-No Reino de Duas Senhoras-A Analise Do Rito

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  • NO REINO DE DUAS SENHORAS: A ANLISE DO RITO DO AXEX E DA REESTRUTURAO DO TERREIRO IL OM

    OY (SO GONALO, RIO DE JANEIRO) Rodrigo Pereira

    Contextualizao do objeto analisado Localizado no bairro de Vista Alegre (municpio de So Gonalo/RJ), o Terreiro

    Il Omo Oy funciona desde os anos de 1970, tendo a senhora Nola do Nascimento Farias (mais conhecida com Nolia dos guns) como sua lder espiritual do terreiro e como matriarca cosangunea da maioria dos filhos da casa (ver anexo 1). A casa pertence a nao ketu e possui grandes ligaes com o Terreiro Il Ax Op Afonja de So Joo de Meriti e o Terreiro Il Ax Op Afonja de So Gonalo do Retiro (Bahia). Logo, toda a base mtica da casa nag-iorub. Essa identidade nag pode ser percebida na distribuio do espao na casa (espao sagrado x espao mundano), na representao das matas com o uso de pequenas reas ou vasos com plantas rituais, na organizao das datas das festas e nos fundamentos ligados ao culto a ancestralidade (Rocha, 2000).

    Em junho de 2010 a ento Senhora da casa falece inesperadamente, dando incio a uma fase liminar de transio e reorganizao do culto. neste contexto que a presente pesquisa tem se desenvolvido via observao participante, levantamento de histria oral e anlise e reviso bibliogrfica relacionada ao candombl e a dramas sociais (citam-se, por exemplo, os estudos de Maggie (2001) e Contins (2009) como estudos que partiram da anlise dos conflitos e dramas sociais em locais de culto afro-brasileiros).

    Atualmente, aps a reabertura da casa em julho de 2011, as atividades comeam a retomar a rotina: festas regulares, realizao de consultas, trabalhos/ebs, limpezas na casa e nos quartos dos orixs (ases). Contudo, entre os meses de junho de 2010 a julho de 2011 uma srie de acontecimentos conflituosos entre os membros da casa no que se refere sua liderana, a manuteno do ax de Dona Nolia, a permanncia na casa e a possvel dissoluo desta, permearam o rito morturio axex (o qual Dona Nolia tinha direito a trs, sendo um de um ms aps seu falecimento, um de seis meses e um de um ano, devido a seu tempo de feitura no santo, cerca de cinquenta anos. Todos eles com sete dias de durao. Conforme Rocha (2000) a realizao de trs axexs de sete dias uma cerimnia feita apenas para as pessoas com mais destaque na casa cargo ou tempo de santo) e, consequentemente, foram resolvidos ao longo deste perodo pelo prprio rito e a reconstituio que esse realiza na casa. Assim, o axex pode ser

  • entendido como a ida para o mundo espiritual da ialorix que faleceu onde se decide, via consulta prpria pessoa pelos bzios, se os seus assentamentos de orixs, roupas e objetos sero descartados, guardados ou distribudos. Conforme Rocha (2000, p. 103):

    Os ritos do axex indicam a necessidade de cortar os vnculos do morto com este mundo, por isso seus pertences so destrudos e levados para um local designado pelo jogo. Os assentamentos de orixs que o morto possua em vida podem ir com ele ou ficar de herana para algum, ou para a casa. Ao fazer a entrega do carrego, fica consumada a separao entre o morto (e seus pertences) e este mundo. No caso de um axex de sete dias, a entrega do carrego feita no sexto dia. No ltimo dia canta-se o pad com o dia claro e, em seguida, procede-se limpeza da casa para afastar qualquer possibilidade de permanncia da morte no seu interior.

    A pesquisa, portanto, tem se desenvolvido observado esta reestruturao e como o rito do axex e a subida de uma nova ialorix contriburam para a manuteno do culto, das pessoas e, consequentemente, a permanncia da casa aberta e em funcionamento. Destaca-se ainda como o ax, categoria mgico-religiosa, acionada durante o axex e nos discursos dos membros da casa para evidenciar erros ou acertos do rito morturio, bem como o perpasse que este conceito tem em toda a cosmologia nag-iorub no candombl, alm de contribuir na compreenso das solues que o prprio rito realizou no grupo.

