416
× 1 × Agradecimento Especial Jovem Nerd Palavras do Autor Se você está lendo essa página é porque se interessou pela hitória e, em poucos instantes (espero eu) estará desfrutando do livro. Antes de mais nada, gostaria que vocês soubessem que esse livro já está publi‑ cado e a venda de forma independente. É provável que vocês encontrem algumas não conformidades no português (embora a história tenha sido revisada) e na história, mas levem em conta que eu arquei com todo e qualquer custo e tirei esse livro na gaveta para estar hoje aqui. Por que estou disponibilizando esse livro em PDF? Bom, depois de publicar e vender quase toda a tiragem de 500 livros(patrocinada pelo Zaffari & Bourbon, aliás), percebi que fazer a próxima tiragem ia custar muito caro. Eu preciso do dinheiro para cor‑ rigir o volume II, que já se encontra pronto. É uma jogava arriscada. Eu estou matando a oportunidade desse livro de ir para uma editora. Por isso, POR FAVOR, DISSEMINE ESSE LIVRO. GOSTOU? PASSE A DIANTE. NÃO GOSTOU, PELO MENOS PENSE NA DIFI‑ CULDADE QUE É PUBLICAR UM LIVRO DE FORMA INDE‑ PENDENTE. Passe para todos que você conhece e que gostam do tema fantástico. Seu amigo, vizinho, irmão. E, em forma de retribuição por estar lendo esse livro de graça, peça para que essa pessoa que irá ler também passe adiante. A única coisa que eu peço é que esse livro passe por quantos leitores forem possíveis. É uma das poucas tentativas que restam ao autor brasileiro de ser conhecido, infelizmente. Existem alguns livros impressos para os que quiserem comprar, basta acessar www.blackspoud.blogspot.com. De qualquer forma, também disponibilizo o número de duas con‑ tas para deposito, caso alguém leia e goste e queira contribuir de alguma forma, com algum valor. Não é preciso, mas se você quiser, eu agradeço! Boa leitura e muito boa sorte para aqueles que quiserem trilhar o mesmo caminho. Essa foi uma decisão dificil para mim, mas acredito que tenha sido a certa. Com carinho, J. R. Moona

Hades Vol. I Terra-Inversa

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 1 ×

Agradecimento Especial

Jovem Nerd

Palavras do Autor

Se você está lendo essa página é porque se interessou pela hitória e, em poucos instantes (espero eu) estará desfrutando do livro. Antes de mais nada, gostaria que vocês soubessem que esse livro já está publi‑cado e a venda de forma independente. É provável que vocês encontrem algumas não conformidades no português (embora a história tenha sido revisada) e na história, mas levem em conta que eu arquei com todo e qualquer custo e tirei esse livro na gaveta para estar hoje aqui.

Por que estou disponibilizando esse livro em PDF? Bom, depois de publicar e vender quase toda a tiragem de 500

livros(patrocinada pelo Zaffari & Bourbon, aliás), percebi que fazer a próxima tiragem ia custar muito caro. Eu preciso do dinheiro para cor‑rigir o volume II, que já se encontra pronto. É uma jogava arriscada. Eu estou matando a oportunidade desse livro de ir para uma editora. Por isso, POR FAVOR, DISSEMINE ESSE LIVRO. GOSTOU? PASSE A DIANTE. NÃO GOSTOU, PELO MENOS PENSE NA DIFI‑CULDADE QUE É PUBLICAR UM LIVRO DE FORMA INDE‑PENDENTE. Passe para todos que você conhece e que gostam do tema fantástico. Seu amigo, vizinho, irmão. E, em forma de retribuição por estar lendo esse livro de graça, peça para que essa pessoa que irá ler também passe adiante. A única coisa que eu peço é que esse livro passe por quantos leitores forem possíveis. É uma das poucas tentativas que restam ao autor brasileiro de ser conhecido, infelizmente.

Existem alguns livros impressos para os que quiserem comprar, basta acessar www.blackspoud.blogspot.com.

De qualquer forma, também disponibilizo o número de duas con‑tas para deposito, caso alguém leia e goste e queira contribuir de alguma forma, com algum valor. Não é preciso, mas se você quiser, eu agradeço!

Boa leitura e muito boa sorte para aqueles que quiserem trilhar o mesmo caminho. Essa foi uma decisão dificil para mim, mas acredito

que tenha sido a certa.

Com carinho,J. R. Moona

Page 2: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 2 ×

Volume ITERRA‑INVERSA

Page 3: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 3 ×

Page 4: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 4 ×

J. R. MOONA

HADESVolume I

Terra‑Inversa

Edição Digital

Coleção BlackspoudPorto Alegre

2011

Page 5: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 5 ×

Page 6: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 6 ×

Em memória de Marlene de Oliveira C. Machado.

Page 7: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 7 ×

Page 8: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 8 ×

Prólogo

O enorme cavalo negro relinchou feito um trovão, enquanto empi‑nava e, ao bater com as patas dianteiras contra o solo, a terra tremeu peran‑te seu poder. Seus olhos vermelhos e ferinos destacavam‑se em suas feições esqueléticas; a pele repuxada realçava os músculos estranhamente avanta‑jados do pescoço. Porém, o mais chamativo de seu conjunto encontrava‑se sobre a garupa. Era um cavaleiro gigantesco, trajava um manto roxo escuro que descia dos ombros até o dorso da montaria, escorrendo por sua lateral direita e quase tocava as gramíneas amareladas sob os cascos. A armadu‑ra prateada e grossa, de incrível consistência maleável, cintilava com as chamas que devoravam a floresta atrás de ambos. Na cabeça, um capacete negro de ferro polido, cuja viseira era a única abertura. Alguns detalhes prateados e um vermelho, em forma de cruz, passavam sobre a região dos olhos e cruzavam a testa até a parte que protegia o queixo. Vários recortes de metal sobrepostos surgiam no topo do capacete e desapareciam na altura dos dois chifres metálicos colocados no alto das laterais do capacete.

E, por fim, um brasão de prata no formato de um dragão alado, com os braços cruzados sobre o peito, segurando uma foice com a mão direita e uma espada com a esquerda, estampava‑se sobre o broche que prendia o manto na altura do pescoço protegido por uma gola alta e preta.

O cavaleiro apertou as rédeas com uma das mãos enluvadas e, com a outra, tocou o animal.

O fogo ao redor deles ateava e tudo seria em breve destruído. O céu nublado variava nos tons ocre, preto, verde escuro, amarelo e toques avermelhados. Oliver, o homem que observava o que sucedia ao lado do cavaleiro, defendeu sua cabeça com o antebraço quando uma árvore pró‑xima despencou e lançou faíscas para os lados. Do alto do penhasco, ambos acompanhavam a vista infernal.

Lá embaixo, uma cidade ardia como uma fogueira. Labaredas altas escalavam os prédios onde funcionavam escritórios, explosões demoliam quarteirões inteiros e pareciam se alastrar muito além do horizonte, de‑vorando as montanhas e até mesmo o céu. “Isso mesmo”, pensou Oliver chocado, havia fogo entre as nuvens fétidas.

