbaud129, nos quais este expõe sua

rejeição à Guerra Franco-Prussiana, Breton se interessa pelo tema em 1914, já demonstrando

ceticismo e inquietação diante da iminência da Primeira Guerra Mundial. Mas é apenas

durante essa guerra, ao servir o exército, que Breton conhece Jacques Vaché130 e com este

trava o primeiro contato “com o espírito vivo do humor negro” (BRETON, 1997, p. vii). Por

essas razões, Breton afirma que o humor negro teria dado origem ao Surrealismo que ele

engendraria vários anos depois.

No prefácio da Antologia do Humor Negro131 intitulado “Pára Raio” 132, em apenas

seis páginas, Breton (1997, p. xiii) delineia a filosofia considerada base para o HN, que é

analisada na introdução133 escrita por Polizzotti, quando ele retoma a origem e a evolução do

HN e fornece dados biográficos importantes sobre o filósofo e poeta francês. Pelo título de

sua introdução à Antologia, Polizzotti parece admitir que o HN de Breton cause o riso, o que

não é surpreendente, já que Polizzotti também reside no hemisfério norte e, supostamente, 128 Autor da Introdução e da primeira versão da Anthologie de L´humour noir para o inglês (1997). 129 Jean Nicholas Arthur Rimbaud (1854 - 1891), consagrado poeta francês. 130 Genial, poeta francês e melhor amigo de Breton, símbolo encarnado do HN e do surrealismo. 131 Anthology of Black Humor (1997). 132 Lightning Rod,, do francês Pantonérre. (POLLIZZOTTI, 1997, p. xiii). 133 Laughter in the Dark., Riso na Escuridão (p. xiii)

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teria a mesma visão européia sobre HN.

No prefácio de sua Antologia, Breton (1997, p. xv) apregoa que o HN é razão, insight,

fuga da verdade, emoção negativa, dor, ironia, além de envolver aceitação. Para ele, “o humor

é aquilo que as sopas, os frangos e as orquestras sinfônicas não possuem. Por outro lado, as

estradas, os elevadores e chapéus amassados têm.” 134 [...]. O que seria?

Ainda nesse mesmo prefácio, a presença constante de terminologia utilizada por Freud

em seus escritos sobre humor e psicanálise revela a influência decisiva do psicanalista na obra

de Breton, ele próprio médico psiquiatra. Exemplo disso é um trecho em que o psicanalista

alemão afirma que o humor, como o cômico e a argúcia, têm “um elemento libertador, mas

também possui algo bom que nos eleva que falta a esses outros dois modos de gerar prazer

através da atividade intelectual.” (FREUD apud BRETON, 1997, p. xviii). Breton ao

comentar os enunciados de Freud diz que “obviamente, o que é bom a respeito disso é o

triunfo do narcisismo, a vitoriosa confirmação do ego sobre sua própria invulnerabilidade”

(BRETON, 1997, p. xviii).

Para Breton (1997, p. xvi), o HN é uma “revolta superior da mente” 135, expressão

cunhada por Vaché136, à imagem da expressão freudiana “vingança do princípio do prazer”,

relacionada ao ego 137 (FREUD, 1960). Para o poeta francês, o HN, tal qual o surrealismo,

admite o desvio do comum, das normas e convenções sociais, literárias e artísticas, e também

é uma defesa contra qualquer tipo de limite ou imposição: adota a liberdade para todos e em

todos os sentidos. Como o HN, a meu ver, o surrealismo funde intencionalmente coisas

díspares, sem esperança de reuni-las.

Muitos autores afirmam que o HN não possui definição definitiva, outros o acham

“indefinível”. Ele, também, dizem os teóricos surrealistas, descreve o comportamento humano

melhor do que uma interpretação literal. Em síntese, o HN expõe as contradições, é a

sensibilidade da insensibilidade e o contra-senso do senso, recusa-se a resolver as

contradições, prega a desintegração do mundo, acolhe a destruição do amor e (ainda assim) a

vida é vista como uma piada. Por isso, o HN é “vago e vem sendo definido inadequadamente.

Isso, porque não existe consenso sobre a definição de humor negro”, diria Feinberg (1978,

p.153).

134 Humor is what soup, chickens, and symphony orchestras lack. On the other hand, road pavers, elevators and crush hats have it […]. 135 A superior revolt of the mind. 136 Um dos colaboradores da Antologia e, segundo Breton, o criador da definição para o humor negro. 137 Sigmund Freud, Jokes and their Relation with the Unconscious.

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Há uma linha tênue entre humor negro e horror, dizem os surrealistas. O primeiro

origina-se do distanciamento em relação à esperança. A situação é desesperadora, mas não

séria. O segundo origina-se da inexistência do distanciamento em relação à realidade. Assim

sendo, segundo Breton (1997, p. viii), “o HN liberta”. Conforme ele e colaboradores, no HN

há especialmente ironia romântica, mas, no meu entender, há também ironia glacial, executiva

e contemplativa, no sentido kierkegaardiano-socrático dos termos.

Grosso modo, a ironia glacial é usada por Sócrates diante do tribunal e onde, com um

posicionamento completamente exterior, o filósofo demonstra ter uma ignorância, “com

aparente credulidade e benevolência, falando de modo amigável, mas distanciado, agradece

com frieza apenas aos atenienses cujos votos o absolvem” 138 (KIERKEGAARD, 2005, p.82) e

dissimuladamente atinge os que votam a favor de sua execução139.

No dizer de Kierkegaard, a ironia é executiva, ou dramática, na medida em que “[...] faz

valer a relação de oposição em todas as suas diferentes nuanças.” (KIERKEGAARD, 2005, p.

222). Poderia parecer que a ironia executiva se identificasse, então, com a dissimulação, com o

fingimento, e em princípio ela seria isso mesmo, mas “a dissimulação denota o ato objetivo e

aqui, além de dissimulação, a ironia denota o gozo subjetivo, na medida em que na ironia o

sujeito se liberta”. “O irônico, por força da própria ironia, não teria uma finalidade ou intenção,

já que a intenção é a própria ironia” (KIERKEGAARD, 2005, p. 222). Seria a ironia usada por

Shakespeare no discurso de Marco Antônio diante do cadáver de Júlio César, assassinado por

um grupo de conspiradores, entre os quais se inclui Brutus, filho de César, na peça com este

mesmo nome. É “ironia retórica, de modo que a expressão de sentido positivo ─ ”mas Brutus é

um homem honrado” ─, funciona ironicamente, depois de seis repetições [...]” (DUARTE,

2006, p.21) negativamente aos olhos do povo. O jogo de negações e afirmações repetitivas

evidencia que a intenção de Antônio não é elogiar Brutus e os conspiradores, e que seu

discurso irônico tece elogios aos conspiradores apenas nos enunciados, enquanto a enunciação

revela que esses elogios se dirigem ao Imperador. O discurso acaba redundando em ataques aos

seus assassinos e em sua subseqüente exposição à ira do povo romano.

A ironia seria contemplativa, quando se tem a visão certeira para o falso e o vaidoso; a

ironia capta a vaidade, mas, ao fazer a sua observação, não anula aquilo que é vaidoso; não se

comporta em relação a isso como justiça punitiva e nada tem de conciliador; ao contrário,

reforça o vaidoso em sua vaidade. É o que Kierkegaard (2005, p. 222) define como “tentativa

138 Sócrates vai a julgamento e pede votação para o veredicto; é condenado por uns e absolvido por outros. 139 Conta a história que Sócrates teve esse diálogo com o juiz que lhe deu a sentença de morte: Juiz: - Você está condenado à morte. Com a calma dos sábios, Sócrates respondeu: - Grande coisa. O senhor também.

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da ironia para mediar os momentos discretos, não em uma unidade superior, e sim em uma

loucura superior”. Entretanto, essas distinções de tipos de ironia são, ainda, terrenos

pantanosos ou com areia movediça.

Na ironia, “o sujeito quer constantemente afastar-se do objeto, o que ele consegue ao

tomar consciência, a cada instante, de que o objeto não tem nenhuma realidade” Em síntese,

na ironia o sujeito sempre “bate em retirada”, contestando a realidade de quaisquer

fenômenos, para se safar, salvar a si próprio, “na independência negativa em relação a tudo”.

A ironia é um sussurro suave que, associado àquele “bater em retirada” do sujeito, aponta a

sutileza dessa construção retórica. Mas muita demonstração sobre a ironia calcada em

investigação detalhada, poderia provocar um zumbido nos ouvidos ao invés daquele sussurro

característico dela e acabaria por afanar dela o que ela tem de surpreendente, o que a mataria.

(KIERKEGAARD, 2005, p. 223).

Retomando o HNb, ele é desvio radical, inconformismo, mas também “Filosofia de

vida” 140 (HELLENTHAL, 1989, p.27). O horror origina-se de nossa aproximação com a dor;

ele fere, emudece, choca, enoja, constrange, paralisa, mas também fascina e seduz, insistem

os surrealistas que corroboram as idéias de Breton. O HN para Breton expõe a hipocrisia e

não teme desafiar as leis ou padrões socialmente aceitáveis que mantêm a máquina de guerra

e os sistemas de crenças políticas e econômicas de uma sociedade abastada que não titubeia

em massacrar gente.

Posso aceitar a idéia de que o HN de Breton (1997) seja algo semelhante ao que ocorre

no teatro, à maneira como provoca a interação, uma interlocução que parece inexistente, ou

um diálogo de uma só via, um torpor diante da possibilidade de os fatos fingidos do texto

desempenhado no palco serem reais apenas virtualmente, e assim não ser necessário se

desnudar. Aí, o público pode ironizar-se, rir de si mesmo, apesar de si mesmo, de suas

infelicidades e desventuras. Na realidade, rimos nós todos, ora constrangidos, ora abobados,

ora encantados, ora escarnecidos, ora glorificados. Assim visto, o HN surrealisa-se,

desprende-se, transformando-se numa segunda pele do ser humano, daquele homem que

aceita o horror travestido de humor e becketianamente diz várias vezes: “agora vamos

embora” e permanece imóvel no palco, a exemplo dos personagens de Beckett na cena final

de “Esperando Godot”.

O HN de Breton (1997) analisado por ele mesmo, pelos teóricos surrealistas e pelo

senso comum com assertivas aparentemente contrastantes, abrangentes e que servem

140 Lebensphilosophie.

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cumulativamente como tentativas de entendê-lo, ao longo da história, é obscura e

oximoramente entendido e resumido pelos especialistas como:

A) o choque pelo emprego de sarcasmo cético, de estupidez e de elementos mórbidos

ou macabros em situações cômicas;

B) a qualidade que algo tem de nos fazer rir, de divertir, de nos fazer achar graça;

C) a coisa que objetiva induzir ao riso;

D) a habilidade para perceber, apreciar ou expressar aquilo que é divertido, cômico,

incongruente ou absurdo.

Os itens B e C podem ser facilmente confundidos com as características do HV, já que

ambos propugnam conduzir ao riso e à graça. Posso reunir os itens A e D, por veicularem a

idéia de que entender o HN de Breton (1997) é perceber o cômico em situações absurdas,

mórbidas, macabras e aversivas. As duas elaborações são surrealistas e presentes no discurso

de Breton (1997, p. vi.) e comprovadas, por exemplo, no impactante, macabro e repugnante

(do meu ponto de vista de brasileira) conto de Leonora Carrington, A Debutante141 para a

Antologia, e que também é conhecido como A hiena vai à festa. Considerada pelo poeta

francês como “o iluminismo da loucura lúcida”, Carrington escreve no desfecho de seu texto:

Texto de HNb 1

[...] Pálida de raiva, minha mãe entra em meu quarto. - Nós mal havíamos nos sentado à mesa, disse ela, quando aquela coisa sentada no seu lugar levantou-se e gritou; - Então, eu cheiro muito mal, não é? Em compensação também não como bolo! Ato contínuo, ela arrancou seu próprio rosto e o comeu. A seguir, após uma reverência exagerada de despedida, atravessou a janela e desapareceu142. (BRETON, 1997, p. 335). (Tradução nossa)

A coisa sentada no lugar da debutante a que a mãe da moça se refere é uma hiena,

amiga antiga da moça. A garota, que odiava festas, pede ao bicho que a substitua no jantar de

aniversário que a mãe lhe preparara e em que debutaria. A hiena aceita e antes da festa, no

quarto da debutante, e com seu consentimento, a hiena mata e come (dicionarialmente) a

camareira da moça, mas preserva o rosto da infeliz para colá-lo no seu próprio rosto e ir bem 141 The Debutante 142 My mother entered, pale with rage. ´We’d just sat down at table´, she said, when that thing sitting in your place got up and shouted, ´So I smell a bit strong, what? Well, I don’t eat cakes! ´Whereupon it tore off its face and ate it. And with one great bound, disappeared through the window.”. (p. 340)

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disfarçada ao evento. Veste-se com as roupas da debutante e desce lépida e fagueira para o

jantar. Faz parte da construção do sentido do texto compartilhar o conhecimento de que

hienas, além de rirem, fedem muito.

O texto de Carrington enquadra-se nas características do HN de Breton (1997), no que

tange ao fantástico, à estranha amizade entre a hiena e a garota, à habilidade de falar da hiena,

ao horror e à tragicidade da morte da camareira, assistida impassivelmente pela debutante. A

negritude do texto se encontra, principalmente, na repugnante sobre colagem do rosto da

falecida empregada no da hiena, idéia que a debutante aceita com normalidade. Pelo menos,

no ponto de vista dos brasileiros, o texto de Carrington é absurdidade à flor das palavras,

despautério gritante e repulsivo e, além disso, não lhes provoca o riso, nem sequer um sorriso.

A narrativa (literariamente genial) é eivada de ironia executiva, é flagrante deboche à

sociedade da época preocupada em viver intensamente, de modo fútil e inútil. Aponta para o

descaso de uma família pela educação da filha que, aos quinze anos, se vê diante da

incapacidade de fazer amizade com outro ser vivo que não uma hiena. O texto desnuda

também o papel e a situação da mulher à época (os anos 1920-1930). Surrealismo puro, ou

teria esse caráter didático, essa função de crítica social no texto de Carrington, aspecto que

Breton (1997) tanto abomina, escapado à sua percepção?

Os itens A e D da síntese sobre o HN de Breton encontram eco nos prefácios escritos

para a Antologia do Humor Negro e para cada um dos textos dos quarenta e cinco

colaboradores da Antologia. Assim, o item A, “o choque pelo emprego de sarcasmo cético,

estupidez e de elementos mórbidos ou macabros em situações cômicas” e o D, “a habilidade

para perceber, apreciar, ou expressar aquilo que é divertido, cômico, incongruente ou

absurdo” encontram ressonância no irônico e genial texto de Jonathan Swift, transcrito na

Antologia e intitulado “Uma Proposta Modesta” 143 (BRETON, 1997, p. 11-14). Nesse texto o

irlandês faz uma proposta “para evitar que as crianças irlandesas se transformem em um fardo

para seus pais e seu país, e para torná-las úteis ao público“ 144. Para dar suporte à proposta que

faz, o enunciador explica que os mercadores da região lhe garantem que tanto um menino

quanto uma menina, antes dos doze anos, ou mesmo depois que ultrapassam essa idade, não

são mercadorias rentáveis nem para os pais nem para o Estado. Então, Swift sugere

humildemente que

143 A Modest Proposal. 144 For preventing Irish children from being a burthen for their parents, and country and to make them beneficial o the public. Subtítulo do artigo A Modest Proposal.

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[...] as cem mil (crianças) restantes de um ano de idade sejam postas à venda para as pessoas de qualidade e riqueza, pelo reino [Reino Unido] todo, sempre aconselhando a elas que as deixem comer bastante no último mês, de modo que lhes rendam gordura para a mesa. Uma criança dá para dois pratos numa diversão entre amigos e, quando a família jantar sozinha, a parte dianteira ou traseira do quarto dará um bom prato, e temperado com um pouco de pimenta ou sal será delicioso se cozido no quarto dia, especialmente no inverno. (SWIFT, apud BRETON, 1997, p. 11, Tradução e colchetes nossos).

E ele prossegue com suas ponderações sobre a utilidade das crianças pobres da época,

com descrições pormenorizadas de que elas sejam servidas como iguarias finas, nos jantares

elegantes dos palácios das classes ricas. E embora a ironia coloque, em princípio, em dúvida

sua convicção político-social - seria ele amigo ou inimigo dos pobres? - o jogo lingüístico e a

polifonia permitem ao leitor perceber que Swift diz nos enunciados o contrário do que pode

ser lido na enunciação. O leitor entende que o intuito de Swift é pisotear a política social

reinante, o que novamente revela a função de crítica social em outro texto da Antologia,

apesar dos protestos de Breton (1997, p. xiv) de que “está fora de questão explicar o humor e

fazê-lo servir a fins didáticos” 145. Isso indica que os autores até podem não ter uma intenção

primária didática, mas ela acaba emergindo sim, muitas vezes. Outra evidência disso é que

esses autores tencionam se insurgir contra a nobreza, contra os cânones e as normas impostas

pela sociedade, no tocante a comportamento, enredos, personagens, cenários e temas, que os

surrealistas crêem ser equivocados, demarcando um profundo desrespeito pela nobreza da

literatura e arte européias da época em que o HN surge. Se isso não for função didático-

crítica, o que mais será?

Em síntese, os textos da Antologia - uma espécie de vitrine para a concepção de

humor, - possuem o perfil exigido por Breton (1997, p. vi): [...] o humor negro é o oposto da jovialidade, da sabedoria ou do sarcasmo. É parcialmente macabro, parcialmente irônico, sempre um insurreto absurdo do espírito e inimigo mortal do sentimentalismo; é, além disso, uma revolta superior da mente. 146 (tradução nossa).

145 “[…] there can be no question of explaining humor and making it serve didactic ends. 146 “[...] black humor is the opposite of joviality, wit, or sarcasm. Rather, it is a partly macabre, partly ironic, often absurd turn of spirit that constitutes the “mortal enemy of sentimentality,” and beyond that, “a superior revolt of the mind.”

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A filosofia, que Breton (1997) advoga no prefácio de sua Antologia e presente nos

textos literários dos autores ali reunidos, espalha-se pela Europa e pelo mundo como uma

teoria do HN. Nela, o poeta francês acrescenta ainda: Não há nada, já se sabe, que o humor inteligente não possa resolver em explosões de gargalhadas, nem mesmo o vazio, o vácuo. A gargalhada é uma das extravagâncias mais suntuosas da humanidade, até mesmo para o deboche [...]. 147 (BRETON, 1997, p. xiv.) (Tradução nossa).

Se assim é, se o HN de Breton é uma teoria, e se ela apregoa que o texto de humor

provoca “explosões” de gargalhadas, salvaguardados os padrões culturais e sociais, essa teoria

deveria se aplicar aos textos de piadas, adivinhações, tiras, charges e chistes de HN de

quaisquer culturas ocidentais. Não é o que ocorre com o HNb, porque:

- O HN bretoniano provoca no leitor brasileiro um sorriso leve, fruto da ironia dos

textos.

- O humor negro bretoniano não provoca o riso nos brasileiros.

- O HNb não é construído como os textos do HN de Breton.

Primeiramente, como o próprio Breton (1997, p. xvi) afirma, “o tipo de humor em

questão aqui começou na poesia bem mais cedo do que na pintura, por exemplo.”, isto é, na

literatura. Os textos que compõem sua Antologia, ficcionais ou não-ficcionais, poemas,

contos, máximas, aforismos e pensamentos filosóficos possuem características que lhes

conferem um status diferenciado, enquadrando-os em um gênero definido, o literário. São

textos surrealistas por concepção literária e filosófica, conservando sempre a filosofia e as

idéias que Breton exige para seu HN. São inspirações herdadas das poesias destrutivas e

visionárias de Rimbaud148 e de Lautréamont149, escritas sob o inconformismo com a guerra de

1870 e a insurreição da Comuna, do mesmo modo que a nova catástrofe da Guerra de 1914 -

1918 e a Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, ensangüentam e iluminam o período que

traz a revolta dos poetas adolescentes. Guiados por apelos, blasfêmias e cólera, os poetas se

insurgem contra o absurdo, a hipocrisia, a violência e a ferocidade de uma sociedade que

147 “There is nothing, it has been said, that intelligent humor cannot resolve in gales of laughter, not even the void…Laughter, as one of humanity’s most sumptuous extravagances, even to the point of debauchery, […]” 148 Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), jovem poeta francês dos mais inspirados e desvairados. 149 Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), mais conhecido pelo pseudônimo de Conde de Lautréamont, poeta francês autor dos Chants de Maldoror, entre outros.

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alega que a razão e a tradição devem prevalecer. Decidem que o melhor recurso contra aquele

estado de coisas seria ridicularizá-lo, e entendem que aquele seria um bom momento para

desmascarar, dessa vez em definitivo, essa sociedade que sabe apenas arruinar-se,

materialmente e espiritualmente, e assassinar a humanidade. Contrapõem-se à violência e ao

absurdo vigentes usando a própria violência e o próprio absurdo. Agem deliberados, cuspindo

seu desgosto na cara do mundo que tenta forjá-los, apelando para tudo que esse mundo finge

ignorar. Adotam uma postura em que o absurdo opõe-se à razão e a desordem opõe-se à

“ordem”, num mundo que sequer consegue camuflar o caos em que se encontra.

Nessa revolta poética, o humor é um elemento destruidor par excellence, capaz de

arruinar repentinamente a segurança do espírito, de afligir a razão e infringir a tradição. Como

advoga Breton (1997), o humor negro é certamente humor, pelo desespero profundo daqueles

que o promovem, um desespero, em suma, que se transforma em arma, aquela arma isolada

que opõe uma incoerência escolhida à coerência social opressora, e negro em razão da

obscuridade em que tende a mergulhar bruscamente a razão das pessoas a quem costuma

desafiar com um estranho sorriso.

Exemplos desse humor são dados por alguns jovens dadaístas e surrealistas em sentido

literal. Entre eles se encontra Vaché, sem dúvida o mais perfeito deles, a quem Breton

conhece em Nantes, em 1916, quando ambos servem o exército na Primeira Guerra. O

encontro marca o início de uma amizade profunda150, provoca uma mudança radical que

marcaria Breton para sempre e, por tabela, o futuro surrealismo. Nascido em 1896, Vaché

falece em 1929 e deixa como legado literário as “Cartas de Guerra” que deram a Breton a

noção corrosiva e subversiva do “Umour” (Humour, humor, grafado por Vaché sempre sem

H). "Eu me aborreço muito atrás do meu monóculo de vidro, me visto de cáqui e combato os

alemães - A máquina de embrutecer... marcha com grande fragor e eu não estou longe, no

curral de tanques - um animal bem ubíquo, mas sem alegria" 151, escreve Vaché em uma de

suas cartas a Breton. Em outra das correspondências que trocam sempre, Vaché define o

humor a pedido de Breton: “o humor deriva (muito) de uma sensação não muito difícil de

expressar. Creio que seja uma sensação.” (BRETON, 1997, p. 297) 152 Esse é o HN de Breton,

de Vaché, de Soupault e Aragon, fundamentalmente literário.

150 Em 1924, Breton diria: “ em literatura, fui sucessivamente apaixonado por Rimbaud, Jarry, Apollinaire, Nouveau, Lautréamont, mas é por Jacques Vaché que sou ainda mais. . 151 Vaché citado por Breton (1997, p 296) 152 “Humor, said Jacques Vaché, derives too much from sensation not to be very difficult to express. I believe it is a sensation.” (Tradução nossa)

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No HNb, entretanto, os textos de piadas, tiras, charges, adivinhações e ditos que

analiso são de ficção, mas obviamente não são literários. Isso já marca um distanciamento

entre os textos da Antologia de Breton e os textos de HNb. Não trato em meu trabalho do

humor em textos literários, a não ser como sementes para as bases do HNb.

Em segundo lugar, a noção que Breton tem sobre humor na Antologia, bem como em

sua obra, parece-me diferente do humor dos textos de HNb. O HN bretoniano fica mais

aproximado do modo como a medicina da Antigüidade o define, ou seja, o “estado de

espírito”, a obscuridade em que se encontra a alma ou a razão, quando a bílis negra é

segregada e traz a melancolia. Aquele "estado de espírito" melancólico aludiria também, a

meu ver, à ambigüidade que cerca a questão do riso na Antigüidade. Este oscilaria entre a

sabedoria e a loucura. Com a loucura o sujeito não teria a medida do que é o bem e o mal, e

com a sabedoria ele estaria acima desse bem e desse mal. Creio que Breton e seguidores

estariam encaixados nesse âmbito da sabedoria. Não seria esse conceito de humor da

Antiguidade o mesmo do duo homo sapiens e do homo demens, de que fala Morin? Creio que

sim, e para confirmar isso, Morin (2003, p. 66) afirma que “a sabedoria deve saber que

contém em si uma contradição; é inteiramente loucura viver muito sabiamente”. O sociólogo-

filósofo francês acrescenta que “entre a loucura e sabedoria não existe fronteira nítida. Não se

sabe quando se passa de uma para a outra, e isso porque há sempre reversibilidade” (MORIN,

2003, p. 27). Nesse trânsito entre a loucura e a sabedoria, o HN manifesta-se no desespero-

arma, como afirma Breton (1997) anteriormente, e para mim, também com fins didáticos.

E ainda, a concepção bretoniana de HN estaria bem próxima da do conceito de

Demócrito sobre eutimia (euthymia: bom espírito, bom ânimo), no sentido de saúde e cura

através do riso, por via da despreocupação pelas coisas pequenas da vida, como ganhar

dinheiro, comer, beber e trabalhar mais do que o necessário. Demócrito caçoa dessa

"insensatez humana" em perseguir o supérfluo e por isso ri sempre, mesmo diante de

desgraças, dos infortúnios e da morte. A idéia é de que o riso seria o remédio contra os males

do mundo, incluindo a loucura, sendo esta, o outro lado da ambigüidade do riso.

Salvaguardadas as mudanças e a evolução no mundo e nas sociedades desde a Antigüidade

até o tempo de Breton, as características do HN do passado se aplicam ao do poeta francês.

Afinal, características antigas como mágoa, agitação, tristeza e aversão, agora convertidas

respectivamente em dor, inconformismo e repúdio ao status quo social, literário e artístico da

época de Breton, acabam redundando na revolta (superior do espírito), tônica do HN de

Breton. Além disso, para criar o novo, não é preciso retornar ao antigo?

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No entanto, segundo Wittgenstein citado por Saliba (2002, p. 15), o humor não seria

“um estado de espírito, mas sim uma visão de mundo”, no sentido de que cada língua recorta,

por assim dizer, o mundo objetivo a seu modo. Esse recorte implica entabular mediações com

uma série de elementos da cultura, como a noção de verdade, por exemplo, que, no caso do

HNb envolveria principalmente a observação sobre como lidar com ela.

Além disso, os textos de HN da Antologia parecem pouco comprometidos com o

“jocundis exempli” 153, com o divertido, com o riso solto e a gargalhada como efeitos

perlocucionais, apesar de Breton afirmar, reitero, que “não há nada que o humor inteligente

não faça redundar em explosões de gargalhadas” (BRETON, 1997, p. xiv). Nesse sentido, o

HN bretoniano difere bastante do HNb, cujo envolvimento com a graça, com o engraçado e

com a gargalhada e o riso parecem ser um interesse de boa parte dos autores, o que pode ser

facilmente comprovado por alguns dos seus textos. Mas isso não deve conduzir à conclusão

de que todos os textos de HNb sejam engraçados ou que provoquem o riso.

A construção dos textos do HNb não se baseia numa filosofia determinada a esclarecer

se o humor é próprio de sábios ou de loucos, já que “de médico e louco todos [nós brasileiros]

temos um pouco” e “o sábio sabe que não sabe”, mas reflete uma sabedoria coletiva, o modo

de ser e de viver dos brasileiros, assim como sua visão de mundo, retratados na história e na

sociedade. Isso tudo mostra o modo como nosso povo se expressa, percebe e reage.

O HNb não seria propositalmente construído para revelar revolta ou protesto, ou usado

como arma contra o status quo, embora o acabe espelhando. Porém, ele utiliza temas

surrealistas, como a morte, o macabro, o mórbido e, às vezes, o grotesco, heranças do

Surrealismo francês. Seus textos podem fazer rir, gargalhar, ou não, mas parece não haver elo

que o associe à questão da ambigüidade do riso na Antigüidade, nada que inclua aquela

sabedoria democritiana, uma espécie de recolhimento filosófico, requisito para uma sabedoria

profunda, ou à loucura para a qual o riso seria o remédio. E, ainda assim, reflete uma

sabedoria imensa e própria do povo brasileiro. O HNb, além do tema morte, lida com as

doenças e as diferenças e, para mim, tem mais a cara de Macunaíma, Brás Cubas e dos

personagens-alvo do FEBEAPA154, dos quais trato mais à frente.

Assim, via de regra, os textos de HNb podem provocar o efeito gargalhada e riso, ou

não. Já os textos da Antologia de Breton não fazem os brasileiros gargalharem. Eles

conduzem os brasileiros, na melhor das hipóteses, a um sorriso leve provocado, repito, pela

153 Narrativas cômicas. 154 Festival de Besteira que Assola o País, de Stanislaw Ponte Preta.

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presença da ironia sutil e inteligente presente, por exemplo, no texto e nas máximas155 de

Swift, já citado156 neste texto, mas que não fazem os brasileiros reagirem com “explosões de

gargalhadas” como o francês apregoa (BRETON, 1997, p. xiv). Isso não significa que o HN

de Breton não provoque gargalhada, ou que ele não sirva ao riso das culturas de outros povos.

Simplesmente, o HN de Breton não faz os brasileiros rirem. As culturas diferem e as

diferenças provocam diversas percepções e reações.

Seria o HN uma absurdidade indecifrável, ou a teoria de Breton falível? Nenhum dos

dois. Talvez ela se preste somente à cultura européia, à francesa mais especificamente, mas

em sua íntegra, não à brasileira. Com isso, quero deixar patenteado que, nem por um segundo

sequer, tive a pretensão de denegrir (e nem Deus tal permita!) a qualidade do trabalho do

poeta, pintor e ensaísta André Breton. Apenas, analiso seu HN sob o prisma da cultura

brasileira (talvez uma temeridade), para concluir que o HNb difere do HN bretoniano

surrealista.

O poeta Guillaume Appollinaire (1886-1918), adepto do Cubismo, é o primeiro a

utilizar os termos surrealista e surrealismo. Ele as introduz no final de 1917, no prefácio de

sua peça As tetas de Tirésias, que ele classifica de drama surrealista, para expressar uma

forma de se ver a realidade. Apollinaire define surrealismo com simplicidade: “Quando o

homem quis imitar o andar, criou a rua, que em nada se assemelha a uma perna; assim, fez

surrealismo sem o saber“ 157. Em seu manifesto de 1924, Breton, grande admirador de

Apollinaire, retoma ambos os termos. Mas o início do movimento na França se dá por volta

de 1922, quando os dadaístas se dispersam, ano em que também eclode a semana de Arte

Moderna no Brasil.

O surrealismo é considerado como a segunda revolta histórica da poesia, na medida

em que inicialmente “representou a recusa da poesia em se deixar reduzir ao poema , ou seja,

a uma pura e simples expressão literária” (MORIN, 2003, p. 38-39). Isso não quer dizer que o

surrealismo esteja negando o poema, mas que a “poesia extrai sua fonte de vida com seus

sonhos e acasos”, objeto importante para o surrealista, “que pretendia reintroduzir a poesia na

vida”. Posteriormente, o surrealismo embrenha nas tramas da política; Breton tenta associar a

fórmula política revolucionária “mudar o mundo” à fórmula poética surrealista “mudar a

vida”, o que resulta em equívocos que quase destruiram poetas que tentaram enquadrar a

poesia a um partido político, o comunista. 155 Um aforismo do irlandês é: Venus, uma mulher linda e bondosa era a deusa do amor; Juno, uma megera terrível era a deusa do casamento; elas sempre foram inimigas mortais. (SWIFT apud BRETON, 1997, p.15.). 156 Idem, 1999, p.11 157 APOLLINAIRE, Guillaume - Wikipedia - A enciclopédia livre, 2005.

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Surrealismo, segundo o Dicionário Petit Robert, é o [...] conjunto de procedimentos de criação e de expressão que utiliza todas as forças psíquicas (automatismos, sonhos, inconsciente) liberadas do controle da razão e em luta contra os valores recebidos; movimento intelectual revolucionário que afirma a superioridade destes procedimentos. Tem como antônimos o naturalismo, o realismo e o racionalismo. (ROBERTl, 1994).

Nessa linha de pensamento, se o HN é surrealismo, fuga da verdade, dor, emoção

negativa, razão e insight, além de envolver aceitação - isto é, “admitimos que não deveríamos

aceitar e aceitamos” (HELLENTHAL, 1989, p. 24-63)-, como analisar este texto em que

Pedro Bial158 entrevista o Presidente da República?

Texto de HNb 2

Pedro Bial: - O Senhor de nada sabia sobre o propalado mensalão? Presidente Lula: - Se você tá numa sala e eles noutra, não tem como saber tudo que eles diz, né?

O Presidente faz HN nos moldes bretonianos, no melhor estilo irônico-socrateano, ao

reiterar a ladainha da falta de informações, o não compartilhamento das informações com

Bial? Seu jogo lingüístico exige um trabalho com os conhecimentos prévios: o significado de

mensalão e o fato de o Presidente repetir sempre que nada sabe sobre esse mensalão. E seu

discurso não exige distanciamento da violação dos padrões morais e éticos? Não seria esse o

HN nos moldes apregoados por Breton, em que se tem de distanciar tanto para se esboçar um

sorriso (e dizer, cretino!) que dá para trocar de país? Os atos ilocucionais negros, em que o

personagem-enunciatário Presidente usa a ironia, não provocam o riso dos brasileiros, porque

a verdade fica escancarada. O que é negro nesse texto? A miséria e a fome causadas pelo

desvio, mau uso do dinheiro do empresariado que poderia atender a fins mais dignos.

O texto presta-se, ainda, a chocar os cidadãos e mostrar como certas posturas

impensadas, hipócritas ou atrevidas são prejudiciais, nocivas mesmo. Então, o companheiro

Presidente ainda profere um discurso com função social? Ou melhor, ele não, mas sim o

locutor empírico, que institui Bial personagem-enunciador e o Presidente como personagem-

enunciatário?! E o personagem-enunciador fica mudo, deixa a reação para o terceiro sujeito, o

leitor/ouvinte, nós, que nos tornamos alvo? Então, o texto serve também para exemplificar um

158 Entrevista cedida à Rede Globo de Televisão, exibido em abr. 2006.

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caso de alvo - uma das FCs159 - que atinge não só o personagem-enunciador, mas o ouvinte-

telespectador, o leitor-povo, ouvintes mudos, embora boquiabertos.

A análise crítica desses textos de humor ditos políticos deve levar em conta os

pensamentos de vários teóricos da AD, como Foucault, Pêcheux e Fairclough (2001) 160 e de

lingüistas como Raskin (1987), Attardo (1991) e Veatch (1998) e também de sociólogos

diversos. Todos eles fundamentam no fato de que acessar o discurso e os eventos

comunicativos são elementos essenciais, pois, consideram o contexto discursivo de maneira

não restrita, ou seja, o significado que reside para além das estruturas gramaticais. Isso inclui

a consideração dos contextos político, e mesmo o econômico, do uso da língua.

Finalmente, para concluir esta seção, cito o trecho final da introdução “Pára Raio” 161,

escrita por Breton (1997, p. xix), na qual confirma sua definição de HN. O humor negro é embainhado por um excesso de fatores, incluindo a estupidez, o sarcasmo cético, as anedotas ligeiras... (a lista é longa). Mas, inimigo mortal do sentimentalismo, que parece estar perpetuamente à espreita - sentimentalismo que sempre surge num cenário de sombras –, e de um capricho efêmero, quase sempre passa por poesia, e em vão insiste em infligir à mente seus velhos artifícios, sem dúvida, com pouco tempo para, em meio a sementes de papoula, erguer ao sol sua cabeça de grou coroado. 162 (Grifo nosso)

Assim falou Breton.

4.3 O surgimento do humor negro verbal brasileiro (HNb)

Como mencionado, na literatura nacional não se encontram registros de teorias sobre

HN ou HV, depois de pesquisados o período colonial, o primeiro e o segundo impérios (como

mencionado no capítulo 1, item 1.6), embora seja do conhecimento dos brasileiros que o

período após a chegada de Dom João VI ao Brasil (1808) é fase de grandes decretos,

159 Alvo: uma das FCs: fontes do conhecimento, de que tratarei mais à frente neste capítulo. 160 Norman Fairclough (1941 -): Professor Emérito de Lingüística na Universidade de Lancaster, Inglaterra. É um dos fundadores da ACD, ramo da Sociolingüística, ou Análise do Discurso, que estuda a influência das relações de poder no conteúdo e nas estruturas lingüísticas dos textos escritos. 161 Lightning Rod 162 Black humor is hemmed in by too many things including stupidity, skeptical sarcasm, light-hearted jokes... (the list is long). But it is the mortal enemy of sentimentality, which seems to lie perpetually in wait – sentimentality that always appears against a blue background – and of a certain short-lived whimsy, which too often passes itself off as poetry, vainly persists in inflicting its outmoded artifices on the mind, and no doubt has little time left in which to lift toward the sun, from amid the poppy seeds, its crowned crane’s head. (1997: xix). (Tradução de Rosa Maria Neves da Silva).

