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 · procuro o significado de estar vivo. somente para encontrar. ... agora este é o reino de hades ... vidas feitas de retalhos levadas pelo vento

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Todos os direitos reservados por Sergio Almeida Autor: Sergio Almeida e-mail: [email protected] website: http://sergioprof.wordpress.com

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A451c Almeida, Sergio

Crônicas do Desassossego / Sergio Almeida. -1. ed. Rio de Janeiro: 2014. 104p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7976-039-6

1. Poesia brasileira. I. Título.11-4451. CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8 18.07.1125.07.11028174

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Diários do Desassossego retrata a condição da alma humana

através das confissões expostas em cada um de seus poemas. Em

cada verso sobressaem reflexões e uma sensibilidade que vai

aflorando a cada página. Sintetiza angústias, sonhos, incertezas

sem descanso.

O desassossego é parte do contexto humano. Mais que simples

angústia, é a intuição da existência em toda a sua complexidade

amorfa. Não existe trégua para o poeta, seu espírito apenas

apreende o universo em seu vazio e o descreve conforme às

próprias vistas, coisas reconhecidamente íntimas. A transformação

que lhe sussurra às entranhas lhe empurra o mundo goela abaixo

A vida, um enigma a ser decifrado, não poupa a ninguém da dor. A

perplexidade diante dela, que não oferece sossego aos que

buscam respostas, deixa apenas o refúgio das sensações que estão

atrás dos sentidos, constatações em preto e branco. Uma

revelação às avessas, descobrindo a razão de todas as coisas no

nada e na ausência. O desejo não tem outro papel que não o de se

mover neste limbo.

A palavra desassossego refere-se a uma perturbação existencial

presente na inquietação e incerteza inerentes a tudo o que é

narrado. O livro assume dimensões inesperadas tal como uma

bíblia sem deus, numa eterna brevidade contínua. O poeta repleto

de dúvidas e hesitações parece estar sempre à procura de algo,

mas não sabe exatamente o quê. Um balanço sobre a vida, a

solidão, o amor, a saudade. Um livro vivo, intrigante, envolvente,

interminável. Definitivamente perturbador.

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vivo recolhendo coisas pelas ruas,

reunindo minhas humanas incertezas

abortadas de meu coração vazio

que não entende coisa alguma de nada.

na alma toca um blues

por aqueles que se foram

em infelizes destinos excomungados

nas encruzilhadas do tempo.

vejo a festa e o contentamento

que fugazes escaparam de minhas mãos

e se esvaneceram em olhares confusos,

em alegrias provisórias.

procuro o significado de estar vivo

somente para encontrar

absolutas verdades ocultas

em antros de mentiras declaradas.

nesta busca insana

encontro realidades concretas

que abstratas me sentenciam,

me deserdam.

de que me servem as certezas

paridas de em algum momento de lucidez?

sou apenas um peregrino mendigando

o alívio de retóricos venenos.

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madrugada em frente

à estação do metrô cinelândia.

cartazes, protesto,

palavras de ordem,

vodka e maconha,

a alegria de estarmos juntos

não nos bastava para estancarmos

nosso ódio por tudo.

havia rancor em seus olhos vermelhos.

o azul bêbado deu lugar à noite

que folheamos

como as páginas de um livro velho.

o suave odor da chuva

traz seus sabores:

o que já se foi, o amanhã,

o instagram, o orgasmo,

a piada, as tarefas, o sismo.

invadem nossos corpos como alimento.

somos feitos de papel, música

e cicatrizes, devotos da lua.

o mundo nos ignora,

passamos o dia escravizados

na acidez de nossos empregos.

melhor se tivéssemos

nosso tempo para nos amarmos.

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escura bruma que a noite produz,

o vazio neste bar perdido

em uma rua perdida.

minhas lembranças mais secretas

são estrelas caídas

de um céu sem piedade.

querendo ou não

sou parte deste drama

que a vida usa para dar

um sentido mais trágico

ao cotidiano.

como quem aguarda

os passos intermináveis das horas,

destilo silêncios, respiro surpresas,

fantasiando meus impossíveis

e recolhendo meus absurdos.

não há mais motivo ou propósito,

estou sobre um campo minado

à deriva pelas esquinas

dos meus próprios desvarios.

sílabas mortas, frases rotas,

monólogos

que pronuncio ou mesmo que calo

envoltos nas pétalas aveludadas

das flores da ilusão.

abro meus olhos cansados com esforço

e sinto um peso no ar, nas chamas

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das minhas fomes.

desassossegos, abandonos indiferentes

aos mendigos que comem lixo nas praças.

tristeza com hálito de ribaltas antigas

de um teatro em ruínas,

abandonado a segredos densos,

alcovas gélidas onde perambulam

anjos deserdados.

alimento dragões

nestas noites de junho,

subverto a pauta do desejo,

bebo a doce violência

que escorre pelas ruas.

sou como o silêncio que habita a cidade,

desato nós, silencio desordens,

ouço os rios, dobro o riso, as blusas

como se dobrasse o tempo.

surpreendo os vazios, escuto gemidos,

recorto os versos

de qualquer santidade.

despertenço, desinvento a palavra amor.