    Contextualizao do Campo Micro Poltico no Terreiro Sabe-se que o candombl pode atuar como um local ou agente que promove

    status, poder e dinheiro (Landes, 2002, Fry, 1982, Birman, 1995), no apenas em aspectos relacionados ao gnero e suas correlaes, mas como no campo micro poltico do poder e regncia da casa e sobre seus membros e consulentes (Maggie, 2001 e Contins 2009).

    Tendo como pressuposto que o plano material reflexo do plano sagrado (Rocha, 2000 e Beniste, 1998), pode-se perceber que, tal como os orixs possuam afinidades e desamores entre si (Prandi, 2001), assim tambm as pessoas tendem a interiorizar e a exteriorizar tais mitos, costumes e traos de arquetipia de seus orixs no dia-a-dia.

    Assim, no apenas do campo mtico-religioso, mas tambm do plano fsico das relaes humanas, o candombl se apresenta como um local privilegiado para os dramas sociais (Turner, 2008) se manifestarem sobre a forma de um mecanismo de exposio-compensao e supresso. Tal mecanismo forma-se ao longo da vida da casa e da formao/iniciao de seus membros e tende a exprimir a relao de filho(as)-de-santo e

  • pais/mes-de-santo que conseguem expandir seu carisma ao ponto de expressar e impor dominao sobre um grupo, trazendo para junto de si um grupo de pessoas de comum interesse de dominao e criando um grupo de dominados que tendem, constantemente, a buscar meios e momentos de expressar seu poder, desejo de mudana no esquema micro poltico e indignao.

    Se observarmos as festas e os ciclos de festas das casas se perceber como tais festividades a determinados orixs tendem a expressar a dominncia de um grupo, bem como a aceitao desta pelo grupo dominado. Por outro lado, ao observarmos as festas em que os dominados festejam seus prprios orixs, encontrar-se- ali uma expresso performtica destes membros sob a forma de danas, roupas, convidados e aspectos gerais das festas (alimentao e bebidas) como forma de expressar seu desejo por mais destaque, poder e status.

    Ocorre que, sob a tica do grupo que consegue dominar a casa, a festa tende a ter um duplo sentido: primeiro a reiterao do poder quele grupo, consagrando o orix e a pessoa, numa unio dos planos espiritual e material, durante aquela festa. O poder, assim, reforado entre aquele campo situado de dominao. Em segundo lugar, se observarmos os mecanismos religiosos do candombl, veremos que cada orix sempre tende a expressar seu respeito ao lder da casa quando vem em pblico danar e ser festejado. Desta forma, o plano espiritual expressa que tambm os orixs tendem a respeitar aquele grupo de domnio e a reforar o seu status e carisma.

    Sob a tica dos dominados, uma festa poder ser o momento que, sob a dominncia do grupo opositor, a pessoa tem uma maior liberdade, status e poder ao festejar seu orix. O que lhe permiti sair temporariamente da dominao, sob a gide do tempo da festa, e expressar seu prestgio e poder aos demais membros. Contudo, novamente, os mecanismos da prpria festa fazem com que aquela entidade preste respeito ao lder da casa, reforando e retomando a dominao, bem como expressando a submisso da pessoa e da entidade quela parcela que comanda e domina a casa.

    Assim, cada festa um tempo demarcado em que se relembra a vida do orix e seus feitos, reencenando liturgicamente com danas, cantos e performances sua vida e atos (Rocha, 2000). Se, portanto, pensarmos que esta festa usada no esquema acima descrito, ela tende a expressar no apenas o plano espiritual do culto e do terreiro, mas tambm os conflitos da vida terrena entre seus membros. Portanto, teremos encontrado um campo social demarcado por dramas sociais (Turner, 2008) de poder e conflito.

  • Tal campo se expressa no mecanismo de exposio-compensao e supresso, onde a parcela dominada tende a encontrar na exposio de si e de seu orix uma forma religiosa e poltica de manifestar tanto o desejo pelo poder, como a vida e o culto ao orix. Tal performance de dana, cantos, roupas, convidados, comidas e bebidas tende a ser a arena (Turner, 2008) onde tais insatisfaes so trabalhadas e contidas pelos prprios mecanismos religiosos (onde o orix presta continncia ao dirigente da casa, sob forma de respeito seu governo) e pelos mecanismos polticos da casa, que, aps a exposio do orix e da pessoa, tende a realoc-lo no posto submisso, pois cada filho-de-santo presta deveres hierrquicos casa e a sua liderana.