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progressos e feitos. A figura meio aparvalhada do rei português que aparece nas imagens

oficiais é ilusória. É dele a visão de futuro que transforma o Brasil em Reino Unido a Portugal

e Algarves, e não ao Reino Unido. Essa visão o faz editar o Alvará de Liberdade Industrial

que permite uma relativa emancipação econômica do Brasil Colônia. A despeito desses feitos

e decretos da Coroa, no Primeiro Império os registros de teorias de humor são inexistentes,

mas não os trabalhos literários que contêm humor.

É somente em 1833 que o alemão Eduardo Laemmert, considerado pioneiro da

indústria gráfica no Brasil, publica a primeira revista Encyclopedia do Riso e da Galhofa,

primeiramente talvez em fascículos, e depois em volumes. Em 1839 Laemmert edita a

Folhinha Laemmert, que se transforma em 1844 no Almanak Laemmert (SALIBA, 2002, p.

47).

O século XIX vê nascer revistas humorísticas estimuladas pelos avanços tecnológicos da

impressão e reprodução de material. O período do Império chega a ver a circulação de

sessenta revistas ilustradas no Rio de Janeiro, um jornalismo satírico eficiente na Regência e

folhetins cômicos no Segundo Reinado. Porém, minha pesquisa chega à República Velha e à

Nova, atinge o século XX e culmina no XXI sem encontrar uma teoria de humor sequer.

O humor negro brasileiro (HNb) nasce, a meu ver, de duas vertentes: da produção

humorística da Belle Époque (SALIBA, 2002) e da literatura brasileira.

4.3.1 As raízes do humor negro brasileiro nas Raízes do Saliba

Retomo Saliba (2002), à década de 20 do século XX, mais especificamente os trechos

em que o historiador definitivamente (e inconscientemente?), ao descrever a representação

humorística na história brasileira, fornece dados e informações preciosos que apontam o

surgimento do HN do Brasil.

Numa subseção a que denomina “Humor e Música: cruzamentos, encontros e

sincretismos” (SALIBA, 2002, p. 254), o historiador analisa como os humoristas e os músicos

se vêm forçados a transitar pelo teatro de revista, pelos clubes carnavalescos, cafés-concerto

etc. até chegarem ao Rádio. Demonstra como o entrecruzamento da música e humor vem

enriquecer a farta literatura humorística da época, inclusive atraindo a cobiça dos humoristas

por melhores numerários, sem, no entanto conseguir o enriquecimento atingido pela literatura

culta. O autor destaca a facilidade com que os humoristas articulistas e os compositores fazem

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aquele trânsito do humor jornaleiro e revisteiro para o da música e analisa a profícua relação-

interação entre esses humoristas e os músicos, duo que vai fornecer as bases para o humor

radiofônico. Saliba retoma o tema da herança herdada dos primeiros anos da Belle Époque

que, em síntese, giram em torno da instabilidade da vida brasileira das décadas finais do

século XIX.

Saliba aponta como baluartes dessa criação humorística as parcerias entre Raul

Pederneiras, Cornélio Pires, José Barbosa da Salva, o Sinhô, Oduwaldo Viana e José do

Patrocínio Filho, Bastos Tigre, Noel Rosa e Lamartine Babo, músicos, articulistas, chargistas

autores, diretores, produtores e roteiristas de teatro e cinema brasileiros e teatrólogos

revisteiros. Nenhuma relação, entretanto, é tão profícua quanto à de Lamartine Babo, Noel

Rosa e Bastos Tigre, no final dos anos 20. Entre eles, a parceria entre Lamartine Babo e Bastos

Tigre é a mais concreta. Ambos se conhecem no início da década, Lamartine mais jovem que

Bastos é funcionário da “Light” 163 e passa a escrever para a revista D. Quixote, dirigida por

Tigre. Em suas produções, eles retratam e desnudam com irreverência a miséria (“pindaíba”,

“prontidão”, a falta de dinheiro, a fome) do país. Seus textos acabam se transformando em sua

auto-análise, já que eles dirigem a si próprios uma análise que é a do povo brasileiro,

aparentemente para evitar problemas causados pela seleção dos temas. Isso não é (auto)ironia

executiva?

Os humoristas introduzem também uma nova linguagem e elementos familiares e, é

essa introdução na linguagem sisuda dos poemas que vem criar um tipo de “poema-piada”,

preferência nacional de expressão dos humoristas da Belle Époque do início do século XX. São

de boa lembrança os versos da canção de Lamartine, “Linda Morena”, em parceira com João

de Barro que encerra com uma estrofe-crítica164 à “Light”. Lamartine introduz os elementos

familiares e Tigre o anticlímax nas paródias de músicas e poemas. Quando parodia o soneto

“Mal Secreto” 165 e o transforma em “Mal Discreto” (SALIBA, 2002, p. 258), Tigre exibe sua

perícia em usar o anticlímax. Transcrevo apenas os dois primeiros quartetos de cada soneto

para comparações.

163 Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro. 164 “Dizem, morena, que teu olhar tem corrente de luz que faz cegar; o povo anda dizendo que esta luz do teu olhar, a Light vai mandar cortar”. 165 Do poeta parnasiano Raimundo Correia (1859-1911).

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Mal Secreto Mal Discreto Se a cólera que espuma, a dor que mora Se a prontidão, a pinda e a quebradeira N’alma, e destrói cada ilusão que nasce, E os vários males desta mesma classe, Tudo o que punge, tudo o que devora tudo o que punge a tísica algibeira, O coração, no rosto se estampasse; sobre o rosto do pronto se estampasse. Se se pudesse o espírito que chora Se se pudesse a crise financeira Ver através da máscara da face, Ler através da máscara da face Quanta gente, talvez, que inveja agora Quanta gente, talvez, que, da primeira Nos causa, então piedade nos causasse! Fila, então, para a última passasse! Essas produções que culminam com anticlímax e são construídas com a inclusão de

elementos familiares na língua prosaica da época vão inspirar outros autores a produzirem os

textos com esse “nó acústico” da anedota em forma de poema-piada que sempre revela, no

final do texto, a realidade cortante nacional. Para isso, os escritores usam gírias da época

entremeadas com palavras usadas nos poemas literários, construindo uma mistura fértil que,

por sua vez, se presta à composição musical e ao ritmo das canções compostas,

principalmente, por Noel Rosa e Lamartine Babo.

No início da era do Rádio, Noel transfere o nó acústico do texto do último verso da

canção para o breque, intervalo de tempo rítmico e musical do samba no qual ele insere uma

fala cômica ou irônica. Lembro aqui o samba “Trem das Onze”, composto vários anos mais

tarde (1937) por Adoniran Barbosa cujo breque é “não posso ficar”. Alguns dos versos

anticlímax de alguns textos, não se sabe por que razão, mas talvez por censura, são eliminados

nas transmissões radiofônicas.

Ao retratar a situação aflitiva e caótica do país e de seus pobres coitados que se auto-

analisam, Noel compõe “Quem dá mais?”, canção do esquete “Leilão do Brasil”, um dos

quadros da revista “Café com música” de 1931 que, segundo Saliba, acaba por se transformar

num protesto, não apenas contra a “pindaíba” do país, mas também contra a “venda do Brasil”

motivada pela crise do café (agravada pela queima ordenada por Vargas). A situação caótica

da economia, em meio ao recém chegado governo conturbado de Getúlio Vargas e à

depressão norte americana, o desdém, a amargura e a tristeza pelo sofrimento e pelas

dificuldades gerais do país espelhadas nas canções e versos revestidos de lirismo cômico

desdobram-se em outro tema, a morte. Saliba aponta, então, as raízes do HNb.

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A amargura anônima, travestida num lirismo cômico de desdenhoso sofrimento privado e público, desdobrou-se noutro tema que esses humoristas, herdeiros da comicidade da Belle Époque e afeitos a versos rápidos e musicais das revistas, procuravam transpor e recriar para seus próprios propósitos. É o tema da morte, que eles tratavam a partir de uma visão ingênua, diríamos até infantil, já que buscavam incorporar, sempre de forma paródica, as inúmeras metáforas que os adultos utilizavam para referir-se à morte na frente das crianças (SALIBA, 2002, p.265). (Grifo nosso)

Exemplo desse humor sincrético que aborda a morte, “com as inúmeras metáforas que

os adultos utilizam para referir-se à morte na frente das crianças” (p.265) é a letra da canção

de Lamartine “Acidentes de Trabalho”, que data do período em que ele escreve para a revista

“D. Quixote”. O poema conta a história de um trabalhador, Plácido Penido, que cai do oitavo

andar e tem morte instantânea. Transcrevo-a.

Texto de HNb 3

Tendo caído de um oitavo andar O operário Plácido Penido O mestre de obra pôde constatar Que... o desgraçado havia falecido! Célere, o mestre então fora avisar A pobre esposa, o triste sucedido; E começara, a custo, a relatar Desta maneira o caso do Penido: - Minha senhora, eu venho pesaroso falar-lhe algo do seu rico esposo... - Fale depressa - disse a moça aflita; - Minha senhora, que cruel desdita – e relutando o mestre continua: - O paletó do Plácido Penido Rolou do andaime e foi cair na rua,

O que me fez ficar tão comovido...

Indignada, a mulherzinha disse: - Vá pro diabo, estúpido; insolente; Se essa pilhéria o meu marido ouvisse Dar-lhe-ia um soco imediatamente – Prossegue o homem, após, com relutância: - Perdão, senhora, acresce a circunstância De eu ver na rua o paletó caído, e. dentro dele... o Plácido Penido!

Segundo palavras de Saliba

a crueldade da notícia da morte é diluída pela supressão das aparências, pelo jogo de palavras, ou através da mágica das mesmas palavras, que combinadas com o sublime da música e do ritmo, engendram o riso, quase que pela simples eliminação das próprias coisas. (SALIBA, 2002, p. 266).

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A realidade é filtrada pelos versos de humor, atenuam-se as aflições e o horror, e se

pode rir. É do HNb que Saliba (2002) está falando. É com esses dados e informações que ele

fornece as bases para o surgimento do HNb que brota dos versos dos poemas-piada dos

compositores do final da década de 20 e da de 30, mais precisamente de 1929, sete anos antes

de Breton organizar a Antologia com os princípios de seu HN, mas no mesmo ano em que o

francês publica seu segundo Manifesto Surrealista e um ano depois de Oswald de Andrade

publicar seu Manifesto Antropofágico. Recordo que Breton já trabalha o espírito do HN em

1916, quando encontra Jacques Vaché, durante a I Guerra Mundial. Coincidências,

influências?

Observe-se, ainda, nesse contexto de criação humorística, fato relevante: as primeiras

manifestações do HNb são feitas por via de textos que provocam a gargalhada e o riso, já

introduzindo os elementos lingüístico-discursivo-pragmáticos necessários para se atenuar o

horror da realidade: jogo de palavras, ironia, eufemismos, metáforas, mágica das mesmas

palavras que, segundo Saliba, combinadas com a melodia e o ritmo forjam e causam o riso.

Ressalte-se que os textos de humor que não utilizam esses recursos atenuadores não possuem

muitos registros em Saliba (2001), o que leva à conclusão de que o HNb já se inicia

diferentemente do de HN.

Os dados históricos de Saliba, contribuição valiosa para apontar a origem e a formação

do HNB, fecham com a narrativa preciosa sobre os compositores, poetas e humoristas de

Rádio que utilizam diferentes níveis de humor que incluem trapaças e caçoadas, brincadeiras

e hostilidades, morte e alivio. Esses personagens compõem letra e melodia de canções com o

“arremate gaiato, em tom de funéreo-cômico, incorporando as tiradas francamente maliciosas

do próprio Cornélio Pires” (SALIBA, 2002, p. 268). Exemplo disso é a canção interpretada

pela dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho, “Romance de uma caveira”, de 1937. A letra da

canção narra a história de um triângulo amoroso entre duas caveiras apaixonadas que se

encontram no cemitério à noite, quando, num belo dia, chega ao cemitério um “cadáver morto

de um defunto”.

[...] e a cavera prele se apaixonô. O caveiro tomô uma bebedeira E matou-se de um modo romanesco Por causa dessa cavera ingrata Que trocou ele por um defunto fresco. (SALIBA, 2002, p. 268).

A letra traz o “arremate funéreo-cômico” já citado, uma “ofa gaiata” com a língua e a

morte é tratada como “ia pitoresc”. O fantástico também não se faz aqui presente?

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Expressões como “moturneio levô uma trumbada”, “bater o burgueguim” ou “até qui o

ráio lhi parta”, “abotoar o paletó”, “esticar as canelas”, que substituem as alusões diretas à

morte, revelam o uso de eufemismos para escamotear a seriedade dos fatos. (SALIBA, 2002,

p. 270). Um exemplo é a milonga-paródia “Prendi a alza Manuelita”166 cantada pelo

humorista Zé Fidelis, com um sotaque lusitano. A letra descreve as desventuras de Manuelita,

uma cachopa, e seu namorado Juóquim, motorneiro de bonde que recebe convite da “Light”

para trabalhar no Brasil e morre em um acidente entre dois bondes, fato que é revelado à

cachopa por uma cartomante. Diz a milonga:

Texto de HNb 4

Scuita bem ó Manuelita Juóquim na vida foi teu Deu co´a cara noutro bonde Sultou um suspiro i morreu Reza pur eli, pois nu céu Bai ser dificile ele intraire A caderneta di estrangeiro O burro isqueceu di levaire!

Saliba (2002, p. 270) fecha as informações que subsidiam o surgimento do HNb, como

não poderia deixar de ser, com a narrativa sobre o que denomina “a expressão cômica mais

anárquica” do tema morte, nas figuras de dois humoristas-radialistas Lauro Borges e Castro

Barbosa e seus programas, primeiro na Rádio Mayrink Veiga, depois na Rádio Nacional do

Rio de Janeiro na década de 40. É na seção nota de falecimento, no meio de seu programa,

tendo como prefixo a Marcha Fúnebre de Chopin, mas lendo o texto com voz aveludada e

meio infanto-angelical, que os dois artistas anunciam o passamento dos seus semelhantes.

Primeiramente, eles cumprimentam o falecido:

Texto de HNb 5

Grudi naite tu uiú Grudi naite tu uiú Grudi naite, fulano...

Que já vais pro Caju!

166 Originalmente “Alza Manuelita”, canção de Leo Darnideff.

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A seguir, Otelo Trigueiro167, com voz melodiosa e melancólica, lê a nota de

falecimento de um cidadão que fora atropelado por um automóvel, dirigindo inusitada e

especificamente suas palavras ao automóvel, ao invés de aos familiares do falecido.

Texto de HNb 6

Vítima de impertinaz moléstia, faleceu ontem em primeira audição atropelado por um automóvel Srudebaker, tipo 1939, de cinco portas, pneu de banda branca, 38 cilindros, licenciado para 1944 e que nunca levou gasogênio, o Sr. Eleutério de tal, figura muito conhecida nesta necrópole. O falecido pediu ainda pra avisar que o seu féretro sairá, no mais tardar, até o fim do mês, para o sumitério mais próximo da casa dele, cujo endereço ignoramos (SALIBA, 2002, p. 270).

Nas palavras de Saliba, fica evidente a idéia da ruptura com a vida, com a morte, o

acidente e o aviso fúnebre constituem arremate gaiato, o estopim do texto que causa o riso, ao

serem travestidos de outro sentido para poder “se enquadrarem no bom sentido e recolocar em

seus lugares” as coisas fora de seu lugar. E Saliba arremata: [...] Procuram [os humoristas] restituir outro sentido às coisas. Ainda que pelo caminho da fuga, do desvio pela metáfora cômica, da incorporação de expressões populares ou da mera supressão das aparências. Porque esses humoristas, esses eternos “engraçados arrependidos”, sabiam que só quando conseguimos enquadrar as coisas, as pessoas e nós mesmos no bom sentido, aquele que nos permite a vida num mundo difícil, então - só então - nós rimos. (SALIBA, 2002, p. 271, grifo nosso).

Agora, além de descrever um tipo de HNb, e com referência direta ao herói

Gwynlaine, “O Homem que Ri”168, e o faz permanentemente, devido à deformação feita em

seu rosto por ordem de um rei, Saliba (2002, p. 271) explica que, diante dos limites sociais

impostos para o riso e da impossibilidade de se rir sempre, é preciso camuflar a verdade para

causar o riso. Então, embora talvez inconscientemente, mais do que fornecer dados para

mostrar o surgimento do HN, o historiador ensina o modus operandi da construção de um tipo

de HNb “aceitável”, na medida em que, especificamente, fala da introdução de uma não- 167 Pseudônimo de Lauro Borges para desempenhar papéis variados nos programas da Rádio Nacional. 168 Um dos romances do escritor francês Vitor Hugo.

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verdade para “enquadrar as coisas [...] no bom sentido [...]”, escamotear a verdade. Assim, ele

sacramenta sua contribuição para a origem, constituição e produção do HNb ao lidar com

aquilo que eu denominaria Metaficção, técnica lingüístico-discursiva de construção do texto

HNb, da qual trato mais à frente.

Fechando as considerações sobre Saliba (2001), ele declara que a literatura da Belle

Époque alija do gênero literário os textos de humor e seus humoristas. Não cabe neste texto a

discussão sobre essa questão, mas é instigante pensar como a literatura marca o surgimento do

humor negro e como este permanece desprestigiado.

4.3.2 A literatura subsidia o HNb

O HNb origina-se também da farta, rica e marcante literatura brasileira dos séculos

XVII, XVIII, mas notadamente da produção literária da Belle Époque do XIX e do XX, em

meio à produção cômico-humorística um tanto marginalizada por essa cultura culta. A

literatura que sobejamente marca a cultura nacional dos séculos XIX e XX subsidia as raízes

do HNb, antes da chegada do sintagma humor negro (HN) nos anos 60, em meio ao Pós-

Modernismo, seis anos antes do falecimento de André Breton e, aproximadamente, vinte e

cinco anos depois que os humoristas da Belle Époque já haviam produzido textos de HNb.

Faço, a seguir, breves comentários sobre uma pequena parte da literatura que creio ser

também fonte das origens do HNb e que, talvez, juntamente com a produção cômica das

décadas de 20, 30 e 40, tenha despertado os brasileiros para esse tipo de humor. Na

impossibilidade de discorrer os vários e muitos autores, seleciono alguns que marcam minhas

pesquisas e meus estudos.

Utilizo o trabalho de Jackson (2005) para explicar a formulação sobre a realidade

espelhada no “método confuso” 169 e a “bagunça transcendente” 170 do Brasil como um

sistema meio louco, e mostrar que essa literatura fornece subsídios para a formação do HNb.

Para isso, preciso utilizar dois grandes enfoques cômicos e bastante imbricados e interligados

na escrita moderna do Brasil: Humanitismo (Humanitas) e Antropofagia.

169 Expressão cunhada por Mendes Fradique, pseudônimo de Madeira de Freitas (1893-1944), em seu livro “História do Brasil pelo Método Confuso” (1920). 170 Expressão cunhada por Murilo Mendes, poeta mineiro, em “Mapa”, no verso “Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente “.

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4.3.2.1 Humanitas

Segundo Jackson (2005), Machado de Assis cria o personagem Quincas Borba,

filósofo que também dá seu nome a um cachorro, para ser o arquiteto de um sistema filosófico

supremo que denomina Humanitas. Ao explanar ao seu incrédulo discípulo Brás Cubas o seu

sistema, Quincas fala como se estivesse num estado de delírio; na verdade, ele sabe que é

demente, mas sua demência pode se explicar como parte inerente de sua filosofia arquetípica

e compreensível. Humanitas, pelo menos até o ponto em que o autor deseja induzir o leitor a

aceitá-la como filosofia, vai além da sátira para produzir um sentido mais universal do cômico

e do irônico. Enquanto as teorias de Quincas satirizam Darwin e sua seleção natural e o

Positivismo prevalecente no pensamento social e político brasileiro do final do século XIX,

elas também prenunciam as crenças de vanguarda literária (especificamente o primitivismo), a

fome e as guerras que associam agressão e transcendência. Teria essa loucura-sabedora de

Quincas ligações com o riso democritiano?

O mendigo Quincas, em Humanitas, apresenta-se humoristicamente como um filósofo

com ares de Deus que formula um tipo de Teoria Unificada definitiva: "Humanitas é o

princípio... Humanitismo é o remate das cousas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do

mundo”. (QB, VI). O profundo senso cômico de Machado emerge da junção da busca intensa

pelo conhecimento com digressões e aberrações de autoridade e presunção, comparável,

conceitualmente, ao louco transcendental Don Quixote, “o cavaleiro da triste figura” 171. No

tocante à comicidade, Humanitas pode ser lida como outra grande ópera-comédia encenada

nos romances de Machado, cujo intuito é o de representar a alegria humana para um público

disposto a reler e reviver seu libreto.

Um dos temas de Humanitas que o relaciona diretamente à Antropofagia é a fome.

Lembrando que sua avó morre em decorrência de um aborto natural, Quincas explica a

Rubião: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo. Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto importo, antes de tudo), Humanitas precisa comer. (ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 6).

171 Descrição atribuída a D. Quixote de La Mancha, o homo demens do cavalheiro D. Alonso Quijana, da obra imortal do mesmo nome, do genial escritor espanhol Miguel de Cervantes.

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A humanidade é canibal que come por acaso na luta pela sobrevivência. Os fatos são

organizados por Quincas dentro da inevitabilidade de um princípio unificador supremo: tudo

pertence a Humanitas, e a humanidade devora a si própria num ritual antropofágico contínuo: [...] a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera... Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite. (MPBC, CXVII) (ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 6).

Quincas Borba explica a luta pela sobrevivência usando a metáfora da fome. Tribos

indígenas lutam pelo direito de ascender à montanha e ter acesso à safra de batatas que

garantirá sua sobrevivência. O desafio cômico-irônico de Machado de Assis é a eficiência da

luta e da guerra, sintetizados no lema de Humanitas: "Ao perdedor o ódio ou o desprezo; ao

vencedor, as batatas." (QB, VI) (ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 5).

Em Humanitas, o sujeito reduz-se a um todo orgânico e deixa de existir sem que

tenham sido registrados quaisquer ganhos ou perdas: "Os indivíduos são essas bolhas

transitórias... Bolha não tem opinião." (QB, VI). (ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 6). A

filosofia de Quincas codifica uma forma de canibalismo das partes pelo todo. Metonímia,

sinédoque? Quem sabe é o Machado.

Evidência do humor negro no livro de Machado de Assis é o falecimento de Quincas

Borba, resumido numa frase de jornal que combina doença e filosofia: "Faleceu ontem o Sr.

Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia”. (QB, XI).

(ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 6). Os enunciados irônicos são HNb do mais legítimo e

resquício da própria atitude de Brás Cubas diante da morte de seus parentes, trecho que

merece uma análise, com o perdão do mestre Machado. E para isso, lembro Perini (2005,)

quando afirma que um processo de interpretação parece compreender duas etapas: [...] temos um sistema que extrai do enunciado aquilo que é possível depreender a partir somente da estrutura formal (morfossintática). O resultado é uma representação semântica, que poderíamos chamar o significado literal enunciado. [...] essa representação semântica se associa a uma série de outros fatores, ligados ao contexto de comunicação e ao conhecimento prévio existente (ou pressuposto como tal), na memória do falante e do ouvinte. Resulta daí algo que, por falta de termo melhor, chamarei o significado final. (PERINI, 2005, p. 242, grifos do autor).

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Assim, a semântica que produz o significado literal, acrescida de fatores

extralingüísticos como a polifonia (ironia, pressuposição etc. e fatores da textualidade, por

exemplo) e da pragmática produz o sentido real/final. Apesar da distinção que Perini (2005)

faz entre o nível semântico e o pragmático, vou englobar esses aspectos e tratá-los

conjuntamente. É segundo essa linha que analiso os enunciados do texto e do discurso. Essa

perspectiva se justifica não só por questões de praticidade, mas também pelo fato de que trato

a pragmática como uma disciplina que investiga propriedades da língua na interface do

domínio da semântica, como uma teoria do significado que vai além das condições de

verdade, e fundamentalmente porque enfoco o exame dos discursos formadores da e formados

pela visão do mundo.

Analiso o trecho da morte dos parentes de Quincas, de Machado de Assis citado

anteriormente.

Texto de HNb 7

Levei os ao cemitério, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? Como quem leva cartas ao correio: selei as cartas, metias na caixinha, e deixei ao carteiro o cuidado de as entregar em mão própria. (MPBC, CXVI)

A língua de Machado de Assis, magistralmente adequada, destaca na voz de Brás

Cubas, personagem-enunciador, a ironia e as redes de comparação como técnicas lingüísticas

de construção do texto e de promoção do humor nos enunciados “como quem leva dinheiro a

um banco e como quem leva cartas ao correio”. (ASSIS apud JACKSON, 2005, p. 6). As

redes de comparações são incongruências repentinamente introduzidas na ordem da vida, a

normalidade, e a violam (Violação: o modo como Braz Cubas leva os parentes ao cemitério).

Também, as comparações (símiles) acionam os conhecimentos prévios que as pessoas têm

sobre o que fazer quando vão a bancos ou ao correio.

Levei-os (meus parentes) ao cemitério pressupõe172 que se são levados ao cemitério é

porque estão mortos, sendo o posto: vão ser enterrados. Em selei as cartas implica que elas

tenham sido escritas e colocadas no envelope. Os enunciados, Que digo, têm modalização

pedido de perdão/desculpa e revelam uma pseudo-tentativa de resgatar a ironia e a violação

172 Pressuposto - aqui entendido como conteúdo inscrito no enunciado e que corresponde a realidades supostas já conhecidas do enunciatário-, ou de fatos decorrentes de seus saberes anteriores e sobre os quais se formulam os postos (no caso: para enterrá-los). Seria um pressuposto de ordem polifônica, no dizer de Ducrot (1984, p.231-233).

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introduzidas. Destaque-se a ruptura dos significados contidos na rede seqüencial semântico-

pragmática das proposições selei as cartas (constatei suas mortes?), meti-as na caixinha

(coloquei-os no caixão), e deixei ao carteiro (ao coveiro) o cuidado de as entregar em mão

própria (a terra). Portanto, as formas de expressão, se produtivas, devem conter não apenas

informações, mas suscitar questões e procuras, porque

[...] a linguagem nunca se esgota em simples instrumento de referência ao mundo externo. Ao falarmos, manifestamos nossa perspectiva, nossa avaliação do conteúdo do dito. Essa posição é resultado da soma de nossas experiências, de nossa própria ideologia, desaguando num discurso que, de modo algum, pode ser simples e objetiva descrição da realidade. (SIMON, 2007, p.11).

Humanitas e o discurso de Machado de Assis não subsidiam substancialmente a

constituição do HNB?

4.3.2.2 Antropofagia

O ano de 1928 marca o lançamento da Antropofagia, com uma revista e um

“Manifesto”. Neste, Oswald de Andrade não esquece de situar - mais ainda, caracterizar - a

Antropofagia em relação ao surrealismo. Alega Andrade que a literatura já tem o comunismo

e a língua surrealista, deixando claro que o surrealismo integra de alguma forma a

antropofagia, o que não transforma automaticamente os antropofágicos (ou antropófagos) em

surrealistas, mas subsidia o HNb.

O “Manifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade composto de aforismos é

a criação cômica de um sistema universal, de verdade suprema que unifica a humanidade: só a

antropofagia nos une, socialmente, economicamente, filosoficamente, diz ele. Ela é a única lei

do mundo; é expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos, de

todas as religiões e de todos os tratados de paz, apregoa ele. A antropofagia de Andrade

reflete também a realidade brasileira como entidade estranha, atávica e matriarcal. Os

aforismos de seu manifesto poderiam ser lidos como dramas que ele comporia durante sua

estada em Paris com Tarsila do Amaral, para serem encenados no palco, mas nunca são

realmente performatizados. Vejamos algumas sentenças-aforismos do Manifesto. 173

173 OSWALD DE ANDRADE, em Piratininga, ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, ano 1, n. 1, maio 1928. (Conservadas a normalização e grafia da época.)

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Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. (OSWALD DE ANDRADE, em Piratininga, 1928, p. 1-5).

Assim como em Humanitas, a Antropofagia fica para além da dialética; tudo se torna

parte de um centro, como os tentáculos de um polvo, absorvente. Outros aforismos do

manifesto falam por si: “a antropofagia é a absorção do inimigo sagrado que objetiva

transformá-lo em totem e essa é a aventura humana. Todo indivíduo é a expressão da

constante do canibalismo”. O homem deve partir da premissa de que o “Eu é parte do

cosmos” e chegar ao axioma "Cosmos, parte do Eu", que lembra Morin (2006), quando

aborda a questão da autonomia e da liberdade dependentes, elementos que se desfazem

quando ele esclarece a relação das partes com o todo e do todo com as partes,

irreversivelmente interligadas. Enunciados como “nunca soubemos o que eram [os termos]

urbano, fronteira e continente” e “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil já

havia descoberto a felicidade” são bem conhecidos.

Ao fazer uma paródia da língua do manifesto, Andrade constrói, intencionalmente, um

sistema cômico maluco, cujo herói nacional é um canibal com um apetite voraz por filosofia

da carne e um senso de humor desviado e, a meu ver, faz HNb puro, risível. Antropofagia,

também, não faz lembrar o conflito sobre o riso que estaria atrelado ao duo loucura-sabedoria

do tempo da Carta174, equivocadamente atribuída a Hipócrates, de Demócrito a Damagestus?

(ALBERTI, 2002). 174 A redação parece datar do século I a.C. e narraria a história do “filósofo que ri” (Demócrito) e “do que chora” (Heráclito). (ALBERTI, 2002, p.74)

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Faço um recorte para, com a análise da charge abaixo, desafiar: Antropofagia e

Humanitas não estão presentes?

Texto de HNb 8

Moedor Adestrado

Figura 7: Ilustração do HNb antropofágico Fonte: Humortadela, 2005

Abandono, a contragosto, porquanto elemento fundamental na charge, a análise da

imagem (que chega quase a espirrar sangue no leitor) e, principalmente, a dos rostos dos

interlocutores e do focinho do cão, porque o texto não-verbal não constitui elemento de minha

pesquisa.

Para entender o humor desse texto, como de outros quaisquer, o leitor precisa ativar o

conhecimento de mundo e lembrar que esse tipo de cão, do qual se fala muito na mídia

ultimamente, ataca e estraçalha as pessoas. Precisa associar a máquina de moer carne [+

aparelho, - animal, + moedor] aos dentes de um pitbull [+animal, - aparelho, + moedor] e

descortinar as redes de comparação e de causa e efeito175 tecidas com as irônicas expressões

lingüísticas “ele” (o cão) deixa a carne bem mais moída (que a máquina). É necessário inferir

que o cão é mais eficiente (conseqüência) que a máquina moedora (porque tritura melhor = 175 Lembro que Norbert Wiener, citado por Morin (2006, p. 940) “rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa”.

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causa). O cão, em que pese os traços semânticos diferenciais apontados acima, mas levando

em conta o traço em comum [+moedor], é a máquina moedora, melhorada. Também subsidia

a construção do humor a escolha lexical do verbo improvisar (ao invés de somente o verbo

usar), que traz à cena enunciativa um aspecto cultural brasileiro: a capacidade filosófica de

improvisação, o jeitinho brasileiro.

Textos de humor são ficcionais e em todos eles a impossibilidade de se encarar a

verdade é a tônica, mas essa característica se aplica, principalmente, aos de HNb risíveis. O

texto de HNb é produzido com base numa estratégia discursiva em que a ficção é inserida na

ficção, a mentira inserida na mentira, o mesmo estratagema usado pelos humoristas em seus

poemas-piadas nas décadas de 20 e 30, como Aponta Saliba (2002).

Segundo Umberto Eco,

[...] os textos ficcionais, à diferença do mundo e ainda quando ambíguos, explicitam uma margem clara de certeza], conduzindo-nos a um paradoxo interessante: a ficção desrealiza o real para criar um novo real mais seguro, portanto "mais real", do que aquele que se encontrava no ponto de partida. O real ele mesmo treme, como o camaleão tremia de medo. (ECO, 2003, p. 13).

É o que ocorre no texto sobre a eficiência do pitbull: o autor introduz outra não-

verdade, a incongruência (violação: a utilidade de pitbulls em açougues) que desvia a atenção

do macabro da morte ou da deformação que o ataque de pitbulls pode acarretar, e assim a não-

verdade dos fatos causa o humor e pode provocar o riso.

Retomando as possíveis origens do HNb, em meio às obras e autores ilustres, na

poesia, destaco o expressionismo pré-modernista e sui generis de Augusto dos Anjos176 que,

rompendo com o passado, antecipa algumas das “descobertas” modernistas. Augusto,

considerado o boca maldita, mas segundo Taranto “não seria o boca maldita, porém o

amaldiçoado” 177, talvez por seguir a linha que se delineia à época e que prepara o movimento

Modernista no Brasil. Com seus poemas, Augusto, muitos anos antes, parece antever os

acontecimentos históricos e literários da pós-modernidade.

O expressionista pré-modernista vive no período efervescente da Belle Époque, torna-

se conhecido pelo vocabulário inusitado e repleto de hermetismo e cientificismo (ou pseudo-

176 Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914), poeta paraibano considerado por muitos como arnasiano ou simbolista, mas Ferreira Goulart o situa como pré-moderno, com que corroboro. 177 Fala de Audemaro Taranto Goulart, professor-doutor de Literatura da Pós-Graduação da PUC Minas em uma defesa de dissertação em 02 de fevereiro de 2007.

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cientificismo), e é influenciado pelas correntes filosóficas e científicas do final do século XIX,

como a panteísta, evolucionista, materialista, misturando Darwin, Spencer, Comte, Haeckel,

Schoppenhauer, tudo isso compondo a macabra salada do originalíssimo trabalho de Augusto.

Conforme me diz o saudoso Délson Ferreira178, a alma de Augusto coa um sumo, o da

amargura, de todas as maneiras que tenta manifestar a vida.

Augusto é frequentemente torturado por uma hipocondria, cultiva temas mórbidos e

decompõe esses temas aos seus mínimos elementos, como o faz um cientista de laboratório

que sacode, mistura e entorna substâncias e as reduz a corpos e à matéria. Assim é que, diante

da imagem do feto de um filho de sete meses, Augusto tem essa inspiração:

SONETO

!Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos. (fevereiro/1911.)

Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial, Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante, Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?! Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo, a feder?! Ah! Possas tu dormir, feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER!

Na verdade, embora revelando características próprias dos textos pré-modernistas e

surrealistas que surgiriam anos após a sua morte, segundo alguns críticos, Augusto não se

filia, nem adere a qualquer estilo de época. Recorrente em sua obra é a angústia em relação ao

que é apenas potencial, isto é, àquilo que poderia ser, mas não chega a ser. Isso fica nítido em

sua poesia, principalmente em "O Lamento das coisas". Seus "Versos íntimos", que me

impressionam, são inesquecíveis e sempre presentes nas antologias poéticas. Os tercetos

soam-me como uma definição metafórica para o HNb, o verso 11, especificamente. Por isso

incluo o soneto neste trabalho.

178 Trecho de conversa informal com o eminente professor, em março de 1963, na Faculdade de Letras/PUCMinas.

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Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera - Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro A mão que afaga é a mesma que apedreja Se a alguém causa ainda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga Escarra nessa boca que te beija.

Há em Augusto uma acentuada tendência, desde a sua fase inicial, para o vocábulo

raro e a neologia. Seus poemas são intrigantes, fascinantes e pelos temas que escolhe – cujas

abordagens muito se assemelham às dos quarenta e cinco escritores selecionados para

comporem a Antologia organizada por Breton (1997) e às de Villon179 -, Augusto poderia

fazer parte dessa Antologia. Ele não teve acesso aos trabalhos de humor negro bretoniano,

pois faleceu em 1914, mas teria ele tido acesso ao trabalho de Villon?

Em minha opinião, Augusto pode ser comparado aos mais competentes representantes

da corrente estética na história do pensamento, por suas excentricidades e afinidades de ordem

espiritual e pessoal. Com Baudelaire, por exemplo, pela imaginação bizarra e criadora e pelo

gosto doentio de impregnar a poesia com o odor fúnebre de coisas absurdas e abjetas, numa

revolta (superior?) do espírito, que vai aos extremos da insensatez e da blasfêmia. Com

Verlaine, pela tristeza indefinível da alma, no duelo da carne com o espírito, manifestada em

poemas impressionistas de sensações extremadas. Com Mallarmé, pelas crises espirituais por

que ambos passaram, pela impotência de estabelecer relação entre mundo visível e invisível, a

fim de atingir, através da sensação, a idéia pura das coisas. Com o poeta português Antero do

Quental, pela tortura do espírito, pelo pessimismo, pelo desejo de fuga e pela insistência em

tratar do tema morte, desejada por um, temida pelo outro e, na poesia, pelas aliterações e

metáforas. A re-ocorrência de termos que se referem ao espírito, no trecho acima, marca o

traço de atração entre esses poetas. 179 François Villon, pseudônimo de François Montcorbier ou François des Loges, poeta francês (1431 ou 1432, desaparecido em 1463). Os versos de seu mais conhecido trabalho Grand testament são marcados pela perspectiva imediata da morte por enforcamento e outras formas de desgraças. A isso, ele mescla reflexões sobre o tempo, fervor religioso e derrisão amarga. Essa mixagem de temas trágicos, mas abordados com sinceridade, se contrapõe aos trabalhos dos poetas daquela época. Villon teve uma vida e obra muito conhecidas, mas a data da morte é desconhecida.