Era o fim da Terra... Disso ele tinha certeza. Nada mais de vida

Page 9: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 9 ×

havia por lá, nada que pudesse contar a história de quem um dia andara por aquelas terras.

O cavalo relinchou novamente e virou em direção a Oliver, baten‑do a pata dianteira direita com força em forma de aviso. De sua respiração emanava uma fumaça de enxofre extremamente quente.

Oliver recuou um passo. O cavaleiro analisava‑o através da viseira escura, escondendo as suas reais intenções.

– Hades está vindo – disse ele com uma voz fria e sussurrante. – Quem está vindo? – questionou Oliver sem compreender.Uma forte lufada de vento açoitou as costas de Oliver. Uma imensa

criatura negra pousou sobre o morro acima deles. Apesar de estar a uma distância grande do humano, seu tamanho, superior a dez metros de altu‑ra, era capaz de proporcionar uma turbulência no ar ao seu redor. Oliver não conseguiu ver seus detalhes, mas se espantou quando ela abriu as asas envergadas que refletiram as chamas da floresta. Ela estendeu a pata mus‑culosa em direção ao humano.

O chão tremeu e Oliver olhou para seus pés a tempo de ver seu apoio desaparecer enquanto a terra dividia‑se ao meio. A escuridão o envolveu assim que começou a cair.

Oliver acordou segurando um grito e batendo com o rosto no carpete após cair da cama. O que sucedeu foi um pesadelo, apenas mais um de muitos que estava tendo. Ao seu lado o despertador tocava in‑sistentes vezes sobre a cabeceira, anunciando a chegada das seis horas da manhã do dia 10 de fevereiro de 2009. Sentou na beirada da cama e passou as mãos sobre o peito empapado de suor. Desde que tinha quinze anos, eventualmente aquela cena se repetia durante seu sono. Ele já perdia as contas de quantas noites, como aquela, seu sono fora interrompido.

Olhou para fora através da janela; o céu escuro adquiria tons ama‑relados devido à aparição do sol sobre o topo dos prédios suburbanos. Não havia nenhuma cidade pegando fogo e, muito menos, um chão se dividindo ao meio. Uma brisa fresca adentrou o quarto e acertou seu pescoço suado. Ficou com um mau pressentimento. Antes tinha ape‑nas esse pesadelo uma ou duas vezes a cada trinta dias, mas agora ele acontecia três ou quatro vezes por semana. Talvez a loucura e a culpa o dominassem mais a cada dia, pensou consigo. Desligou o despertador enquanto admirava suas mãos ásperas e grandalhonas.

Mais um dia começaria. “Correção”, pensou Oliver, “mais um dia de viagem cansativa a trabalho”.

Page 10: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 10 ×

Capitulo 1Leprechaun

– Você só pode estar brincando! – disse a mulher incrédula do outro lado da linha, cujo nome era Anne.

– Não, eu me perdi mesmo... Não faço a mínima ideia de onde eu esteja. Acho que entrei na estrada errada... Já tentei ligar para o número da polícia, mas as linhas estão ocupadas – retrucou Oliver, comprimin‑do o aparelho celular com os dedos.

– Tudo bem, acalme‑se. Está ocorrendo um manifesto no centro da cidade e estão quebrando tudo. A polícia deve estar ocupada por lá, mas continue tentando. Uma hora alguém vai atendê‑lo...

– O motor do carro pifou e vai escurecer logo, é melhor eu co‑meçar a andar. O sinal de telefone está ruim. Liguei para avisá‑la que poderei demorar para voltar, vai depender de quando eu vou sair daqui e encontrar a casa de Tadeu. Cuide de minha mãe, por favor.

A ligação chiou e a última coisa que o rapaz ouviu, antes de des‑ligar, foi um fraco “cuide‑se, Oliver”. Quando ele guardou o celular no bolso da calça jeans, tentou não transparecer o receio de estar perdido. Oliver Drummond, um jovem de vinte anos, alto, magro e de cabelos despenteados, parecia mirrado perto da floresta que rondava a estrada de terra‑batida. Um carro popular cinza, do qual emanava uma fumaça mal cheirosa pelo capô, ocupava a estreita pista.

“Porcaria de carro” pensou Oliver, passando as mãos nos cabelos lisos e compridos até a altura da orelha. O céu se acobertava de nuvens cinzentas e o sol descia no horizonte. Devido às árvores altas e de copas volumosas, Oliver não conseguiu saber quanto tempo ainda tinha de luz. Segundo seu relógio de pulso, faltava meia hora para o anoitecer.

Estava em algum lugar da Praia do Lami, próximo a uma reserva ecológica chamada Vale Verdade e longe do centro de Porto Alegre ou de qualquer civilização. Seu chefe, o dono de uma empresa de advocacia, pediu‑lhe que levasse um documento importante para seu cliente Tadeu assinar. “Porcaria de documento”, repetiu para si em pensamento. Ava‑liou se deveria ligar para o seguro, mas como não tinha conhecimento de sua própria localização, preferiu economizar bateria do celular.

Page 11: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 11 ×

Juntou todos os seus pertences dentro da mala de couro e acio‑nou o alarme. Olhou uma última vez para o carro e prosseguiu cami‑nhando pela estrada. Por onde passara, não havia nenhum lugar onde pudesse buscar ajuda, então restava‑lhe seguir adiante.

Quando o sol já havia desaparecido e deixado para trás um rastro alaranjado no horizonte no topo dos morros, Oliver soube que levaria mais de dois dias para voltar para a casa. Qualquer barulho próximo a ele deixava de ser um estalar de árvores, para se tornar um monstro as‑sassino pronto para devorá‑lo. Embora não houvesse relatos de animais selvagens capazes de matar humanos por ali, Oliver acreditava que o perigo sempre dava um jeito de burlar qualquer improbabilidade.

– Ah, meu Deus, eu prometo que serei um homem melhor se me tirar daqui... – pediu para a floresta estreita à sua frente. Repentinamen‑te, sentiu um cheiro de queimado.

Adiante, uma trilha cinzenta, quase confundida com o tom do céu, se não fosse pela rarefeita claridade, marcava a presença de uma fogueira. “Pessoas...” pensou Oliver, sentindo um ardor de ansiedade invadir seu peito. Poderiam ser campistas ou caçadores de pequenos animais. Eles certamente saberiam lhe dizer como voltar para a casa. Apressou o passo e segurou a maleta com dificuldade, pois o suor insis‑tia em fazer escorregar‑lhe da mão. Oliver saltou sobre duas raízes no meio do caminho e abriu os olhos o máximo que pôde, a fim de captar toda a claridade. Finalmente, após longos segundos, avistou um brilho alaranjado entre as árvores.

Afastou um arbusto e deu‑se de frente com uma barraca de lona armada com cordas e suportes de metal. Ao lado dela, mais duas idên‑ticas se postavam sobre a grama rala. Uma fogueira crepitava diante das três cabanas enquanto roupas, num varal, balançavam com a brisa.