    Assim, resumidamente, poderamos perceber que a prpria dinmica da festas e seu continuo ciclo de festejos na casa permite pessoa demonstrar seu poder ou seu desejo por poder e indignao. Faz-se assim um ciclo de exposio-compensao e supresso. A prpria religio, apegada fortemente a valores como a hierarquia, respeito ao babalorix e a ialorix e o respeito hierarquia entre os orixs, tende a criar este duplo movimento de exposio e de supresso e/ou dominao, mas que se mantm sob a gide do sagrado e da manuteno da casa.

    Em casos de falecimento do babalorix ou da ialorix este ciclo tende a ser rompido j que o elo de maior fora (e dominante) se rompe com a morte, o que tende a deixar o grupo que dominava exposto a uma situao liminar tanto de morte de um membro da casa (aqui seu lder maior), como pelo vcuo no poder que pode levar a disputas internas pelo comando da casa e pela dominao dos membros. Instaura-se, nesse contexto, um novo conflito pelo poder e pelo domnio. Cada grupo, at a realizao de todos os ritos fnebres do axex, tende a buscar formas de dominar o campo social da casa.

    Como a hierarquia dever ser revista e como ela a espera da indicao ou subida ao posto (previamente indicado antes da morte) de um novo lder ou Senhora, o perodo de luto da casa e a reabertura que se segue aps o axex, este rito tende a expressar no apenas a liminaridade da morte da pessoa, mas tambm da expresso do poder, status e domnio sobre os membros da casa. neste campo situado que os atores sociais tendem a buscar tanto no prprio culto, como em acordos polticos de apoio pelos membros da prpria casa e de outras, meio de reiniciar o ciclo de domnio (exposio-compensao e supresso dos adversrios).

    Findada a liminaridade do axex, com seus rituais de morte e vida para aquela pessoa que falecera e a indicao de um novo lder, seja pelos bzios no If, ou seja,

  • pela indicao em vida do lder antes do falecimento, inicia-se um novo reinado na casa e a manuteno do poder em ou para novos grupos ou pessoas ou mesmo a continuidade deste junto ao grupo que j estava no poder, tudo depende dos acordos e do embate entre as alas pros e contra o ax vigente no terreiro.

    Assim, a reabertura da casa tende a expressar novamente o drama social (Turner, 2008) que vigora na casa entre seus membros e que tem nos rituais da festas seu mecanismo de extravasamento da dominao e expresso pessoal de status temporariamente visvel.

    O modelo acima descrito foi obtido atravs do trabalho de campo realizado junto ao Terreiro Il Om Oy desde 2010, tambm por entrevistas realizadas junto aos membros e a anlise da bibliografia sobre candombl no Brasil. Apesar de ser um modelo retirado de uma casa especfica, ele tem viabilidade para ser aplicado aos demais locais de cultos afro-brasileiros (e aqui poderia-se destacar em especial a umbanda) de forma generalista, respeitando as particularidades de cada local, de seus membros e das relaes micro polticas existentes.

    Dada as generalidades obtidas por grandes pesquisadores do candombl (Augras, 1983; Beniste, 1998, Bastide, 2001; Carneiro, 1991, Nascimento, 2010; Pereira, 1979; Santos, 1984; Ramos, 1970; Rocha, 2000; Rodrigues, 1977 e Verger, 1981 e 1993), somados a estudos de caso que permitem perceber as dinmicas deste culto (Fry, 1982; Birman, 1995 e Maggie, 2001) este modelo, sendo aperfeioado, pode ser utilizado em vrios contextos e casas de candombl para estudos de micro polticas aliados a antropologia (o que nos permite dizer que este modelo seria uma antropologia micro poltica aplicada ao candombl).

    O Terreiro Il Om Oy e a sucesso de reinados de duas senhoras com o axex Turner (2008) se prope a analisar o rito e a sua liminaridade, perodo em que no

    h um status e leis prvias e nem vindouras, onde o que ontem era liminaridade hoje est estabelecido, o que hoje perifrico torna-se o central de amanh (TURNER, 2008, p. 14), em contextos simblicos, trazendo a passagem da natureza humana para a cultura e suas representaes sociais (perspectiva de Lvi-Strauss no Estruturalismo) como fundantes da percepo social, da ao dos sujeitos e da estrutura social (percebida no pelo vis estruturalista).