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Augusto pode se comparar a Rimbaud180, inspirado poeta francês precursor do

modernismo e do surrealismo, ora parnasiano, ora simbolista, mas existencialista de gênio

devorador. Sua instabilidade emocional o leva a desvarios inomináveis, contraditórios e

imperdoáveis para a época, como uma juventude regada a vinho, absinto, haxixe, um

escandaloso e rumoroso caso com o laureado poeta Verlaine, o tráfico de armas na África e

uma interação total com a nata da intelectualidade da época. Augusto assemelha-se a

Rimbaud por acumular sempre as mesmas figuras de linguagem, em meio às dualidades das

alucinações e sensações simples, dos sentimentos alternados de bem estar e mal estar e,

também, por revelar num grau meio sobre-humano e surreal, um modo difuso de tratar a

grandeza e a miséria humanas. Observe-se a semelhança da inspiração e da linha de

pensamento do fragmento dos versos destrutivos de “Noite do Inferno”, da obra poética “Uma

Estação no Inferno” 181 de Rimbaud, com a obra poética de Augusto:

Engoli um belo trago de veneno. - Que seja três vezes abençoado o conselho que me aconteceu! - As minhas entranhas ardem. A violência do veneno torce meus membros, me deixa disforme, me derruba. Estou morrendo de sede, sufoco, não posso gritar. E o inferno, eterna pena! Vejam como o fogo se levanta! Queimo como deve. Vá, demônio! Eu havia enxergado a conversão ao bem e à felicidade, a salvação. Poderei descrever a visão, o ar do inferno não suporta os hinos! Eram milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que mais?As nobres ambições! (RIMBAUD, 2007, p. 1)

Rimbaud interrompe sua carreira de poeta aos 19 anos e deixa a França. Em suas

incursões pela África, fere-se tão gravemente no joelho que a perna lhe é amputada

posteriormente; alguns autores dizem ter sido um câncer o que o acomete e que o consome

aos 37 anos de idade.

Finalmente, a obra de Augusto assemelha-se à de Jacques Vaché (1896-1919) 182,

brilhante filósofo e poeta francês, na opinião de Breton (1997), seu amigo íntimo e, segundo

este, como afirmado, real introdutor das idéias do humor negro que originariam o surrealismo.

Pessimista, desvairado, indiferente e irônico em relação à vida e ao mundo e inconformado

com a insubstancialidade da existência, suicida-se com uma overdose de ópio juntamente com

um amigo; tinha 23 anos. Nada mais surrealista. Augusto é consumido por uma pneumonia

dupla que o mata em dez dias, aos 30 anos de idade, apesar da suspeita de tuberculose. Há um 180 Jean Nicholas Arthur Rimbaud (1854-1891). 181 Une Saison en Enfer (1873). 182 Autor de obra nada longa, quinze cartas, um pequeno texto poético e uma novela curta.

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elo entre todos esses jovens talentos também na tragicidade de sua causa mortis e no (curto)

período de tempo em que vivem.

Augusto escreve textos angustiantes, trágicos, pessimistas, reveladores de revolta e

derrota íntimas, niilistas, em que o sujeito não é apagado, mas se anula, tudo apontando para

um desfalecimento diante do mundo. Os poemas são meio precursores do surrealismo, meio

negros sim, macabros e de certo modo dentro dos moldes postulados na Antologia de André

Breton (BRETON, 1997), mas não são de humor.

Destaco, ainda, entre outras tantas, a obra farta e polêmica de Nélson Rodrigues183,

muitas das vezes surrealista, da qual detecto pelo menos dois trabalhos em cujos títulos, o

dramaturgo usa a palavra asfalto: “Beijo no Asfalto” e “Asfalto Selvagem”. Nestes Nélson

introduz nuanças de HNb na galhofa que faz com o socialmente inaceitável, o mórbido, e a

morte. Na peça “Beijo no Asfalto”, o HNb surge quando ele põe em cena um velório que

desperta o riso, apesar do pranto convulsivo de muitos. Um dos atores, próximo ao caixão, ao

se dirigir a alguém para falar sobre o falecido, diz: - “Está exalando”!

“Asfalto Selvagem - Engraçadinha, seus amores e seus pecados” - escrito

primeiramente em forma de folhetim e depois de livro e composto de duas fases

(Engraçadinha entre 13 e 25, depois após os 30 anos), é um livro repleto de ironia e humor

negro. O personagem Glorinha, por exemplo, é apresentado num primeiro momento como

“uma menina tão cheirosa que até o sangue de sua menstruação é rosa”; já Sabino é um

“homem fixado na morte de seu pai, que agonizou defecando”. Esse é Nélson e seu humor

negro psicanalítico e sua nova linguagem que não hesita em nomear as coisas sem aquela

“dissimulação” das produções da Belle Époque e na ausência de quaisquer hipocrisias,

assustando e deleitando das décadas de 60 à de 80, mas principalmente, fotografando as

mudanças e os contornos da história e da evolução da sociedade e do povo brasileiro.

4.3.2.3 Pós - Modernismo

As mudanças que vão dar origem ao Pós-Modernismo são acionadas na década de 50,

quando o abstracionismo começa a apresentar sinais de esgotamento. O Pós-Modernismo

deve ser entendido, antes de qualquer coisa, não como uma época linear na linha do tempo,

183 Nélson Falcão Rodrigues (1912-1980).

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mas como um conceito. Movimento diversificado e complexo na filosofia e nas artes, que

abrange da literatura ao cinema, e dessa à arquitetura, pintura, escultura e música mundiais,

começa a surgir por volta de 1960. O Pós-Modernismo é definido como um conjunto de

movimentos, tendências e atitudes que têm em comum a ruptura total ou parcial com os

fundamentos daquele corpo de doutrina racionalista e funcionalista até então aplicado às artes

e à literatura. Caracteriza-se também pela descontinuidade das mais diversas linguagens,

evidenciando que a idéia da grande narrativa não encontra eco nos ideais pós-modernistas.

Assim, a temporalidade, instabilidade, mutabilidade, variabilidade, dispersão e perda de

confiança tornam-se características cada vez mais presentes nas artes e linguagens que se

multiplicam sem conflitos entre elas, assim como a ecologia, a tecnologia e a estética

industrializada, que também convivem, sem litígios.

A Pós-Modernidade marca o retorno ao figurativo, não apenas como atitude realista; a

produção não reflete diretamente o real, mas é uma chapa dele: a obra nos coloca diante de

um quadro hiper-real. A arte espontânea funde-se à ação; surgem os pastiches (imitação de

outra obra), com um comportamento oscilante entre o conformismo e a atitude sarcástica.

Uma forma de se entender o que acontece na Pós-Modernidade é pensar que a

Modernidade caracteriza-se por rupturas e a Pós-Modernidade por levá-las a uma velocidade

vertiginosa, à intensidade desmedida e ao redemoinho insondável. “A pós-modernidade

poderia ser simbolizada como a descida enlouquecida de uma montanha russa, onde tudo é

imprevisível e surpreendente - daí o nosso mal-estar, desconcerto e desconforto com os fatos

que nos rodeiam.” (SEVCENKO, 2005, p. 26). Nesse contexto, a meu ver, encontram-se mais

subsídios para o HNb.

O conceito pós-modernista tem significados diferentes para diferentes pensadores e

áreas de estudos. Para os propósitos do meu trabalho, penso o Pós-Modernismo como o

filósofo Jean François Lyotard (1988) que em sua conhecida definição diz que o pós-moderno

é uma espécie de incredulidade voltada para as metanarrativas, estas, grosso modo, designam

qualquer teoria que tente explicar grande parte daquilo que está ocorrendo no mundo. Como

exemplos de metanarrativas, eu citaria a palavra sacralizada do Marxismo, que explica os

eventos em termos da economia e da luta de classes, a da Psicanálise que tenta compreender

os problemas humanos em termos dos conflitos psicológicos e a da Ciência (Racional) que crê

que todos os fenômenos podem ser classificados e entendidos objetivamente, através de

alguma teoria científica ou de um estudo empírico. Por essa razão, metanarrativas são

eminentemente racionais e se confirmam em textos sagrados, como os citados.

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Por isso, a maioria dos pós-modernistas é cética em relação a essas narrativas, porque

poderiam ser vistos como anti-racionais, já que para eles a racionalidade, a lógica e o

cientificismo são forças destrutivas, reducionistas, no sentido da crença de que tudo no mundo

pode ser entendido, definido, explicado e categorizado; podem, por isso, potencialmente

transformar-se em instrumento para não só ferir as pessoas, mas também controlá-las, apesar,

ou exatamente por isso, da fé que a maioria delas deposita nessas crenças.

Para o pós-modernista, a racionalidade carrega consigo, por exemplo, o germe do

fascismo, ou seja, uma filosofia (política) que pode se tornar um meio de controlar as pessoas,

inculcando-lhes valores e impingindo-lhes a vontade de outrem. Como exemplos de crenças

tradicionais geradas a partir de metanarrativas ocidentais, que os pós-modernistas querem

descartar, encontram-se: a crença no sujeito coerente e estável, a crença na histórica

teleológica - qualquer perspectiva de que a história caminha de acordo com uma direção pré-

estabelecida, ou que todos os acontecimentos podem ser entendidos como parte de alguma

cadeia causal de eventos - e, finalmente, a crença de que a ciência, qualquer que seja ela, pode

ser um instrumento para dominar a realidade e que tudo pode ser explicado e controlado.

Tudo isso, afirmam os pós-modernistas, representa perigo e ameaça, pois pode ser

usado para controlar, manipular as pessoas, ou fazê-las aceitar uma “norma” artificialmente

construída. As metanarrativas podem atuar como aparelhos ideológicos, ao imporem e

perpetuarem valores que influenciam as pessoas e que passam a fazer parte de suas formações

discursivas. Estão aí os de Richelieus, Bispos Macedo, os Papas, Louis, Cromwells,

Althussers, Stalins, Saddams, Marxs, Hitlers, Mussolinis, Bushs, as Elizabeths, Chaves e

Castros, entre outros, que não me deixam mentir. Eu diria que seria aconselhável ficarmos

atentos ao perigo de movimentos ou ideologias, a quaisquer metanarratvas, nas quais não

caiba o senso de humor, porquanto isso pode ser sinal de intolerância e rigidez.

Surgem então manifestações várias contrárias a esses posicionamentos metanarrativos

nas artes, na filosofia, na psicanálise e na literatura. Posicionando-se frontalmente contra o

“Complexo de Édipo”, um dos credos da psicanálise, insurgem-se Gilles Deleuze e Pierre-

Félix Guattari184, ao questionar o perigo de esse complexo tornar-se instrumento de

psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, para fazer as pessoas se adaptarem a regras repressoras

da sociedade ou das religiões modernas. A literatura, obviamente, não seria exceção; também

apresenta movimento anti-racional. É em meio a esse movimento, que o HN do mundo é

resgatado como uma das primeiras manifestações da literatura pós-modernista; o do Brasil

184 Renomados pensadores franceses que escrevem um famoso livro no final dos anos 1960 chamado Anti-Édipo.

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manifesta-se bem antes dos anos sessenta, como aponto anteriormente.

A característica que melhor identifica o humor negro como fenômeno pós-modernista

no Brasil é o fato de ele satirizar quaisquer sistemas de racionalidade e as metanarrativas, ao

englobar uma outra tendência: escarnecer e tripudiar sobre temas sombrios, macabros e

mórbidos ou considerados inapropriados, como os político-sociais, na verdade uma das

primeiras marcas do HN bretoniano que também configura o HNb especificamente como

“pós-modernista”. Essas características já estão presentes nos anos 20 e 30 nas sátiras,

paródias, canções, tiras e charges entabuladas pelos humoristas radiofônicos, atores revisteiros

e compositores musicais que usam e abusam do poema-piada, para tratar desse tipo de tema e

fazer rir, mas com o gosto, a cor e o rosto do Brasil. Essas características se estendem até os

anos 60.

4.3.2.3.1 Brasiliana

Magalhães citado por Jackson (2005), afirma que a tradição do humor popular

constitui parte fundamental da escrita cômica modernista. A primeira edição da Revista de

Antropofagia inclui dez colunas reunidas em "Brasiliana", que reproduzem relatos

jornalísticos telegrafados das cidades do interior para a zona urbana, no estilo das citações da

revista americana The New Yorker. Os episódios selecionados por Oswald de Andrade

expressam o mistério e a violência latente e inerente numa identidade nacional que carece de

coerência racional. Vejamos um exemplo: Surpresa. Telegrama de Curitiba para a Folha da Noite de S. Paulo, de 2-11-1927. Notícias de Imbituba informam que o indivíduo Juvenal Manuel do Nascimento, ex-agente do correio, reuniu em sua casa todos os amigos e parentes sob o pretexto de fazer uma festa. Durante o almoço, Juvenal mostrou-se alegre e, ao terminar a festa foi ao seu quarto, do qual trouxe um embrulho contendo uma dinamite, dizendo que ia proporcionar a todos uma surpresa. Todos estavam atentos e esperando a surpresa quando, com espanto geral, o dono da casa aproximou um cigarro aceso do embrulho que explodiu, matando Juvenal e ferindo gravemente sua esposa e todas as pessoas que haviam assistido ao convite fatal. (ANDRADE, apud JACKSON, 2005, p. 10).

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4.3.2.3.2 Festival de Besteira - FEBEAPÁ

Seguindo as tradições da "Brasiliana", o humorista Stanislaw Ponte Preta, (Sérgio

Porto) compõe o "Festival de Besteira que Assola o País" (FEBEAPÁ), em flagrante oposição

à revolução militar de 1964. Torna-se o precursor da geração de escritores cômicos e artistas

da mídia como França Júnior, Juca Chaves, Chico Anísio, Jô Soares, Paulo Francis e Millôr

Fernandes, entre outros.

Em sua coluna "Fofocalizando", Ponte Preta critica as pretensões da “revolução” que

ele denomina "redentora", compõe uma lista de oficiais, que se tornam atores importantes do

"festival de besteira", e re-conta seus feitos. O serviço de inteligência nacional torna-se o alvo

de seu humor político-satírico. Vejamos.

Abril, mês que marcava o primeiro aniversário da “redentora”, marcou também uma bruta espinafração do Juiz Whitaker da Cunha no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que enviara seis ofícios ao magistrado e, em todos os seis, chamava-o de "meretríssimo". Na sua bronca, o juiz dizia que "meritíssimo" vem de mérito e "meretríssimo" vem de uma coisa sem mérito nenhum. (PONTE PRETA, apud JACKSON, 2005, p. 11).

A paródia lingüística na tradição da "Carta às Icamiabas” 185 é fundamental para a

definição da besteira brasileira de Stanislaw Ponte Preta:

Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta, à circular: "Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será bem recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas”. (PONTE PRETA apud JACKSON, 2005, p. 12).

Elementos do carnavalesco e nuanças do absurdo e do inusitado são invocados como

ingredientes da confusa realidade histórica do Brasil, e a negritude desse tipo de humor fica

por conta dos temas sede, fome e penúria em função da seca, na contramão da abastança e

opulência das classes privilegiadas, como a política e a média.

185 Carta escrita pelo personagem Macunaíma do Romance do mesmo nome de Mário de Andrade. Macunaíma constitui também, sem dúvida, marco para a origem do HNb.

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Era o IV Centenário do Rio e, apesar da penúria, o Governo da Guanabara ia oferecer à plebe ignara o maior bolo do mundo. Sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando soube que o bolo ia ter 5 metros de altura, 5 toneladas, 250 quilos de açúcar, 4 mil ovos e 12 litros de rum: "Bota mais rum." (PONTE PRETA apud JACKSON, 2005, p.13).

Finalmente, são abordados temas que relacionam a loucura ao progresso social;

remanescentes do Humanitas de Machado (ASSIS apud JACKSON, 2005) são introduzidos

como típicos da sagacidade e da burocracia do governo. Agora aparece o projeto do Deputado Fioravante Fraga. Vejam que beleza! O projeto obriga as delegacias distritais a contarem permanentemente com um biombo, para esconder os que morrem nas vias públicas. Como se isso adiantasse. O homem é atropelado na rua... pode morrer de indigestão ou morrer de fome, não importa... termina a notícia com as palavras de sempre: “O corpo do extinto ficou durante horas exposto à curiosidade pública, porque a Polícia demorou a chegar com o biombo”. (JACKSON, 2005, p. 13)

De qualquer maneira, como se pode constatar, o humor do Brasil, como parece ocorrer

com outras culturas ocidentais, vermelho ou negro, é sempre associado à sua história,

natureza, literatura, identidade e realidade. A tradição da sátira e do humor populares, por

exemplo, é a mais alta expressão do cômico, podendo ser encontrada nas complexas teorias

do Brasil como sistema, segundo DaMatta (1991). Essas teorias combinam língua, ironia e

uma boa dose de idiossincrasia. Na literatura do humor moderno, o popular carnaval da

besteira é triturado, como faz com a carne o pitbull da piada; na literatura culta, pelos mais

nobres e engenhosos moinhos de Humanitas e da Antropofagia. Todos eles, no meu entender,

por suas características, constituem vitrines para o HNb.

Em síntese, aquele humor da Belle Époque de irreverente elegância, que descamba

para a reverente deselegância escamoteada com perícia pela linguagem, prorrogar-se-ia até os

nossos dias, apenas com facetas à imagem do povo brasileiro, por via das mazelas do “bom

humor” e do negativo e degradante cômico do “mau humor”, este sempre direcionado

“explicitamente a alguma pessoa ou veiculando algo que o público reconhecia diretamente

como obsceno” (SALIBA, 2002, p. 123). Acrescente-se, ainda, a irônica contaminação do real

pelo fantástico nas crônicas sempre instigantes de Machado de Assis e em Humanitas, o

convincente deboche do imaginário de Andrade em sua Antropofagia, a obra contundente e

amarga de Augusto dos Anjos, a postura brasileira Pós-Modernista frente aos acontecimentos

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no país e no mundo, a comicidade hilariante de Stanislaw Ponte Preta e a revelação da

condição humana na singularidade do indivíduo. Acresça-se a essas a realidade descarada de

Nélson Rodrigues e de outros muitos contemporâneos desses autores que, acredito, espalham

as sementes do HNb. Qualquer semelhança não é mera coincidência: é o HNb do qual trato a

seguir, não sem antes esclarecer aspectos que me ajudam a descrevê-lo.

Negro é HN? A tira-piada fechada186 abaixo é de HN?

Texto de HNb 9

Figura 8: Tiras como ilustração de negro é humor negro? Fonte: Humortadela, 2004

A intenção primária do locutor-enunciador, ao usar o termo insulfilm, não é o

preconceito racial, porque ele desconhece o conteúdo do carro, o que se pode depreender pela

expressão de seu rosto estampada na imagem do segundo quadro. Para construir o humor, são

utilizadas a sinonímia (insulfilm = negros) e duas redes, uma de comparação (pretura =

pretura, isto é, insulfilm é tão negro quanto os cidadãos saídos do carro) e outra de

186Subtipo de HQs (história em quadrinhos), as tiras podem ser seqüenciais ou fechadas. Estas podem ser classificadas como tiras-piadas (com poucos quadros e dupla interpretação) e tiras-episódios (feitas com mais quadros e desenvolvem a ação realçando as características dos personagens). As seqüenciais são divididas em vários capítulos. A maioria das tiras de Quino (Mafalda) é seqüencial.

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causalidade (a razão da escuridão dentro do carro é a escuridão dos afro-brasileiros). A rede

de causalidade gera a incongruência.

Das formações discursivas (FDs)187 emergem ideologias e inculcações sociais, quando

os indivíduos saídos do carro ficam de “mãos para o alto”, em flagrante respeito (horror) e

obediência à autoridade policial constituída. O texto é de HV e não de HN, uma vez que de

negro ele possui somente a pigmentação dos passageiros afro-brasileiros do veículo; mas o

preconceito aflora na voz do locutor-empírico, na enunciação, mesmo que essa não tenha sido

sua intenção nem mesmo secundária. Ou seria essa conclusão um equívoco de minhas

formações discursivas? De qualquer modo, fica patente que não basta a presença de cidadãos

afro-brasileiros presentes nos textos de humor para que estes sejam negros. Não é de raça que

falo.

4.4 Por uma Descrição do HNb

Nesta seção, intento descrever o HNb, procedendo como sugere Luis Fernando

Veríssimo, em um de seus famosos textos consagrados pelo senso comum: “Nunca tenha

medo de tentar algo novo. Lembre-se de que um amador solitário construiu a Arca. Um

grande grupo de profissionais construiu o Titanic”. 188

Prossigo, então, com discussões que subsidiam a descrição do HNb, tratando das

questões a que pretendo responder e, com um breve relato sobre os interlocutores do texto de

HNb, e sobre o que creio ser a ordem moral subjetiva brasileira.

Lembro que, de alguma maneira, e por razões óbvias, o HNb deve ter sofrido

influências da literatura européia para seu desabrochar. Por isso, não posso afiançar se haveria

HNb se não fosse pelo de André Breton. Volto, então, ao antigo, porque a novidade verdadeira

nasce sempre de uma volta às origens, retorno ao antigo, sem o qual não é possível criar o

novo, este tão efêmero.

187 FD - noção introduzida por Foucault que as entendia como conjuntos de enunciados que podem ser associados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas. A noção reformulada por Pêcheux no quadro da AD propunha que “toda formação social caracterizável por certa relação entre classes sociais implica a existência de posições políticas e ideológicas que não são feitas de um indivíduo, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de antagonismos, de aliança ou de dominação”. 188 BATICHOTTE NETO, 2007. (notas de entrevista).

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4.4.1 Questões

Dada a fórmula Normalidade+Violação+Simultaneidade (VEATCH, 1998), o que

pretendo responder no transcorrer da descrição do HNb e nas análises dos textos é:

- A violação e a normalidade, simultaneamente sentidas, podem ser retratadas, delineadas e

demarcadas pelas estruturas lingüísticas que constituem os textos de HNb?

- Se os níveis semântico e pragmático são considerados, e têm de ser, as estruturas

lingüísticas e os valores pragmáticos selecionados que carregam esses níveis são definidores

do HNb?

- Que papéis desempenham esses aspectos pragmáticos, como elementos intervenientes de

controle na percepção e reação do ouvinte, frente ao texto de HNb?

4.4.2 Heterogeneidade e os interlocutores no HNb

Os inúmeros estudos da AD sobre a heterogeneidade coadunam a idéia de que os

sujeitos não são os autores plenos de seus discursos, que todo discurso é constitutivamente

atravessado por discursos outros e pelo discurso do Outro.

Corroborando o pensamento de que “quando se fala da heterogeneidade do discurso

não se pretende lamentar uma carência, mas tomar conhecimento de um funcionamento que

representa uma relação radical de seu interior com seu exterior” (AUTHIER-REVUZ, 1982,

p. 75). Authier-Revuz formula o conceito de heterogeneidade do sujeito e do discurso, com

base em duas fontes: a concepção do duplo dialogismo bakhtiniano e a abordagem freudiana

do sujeito. A primeira postula o dialogismo do discurso com o discurso do outro (o

interlocutor), tal como é imaginado pelo locutor, e o dialogismo do discurso com outros

discursos. A concepção bakhtiniana apregoa, ainda, que o enunciatário apresenta-se como

agente da construção da mensagem do locutor e no processo de construção do discurso, uma

vez que sua imagem é levada em conta, portanto, constituindo-o. Assim, todo discurso se

constrói pela relação com outros que, dessa forma, se estabelecem como seu exterior

constitutivo. Isso porque todo enunciado é sócio-histórico determinado num tempo e num

espaço definidos. Desfazem-se, assim, a noção de unicidade e homogeneidade que o sujeito

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julga inerentes a si, ao seu discurso e à sua fala, revelando uma multiplicidade de dizeres

tensos, oriundos de sujeitos heterogêneos que se movem de uma posição de sujeito a outra,

deixando marcas de seu percurso histórico e de sua auto-identificação.

Ao tratar das formas explícitas de heterogeneidade, Authier-Revuz explica: “no fio do

discurso que, real e materialmente, um locutor único produz certo número de formas

linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade,

o outro” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.12). A autora considera a heterogeneidade em dois

planos: a heterogeneidade mostrada (HM) e a constitutiva (HC). Grosso modo, a HM

englobaria as “manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de

enunciação”, enquanto a HC, “aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície,

mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da

constituição de uma formação discursiva”. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 75).

Há inúmeros fenômenos dependentes da heterogeneidade mostrada e eles “vão bem

além da noção tradicional de citação [intertextualidade] e mesmo daquela mais lingüística, de

discurso relatado (direto, indireto, indireto livre.)” (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.75) E,

porque a classificação dessas marcas é tarefa árdua, perigosa, e exigiria uma explanação

extensa, seleciono alguns desses mecanismos, por serem, além de marcas das várias vozes no

discurso e no texto, são auxiliares da análise lingüístico–discursiva e pragmática a que

procedo neste trabalho. Não enveredo na questão da intertextualidade189 e do intertexto190.

Termo emprestado da música, a polifonia é fenômeno engendrado na língua. Grosso

modo, há polifonia quando o autor permite que se estabeleça um jogo entre várias vozes, ao

abrir-se para a intromissão de outras falas e discursos em seu texto, o que faculta a esses

textos espelharem pontos de vista diferentes. “O sentido de um texto não está, pois, jamais

pronto, uma vez que ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem suas

leituras possíveis: pensa-se evidentemente na leitura plural”. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.

26).

Em lingüística, a polifonia é associada ao nível do enunciado (CHARAUDEAU;

MAINGUENEAU, 2006) e reside na cisão do sujeito falante no nível do próprio enunciado.

Vale dizer, então, que o processo interpretativo pressupõe a percepção de pistas emprestadas

pelo autor. Para Ducrot, citado por Authier-Revuz, (1982, p.76) há polifonia quando é

possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens os enunciadores e os

189 Aqui entendida como o tipo de citação que a formação discursiva define como legítima através de sua própria prática. 190 Intertexto de uma formação discursiva é o conjunto dos fragmentos que ela efetivamente cita.

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locutores. O locutor é aquele que seria o responsável pela enunciação e o enunciado, e os

enunciadores aqueles que o locutor coloca em cena e que introduzem pontos de vista

diferentes. O locutor pode associar-se a um dos enunciadores, dissociando-se, por isso, dos

outros. Esses seres do discurso são abstratos. Pode-se descrever um enunciado irônico nesses

termos, já que neste ouve-se “uma voz diferente da do locutor, a voz de um enunciador que

expressa um ponto de vista insustentável. O locutor assume as palavras, mas não o ponto de

vista que elas representam.”. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 76).

Há diversas acepções para a polifonia: a da lingüística que a situa no nível da língua e

por isso, noção abstrata; a da AD que é fenômeno da fala, e, assim sendo, concreta; a literária

que se refere às relações plurais e multifacetadas entre o escritor e os atores. Vários fenômenos

lingüísticos se prestam ao tratamento e análise polifônicos, como a ironia191, a

pressuposição192, as modalizações, a negação, argumentação etc.

No texto de humor, texto ficcional, o autor constrói ações e falas reais fingidamente;

ele faz uma receita de fingimento, e assim não participa direta e abertamente do fingimento,

mas indicia como as coisas devem ser feitas; ele dá instruções sobre como fingir, que são

seguidas pelos atores/interlocutores. Assim, eles ficam a serviço da intencionalidade do autor.

Apesar do fingimento dos textos do HNb, a percepção e a reação do ouvinte são dependentes

do tema da interlocução, da abordagem desse tema e de fatores de ordem pragmático-cultural.

A presença das vozes nos textos de humor se assemelha à de outros fenômenos

textuais, como o provérbio, por exemplo. Isso porque, quando enuncio um provérbio, fica

assegurado que outra instância se encarregará da responsabilidade (no caso a sabedoria

popular), já que, em sua maioria, os textos-provérbio são anônimos, assim como a maioria dos

de humor. Assim, nestes textos geralmente se instaura a polifonia, através das vozes dos

seguintes sujeitos: locutor-empírico, personagem-enunciador, personagem-enunciatário e o

leitor/ouvinte. O sujeito-locutor, ser do discurso, instância a que é imputada a

responsabilidade do enunciado, institui o sujeito enunciador que, por sua vez, institui um

enunciatário. O locutor-empírico, instância que fica implícita, mas transparece na enunciação,

na arquitetura conceptual, no cenário do texto e em suas formas lingüísticas, transfere para o

enunciador a responsabilidade pela fala, pelas palavras, não pelo ponto de vista. O locutor-

empírico não fala; é a enunciação que lhe permite expressar seu ponto de vista.

191 Marca de polifonia tratada também às p. 28, 33, 60, 64, 68, 74, 75, 76 e 186-187. 192 Marca de polifonia tratada às p. 82-83.

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4.4.3 Por uma visão de moral subjetiva brasileira

Já nos tempos das histórias das “Mil e Uma Noites” que seus autores afirmam o

mesmo sobre o a maneira de expor e enfrentar a verdade. Dizem eles que [...] um dos grandes desafios da humanidade é aprender a arte de comunicar. Da comunicação depende, muitas vezes, a felicidade ou a desgraça, a paz ou a guerra. Que a verdade deve ser dita em qualquer situação, não resta dúvida. Porém, a forma com que ela é comunicada é que pode provocar grandes problemas. A verdade pode ser comparada a uma pedra preciosa. Se a lançarmos no rosto de alguém pode ferir, provocando dor e revolta, mas, se a envolvermos em delicada embalagem, e a oferecermos com ternura, certamente será aceita com felicidade. 193

É desse mesmo modo que, até hoje, os autores manuseiam a verdade nos textos de

humor: ou eles a envolvem em delicada e linda embalagem, como os articulistas da Belle

Époque, ou a arremessam diretamente no rosto do enunciatário e do leitor/ouvinte. Para fazer

isso, eles se regem por padrões de ordem ética, moral e social e o fazem por via da língua.

Como afirmado, o humor reflete a evolução da história, da sociedade, do modo de ser

dos indivíduos, fruto dos lugares sociais que freqüentam, revelando seus pensamentos, idéias,

ideais, seu entendimento sobre moral, violação e verdade. Por esses motivos, e ainda pelo

modo como os indivíduos reagem à verdade nos textos de humor, e ainda tendo em vista que

as cores do HNb sofrem desbotamento em função dos modos de se abordarem os temas, a

seguir, discorro a moral subjetiva nacional, sob minha ótica.

Em seu trabalho Laughter, Bergson (1914), sustenta que é quase impossível traduzir

muitos efeitos humorísticos de uma língua para outra, porque o ser humano traz dentro de si

um fundo antropológico (mágico) que não consegue erradicar e, além disso, sua língua reflete

os costumes e ideais de um determinado grupo social. Portanto, o humor conserva e preserva

os símbolos, as experiências e as crenças do clã, e é dentro dele que o significado social e

histórico do humor é construído e definido. Além disso, a formação do pensamento acontece a

partir das transformações individuais que o sujeito constrói sobre os elementos da cultura,

sendo que nisto é que se constitui o processo de desenvolvimento humano: sínteses que o

indivíduo vai construindo ao longo de sua existência e das quais é difícil manter-se distância.

Os indivíduos ficam submetidos a esses princípios e padrões e não costumam deles prescindir.

193 MORTIMER, 2007.

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Assim sendo, se um indivíduo for radical em relação a um princípio, e se a violação

for de tal violência (V) que ele não consiga assimilá-la como normal, fica impossível que sua

interpretação ocorra pacificamente junto com a normalidade (N). Como resultado, a

intensidade da interpretação da V impede a interpretação de N. A conjugação das forças

dessas duas interpretações é absolutamente essencial, sendo que a interpretação de N deve

predominar sobre a de V, ou ser percebida conscientemente como mais real ou correta, como

afirmado. Ou seja, o ouvinte tem de sentir que a situação é realmente normal, apesar da

violação. Como demonstrado anteriormente nos textos analisados, para ver a situação como

normal, a verdade não pode vir explícita no texto, o que significa que, para o ouvinte rir, ele

tem de ser enganado pelo autor, fraude que também corrobora.

Veatch (1998), entre outros autores, sustenta a argumentação de que todos os

fenômenos pragmáticos que permeiam os conteúdos proposicionais fazem parte da construção

do significado. Fauconnier (1997, p. 111), por sua vez, aponta condições pragmáticas

relevantes para essa construção, como o “conhecimento prévio, o conhecimento sobre certas

atividades e fatores de ordem cultural”. Nesse rol, eu incluiria, ainda, as qualidades e posturas

inerentes à cultura, como as crenças, a caridade, o amor ao próximo decorrentes do

compromisso com as religiões, o sentimentalismo, o compromisso afetivo e a sensibilidade

diante da dor, das doenças, diferenças e da morte; refiro-me à ordem moral subjetiva, isto é,

ao conjunto de princípios que regulam a ordem natural, social, religiosa, as crenças e a

conduta adequada. 194

A violação à ordem moral subjetiva é a infração a esses princípios nos quais o ouvinte

crê firmemente, com os quais se importa muito, ou com os quais tem um compromisso. Essa

violação desencadeia reações como raiva, medo, aversão, constrangimento, aflição, embaraço,

suor, asco, rejeição, riso, gargalhada etc. É a essa ordem moral subjetiva que o indivíduo

recorre, quando percebe a violação ou a transgressão, e essa ordem está intimamente atrelada

à relação do ouvinte com a verdade. Ele pode ficar ofendido ou alegre, pode ser atraído ou

repelido por temas diferentes. Em síntese, ele tem diferentes posicionamentos quando enfrenta

a ordem moral, e por isso reagirá com respostas emocionais diferenciadas.

A manipulação desse sistema e de alguns aspectos pragmáticos, como a

intencionalidade e aceitação, entre outros, intervêm diretamente no modo de recepção,

percepção, aceitação e reação aos textos em geral, aos de humor e, em particular, aos de HN.

Para sua aceitação, este último depende da estratégia de que se utiliza o autor para expor a

194 Entendida sempre como em conformidade aos padrões estabelecidos pelo clã.

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verdade, isto é, das escolhas lingüístico-discursivas e pragmáticas para maquiá-la. Assim, a

partir do modus operandi do autor, surgem respostas em forma de reações emocionais que

atuam ou para restaurar a ordem das coisas ou para fazer rir.

As abordagens sobre moralidade que aqui assumo não são de ordem filosófica ou

universalista, não seguem noções tradicionais de moral encontradas em discussões analítico-

acadêmicas sobre ética, moral e teologia, ou sobre dilemas complexos, mas absolutamente

empíricas e ontológicas e atreladas à minha visão sobre meus concidadãos: pessoas diferentes

têm pontos de vista e percepções diferentes sobre verdade, sobre mentira e sobre moralidade.

Isso é rapidamente percebido, mas é também um grande enigma: como é que diferentes

brasileiros, com diferentes culturas dentro de um mesmo país, com experiências de vida tão

diferentes, sentem-se alegres, risonhos, mas também tão ameaçados e ofendidos, de maneiras

diferentes, diante de uma série de eventos iguais?

Minha resposta é que seus modos diferentes de reagir refletem seus sistemas diferentes

de moral subjetiva, construída no clã. Em síntese, uma situação é moral se, e somente si,

primeiramente, o ouvinte pensar que algo tinha de ser de acordo com um princípio e, em

segundo lugar, que ele dá valor a esse princípio que foi violado (VEATCH, 1998). É por isso

que Attardo (1991) advoga que o indicativo de um compromisso mais profundo e afetivo com

o princípio subjetivo violado é o fato de as pessoas não rirem. E, em relação ao HNb, eu

acrescento que, atrelado ao comprometimento com o princípio violado, há também uma

relação conflitante com o duo verdade-mentira, obviamente também construído dentro do clã.

A visão de verdade e moralidade aqui assumida em relação aos temas que os

brasileiros valorizam e às verdades nas quais eles crêem e gostam de ouvir, pode parecer

simplória, mas constituem tipos de compromissos e de comprometimentos que são parte da

sua visão de moral que dirige as atividades de julgar e avaliar as situações do cotidiano dos

brasileiros.

Resumindo, são decisivas para as questões da reação aos textos de HNb o grau de

intensidade da violação à normalidade e o modo de recepção e percepção que dependem,

essencialmente, do modo como a verdade e a não-verdade (mentira) são tratadas no texto de

HNb. Por essas razões, fatores pragmáticos como a informatividade (o compartilhar do

conhecimento, que por ser condição inerente à compreensão e interpretação de quaisquer

textos, não mais merecerá destaque em meu texto), a intencionalidade, aceitabilidade e a

posição dos interlocutores na cena enunciativa, entre outros, desempenham papel crucial na

construção e na compreensão dos textos de HNb. Todos esses aspectos estão atrelados uns aos

outros e não se afastam um do outro, mas podem fugir ao alcance do nível cognitivo, do lógico

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e do semântico, por serem imprevisíveis e se alterarem com a evolução do homem.

Oxímoro para mim, o HNb nem sempre é negro; e por vezes, por não causar prazer e

riso, talvez, nem humor seja. Digo isso, porque nada é engraçado ou incongruente em si

mesmo. Nós é que interpretamos as coisas como tal. Algumas pessoas acham que alguns

objetos, ou algumas coisas são engraçados por si só, como, por exemplo, um nariz comprido ou

uma fala fanhosa. Mas nenhum objeto ou coisa é em si mesmo engraçado. É preciso fazer uma

avaliação para se achar algum objeto engraçado. A percepção, a interpretação e a reação ao

sentido do humor são subjetivas. Coisas externas apenas não causam emoções. Provoco minhas

próprias emoções com minhas avaliações. Eu é que fico chateada, zangada ou apaixonada. Crio

e determino o humor. Não rio do humor, mas vejo ou percebo as coisas humoristicamente.