– Olá? – arfou Oliver devido ao esforço de correr.Apoiou as mãos nos joelhos ao arquear. Baixou a cabeça, respirou

fundo e levantou. Largou a maleta.– Alguém?O rapaz não obteve resposta. Além do silvo das folhas das árvo‑

res se tocando, a fogueira era a única que fazia barulho. Passou pelas barracas e não viu nada além de pertences e colchonetes. “Podem ter saído para caçar ou fazer uma trilha”, pensou Oliver, sentando sobre um tronco improvisado como banco, ao lado da fogueira. Talvez, o fato de estar perdido na “selva” distanciava‑o um pouco de seus problemas cotidianos. Contas para pagar, notícias desastrosas nos jornais, mais problemas... Os assassinatos, os manifestos e as greves estavam aumen‑

Page 12: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 12 ×

tando sem parar. Os noticiários não paravam de relatar que nem o pró‑prio governo estava conseguindo manter controle sobre a população ensandecida. Ninguém sabia explicar por que as pessoas estavam tão perturbadas.

Naquele instante, Oliver notou um jornal parcialmente queimado caído ao pé da fogueira. Juntou‑o e sacudiu‑o para tirar a fuligem. A única página visível relatava a notícia de uma seita procurada por assas‑sinatos em série.

“Os seguidores da seita “Olho do Dragão” estão sendo procurados pelo assassinato de oitenta e oito alunos e três professores, da Escola Anda‑raíba, ocorrido em 2005. E agora, em 2009, o mesmo grupo de suspeitos está sendo acusado pela morte de treze crianças e um adulto, motorista do ônibus escolar, que foi sequestrado há dois dias e encontrado ontem, às onze horas da noite, à beira do Guaíba.

“É um absurdo que pessoas como estas continuem vivas” – disse a mãe de uma das vítimas.

A seita em questão tem como padrão matar com gás letal ou, como o massacre de 2005, quando, após invadirem a escola e matarem noventa e uma pessoas, beberam o sangue das crianças. Embora muitas pessoas de‑nominem de vampiros os partidários do Olho do Dragão, os céticos dizem que não passam de psicopatas querendo chamar a atenção e causar pânico na população. “Vampiros?” perguntou um dos pais, em luto, à reportagem, “vou provar que uma bala é capaz de matar esses desgraçados.”

Oliver, enojado e angustiado, atirou o que restava do jornal ao fogo. Apoiou a mão no tronco e sentiu uma textura pegajosa entre seus dedos. Levantou assustado e analisou‑a através da luz das chamas. Era transparente e gosmenta como saliva. Limpou os dedos na calça e encontrou mais da substância no tronco, ao redor de um buraco que parecia ter sido produzido por uma mordida. Pedaços de madeira acu‑mulavam‑se na grama. Tirou da fogueira um pedaço de galho cuja ponta fumegava e ergueu‑o diante da cabeça. O rastro de “saliva” ia do tron‑co até a orla da floresta. Avançou dois passos e viu uma carabina caída sobre duas raízes encurvadas.

“Uma arma?” questionou‑se mentalmente. O que havia aconte‑cido no acampamento? Três arranhões enormes, com cerca de trinta centímetros cada um, marcavam o caule da árvore perto da carabina. “Um urso?” cogitou Oliver, avançando rapidamente até a arma. Pisou sobre um cartucho de balas vazio e acocorou‑se para avaliar melhor a situação. Não havia urso na Praia do Lami. A escuridão já rondava‑o por completo e, se não fosse o fogo no pedaço de madeira em sua mão, não enxergaria nada naquela noite sem lua. Uma vez, há mais de sete anos atrás, seu pai levara‑o para acampar e ensinara‑lhe algumas artimanhas.

Além da carabina, duas balas prontas para serem usadas estavam quase escondidas abaixo da raiz. Recolheu‑as junto com a carabina e

Page 13: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 13 ×

carregou‑a de munição, pois o cartucho estava vazio. Havia mais saliva sobre o cano, para o pavor de Oliver. Ergueu novamente a tocha e nada viu na floresta. Seja lá quem estivesse caçando, havia sido caçado.

– Pesadelo – grunhiu Oliver, suando frio nas axilas. Nunca deveria ter saído de seu carro. Melhor estar dentro dele do

que no bosque, mais perto do perigo do que imaginava. Ficou de pé e ouviu o estalar de galhos atrás de si. Virou abruptamente e quase deixou cair a tocha. Imaginou se começava a ter alucinações.

– Acho que isso é seu, senhor – disse alguém à suas costas.Quando virou, deu‑se de cara com a criatura mais bizarra de sua

vida: ela tinha um metro de altura, suas pernas faziam dois terços da estatura, seu corpo era redondo. Seus olhos, separados por um longo espaço, eram pequenos e situavam‑se logo acima de duas narinas e dos lábios. A boca era feia e separava o corpo praticamente ao meio. O lábio superior tinha a consistência macilenta, porém o lábio inferior era pro‑tuberante, expondo três ou quatro dentes. O maxilar achatado grudava na barriga redonda e pequena, em cujo centro, um umbigo.

Suas pernas longas e finas pareciam não suportar o próprio peso. Os braços, bem pequenos em comparação às pernas, mas também finos, terminavam em dedinhos longos com bolotas nas pontas.

Mas aquilo ainda não era o mais estranho de tudo. Sua pele tinha um tom amarronzado com manchas verde escuro. Ele usava uma meia calça desfiada nas pernas e uma peruca na cabeça, que Oliver acreditou ser de um manequim de vitrine. Uns óculos transparentes de operário repousavam em sua cabeça redonda, e um espelho de cabo na mão di‑reita. Na outra mão, ele estendia a maleta de Oliver. Era uma criatura estranha que aparentava possuir uma enorme vaidade. Seus pezinhos de cinco dedos compridos e espalmados causavam um som engraçado toda a vez que tocavam a grama. Oliver congelou.

Enquanto encarava os dois olhos miudinhos e negros da criatura, seu corpo sofria um jato de adrenalina. Suas veias pinicavam, seus mús‑culos ficaram rígidos e suas pernas, molengas.

– UM MONSTRO! – gritou assim que despertou do choque.– Monstro! – repetiu a criatura. Sua voz era pomposa e quase hu‑

mana, diferente do que se esperaria de um monstro. Ele olhou para os lados, perturbado. – Onde?

Oliver gritou de novo e recuou, tropeçando nos pés. Esfregou os olhos com as costas da mão. A boca entreaberta expressava um pavor intenso. Esqueceu‑se de que carregava uma carabina e deixou‑a cair.

– Monstro! – gritou novamente ao dar meia volta e correr. – So‑corro! SOCORRO!

Saltou sobre o tronco no meio do caminho enquanto agitava a tocha que carregava.

– Socorro! – repetiu o monstrinho desengonçado.