    Assim, as aes humanas so aes geridas por smbolos e percebidas pelo recorte da ao de ritos de vida ou ritos de passagem (Turner, 2005). Esses ritos so

  • fundamentais para a sociedade, pois preparam os indivduos para ocuparem lugares ou estados sociais (Turner, 1974 e 2005) dentro da sociedade. Tal perspectiva no exclui certa viso superorgnica de Durkheim (1999), mas permitem ao pesquisador observar o desenvolvimento e a histria de uma sociedade e/ou grupo como uma sucesso de fases nicas e no repetidas nas quais qualquer movimento o resultado direto de inspiraes que nada devem ao passado.

    Sob esta gide que a pesquisa sobre o ritual do axex no Terreiro Il Om Oy tem se desenvolvido. Interessa-nos, sob o recorte de doze meses, analisar como este rito, que tem sua eficcia para a pessoa que falecera, que, no caso, era a Sr da Casa, Dona Nolia do Nascimento, agiu muito mais como reconstituinte do grupo e como mediador de uma situao conflituosa entre duas partes (que foram identificadas como oposio ou contra e a favor ou mantenedores do ax e do sistema poltico vigente).

    Resumidamente o perodo anterior ao axex pode ser descrito como um perodo de relativa paz e funcionamento da casa. Dona Nolia fundara sua casa com a ajuda de sua irm (Nilsa Cruz) e, desde ento, comeara a crescer como casa. Acolhendo pessoas que vinham cumprir suas obrigaes de santo, raspar e se tornar membro da casa e os diversos consulentes que freqentavam a mesa de jogo de Dona Nolia. De incio sua casa teve um rpido crescimento, principalmente devido a sua famlia cosangunea que passou a freqentar a casa e se tornaram membros, mas desde a dcada de 1990 a casa no fez mais nenhum filho, fato que pode acarretar problemas com a continuidade da casa.

    Tal continuidade sempre se baseou na manuteno de membros consanguneos dentro da casa, mas tal peculiaridade nunca passou despercebida pelos entrevistados durante a pesquisa. Os que no eram membros da famlia sangunea de Dona Nolia se preocupavam com o excesso de familiares sanguneos na casa e como isso poderia ser prejudicial, pois estes se configuravam como um grupo slido e que, tendo Dona Nolia como matriarca, podiam dominar as aes, as decises e os rumos da casa, sem ter de se preocuparem com a minoria dos contra o seu poder.

    Assim, a partir deste campo situado entre prs e contra a manuteno de um ax de Dona Nolia, que a pesquisa e os fatos ocorridos na casa podem ser descritos. Com a morte da ialorix em junho de 2010 logo se iniciaram os conflitos liderados abertamente por dois ogs na casa. De um lado estava Beto e toda a linhagem sangunea de Dona Nolia e os que apoiavam este grupo, do outro Paulo seguido por mais duas mes-de-santo, uma pai-de-santo e alguns poucos membros da casa (ver anexo 3 com

  • grupos que se formaram na casa). O conflito deu-se inicialmente pelos gastos com o enterro e com a realizao do axex e que, conforme votao onde a maioria do grupo de Beto ganhou, os gatos seriam divididos por todos os membros atuantes da casa em cotas iguais e com vencimentos mensais.

    A discusso sobre os gastos, contudo, escondia o descontentamento de Paulo e seu grupo com a permanncia do grupo de Beto na casa. A situao se agravou com a morte doe Dona Nolia, pois a mesma em vida j havia escolhido sua filha carnal Jaci para continuar o governo da casa. Na viso de Paulo, e incluem-se relatos das mes e do pai-de-santo colhidos durante o processo observado, Jaci no tinha um pulso firme para o comando e muito menos ax para manter a casa. A religio e a categoria ax (energia vital presente em todas as coisas e que anima no apenas os seres vivos, mas a relao deles com os orixs) foram acionadas para encobrirem um descontentamento poltico com a possvel permanncia do grupo dos prs na casa. Outro fato de destaque obtido com as entrevistas foi a indicao de Sandra (que faz parte do grupo dos contra) para assumir a liderana da casa devido a ter um ax mais forte e ter mais pulso para a liderana, tambm foi acionado a sua filiao com Oy (orix) que era a mesma de Dona Nolia, fato que permitiria uma maior pureza na continuidade do ax com Sandra.