Qualquer desvio ou violação, como também o grotesco e a tragicomédia, só podem

provocar humor, reitero, se os aceito. As piadas envolvendo tabus, vícios e transgressões são

engraçados, se eu os aceitar e decidir que o são. Por exemplo: um campo de concentração,

alguém engolindo uma granada a ponto de explodir, ou um “bebê de um ano servido como

iguaria nutriente e deliciosa, frito ou cozido”, como sugerido por Jonathan Swift195, ou mesmo

a morte, podem ser jocundis exemplis e trazer o riso, fazer gargalhar, ou não. Isso dependerá

das diferentes maneiras de se perceber os textos, aceitá-los e a eles reagir que, obviamente,

envolvem a capacidade de distanciamento da verdade. Assim opera o HN.

Os textos de HN e os de HNb têm pontos de convergência e divergência. O HN é

literário; o HNb, não. O HN bretoniano é arma propositalmente usada para insurgir-se contra

um statu quo literário, político, econômico e social. O HNb não. Ambos, logicamente,

pautam-se pelos aspectos ontogênicos impregnados nas culturas de seus povos. Os autores

dos textos do HN bretoniano fazem uma opção semântica preferencial pelo repugnante e pelo

descalabro. Os autores dos textos de HNB optam pelos temas morte, doenças e diferenças e

com eles podem ou não provocar o riso, dependendo do modo como abordarem os temas.

Alguns textos do HN e do HNb fazem uso da ironia - certa forma de (re)conciliação entre o

HN e o HNb e superfície tangencial entre esses humores -, sempre utilizada como instrumento

para atrair o riso.

Pode-se argumentar, obviamente, que essas opções também ocorrem em outras

culturas, ou individualmente, aspectos que não constituem o objeto de meu estudo, porque

não coloco em questão o modo como outras culturas vêem a verdade ou como fazem suas

opções semânticas, e muito menos faço julgamentos sobre elas, procedimento descabido,

195 Citado algumas vezes neste texto, Swift é um dos colaboradores da Antologia do Humor Negro, organizada por André Breton.

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porque não existem culturas melhores ou piores, mas diferentes. O que desejo deixar claro é

que o HNb, assemelha-se, mas também difere do de Breton.

O HN requer afastamento e distância psíquica de nós mesmos, afirmam os teóricos. O

afastamento significa não rejeitar, temer, ou ser atraído pelos aspectos incomuns de um objeto

ou de um evento. Posso rir, por exemplo, da morte, de acidentes como uma queda ou uma

escorregadela que causem fraturas de braço ou perna, ou das pegadinhas, da saia-justa e das

situações inusitadas e por vezes constrangedoras que se vejo nos programas do Gugu

(Augusto Liberato) ou do Faustão (Fausto Silva), por exemplo, que representam o anti-humor,

na opinião de muitos críticos. E, se rio dessas situações, afirmam os surrealistas, é somente

porque consigo um distanciamento; é com essa postura que posso me concentrar com

neutralidade no foco de uma situação. Tudo isso, entretanto, depende do modo como me

distancio da verdade e de como lido com ela.

Portanto, a despeito das afirmativas dos surrealistas de que à medida que a decadência

vai evoluindo em loucura coletiva e o HN torna-se um dos instrumentos mais valiosos de

controle cultural por sua combinação de sabedoria, paixão e ousadia que atinge a todos, no

Brasil tal instrumento parece ficar inoperante.

O humor baseia-se no entendimento explícito, mas não na aceitação implícita das

regras. Os indivíduos, em qualquer parte do mundo, fazem suas próprias leituras, de acordo

com seus clãs; para rir do humor dependem das suas visões de mundo, da pragmática, da

cultura, das percepções e, é óbvio, da competência lingüístico-comunicativa. É nessa

trajetória, segundo esse código próprio do seu grupo social, que o povo brasileiro também faz

as leituras dos textos de HN.

De modo geral, podem ser considerados comuns a (quase) todos os povos ocidentais

os seguintes princípios: primeiramente, se a situação não puder ser interpretada como normal,

o texto não provocará o riso. Essa normalidade pode ficar ou ausente ou pode escapar

momentaneamente à percepção do ouvinte, devido a fatores de várias ordens. Finalmente, o

ouvinte pode não conseguir lidar com uma Violação (V) muito agressiva e isso se deverá a

fatores que englobam a cultura e os valores da rede social de cada povo. Resumo esses

princípios:

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1) Uma violação não-ambígua não traz humor.

2) A normalidade pode escapar à percepção e não haverá humor.

3) O ouvinte/leitor pode não digerir uma violação muito agressiva.

Quadro 4: Princípios de HNb. Fonte: Dados da pesquisa, 2007.

É nos itens (3) e (4) que me concentro para observar os ouvintes brasileiros e suas

reações aos textos de HNb. Em relação a esses itens, os brasileiros parecem reagir

peculiarmente. Por quê? Porque a agressividade da Violação é resultado imediato do modo

como o autor do texto de HNb lida com a Verdade.

A seguir, procedo à classificação dos textos de humor com base nos níveis lingüístico-

discursivos colocados em meu texto como um aspecto central, embora essa classificação acabe

abrangendo outros aspectos, porquanto os textos de humor geralmente acionam mais de um

ingrediente ao mesmo tempo, como já mencionado e demonstrado anteriormente. Ao analisar

os textos de HNb sob os prismas lingüístico-discursivos e pragmáticos e o da moral subjetiva,

comprovo que, embora cada um dos enunciados que compõem a língua do texto de humor

possua uma função específica, não é apenas deles, individualmente, que emana o sentido do

texto, e sim de um conjunto de fatores. O primeiro item a ser abordado para a descrição e

classificação do HNb são as FCs – fontes do conhecimento.

4.4.4 As seis fontes do conhecimento (FCs)

Retomo as “Fontes de Conhecimento” 196 (ATTARDO e RASKIN, 1994)

mencionadas no capítulo 2, exatamente conforme a descrição dos autores, mas reconhecendo

que algumas delas careceriam de algum a revisão, algum ajuste ou alguns esclarecimentos,

para responder a questões mais atuais da AD, principalmente no tocante às suas definições e

explicações, ao seu caráter funcional e à sua abrangência. E essa seria uma discussão longa

que aqui não cabe fazer, pois, mesmo com essas restrições, elas constituem elementos válidos

196 KRS =Knowledge Resources, da teoria de Salvatore Attardo (1994).

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para a descrição geral do humor e do HNb e para as análises de textos. Segundo Attardo e

Raskin (1994) as fontes do conhecimento (FCs) são:

1. Oposição dos scripts (esquemas): um texto de humor é sempre parcial ou

totalmente compatível com dois scripts distintos que, por outro lado, se opõem.

2. Mecanismo lógico: parâmetro que determina o mecanismo usado para opor os

scripts.

Vejamos um exemplo:

Quantos portugueses são necessários para se trocar uma lâmpada? Cinco. Um para colocar a lâmpada e os outros quatro para girar a mesa, ou a escada, em que o colocador subiu.

O mecanismo lógico nesse texto é “a oposição burrice x não-burrice”, já que se usa

um método tolo para uma tarefa tão simples, que a maioria das pessoas desempenharia de

modo fácil e inteligente; é o que Attardo e Raskin classificam como “inversão de situação”.

Geralmente, quando uma pessoa coloca uma lâmpada, o cômodo da casa, a escada ou a mesa

e a pessoa que está trocando a lâmpada ficam parados, enquanto a boquilha da lâmpada tem

de ser enroscada, movida. Se eu mantiver os outros parâmetros dessa piada, mas trocar o

mecanismo lógico para “analogia falsa”, chego a este tipo de texto de HV conhecido em

várias línguas: Quantos portugueses são necessários para trocar uma lâmpada? Cinco. Um para segurar a lâmpada e quarto para procurar a chave de fenda.

Nos enunciados “e quatro para procurar a chave de fenda” estaria o mecanismo

ilógico, por assim dizer. Exemplos de mecanismos lógicos são a inversão simples, a

impressão falsa197, a justaposição simples e a justaposição de duas situações diferentes

determinadas pela ambigüidade ou pela homonímia numa piada ou trocadilho.

3. Situação: conjunto de detalhes como tempo, lugar, objetos, atividades.

4. Alvo: sujeito, ou o estereótipo, a quem o texto se dirige. Trata-se de um elemento

opcional, porque nem sempre são facilmente identificáveis.

O alvo, em princípio, visa a atingir os interlocutores na cena enunciativa – o

personagem-enunciador e o personagem-enunciatário -, mas pode atingir também o ouvinte,

quando, num discurso presidencial, ouço o mandatário do país dizer que “não sabe de nada”

197 False priming. (ATTARDO, 1994)

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sobre as ocorrências constantes de corrupção e desmandos. O alvo é o povo, porque esses

fatos violentam sua inteligência e seu discernimento e remetem à fome, falta de emprego, de

dignidade, honra, e esta talvez, um novo tema para o HNb - morte em vida. Um exemplo de

texto de humor em que o alvo é o personagem-enunciador é a charge do presidente Itamar

Franco, no capítulo 4.

5. Estratégia narrativa: forma que o texto terá: charada, charge, Cartum,

adivinhação, tira, dito, piada, história em quadrinho etc.

6. Língua: parâmetro que especifica que paráfrase do texto é usada (qual é a estrutura

de superfície do texto). É regido por todos os outros parâmetros. Embora seja a língua que

determine a expressão exata e o lugar do desfecho, todos os outros parâmetros

(principalmente a estratégia narrativa e o mecanismo lógico) exercem papel importante na

construção do texto e em sua interpretação.

Observe-se que, nos textos de HV, a verdade das afirmativas (proposições) e sua

consistência não são levadas em conta, não são importantes. A pseudo-lógica da piada, então,

não tem de ser eficaz, mas levemente persuasiva, mas o bastante para o ouvinte acompanhar a

piada. Porém, no HNb, a verdade desempenha papel fundamental.

Utilizo para as análises de textos de humor as seguintes fontes do conhecimento: alvo -

a única das seis que se refere aos seres, a quaisquer sujeitos na, ou fora da cena enunciativa;

situação - lugar, objetos, ações, tempo, isto é a situacionalidade, um dos fatores pragmáticos da

textualidade; mecanismo lógico - parâmetro que determina o mecanismo usado para opor ou

diferenciar os scripts; a oposição dos scripts, as duas matrizes da teoria de Raskin (1985). No

entanto, no dizer de Chlopicki (2006), necessariamente, não precisa haver oposição de scripts,

mas apenas uma diferença entre eles, por exemplo, em textos como:

Texto de HNb 10

Um homem vai ao cemitério depositar flores no túmulo de um parente. Olha para o lado e vê um japonês colocando arroz no túmulo de um parente. Pergunta irônico: - Quando é que você espera que o seu defunto venha comer o arroz? - Quando o seu vier cheirar as flores.

Realmente, não parece haver uma oposição dos scripts, pelo menos no sentido de um

quase confronto ou um antagonismo como ocorre com a maioria dos textos analisados, mas

uma diferença indiciada pela ironia introduzida nos enunciados dos dois interlocutores na

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cena enunciativa. Há um paralelismo de traços culturais: a homenagem aos mortos pela oferta

de algo simbólico de cada cultura: flores e arroz. A voz apontada pela ironia, por sua vez,

revela a incongruência: mortos não comem, nem bebem. Essa não parece ser uma ocorrência

incomum ou inusitada também nos textos de HV. Esses não seriam aspectos para discussão?

A seguir, trato brevemente do mecanismo lógico Verdade x Não-Verdade. As

explicações anteriores sobre moral subjetiva brasileira amparam o papel que a verdade

desempenha na cultura do Brasil, aspecto relevante para proceder à descrição do HNb.

4.4.5 Mecanismo Lógico: Verdade x Não-verdade

Verdades são crenças. O modo como se vê a verdade decorre das crenças semeadas,

cultivadas e disseminadas nos clãs, que conforme Morin (2006, p. 80), “constituem

verdadeiras microssociedades, com seus territórios sacramentados, suas leis de vingança, seus

códigos de honra” que em algum tempo e espaço se enraízam nos indivíduos e deles não se

erradicam. É segundo essas crenças, partes integrantes dos princípios que regem sua moral

subjetiva, que os sujeitos reagem. A crença, estado mental que se delineia na necessidade de

existência daquilo que existiu, é elemento normalmente utilizado na construção dos textos de

humor (e em outros, é óbvio) e aflora quando da sua leitura e se presta a decidir as questões

do riso e do não-riso no HNB. A crença, geralmente, relaciona-se com o desejo –

possibilidade da existência daquilo que não existe - de que as coisas não fossem do modo

como o texto-piada as apresenta, ou que, pelo menos, que o autor do texto utilize uma “pena

leve” para que a verdade da crença não seja como aparenta no texto. Satisfeito o desejo, isto é,

não infringida a crença, o indivíduo recepciona bem o texto e reage a ele rindo. Não satisfeito

aquele desejo, e infringida a crença, o indivíduo, em princípio, rejeita o texto como não sendo

nem humor e nem de fonte de riso. A articulação desses dois predicados primitivos (crença e

desejo), no dizer de Searle198 (1995), resulta, em alguma forma de extensão, na

intencionalidade que, em vários casos é explicada pela crença e pelo desejo.

Sabe-se que textos de humor são ficcionais; operam como os textos teatrais nos quais

os atores desempenham seus papéis de forma mentirosa (que não fere) e enunciam o que o

autor lhes determina falar. Nesses textos, estão presentes: um locutor empírico, um

198 Natureza dos Estados Intencionais, (in Intencionalidade, 1995).

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personagem-enunciador, um personagem-enunciatário e o locutor-ouvinte, o público. Com os

textos humorísticos as coisas ocorrem da mesma maneira. Por serem ficcionais, eles lidam

com a não-verdade, que é recurso recorrente de seu processo de construção. Assim, se esse

princípio é infringido e se, por exemplo, a verdade é inserida, isto é, se a intencionalidade

mudar, obviamente ocorrerão mudanças substanciais em termos da recepção, aceitação e

reação.

Desde a Antigüidade, o ser humano tem uma relação estranha com a verdade. É por

isso que filósofos em todos os tempos têm tentado defini-la, sempre chegando à conclusão de

que ela é relativa. Portanto, embora a verdade precise da mentira para existir (o mundo é

binário e sobrevive das contrafactualidades), não é à toa que já afirmo alhures que “não são as

mentiras que incomodam, ou causam medo aos homens, mas as verdades”. É nessa linha de

pensamento que argumento que essa máxima filosófica se aplica à nossa cultura, pois a

aceitação depende, efetivamente, do modo como o autor descortina e o brasileiro vê a verdade

nas entrelinhas dos textos de HNb. Como sei que há pessoas que riem de textos que outras

consideram abomináveis, devo proceder, como sugere o antropólogo Alan Dundes: “se eu

quiser saber o que povoa a mente coletiva de um povo, não há modo mais direto e exato de eu

descobrir do que ficar atenta ao que exatamente faz as pessoas rirem”.199

Se muitos dos brasileiros não conseguem rir de textos que denigrem a imagem de um

portador de hanseníase, por exemplo, é porque o texto em si se transforma numa agressão à

própria essência do brasileiro e ao seu sentimentalismo (inimigo mortal do HN!), o que

influencia a percepção e a reação - apesar de eu ter sempre em mente que, segundo os

sociólogos, nossa índole sentimental e pacífica pode ser uma fantasia histórica.

A verdade dança nos textos de HNb; e, quando a verdade dança, ela convida para

parceiros de sua performance as cores e os temas que desempenham com harmonia seu papel,

em uníssono com aquela verdade. Aí, todos dançam. Dessa dança generalizada participa como

coreógrafa, a Metaficção, estratégia utilizada pelos autores para a construção de textos de HNb.

199Informação verbal. Trecho obtido do discurso de Alan Dundes (1934-2005), especialista em estudos folclóricos, em um trabalho apresentado na Universidade de Berkerly, denominado Cracking Jokes, em 16/07/1987, que se transformaria em livro posteriormente.

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4.5 Descrição do HNb - Tipologia

Aponto anteriormente que uma das diferenças entre o HNb e o de Breton está no fato

de este último não provocar o riso ou a gargalhada dos brasileiros, e no fato de o HNb poder

provocá-los ou não. Afirmo, também, que a aceitação do HNb depende da moral subjetiva e a

seguir esclareço que a moral subjetiva nacional e a abordagem da verdade estão atreladas nos

temas dos textos de HNb; depois, descrevo as Fontes de Conhecimento, por desempenharem

papel fundamental para a descrição do HNb. A seguir, advogo que com o HNb ocorre uma

dança e que durante essa dança há um desbotamento da cor negra que determina sua

classificação.

4.5.1 Quando a verdade dança, dançam as cores e os temas: classificação do HNb.

A descrição do HNb a que procedo, não tem a pretensão de ser uma teoria, pois, em

geral, teorias devem possuir um padrão para todas as instâncias, o que seria impraticável com

os textos de humor, e mais ainda com os de HNb, dadas a volatilidade e a versatilidade das

abordagens de seus temas e dos efeitos perlocucionais, por vezes colaterais, que provocam. A

classificação do HNb não pretende retomar o adágio dos anos 50 que apregoa que “o

brasileiro é tão bonzinho”, nem pretende rotulá-lo como “pacífico”, o que, espero, isente

minha descrição de qualquer acusação de possível estigmatização de meus patrícios. Que não

se conclua, de maneira alguma, que o brasileiro é aquele que não teria condições de rir do

HNb verdadeiramente nu e cru, por sua personalidade nobre, forte e altaneira, o que não

coadunaria a opinião de Roberto DaMatta em vários trabalhos200, nem com a de outros

sociólogos201 e nem com a minha. Humor é relativismo e subjetividade. Não existe consenso,

quando se trata da reação do ouvinte.

Na verdade, somos um povo como outro qualquer, com suas mazelas, suas dores e

seus problemas, mas com seu carnaval e seu “você sabe com quem está falando?” À

semelhança de outros povos, parecemos não lidar bem com a verdade (e a máxima 200 O que faz o brasil Brasil (1984); Carnavais, malandros e heróis (1979) – (em francês, 1983; em inglês, 1991); Torre de Babel: ensaios, crônicas, críticas, interpretações e fantasias (1996), entre outros. 201 Simon Schartzmann Jessé Souza e Gilberto Freyre, por exemplo.

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filosófica202 parece ser válida para todos os povos) e para provar isso, estão aí os problemas

políticos, sociais e as questões relativas aos problemas da violência e da impunidade que não

me deixam mentir.

Meu intuito é o de descrever o HNb, analisar as estratégias discursivas e os

mecanismos lingüístico-pragmáticos de que os autores (geralmente anônimos) desses textos

se utilizam. Para isso, demonstro que a “violação” é amainada em alguns textos, de alguma

forma, para que o brasileiro ria. Esse abrandamento leva-me a crer que os autores pensam

como eu, que existe mesmo certa dificuldade do ouvinte para assimilar a verdade de alguns

textos. Se do ponto de vista psicológico, antropológico e sociológico esse pensamento estiver

incorreto, terei de questionar os autores, pois, eufemizar para camuflar a verdade é técnica

lingüística e pragmática de construção do texto de HNb risível. Descrevo e discuto a técnica.

Acresça-se a tudo isso o direito inalienável de qualquer leitor de sentir repugnância e

repulsa por textos que não corroborem suas visões filosóficas, de verdade e os valores da sua

sociedade. Afinal, o riso é libertador, segundo Breton; mas, se ele não liberta, não se justifica.

E quando algum tipo de texto de HN leva, inevitavelmente, ao mal-estar, ao constrangimento

ou à repugnância, os brasileiros o rechaçam, embora conscientes de que o humor viola regras

comumente aceitas implicitamente. Eu reajo desse mesmo modo, apesar de ter consciência de

que o efeito cômico é advindo de um recurso retórico que, numa determinada moldura social

ou intertextual, expõe a violação da regra sem, no entanto, explicitá-la no discurso.

Assim, os textos na Antologia do HN de Breton não provocam o riso dos brasileiros,

porque geralmente utilizam uma abordagem diferenciada dos temas, meio estranha à cultura

do Brasil, e porque fazem uma opção semântica preferencial pelo repugnante e pelo

descalabro, que estão em flagrante oposição aos aspectos ontogênicos impregnados na cultura

do Brasil. Se assim é, pergunto:

1. Não teria o conceito básico de HN sofrido uma mudança de ordem histórica, semântica e

cultural, tendo sido por isso acrescido de outros marcadores? Ou não teria sido ele

redesenhado culturalmente, deixando de ser uma construção de textos cujo objetivo é apenas a

galhofa, o escárnio da realidade das pessoas, de suas desgraças e dos infortúnios alheios?

2. Os atos ilocucionais dos textos de HNb não estariam provocando, do ponto de vista do

produtor e do anunciador, outros atos perlocucionais que não aqueles apregoados no HN de

Breton?

202 “Não são as mentiras que nos causam medo ou assustam, mas a verdade”.

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3. Que processos de produção lingüístico-discursivos estariam sendo utilizados nos textos de

HNb para que alguns causem o riso ou a gargalhada, e outros não?

Para as duas perguntas iniciais a resposta é sim, pois estão atreladas uma à outra. No

Brasil, o conceito básico de HN sofre mudanças de todas as ordens e é acrescido de outros

marcadores, como a influência das religiões que proliferam no país (+ religiões), o convívio

social (+ social), as mudanças trazidas por preconceitos de quaisquer ordens (+ preconceito),

o processo de inclusão dos portadores de diferenças (+PD) e, por que não, a globalização (+

G) e o avanço das idéias nacionais sobre prosperidade, liberdade e riqueza.

O HNb, como mencionado, engloba uma dimensão ontológica que não deve ser

ignorada. Ao longo das piadas de HN descritas, quando se decide que o riso é permitido ou

fica proibido, existe uma regularidade em relação à natureza dos seres aí presentes, dos

ouvintes/leitores brasileiros e de suas visões de vida, de suas impossibilidades ou

possibilidades de se distanciarem da verdade da morte, das doenças e diferenças. A língua que

constrói o HNb e que sempre leva em conta essas variáveis é esmerada e criteriosamente

escolhida para o exercício de técnicas engendradas pelo autor e deflagradas pelos sujeitos

instituídos no discurso e presentes na cena enunciativa.

Breton afirma que o sentimentalismo é [...] inimigo mortal do sentimentalismo, que parece estar perpetuamente à espreita – sentimentalismo que sempre surge num cenário de sombras –, e de um capricho efêmero, quase sempre passa por poesia, e em vão insiste em infligir à mente seus velhos artifícios, sem dúvida, com pouco tempo para, em meio a sementes de papoula, erguer ao sol sua cabeça de grou coroado. (BRETON, ano 1997, p. xix).

Isso se aplica à recepção ao HNb, porque o sentimentalismo enraizou-se e ocupa

posição de destaque na cultura do povo brasileiro e desta não se dissocia.

Em relação à segunda pergunta -“Os atos ilocucionais dos textos de HNb não estariam

provocando, do ponto de vista do produtor e do anunciador outros atos perlocucionais que não

aqueles apregoados no HN de Breton?”-, esses atos provocam, sim, do ponto de vista do

produtor do texto e do leitor/ouvinte, outros efeitos perlocucionais. Quanto aos processos de

produção, para a decisão da deflagração dos efeitos perlocucionais, o modo de abordar a

verdade é determinante, e esta é materializada pela língua.

Em que pese, pois, a valiosa contribuição de Breton sobre o HN como concepção

literária e filosófica que influencia as artes e a literatura, além de ter sido ele o organizador

das idéias daquele humor, HNb segue outras trilhas, construindo-se em cima dos “fluxos e das

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circunstâncias histórico-culturais, procurando seus caminhos, a exemplo do que ocorre na

Belle Époque com a cultura brasileira que busca encontrar-se consigo própria, definindo seu

ethos e sua identidade” (SALIBA, 2002, p 302.), e tentando plantar suas raízes.

Isso posto, analiso o texto que se segue para apontar o desbotamento do negro do

HNb e compará-lo ao HN.

Texto de HNb 11

No jantar, a mãe repreende o filho: - Pedrinho, vê se não derruba carne na sopa! Pouco depois: - Pedrinho, cuidado para não derrubar carne na sopa! - Pedrinho, eu já falei para você não derrubar carne na sopa! - Credo! Como é duro ter um filho leproso!

O texto possui dois planos de leituras possíveis devidos à polissemia do conector (de

isotopia) carne inscrito no texto. A primeira leitura é realizada segundo a isotopia de

alimento/carne animal e a outra é realizada segundo a de carne/do ser humano. Os scripts se

justapõem, são entendidos e a verdade crua da enfermidade grave é revelada. A incongruência

é introduzida nos últimos enunciados para desambigüisar as leituras. O locutor-enunciador

utiliza o elemento leproso, fundamental para a construção do texto por sua associação com

perda de carne. O texto exige o acionamento do conhecimento sobre hanseníase.

É bem provável que muitos dos brasileiros não gastariam os músculos da face para rir

desse texto, apesar das assertivas de Bergson, apresentadas no capítulo 2, de que “a comédia

começa quando a pessoa do próximo deixa de nos comover.” Eu não assumiria essa idéia como

verdade para a cultura brasileira, por razões já explicitadas. O que o discurso do texto

menininho leproso provoca é, geralmente, o constrangimento, o horror e a aversão

manifestados no muxoxo que revela a “saia-justa”, a “semgracesa”. Resumindo, os atos

locucionais e o ilocucional explicitam a verdade que vem nua e crua, o texto desbota em cor

palha e o riso não emerge. Essa mesma cor se aplicaria à maioria dos textos da Antologia de

Breton e, por isso, também estes não causariam a gargalhada do brasileiro. O desbotamento

depende não apenas dos fatores que estão sob a chancela e a intenção do autor, mas também de

aspectos já citados e que escapam ao seu controle. Um riso cor de rosa [(+R)] pode ainda

surgir, provocado pela ironia em alguns textos do HN da Antologia.

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O HNb, então, pode desbotar ainda em vermelho, amarelo, palha ou ser uma mescla de

palha+vermelho. O desbotamento do HNb em vermelho ocorre quando o texto provoca o riso,

ou a gargalhada, (+R), sendo, então, risível. O HNb pode desbotar em um riso meio

amarelado (± R), mediano, quase um sorriso frio, tão indecifrável quanto seu tipo. O humor

negro brasileiro desbota também na cor palha; é a ausência do riso (– R),, que pode provocar

efeitos perlocucionais colaterais como constrangimento, nojo, revolta, repugnância, repulsa,

apatia etc. É o HNb irrisível. É no tocante aos efeitos (± R) e (–R) que o negro amarela.

O desbotamento para a mesclagem palha + vermelho [(-R)] + [(+R)] representa os

efeitos perlocucionais de um texto que em sua primeira parte não provoca o riso, mas na

segunda desbota em vermelho, provocando a gargalhada. Por isso, chamo a esse tipo de texto

HNb-eclético.

Em resumo, o HNb brasileiro e o HN bretoniano passam por um processo de

desbotamento de sua cor negra o qual sintetizo no quadro abaixo.

HN (bretoniano)

Efeitos perlocucionais

HNb

Efeitos perlocucionais

HNb ECLÉTICO

Efeitos perlocucionais

Rosa claro

[(+R)]

Amarelo palha

[(-R)]

Vermelho

[(+R)]

Amarelo palha

[(-R)]

Amarelo palha e

vermelho

[(-R)] e [(+R)]

Quadro 5: Iustração síntese da comparação entre o HN e o HNb Fonte: Dados da pesquisa, 2007

O quadro anterior evolui para a classificação do HNB a qual resumo no quadro abaixo.

TIPOS DE HNb

RISÍVEL Vermelho (+R)

IRRISÍVEL Palha (-R)

ECLÉTICO [Palha (-R)] e [(Vermelho (+R)]

Quadro 6: Tipologia do HNb Fonte: Dados da pesquisa

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Exemplifico agora os tipos de textos HNB. Um exemplo para o HNb do tipo

Vermelho (+R) seria:

Texto de HNb 12

Edu, que não tinha orelhas, precisava contratar um novo gerente. No dia seguinte ele marcou três entrevistas. O primeiro cara era ótimo. Conhecia tudo que precisava e era muito interessado. Porém, ao final da entrevista Edu lhe perguntou: - Você percebeu alguma coisa diferente em mim? E o cavalheiro respondeu: - Sim, eu não pude evitar reparar que o Sr. não tem orelhas. Edu não apreciou sua franqueza e mandou-o embora. O segundo entrevistado era uma mulher, e ela era bem melhor que o primeiro cara. Porém, ele fez a ela a mesma pergunta: - Você percebeu alguma coisa diferente em mim? Ela respondeu: - Bem, você não tem orelhas. Edu novamente se zangou e mandou-a embora. O terceiro e último entrevistado foi o melhor dos três. Era um cara jovem, recém-saído da faculdade. Ele era inteligente, boa pinta e parecia ser melhor homem de negócios que os dois primeiros juntos. Edu estava tão ansioso, que foi logo fazendo a pergunta de sempre: - Você percebeu alguma coisa diferente em mim? E para sua surpresa, o jovem respondeu: - Sim, você usa lentes de contato. Edu ficou chocado e disse: - Que observador incrível você é! Como é possível você saber disso? E o cara caiu de sua cadeira gargalhando histericamente e respondeu: - Bem, é um pouco difícil usar óculos sem a porra das orelhas!!!

O humor e a gargalhada desse texto sobre deformidade são provocados por uma rede

de causalidade, pela redundância e pela inferência. As respostas dos vários entrevistados,

embora não sejam idênticas lingüisticamente, veiculam o mesmo sentido pretendido pelo

personagem-enunciador: revelar que todos eles percebem a falta das orelhas de Edu (N). Mas

o personagem-enunciatário introduz a argumentação Sim, você usa lente de contato, com a

qual engendra uma rede de causalidade - a relação causa: não ter orelhas, e efeito: usar lentes

de contato - não utilizada pelos enunciatários anteriores. O ato ilocucional “Sim, você usa

lentes de contato” revela a intenção secundária do locutor empírico: induzir o ouvinte da piada

a inferir que o último entrevistado não teria percebido a falta das orelhas. É com essa

argumentação perspicaz que o locutor empírico mantém o suspense que vai se desfazer

somente com os atos de fala finais e a revelação da razão do uso das lentes, que introduzem a

redundância (V): Bem, é um pouco difícil usar óculos sem a porra das orelhas!!! A causa é a

mesma apontada pelos demais entrevistados: Edu não tem orelhas. A argumentação do último

personagem-enunciatário entrevistado é irônica, porque o material lingüístico um pouco difícil

possibilita uma leitura não explícita no texto, mas clara na enunciação: seria quase impossível

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usar óculos sem as orelhas, e não um pouco difícil, como profere eufemisticamente o

personagem-enunciatário.

Nos atos de fala Que observador incrível você é! Com o é possível você saber disso?,

o personagem-enunciador atribui ao último entrevistado a qualidade de incrível observador,

mas aponta também para uma especificação de ordem ontológica, do ser humano: o desejo de

que exista uma pessoa que não tenha, realmente, percebido o aleijão, o que ajuda o leitor a

distanciar-se da deformação, o conduz à relação intencionalidade – aceitabilidade do texto e

provoca a gargalhada, esta prenunciada nas expressões lingüísticas: E o cara caiu de sua

cadeira gargalhando histericamente.

Devido à abordagem do tema da deformidade encetada pela rede de causalidade, pela

redundância, pela inferência e pelo trio intencionalidade/verdade/aceitabilidade, pode-se

esquecer o lado “negro” do texto, a deficiência (inusitada e falsa) de Edu. São descartadas

questões como “Edu tem defeito físico”, ou “sem as orelhas como é que ele ouve”, o que

traria um novo tema, a deficiência auditiva. Tudo isso corrobora minhas afirmativas de que

aquilo que é parte da essência de ser do brasileiro não convive bem com a verdade explícita

de certos temas em textos de HNb. Rimos do jogo lingüístico arquitetado, do modo como o

tema é abordado, e não da deformação em si. A aceitação advém do fato de essas verdades

não serem transgredidas (pelo menos contundentemente), por não ficarem explícitas,

admitindo a gargalhada. Por isso, classifico esse texto como (+R), risível.

Observe-se a semelhança da construção do texto analisado anteriormente com o texto

a seguir.

Texto de HNb 13

Um policial examinava três louras que queriam ser detetives. Para testar se elas reconheceriam um suspeito, mostrou à primeira loura uma foto por cinco segundos.

- Este é o seu suspeito. Como você o reconheceria? Pergunta ele. - Fácil! Eu o pegaria, porque ele só tem um olho. – ela responde. O policial explica sem jeito: Bom, é porque a foto o mostra de perfil... E meio sem graça pela resposta ridícula, ele mostra a foto para a segunda loura e pergunta: este é o seu suspeito, como o reconheceria?

Ela dá um sorriso maroto, sacode os cabelos para o lado e diz: - Ahhhhh, é muito fácil pegá-lo, porque ele só tem uma orelha! O policial, furioso, reage: o que há com vocês??? Claro que a foto só mostra um olho e uma orelha, é porque ele está de lado. Já louco da vida, mostra a foto para a terceira loura que a olha atentamente por um momento, e diz com a mão no queixo:

- Hummmmm, o suspeito usa lente de contato. O policial fica surpreso. Resposta interessante. Aguarde um momento que vou checar meus arquivos e já volto. Ele deixa a sala, e vai até o escritório. Minutos depois, volta com um sorriso satisfeito.

- Puxa, não dá para acreditar, o suspeito usa lente de contato. Bom trabalho. Como você conseguiu chegar a esta conclusão?

- Fácil, responde a loura. Ele não pode usar óculos, porque só tem um olho e uma orelha.

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São usados nesse texto os mecanismos da construção do texto anterior e a semelhança

entre eles vem confirmar a afirmativa de que “as piadas são as mesmas, são repetidas com

pequenas variações, muito freqüentemente trocando apenas as personagens” (POSSENTI,

2002, p. 43) – e eu acrescentaria: também são repetidos os tipos de desgraças.

Ilustro a seguir um texto que, suponho, deva ser amarelo (±R), mas abandono esse

tipo de texto de riso, mediano, (± R), dada a fragilidade de uma classificação convincente.

Texto de HNb 14

Um grupo de leprosos estava jogando vôlei quando, de repente, o juiz apita:

- Mão na rede! - É minha! - responde um dos jogadores.

O humor reside na polissemia do termo mão, que traz a ambigüidade e que é lido

sucessivamente segundo a isotopia do esporte/voleibol (traço/infração) e a da

saúde/hanseníase (traço/doença). A primeira leitura se contrapõe à segunda. O ato de fala

Mão na rede, na realidade, engloba dois atos: o diretivo apita, (valor semântico diz)

modalização advertência, interrupção e infração, justificado por outro ato de fala assertivo,

Mão na rede, que serve para justificar o primeiro.

A polifonia permite distinguir três sujeitos na cena enunciativa. O personagem-

enunciador que, ao dizer Mão na rede, deseja que o personagem-enunciatário, atleta leproso,

interprete que uma mão toca a rede, o que constitui infração a uma regra do esporte. O locutor

empírico, porém, deseja que o personagem-enunciatário-atleta interprete que sua mão fica

presa à rede, porque ela se desprende literalmente de seu antebraço (leitura segundo a isotopia

doença/carne/ser humano). Desse modo, o enunciatário introduz a incongruência (violação:

V), o segundo script. É a minha tem modalização constatação.

Destaque-se ainda nesse texto a escolha lexical por leprosos que marca a cena

enunciativa e que determina o ato de fala final. Se algum atleta tivesse introduzido outro ato

de fala, como Fui eu ou Não fui eu (respostas de algum atleta responsabilizando-se, ou não,

pela infração), por exemplo, com modalizações admissão ou negação de culpa, não haveria

humor, apesar da escolha pelo lexema leproso. O negro amarela e riso fica amarelado, penso

eu.

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Quantos ouvintes brasileiros ririam desse texto, e quantos não ririam? A verdade da

doença fica escamoteada para o texto trazer o riso? Não? Sim? As respostas, com certeza,

seriam “acho que sim”, ou “acho que não“. Por isso, como comentado, evito a análise de

outros textos desse tipo, devido às dificuldades quase intransponíveis advindas da relatividade

com que os indivíduos reagem à verdade do, ao seu “achismo”, conseqüências de fatores já

citados anteriormente e mais acentuados nesse tipo de HNb que nos outros, tornando sua

classificação tarefa, de certo modo, inviável. Entretanto, isso não significa que os tipos

risíveis e irrisíveis de textos sejam unanimidades em relação à aceitabilidade. Não há

unanimidade no que tange à recepção, aceitação e reação aos textos de humor.

Um exemplo para HNb -palha (–R):

Texto de HNb 15

Concentrada, Aninha tentava furar o olho de um canário com uma agulha. De repente, seu irmãozinho mais novo entra correndo na sala: -Mana, mana, aconteceu uma tragédia! A vovó estava fazendo tricô na varanda e alguém esbarrou na sua cadeira de rodas. Ela caiu pela escada e foi parar no meio da rua. Aí veio um caminhão enorme e passou por cima dela... Não sobrou nada da velhinha! -Puxa Pedrinho. Não faz eu rir senão eu erro o olho do canário!

Os enunciados iniciais ([...] tentava furar o olho de um canário com uma agulha)

apontam para um procedimento abjeto, no ponto de vista de qualquer cultura, creio. O

personagem-enunciador introduz um texto trágico, com a descrição das violações: uma

criança tentando furar o olho de um pássaro, o descaso pelo acidente e morte da avó, Aninha

rir da morte da avó e sua persistência em levar a cabo o ato cruel. Qual seria a normalidade?