Page 14: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 14 ×

Quando Oliver olhou para trás, ele o estava perseguindo.– Salve Pierre! – gritou ele para Oliver.Oliver apressou o passo no intuito de salvar‑se a qualquer custo.

Ver aqueles dentes mortais e afiados dançando na bocarra da criatura causava‑lhe arrepios. Gritou de pavor, rezando mentalmente para que nada daquilo fosse real.

– Meu Deus, eu não posso morrer... Não posso – Olhou por so‑bre o ombro, a coisa horrenda estava mais perto. – Meu deus, é horrível!

– Espere por mim! – pediu a criatura. – Não me deixe aqui! Oliver sentiu as pernas latejarem. Quando deu por si, o mons‑

trinho o ultrapassava e começava a correr à sua frente. Estava difícil esquivar‑se das árvores em seu caminho. Sacudiu a cabeça e reduziu o passo. O monstro percebeu e também parou, respirando ofegante.

– O que está fazendo? O monstro vai pegá‑lo! – disse a criatura.“Isso não está acontecendo...” pensou Oliver ao arquear as so‑

brancelhas.– Mas você é o monstro – acusou o humano.– Eu? Pierre não é um monstro. – A criatura apalpou‑se, chocada. – Pierre? – Pierre, meu nome – disse ele, apontando para a barriga. Abaixo

do umbigo havia uma tatuagem escura com um símbolo π, um R e o número dois. – Pierre II!

– Você não pode ter um nome... Também não pode estar falando e nem existindo! Seu MONSTRINHO!

Pierre franziu a testa, pasmo. Pôs a mão sobre o peito e depois admirou o próprio reflexo no espelho encardido que carregava. Apenas em fitar a própria imagem já se acalmou, ajeitando a peruca emaranhada de fios vermelhos sobre o topo oval da cabeça.

– Mon Dieu!Você só pode estar brincando... – retrucou Pierre. – Já se olhou no espelho? Ou a sua mãe estava com dor de barriga quando deu a luz a você, ou é defeito de nascença mesmo!

Oliver tocou o rosto, insultado.– Eu sou NORMAL, mas que diabo é você? Uma mistura de sapo

com... com... – Como não conseguiu pensar em nada melhor para dizer, calou‑se. Para ele, aquilo não passava de um sonho louco. Ou uma alu‑cinação... Ou quem sabe apenas uma reação desesperada de seu medo.

Pierre deu a impressão de revirar os olhos. – Eu sempre me esqueço de como as pessoas são estúpidas.– O que você disse? – questionou Oliver.– Sou um leprechaun, da quinta geração.– Leprechaun não são homenzinhos irlandeses que se vestem de

verde e consertam sapatos? – perguntou Oliver irônico. Se precisava entrar naquele jogo doido para sobreviver, então que fosse.

– Monsieur! Se eu cuspisse uma moeda a cada vez que eu ouvisse

Page 15: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 15 ×

isso... Definitivamente estaria rico! – retrucou Pierre para si. – Minha mãe era irlandesa, sim, e vivia numa colônia na Irlanda, mas meu pai é francês. E não, não sou nenhum homenzinho que conserta sapato. Em‑bora nossa raça produza couro, consertar sapatos está definitivamente fora de cogitação desde que a segunda guerra mundial terminou.

Oliver não compreendia nada do que o leprechaun estava dizendo. Ele não parava de falar.

– Nós viemos, para o Brasil, em um barco cargueiro, eu e minha mãe, depois que meu pai e meus irmãos foram exterminados durante a guerra. Eles foram recrutados pelos humanos, sabe... Foi, então, que nós vimos como os humanos são ruins. Eu era pequeno demais na época e, então, quando cresci foi melhor irmos embora. Queríamos um lugar tranquilo para morar e achamos esse lugar aqui muito bom.

– Olha, eu... Eu não quero interromper o seu falatório – “Que não faz sentido nenhum para mim”, completou Oliver em pensamento. – Mas eu tenho que acordar desse pesadelo...

O leprechaun riu diante da expressão de Oliver. A criatura se aproximou; Oliver fez menção de recuar, mas ele já estava à sua frente no passo seguinte. Pierre estendeu a mão.

– Vamos esquecer nossas diferenças e nos tornarmos amigos.Oliver olhou enojado para a mão da criatura.– Você não espera mesmo que eu o cumprimente, não é? Você é

um monstro. Não existe... Nem fala, nem anda. Fruto da minha imagi‑nação... Não podemos ser amigos. Em qualquer instante ou eu acordarei de um pesadelo, ou você simplesmente desaparecerá para sempre. O que você fez com as pessoas daquele acampamento?

– Acampamento? Eu não sei do que está falando. A primeira coisa que vi foi você quando cheguei aqui.

Pierre suspirou. No seguinte piscar de olhos, Oliver não esta‑va mais diante do monstrinho, mas de um garoto de quatorze anos. Cabelos vermelhos, pele alva e manchada de sardas. Seu rosto redondo, embora humano, ainda apresentava traços anfíbios, como uma boca um pouco mais larga do que o comum e o queixo socado. Contudo era, indubitavelmente, um humano. Os olhos negros e pequenininhos relu‑ziam em esperteza.

– E agora... Podemos ser amigos?Os dedos humanos alvos e finos continuavam abertos para um

aperto. Oliver piscou incredulamente. Sua mão moveu‑se sozinha ao encontro à de Pierre, apertando‑a quase sem forças.

– Meu nome é Oliver Drummond.– Oliver... – repetiu Pierre, estalando a língua. Sua pele era huma‑

na e rosada, principalmente na região das bochechas. – Eu preciso de sua ajuda.

Page 16: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 16 ×

Capitulo 2O Resgate

“Acalme‑se, Oliver, não entre em pânico”, pedia a consciência do humano. Oliver retornava para o acampamento seguido por Pierre II. Suas mãos ainda tremiam quando ele recolheu a carabina caída. Poderia estourar os miolos daquele monstrinho, porém era muito mais difícil fa‑zer isso enquanto disfarçado de criança. Uma hora, uma criatura‑sapo, outra, um humano. O que estava acontecendo? Lembrou‑se de seu so‑nho que o atormentava. Do cavaleiro, das criaturas negras que avança‑vam pelo céu e da floresta que ardia ao ser destruída.

– Escute... – pediu Pierre, forçando a mudança de assunto. – Eu preciso da sua ajuda.

– Desculpe! Estou ocupado no momento, arranjando um jeito de ENTENDER a situação ou, simplesmente, sumir dessa porcaria de lugar! – falou o humano em voz alta. – Maldito carro que me trouxe para os confins do mundo!

Pierre fechou a cara.– Minha mãe está aprisionada em uma armadilha lá fora, eu saí

para colher ervas com ela e acabamos indo além dos limites da nossa casa. Tomamos direções diversas e acabamos por nos perder um do ou‑tro e, quando a reencontrei, ela estava presa em uma armadilha. Eu não consegui tirá‑la de lá, então vim buscar ajuda. Pensei que houvesse um morador aqui que pudesse me auxiliar, mas não encontrei nada além desse acampamento!