    Com o inicio do rito do axex (em junho daquele ano) os prprios caminhos e o tempo do rito permitiram no apenas uma resoluo, mas como a permanncia da casa aberta e em funcionamento. A adoo da perspectiva de Turner (no que tange o simbolismo e os ritos de passagem) permitiu a pesquisa perceber como um rito tem um poder sobre os homens de organiz-los no apenas simbolicamente e no plano espiritual, mas como pode acomodar aes polticas e acordos entre as vrias partes que compem um grupo ou uma sociedade.

    A crise com a morte de Dona Nolia coloca em risco a manuteno da communitas (Turner, 1974, 2005 e 2008), pois afeta questes no apenas de morte e vida (smbolos ambguos), mas tambm da perpetuao desta enquanto o rito do axex no se instaurava. Fora os tabus presentes no candombl, as relaes sociais e de estados (Turner, 1974 e 2005) esto em crise. Esta fase anterior a liminaridade do rito marcada pela possibilidade da quebra do grupo via disputas de poder. Tal conflito absorvido e resolvido apenas quando se inicia o axex.

    Assim, percebe-se que o rito liminar do axex possibilita no apenas a transio de estado do esprito de Dona Nolia (que se encaminhou para transformar-se em gun espritos mortos de lderes da casa que passam a zelar por esta), mas reconfigura a

  • arena poltica da casa levando o grupo dominante a se manter no poder. A regenerao defendida por Turner (1974 e 2008) liga-se no apenas a uma fase do rito, estando, portanto, no plano sagrado, mas tambm se liga ao campo fsico ou profano da micro poltica da casa e de seus membros.

    Para Turner (1974, p. 116) o conceito de rito liga-se a toda mudana de lugar, estado, posio social e idade, caracterizando-se pela mudana de um estado culturalmente reconhecido para outro ou para uma condio estvel e recorrente. O sujeito ritual passa, portanto, a ter caractersticas que no o permitem ser o que era e muito menos ser o que vir a ser, ele encontra-se suspenso ou em fase de aprendizagem de um novo estado social.

    Nesta pesquisa optou-se por cruzar as fases do rito de passagem em Turner (1974 e 2008) com a situao de Dona Nolia e os membros da casa. Pretende-se ter uma viso total da liminaridade do rito e de seu poder regenerador politicamente observado na casa, permitindo assim perceber o fluxo religioso e o fluxo poltico com o rito (ver Tabela 1).

    Tabela 1. Fases dos Ritos de Passagem em Turner (1974 e 2008) e os seus equivalentes no Terreiro Il Om Oy e nos membros da casa

    Fase Conceito Dona Nolia Casa/membros Separao ou ruptura

    Abrange todo o comportamento simblico que significa o afastamento do indivduo ou do grupo de um ponto considerado fixo e anterior na estrutura social ou o afastamento do conjunto de condies sociais (um estado).

    Aps sua morte seus assentamentos so retirados de dentro dos quartos de orixs, pois ela no se encontra mais viva, e so colocados na frente do Ib ou quarto dos guns. A alma dela no transmite mais a energia do orix e nem a humana. Sua alma paira durante sete dias pela Terra at perceber que falecera.

    - A casa fechada em forma de luto. As festas so suspensas e o esquema de exposio-compensao e supresso no ocorre mais; - O luto o maior smbolo liminar do axex, pois obriga a recluso da casa e de seus membros at a reabertura (no podem jogar os bzios, no podem participar de outras festas e ir a outras casas); - Iniciam-se disputas pela liderana da casa entre o grupo dos contra e o grupo dos a favor (respectivamente Paulo e Beto) que so maquiadas com acusaes de falta de ax ou falta de pulso para liderar uma casa de candombl.

    Margem, limen ou crise

    As caractersticas do sujeito ritual, ou seja, transitante, so ambguas. No h atributos do passado ou do futuro que o caracterizem. um domnio cultural ambguo ou sem valor fixado devido o trnsito. As aes e as posies do sujeito ritual so, contudo, previstas e esperadas pela coletividade.