Aninha e o irmãzinho estarem brincando, ou eles serem crianças? Não, ela ser inocente,

aspecto normal na infância.

Nos enunciados Não faz eu rir, o locutor-empírico escolhe o ato de fala diretivo com

modalização pedido, veicula a intenção de mostrar que a menininha ignora o evento da morte

trágica da avó. O valor semântico de Não faz eu rir [...] é “fique quieto; você está me

desconcentrando”. A incongruência (violação) e a intencionalidade são obstáculos para a

aceitabilidade do texto. O humor não é deflagrado e o efeito perlocucional riso é inibido,

porque não se escamoteia a verdade do tema macabro (cegar um pássaro), causando uma “dor

da alma”. A maioria dos brasileiros dificilmente classificaria esse texto como de humor, e

muito menos riria após ouvi-lo, creio eu. Uma criança cometer tal atrocidade seria verdade

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intolerável. Por essas razões, classifico esse texto como palha (–R), irrisível. Fechando esse

subitem, analiso o quarto tipo de HNb.

Texto de HNb 16

Depois de certo tempo sem se verem, uma loura encontra uma antiga amiga. Loura: Meu deus! Como você está bonita, tão magra... Amiga: É... Loura: E olha este cabelo, na última moda, bem curtinho, lindo! Amiga: É... Loura: Me diz aí: o que você anda fazendo? Amiga: Quimioterapia. Loura: Que legal, na PUC ou na UFMG?

A interpretação do termo Quimioterapia na primeira parte do texto provoca nos

brasileiros uma seqüela, a consternação, porque o conhecimento prévio garante ao termo

quimioterapia o sentido de câncer, sem que esta palavra seja expressa, escancarando a verdade

e provocando um efeito colateral-perlocucional desgosto - a primeira parte do texto é, por

isso, HNb-palha (–R), irrisível.

O riso da segunda parte do texto deriva da leitura do (termo) conector-polissêmico

Quimioterapia, lido, no texto todo sob dois planos de leitura (isotopia): o da saúde

(traço/câncer/enfermidade) e a da educação (traço/sabedoria/curso). É a leitura do segundo

plano, com base no entendimento do primeiro plano de isotopia /câncer/enfermidade, que

provoca o riso. É quando a leitura do termo polissêmico “permite [...] a passagem de uma

isotopia à outra” (FIORIN, 2005, p. 115).

Obviamente, o riso é causado pela incompreensão da loura a respeito do significado de

quimioterapia. Note-se que o uso do estereótipo “loura”, geralmente associado à idéia de

“burrice”, nesse texto não se refere a uma ignorância pura e simples, mas a uma

incompreensão um tanto elaborada, porque se baseia numa relação morfológica. O gancho da

piada é a morfologia, que faz a loura estabelecer uma falsa associação entre quimioterapia e

fisioterapia, cromoterapia, crioterapia, soroterapia (e talvez, possivelmente, também uma

relação com odontologia, biblioteconomia, pedagogia e economia, por exemplo, que também,

por assim dizer, “rimam”). Note que, se no lugar de quimioterapia o enunciador afirmasse

estar fazendo qualquer outro tratamento que não provocasse a relação morfológica (como

hemodiálise ou laser, por exemplo), o humor não se instalaria. Por isso o gatilho do riso nesse

texto é fundamentalmente a relação morfológica “atrapalhada”.

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Ao escolher estruturas lingüísticas adequadas para introduzir dois percursos temáticos

que estabelecem o confronto entre quimioterapia/câncer/enfermidade/educação/

conhecimento/curso universitário, o autor evidencia não só que o modo de tratar o tema‘doença

grave’ é decisivo para a questão do riso no HNb, mas tambéme aponta para outro tipo de texto

de HNb, o eclético, com dois planos de leitura; um que não provoca o riso e outro que o causa.

O riso é provocado pela morfologia e também pelas escolhas lexicais (PUC e UFMG) que

objetivam camuflar a verdade e perpetuar o estereótipo.

Em resumo, o que acaba decidindo a questão sobre o riso dos textos de HNb é a

abordagem utilizada para lidar com a verdade, quando os autores constroem textos de humor

cujos temas são morte (morbidez, macabro), doenças e diferenças, pois o valor do duo

pragmático intencionalidade-aceitabilidade está diretamente vinculado a esse aspecto.

Alguns teóricos do HN afirmam que a impossibilidade de distanciamento e o excesso

de sentimentalismo é que provocam o efeito perlocucional não-riso. Concordo com eles

porque, por razões já expostas, esse distanciamento é dificultado, impossibilitado ou impedido

pela moral subjetiva e pelo sentimentalismo e, principalmente, pela explicitação da verdade.

Os autores de textos de HNb geralmente selecionam os seguintes temas:

Morte, doenças, diferenças.

Subdivido esses temas em:

3Ms Morte, Morbidez, Macabro.

2Ds Doenças e Diferenças.

Na subdivisão 2Ds-Diferenças, incluo: deformidades (mal-formações, aberrações),

deficiências (físicas e mentais), estereótipos e quaisquer diferenciações que transformem os

indivíduos em alvos de preconceitos sociais, políticos, estéticos, étnicos, raciais, religiosos,

econômicos, lingüísticos e os relacionados à educação – ao baixo nível de escolaridade.

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4.5.1.1 Os 3Ms - Morte, Macabro e Mórbido.

Em seu livro Morte e Humor Negro203 (1975), Leclair afirma que, embora seja uma

idéia meio reducionista, tanto a posição de destaque que a morte desfruta no HN, quanto a

importância de se reconhecer essa centralidade, sem negligenciar outros aspectos importantes,

podem ser demonstradas. Corroborando essas afirmativas, aponto que a “negrura” do humor

negro é fundamentalmente fúnebre; a consciência e a certeza da morte são as fontes básicas

do pessimismo; a presença da morte nesses textos desempenha papel preponderante para

explicar seus personagens, para aclarar as personalidades que assumem e para justificar os

tipos de desfechos e formas lingüísticas que os autores usam. Finalmente, dizem os

surrealistas que o envolvimento do HN com a morte confere a seus textos não só um ultimato

filosófico, mas também uma solução. Será? Parece que sim, pois, o HNb possui textos que

conseguem tratar a morte, assim como outros assuntos muito sérios, com certa leveza.

Nessa linha de pensamento, muitos séculos antes de Breton, o Bardo já trata a morte e

o mórbido com ironia, para atribuir-lhes certa sutileza e uma leveza tal que elas, talvez,

tenham flutuado e voado do Classicismo inglês para o Modernismo francês. Melhor ainda,

talvez tenham velejado por “mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da

Taprobana” 204, para chegarem às terras tupiniquins e tenham se instalado no HNb entre os

anos 20-50 e se tornado presença marcante na construção do riso nos textos de humor negro

brasileiro.

As análises de textos HNb- 3Ms-morte, macabro e morbidez procuram demonstrar

que, juntamente com a verdade e as cores, esses temas também performatizam uma dança, no

tocante ao riso e ao não-riso, seus efeitos perlocucionais, diretamente vinculados ao modo

como esses temas são elaborados pelos autores e às escolhas lingüísticas e pragmáticas que

fazem para atingir esses efeitos.

Resgatando posições, então, da maioria dos textos de HNb pode-se rir de temas como

morte (morbidez e macabro), deficiências, doenças, diferenças e deformidades, e isso ocorre

quando a verdade é escamoteada.

203 Death and Black Humor. 204 Os Lusíadas, de Luís de Camões, epopéia portuguesa por excelência, publicados em 1572 no Classicismo, três anos após o regresso do autor do Oriente. Compõem-se de dez cantos, 1102 estrofes (8 versos cada) que são oitavas decassílabas, sujeitas ao esquema rímico fixo ABABABCC – oitava rima camoniana. Os versos citados pertencem ao Canto I.

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Relembro que a percepção é um elemento das FCs introduzido por Chlopicki (2006),

quando ele analisa as Fontes do Conhecimento apontadas por Attardo e Raskin (1994). O

lingüista polonês afirma que a única das FCs que atinge o ser humano é o alvo, com o perdão

do jogo contraditório. Por isso, ele sugere a inserção da percepção como componente

imprescindível das FCs, que me parece ser aquilo que Possenti (2002, p. 39) denomina

“ingrediente importante, a própria atividade do leitor - ele processa, analisa, infere etc.."

Corroboro a inserção desse novo elemento, mas pondero que essa FC, por ser inerente ao ser

humano, corriqueira, óbvia, e usada para a compreensão de quaisquer textos de humor e,

logicamente de textos de outros gêneros, não precisa desfrutar de posição de destaque nas

análises.

Como ficaria o trio intencionalidade/verdade/aceitabilidade no texto que analiso a

seguir, cujo tema também é a morte? Antes da análise, porém, retomo Saliba (2002), quando

aborda a questão da função social do humor e do riso, faceta bem aproveitada pelos mordazes

humoristas brasileiros que se esmeram nas críticas para espicaçar os homens públicos, desde a

Belle Époque, e que vem a ser característica marcante do HNb.

Exemplo disso é a máxima popular “os políticos fazem na vida pública o que fazem na

privada”, em que basta o apagamento (proposital) do lexema (vida), no ato de fala “o que

fazem na (vida) privada” para o termo privada ser lido sucessivamente segundo a isotopia -

dois planos de leitura – o de higiene e o de vida. Ocorre, então, a reinterpretação de vida em

merda, já que essa leitura dupla permite visualizar que o produto implícito que se entende a

partir da palavra privada – merda – passaria a ser o produto explícito da vida pública,

alcançando o efeito desejado, que é o riso provocado pelo ato ilocucional do autor: na vida

pública, os políticos fazem titica, merda, bosta, exatamente os mesmos componentes que eles

despejam no vaso sanitário de suas humildes e precárias moradias. Isso é o HNb que nos

avermelha de rir porque, embora revele certo conformismo do povo e os enunciados da

máxima envolvem o escárnio, o ridículo e a galhofa, sob forma de excremento para agredir de

forma violenta e irreversível, conseguimos nos distanciar do real, temos consciência da

existência das regras da normalidade, mas não mais nos sentimos forçados a obedecê-las. Isso

é facultado, pela abordagem e construção lingüístico-discursiva do texto. Rimos nós e riem os

políticos, estes descarada e impunemente.

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Analiso um texto 3Ms-Morte sob o prisma da Metaficção.

Texto de HNb 17

- Mãe, até quando vou ter de dormir na mesma cama com meu irmão? - É só até o fim do mês, minha filha. Aí, seu pai recebe o salário e vamos poder enterrar o seu irmãozinho.

As técnicas de construção do texto englobam a relação causa-efeito,

intencionalidade/aceitabilidade e a incongruência. As expressões lingüísticas usadas pelo

personagem-enunciador “até quando vou ter de dormir na mesma cama com meu irmão?”,

apontam a normalidade do texto: nada mais normal do que a irmã dormir na mesma cama do

irmão, elemento componente da situacionalidade que assinala certa precariedade na vida

material. A negritude do texto se manifesta na enunciação e nas expressões lingüísticas que

pontuam o fato de a menininha estar dormindo com o irmão morto, violação que tematiza a

miséria (uma forma de morte em vida), confirmados pelos enunciados-resposta do

personagem-enunciatário.

Ovalor semântico do termo anafórico aí não é lugar, mas tempo (quando) e remete à

“o fim do mês”. Há ainda uma rede de causa-conseqüência no enunciado: “seu pai receber o

salário” e “poder enterrar o irmãozinho”.

Os atos de fala do personagem-enunciador levam o ouvinte a inferir sobre a

situacionalidade, o contexto da verdade macabra da miséria: a falta de outra cama, a falta de

espaço dentro de um (com certeza) barraco. Pode-se admitir uma função social do texto:

desnudar um estado de miséria tal que impede o enterro. O autor expõe cruamente a verdade da

miséria com os mecanismos lingüísticos e os parâmetros FCs (alvo: os miseráveis, mecanismo

lógico: morte x vida). Ele introduz a verdade da morte dentro da ficção (dormir com mortos,

corpos que permanecem desenterrados) e por isso não há aceitação, o riso não aflora e o duo

lingüístico-cultural e o trio intencionalidade/verdade/aceitabilidade garantem o muxoxo do

ouvinte. Não se utiliza a Metaficção e, por isso, o que o texto provoca é o efeito colateral,

aversão.

Para se entender esse texto, o ouvinte precisa, também, compartilhar o conhecimento

sobre a situacionalidade da miséria, de que a piada deve ser brasileira, talvez angolana, ou

senegalesa, etíope, nigeriana, haitiana ou de outros países eleitos como expoentes de miséria;

a piada muito dificilmente retrataria uma situação dessas em países como a França,

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Alemanha, Inglaterra, Suécia ou Suíça. Isso pode conduzir à constatação de que, com a

escolha por uma abordagem mais explícita do tema morte, fica também visível a propalada

função social do texto. Em que pesem essas considerações, ainda assim nada garante que o

autor tenha tido a intenção de atribuir ao seu texto uma função social. No entanto, sua

provável intencionalidade em relação à função social do texto é discutível. Não poderia ser ela

uma denúncia, ela, em si mesma, uma tentativa de aprimorar? Pode ela permanecer apenas

como tal? Assim visto, o HN é uma forma de provocação. Não é questão a se analisar e

discutir, objetivando a construção de um cidadão mais atento e crítico?

Afirmo diversas vezes anteriormente que não são as mentiras que incomodam ou

causam medo, mas as verdades. E pelo fato de a verdade ter vindo sob uma abordagem tão

nua e cruamente exibida e porque o texto a revela às pessoas, elas às vezes o odeiam. É o caso

do texto analisado acima. Por isso, o considero HNb (-R)- irrisível. E para eu comprovar que

as verdades é que incomodam, Sartre, alhures, contribui com: existo; isso é tudo e acho isso

nojento.

Nessa linha de pensamento, como classificar o texto de HNb - morte abaixo?

Texto de HNb 18

A família viaja e deixa a casa sob os cuidados da empregada. Ela tem de cuidar da filha única e do cachorro, também único. No outro dia, a patroa liga para casa e vai logo perguntando pelo cachorro. - Morreu - diz a empregada secamente. A patroa toma o maior susto e repreende a empregada: - Isto são modos de dar uma notícia? Você deve dizer esse tipo de notícia bem devagar. Primeiro você diz que teve de chamar o veterinário e vai contando aos poucos, entendeu? - Entendi. - E a Betinha, como vai? - Vou ter de chamar o veterinário...

A pergunta sobre o estado físico do cachorro não se materializa em enunciados, mas

está presente na enunciação e identifica o personagem-enunciador. O personagem-

enunciatário responde friamente: Morreu. O personagem-enunciador, então, usa uma série de

eufemismos para explicar como se deve, de acordo com as normas sociais, dar uma notícia

sobre morte: diz devagar, que teve de chamar o veterinário e vai contando aos poucos {...}. E

aqui se descortina um modo de abordar (social e) atenuadamente o tema morte: ser

explicitamente eufêmico.

A rede de humor é construída com a Metaficção e a incongruência. Para montar a

Metaficção o autor usa o eufemismo que, situado no domínio das oposições graduais, é um

mecanismo sintático com o qual se atenua no enunciado e se intensifica na enunciação e cujo

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efeito, obviamente, é a atenuação do sentido. Assim, no seu fazer persuasivo, o personagem-

enunciatário introduz estranhamentos para chamar a atenção, diz sem ter dito, simula cautela e

afirma enfaticamente, mas eficazmente finge para dizer, atenuadamente, o que quer fazer crer.

Ao proferir os enunciados E a Betinha, como vai, o personagem-enunciador traz a

normalidade (N): a preocupação pelo bem estar de uma filha, o primeiro script. O

personagem-enunciatário dispara as guilhotinas verbais Vou ter de chamar o veterinário,

mecanismo sugerido pelo personagem-enunciador anteriormente e que introduz a violação

(V), o segundo script. Desnuda-se assim, a intencionalidade, o fazer do dizer do ato de fala

ilocucional do personagem-enunciatário: revelar a morte de Betinha.

Juntamente com a incongruência, o autor monta a estratégia

Metaficção/eufemismo/incongruência que auxilia o personagem-enunciatário a manipular a

trágica verdade e lhe permite transformar o tema morte em elemento secundário. O que conta

é o enredamento lingüístico-discursivo, a imediata associação dos eventos e a reutilização do

eufemismo que facultam o livre trânsito da incongruência na mente do leitor-ouvinte, sem

deixar seqüelas. O riso é advindo do sentido construído com o auxílio daquela rede, dos

fatores pragmáticos e do mecanismo lógico morte x vida e, apesar do tema mórbido, o texto

considero risível (+R).

Recapitulando, em relação aos temas HNb-3Ms, a decisão do autor por escamotear ou

revelar a verdade decide se o texto de HNb provocará o riso ou não. Para provocar o riso, ele

escolhe mecanismos lingüístico-discursivos específicos para inserir a ficção na ficção: usam

Metaficção; se não a utilizam não conseguem fazer rir. Assim, o autor decide que relação se

estabelecerá entre os elementos do trio intencionalidade/verdade/aceitação.

A seguir, reforço as observações anteriores com a análise de outro texto de HNb-3Ms-

morte.

Texto de HNb 19

Um papa-defuntos entra num velório em que estavam sendo veladas três pessoas e vê um cidadão no canto, junto à parede, com um imobilizador de pescoço incômodo. Aproxima -se do imobilizado e diz: Que horror, hein? Três pessoas mortas de uma vez. E o senhor as conhece? Sim. O velho é meu sogro, bilionário, banqueiro, dono de fazendas, muitas cabeças de gado e dólares no exterior; a mulher mais velha é minha sogra, milionária do cacau baiano, casou com meu sogro e aumentou sua fortuna mais ainda; a defunta mais jovem é minha mulher, filha única, herdeira de tudo. Céus, que triste! E o senhor estava no acidente também, né, daí o colete no pescoço? Quebrou algumas vértebras? Não, não, eu não estava no acidente não e não quebrei nada; o colete é para segurar minha boca para eu não morrer de rir.

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O discurso é marcado pela polifonia, pela presença das vozes do locutor-empírico, do

personagem-enunciador e do personagem-enunciatário. Os atos de fala do enunciador têm

ponto de realização expressivo e modalização consternação. A seguir, o personagem-

enunciatário, utilizando modalização descrição, delineia as condições econômico-financeiras

das não-pessoas ele (sogro) e de elas (primeiro a sogra, depois a esposa) que preparam o

palco para o solavanco mental e a instalação do riso.

Nos enunciados

- E o senhor estava no acidente também, né, daí o colete no pescoço? Quebrou algumas

vértebras? o termo também posiciona lingüisticamente o personagem-enunciatário como vítima do

acidente. A rede de causalidade é acionada por daí (valor semântico “por essa razão”),

indiciando, ao mesmo tempo, que o personagem-enunciador infere que o personagem-

enunciatário seria vítima do acidente. Na verdade, o personagem-enunciador espera que o

enunciatário confirme que fora também vítima do acidente, que o imobilizador de pescoço está

sendo usado para seu fim normal, o primeiro script. Porém, o locutor empírico introduz a

incongruência, o segundo script, que se justapõe ao primeiro, provocando o riso. - Não, não, eu não estava no acidente não e não quebrei nada; o colete é para segurar minha boca para eu não morrer de rir.

Essa incongruência, desenhada com o auxílio da rede de negações e afirmações, aponta

o óbvio: a crença de que imobilizadores de pescoço não são feitos para segurar a boca e

impedir o riso. O humor desapareceria se o personagem-enunciatário confirmasse o uso normal

do aparelho. “Morrer de rir” é metáfora estrutural, domínios morte e riso, cujo valor semântico

é “esvair em alegria” e que permite a inferência “não estou nem aí com a morte deles, estou

bilionário”, é o gatilho do texto, com o suporte da hipérbole.

A hipótese de o personagem-enunciatário ser apenas uma pessoa com problema de

coluna presente ao velório de três amigos, não ter parentesco algum com os mortos ou

nenhuma relação com o acidente são aspectos absolutamente descartáveis, por serem parte da

incongruência desse texto. As mortes trágicas passam também a ser detalhes de segunda

ordem, desprezíveis. É a estratégia discursiva, Metaficção, escamoteando a verdade das

mortes, que permite ao humor instalar-se e causar o riso.

De acordo com a fórmula N+V+S, no texto-piada anterior, N seria a utilidade normal de

imobilizadores de pescoço; V é o uso inusitado do colete que revela o descaso (o júbilo) diante

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das mortes. Os dois scripts se justapõem simultaneamente (S) e a incongruência emerge,

trazendo o riso. O texto, em que pesem as mortes, e graças à Metaficção, é risível (+R).

Como é abordada a morte no texto seguinte?

Texto de HNb 20

Filha entra no escritório do pai, com o marido a tiracolo e indaga sem rodeios: - Papai! Porque você não coloca meu marido no lugar do seu sócio que acaba de falecer? E o pai responde de pronto: - Ora, filha! Converse com o pessoal da funerária! Por mim, tudo bem...

Destaque-se o uso da incongruência introduzida juntamente com a ironia contemplativa

nos enunciados do personagem-enunciatário, já que, além de afirmar nos enunciados, mas

negar na enunciação (não vou dar a seu marido a sociedade que pertencia a meu falecido

sócio), ele capta a vaidade, mas, ao fazer a sua observação, não anula aquilo que é vaidoso; não

se comporta em relação a isso como justiça punitiva e nada tem de conciliador; ao contrário,

reforça o vaidoso em sua vaidade. É o que Kierkegaard (2005, p. 222) define como “tentativa

da ironia para mediar os momentos discretos, não em uma unidade superior, e sim em uma

loucura superior”, como relatado anteriormente. Essa ironia tem o suporte da expressão

lingüístico-interjetivo-vocativa Ora, filha, por seu sentido de deboche, desinteresse e descaso.

A escolha das expressões lingüísticas, que no nível semântico apresentam polissemia-

ambigüidade e a opção pela figura de retórica ironia contemplativa, aponta para o uso de uma

técnica, porque o enunciatário poderia ter dito: não dou sociedade a seu marido e com isso

encerraria o assunto. A Metaficção opera em parceria com a ironia contemplativa como

mecanismo para facultar, também, uma abordagem sobre a morte que permite o distanciamento

da verdade e o alívio da tensão. A morte passa a assumir papel de coadjuvante, virtual - no

sentido da fantasia que habita o cibernético –, provocando o riso. O texto é risível (+R).

Ainda nessa linha de raciocínio, e com uma análise sucinta, analiso o texto abaixo.

Texto de HNb 21

Após a cerimônia de cremação da velha, todos os familiares e amigos se encontram ao redor da urna contendo as cinzas e olhando o forno ainda quente. Depois de alguns minutos em que muitos murmuravam diante da cena, o genro, que havia bebido todas, pede a palavra para discursar. Sobe com dificuldade em uma cadeira e brada na maior comoção etílica:

- E agora, uma salva de palmas pro churrasqueiro!!!

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A cena enunciativa abre com a cremação de um parente, uma velha, obviamente a sogra

(e sogra é parente?), com todas as injunções e inferências que o termo traz. O autor parece que

vai usar o estereótipo/chavão “sogra é ruim”.

A incongruência - impertinência semântica recorrente em textos de humor - é

introduzida no último enunciado. Além da ironia executiva em “E agora, uma salva de palmas

pro churrasqueiro”, embutida na Metaficção que ajuda a afastar a verdade da morte e da

cremação, o personagem-enunciador usa uma metáfora que revela a existência de traços

comuns (+animal, +carne) entre churrasco (festa/comemoração) e cremação (cerimônia

fúnebre/ extinção), que permite duas leituras: - traço/churrasco/carne e traço/cremação/carne.

Em ambos esses eventos, a enunciação parece apontar para outro traço comum, a

comemoração, comprovada, talvez, pelo júbilo etílico do genro, durante a cerimônia-churrasco

em que ele parece estar aliviado, já que, comprovadamente, ficaria livre da “megera” (extinção,

urna de cinzas). No entanto, não há evidência lingüística alguma de que a intenção do autor

seja mostrar que o estado de embriaguez do genro é devido à morte e à cremação de sua sogra,

nem que explique a razão de ele estar alcoolizado. Ele poderia ser alcoólatra e, apesar disso,

amar sua sogra. Nossa história social sobre estereótipos é que talvez nos leve a ler que o genro

odiasse e desejasse a morte da sogra, ficando, por isso, alegre e aliviado com seu falecimento e

cremação. A Metaficção é usada e o texto se classifica como risível (+R), para não dizer,

gargalhável, mas disse. Quem se habilita ao churrasquinho, ou à discussão sobre o estereótipo?

Que tal os cidadãos em sala de aula?

Na seqüência, insiro dois textos de HNb-morte-apenas para a apreciação do leitor.

Texto de HNb 22

Um sujeito estava sentado na primeira fila de um daqueles espetáculos majestosos e caríssimos da Broadway onde, normalmente, os ingressos são vendidos com vários meses de antecedência, quando um rapaz, ao ver uma poltrona vazia entre eles, comenta: - Que coisa esquisita! Um lugar desses (e) vazio?! Você pode acreditar que alguém paga uma fortuna por um lugar desses e não aparece no espetáculo? O homem responde: - Na realidade, esse lugar era da minha mulher, mas ela faleceu! - Oh, meus pêsames - desculpa-se o vizinho. - Mas o senhor não poderia ter dado o ingresso para um amigo ou um parente? - Infelizmente não! Estão todos no enterro!

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Texto de HNb 23

Médico: De quem é esse bracinho? Enfermeira: Sei nããão. Médico: De quem é essa perninha? Enfermeira: Sei nãããão. Médico: De quem é essa coxinha? Enfermeira: Sei nãããão. Médico: E de quem esse pezinho aqui? Enfermeira: Sei nãããão... Médico: Pois amanhã de manhã quero ver tudo isso muito bem arrumadinho Nunca vi necrotério infantil tão bagunçado que nem este aqui!

Haveria Metaficção nesses dois textos? Eles provocariam nosso riso?

Analiso, a seguir, um último texto 3Ms-morte.

Texto de HNb 24

Incêndio numa cidade da Espanha. Uma garotinha grita desesperada lá do décimo - quinto andar. Está sozinha e os bombeiros não têm como chegar lá. A solução é abrir a rede. É o que eles fazem e gritam pelo megafone incentivando a garotinha a pular. Finalmente, ela pula. Quando a garotinha se encontra a poucos metros do chão, os bombeiros gritam em coro: - OLÉÉÉ!!!! E afastam a rede.

A incongruência introduzida nos dois últimos enunciados provoca o efeito

perlocucional repulsa, porque eles, escancaradamente, fazem o texto desembocar na morte da

garotinha. O jogo de comparação entre os procedimentos de salvamento em um incêndio e os

de uma tourada é acionado pelo conhecimento prévio. Em que pese, pois, a expectativa da

normalidade (N) - a salvação da garota - o humor não se instala, pois a violação que começa

com a interjeição (OLÉÉÉ!!) e culmina com o enunciado “E afastam a rede” é agressiva. A

piada é o exemplo típico de que, se a Verdade for inserida na mentira, nos textos cujo tema é a

morte, não haverá riso. A fórmula “Não-Verdade + Verdade = Não-Aceitação” se aplica aqui.

Observe-se nesse texto, ainda, o modo como o autor trabalha com os interlocutores, os

sujeitos do discurso na cena enunciativa. A garotinha gritando (na enunciação: Socorro!) é a

personagem-enunciadora; os bombeiros são os personagens-enunciatários nas duas vezes em

que gritam, uma (na enunciação), incentivando a garota a pular e a outra com o explícito

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OLÉÉÉ!! Trava-se um estranho diálogo entre os interlocutores presentes na cena, com pouca

distância geográfica, mas sem possibilidade de comunicação direta.

Utilizo nessa seção, HNB - 3Ms-Morte, textos nos quais não se utiliza a metaficção -

não camufla a verdade, mas, ao contrário, a desnuda -, intercalando-os com outros em que o

autor faz justamente o oposto: escamoteia a verdade para provocar o riso, no intuito de

comprovar a aplicação das configurações apresentadas no quadro abaixo.

HNb - 3Ms: Morte (morbidez/macabro)

Representação

Intencionalidade/Aceitabilidade

Efeito

perlocucional

Não-Verdade + Verdade

NÃO-ACEITAÇÃO

–R

Não-Verdade + Não-verdade=

METAFICÇÃO

ACEITAÇÃO

+R

Quadro 7: Ilustração da relação entre fatores pragmáticos e respectivos efeitos perlocucionais. Fonte: Dados da pesquisa, 2007.

O que me vem à mente diante da descrição lingüístico-discursivo-pragmática desses

textos de HNb-3Ms é o conceito de Celestino Vega sobre humor que, de certo modo, acaba

por corroborar algumas idéias de Bergson e Breton, no sentido de que a capacidade de

desdobramento da pessoa e de distanciamento da verdade é cultural, mas, sobretudo

individual, e por vezes imensurável. É o incontrolável afã do ser humano de entender as

coisas. Para no sucumbir al dolor no hay mejor que reírse de él, que buscarle un sesgo risible; para no enfangarse e la risa no hay cosa mejor que buscar el lado triste, que suscita la compasión y la piedad, al responder a una situación conflictiva, antes de nos entregarmos a la desesperación trágica o a la despreocupación cómica, debemos esforzamos por mantener la serenidad y la mejor manera de no perder la cabeza consiste en vigilarmos a nosotros mismos en una especie de desdoblamiento de la personalidad: alguien que es capaz de verse a sí mismo demasiado indignado encuentra cómica su indignación y la corrige en el acto; quien percibe la frivolidad, la incomprensión de su risa, se pone grave, deja de reír. El humorismo no nos deja llorar ni reír a gusto, porque humorismo es, en el fondo, un afán de comprender. (VEGA, 1967, p.62).

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Creio que o segredo para esse afã de entender o HNb seria a cumplicidade entre a

seriedade e a não-seriedade, a verdade e a não-verdade, a certeza da inexorabilidade da morte e

a convivência com ela; essa é a tragicidade do ser humano. Ao usarem Metaficção nos textos

de HNb, os autores tentam atenuar essa tragicidade e, assim, desafiam o ouvinte a

compreender, a rir e a gargalhar. A Metaficção é elaborada por meio de figuras retóricas como

a ironia, o eufemismo, a lítotes205, por exemplo, o que me permite estabelecer um princípio

para a construção do HNb.

Princípio de construção do HNb+Risível

Para provocar o riso em textos de HNb são utilizados: ironia, eufemismo, lítotes, hipérbole etc.

Afirmo anteriormente que a maioria dos textos de HNb, a exemplo do que já fazem os

humoristas da Belle Èpoque (Saliba, 2001), é construída com a estratégia lingüístico-

discursiva a que denomino metaficção.

A seguir, analiso um texto no qual o autor vem comprovar minha assertiva de que não

há unanimidade no humor nem no tocante à sua construção, nem à sua interpretação e análise

e muito menos ao efeito perlocucional que lê provoca.

Texto de humor 26

Seu Manoel, os meus pêsames. Soube que ontem o senhor enterrou sua mulher. Sim, sim, ora, pois, pois. Ela já estava morta. E não fui eu quem a enterrou, não; foi o Senhor coveiro.

Observe-se que, dos parâmetros das Fontes de Conhecimento (FCs), o mecanismo

lógico é introduzido pelo duo de oposição semântica morte x vida, mas o alvo é o estereótipo

materializado pelo uso do nome próprio do cidadão lusitano (Manoel) e pelas expressões

lingüísticas: ora, ora, pois, pois.

205 Grosso modo, é uma expressão que atenua.

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O humor é construído a partir da polissemia introduzida no discurso do personagem-

enunciador pelo conector de isotopia “enterrou” (primeiro plano de leitura (sepultou) e

segundo plano “morreu”). Isso causa a ambigüidade da expressão “enterrou sua mulher”, na

qual se embute também um eufemismo usado socialmente para confirmar falecimentos. O

portuga ignora o eufemismo, a polissemia e o papel temático de agente do sujeito e com isso

introduz a incongruência.

No plano enunciativo, o texto é marcado pela polifonia: um personagem-enunciador

com a esperança de que o personagem-enunciatário se dê conta da polissemia de enterrar, o

locutor-empírico, que espera que esse enunciatário não desfaça a ambigüidade de enterrar

para provocar o humor/riso e o leitor/ouvinte. Para comprovar que o lusitano não

desambigüisa enterrar, o autor introduz como resposta a violação “Ela já estava morta”. A

palavra já, com valor semântico de “antes”, juntamente com o restante do enunciado, veicula

o óbvio, mantém a ambigüidade e perpetua o estereótipo.

Também, a escolha pela voz ativa em soube que ontem o senhor enterrou sua mulher

garante o valor ilocucional, a intenção pretendida pelo locutor empírico. Se o autor tivesse

escolhido os enunciados “soube que ontem sua mulher foi enterrada (pelo coveiro?)”, o texto

não causaria o mesmo impacto. É a voz ativa que sustenta a burrice do lusitano. Aliás, o

enunciado na voz passiva nem seria uma fala “normal”, pois quem diria tamanha redundância,

a não ser um outro texto de humor ou certos exemplos em cursos sobre papéis temáticos? “Foi

enterrada” sepultaria também o eufemismo e o texto não seria de humor, de nenhum tipo.

As escolhas também pelo mecanismo lógico - burrice x inteligência - e pelas

expressões lingüístico-discursivo-pragmáticas são decisivas para que o autor consiga deslocar

o foco da atenção do (pseudo) 206 tema morte para o verdadeiro tema de seu texto: o

estereótipo português é burro, em que o alvo, obviamente, é o português. Com esse

deslocamento o autor desnuda sua intenção primária, causa humor e provoca o riso. Portanto,

apesar de o texto parecer se centrar no tema morte, esta permanece em segundo plano,

suplantada pela decantada ignorância do português. Isso permite a conclusão de que poderia

haver dois temas, ou um tema e um subtema, um camuflado e outro declarado, em um só

texto de humor e um deles, ao se destacar lingüística e discursivamente, decidiria a

classificação desse texto.

O texto, a meu ver, é suavemente risível (+R), mas não de humor negro. O

deslocamento de foco do tema morte para o do estereótipo é a técnica de que se utiliza o autor

206 Pseudo tema porque seu mecanismo lógico teria de ser morte x vida, o que nesse texto não ocupa lugar de destaque.

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para atingir seus objetivos. Esse tipo de texto revela, por um lado, a versatilidade e a

criatividade do brasileiro para a produção dos textos de humor; por outro, o próprio texto

analisado e a classificação que a ele dou, podem gerar polêmica por questões interpretativo-

analíticas, de subjetividade. Muitas pessoas podem considerá-lo um texto de HNb, por causa

do subtema morte e alegar que ele é construído com a metaficção, que seria justamente o

deslocamento, já que o eufemismo estaria garantido lingüisticamente. Por isso, essa piada

evidencia, sobretudo, que não há garantias sobre a abrangência e limite da metaficção na

construção dos textos de HNb risíveis. Nélson Rodrigues estava certo: “toda unanimidade é

burra”, e toda forma de radicalismo também, digo eu.

4.5.1.2 Os 2Ds - Doenças e Diferenças

Reitero que a ausência da verdade nos desfechos de grande parte dos textos de HNB

provoca a gargalhada ou o riso, por isso, textos 3Ms construídos com Meta ficção provocam o

riso. O mesmo ocorre com os de 2Ds e seus subtemas Doenças e Diferenças. Porém, os textos

2Ds-Diferenças-Deficiências, por serem mais volúveis e voláteis, merecem tratamento

especial. Mas, vejamos o que ocorre com o tema 2Ds - Doenças.

4.5.1.2.1 Doenças

Texto de HNb 27

Estavam Zezé de Cuamargo & Luciânus, Chatãozinho & Xilindró e Leão Nardo num show em memória a um ano da morte de Leandro, quando no meio do espetáculo Leão Nardo anuncia, emocionado: - Agora, chegou a hora de fazer o que o Leandro mais gostava. Neste instante, um canceroso da platéia grita eufórico: - Oba! Quimioterapia!

A incongruência/violação começa a ser desenhada pelos jogos fono-morfológicos meio

chulos, com a alteração dos nomes dos artistas, e culmina com Oba! Quimioterapia, sem

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qualquer tentativa de atenuar a verdade. Essa escolha lexical não confere humor ao texto nos

moldes que façam rir os brasileiros. O conhecimento prévio tem de ser acionado; há que se

saber quem são esses artistas, quem é Leandro, que ele foi acometido de um câncer que o

matou e que desfez a dupla caipira Leandro e Leonardo. O personagem-enunciador, ao dizer

chegou a hora de fazer o que Leandro mais gostava, deseja que o personagem-enunciatário

entenda que Leandro gostava de cantar, mas o locutor-empírico deseja que o enunciatário

interprete: Leandro gostava mais era de fazer o tratamento contra o câncer. Esse tratamento

cruel do texto, quase cancerígeno-invasivo, que não camufla a verdade do tema, não é

metaficcional, impede o humor e o riso. O texto é – R (Irrisível).

Nos dois textos a seguir, os autores utilizam o mesmo recurso lingüístico-discursivo, a

incongruência e a mesma abordagem não-metaficcional para o subtema-Doença. Por isso, não

provocam o riso. Vejamos.

Texto de HNb 28

O garoto para o pai: - Paiê! O que eu vou ser quando crescer? - Nada, meu filho, você tem câncer.

Texto de HNb 29

- Parabéns a você,

No aniversário do garotinho com câncer terminal, os convidados cantam:

nesta data querida, muitas felicidades, - Lá-lá-lá lá-lá-lá.