– Peça para outra pessoa ajudá‑lo.– Mas não há ninguém! – insistiu Pierre desesperado, somente

agora Oliver notara seu semblante preocupado e receoso. – Eu não te‑nho mais ninguém além de minha mãe. Sem ela, eu vou acabar morren‑do... Por favor, me ajude!

– Por que eu deveria ajudar um monstrinho? Se você é desse jeito, imagino como sua mãe deva ser! Outra monstrenga também – disse Oliver com um “quê” de maldade. A ideia de haver outro monstro solto igual a Pierre, talvez maior e pior, assustava‑o. – Além do mais, você fica usando essa peruca e essa meia‑calça... Qual é o propósito disso?

Page 17: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 17 ×

– Ora! Isso me deixa mais belo... Pessoas gostam de se vestir, não? Eu também!

– Isso nem são roupas... – retrucou Oliver irritado. Oliver fizera inúmeras coisas ruins em seu passado que tentava

esquecer, mas nenhuma delas o assombrava tanto quanto ficar com um monstro em uma floresta, mesmo que Pierre não fosse uma criatura ma‑ligna. E se estivesse em uma armadilha? Riu sozinho ao imaginar pelo que estava passando.

Estava começando a quitar sua dívida pelos males que cometera... Percebeu o silêncio de Pierre e olhou em sua direção; o “garoto” cho‑rava baixinho.

– Ah, não – grunhiu Oliver. – Você também chora?– Covarde! Minha mãe está lá, sozinha! E você não quer me aju‑

dar só porque sou diferente? Os humanos são ruins! Agora eu entendo porque vocês não podem saber da verdade... São todos egoístas e pre‑conceituosos! As piores criaturas que já vi.

Oliver passou a mão livre pelo rosto. Algo em sua mente ardeu ao ouvir a palavra “verdade”.

– Eu só queria sair daqui! Eu estou perdido! Pare de chorar.Pierre, ao invés de obedecer‑lhe, começou a chorar com mais in‑

tensidade. As lágrimas cristalinas brotavam de seus olhos, escorriam pe‑las bochechas inchadas e terminavam por repousar em sua blusa bran‑ca. Se havia algo que Oliver odiava era o choro. Nunca chorou em sua vida... Nem mesmo após a morte de seu pai. Nem quando era apenas um bebê. Mesmo que seus olhos doessem... Nem perante um filme triste. Nada o fizera comover‑se até então. Ninguém lhe ensinara a chorar e seu desejo de aprender passava longe.

– Ela está muito distante daqui? – perguntou Oliver por fim.– Não muito – respondeu Pierre entre soluços. – Além do mais,

monsieur, eu posso ajudá‑lo a sair daqui.Quando, no passado, ele faria aquilo? Oliver era a última pessoa a

quem se recorreria para pedir ajuda.– Se acontecer algo com ela será sua CULPA! – acusou o lepre‑

chaun e Oliver bufou.– Tudo bem! Eu ajudo, mas só se você parar de chorar e sumir da

minha vida depois!– Mesmo? – Pierre secou rapidamente as lágrimas, esperançoso.– Eu juro que, se isso for uma armadilha ou algo do gênero, eu

acabo com você! Eu já matei um homem antes e não vou hesitar em fazer isso de novo, principalmente com um monstro.

– Eu já falei que não sou um monstro! – rosnou Pierre, olhando o próprio reflexo no espelho que carregava consigo. Um brilho de medo cintilou em seu olhar. – Mas por que você matou uma pessoa?

Oliver brigava mentalmente. Sua parte humana negava o que

Page 18: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 18 ×

acontecia, mas sua parte irracional aceitava... Ambas pareciam guerrear dentro de sua cabeça.

– Você ainda não me respondeu – insistiu Pierre.– Morrer faz parte da vida... E quem eu matei mereceu morrer.Pierre fez um som de quem compreendia. Apontou na direção

oposta às barracas, onde a floresta era mais densa e os espaços que sepa‑ravam as árvores eram mais curtos entre si. Era para lá que deveriam ir. Oliver trouxe a carabina para mais perto e avançou. Não queria ajudar Pierre, mas não tinha escolha se quisesse ir embora.

Assim que os dois seguiram adiante, Oliver percebeu que havia mais rastros de saliva espalhados. Um pedaço de tecido rasgado passou longe de seu olhar, escondido entre dois troncos partidos sobre a grama. Nuvens negras cobriam o céu. Uma tempestade se aproximava rapi‑damente. Oliver não tinha mais tempo para perder com besteiras. Seu trabalho, sua casa e sua mãe o esperavam.

– Estamos chegando! – anunciou Pierre após um tempo de cami‑nhada.

Oliver manteve a carabina em punho, pronto para atirar se fosse preciso. Sabia lidar um pouco com uma arma e mostraria isso a qualquer inimigo que aparecesse. A tocha que Pierre carregava fraquejou com um vento frio. Teve a impressão de que estavam sendo observados. Pierre adiantou o passo e afastou dois arbustos, entrando na clareira que se sucedia. Oliver precisou de muita astúcia e maleabilidade para ultrapas‑sar as plantas sem se cortar. Acabou por embolar‑se numa raiz saliente e quase caiu.

Pierre estava parado diante de uma rede metálica estirada sobre as raízes de um grande cinamomo. Estático, o leprechaun arregalou os olhos e levou as mãos ao rosto.

– O que houve? – perguntou Oliver, usando a tocha para enxergar melhor.

Era uma rede usada comumente para caçar animais, mas com o porte capaz de pegar uma pessoa desprevenida e içá‑la ao ar. O galho, no qual a rede esteve pendurada, encontrava‑se cortado e suspenso apenas por uma pequena fibra do caule.

– Minha mãe não está aqui!– Isso é bom, não é? Se ela estava presa, deve ter conseguido se

soltar! – exclamou Oliver em falsa alegria.– Não! – retrucou Pierre preocupado. Seus olhos reluziam diante

da tocha. – Minha mãe não foi solta. Ela foi pega por algo. Tomara que ela esteja bem! O que vai ser de mim sem minha mãe?

– Acalme‑se! – pediu Oliver com receio de outra crise de choro. – Ela deve estar bem... O galho que prendia a rede pode ter partido...

– Minha mãe não ia conseguir se soltar da rede sozinha... E olhe, a corda foi cortada por algum tipo de navalha. Há caçadores por essas

Page 19: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 19 ×

bandas... Não digo caçadores profissionais, mas criaturas que gostam de caçar por prazer em assistir a morte! E se eles pegaram minha mãe?

Oliver suspirou. Precisavam encontrar um lugar antes que a tem‑pestade desabasse. Em sua cabeça, a mãe do garoto já estaria sã e salva.

– Vamos encontrar um abrigo para a tempestade e depois a procu‑raremos. É o melhor que posso fazer por você agora, se quiser mesmo minha ajuda.