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assisto o amanhecer como se fosse

o nascimento das minhas catástrofes.

o dia é feito de sombras, de sobras,

sons de alguém que parte,

estilhaços de vozes, lembranças

do que se foi com o soprar de ventos

e envolvem as marcas do meu corpo.

um demônio cospe seu ódio

e desprezo no meu rosto.

estou longe demais dos sonhos

e próximo do abismo.

sufoquei o choro, engoli as lágrimas,

nada vai mudar a trajetória

das minhas andanças

no vale úmido da indiferença,

no pântano da apatia.

a cada passo, os impulsos calados.

a cada gesto, os espaços reduzidos.

a cada abraço, os pulsos cortados.

assistido por um coro de dementes.

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o indulto das descobertas

e o deslumbramento da contemplação

me trazem, na eternidade de um segundo,

milhares de pedaços de sonhos

que não foram feitos para o meu sonhar,

tão efêmeros como uma promessa.

meus infinitos duram o instante

do sorriso de um suicida que rasga

os véus da esperança em sua despedida

sem nome e sem endereço

ou de um inocente no corredor da morte.

carrego o fardo das consequências

e recebo o toque frio do arrependimento

com seus estilhaços que penetram

cada membro do meu corpo.

desenterro o que o tempo sepultou

num ritual de infinitas exumações,

revivo prazeres, consumo

compulsivamente as mentiras sussurradas

pelo discurso seco dos abandonados,

pela paixão dos desiludidos.

na penumbra dos meus pontos de interrogação

entre os porquês, há apenas um abismo infinito

e a queda livre rumo a um solo

que nunca chega,

devaneios molhados

repletos de ilusões perdidas,

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de uma realidade cheia de inverdades

não evitadas a vida inteira,

recolho fragmentos de saudades.

sobrevivi ao cataclismo

de incontáveis frustrações

e de infindáveis arrependimentos.

respiro a fé morta dos desesperados,

a vergonha de mim mesmo,

os pensamentos que nunca calam,

as dores que nunca dormem,

a piedade dos que me ouvem.

observo com descrença os vestígios da noite

que serão levados ao reino do esquecimento.

as cinzas da madrugada suja

entram em meus olhos.

o nascimento do presente

é o último suspiro do ontem.

visto os farrapos de apatia

e carrego pela casa momentos perdidos,

tecidos rotos e sujos

de um agora que há muito se arrasta.

minhas roupas tem cheiro

de pesar, angústia, inquietação.

mora uma urgência dentro de mim,

promessas que me fiz em um idioma

que não existe e que nunca cumpri.

há retalhos de indiferença pelo chão,

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objetos contidos no cenário

imutável de mim mesmo.

na contemplação dos abismos

ouço a paz que não há,

contrariedade viva das vontades mortas.

contemplo o desfile lento das horas,

o desmanchar dos instantes,

vácuos que dão vida aos meus absurdos.

abro todas as portas e janelas

e enxergo o vazio infinito

que cerca a minha alma.

o vento sopra imagens confusas,

sinto no rosto seu toque,

o tempo perdido na praça dos loucos,

no jardim dos inconformados.

a personificação dos meus erros,

o avesso das virtudes.

guardo um discurso oco

repleto de verdades estranhas ao universo,

resquícios de acontecimentos

que ficaram presos no mundo

dos meus devaneios noturnos

pendurado em algum cabide

nos armários do passado.

um soluço engolido às pressas

desenterra o ontem esquecido

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no cemitério que carrego dentro de mim,

terra infecunda dos zelos meus.

o esquecimento quebra, esmaga,

amassa e destrói,

corta o fio do sossego que já não há,

enterrado com os restos

do que poderia ter sido,

enterrado nas profundezas

de mim mesmo.

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levo comigo minha dorpor onde quer que eu passe.levo os cacos dos fracassos,guardo toda espécie de farrapo,malas, lâmpadas, jornais,brinquedos quebrados.navios fantasmas guardo.

guardo as cores de todos andrajos,de todas as roupas usadas,capacetes arrancados em batalhas,bússolas, guitarras, mapas.

os desejos falidos debaixo da chuva rala, sorrisos aprisionados dentro do porta-retratos.

levo o que foi atropelado, deformado, abnegado,frente ao mar bravoconheço toda a sorte de naufrágio.

agarro qualquer coisa,momentos inúteisque não deixaram traços,algum resto, algum destroço,qualquer coisa quebrada,ficou o brilho de perdidos anéis,

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e o resultado da soma em algum ábaco.

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1.

sons de violinos quebrados vinham das montanhas,

uivos de lobos noturnos,

varriam as imagens das imaculadas ninfas

enquanto se ouviam as vozes dos náufragos.

o príncipe das trevas desceu disfarçado de clown,

bailava num festim de sorrisos e sussurros.

a nuvem envolvia a cidade com seus círculos febris,

se dissolvia nas ruas em reflexos penetrantes,

coisa alguma nos rios, nada no ar e sua fúria

era como a de um deus rancoroso e vingativo.