No desfecho desse último texto, o trecho “muitos anos de vida”, num flagrante

despautério da incongruência, do ponto de vista do ouvinte brasileiro, é substituído por sons

que geralmente substituem a falta, ou o esquecimento, das letras das canções, mas que falam

tanto quanto as expressões lingüísticas falariam: a ironia executiva em lá- lá- lá (muitos anos

de vida) tem valor semântico “não tem muitos anos de vida, pois vai morrer”.

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Consideremos o texto a seguir.

Texto de HNb 30

Um sujeito encontra um amigo que não via há muito tempo e, querendo ser simpático, inicia a conversa: - E aí Paulinho, tudo bem? - Péssimo... Responde o outro. - Mas como?!?!? Com aquela Ferrari que você tem??!?!? - Perda total... E o seguro tinha acabado de vencer... - Bem, vão-se os anéis, mas ficam os dedos... E aquele filhão inteligente? - Estava dirigindo a Ferrari... Morreu... O cara tenta fugir daquele assunto tão trágico: - E aquela sua filha que mais parecia uma modelo? - Pois é... Estava junto com o irmão... Só a minha mulher não estava no carro... - Graças a Deus! Como ela vai? - Fugiu com o meu sócio... - Bem... Pelo menos a empresa ficou só para você... - Ela fugiu com ele porque me roubaram tudo. Deixaram a firma falida... Totalmente falida... Estou devendo milhões! - Poxa vida, então, vamos mudar de assunto, e seu time? - Sou ATLETICANO. - Pelo amor de Deus, Paulinho! Deus me livre! Você não tem nada de positivo????? - H I V...

O texto é construído com a redundância, ironia, sinonímia, uma rede de

incompatibilidade e com um jogo de positividades-negatividades. A redundância se deve ao

fato de positivo ser lido, primeiramente, com seu sentido literal (“Você não tem nada de

bom?”). A interpretação é conduzida para esse lado por causa das repetidas ocorrências de

infortúnios no texto e as quais se contrapõem ao sentido dessa pergunta. A resposta do

personagem-enunciatário (HIV!) é dada sem que se espere que ele tome a palavra positivo no

seu sentido literal. Assim, ao responder a ultima pergunta, Paulinho mantém o mesmo padrão

de negação das respostas que dá a cada pergunta anterior, isto é, usa mais um argumento

negativo, ser HIV- soropositivo - gatilho verbal que surpreende e horroriza. Percebe-se, então,

que o termo positivo usado pelo personagem-enunciador no sentido literal, toma outra direção

na voz irônica do personagem-enunciatário que com isso revela mais um outro aspecto

negativo de sua vida: ser portador do vírus HIV, além do de ser atleticano. A construção do

humor aponta para um autor mineiro-cruzeirense.

O personagem-enunciatário usa a ironia, porque ser soropositivo (HIV) é negativo e

não positivo, apesar de ele ser (soro)positivo. É quando o positivo é negativo e, portanto, não

se configura a oposição. Funcionando geralmente em incompatibilidade, negativo e positivo

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são relidos como sinônimos, intencionalidade do autor. O texto para mim é irrisivel (– R). ,

mas alguns amigos o consideram risível (+R). Logo, ele poderia ser (±R). Ah, as nuances da

moral subjetiva. Quem aceitaria o desafio?

4.5.1.2.2 Diferenças

Relembrando que incluo no grupo diferenças todas as deformidades e diferenças que

podem suscitar quaisquer discriminações, analiso o texto a seguir.

Texto de HNb 31

E dizem as más línguas que, durante o último Teleton, o Osmar Santos encontrou o Edmundo e o cumprimentou, todo sorridente: - Fala aí, ôôô Animaaaaaal... Ao que Edmundo disparou: - Fala aí, ôôô Vegetaaal...

Esse texto constrói-se com a polissemia e a ambigüidade dos termos animal e vegetal.

A intenção do personagem-enunciador, Osmar Santos, é que o personagem-enunciatário,

Edmundo, leia animal sucessivamente segundo a isotopia da fama de Edmundo no esporte,

presente o traço//violência e a do plano de leitura dois, o dos reinos da natureza, e presente o

traço/anima/l irracionalidade. J[a o locutor-empírico tenciona que Edmundo interprete a

palavra animal de acordo com o segundo plano de leitura, a dos reinos da natureza

(traço/animal/irracionalidade). Por isso, Edmundo usa a palavra vegetal para contrapor a

interpretação da leitura de que Osmar o estaria chamando de animal/irracional, garantindo

assim a interpretação de que Osmar está vegetal (isotopia da saúde (traço/deficiência mental).

Edmundo garante essa interpretação com seu ato de fala eivado de ironia, que simultaneamente

enquadra Osmar no reino vegetal, mas o termo remete à saúde mental em colapso irreversível

do ex-locutor esportivo.

O conhecimento prévio é essencial para a compreensão do texto, porque é preciso

saber quem é Osmar Santos, ter conhecimento sobre o acidente de que é vítima e que o

incapacita física e mentalmente; também é preciso entender o termo vegetal como referente

aos doentes com vida vegetativa, ou com seqüelas mentais e físicas (quase) irreversíveis.

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Observe-se a semelhança na construção entre o texto anterior e o a seguir.

Texto de HNb 32

No hospital, médico avisa a cliente. Médico: Sinto muito, Sr. Oliveira, mas o senhor vai permanecer vegetal.

Analiso outro texto de HNb 2Ds-Diferenças

Texto de HNb 33

Doutor, não consigo tocar na minha perna. É claro que não consegue. Amputamos os seus braços.

O texto é construído com a incongruência da rede-relação causa-efeito provocada por

não consigo tocar na minha perna (conseqüência) e amputamos os seus braços (causa). Os

atos de fala do personagem-enunciador têm modalização questionamento (“Por que não

consigo tocar na minha perna?”). A verdade na violação (Amputamos seus braços) se justapõe

à normalidade (“ter braços”) e provocam um solavanco mental violento; a repulsa e a não-

aceitabilidade se instalam. A crueza do ato de fala do personagem-enunciatário, intenção do

locutor-empírico, é tal que, além de deixar em dúvida que o texto seja ficcional, dada a

inverossimilhança que porta, desnuda um modo de o autor abordar o tema

“deficiência/deformação física”, que despeja a realidade da amputação, explicitação da

verdade. O autor atinge sua intenção de provocar um forte impacto e, com isso, impõe a

verdade, impossibilitando o prazer e apontando para o duo não-aceitabilidade/o não-riso. O

texto é (-R) irrisível.

Vejamos agora um conjunto de frases trocadas entre irmãos siameses.

Textos de HNb 34, 35, 36, 37

34. Quem disse que duas cabeças juntas pensam melhor?207 35. Não admito que penses por mim. 36. Odeio sexo com torcida.

37. Você não respeita minha individualidade.

207 Informação verbal de Sérgio G. Magalhães, em Esmeraldas em 24 de dezembro de 2006.

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Os quatro textos exigem, primeiramente, um saber anterior sobre o que é essa

malformação e o conhecimento de que os irmãos estão unidos pelas cabeças (vide

situacionalidade no texto 34). Observe-se que, em que pese o horror dessa malformação, os

enunciados podem veicular humor e trazer o sorriso, porque a verdade não é explicitada, mas

camuflada na ironia.

O primeiro texto transgride o dito popular “duas cabeças juntas pensam melhor”, num

jogo de afirmação-negação, quando o autor introduz a expressão quem disse que e transforma

o enunciado em modalização questionamento. O (leve) humor é proveniente, como nos outros

quatro textos, também da ironia, já que os enunciados do texto 34, por exemplo, têm valor

semântico “duas cabeças coladas (literal e fisicamente) não pensam melhor”.

Nos textos 35 e 36 há um jogo lingüístico-pragmático com a “coletividade”. No

primeiro, o trecho não admito que penses por mim é ironia que significa “tenho cérebro, e

pensamentos próprios”, ou seja, o fato de termos os corpos unidos pela cabeça não implica a

existência da possibilidade de termos uma só mente - fato esse que representa a anormalidade

e que parece ser a base da ironia utilizada pelo locutor-empírico.

O texto 37 faz o mesmo tipo de jogo lingüístico-pragmático irônico, agora com a

“individualidade”. A contradição se posta no fato de ser difícil ter individualidade (aspecto

subjetivo) na coletividade, ser “um conjunto” ligado fisicamente. Porém, a intenção do

locutor-empírico é justamente trazer o humor (tênue) por meio dessa contradição, algo como

“você não respeita meu espaço”, quando os dois ocupam esse mesmo espaço (quase todo).

Nos enunciados do texto 36, Odeio [fazer] sexo com torcida, torcida é o “público”,

impertinência semântica metáforico-metonímica para o outro irmão siamês. O riso advém da

ironia deflagrada pela impossibilidade de esse ato sexual se realizar sem a presença do outro e

da certeza de que ele ocorre, por causa do enunciado assertivo, modalização afirmação e

devido ao verbo fazer (Odeio (fazer) sexo com torcida), omitido no enunciado. Como nos

demais textos, a verdade da deformidade, também nesse texto, não é explicitada. Considero os

textos risíveis (+R), não de provocar gargalhada, mas riso, ou um sorriso, pelo menos.

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Texto de HNb 38

Dois paraplégicos amigos se encontram. Um diz ao outro, depois de observá-lo bem: Acho que você não anda bem. A que ele responde: E você de jeito nenhum. 208

O humor do texto é marcado pela polissemia do verbo andar que pode ser lido em dois

planos: um deles, a isotopia de estar (traço/intimidade/saúde), e o outro, com a de

caminhar/locomover (traço/exterioridade/locomoção). É esse segundo plano que traz o humor,

com base no entendimento do primeiro plano. Isso é garantido pela voz do personagem-

enunciatário que interpreta o termo andar como o locutor-empírico deseja, e ironicamente

responde: E você (não anda) de jeito nenhum. Com sua fala, ele confirma a ambigüidade

lexical do termo andar. No enunciado do personagem-enunciador (Acho que você não anda

(está) bem), o autor usa a lítotes, mecanismo sintático com que se produz um sentido e seu

efeito, negando no enunciado e afirmando na enunciação (você está/anda mal). Considero o

texto é risível (+R).

Relembro que enquadro nessa categoria as diferenças sociais, estéticas, religiosas,

político-econômicas, étnicas, raciais etc., como os enunciados deste texto encontrado em um

sítio de humor negro da Internet que aponta diferenças sócio-econômicas.

Texto de HNb 39

Ao criar o mundo, Deus fez uma divisão honesta:

deu o dinheiro aos ricos e a fome aos pobres.

Não creio que o brasileiro risse desse texto, mesmo que eu tentasse introduzir nele a

Metaficção, talvez nada convincente, complementando-o com: “[...] deu dinheiro aos ricos e a

fome aos pobres”, mas estes estavam de dieta. O que conta aqui, a meu ver, é a ironia

executiva usada pelo autor. O texto não é risível, porque a incongruência/ violação, a carga de

verdade sobre a divisão de classes injusta e estapafúrdia é explicitada e as diferenças gritantes 208 208 (Jô Soares, em Jô às 11h30min, SBT)

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se acentuam na mente do ouvinte, que se revolta. Não se utiliza da Metaficção e, por isso,

considero o texto irrisível (-R),.

Analiso, a seguir, um texto 2Ds-Diferença étnica.

Texto de HNb 40

Um sujeito afro-brasileiro, de roupas esfarrapadas, rebolando, usando uma quipá, com uma camisa do São Paulo, vinha andando pela rua. O guarda de trânsito não resistiu e parou o cidadão. - Meu amigo, desculpe falar isso, mas poxa… Preto, pobre, judeu, são-paulino e bicha. Que azar, hein? O outro sujeito responde: - Y Usted no sabe lo peor. Soy argentina.

A piada exemplifica o HNb que considero risível e de qualidade (e aí desnudo minhas

formações discursivas). A carga de preconceito (V) delineada nos primeiros enunciados do

personagem-enunciador é desviada para o desfecho, em que a ironia nos atos de fala do

personagem-enunciatário deixa claro não ser o texto uma piada anti-afro, anti-semita, contra

pobres, ou mesmo contra São-Paulinos e homossexuais. O FC-alvo, camuflado, surge no

desfecho, brilhante e castelhanamente construído. Os ouvintes brasileiros gostam e riem desse

texto, mas se você for argentino vai odiá-lo. O texto é construído com a metaficção e a ironia,

que escamoteiam a verdade e a incongruência (violação); a FC-alvo é o povo argentino..

Analiso a seguir outros textos com o subtema Diferença racial-social.

Texto de Hnb 41

Chega ao céu um negão aprumado, vestido de terno branco, todo engomado, sapato de duas cores, impecável, perfumado, cabelo alisado, tudo nos conformes. São Pedro olhou, olhou e perguntou: - Pois não, quem é o senhor? O negão respondeu: - Leonardo di Caprio. São Pedro olhou bem para ele, consultou a lista dos contemplados para entrar no Paraíso, virou para o negão e disse: - O senhor pode repetir o seu nome ? E o negão, todo empertigado: - Leonardo di Caprio. São Pedro pediu licença e foi consultar seu chefe. Chegou e bateu na porta dos aposentos de Deus: - Senhor, tenho um probleminha. Ao que Deus respondeu: - Diga, Pedro, qual é a sua dúvida? - Só pra confirmar: o Titanic afundou ou pegou fogo?

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O humor dessa piada é provocado pela ironia e pela incongruência. A ironia executiva

permite modificar o tratamento do subtema diferença-racismo. O personagem-enunciador, ao

usá-la, escamoteia linguisticamente o preconceito de raça de vários modos: quando Pedro

conversa com Deus, ao não colocar claramente, nem para o Criador, uma questão hoje em dia

tão melindrosa, como a das raças. São Pedro, personagem-enunciador faz escolhas lexicais

cautelosas e politicamente corretas para tratar do tema raça; ele usa: pode repetir? e

probleminha, e ainda titanic afundou ou pegou fogo. Procedo do mesmo modo, quando falo

do cidadão afro-brasileiro ao usar cidadão, afro-brasileiro, morenão.

É necessário acionar o conhecimento anterior para entender a pergunta sobre o Titanic

e associar “pegou fogo” à cor do cidadão afro-brasileiro. O preconceito de São Pedro fica

visível, nas entrelinhas que deixam transparecer que o afro-brasileiro (bem) poderia ser um

branquelo que viajava no Titanic, e que supostamente teria pegado fogo e o branco também e

este, por isso, enegreceu. Pressupõe-se que Pedro já teria conhecimento de que algum

acidente ocorrera com o navio, comprovado pelo uso das estruturas lingüísticas naufragou ou

pegou fogo, intermediadas pelo marcador de alternativa ou. O posto seria o naufrágio, ou o

incêndio.

Os atos locucionais e ilocucionais dirigem o tema discriminação para um outro

domínio, o virtual, aquele que existe no imaginário e na fantasia, na cibernética e, às vezes,

nos computadores, onde permanece sem importância no labirinto situacional, distanciado da

crueza do preconceito racial. Essa diferença de tratamento do tema, que apresenta certa

leveza, por assim dizer, provocada pela escolha das expressões lingüísticas, causa a catarse,

provoca o riso e enquadra esse texto, no meu ponto de vista, no tipo +R (risível). Tornam-se

irrelevantes o falecimento do negro e o julgamento no céu, por isso, descartados na

interpretação do texto.

Texto de HNb 42

Na noite de Natal, Papai Noel sobrevoava a Somália com seu trenó. Quando as crianças o viram, começaram a gritar: - Papai Noel, me dá um presente? - Papai Noel, joga uma bola para mim? - Papai Noel, Papai Noel... Papai Noel olhou para baixo e explicou: - Não! Criança que não come direito não pode ganhar presente de Natal.

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Noite de Natal, Papai Noel, sobrevoava a Somália são elementos da situacionalidade,

essenciais à construção desse texto. A polifonia (ironia) acusa a presença da voz do locutor

empírico, além da presença lingüística das vozes do personagem-enunciatário (Papai Noel) e

dos personagens-enunciadores (as crianças somalis). É preciso acionar o conhecimento prévio

sobre a Somália, onde impera a miséria, os alimentos são escassos e a inanição ronda

sorrateiramente, fatos relevantes para se interpretar o texto.

Os três primeiros atos de fala dos personagens-enunciadores são modalizados como

pedido/súplica e revelam o desejo, intencionalidade primária das crianças de quererem ganhar

presentes. A inusitada resposta do personagem-enunciatário “- Não! Criança que não come

direito não pode ganhar presente de Natal” é o script violação, construído com a ironia,

amparada por uma rede de causa-efeito e pela negação. O texto se transforma num jogo de

afirmação-negação, num dizer camuflado.

Na primeira parte dos enunciados Não, criança que não come direito, não pode

ganhar presente de Natal encontra-se a ironia, o não-dito: “criança somali ou come

pouquíssimo ou não come coisa alguma”. Os enunciados, então, afirmam uma coisa, mas a

enunciação diz outra: "vocês ficam sem presentes de Natal, porque não comem direito”,

sendo que o sintagma verbal “não come direito” equivaleria, no caso da Somália, a “passam

fome”, sentido pretendido pelo locutor-empírico e amparado por uma rede de causalidade.

Relembro que a ironia é aquela complexa marca da heterogeneidade mostrada não-

marcada do sujeito e do discurso. Nela, presença do outro não é explicitamente mostrada na

frase - já que a voz do locutor se mistura à do outro -, mas no espaço do semi-desvelado, do

implícito, não mais no nível da transparência, mas no da opacidade, no qual se opera com o

outro discurso. É uma forma mais arriscada, porque “joga com a diluição do outro no um, na

qual este pode ser enfaticamente confirmado, mas, também, pode se perder, pois ao jogar com

a diluição, é mais dificilmente controlado pelo sujeito” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 81).

Não há uma fronteira lingüística explícita entre o que um locutor diz e o que o outro diz, as

vozes se entrecruzam, se imiscuem nos limites de um único evento ou da violação.

Uma coisa parece certa: se a ironia é um tropo que consiste em dizer o contrário do

que se quer fazer o destinatário compreender, esse “contrário” pode ser tanto a confirmação

da verdade do texto como a refutação dela. Portanto, com a ironia, se a voz na enunciação

camuflar a verdade do HNb, talvez, o ouvinte/leitor ria; se essa voz explicitar a verdade do

HN, talvez, ele não ria. Este me parece ser o caso aqui, já que a ironia usada não introduz uma

outra mentira que se sobreponha à mentira (a maldade de Papai Noel) e que amaine a

”crueldade” do comportamento lingüístico-discursivo do bom (mau) velhinho. Desse modo, a

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normalidade, a verdade, a folclórica e propalada bondade de Papai Noel é violada

agressivamente pela mentira introduzida pela língua, violência que é mantida por outra voz na

enunciação. Por essas razões, a meu ver, o texto é irrisível. Pelo visto, parece que Manuel

Antônio de Almeida está correto quando intui alhures que o sorriso não é de domínio apenas

do mundo exterior, porque metade do que ele é permanece com o indivíduo, na sua alma, que

guarda a segunda parte da qual outros não se apropriam. Freud (1960) concorda com isso ao

lidar com os chistes e suas relações com o inconsciente.

Quanto à negação usada no texto, segundo Ducrot, ela se classificaria em descritiva209

e polêmica210. Posteriormente, em seus escritos, ele reveria essa concepção de oposição entre

as duas negações para inseri-las na sua teoria polifônica; acaba acrescentando uma terceira

oposição, a metalingüística. Segundo ele, a enunciação da maior parte dos enunciados negativos é analisável como encenação do choque entre duas atitudes antagônicas, atribuídas a dois “enunciadores” diferentes: o primeiro personagem assume o ponto de vista rejeitado e o segundo, a rejeição deste ponto de vista. (DUCROT apud ALTHIER-REVUZ, 1982, p. 80).

Isso colocaria a negação como objeto de análise polifônica.

Nesse texto-piada, há uma negação inicial Não, sintagma adverbial que refuta as

súplicas “joga uma bola, manda presentes”, que não é polifônica e duas em não come direito,

não ganha presente de Natal, que são ocorrências polifônicas que eu classificaria como

(negações) polêmicas, porque “não há rejeição de um locutor, mas de um enunciador, que não

é o autor de um enunciado proferido” (DUCROT apud ALTHIER-REVUZ, 1982, p. 84). O

que é rejeitado é construído no interior da própria enunciação que o contesta.

A esta altura, devo esclarecer que no texto de HNB anterior, a figura do Papai Noel,

sabidamente conhecida como uma inverdade para os adultos, constitui uma verdade do

imaginário infantil, engendrada por esses próprios adultos. Esse jogo de verdade-inverdade

complexa impregnada na cultura ocidental e suas interfaces com a infância, a adultice, a

sociedade e a moral subjetiva, é lido a partir de uma realidade: a crença e o desejo das

crianças de que a mentira seja verdade. O perigo da inserção desse tipo de personagem

verdade-mentira (e de outros folclóricos como boto, mula-sem-cabeça, chupa-cabras,

lobisomem, saci-pererê, Yara etc.) nos textos de humor, pode dar origem a uma interpretação

equivocada sobre os textos de HV, HN e de HNb, a de que eles contêm apenas uma verdade e 209 Aquela que serve para falar do mundo e descreve um estado de coisas. Ex: não há indícios de chuva no céu. 210 Aquela que constitui um ato de refutação do enunciado anterior. Ex: A situação está menos caótica.

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200

uma mentira, o que é uma mentira e não uma verdade.

A fórmula da teoria de Veatch (1998) propõe as três condições individualmente

necessárias e conjuntamente suficientes (N + V + S) para se produzir humor. A de Raskin

(1985) sustenta que é necessária a presença de dois scripts incompatíveis no texto. Entretanto,

nenhum deles afirma que textos de humor devam conter apenas uma verdade ou somente uma

mentira. Se assim fosse, não seria fácil explicar o que ocorre nos textos literários humorísticos

(longos) (TRIEZENBERG, 2004), ou em textos-piada mais longos em que se acumulam,

entrecruzam-se e se revezam as normalidades e as violações em seu percurso. A fórmula de

Veatch é uma generalização da teoria que exige as presenças, necessárias e suficientes das três

condições básicas da construção dos textos de humor, que se somam aos dois scripts (pelo

menos) apontados por Raskin.

4.5.1.2.3 A diferença na deficiência

Alguns teóricos afirmam que o cômico e o humorístico não se confundem. Admitem

com certa unanimidade que, no primeiro caso, rimos de nossas próprias desventuras, e no

segundo, rimos das desventuras dos outros. É em função dessas definições que posso pensar

que o HNb se encaixaria na segunda categoria, no humorístico, isto é, rimos das desventuras

dos outros. Entretanto, com o HNb, as coisas parecem não ocorrer bem assim, visto que com

ele pode-se

- ☺ rir, mas também não rir, se a violação atingir as agruras dos outros (nos textos

de HNb que tratam dos temas morte, deficiências, diferenças, deformidades e doenças);

- ☺ rir, mas também não rir, se a violação atingir nossas próprias desgraças (nos

textos de HNb que tratam dos temas morte, deformações, doenças, deficiências, diferenças);

- ☺ rir se a violação do texto for dirigida ao próprio personagem-enunciador portador

da diferença na cena enunciativa.

O último item geralmente contempla o riso nos textos de HNb, mais do que o não-riso;

é quando o(s) interlocutor(es) faz(em) galhofa com suas próprias diferenças na cena

enunciativa.

Retomo Geraldo Magela, humorista mineiro, deficiente visual, nascido em Venda

Nova, na Grande BH, para analisar dois de seus textos transcritos no capítulo 3. Ele subsidia o

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201

que afirmo no início desta seção. Numa entrevista211, o humorista conta histórias sobre sua

visita a Paris.

Texto de HNb 43

Magela: O guia da Cidade Luz aconselhou-me a ir à Torre Eiffel para ter uma visão melhor; fui, paguei uma fortuna e não vi nada.

O humor desse texto decorre da incongruência e da ironia. Magela nada vê e nem

pode ter uma visão melhor, porque não possui visão (física) alguma. Seu texto é classificado

como de humor, primeiro, porque construído sob as condições individualmente necessárias e

conjuntamente suficientes: normalidade (ver) e violação (não ver), que ocorrem

simultaneamente (VEATCH, 1998). É de humor negro por tratar do tema 2Ds-deficiência

visual e traz o riso, efeito perlocucional recorrente nesses subtipos de texto em que se

escamoteia a verdade por via da ironia. Seu texto é também cômico, se levo em conta as

definições dos teóricos sobre humor e comicidade. Assim, porque o humorista

propositalmente faz galhofa de sua própria deficiência visual, porque a verdade da violação

atinge um alvo que é o próprio personagem-enunciador, seu texto é risível. Por essas razões é

que eu afirmo anteriormente que alguns textos de HNb-2Ds-deficiências são volúveis e

voláteis, fazendo por merecer tratamento especial. Enquadram-se, a meu ver, no tipo +R

(risível).

Analiso outro texto de Magela.

Texto de HNb 44

Em seu show, “Ceguinho é a Mãe!”, Magela simula uma discussão ferrenha sobre política com um amigo que o questiona: Amigo: - Por que você nunca tem a mesma visão que eu? Magela: - Porque tive o cuidado de ficar cego antes212.

211 Ao Programa Hoje em Dia, da Rede Record de Televisão, em 08/2/ 2007. 212 Piada semelhante ao conhecido texto de humor negro de Luis Borges sobre si mesmo e sobre o mesmo tema, sua deficiência visual. “Avisado pelo diretor da faculdade de que a energia elétrica ia ser cortada, Borges retruca: não tem importância. Tive a precaução de ficar cego antes.”

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202

O humor-comicidade do texto advém da polissemia, da incongruência e da

(auto)ironia. A primeira é devida ao fato de que o cômico/humorístico, além de usar e abusar

do direito de fazer troça de si mesmo, dá-se ao luxo de afirmar, ironicamente, que ele próprio

se cega para não ficar com “a mesma visão” do amigo. Novamente, o alvo (uma das FCs) é o

personagem-enunciador. Em seus enunciados, o termo visão é polissêmico e lido,

sucessivamente, segundo a isotopia da opinião (traço/ponto de vista, ótica) e a da saúde

(traço/impossibilidade física). É dessa segunda leitura que emana o humor-cômico, com base

na primeira. Com a (auto)ironia - a brincadeira escondida atrás da seriedade - Magela camufla

a verdade e traz o humor - a seriedade escondida atrás da brincadeira, segundo Schopenhauer,

citado por Duarte (2006, p. 154-155). A (auto)ironia faculta ao humorista camuflar a verdade

de sua cegueira (Metaficção). Considero o texto +R (risível).

A variável “os interlocutores rirem de suas próprias desventuras”, isto é, eles serem os

alvos, parece ser recorrente nos textos de HNb do tipo 3Ms e 2Ds. Destaco o subitem

deficiências, porque foi através dos textos de Magela que atentei para essa ocorrência. Ainda,

são de Magela os seguintes enunciados:

Textos de HNb 45

O presidente Lula, meu concorrente em Brasília, porque ele não vê nada e eu nada vejo, me convidou para ser controlador de vôo cego, para resolver parte do problema do apagão aéreo. Fui ficando com a vista ruim aos pouquinhos, enxergando pouco e cada vez menos e menos; aí quando fui ver, já estava cego. Eu uso um telefone cegular.

Outros textos, nessa linha de raciocínio, usam as mesmas estratégias lingüístico-

discursivas de Magela: o humor é construído para afetar os próprios locutores e faz os

ouvintes rirem. É opinião dele que a diferença entre o humorista e as pessoas normais é que

esse tem coragem de dizer o que passa pela cabeça dos outros, uma ousadia, além de outra

ironia (auto-ironia?).

Resumindo, se o personagem-enunciador, como no caso de Magela, faz galhofa

consigo mesmo, usa a auto-ironia, o riso fica garantido. É o caso, por exemplo, de Fausto

Silva no texto abaixo:

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203

Texto de HNb 46

Faustão responde a uma interpelação dos fãs de que ele teria de participar da Dança dos Famosos e fazer piruetas e malabarismos. Ele diz: Só se meu parceiro de dança for um guindaste.

A incongruência é introduzida pelo “parceiro de dança” escolhido por Faustão e

provoca o riso, mas o apresentador está fazendo galhofa de sua própria diferença estética, seu

excesso de peso; ele é o alvo (FCs) da auto-ironia que sustenta seu discurso. Mas vejamos os

textos a seguir. Eles provocariam o riso, apesar de estarem atingindo os interlocutores na cena

enunciativa? Retomo o texto de Edmundo e Osmar Santos já analisado à página 184.

Analisemos outro texto

Texto de HNb 47

Dois amigos, um cego e um paraplégico, encontram-se. - Então, como tens andado? A que o outro responde: - Ora, exatamente como estás vendo.

O humor é introduzido pelos conectores andado e vendo (polissêmicos) que podem ser

lidos segundo a isotopia da saudação⁄cumprimento (o primeiro plano de leitura, e primeiro

script) e a do movimento/físico (o segundo plano, o segundo script), pois, em português,

“andado” tem este sentido de estado, e não se sabe ainda se se trata de um só verbo andar ou

de um caso de homonímia, segundo Perini (2005).

Com o primeiro enunciado, ouve-se a voz de um personagem-enunciador que estaria

defendendo a idéia absurda de que os paraplégicos caminham (ficção/mentira). Esse locutor

espera que o personagem-enunciatário consiga detectar a polissemia e espera que as coisas

caminhem normalmente; mas uma voz diferente, a do locutor-empírico, espera que o

personagem-enunciatário não desfaça a ambigüidade e interprete andado como

“locomoção/movimentação das pernas” (ação).

No último enunciado (– Ora, exatamente como estás vendo), o conector (vendo) é lido

sucessivamente segundo uma isotopia de visão (ver/enxergar) e outra de percepção

(verificar/constatar). O personagem-enunciador usa vendo na esperança de que o personagem-

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204

enunciatário não desfaça a ambigüidade, para assim veicular humor. Ele aplica uma técnica

em que o verbo ver mantém seu sentido dicionarial para transgredir e violar a normalidade

médico-científica e pragmática de que cegos não vêem, exigindo, assim, a interpretação de

dois scripts lingüísticos (constatar e enxergar).

Novamente, é utilizada a polifonia no discurso, a ironia, já que, no enunciado, ouve-se

outra voz além da do locutor-empírico, a de um personagem-enunciador que expressa outro

ponto de vista insustentável: a idéia absurda de que cegos vêem (enxergam). Os dois planos

de leitura, possíveis pela escolhas lexicais, jogam com a polissemia do verbo ver e se

articulam na ambigüidade semântica do enunciado, sendo que a segunda significação afronta

a normalidade (N) dos cegos. Nessa dupla leitura, o autor se dirige a dois destinatários na

cena enunciativa: ao deficiente visual, parceiro do diálogo, e ao público-ouvinte. A análise

semântica inscreve-se na situação de enunciação construída pelo texto que se dirige a dois

destinatários: o paraplégico, parceiro do diálogo, e o público-ouvinte. O autor, então, faz uma

alocução nítida em dois planos: primeiro, ele finge uma cumplicidade com o cego, a quem o

acesso à leitura irônica é vetado e, ao mesmo tempo, evidencia-a ao público-ouvinte, ao qual

o acesso à ironia é permitido. O que o personagem-enunciatário quer dizer é “Do mesmo

modo como não estás enxergando”. O texto para mim é risível (+R), pois a verdade se

esconde atrás da ironia e da incongruência.

A interpretação do texto de HNb 46, além de se apoiar nas estratégias lingüísticas, nas

FCs, na engenharia do sentido, depende da escolha das palavras (paraplégico, cego),

imprescindíveis para o texto. Ora é interjeição fundamental para apoiar a figura retórica

ironia, já que seu efeito semântico é impaciência, zombaria, menosprezo. O adjunto oracional

exatamente parece caminhar alheio ao que ocorre dentro do ato de fala, mas não é exatamente

assim, porque ele abrange a oração inteira; há, por um lado, uma vinculação semântica com as

partes da oração, valor semântico rigorosamente e, por outro lado, uma vinculação sintática

com o todo do enunciado, valor modo. Todas essas escolhas são cruciais para a construção do

texto e sua interpretação.

Destaque-se, ainda, a rede de comparação encetada por como para confirmar que as

escolhas lexicais e sintáticas não me parecem aleatórias (geralmente não o são). Logo, a

escolha das expressões lingüísticas e a colocação das palavras que estabelecem as relações

dos signos com outros signos nos enunciados precisam do conhecimento prévio, por mais

rasante que este seja, como, por exemplo, cegos não vêem, paraplégicos não andam. No frigir

dos ovos, o personagem-enunciatário exprime uma simplicidade desvelada; na realidade, uma

velada complexidade: eu andar é tão simples quanto você enxergar, isto é, ocorrência

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205

impossível, absurda, incongruente.

Como afirmado nas análises dos textos de Magela, o humor e o riso desse texto

também ocorrem, porque a violação ocorre em função de os interlocutores, o personagem-

enunciador e o personagem-enunciatário serem, segundo análise semântica, ao mesmo tempo

os agentes e os pacientes do texto, isto é, a violação é direcionada por eles mesmos para seus

próprios impedimentos físicos. Os textos de Magela propiciam, ainda, a oportunidade de uma

análise dos outros temas nos textos de HNb, como a morte, por exemplo, sob o mesmo

prisma, em que pese o fato de as pessoas por vezes acharem que ninguém ri de sua própria

morte. Ledo engano; ri, sim, e isso pode ser constatado em textos como:

Texto de HNb 48

Dizem que Tiradentes, ao chegar ao cadafalso, teria dito a seu carrasco; - Olhe aqui, você capricha no seu serviço aqui me puxando para cima, mas deixe que na descida eu balanço sozinho.

O texto anterior talvez tenha sido escrito à imagem e semelhança deste:

Quando Sir Thomas More subiu a escada do cadafalso onde seria executado, ele teria dito ao seu algoz: - Rogo-lhe, Senhor Tenente, que me mantenha seguro aqui em cima; quanto à minha descida, deixe que eu balance sozinho.213 (Tradução nossa)

As piadas respaldam o argumento de Possenti (2002) de que as piadas só trocam de

endereço e, para não parecer que o brasileiro fica a dever aos estrangeiros em engenhosidade

e criatividade cômico-humorística para tripudiar sobre sua própria morte, ofereço o texto

abaixo, no qual se pode perceber a presença da Metaficção.

213 As Sir Thomas More climbed a rickety scaffold where he would be executed, he said to his executioner: “I pray you, Mr. Lieutenant, see me safe up; and for my coming down, let me shift for myself.”

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206

Texto 49

Cena: quarto de casal, família reunida em volta do leito, padre apostos para a extrema unção. O chefe de família está em fase terminal de cirrose. A esposa entra com uma vela acesa na mão. O futuro defunto desfecha: Odete, fala aí, estou morrendo ou é meu aniversário?

Dos textos de Magela e de outros similares posso tirar alguns princípios para o HNb.

PRINCÍPIOS DO HNb - 3Ms e 2Ds

1) Se, na cena enunciativa, a violação é direcionada pelos interlocutores às suas próprias diferenças, doenças ou

morte, o texto provoca riso;

2) Se a violação é direcionada a outro ou a outros fora da cena enunciativa, o texto pode, ou não, provocar o riso.

Quadro 8: Quadro ilustração dos Princípios de HNb Fonte: Dados da pesquisa

Resumo, a seguir, as considerações anteriores sobre a descrição do HNb.

Temas do HNb Tipos

3Ms

Morte, Morbidez, Macabro.

2Ds

Doenças e Diferenças

Risível, irrisível, eclético e aleivosias infantis

METAFICÇÃO e os temas do HNb

Representação =Intencionalidade-

Aceitabilidade

Efeito

perlocucional

Não-Verdade + Verdade Não-aceitação –R

Não-Verdade

+

Não-verdade = Metaficção

Aceitação +R

Quadro 9: Ilustração de temas, tipologia do HNb e seus efeitos. Fonte: Dados da pesquisa

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207

Comentário sobre a metaficção e os temas do HNb: como todo texto humorístico é

ficcional, nos textos cujos temas forem morte, doenças e diferenças, se a NÃO-VERDADE

do texto se faz acrescer de uma VERDADE, o resultado é a NÃO-ACEITAÇÃO e o não-

riso (–R). Se a NÃO-VERDADE for acrescida de outra NÃO-VERDADE, o autor constrói o

texto por via da METAFICÇÃO, que terá ACEITAÇÃO, e por sua vez promoverá o RISO

(+R). Assim, o trio intencionalidade/verdade/aceitabilidade parece decidir sobre a ocorrência

do efeito perlocucional riso. Parece que a aceitação depende mesmo é de o brasileiro não ver e

nem vislumbrar a verdade no texto; a verdade crua parece não provocar o riso em meus

patrícios, diante de determinados textos de HN. Porém, textos de humor são, em minha

opinião, e no dizer de Bizet, “enfants de bohème”. 214

4.5.2 Aleivosias infantis (AIs)

Eu não poderia ignorar a existência desse tipo de texto do HNb dadas as suas

especificidades, porém, coloco-o em uma categoria isolada das demais por suas características

próprias e por (em minha opinião) ferirem princípios da moral subjetiva e da verossimilhança

muito mais que os demais textos de HNb, e, principalmente, por não tolerarem a intromissão

da Metaficção.