Pierre não gostou da ideia de deixar para procurar sua mãe depois, entretanto tinha receio de ficar sozinho se não fizesse o que o humano propunha. Na floresta, não havia instalações perto o suficiente para se protegerem do temporal, além de uma casa de madeira da qual sua mãe insistia em passar longe.

– Aqui é o único abrigo que podemos usar.Oliver observou a casa quando se desvencilhou dos arbustos. Ao

empurrar o portão, rangeram as dobradiças. Pierre resmungou de re‑ceio. Estava escuro e não conseguia enxergar quase nada. Oliver olhou para os lados, desconfiado, e começou a analisar o terreno.

Não havia luz no interior da casa, embora as janelas e a porta se encontrassem abertas.

– Quem mora aqui? – perguntou Oliver.– Não sei, minha mãe nunca vem para essa direção. Passamos uma

vez por aqui... Ela não gostou.– Bem, pode servir por hora. Não tem ninguém, eu acho... Preci‑

saremos entrar para conferir.Um trovão barulhento estourou no horizonte e fez os pelos da

nuca de Oliver se arrepiar. Sem parar para pensar nas loucuras e situa‑ções que poderia sofrer caso seguisse adiante, Oliver resolveu entrar.

Caminhou em passos pesados até a varanda e estacou de receio. Por que aquelas coisas só aconteciam com ele? Bateu na porta três ve‑zes. Pierre respirava ruidosamente atrás de si.

– Olá? Tem alguém aí?Esperou pela resposta que acabou por não vir. Empurrou um

pouco a porta e deu um passo, trancando‑a com o pé ao colocar a cabe‑ça para dentro.

– Olá? Eu estou entrando. Meu carro pifou e eu estou perdido... Eu preciso usar o telefone ou algo do gênero.

Uma sensação horrível se apoderou de sua mente. Era tarde de‑mais para pensar em voltar atrás. A chuva começou a cair suavemente durante um minuto até que, após um raio e um trovão, despencou sem piedade. Pierre largou a tocha no gramado, que se apagou com a água.

Page 20: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 20 ×

Oliver afastou a porta com o pé e prendeu a arma na axila. Apal‑pou a parede e encontrou o interruptor.

Os dois estavam definitivamente sozinhos. Suspirou até que sa‑tisfeito, porque não sabia se poderia encontrar um amigo ou inimigo. Acionou o interruptor e a sala foi inundada com um feixe amarelado. Havia um pequeno gerador de luz no canto da sala. Não havia muitas coisas além dos móveis, três quadros tortos na parede, um relógio cuco estragado ao lado do sofá marrom velho, rasgado, com espuma brotan‑do dos assentos.

A cabeça de um alce empalhada pendia na parede ao lado direito da estante. “Assustador”, pensou Oliver. Marcas indefinidas de barro no piso, ao redor de um vaso quebrado cheio de terra, ao lado da mesa, e alguns traços na parede causavam um mau pressentimento no humano.

– Não estou gostando disso... – disse Pierre assim que entrou. – Acho que é mais seguro ficarmos na floresta!

– No temporal? Nunca, monstrinho – resmungou Oliver carran‑cudo. A chuva parecia uma interminável saraivada de balas sobre o teto.

Pierre encolheu os ombros. A casa, pintada de um tom cinzento por dentro, possuía mais dois quartos, um banheiro e uma área de servi‑ço. Os dois mantiveram um silêncio constrangedor.

– Vamos ver o que tem por aqui... Quem sabe não encontramos algo para comer.

– Me escute, Oliver. É difícil para você entender o que eu tenho a dizer, mas faça um esforço – pediu Pierre. – Se eu existo, há outras coisas as quais nem você, nem outro humano podem imaginar. É melhor não ficarmos aqui, por favor! A chuva não é tão ruim quanto o que pode estar nos rondando.

Oliver riu de nervosismo e ignorou o comentário tecido. Entrou no corredor apertado e cheirando a mofo. Parou para observar o retrato antigo, em preto e branco, de uma mulher. Tinha a pele mórbida, olhos claros, rosto arredondado e liso e cabelos trançados ao redor da cabeça. Sentada em uma cadeira, bordava um pano de prato. Por algum motivo, a imagem pareceu‑lhe assustadora. Os contornos do quadro estavam cobertos de limo, que, aliás, estava por todas as peças.

Sacudiu a cabeça e continuou até chegar a dois quartos; escolheu aquele cuja porta entreaberta revelava uma cama de lençóis encardidos e revirados. Para sua surpresa, havia um lampião apagado ao lado da cama.

– Tem um lampião aqui! Quem usa isso nos dias de hoje? – per‑guntou Oliver.

O ruído de impacto e vidro quebrando fez Oliver se sobressaltar. – Oliver! – exclamou Pierre do outro quarto.Oliver colocou a mão sobre o peito enquanto resmungava deze‑

nas de xingamentos.– Qual é o seu pro... – falou Oliver, mas parou antes de terminar.

Page 21: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 21 ×

As paredes do cômodo eram feitas de pedra. A porta, apesar de aparentar ser de madeira por fora, fora revestida por uma couraça metá‑lica da espessura de um palmo. As pedras arredondadas do piso apresen‑tavam arranhões e marcas escuras do que parecia ser sangue seco.

Uma contagem – quem sabe de dias – feita por tracinhos, prova‑velmente passando da casa dos milhares, começava no alto da parede e terminava no chão. Teria alguém ficado preso ali por todo aquele tempo? Não havia janelas no quarto e a única luz provinha da lâmpada capenga, suspensa na parede por dois fios elétricos torcidos. E foi olhando para as outras paredes que percebeu que havia mais marcações de tempo.

“Mas que lugar é esse?” perguntou perturbado. “Algum tipo de prisão, ou um forte de proteção talvez.” Um olho fora esculpido no piso de pedras.

– Oliver... – tartamudeou Pierre trêmulo. – Temos que sair daqui!– O quê? – indagou o humano perplexo. Como num passe de

mágica, Pierre não estava mais no corpo de um garoto, mas no de um leprechaun. Suas pernas tremiam, assim como suas mãos. No piso, o espelho que sempre carregava estava partido. – O que significa isso?

– Apague as luzes! – pediu Pierre, correndo em direção à sala.Oliver ficou sem reação. Piscou aturdido quando a casa mergu‑

lhou na escuridão porque Pierre apagara as luzes. Ouvia, além da chuva lá fora, os passinhos de Pierre varrendo o escuro. Demorou um pou‑co para que um pequeno brilho amarelado, tão frágil quanto uma vela, acendesse no corredor. O leprechaun acendeu o lampião, que estava no outro quarto, para guiar Oliver.

– O que está acontecendo?– Temos que sair daqui, Oliver! – O semblante de Pierre era as‑

sustador e macabro à luz do lampião, mas Oliver já não o temia tanto. – Eu sabia que não deveríamos ter vindo para cá...

Oliver prendeu a carabina debaixo do braço e usou as mãos pra chacoalhar os ombrinhos finos e macilentos de Pierre. Ele teve uma sensação estranha de náusea no momento em que o tocou.