    - Ainda no um gun, mas no mais um ser humano. - Iniciam-se os trs ciclos de sete dias do axex. Conforme Santos (1974, p. 235): sem ss, no h comeo, no h existncia e, ao mesmo tempo, o morto, a passagem da existncia individual do iy o morto e seu smbolo ou seu doble no run o gun. - Atravs da oferenda-substituto uma comunicao se estabelece entre o iy e o run, entre as pores de matria individualizadas (os seres do iy) e as matrias-massas (SANTOS, 1974, p. 223)

    - Os membros da casa so filhos-de-santo da falecida Senhora, mas com sua morte no tem mais tal vnculo, o que permite a eles: primeiramente redefinir a hierarquia dos cargos (que gera tenso e conflitos) e a possibilidade de sair da casa, pois a ialorix que os comandava no est mais ali; - Os postos da casa no funcionam ou tendem a ser revistos; - Instaura-se o conflito pela liderana da casa;

    Reintegrao Caracteriza-se pela passagem do nefito pelo rito e sua reintegrao estrutura social (onde pode ser

    - Os assentamentos so despachados aps a ltima noite do rito; - assentada como gun da casa e passa a guardar o terreiro e seus membros; - Sua imortalidade est assegurada ao se

    - A hierarquia revista e volta a funcionar; - O luto se encerra e a casa se reorganiza entorno de Dona Jaci, nova Senhora da Casa;

  • rebaixado ou degradado ou elevado)

    transformar em ancestral; - Retorno das festas e demais atividades do terreiro; - O grupo de Beto e Jaci saem vitoriosos da disputa. - O grupo perdedor se mantm na casa, mas sem grandes compromissos com esta (ver anexo 3).

    O ax como categoria acionada em busca de legitimao das aes religiosas e polticas na casa

    Turner (2005) descreve a existncia de dois princpios ou objetivos relacionados s categorias de fora no campo ritual: O principio dominante (ou coletivo), que tende a gerar a segurana para o grupo via rituais e costumes, bem como d forma e reiterao s interaes sociais, onde se objetiva, portanto, a manuteno da estrutura tradicional. E o principio intrusivo, onde busca-se por objetivos e objetos de interesse pessoal ou de um grupo. Nesse principio h meios de corrigir ou ajustar o quadro de referencias mais amplo das relaes sociais, bem como aumentar o prestgio e estabelecer a demanda por certos direitos e poderes presentes nos contextos rituais, aumentando ou diminuindo, assim, o poder e prestigio de rivais para possveis confrontos futuros.

    No mecanismo de exposio-compensao e supresso pode-se, portanto, perceber que ao simblica analisada no terreiro alterna-se entre o principio coletivo e o intrusivo. As festas regulares so uma das fontes destes dois princpios. Em uma situao de morte, como a que ocorreu, e seguida pelo rito do axex tal regularidade entre os princpios tende a ser suspensa ou sofrer danos. O uso do ritual do axex e a manuteno doa ax da casa tendem a redirecionar o grupo para esta alternncia, impedindo que um princpio seja mais forte que o outro.

    O ax, a fora dinmica das divindades, poder de realizao, vitalidade que se individualiza em determinados objetos como plantes, smbolos metlicos, pedra e outros (CACCIATORE, 1988, p. 56), foi utilizado como categoria que denotava maior ou menor capacidade de liderana, poder e sabedoria para o comando da casa.

    A pesquisa registrou, por exemplo, acusaes entre ambas as partes quanto ao preparo das comidas para o axex. Assim, a categoria ax passou a ser avaliada como quem faria uma comida melhor ou pior. Durante o primeiro axex (em julho de 2010) Creuza (que se tendia para o grupo dos contra) foi a responsvel pela preparao desta alimentao. Contudo, um ano aps, no ltimo axex em julho de 2011, Jacira quem realizou esta tarefa, em vrias entrevistas ela afirmava como preparar a comida para o orix deveria ser algo zeloso e feito com extrema destreza, pois se ns gostamos de uma comida temperada e bem feita, por que eles no gostam tambm?. Com essa frase

  • ela iniciava uma srie de crticas as comidas preparadas por Creuza e como elas possuam um ax fraco.

    Outras crticas entre os membros de cada grupo se relacionavam a produo de sabo da costa, que tendiam a ter mais ou menos ax e serem, s vezes fracos, devido ao material que eram produzidos, bem como a roupas que, conforme o grupo, ou eram exuberantes demais (como as de Mrcia foram acusadas, denotando uma soberba em relao sua me-de-santo, Me Jacira) ou eram simples demais para quem desejava governar (crtica sofrida por Dona Jaci, ento Senhora da casa, por no produzir uma nova roupa para Od, seu orix, na ocasio de reabertura da festa).