Nesses tipos de textos o personagem central é a criança, figura quase intocável em boa

parte das culturas do mundo ocidental por sua decantada inocência. Elas desempenham na

cena enunciativa desses textos papéis inusitados, e tecem redes de intencionalidades que

chegam às raias do absurdo. Mas verdade seja dita, sabemos que crianças são “cruéis” e que

menino é “bicho mau” e gosta de “maldades” que, às vezes, os adultos não compreendem.

Talvez, esse tipo de HNb acabe revelando o que os adultos pensam sobre crianças. Não é um

bom tópico para se discutir no âmbito escolar?

Retomo então as palavras de Leon Eliachar, já citadas neste trabalho, quando afirma

que “há duas espécies de humorismo: o trágico e o cômico”. O chamado “humor trágico” não

seria esse humor negro que envolve crianças? Não sei, mas que ele se aproxima do HN no que

tange ao surrealismo de Breton, pode ser uma inferência, mas não no que se refere ao tropo

ironia. Talvez, essas ponderações expliquem a não inclusão dos textos AIs nos outros tipos de

214 Da ária Habanera da ópera Carmen de Alexander César Leopold, vulgo Georges Bizet.

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208

HNb.

Esclareço que meus pontos de vista e considerações sobre esse tipo de HNb são

absolutamente empíricos e pragmático-culturais; são fruto de minha moral subjetiva, de

minhas formações (sócio-ideológicas e) discursivas e a relação que tenho com a verdade –

rede não-verdade e intencionalidade - e aceitação.

Por estranho que pareça, o HNb do tipo AIs (Aleivosias Infantis = HNb-AIs) parece

ser uma preferência da Internet. Os sítios estão povoados dessas “absurdidades” e

“aberrações” que trazem implausibilidades que envolvem os menores de idade, e das quais a

maioria das pessoas que conheço não ri, nem esboça sequer um riso amarelo, mas palha. No

entanto, continuam sendo produzidas e impostas. Seria a verdade tão difícil de encarar assim?

Acho que sim: a aceitabilidade fica alijada, ou seja, a intencionalidade não encontra

ressonância e o riso fica esquecido.

Primeiramente, os textos do tipo Aleivosias Infantis (AIs) geralmente são (–R)

(irrisíveis), via de regra, pelas mesmas razões que outros tipos de HNb também o são: elas

dependem da abordagem dispensada à verdade e da relação que os brasileiros têm com essa

verdade. Segundo, porque envolvem a inocência e a ingenuidade, isto é, atribuem a

(supostamente) inocentes e ingênuos seres papéis repulsivos, intragáveis e inconseqüentes e,

às vezes, repugnantes. Finalmente, porque alguns dos textos AIs podem ser multifacetados no

sentido de introduzirem mais de uma violação, o que corrobora minha afirmativa anterior de

que os textos de humor não possuem apenas uma violação. O texto de HNb-AIs não se

enquadraria também na minha classificação texto de HNb-eclético, porque este tipo de texto

obedece a uma seqüência em que a primeira parte do texto não provoca o riso e a segunda o

desencadeia, e o de AIs não o faz. Textos-AIs podem ser construídos com várias violações e,

por serem considerados de humor, sempre obedecem às condições (N+V+S) de Veatch

(1998). Analiso alguns deles abaixo.

Texto de HNb 50

O garoto chega à escola se esvaindo em lágrimas e a professora vai consolá-lo.

r Zezinho! O que houve com você, meu fofinho? (N) - Papai cortou a cabeça dos seis gatinhos que nasceram ontem lá em casa. (V) - Oh. Que maldade! Como se faz uma coisa dessas? Seu pai não tem respeito pela vida dos animais?(N) -Tem não, professora. E o pior é que a mamãe havia me prometido que quem ia cortar as cabeças era eu. (V)

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Acuso a presença de duas violações (V), intercaladas e assinaladas no texto, que se

opõem às duas normalidades(N) e que servem de exemplo para as considerações anteriores ao

texto-piada.

O texto é marcado pela polifonia que define posições de interlocutores. A rede dupla

começa a ser construída a partir da enunciação e continua nos enunciados do personagem-

enunciador “Pobrezinho! O que houve com você, meu fofinho?” (N), e com a introdução da

primeira incongruência “Papai cortou a cabeça dos seis gatinhos que nasceram lá em casa”

(V). Em “Oh. Que maldade! Como se faz uma coisa dessas? Seu pai não tem respeito pela

vida dos animais?” (N), demonstrando comiseração pelos animais e horror pelos atos do pai

do garoto, o personagem-enunciador deseja que o leitor interprete os atos de fala do garoto

dentro da normalidade (N). A rede se fecha com o as falas da criança que introduzem outra

incongruência: “Tem não, professora, e o pior é que a mamãe havia me prometido que quem

ia cortar as cabeças era eu”, violação que evidencia a intenção do locutor-empírico: revelar a

maldade do menino (e de sua mãe). A intencionalidade não terá a aceitação do ouvinte e nem

seu riso, impossibilitados de emergirem, dada a escolha do autor pela explicitação da verdade

no texto. A ausência da Meta ficção atordoa o ouvinte/leitor.

Destaco nos enunciados “[...] E o pior é que a mamãe havia me prometido que quem ia

cortar as cabeças era eu” o uso de “e o pior” para indiciar que a tristeza do garoto não advém

do extermínio dos gatos, mas de não ter sido ele a proceder à carnificina. Os enunciados

proferidos pelos interlocutores são confirmações de minhas afirmativas anteriores sobre

verdade, crianças, adultos e seus ethos. O texto é – R (irrisível), a meu ver.

Retornando a exemplos de AIs com apenas uma violação, analiso o texto abaixo.

Texto de HNb 51

Filhinho, você gosta de sua avó? Gosto, mãezinha. Então coma mais um pouco.

O termo gosta é lido segundo a isotopia da afeição (traço/amor) e a dos hábitos alimentares

(traço/alimento/canibalismo). Os dois planos de leitura são ligados pelo conector gosta, termo

polissêmico que permite a interpretação desses planos. Na última linha, a ausência de nomes

referentes a alimentos (arroz, feijão, verdura), no final do enunciado, garante a ambigüidade.

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Esse jogo lingüístico deveria trazer o riso, mas não o faz, porque a morte da avó e o

canibalismo em família são cuspidos no rosto do ouvinte. Nessa linha de análise estão ainda

os dois textos a seguir.

Textos de HNb 52 e 53

52) Aí, o menino diz pro pai:

- Ô pai, mamãe tá tão fria comigo... - Cala a boca, menino, e continua cavando.

53) Se nascer menina, chama Amália, se nascer menino, chama Oscar, se nascer morto, chama a funerária.

No texto 53, o autor manipula a regência e a polissemia do verbo chamar,

transgredindo a língua. Nas duas primeiras ocorrências o verbo se rege por de (chame-a [pelo

nome] de), preposição propositalmente descartada, e o sentido é dê-lhe o nome de. Na última

ocorrência, o verbo chamar é transitivo direto e seu sentido é requisitar os serviços. Esses são

textos de HNb irrisíveis, no meu ponto de vista, pois há explicitação mais explícita e

explicativa da morte do que as acima, com o perdão da aliteração anti-literária?

Texto de HNb 54

A mãe ralhava com o garoto: - Juquinha, tira o dedo do nariz! Dois minutos depois: - Juquinha, tira o dedo do nariz do seu avô! Logo depois: - Juquinha, se você não tirar o dedo do nariz do seu avô, eu fecho o caixão e tiro você do velório!

Interessante nesse texto é que ele obedece a uma seqüência progressiva de construção

lingüística; seguindo num crescendo, durante o qual o autor vai acrescentando expressões

lingüísticas que ajudam o texto a desembocar na incongruência.

Primeiramente, o personagem-enunciador introduz a normalidade, ato socialmente

inaceitável, mas corriqueiro entre as crianças de certa faixa etária, que recebe a desaprovação

das mães e parentes: botar o dedo no nariz (“Juquinha, tira o dedo do nariz!”). Depois, o autor

acrescenta o complemento “[... nariz] de seu avô!” ambos os proferimentos com ponto de

realização diretivo e modalização ordem. Observe-se que até a introdução de outro

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211

complemento, o ato do menino é comum, normal, por mais que cause nojo. Depois, os atos de

fala do personagem-enunciador preparam a entrada da incongruência com outros

complementos - “Juquinha, se você não tirar o dedo do nariz do seu avô, eu fecho o caixão e

tiro você do velório!”, agora com pontos de realização primeiramente assertivo e depois

diretivo e modalização condição e depois ameaça, para introduzir nua e cruamente a

incongruência do texto: os fatos de o avô estar morto e, no velório, a criança estar colocando

o dedo no nariz do falecido (quando, então, se descobre que o nariz não é o do Juquinha).

A mãe coibir tal atitude sem muita convicção é aspecto descartável para a

interpretação do texto, a despeito de ser fator sociológico-educacional que muitos

considerariam. Assim, nos mesmos moldes dos textos anteriores desta seção, esse é

construído com base na violação, incongruência (o nariz é o do avô morto e a situacionalidade

um velório) à normalidade (criança botar o dedo no nariz.). O texto é palha, (irrisível –R), e o

efeito perlocucional-colateral, repulsa e asco, penso eu.

É comum alguns brasileiros considerarem textos desse tipo como de “mau gosto”

(que, confesso, não sei bem o que é), como o seriam também outros textos de HV nacionais

ou estrangeiros. Muitos de meus patrícios podem pensar que o texto nem de HN é, mas

revelador de “pobreza de espírito” (outra expressão complexa). Outros podem não detectar a

normalidade (N) embutida no primeiro enunciado da mãe (-Juquinha, tira o dedo do nariz!) e

considerar o texto, por isso, inverossímil. iscordo de tais alegações, porque não existem textos

de “mau gosto”, ou “pobres de espírito”; quem lhes atribui o gosto ruim e a pobreza são os

indivíduos, baseados na subjetividade, na pragmática e na moral subjetiva que controlam sua

percepção e reação aos textos. Aliás, qualquer um pode concordar ou discordar, já que isso

serve para corroborar o que eu afirmo sobre esse tipo de texto no início dessa seção: textos do

tipo AIs são todos irrisíveis e suscitam polêmicas e discussões, dada a sua violação violenta,

mas, com certeza, seguem os critérios estabelecidos na teoria de Raskin (1995) e as condições

que regem a fórmula da teoria de Veatch (1998), sendo, por isso, classificados como textos de

humor. Também, o tema morte é explicitamente colocado e a verdade nua e crua é escarrada e

entra coibindo o humor e o riso. O que quer que seja dito, não muda minha opinião; considero

o texto irrisível (–R).

Texto de HNb 55

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212

Mãe, cadê a vovó? Ela morreu queimada, filhinha. Lá dentro? Sim, filhinha. Lá dentro da casa. E por que a gente tá sentindo esse cheirinho de caramelo? Você bem sabe que sua avó sofria de diabetes, filhinha.

Repete-se nesse texto a mesma incongruência dos textos anteriores, mas nesse, em

face da morte da avó, a verdade não é só escancarada, mas tripudiada. Para completar, a vovó

ainda vai justificar o cheiro de caramelo proveniente dos rescaldos do incêndio. Observe-se

que o personagem-enunciador ainda tenta atenuar o sinistro com o diminutivo afetuoso (?)

“cheirinho” do caramelo. Impressiona-me a escolha do termo caramelo, para tentar dar

verossimilhança a um odor que, folcloricamente, exalaria dos corpos de diabéticos, após seu

falecimento. A escolha por outra guloseima não faria o mesmo efeito. A verdade é tão

violenta que nem a inocência de uma criança (normalidade) é poupada. Considero esse texto

também irrisível.

Fecho a parte sobre a análise dos textos de HNb com um texto em que um dos

interlocutores é um eminente Deputado Federal. Deixo-o à mercê dos leitores, sem pedir

desculpas pela ambigüidade da anáfora (–o), no enunciado anterior.

Texto de HNb 56

Você gosta de crianças, Clodovil? Sim, mal passadas, por favor.

“Gosta”, termo conector polissêmico, aqui também é lido sob dois planos de isotopia:

a do afeto (traços/afetividade/amor) e a do paladar (traços/alimentação/carnes). A segunda

leitura é a que causa o humor, mas baseada na interpretação da primeira leitura. O humor é

construído, também, com o uso da ironia glacial de Sua Excelência, através da qual ele diz

para esconder um fazer: odeia crianças. Salvaguardados os objetivos do autor, o trato das

crianças nesse texto não lembra o discurso de Jonathan Swift (Uma Proposta Modesta) na

Antologia de Breton?

Ao final da descrição do HNb e das análises de seus textos, sintetizo sua descrição,

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213

seus tipos, seus temas, princípios, condições e mecanismos de produção, nos quadros abaixo.

HNB

TIPOS TEMAS

Risível 3MS: morte, morbidez e o macabro.

Irrisível 2Ds: doenças e diferenças.

Eclético

Aleivosias Infantis

Quadro 10: Ilustração dos tipos e temas do HNb Fonte: Dados da pesquisa

Enunciatário/Ouvinte/Leitor

Níveis Fatores Compromisso Percepção Ofensa (vê) Humor.

Nível l –V nenhum não não não

Nível 2 M +M não sério sim não sim

Nível 3 M + (+V)

+ V¹ sério sim sim não

Quadro 11: Ilustração da representação da escala de níveis no HNb Fonte: Dados da pesquisa, 2007. Legenda: –V= não violação; +M= Mentira; +V = Violação; +V¹ = Verdade; Fatores: componentes do texto de humor.

Comentário: V = quando não há ocorrência de violação, o comprometimento inexiste e a

percepção escapa. Assim sendo, se não há compromisso, nem ofensa à moral subjetiva, o

humor inexiste. M +M = quando se insere outra ficção no texto ficcional, o

descompromentimento emerge, a percepção é imediata, mas não ocorre ofensa à moral

subjetiva e, por isso, o humor surge. +M+V¹ +V = quando se insere a Verdade no texto

ficcional—HNb, a violação ocorre violentamente, o compromisso com essa Verdade da

violação é sério, a percepção é imediata, a ofensa é séria e tudo isso impede o aparecimento

do humor. Esses três níveis acabam redundando nos princípios para a construção do HNb.

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214

Princípios de construção do HNb

1) A ausência da violação acarreta o descomprometimento, a ausência de percepção, de ofensa e do humor.

2) Quando a Metaficção é utilizada, o texto de humor provoca o riso.

3) A Metaficção é construída com ironia, eufemismo, lítotes e hipérbole etc.

5) Nos temas e subtemas dos textos de HNb, se a violação atingir aos interlocutores dentro da cena enunciativa, o texto provoca o riso; se a violação atingir a outros que não os interlocutores na cena enunciativa, o texto pode ou não causar o riso. Quadro 12: Ilustração dos princípios de construção do HNb. Fonte: dados da pesquisa

Comentário - Textos de humor são ficcionais. A Metaficção implica estratégia discursiva de

introduzir uma ficção dentro de outra para que o humor surja e cause o riso. Mas, se a verdade

é explicitada no texto, este não traz humor e não provoca o riso. Ainda, se os interlocutores

fazem galhofa de suas próprias doenças, diferenças ou morte, o texto provoca o riso, mas se a

galhofa é dirigida a outros fora da cena enunciativa, o texto pode ou não provocar o riso.

Exemplos disso são os textos de Geraldo Magela e os das AIs, entre outros.

A seguir os mecanismos de construção do texto de HNb - risível (+R).

Metaficção

Mecanismos

lingüísticos

Fatores Pragmáticos

Efeito

perlocucional

Não-Verdade

+ antífrase: ironia,

+ eufemismo

+ lítotes

+ hipérbole...

+ Intencionalidade, aceitação,

+Riso

Quadro 13: Ilustração da construção do HNb risível Fonte: Dados da pesquisa

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215

4.5.3 Considerações sobre Objeto

4.5.3.1 Preliminares

No decorrer deste estudo, pude constatar os constantes entrelaçamentos de idéias da

filosofia, da história, da lingüística e do conhecimento acumulado (dado) e, por várias vezes,

sua convergência para um mesmo lugar de encontro. Assim é que se mesclam a teoria de

Raskin (1985) - justaposição dos scripts -, as teorias de Attardo (1991) e Attardo e Raskin

(1994) -, a das FCs e a de Veatch (1998) e as três condições básicas V+N+S (Violação +

Normalidade + Simultaneidade), explicando a construção da maioria dos textos de humor.

Acabam contemplando, também, de alguma maneira, os critérios e componentes de outras

quatro teorias, comentadas diluída e sucintamente neste texto, a saber: do Ataque215, (Freud) a

da Superioridade216 (Hobbes/Bergson), da Incongruência217 (Raskin e Attardo) e a do

Alívio218 (Berger). Todas elas são, explicita ou implicitamente, consideradas nas análises dos

textos deste trabalho. Penso que a mistura delas responderia a várias questões sobre HV, HN e

HNb.

Observo ainda, que na linha da convergência, as idéias de Edgar Morin encontram

sustentação na filosofia de Pascal e de Sören Aabye Kierkegaard, e este na de Sócrates, ao

tratarem o tema realidade dada (histórica), verdade (histórica), liberdade, subjetividade e

conhecimento, e como o pensamento desse filósofo dinamarquês se imiscui no de Morin,

quando ambos tecem considerações sobre realidade. Kierkegaard, por exemplo, pondera que

“exatamente porque cada realidade histórica individual é, contudo [sic] apenas momento na

realização da idéia, ela carrega em si mesma o germe de sua ruína” (KIERKEGAARD, 2005,

p. 227). Vale dizer que a realidade é dependente de sua ruína, idéia com a qual corrobora

215 Teoria elaborada na obra Jokes and Their Relation to the Unconscious. Segundo Freud, o homem tem uma predisposição para a agressão, mas durante sua evolução a cultura impõe a necessidade de se reprimir a agressão. Para Freud, as piadas constituem um modo de canalizar a agressão e o ataque, de modo a serem aceitos socialmente. 216 Hobbes afirma que rimos de alguém para nos sentirmos melhor. Ele chega a dizer que aqueles que usam mais o humor se sentem mais inferiores e por isso sentem grande necessidade de se sentir superiores em relação a alguém. 217 Teoria da Oposição dos Scripts, já tratada em meu texto: vemos humor nas incongruências de scripts que não combinam. 218 Berger afirma que o humor se manifesta no prazer que sentimos ao vermos aliviadas certas condições humanas.

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216

Morin (2006) quando afirma não existir autonomia, nem independência, que as coisas

circulam numa relação de dependência, auto, exo e ecorganizante. Esses filósofos têm

posições coincidentes em relação à fractalidade do conhecimento, das partes, do todo e da

dependência do todo em relação às partes e vice versa, uma recorrência interdependente como

em: a sociedade produz a escola que produz a sociedade, a moral produz o homem que produz

a moral, o homem cria a realidade que o cria etc., tudo historicamente.

As idéias deles também convergem ao tratarem do novo. Morin afirma que “fabricar o

novo pelo novo é estéril. [...] A verdadeira novidade nasce sempre de uma volta às origens; [...]

toda novidade deve passar pelo recurso e pelo retorno ao antigo” (MORIN, 2006, p. 43), como

faz Kierkegaard (2005, p.226-227) ao analisar a ironia: “em cada uma destas viradas na

história existem dois movimentos que devem ser notados. Por um lado, o novo deve vir à luz,

por outro lado, o velho deve ser desalojado [...]”. O dinamarquês explica que o indivíduo

profético surge quando o novo vem à luz, mas que ele apenas pressente o novo, pois não possui

o porvir. Esse novo para ele já está perdido para a realidade em que ele vive. Como, então, se

desaloja, ou se aniquila o velho, questiona o filósofo. Com a própria realidade dada ele anula a

nova realidade dada, “mas o novo princípio está presente somente como possibilidade”. É

óbvio, pois o novo é temporal.

À semelhança de Kierkegaard (2005), eu considero a filosofia mais velha que a

história, na suposição de que o eterno seja mais velho que o temporal, apesar de filosofia

chegar ao mundo depois da história, porque a filosofia dá um passo tão imponente que

ultrapassa o temporal. Em meu trabalho; volto ao conhecimento acumulado da filosofia e da

história para descrever o HNb, naturalmente, não com a mesma competência desses

pensadores e muito menos com a imponência da filosofia.

4.5.3.2 Da metodologia e procedimentos

Minhas análises dos textos de humor não seguem um padrão, pois, no meu ponto de

vista, esse procedimento causaria fastio e acabaria matando a rã, antes mesmo do início de sua

dissecação. Por isso, na medida em que os mecanismos lingüísticos, discursivos e

pragmáticos da construção dos textos de humor sobressaiam, eu os ia descrevendo, sem a

preocupação de me ater aos procedimentos anteriores, mas na certeza de estar recorrendo

reiteradas vezes a alguns deles.

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217

Não tive a pretensão insensata de advogar uma análise exclusivamente lingüístico-

discursiva, em que pese seu foco ser a língua e o discurso. Deslizo, por vezes, nas trilhas

tortuosas do emocional, da subjetividade, porque a aceitação da verdade implica também um

estado psicológico ou emocional e, por isso, a Psicologia. Então, implicaria ainda a

Psicanálise, visto que a verdade recôndita e reprimida se esconde no inconsciente que o

superego castiga. Mas aí, a verdade pode ser também um modo de ver a vida, de vivê-la, e por

isso envolveria também a Filosofia, mesmo ciente de que a verdade é relativa e, se assim o é,

o castigo seria também relativo. No entanto, a verdade é construída e aceita pelo clã, e por

isso implicaria a Sociologia. E se a verdade é cunhada na evolução do homem, implicaria

também a Antropologia. Nessa linha de pensamento, eu iria longe lembrando a

Psicolingüística, a Neurolingüística, a Etnolingüística, a Neurociência e a teoria das

Integrações Conceptuais, se tivesse de recorrer a campos de estudos e a áreas da sociedade do

conhecimento que, de um modo ou de outro, contribuem para explicar o humor.

Portanto, procedo como Possenti (2002), priorizando os aspectos lingüísticos, mas sem

conseguir fugir totalmente aos aspectos citados e por razões já explicitadas. Afinal, o homem,

que é teia tecida laboriosamente e lentamente nas microssociedades, e que também a tece,

reage aos textos de humor a partir dessa tessitura de fios que o entrelaçam e o enredam, mas

que é também por ele enredada. Não é, pois, cabível atribuir-lhe percepções e reações

explicadas apenas pela interferência desses ou daqueles fios. É questão de inteireza, mas

também de consideração pelas partes que formam o todo porque, segundo Morin, ao comentar

o princípio de Pascal219, “o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo, como

o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes” (MORIN, 2006, p. 88). É a

interdependência, novamente.

Nas análises de textos de humor feitas, considero principalmente dois aspectos:

1. A moral subjetiva, que faz o indivíduo reagir de maneiras diferentes, permite ou

proíbe o riso, pois ela é o código que controla o comportamento social e moral do clã. Dessa

moral dependem a recepção aos textos e as reações a eles, o que acaba explicando, em parte, o

porquê do humor, que permanece sempre dependente dos, “achismos” decorrentes da moral

subjetiva. A psicologia, filosofia, psicanálise, sociologia e outras ciências afins devem cuidar

disso. Não analiso meus textos com base nelas, embora, às vezes, reitero, resvale por elas,

pois as expressões lingüísticas por si só não portam sentido. 219 “Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, s partes”. (PASCAL apud MORIN, (2006, p. 88).

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218

2. As técnicas de construção lingüística do texto de humor - que não enveredam pelo

aspecto acima (1), - cuja análise tem como função explicar o como do texto de humor, tarefa

de que devem se encarregar as análises da língua e do discurso que contam com o suporte da

pragmática.

Descrevo o HNb, divido-o em dois temas: 3Ms (morte, macabro e morbidez), em 2Ds

(doenças e diferenças) e na categoria AIs (Aleivosias Infantis) e classifico seus textos como

risíveis, irrisíveis ou ecléticos. Advogo que a maioria dos textos de HNb que fazem rir é

construída com o auxílio de uma estratégia discursiva que denomino Metaficção - a ficção na

ficção, a mentira na mentira. É, no entanto, devo admitir que a descrição e a classificação do

HNB e as análises de textos aqui feitas encerram em si mesmas uma minúscula partícula de

conhecimento no vastíssimo universo que o HNb descortina. Porém, se pelo menos vier a

instigar um ponto de partida para novas reflexões, principalmente no sentido de auxiliar o

docente no ensino da língua materna, já terá cumprido honestamente seu papel.

4.5.3.3 Sobre Metaficção

Embora a Metaficção seja um recurso lingüístico-discursivo-pragmático recorrente na

maioria dos textos de HNb risíveis, o que já se constata desde as primeiras produções do humor

negro pelos articulistas-jornaleiros e os revisteiros da Belle Époque, como apontado em em

Saliba (2001), não há como garantir que ela estará sempre presente em todos os textos de HNb

risíveis; a análise do texto 26, à página 192, demonstra isso. É impossível demarcar totalmente

seus limites, seu alcance. No que tange, ainda, à sua estrutura, apontei os mecanismos que

marcam os contornos de sua construção e esses são sempre usados para se introduzir a mentira.

Do mesmo modo como não há meios de se garantir a presença da metaficção nos textos

risíveis de HNb, não se podem também controlar recepções, percepções e reações, pois a

Metaficção, como a metanarrativa e o metadiscurso do locutor220, também opera na interface

da subjetividade, no interior das formações discursivas (oriundas das formações sociais e

ideológicas). A metaficção também funciona no nível da sedução e da reflexão, conservando

220 Aqui entendido como delineado por Ducrot: “a partir do momento que falamos, falamos de nossa fala. O metadiscurso do locutor é um jogo com o discurso, aliás, no interior do discurso” (DUCROT apud AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 93), que permite àquele locutor auto corrigir-se, construir uma imagem, confirmar, solicitar etc.

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219

traços de hesitações e indecisões próprias e (in)definidas pelo ser humano, todos regidos por

padrões resultantes das forças culturais e sociais que não são obedecidas de modo equânime e

pacifico. Por vezes, ignoram-se, suplantam-se ou se rompem barreiras e, por essas razões não

se medem percepções e reações. Afinal, “como pegar uma nuvem e mantê-la no chão, como

segurar a onda do mar na praia?”

Isso significa que, na medida em que a abrangência da Metaficção pudesse ser a da

“validade eterna”, ou da “validade absoluta” para todos os textos de HNb, a questão só poderia

encontrar resposta, se não entrasse no terreno da subjetividade humana; segundo Morin, que

não penetrasse nas tramas da “complexidade humana que se esconde sob as aparências de

simplicidade” (MORIN, 2006, p. 91) e sob a insondável carapaça externa e interna do ser

humano com seus territórios sacramentados, seus padrões e códigos de moral, honra, ética etc.

A percepção do humor, a reação a ele e a construção dele com ou sem Metaficção seriam,

como afirmado anteriormente, “enfants de bohème”.

O que apresento em minha tese não escapa dessas dificuldades. No entanto, procurei

mostrar que a maioria dos textos de HNb pesquisados, analisados e construídos com a

Metaficção, geralmente, provoca o riso, quando construídos com a ironia, o eufemismo, a

lítotes e a hipérbole etc., esta última quase sempre associada ou em conluio com um dos outros

elementos. O eufemismo e a lítotes parecem desempenhar tranquilamente seus papéis no

“amaciamento” das violações, facultando o riso sem grandes discussões. A ironia, muito bem

discutida por Kierkegaard em sua dissertação, porém, como se já não bastasse toda a polêmica

que a cerca, desestabiliza literalmente, porque “as determinações morais são, a rigor,

demasiado concretas para a ironia” (KIERKEGAARD, 2005, p. 223), pois ela nada tem em si

de reconciliador, como o cômico, mas de dissimulador.

Como afirmo anteriormente, uma coisa parece certa: a ironia é um tropo que, grosso

modo, consiste em dizer o contrário do que se quer fazer o destinatário compreender e, se a

voz na enunciação do texto de HNb explicitar a verdade, a maioria dos ouvintes/leitores não

rirá. Diante disso, a única precaução que posso tomar é retomar à não-unanimidade do efeito

perlocucional-riso ou gargalhada, ao não-consenso em relação à recepção e à reação aos

textos de humor e, em particular, aos de HNb. Afinal, o ser humano percebe a vida em

variados matizes de luzes e cores. A cor do mundo, portanto, depende da ótica do sujeito já

que o exterior estará sempre refletindo o interior e vice versa, nessa estrada de mão dupla

onde os humanos auto-eco-organizadores221 transitam produtores e produtos, entre a

221 Relativo ao princípio da auto-eco-organização, cunhado por Edgar Morin: o ser humano é produtor, produto e reprodutor, autônomo e dependente, condições inseparáveis do ser humano e, por isso, são auto-eco-

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220

independência e a autonomia dependentes, pascalina, kierkegaarde e morianamente.

4.5.3.4 A língua do humor e a do HNb

Existiria uma maneira de se analisar o discurso e as estruturas lingüísticas usadas para a

construção do texto de HV ou do de HNB? Sim, é o que faço neste estudo. Existiria uma língua

específica para se construir o texto de humor ou o de HNB? Haveria um conjunto de

mecanismos que gerasse uma gramática de reconhecimento do humor, ou mesmo padrões fixos

e explicitados que nos garantissem o entendimento do texto de humor?

Não. Não há formas de medir a dimensão em que se circunscrevem o HV e o HNb

linguisticamente; e pode-se fazer isso com outros gêneros de textos/discursos quaisquer? Essa

medida não é possível, não porque os mecanismos usados para construir o HNb sejam

específicos de sua construção, porque não o são, já que as expressões lingüísticas que os

autores usam são recursos reelaborados e não condições ou critérios específicos para a

construção de textos desse subgênero do humor. Esses recursos são os mecanismos usados na

construção de quaisquer outros textos da língua (sintaxe, gramática, morfologia, fonologia,

polissemia, ambigüidade, sinonímia, antonímia, metonímia, metáfora, redundância,

incongruência, negação, conectores de redes de causalidade e causa-efeito, comparação,

pressuposição, implicação, repetição, aspas, ironia, eufemismo, lítotes, hipérbole etc.).

A circunscrição fica barrada, porque o homem, que carrega dentro de si o sábio o louco,

o lúdico, o trabalhador, o poético, o prosaico, no dizer de Morin, citado por Isabel Petraglia

(2007), e está em constante mudança, revela uma complexidade que não faculta garantir

percepções e reações diante de textos de humor (ou de outros quaisquer).

Então, para a construção dos textos e do discurso do HNb há uma manipulação do

código lingüístico, no sentido de uma remontagem, de uma reconstrução. Os autores contam

também como concurso de aspectos extralingüísticos como os psicológicos, a moral subjetiva,

os saberes prévios empíricos e epistemológicos dos sujeitos que, amparados e deflagrados pela

língua, resultam num produto risível ou não. Assim sendo, não há uma língua específica para a

construção do texto de HNb, em verdade, para a de nenhum tipo de texto. Se existisse tal organizadores, envolvem sua autonomia na dependência da cultura/língua. Essa organização se regenera permanentemente a partir da morte de células, que ao final, determinará a morte do homem; morte e vida são complementares e antagônicas. (MORIN, 2006)

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221

língua para a construção do HNb, ela seria uma língua humorística negra, o que não faz

sentido, a não ser como outro jogo lingüístico com a ambigüidade.

Os autores utilizam a Metaficção como estratégia lingüístico-discursivo-pragmática de

construção do HNb risível e, para isso, e também para construir qualquer texto de humor, eles

fazem escolhas específicas entre os inúmeros recursos que a língua lhes oferece e os

reelaboram. Dependem, pois, sempre, de sua própria intencionalidade (questão complexa da

qual várias teorias tratam, sem ainda ter solucionado) e de sua criatividade, mas devem levar

em conta a percepção, aceitação, reação e os saberes anteriores do ser humano, porque muitos

desses recursos se situam “no nível da palavra dada (contextualizada) e nunca no nível da

língua”, como é o caso da ironia. (DUARTE, 2006, p.30). Esses não seriam também assuntos

para se discutirem no convívio escolar?

Vejamos neste texto de HNb como as condições de construção do humor (VEATCH,

1998, a Metaficção e a pragmática se comportam.

Num carnaval no Nordeste, cantando em Fortaleza, no alto de um trio elétrico, uma cantora despenca de lá de cima, após bater a cabeça num cabo de eletricidade e estatela no chão, preta e mortinha. O humorista do site Humortadela fuzila: - “Quando li essa notícia, não pude deixar de pensar na canção: atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu...”.

Normalidade: a morte da cantora, após a queda do alto de um trio elétrico em evento

carnavalesco no Nordeste.

Violação: transgressão aos padrões sociais e cristãos no que tange à reação diante da

morte da moça.

Metaficção: introdução da ironia na verdade sobre a morte da moça, para veicular um

suposto descaso do personagem-enunciador pelo falecimento da jovem. O autor usa versos de

uma popular canção baiana que operam como amortecedores no texto-piada. Essa estratégia

lhe faculta apenas aludir à morte, afastando o horror de sua realidade, enfocando a atenção

apenas sobre a canção. Quem pensaria em música diante de tal sinistro? Os autores de textos

de HNb-risível.

Esse é ou não é um modo irônico-metaficcional de escamotear o tema morte para

encará-lo, como já comentado por Duarte (2006, p. 30)? Assim, a construção do texto de HNb

exige muita criatividade, competência lingüístico-comunicativa e inspiração, e esta “não é

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222

banana que plantando dá” 222.

Concluo de meu estudo os seguintes pontos:

1) O HNb distancia-se do de Breton em vários aspectos e se aproxima em alguns.

2) As origens do HNb remontam ao humorismo dos anos 1920-1950 e à literatura

brasileira.

3) A tipologia do HNb circunscreve-se em risível, irrisível, ecléticos.

4) A classificação-temática do HNb engloba: 3Ms (morte, mórbido, macabro) e 2Ds.

(doenças, diferenças) e AIs.

5) A construção do HNb-risível é feita com a Metaficção (estratégia lingüístico-

discursiva).

6) Não existe uma língua específica, com regras próprias e exclusivas para a

construção do HV ou do HNb.

4.5.3.5 O humor, o humor negro e a voz feminina.

É óbvio que evolução e mudanças radicais ocorrem com o passar dos séculos. Na

Idade Média, se a Inquisição abole o HV, o HNb não tem vez, e o humor fica no limbo para

retornar na Renascença, por via também dos clássicos, mestres de ambos os gêneros. No

limbo fica também a participação da mulher no mundo da escrita do humor no Brasil, já que

as mulheres surgem apenas como personagens nos textos cujos focos são as “louras burras”.

Na escrita do HV no mundo ocidental, aponto a escritora inglesa Behn que viveu no século

XVII e que, segundo Lobo (1997) 223 , é pioneira no cenário literário europeu. No do HN do

século XX, duas vozes femininas se fazem presentes na Antologia do Humor Negro de

Breton: Eleonora Carrington e Gisèle Pressinos, mas apenas na edição de 1945.

É estranho constatar certa negligência pela escrita feminina no Brasil, durante bom

tempo, pois, no cenário que compõe a literatura do Brasil do século XIX, inúmeros nomes,

hoje esquecidos, fazem literatura no país. Cito Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém de

Melo, Ana Ribeiro de Góis Bittencourt, Josefina Álvares de Azevedo, Emília Moncorvo

222 Parte do refrão de uma marchinha de carnaval dos anos 1950. 223 Lobo se refere a Aphra Benn (1640 - 1689), primeira escritora inglesa a se sustentar com o trabalho literário.

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223

Bandeira de Mello (Carmem Dolores), Maria Benedita Câmara Bormann (Delia).224 No

entanto, entre elas, somente um vestígio do fantástico-surrealista surge na figura, talvez

desconhecida por muitos, da poetisa, romancista e cronista cearense Emília de Freitas225, a

primeira brasileira a pertencer a uma academia de Letras, a do Ceará.

A exemplo de Machado de Assis, que em suas crônicas escreve textos com o tema

surrealismo-fantástico os quais, de certa forma, subsidiam o HNb, Emília escreve um único

romance226 fantástico e maravilhoso (no sentido literário dos termos de transcendência ao

“real-normal”); ela dá um subtítulo curioso ao livro “romance psicológico” o qual, com

certeza, se impõe pelo fato de a autora ter consciência das inovações introduzidas em seu livro

e que o distinguem dos demais de seu tempo.

A trama do “romance psicológico” de Freitas é novelesca, inusitada e com ousados e

marcantes traços ficcionais, o que atribui a seu livro um caráter inovador e a posiciona entre

as pioneiras do gênero fantástico, no Brasil. Não só por isso seu nome merece menção neste

trabalho, mas também, porque seu romance espelha a situação da mulher nordestina no Brasil

da época. Nesse aspecto, seu livro se assemelha à escrita das outras vozes femininas

mencionadas, porque elas ecoam um levante contra a situação da mulher nas regiões e no

período em que vivem. Traço semelhante entre essas escritoras é a abordagem de temas como

o indianismo, abolicionismo e erotismo, através dos quais se insurgem contra o status quo

vigente.

Destaco ainda nessa escrita-protesto Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), a Pagu,

apelido dado por Raul Bopp (e modo como a chamava seu primeiro marido, Oswald de

Andrade) à poetisa, jornalista, e militante política. Pagu é muito conhecida por sua vida

conturbada e desregrada para os padrões da época, mas pouco citada, a meu ver, como poetisa

e escritora (talentosa) de críticas literárias. No entanto, nenhuma das mulheres mencionadas

escreve textos de humor, muito menos de humor negro.