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a morte com seus remendos, oxítona e afiada,

distribuía cadáveres, penetrava nos ossos, na pele,

nos músculos, qualquer coisa amorfa,

alegoria da inutilidade das horas.

agora este é o reino de hades

os que um dia nasceram e sabiam que iam morrer

vislumbravam o brilho estéril do caos que agora

acontecia através del siglo, de la perpetuidad,

debaixo deste sol que desbota.

o tempo escorre pelos escombros,

o tempo escoa pelos entulhos de chernobyl.

2.

meu olhar percorre as ruas,

meus passos varrem a noite, ouço passos,

há um cheiro de sepultura sobre a terra úmida,

um beijo frio em cada boca, um riso

estéril mostrando os dentes brancos da morte.

não foram necessários fuzis ou metralhadoras.

mas ainda há pássaros

que sobrevoam as flores pútridas.

aqueles que ainda não nasceram são santos,

são anjos ao saudar a vida diante da desolação

sob este céu deus ex machna.

aos que creem no futuro

restaram sombras, arcanos, desejos furtados,

resta fugir.

uma nuvem de medo, ansiedade e incerteza

paira sobre o sarcófago de aço e concreto da usina.

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asa silente marcando o tempo

que já não possuímos.

pripyat, natureza morta, vista através das janelas

de vidro dos edifícios abandonados

sob um sol pálido, ecos do que fomos

e do que iremos ser.

pripyat, ponto cego, cidade fantasma,

os bombeiros e suas luvas de borracha e botas

de couro como relojoeiros entre engrenagens

naquela manhã de abril, os corvos

seguem em contraponto seu caminho de cinzas

sob o céu de plutônio de chernobyl.

3.

e se abriram os sete selos e surgiram

os sete chifres da besta,

satélites vasculham este ponto à deriva, seu nome

não será esquecido, queimando em silêncio.

os quatro cavaleiros do apocalipse e seus cavalos

com suas patas de urânio anunciam

o inferno atômico semeando câncer

ou leucemia aos filhos do silêncio.

os cães de guerra ladram no canil

mostrando seus dentes enfileirados, feras famintas,

quimeras mostrando suas garras afiadas,

como aves de rapina, voando alto,

lambendo o horizonte, conquistando o infinito.

eis um mundo malfadado povoado por dragões,

a humanidade está presa numa corrente sem elo,

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sem cadeado, enferrujada e consumida pela radiação.

vidas feitas de retalhos levadas pelo vento

como se fossem pó, soltas em um mundo descalço.

vidas errantes, como a luz que se perde no horizonte,

deixam rastros andantes, vidas cobertas de andrajos,

grotescas, vidas famintas e desgastadas,

que dormem

ao relento nas calçadas e que amanhecem úmidas

de orvalho, vidas de pessoas miseráveis,

criaturas infelizes, que só herdaram

seus próprios túmulos em chernobyl.

4.

mortífera substância poluente, complexa,

realeza desgastada que paira nos ares

da pálida, intranquila e fria ucrânia

envolta no redemoinho dos derrotados.

gotas de fel caindo das nuvens da amargura,

sobre a lama do desespero, sobre o vazio

da desilusão, no leito do último moribundo.

cacos, pedras, olhos mortiços, rastros cansados,

inúteis, o sol das estepes murchou as flores

que cultivávamos, descolorindo nossas faces.

seguem os pés árduos pisando a consciência

dos descaminhos emaranhados da estrada,

na balança que pesa a morte.

no peso das lágrimas, que marcaram o início da dor,

restos mortais, ossos ressecados, sem carne,

devorados pela radiação, almas penadas

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no beco maldito dos condenados, herdeiros

da abominação, mensageiros da degradação,

horda de náufragos, legião de moribundos.

o crepúsculo trouxe o desalento e as trevas, a vida

agora é cinza do nada, são almas penadas que fazem

a viagem confusa dos vencidos em chernobyl.

5.

ainda ouvimos os gritos daqueles que tombaram,

e os nêutrons sobre a poeira fina dos vales,

os pés descalços sobre pedras pontiagudas,

ainda ouvimos o choro das pálidas crianças,

a fome, a sede e a dor,

o estrôncio-90, o iodo-131, o cesio-137.

vazios, silêncios ocos, perguntas sem respostas,

degraus infernais sobre sombras, rio de águas turvas,

quimera imunda de tanta desgraça,

fantasia desumana sem cor,

transportas tanto mal, conduzes a todos

para a aniquilação neste tempo em que nada sobra,

em que tudo é sombra, é sede, é fome, é regresso,

neste tempo em que tudo são trevas,

onde não há luz.

cruzes no cemitério, uma zona de sacrifício,

sob um céu sem nuvens,

a morte em seu ponto mutante.

no difícil cotidiano de um negro sonho,

restaram a floresta vermelha,

e os javalis radioativos de chernobyl.

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