– Por que tanto pânico?– É um Caçador de Recompensas! – explicou Pierre, sacudindo

a cabeça. – Não há tempo de explicar. Eles são criaturas horríveis... São cavaleiros do Chamado desertados! E...

Antes que Pierre continuasse, o som da porta da frente sendo aberta atraiu a atenção deles.

– É ele! – balbuciou Pierre, empurrando Oliver para dentro do quarto‑forte. Assim que passou, encostou a porta. Amenizou ainda mais o brilho do lampião, até quase apagar, e gesticulou para Oliver ficar quieto.

O humano não entendeu. Fosse quem fosse que morava naquela casa, certamente não era amigo. O som dos passos pesados da criatura,

Page 22: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 22 ×

que fazia mais barulho do que Oliver e Pierre ao andarem, invadiu a sala. Ele não ligou a luz, mas pela pausa que fez deu a perceber que notava presença de invasor em sua casa. Oliver esgueirou seu olhar através da brecha na porta. Era possível ver apenas um pedaço do sofá da sala e a janela atrás dele. A sombra do ser tomou o seu campo de visão ao parar na sala.

O interior do humano foi invadido por um alerta de perigo. A adrenalina possuiu suas veias junto com o pavor de estar num quarto escuro e cheirando a suor. Oliver encarou os olhos de Pierre, cintilando do mesmo sentimento: medo. Poderiam ser mortos a qualquer momen‑to. “Pesadelo”, pensou Oliver, comprimindo os olhos e desejando com todas as suas forças que acordasse naquele instante com o barulho do despertador. No entanto, para seu desespero, nada aconteceu. Persis‑tentes, o som ensurdecedor da chuva e o estrondo dos trovões gritavam como monstros no horizonte.

Os passos ocos do Caçador de Recompensas pareciam mais pró‑ximos do que nunca. Um cheiro de fuligem, como de uma fogueira recém apagada, rescendia no ar com a chegada do inimigo. “Pode ser uma árvore queimando”, cogitou Oliver na crença de que sua insanida‑de poderia estar mascarando tudo isso. E se tivesse tropeçado e batido a cabeça no meio da floresta, e agora estivesse delirando? Receou que acabasse como sua mãe: com esquizofrenia.

– Oliver, – chamou Pierre baixinho – o que vamos fazer?Por um momento, o humano quis rir. Não era fácil pedir para uma

pessoa que vivia uma rotina, mesmo que cheia de mentiras, acreditar em tudo aquilo. Nem Pierre, nem aquela coisa parada em frente ao sofá, existiam. Ignorou a pergunta do leprechaun e continuou observando a criatura. Na realidade, assemelhava‑se a uma pessoa, embora mil vezes mais assustadora e mórbida. Conseguia ver, pelo reflexo dos raios que, às vezes, entravam pela janela, que ele usava uma blusa xadrez vermelha e preta encardida, uma manta negra que envolvia o pescoço e a nuca, uma calça jeans comprida e rasgada e, por fim, um boné esfarrapado cobria a cabeça. A aba estava voltada para o rosto que, no momento, não conseguia enxergar. Uma energia densa e pesada, capaz de fazer qual‑quer humano ficar tonto e nauseado, envolveu‑o. Ele era um pesadelo ambulante. Oliver cobriu a boca. A arma era a sua única esperança de poder esmigalhar os miolos de qualquer um que tentasse matá‑lo. Secou o suor da testa com a mão trêmula.

– Vamos esperar... – ponderou o humano. – Talvez ele vá embora e possamos sair daqui.

Quando a atenção de Oliver voltou para o inimigo, ele não estava mais lá. Ambos tiveram de esperar; não havia mais som de passos na casa. Até a chuva amenizou um pouco e, em questão de segundos, o silêncio reinou lá fora, como se o tempo estivesse congelado. Agora,

Page 23: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 23 ×

apenas as gotas despencando do telhado tiquetaqueavam sobre o asso‑alho da varanda.

– Aonde ele foi? – indagou Oliver.Pierre deu de ombros.– Ele pode ter ido caçar alguma coisa – disse Pierre amedrontado.– Vamos, então!– Espere! – pediu o leprechaun trêmulo. – Ele ainda pode estar ali!

E se for uma armadilha?– Eu estouro os miolos dele! – retrucou Oliver com uma confian‑

ça que nem ele mesmo acreditava.Oliver usou o cano da carabina para afastar a porta de metal. Es‑

perou alguns segundos e deu o primeiro passo para o corredor. O cora‑ção martelava fundo em seu peito, enquanto um frio descia da garganta para o estômago. Pierre avançava logo atrás dele com as mãozinhas pou‑sadas sobre as costas de seu “protetor”. Não havia ninguém nos dois quartos, muito menos na cozinha, que Oliver enxergava de onde estava. Engoliu a seco, aliviado ao chegar à sala vazia. A porta de entrada batia com uma brisa.

– Ele não está aqui – murmurou Oliver.Pierre assentiu e parou ao lado do humano.– Vamos aproveitar e fugir, então...Os dois concordaram e deixaram a casa. Não foi tão fácil quanto

parecia; agora que sabia que o inimigo espreitava o mato lá fora, a casa começava a parecer segura.

– Espere! – exclamou Pierre, apontando para a floresta.Som de passos na grama. Poderia ser a chuva que despencava da

copa das árvores, mas o humano sabia que não. Alguém se aproximava. Mirou a carabina na direção do perigo e esperou. “Tic‑tac, tic‑tac”, dizia o gotejar na varanda. Três pessoas, assustadas e encharcadas de água e barro, emergiram da folhagem. Usavam coletes verdes, daqueles que vinham com repelente para espantar mosquito.

– Wow! – exclamou um deles, um homem negro e de idade mais avançada. Ele ergueu as mãos. – Não nos mate!

– Quem são vocês? – perguntou Oliver, pressionando o gatilho.– Estávamos acampando por aqui! E... algo nos atacou. Acabamos

nos perdendo e... e... Céus, não sei o que está acontecendo! – contou outro, um homem de cabelos grisalhos e vincos de rugas no rosto.

Oliver notou que Pierre já estava em sua forma humana.– Vamos sair daqui, Oliver. Melhor continuarmos antes que o ca‑

çador volte!– Shhh! – retrucou o humano grosseiramente. Depois, voltou‑se

em silêncio para os três campistas. Eram eles que estavam no acampa‑mento? Oliver tinha, de nascença, a natureza desconfiada. – Vocês estão bem?

Page 24: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 24 ×

– Um pouco! – respondeu o de rosto vincado, como se lesse os pensamentos de Oliver. – Acho que fomos atacados por um urso ou algo do tipo... Nos perdemos de dois amigos nossos. Um deles atirou no monstro, mas não foi suficiente para detê‑lo. Corremos e consegui‑mos nos safar... Não sei o que aconteceu com os outros.

Oliver baixou um pouco a arma. Humanos, finalmente. Respirou aliviado e ignorou os protestos de Pierre ao seu lado.