Essas ocorrências são evidências de que a história do humor é a história da evolução e

da involução do homem, já que revela como se negligencia a escrita das mulheres,

menosprezando sua posição de escritoras, negando-lhes também o estatuto de gênero,

atribuído apenas aos homens, já que eles, ao se referirem às mulheres, lhes atribuem apenas a

designação sexo (feminino) (LOBO, 1997). Pelo visto sobram temas para se discutirem

224 E ainda, Amália dos Passos Figueiroa, Serafina Rosa Pontes, Ignez Sabino, Joaquina Júlia Navarro da Cunha Meneses de Lacerda, Júlia Maria da Costa, Anália Emília Franco, Adelaide de Castro Alves Guimarães, Narcisa Amália, entre outras. 225 Emília Freitas (1855-1908) romancista, jornalista e cronista cearense. 226 A Rainha do Ignoto (1899).

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224

academicamente, nos moldes sugeridos nos trabalhos sobre a AD aqui mencionados.

A história do humor revela sem surpresa alguma que ele, e também grande parte da

veiculação da produção da literatura dita culta do século XIX, parece ser propriedade

exclusiva da escrita masculina. Isso fica comprovado também nos escritos dos autores

nacionais selecionados para embasar a argumentação teórica de meu estudo e que abordam os

temas humor e riso. A exceção de Possenti (2002), que cita o trabalho de Delia Chiaro

(CHIARO apud POSSENTI, 2002, p. 13-140), os demais, como Alberti (2002), que traça a

história do riso sem mencionar mulheres e Saliba (2002) que retrata detalhadamente a

representação humorística na história do Brasil e em que pesem os ângulos originais

abordados sobre o país e a visão do brasileiro, não contemplam as vozes femininas. O tema

não merece discussão?

4.5.3.6 Finalizando...

Espetáculos circenses do final do século XIX e do início do XX exibem humanos

“diferentes”, mediante pagamento de ingresso, e se encaixam bem na Filosofia-definição do

HN de Breton. Nesses dias do passado, esses shows desnudam, no meu entender, dois tipos de

aberrações: os que expõem esses portadores de aleijões e os que pagam para vê-los. Isso

também tenderia a acabar, porque evoluímos. Será? Não sei. No Brasil deve haver pessoas

que riem e outras que não riem dos textos da Antologia de Breton; há muita gente que ainda

não consegue ver a verdade da morte, de uma aberração física ou moral, ou a imagem de uma

criança metendo um dedo dentro do nariz de um morto escarrada em seus rostos, e ainda rir

disso. Daí, a inaceitação de alguns tipos de textos de HNb, reação já prevista e contornada

pelos autores de textos de HNb, desde as suas primeiras e múltiplas manifestações entre os

anos 1920-1950.

Há pessoas que se insurgem contra os textos de HNb, porque eles as incomodam por

seu caráter de crueldade ou de implausibilidades. Deveria esse tipo de texto, condenável para

alguns, ser abolido? Se assim o for, deveriam sê-lo também todas as piadas sobre nordestinos,

negros, latinos, judeus, alemães e portugueses, para seus autores não serem mais tarde

considerados abomináveis. Talvez melhor fosse, então, abolir toda piada de HN. Dever-se-ia,

também, abolir quaisquer filmes que abordem o humor sexista, racista, macabro, grotesco ou

mórbido, porque nossa gente não consegue rir deles? Não, porque não rimos, por exemplo, de

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um leproso que deixa realmente sua mão na rede no voleibol, ocorrência implausível; rimos

do jogo lingüístico que veicula a mentira aliada à outra mentira que nos leva a crer que a mão

de alguém poderia se desprender do antebraço e ficar real e literalmente presa a uma rede.

Se alguns textos de HN fossem abolidos, dever-se-ia abolir também os do HNb. E ao

se abolir qualquer anedota ou livro desse gênero, e qualquer filme que explore este tipo de

humor considerado condenável do ponto de vista de alguém, acaba-se por abolir a catarse

social e com ela a liberdade de expressão. Desde a Antigüidade que o homem procura essa

catarse, tanto é que furar os próprios olhos é visto com bons olhos, pois se imagina que isso

traga alívio. O HNb é uma forma de catarse também. Quem nunca riu de cegos, surdos,

mudos e outros tipos de deficientes ou de diferentes, em piadas-metaficção, em tiradas de

efeito, pegadinhas e em filmes? Haja vista o Mr. Magôo. Afinal, muito há ainda a se

considerar sobre o HNb. Talvez, ele nem seja o objeto da minha narrativa, mas sim a

exacerbação simbólica, o delírio, porque, felizmente, resta muito escândalo a ser provocado, e

muito a ser transgredido, e rido.

Rindo, ou não, talvez aprendamos a lidar com os vários temas. Se conseguirmos

aceitar certas diferenças como normais e rir, então aprendemos que elas podem ser normais,

tão normais como nós mesmos somos. (Somos mesmo?). Descalabro seria eu rir de uma piada

de “mau gosto” (se existissem genericamente, no meu ponto de vista, seriam as do tipo AIs),

no sentido de denegrir o próximo ou assumir um comportamento diante dos outros que é em

si um achincalhe, uma afronta ao outro.

Não são comuns no Brasil os shows de humor negro. Quem já assistiu a um show desse

subgênero, ou já viu um anúncio convidando para esse tipo de show? Eu, mas não no Brasil.

Assisti ao musical Sweeney Todd227, de tema macabro e mórbido, único musical, que eu saiba,

do gênero HN. No ano passado, leio na Revista Veja228 a notícia de que o controvertido e

competente diretor de cinema, o grego Costa-Gravas, lança uma comédia de HN sobre o

desemprego. O filme chama-se “O Corte”, baseado no livro homônimo do americano Donald

E. Westlake. O enredo conta a história de um alto executivo de uma empresa fabricante de

papel, demitido devido à redução dos custos. Desempregado por dois anos, decide matar o

ocupante do seu ex-cargo e os demais possíveis candidatos a essa vaga que ainda deseja. O

título metafórico alude a todos os cortes no filme: o dos empregados e o das vidas humanas. Se

227 Sweeney Todd, the Demon Barber of Fleet Street (Sweeney Tood, o Barbeiro Demoníaco de Fleet Street, do compositor americano Stephen Sondheim. Na trama, Sweeney mata as pessoas para com sua carne recheio de tortas, contando para isso, com a ajuda de uma velha amiga. 228 De 23 de agosto de 2006.

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a moda pega, haja cemitérios e crematórios! E existe outro espaço melhor para discutir isso que

não o escolar?

Definir HNb é tarefa árdua; definir riso é quase impraticável. O HNb e o riso não

andam de mãos dadas, não são parceiros inseparáveis. A ocorrência de um não implica a

ocorrência do outro; a morte de um pode não implicar o falecimento do outro. Para mim, além

de oxímoro que dialética e lingüisticamente anula as diferenças, unindo-as, o HNb é curto

circuito lingüístico-mental que pode causar boas gargalhadas. E esse riso desregrado, solto

parece não ser preocupação no HN de Breton, daí a razão de eu chamá-lo de oxímoro.

Finalmente, uma questão que chama minha atenção nos textos de HN e nos dos de

HNb: a função didático-social do texto de humor tão combatida por alguns e tão defendida por

outros, mas tão importante para o tema de meu Parentético Conclusivo.

Bretonianos à parte, pois não aceitariam minhas afirmativas, grande número de textos

da Antologia de HN cujos temas visam, em geral, à subversão e sublevação contra o

pensamento, a sociedade, a literatura e as artes da época, acabam se enquadrando, não só no

dizer de Kierkegaard (2005, p. 215) sobre linguagem expresso em

[...] “na medida [sic] que falo, o pensamento é a essência e a palavra é o fenômeno. Esses são dois momentos absolutamente necessários, pois, se eu tivesse o pensamento sem a palavra, não teria o pensamento, e seu eu tivesse a palavra sem o pensamento, também não teria a palavra".

mas, também, nas palavras de Platão citado por Kierkegaard (2005, p. 215): “todo pensar é um

falar“, que John Austin complementaria com todo falar é um dizer (“dizer é fazer”),

enunciados que desembocariam na intencionalidade, questão conflituosa como mencionado..

Assim, sem as polêmicas sobre o que viria primeiro o pensamento ou a palavra e na

certeza de que quando digo, faço, corroboro Kierkegaard, quando complementa esses discursos

afirmando que a linguagem revela o sujeito. O filósofo dinamarquês arremata na sua

dissertação, citando a regra de Hegel: “fala para que eu te veja” 229 (KIERKEGAARD, 2005, p.

213).

Essas idéias se assemelham às de outros filósofos da linguagem, como Wittgenstein,

por exemplo, e são complementadas pelos trabalhos de sociólogos contemporâneos. Relembro

Bourdieu-Passeron (1970), Baudelot-Stablet (1971), Snyders (1977), Althusser (1998) e Snyders, que em seus trabalhos tratam do poder da linguagem, do modo como ela opera como 229 Loquere ut videam te.

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227

instrumento de fascínio, dominação e de inculcação de valores simbólicos e materiais. Porém,

esse poder da linguagem também gera a reação e a luta de classes, sendo a escola o espaço para

se engendrarem essas lutas. Nessa linha de pensamento, outras instâncias de inculcação e de

fazer dizendo são as metanarrativas e os metadiscursos já comentados. Poderia se filiar a essa

legião de personagens o dramaturgo irlandês Bernard Shaw que na peça Pigmaleão também

aborda o poder da linguagem como meio de exercer poder e de ascensão social. O professor

Hyggins, em certo trecho do texto teatral diz à Eliza: “a linguagem te entrega” 230. É ou não

verdade que as idéias se entrecruzam no tempo e no espaço?

E, ainda na linha de raciocínio sobre pensamento e palavra, nos textos da Antologia de

Breton, quando as palavras dos autores parecem não corresponder ao seu pensamento, ou à sua

opinião, é porque eles fazem uso da ironia para ficarem livres em relação às outras pessoas e a

si mesmos, mas eles são os donos de seus discursos. Competente e magistralmente, é o que

fazem, entre outros, Baudelaire, Sade, Synge, Vaché, Carrington, Gide e Swift231, este já citado

várias vezes neste escrito, porquanto no meu entender hors concours, ao se posicionar com

ironia glacial, frontalmente contrário à desordem social e econômica vigente que gera a fome

na Irlanda do século XVIII. Cada um deles com seu estilo tece sua rede de ironia, mas de um

modo que “esteja consciente de que a aparência dele [do irônico] é o contrário daquilo em que

ele se apóia, e que saboreie essa inadequação” (KIERKEGAARD, 2005, p. 217). Esse irônico

dos textos da Antologia pode suscitar um sorriso, também irônico do leitor brasileiro; é um

irônico quase lírico, por vezes socratiano-kierkegaardiano, ora dramático, ora solgeriano232 e,

às vezes, leliano233. Os textos de HNb, que nada têm de literários, sabemos, também usam

formas de ironia, aquelas mesmas usadas nos textos do HN da Antologia para que os sujeitos

atrás dela se escondam ou batam em retirada. Entretanto, nenhum dos dois, nem o HN, nem o

HNb podem se evadir da função didático-social que perambula e passeia em seus discursos, no

aguardo de alguém que dela faça uso.

Textos de humor são tecidos em rede-jogos, e na trama desses jogos em redes,

linguagem, humor e riso se entrelaçam mágica, sub-reptícia e misteriosamente. O que sustenta

230 “Speech gives you away” Pygmalion (1946, ato 2, cena 6), usado no sentido de “te revela, desnuda”. E Eliza é a personagem aluna e florista da classe trabalhadora que toma aulas com o professor para se livrar do dialeto londrino não–padrão cockney que usa. 231 Em que se aparenta credulidade e benevolência, fala com o leitor de modo amigável, sem respeitar o terrível argumento que apresenta, isto é, a concepção, criação e oferta das crianças pobres como iguarias em banquetes. 232 Toma consciência da ironia estética e filosoficamente. O cavaleiro metafísico do negativo, no dizer de Kierkegaard (2005, p.215), que ainda afirma: “sua ironia não se configura de maneira nenhuma em oposição à realidade”. 233 “[...] a ironia retórica, a que serve ao engano e à trapaça [...] a intenção da ironia humoresque é manter a ambigüidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo [...]”, (DUARTE, 2006, p. 30)

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a magia desse entrelaçamento de fios, creio, é a manutenção do mistério da atração entre eles,

mas não acima da verdade, nem com a inclusão explícita dela, pelo menos na cultura do

Brasil. Em que melhor reduto construir esse conhecimento–rede que não o escolar?

Isso posto, evoco uma ideal (sonho, desejo, só Freud explicaria) antigo: investigar e

descrever o HNb, lembrando que, de um jeito ou de outro, o verdadeiro ideal não está

primeiramente à frente; ele está atrás, porque é força que me impulsiona, mas está também

adiante de mim, na medida em que é meta, porém, está em mim, por ser parte de mim e do

todo de mim e esta é a sua verdade. Foi assim que o persegui.

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229

5 PARENTÉTICO CONCLUSIVO Não basta ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. (FREIRE, Paulo) 234

Conclamo os enunciados de Jacques Allain Miller (1999, p. 37), “o mal-entendido é a

essência da comunicação”, os de Heráclito citado por Morin (2006, p. 55) “se não esperas o

inesperado, não o encontrarás”, e as idéias de Sören Aabye Kierkegaard sobre ironia para

acrescentar indagações à epígrafe inicial desta seção:

- Qual o papel de Adão nessa história?

- Seria Eva nesse “ler” uma fiscal da natureza, uma funcionária do Ministério da

Agricultura, ou seria ela apenas um componente da aliteração, ou somente um elemento do

jogo dos fonemas de um dos métodos de alfabetização?

- Qual a intencionalidade de Freire, o valor ilocucional dos atos de fala do

personagem-enunciador e a do locutor-empírico e qual efeito perlocucional esses locutores

desejam provocar no ouvinte/leitor?

O ato comunicativo se sustentaria com base no equívoco, diz Miller, na possibilidade

de alternativas outras de solução, frente a opiniões outras. Já a citação de Heráclito deixa clara

a idéia de que o inesperado não é tão inesperado assim, mas previsto pela contrafactualidade

com o esperado, porque este lá está. Isto é, no fato, conforme Morin (2006), de que não há

independência, nem autonomia, mas interdependência. Finalmente, a ironia glacial

kierkegaardiana do discurso de Freire que critica a ingenuidade do texto aliterado (Eva viu a

uva), forjado para o método global de alfabetização (como O Livro de Lili) 235. Sugere o

redirecionamento desse ensino para uma leitura desafiadora, hegemônico-ideológica e social,

como a que se lê também na obra de Pêcheux e Foucault, e como sugerida por Fairclough

(2001), e este, certamente, sustentado pelos escritos de Marx236, Bourdieu-Passeron,

Baudelot-Stablet, Snyders, Althusser, já citados neste estudo, entre outros. Apesar das

diferenças de idéias entre Fairclough e esses pensadores, elas ou convergem em alguns

aspectos, ou um avança o pensamento do outro, em relação a temas como contradições na

Educação e na sociedade, reprodução de valores simbólicos e materiais, luta de classes,

234 Paulo Freire, em Educação na Cidade, 1991. 235 Cartilha - manual de leitura escrito por Anita Fonseca (1940). 236 O Capital (1867).

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hegemonia, ideologia e transformação.

Nos capítulos anteriores, narro a história do humor e do riso da Antigüidade à

contemporaneidade, comento produções sobre a história do humor, analiso teorias de HV e a

teoria de HN de Breton para demonstrar que ela não coaduna a produção do HNb. Conto

como este surge da história da formação da sociedade brasileira da Belle Époque e dos anos

20 a 50 e da primorosa literatura brasileira dos séculos XIX e XX, sempre analisando nesse

percurso alguns textos de HV, HN e HNb. Finalmente, descrevo o HNb, classifico-o em tipos,

temas e subtemas, procedendo à análise de vários de seus textos para justificar essa

classificação. A que se prestaria tudo isso?

Morin, citado por Petraglia (2007) pondera que a construção do conhecimento não

precisa ser amarga, sisuda ou chata, que ela pode e deve ser alegre e prazerosa237, pois o

conhecimento é o responsável pela libertação e emancipação humanas. Além disso, o filósofo

francês aponta uma questão “demente” 238 que considera fundamental: é preciso repensar a

função e os objetivos precípuos da educação, ou seja, que sua tarefa não seja apenas preparar

os cidadãos para o mercado de trabalho, auferindo-lhe diplomas e títulos, mas facultar-lhes

descobrir seus sonhos e maneiras diferentes de realizá-los, o que Morin considera (aprender

com) prazer e alegria. Morin acrescenta que, a educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar e assumir a

condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional. (MORIN, 2006, p. 65)

Por essas razões, e por outras defendidas neste Parentético239 Conclusivo, advogo a

inclusão sistemática dos textos de humor nos livros didáticos para um trabalho efetivo de

análise de sua língua e de seu discurso, por considerar esses textos um material atraente,

descontraído que motiva e aguça a curiosidade, suscita o bom humor, traz diversão, e para que

se acredite que se aprende a analisar, analisando e a interpretar, interpretando. Pensar o HV, o

HN ou o HNb verbal e não-verbal isoladamente neste contexto e nesta reflexão sobre o

ensino, equivaleria a restringir a utilização e o valor de cada um deles. Por isso, sugiro o

237 Isabel Petraglia ao comentar o texto de Edgar Morin: Complexidade, transdisciplinaridade e incerteza: A escola e o Respeito á Condição Humana. (PETRAGLIA, 2007). 238 No sentido de que o ser humano é homo sapiens, mas também homo ludens, faber e demens. Deve por isso, além de brincar, aprimorar sua criatividade, seu senso crítico e estético, sua sensibilidade e sua capacidade de percepção e introspecção. 239 Originalmente definido no plural como “elementos que podem posicionar-se livremente entre os constituintes oracionais e que na escrita são sempre separados por vírgulas". (PERINI, 2005, p.120)

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trabalho com o gênero humor e com seu subgênero negro, verbais e não-verbais. Acredito que

tal ensino agilize o conhecimento sobre a estrutura conceitual e formal da linguagem.

Um trabalho com as estruturas dos textos humorísticos deve compreender a análise de

fenômenos no plano lingüístico-discursivo, conduzir à integração desses fenômenos e ao

processamento da significação lingüística mediante discussão e a partir dos saberes anteriores.

Isso, porque corroboro Morin (2006), quando afirma que o objetivo final da construção da

“cabeça bem feita” 240 seria beneficiado por um processo de ensino-aprendizagem

interrogativo, inquisidor, que partisse do ser humano e que não destruísse curiosidades

naturais. O trabalho com o texto de humor para isso se serve sem maiores dificuldades, além

da opção de oferta de textos que não sejam apenas aqueles ditos sérios. Afinal, no dizer de

Minois (1998), o riso é um caso muito sério para ser deixado para os cômicos; e eu acrescento

que ensinar sobre a língua é um caso muito sério para ser deixado nas mãos de textos e de

professores sérios.

Lembro que o ensino prescritivo privilegia a aquisição da norma de prestígio, mas

acaba erradicando a de sem prestígio, que o ensino descritivo acata essa norma, descreve-a e a

explica detalhadamente, mas negligencia as características estruturais das formas a serem

evitadas. Pleiteio, pois, um ensino produtivo, que se paute pela aquisição de novos hábitos de

análise lingüística, de novos modos de dizer, perceber e ler, priorizando também a norma

prestigiada de comunicação, cuja aquisição parta da conscientização dos próprios alunos que,

interagindo com seus pares, identificam aqueles que pertencem aos grupos detentores da

norma-prestígio. Além disso, que esse ensino vise ao entendimento de que língua é um “bem

simbólico” 241, valioso capital no “mercado das trocas lingüísticas” 242 e todos os indivíduos

podem dela se apropriar e utilizar.

Apesar de ter manuseado livros didáticos que trabalham com textos de humor e de ter

encontrado escolas em poucos recantos do país que adotam essa prática, pondero que, uma

abordagem-analítica menos “ingênua” dos mecanismos lingüístico-discursivos dos textos de

humor pode desenvolver a competência lingüística e ampliar a leitura do mundo. Advogo esse

ensino com base nas teorias visitadas, e destacando a importância do uso social da leitura e da

formação do leitor autônomo. Esse ensino se desenvolverá com discussões sobre os valores

hegemônico-ideológicos e sociais, que complementarão a análise dos textos de humor. Esses

240 Alusão ao título (e conteúdo) do livro A Cabeça Bem Feita, (MORIN, 2006). 241 Termo cunhado pelos sociólogos Pierre Bourdieu e Jean Passeron (1970). Outros bens simbólicos seriam a cultura, o conhecimento, a criatividade etc. 242 Expressão cunhada por Pierre Bourdieu, (1977). Como a língua é um bem, é mercadoria e tem valor negociável no mercado lingüístico.

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procedimentos também contribuirão para o desenvolvimento de um pensar responsável e para

a transformação do cidadão como sugerido por Foucault (DELEUZE, 2005) e Fairclough

(2001). Enfim, defendo um trabalho com o texto humorístico escrito, no dizer de Marisa

Lajolo243, que parta “do mundo da leitura para a leitura do mundo”. A isso chamo de

abordagem de ensino de língua produtiva, ao mesmo tempo transformadora e formadora de

leitores proficientes e escritores competentes.

Enfim, proponho a construção do cidadão que se forjaria do ensino fundamental ao

universitário, que despertasse consciências, partindo de questionamentos como: o que é o ser

humano, a vida, a sociedade e o mundo, provocando o pensamento investigativo-inquisidor.

Em síntese, um ensino que não oferecesse respostas prontas e acabadas.

Sabemos que o ensino da língua portuguesa tem enfrentado problemas sérios e

insucessos para alcançar o objetivo primeiro de fazer com que os alunos leiam a contento e

estejam aptos a interpretar e discutir textos. De modo geral, a culpa por essa situação recai

sobre o velho adágio: metodologias ineficazes, materiais didáticos inadequados e certo

despreparo de uma parcela dos profissionais do ensino do português. Se esse despreparo

existe, ele pode ser decorrente de uma graduação que deixa a desejar. É ciclo vicioso e

viciado.

Mas de quanto preparo precisaríamos para interpretar um texto de humor? O quanto se

pode atingir em relação à interpretação, à construção do texto de humor, ao se trabalhar o

funcionamento da língua? Como se monta um texto de humor?

Japonês vai ao cartório registrar filho. Quer que o filho se chame Cagashi. O tabelião protesta, porque o sobrenome da família já era Mijashi; isso é demais, pois a criança vai sofrer quando crescer, o tabelião alega. Conversa daqui, conversa dali, nada. Até que o tabelião já cansado de discutir nomes, diz: - Sugiro João. O japonês pára e encantado responde: - Isso; escreve aí Sugirojoão.

:

A trama humorística começa a se construir com o processo de formação das palavras

Cagashi e Mijashi, escolha morfológica do autor que aplica a aglutinação e funde os verbos

“cagar e mijar”, com o perdão da linguagem popular, com uma sílaba final (-shi) que os

brasileiros acham ser usada em muitas palavras do japonês. O produto da aglutinação causa

horror ao enunciador-tabelião, ocorrência amparada pela situacionalidade, o contexto do 243 LAJOLO, Marisa. Do mundo da Leitura para a Leitura do Mundo, Ática, 5ª edição, São Paulo, 1999.

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cartório.

O resíduo não-verbal riso advém da ambigüidade fonológica introduzida no ato de

fala do personagem-enunciatário “Sugirojoão”. O ouvinte-leitor compara o comportamento

dos fonemas de certos termos do japonês com os do verbo sugerir do português. A

ambigüidade e a fonologia são as guilhotinas verbais que acionam a arquitetura conceptual,

deflagram o solavanco mental e apontam para o como do humor. A ambigüidade é,

obviamente, desfeita na modalidade escrita. O valor ilocucional dos enunciados do

personagem-enunciador é captado pelo personagem-enunciatário como modalização-

sugestão, e é isso que torna o texto risível, porque na oralidade Sugirojoão é entendido pelo

japonês como uma só palavra, um nome próprio para seu filho, sugerida pelo tabelião.

Em resumo, um texto de humor é construído com um momento normal e outro

“anormal”, entre os quais as coisas parecem não combinar. Essa “descombinação” é

deflagrada por recursos lingüístico-discursivos. Na verdade, os textos de humor nos guiam em

uma trilha para depois, subitamente, nos levar a outra. Assim, no texto-piada anterior, quanto

às condições de construção do humor, a normalidade (N) - primeiro script - é um tabelião

sugerir um nome (João) a um japonês que deseja registrar seu filho em cartório; a violação

(V) - segundo script - é a ambigüidade fonológica que permite ao japonês pensar que

Sugirojoão é um nome próprio. As duas condições ocorrem em simultaneidade (S).

Chama-se desfecho - “punch line” 244 - a parte lingüística que introduz a violação - a

que Raskin (1998) chama de gatilho da piada - que deflagra o humor. Essa língua dirige o

pensamento, este salta e, na verdade, ao se interromper o conjunto de coisas nas quais se

pensava, surge uma criatividade crescente na tentativa de construir o sentido, fator salutar

para o desenvolvimento das habilidades de interpretar e criar textos.

Sugiro então, além do João, que a solução dos impashis citados sobre o ensino do

português não passe novamente por minicursos ou oficinas de ensino de leitura e escrita, pois,

nunca em nossa educação ofereceram-se tantos eventos desse tipo para se aperfeiçoarem os

profissionais, sem que se chegasse a um resultado positivo. Os alunos continuam nem

escrevendo, nem lendo melhor.

Paradoxalmente, porém, essa pluralidade de ofertas de cursos ocasionou, sim, certa

mudança, no sentido, não só de melhor qualificar os docentes, mas também de se amaciarem

as metodologias do ensino da gramática que permanece, ainda, de algum modo travestido de

construtivista-descritivo e ainda voltado para o ensino rígido das regras da língua. As 244 Katrina Triezenberg (2004) chama “punch line” de “jab line” e ambos os modificadores dos dois sintagmas são contundentes significam soco, literal e metaforicamente.

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mudanças, porém, não contemplam, amplamente, a utilização da gramática descritiva e não

abrangem a contento a leitura do discurso ou a análise de textos que trate a questão da

organização e do funcionamento dos processos enunciativos, ou dos mecanismos e das

estratégias de construção dos textos e de seu sentido.

Apesar, pois, de eu ter assistido aos esforços substanciais inegáveis para a melhoria do

ensino de nossa língua nessas últimas décadas, acredito que o ensino do português pode ser

mais efetivo, se pautado pelo aprender a ler, escrever e interpretar textos, ao invés de se

insistir com um tipo de ensino menos significativo que não confere competência em leitura e

não forma uma “cabeça bem feita”.

Sei que este é tema antigo, mas ainda polêmico e meio insolúvel. Entretanto, acredito

que saber sobre a língua seja fundamental e imprescindível para alunos dos cursos de Letras,

lingüistas, profissionais do ensino de português que operam em todos os níveis do ensino, ou

para aqueles que dela se utilizam por razões profissionais. Ao usuário da língua competiria

expressar-se oralmente e por escrito com correção e competência e reutilizar socialmente esse

conhecimento lingüístico adquirido no período escolar e ao longo da vida.

Falar e escrever bem são objetivos que se atingem por via da leitura, da análise e

interpretação de textos quaisquer, literários ou não, ficcionais ou não, curtos ou longos,

alegres ou tristes, engraçados ou não, e também da escrita. Aprende-se a escrever, escrevendo;

aprende-se a interpretar interpretando. Não se ensina a ser democrático, pregando a

democracia, mas praticando-a. Isso significa que o ensino do português deve levar em conta

que se aprende a ler, lendo.

A linguagem não é somente um instrumento de comunicação, como já se anunciou

numa perspectiva mais restrita. Mais que isso, como parte da própria natureza humana, a

língua perpassa suas buscas em todas as áreas do conhecimento e da vida cotidiana; ela é

reino que instaura a comunicação e promove a integração. É o nível de consciência lingüística

que acompanha e direciona a percepção e, é através dela, principalmente, que o homem

apreende a definição de si mesmo, que estabelece parâmetros para se conhecer, investigar e

compreender o mundo e seus semelhantes, pois, é nessa imersão que somos constituídos

como sujeitos.

A linguagem se estrutura através de signos, os mais diversos, em sistemas que seguem

seu curso histórico e social, num enredar-se de signos na cultura. Nesse mesmo sentido, o

significado não se isola, limitando-o à linguagem verbal, ou a outras linguagens quaisquer. O

significado encontra-se inserto nos múltiplos sistemas semióticos, dentro dos quais e através

dos quais o estar o homem no mundo se configura interativamente. Do mesmo modo, o ser

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humano se concebe numa profusão de semioses que também vão muito além do verbal e que

com ele tecem redes complexas de interação e significação.

Minha proposta de ensino com os textos de humor insere-se nesse contexto mais

amplo da linguagem e dos atores que a e nela se constituem. Esse quadro possibilita o

trabalho com a linguagem em sua dimensão discursiva, cultural, midiática, viva e dinâmica e

não no stricto sensu. A utilização dos textos de humor salienta o caráter constitutivo que o

meio pode exercer na recepção dos enunciados e na construção de seus sentidos. O

conhecimento mais aprofundado das peculiaridades de cada texto permite refletir os processos

lingüístico-discursivos de produção envolvidos, reflexão/refletividade, mais apuradamente.

Ao me referir ao termo processos, quero enfatizar a importância do trabalho com esse

caráter dinâmico de todos os enredamentos, quanto aos sentidos que se criam, cruzam,

mantêm-se em circulação, escondem-se, transformam-se e que se definham na textura textual.

Esse trabalho deve procurar fazer entender que os textos são construídos com base nos

eventos da rede social. Ao me referir a (processos) discursivos, focalizo a dimensão das

interfaces dinâmicas que remetem a formas de semiose e a processos sócio-históricos mais

amplos. A análise discursiva dos processos lingüísticos visa ao estudo dos processos

discursivos vinculados à informação tão úteis à pesquisa e ao ensino.

O trabalho didático com os textos humorísticos pode, ainda, desembocar na descoberta

de talentos, na formação de novos humoristas e artistas, se esse trabalho se mover para além

de uma leitura prazerosa e amena, lembrando sempre que, segundo o poeta americano Ralph

Emerson alhures, ”o talento sozinho não consegue fazer um escritor. Deve existir um homem

por trás do livro”. Para isso, a leitura dos textos de humor deve objetivar a formação de

cidadãos críticos e capazes de detectar a presença das várias formações discursivas embutidas

na teia sócio-ideológica materializada no texto, desnudando-a para eles, mas também nela os

inserindo.

Em síntese, o ensino proposto deve atentar para o que está além dos ingredientes

lingüísticos. Essa metodologia permite, ainda, apontar alguns elementos de ruptura e

continuidade, ao se passar da análise lingüística para a do discurso e vice versa.

Penso que olhar a realidade sem ponto de vista, é não ter ponto de vista algum. É

nessa linha que também vejo a questão da leitura: formar opinião, fazer questionamentos,

poder repensar o mundo. É nesse contexto que acrescento além das idéias de Pêcheux e

Foucault, as de Fairclough, porque o sociólogo inglês considera a língua como o veículo que

“conecta com o social sendo o domínio primário da ideologia e sendo tanto o interesse

principal como o lugar em que têm lugar as lutas de poder" (FAIRCLOUGH, 1989, p. 15).

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Assim, sua vertente de análise crítica do discurso, entendendo “texto” como “a materialidade

lingüística e semiótica das práticas sociais”, propõe problematizar as maneiras de ler.

Fairclough, como vários outros autores, considera a opacidade e a transparência como

características próprias dos textos, mas também possibilidades de se enxergarem formas de

significação que dificilmente seriam vistas a "olho nu", ou seja, que são invisíveis sem os

dispositivos teóricos da análise crítica político-social. Ele deseja que se forme o cidadão para

ter visão e, conforme Swift, citado por Breton (1997, 17), “visão é a arte de ver coisas

invisíveis”. Os textos do gênero humor constituem material propício a um tipo de análise que

pode facilitar essa visão, pois, até certo ponto desestabilizam as noções de significação, já

que o discurso do humor, ao que parece, sem fazer grandes esforços, pode conter

contradição. É na direção dessa desestabilização dos significados - na desequilíbração e

subseqüente re-equilibração, conforme Piaget alhures -, considerada como fator

preponderante para a construção do conhecimento, que o trabalho com os textos de humor

deve ser orientado.

Assim, aqueles que se interessarem por desenvolver práticas sociais de leitura por

meio da análise lingüístico-discursiva, objetivando a re-estabilização dos significados, fazer

uma re-leitura de seus aspectos sócio-históricos e ideológicos, e fazer compreender as

relações autor-texto-leitor, o texto de humor se presta bem a esses fins. De quebra, a análise

de textos de humor viabiliza uma avaliação espaço-temporal sobre a evolução, a cultura e o

pensamento humanos. O texto de humor permite desenvolver um trabalho disciplinar,

interdisciplinar, multidisciplinar e pluridisciplinar; é só escolher e, a opção por quaisquer

desses tipos de trabalho deve, impreterivelmente, levar em consideração os saberes que os

indivíduos já possuem.

Finalmente, a essas potencialidades do texto de humor, acresçam-se outras vantagens

que vêm sendo apontadas pelos teóricos do HV e pelas pesquisas da Psicologia, como

promover amizades, reduzir o estresse, afastar a tristeza e a depressão e energizar. Porém, o

que me parece bastante relevante é que o trabalho com o humor pode estimular a criatividade.

Para isso, além da análise dos textos de humor, existem técnicas e procedimentos que podem

ser ensinados e aprendidos, como demonstrei.

Espero, ainda, que meu trabalho ajude a esclarecer mais sobre o funcionamento da

língua portuguesa do Brasil e sobre as relações entre a linguagem como: processo,

enunciação, gramática num sentido amplo, atividade de interação social assumida como

exercício pelo sujeito, enfocando o impacto dessas relações nas soluções (dos problemas) do

ensino da língua. É, nas soluções, pois já se enfocaram por demais os problemas. Por isso,

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para fechar este estudo, deixo, a título de ilustração para minhas falas anteriores, dois textos:

Texto 1

Dois astronautas russos e dois americanos vão ao espaço. Na hora de anotar as coisas, percebem que as canetas esferográficas não funcionam fora da força gravitacional da terra. Pânico e disse que disse. Voltam a terra e os americanos aflitos, logo procuram os maiores cientistas e técnicos do mundo para inventarem uma caneta que funcione no espaço. Anos de pesquisa, uma peleja, uma labuta; milhões de dólares são gastos e nada! Os russos decidem usar lápis.

A conclusão do texto parece-me óbvia: não basta apontar problemas e apresentar

propostas de soluções mirabolantes e complexas que podem redundar em caminhos mais

espinhosos, e caros para a solução dos problemas. Melhor é usar o lápis dos russos e

abandonar as tentativas de invenção da ultra-sofisticada e hiper-tecnológica caneta americana.

Texto 2

Figura 9: Quadro Ilustração de situação complexa da vida insolúvel para muitos. Fonte: Toda Mafalda, Quino, 2006.

O texto dessa tira seqüencial de Quino é marcado pela ironia glacial que aqui se

identifica com o conceito de ironia da tese número XIII da dissertação de Kierkegaard (2005,

p.19): “a ironia não é, propriamente, desprovida de toda sensibilidade ou dos movimentos

mais ternos do ânimo, mas é uma amargura por o outro gozar daquilo que ela cobiça para si

mesma”. Com essa ironia, o personagem-enunciador afirma algo no enunciado (Agora, por

favor, ensine pra gente coisas realmente importantes) e o locutor empírico diz outra, nega na

enunciação (a senhora não nos está ensinando coisas importantes). Os jogos de negação e

afirmação servem para exemplificar os casos, nada incomuns, de crianças, adolescentes,

jovens, e também de adultos inteligentes que aprendem a lidar com situações complexas da

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vida, como a aquisição da linguagem, as transações monetárias, a montagem de softs

complexos, os jogos de computador e de adivinhação, as regras e práticas esportivas etc, de

difícil nível de desempenho, sem, no entanto, conseguirem disponibilizar esse comprovado

grau de potencialidade para suplantar sua condição de analfabetismo e baixo letramento. Isso

não é um aspecto digno de discussão?

A lingüística estuda a língua cientificamente, mas a lingüística não pode ser um fim

em si mesma. Sua nomenclatura é por vezes complexa, não devendo, portanto, ser impingida

catedraticamente, ou muito menos assimilada mediante memorização de lista extensa,

mirabolante e nada auto-explicável. Além disso, deve-se evitar o ensino com excesso de

informações teóricas, quase sempre acompanhadas dessa nomenclatura. Portanto, se a análise

dos textos de humor se transformar num veículo para assombrar os estudantes, melhor alijá-la.

O que deve prevalecer é o velho bom senso e a consciência de que o cidadão já possui uma

língua ao ingressar à escola e que essa se constrói de dentro para fora.

O que proponho, enfim, é a utilização dos textos de humor para uma análise

lingüístico-discursiva que estimule os alunos a lerem para aprender mais sobre a língua e a

questionar o mundo e transformá-lo. E, se eles conseguirem produzir textos de humor, ou se

descobrirem humoristas ou comediantes, melhor ainda. Acredito que o trabalho com os textos

de humor pode se prestar a tudo isso. Aos professores, por sua vez, resta lembrar que, “em

qualquer aula, o riso tem o efeito, pelo menos em curto prazo, de transformar um ouvinte frio

num parceiro caloroso e solidário em busca das verdades” (SALIBA, 2002, p. 12). Quem

quiser tirar a prova, analise textos de humor, lingüisticamente, discursivamente,

pragmaticamente, dentro e fora da sala de aula.

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