    O ax poder ser visto como uma energia que no deve ficar parada (Santos, 1974). Ele deve ter um trplice movimento: entre o orix e seu filho, entre o filho-de-santo e seu orix, por meio de sacrifcios em festas e internamente entre os membros do terreiro e as pessoas que se tornam consulente ou clientes da casa. O movimento que o ax possui pode ser entendido como a ddiva proposta por Mauss (2002).

    Em vrias situaes a no movimentao do ax nesta trplice percepo foi um motivo de crtica entre ambos os lados. Em especial a Jacira e Carminha que, por no possurem casas/terreiros se utilizam do Terreiro Il Om Oy para seus trabalhos e para guardar seus orixs e objetos de culto. Conforme o grupo dos contra, devido as dcadas de feitura no santo e por serem ambas mes-de-santo, deveriam ter aberto suas prprias casas/terreiro. Se no possuem casas, como podem fazer circular o ax?

    A conduta moral legada ao ax tambm foi inserida na categoria ax. Acusaes de interesse apenas em dinheiro e em status de pai-de-santo recaram sobre um dos membros do grupo dos contra. Sendo ele iniciado na casa e tendo Jacira como me criadeira, ela mesma passou a critic-lo devido a interesses obscuros que ele mantinha em pertencer a casa (apenas para ter uma casa, pois a sua no est pronta ainda) e pelo apego a dinheiro e em ostentar riqueza na hora de vestir seu santo e fazer sua festa.

    O que a pesquisa revelou, ento, como uma categoria nativa reelaborada pelo grupo numa situao conflituosa e como esta mesma categoria tende a ser instrumentalizada como alicerce para crticas e ataques entre os grupos. Mais que uma categoria acadmica de reflexo, os membros em combate tomaram o ax como categoria analtica de seus adversrios e de suas aes, possibilitando um transito entre os princpios dominantes e intrusivos (Turner, 2005) pelos dois lados do conflito.

    Concluso

  • O que o presente artigo deseja destacar como um rito e suas fases (conforme a perspectiva de Turner, 1974, 2005 e 2008) so acionados politicamente para a efetivao de interesses e de plos ou princpios mais gerais (coletivos), que tornam o grupo operacional como um todo, e princpios ou polos mais intrusivos que tendem a refletir o desejo de ascenso ou destruio de um grupo pelo outro.

    Pde-se perceber como o candombl, no caso do Terreiro Il Om Oy, um campo situado de aes que permitem a um determinado nmero de pessoas se manterem no comando da casa em detrimento a um grupo que, por meio de um mecanismo de escape, consegue usar o poder, status e prestgio temporariamente. Alternando, como num ciclo, os plos coletivos e intrusivos.

    No pode-se chegar a uma concluso dedutiva que o candombl seja apenas ou exclusivamente uma arena de conflitos (Turner, 2008), mas que ele tambm uma arena de luta por interesses. O que a pesquisa demonstrou que atrelado ao campo sagrado est o campo material, no como pares opostos complementares (o sujo e o limpo de Douglas, 1966), mas como campos que atuam juntos em busca da realizao tanto de aes de carter espiritual, quanto de carter material e altamente politizadas.

    Se Landes (2002) e mesmo Joo do Rio (2006) teceram vrias crticas a pessoas interessadas em status, poder e dinheiro no candombl, esta movimentao percebida no apenas uma crtica ao culto, mas sim um dos elementos que fundam a dinmica do candombl. Como afirma Fry (1982), numa sociedade de excludos, a possibilidade de ascenso social via o comando ou participao numa casa tende a ser extremamente atrativo para algumas pessoas. Contudo, no se poder negar a existncia macia de pessoas que se interessam pelo culto aos ancestrais e a estas formas relacionadas natureza e seus elementos. Como afirmado, so ambas as partes constituintes do que se conhece como candombl.

    Desenvolver uma antropologia micro poltica para o candombl pode permitir s cincias humanas a percepo de um espao dinmico, poltico e com intencionalidade, leitura que pode destoar de discursos mais romnticos e mitificados do candombl (como o de Bastide, 2001), bem como pode abrir este campo tradicionalmente analisado pela religio para o campo das anlises polticas e suas instncias decisrias. Permite nos ento perceber como, no caso analisado, duas senhoras, via grupos de interesse, conseguem manter o poder poltico (seus reinados) e o comando em uma casa de candombl.

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    Anexo 1: Quadro de Filiao Sangunea e a Filiao de Santo/Orix na casa

  • Anexo 3: Grupos polticos e de interesses dentro do terreiro e que atuaram fortemente durante o axex