– Não somos daqui, – explicou Oliver – encontramos essa casa enquanto buscávamos abrigo para a chuva.

– Pare de dar informações para os estranhos! – sussurrou o lepre‑chaun. – Nunca diga que está sozinho...

– Meu carro pifou e eu me perdi enquanto buscava ajuda – pros‑seguiu Oliver indiferente aos comentários do leprechaun.

– Isso é bom, pelo menos você não encontrou aquela coisa. Meu nome é Felipe – apresentou‑se o homem negro. – E este velho é Marcos e o outro, quietão e pálido, se chama Lucas.

Oliver analisou o terceiro indivíduo. Ele era um pouco estranho, quieto demais para uma pessoa que fugia de um urso. “Está em choque” cogitou. Queria sair logo dali e as três pessoas eram sua esperança.

– Oliver... – sussurrou Pierre.– Podemos sair desse lugar, se você quiser – prontificou‑se Felipe.

– Se seguirmos para o norte, podemos deixar esse mato em três horas de caminhada e chegar ao centro. Ou, se formos para o sul, em quatro horas encontraremos a praia. Há ajuda por lá também.

Oliver estava se sentindo seguro novamente.– Ah! Como é bom encontrar alguém que saiba como sair daqui. – Ei, caras! – gritou alguém na floresta, atrás dos três campistas. –

Acho que encontramos nossa presa da noite!Dois homens, altos e troncudos, irmãos gêmeos pelas suas fei‑

ções parecidas, irromperam das plantas e atiraram uma terceira pessoa na grama. Era um mulher jovem e pálida, que usava um lenço imundo na cabeça. Pierre soltou um grunhido.

– Mamãe! – gritou sufocado ao ir ao encontro dela.A mulher, de bruços no chão, ergueu o rosto abatido para seu

filho. A confusão invadiu a mente de Oliver.– Meu Deus! Pierre! – exclamou ela, ficando de pé aos tropeços e

abraçando o filho.– Qual é, Charles! – retrucou Marcos, abrindo os braços, irritado.

– Será que não pode avaliar a situação antes de agir precipitado? Esta‑mos caçando aqui!

Charles, um dos gêmeos, observou Oliver e depois Pierre. – Perdoe‑nos, chefe! – pediu ele com um quê de ironia. – Não

sabíamos que havia mais gente aqui além dessa aí e aqueles três casais de campistas que estavam acampando!

Page 25: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 25 ×

Confusão. Sobre o que aqueles cinco estavam falando? As mãos de Oliver começaram a tremer de novo. Por que as coisas estavam fican‑do tão estranhas e complicadas aquele dia?

– O que está acontecendo aqui? – perguntou Oliver novamente com a arma em punho. – Sobre o que estão falando? O que fizeram com essa mulher? Nunca deveria ter deixado aquele carro...

– O carro... – Subitamente disse Lucas, quebrando o silêncio. – Eu o farejei há alguns quilômetros daqui, mas o vento não deixou que eu soubesse mais a respeito. Ele deve ser o dono.

“Farejar?” pensou Oliver, cético . A história estava passando dos limites do aceitável. Dor foi a primeira coisa que sentiu quando sua ca‑beça latejou. Pôs a mão na testa e gemeu baixinho, e só não caiu porque seus pés estavam cravados no solo. Dores de cabeça em Oliver eram co‑muns quando se estressava muito, consequências do acidente de carro que sofrera há anos. Pierre se preocupou com seu “amigo”.

– Oh, mamãe! Estivemos procurando por você!– Filho, você tem que sair daqui! – pediu ela, abraçando o filho

com apreço. – Eles são maus... Essas... Essas coisas que me pegaram são terríveis e vão matá‑lo se não fugir daqui!

– Oliver vai nos salvar, não se preocupe! Ele prometeu me ajudar!A mãe de Pierre, uma mulher de olhos azuis e face lisa e mórbida,

como se estivesse afetada por uma doença gravíssima, não acreditou que o humano perturbado e armado pudesse fazer algo por eles.

– Por favor, filho, fuja!– Ninguém vai sair daqui, leprechaun desprezível! – exclamou Fe‑

lipe, mudando radicalmente de humor. – O respeito pelas caçadas, como as de antigamente, não existe

mais – lamentou‑se Charles. – Cansei de esperar, vamos à diversão!Oliver não soube se entrou em colapso, mas quando percebeu

estava rindo. A atenção se voltou completamente para ele. E se estivesse realmente esquizofrênico? E louco? Uma chuvinha fina começou a se acumular sobre seus cabelos rebeldes. Seu rosto, embora comum e não tão diferente do que se encontraria por aí, era dotado de um charme arrogante e inexplicável. Um sorriso um pouco enigmático repousou em seus lábios.

– Okay, isso é uma brincadeira, não é? Uma pegadinha? Quem pagou vocês para fazerem isso? Isso só pode ser loucura! Vocês fazem parte da minha mente, não fazem?

Felipe gesticulou para os gêmeos. – Prove que somos mais reais do que ele próprio.Os gêmeos bateram no peito e depois arrancaram suas blusas.

Pierre puxou sua mãe à força para trás de Oliver.– Por favor, Oliver... Vamos fugir! – pediu o leprechaun.– Eu não vou fugir! Isso não é real! – berrou Oliver, largando a

Page 26: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 26 ×

carabina. – Nada disso existe! Diante deles, os gêmeos triplicaram de tamanho. Crescendo de

forma grotesca e adquirindo pelos por todo o corpo, Oliver fechou os olhos e negou‑se a ver o que acontecia. Tapou os ouvidos e começou a repetir para si que não era real. Queria voltar para a realidade. Queria acordar daquele pesadelo.

Pierre e Marlyn, sua mãe, gritaram, mas não puderam fugir. Con‑gelados de medo, viram as duas criaturas de faces lupinas, maiores do que um urso adulto, arquearem o tronco largo sobre as quatro patas. Eram musculosas, altas e extremamente peludas. Os dois seres eram marrom‑claro e tinham olhos vermelho‑rubi, que cintilavam fantas‑magoricamente. Os rostos, embora lembrassem lobos, eram maiores e grotescos. Seus dentes, quase incontáveis, eram navalhas prontas para dilacerar. Gotas espessas de saliva escorriam pelos cantos protuberantes das bocas. Charles avançou em passos pesados até Oliver.

Oliver continuou murmurando “isso não existe” até que o bafo morno, exalando odor de amônia acertasse seu rosto. Abriu os olhos e encarou a criatura, cujo corpo era diversas vezes maior que o seu. Ele poderia arrancar sua cabeça com uma única mordida.

– Não é real... – disse entre dentes, aterrorizado.– Oliver! – gritou Pierre preocupado.Charles apanhou Oliver pelo pescoço e içou‑o no ar. Oliver não

conseguiu respirar e muito menos se soltar dos dedos potentes que o seguravam. O monstro, de pé, com seus dois metros e meio de altura, carregava Oliver como se não pesasse mais do que uma pluma. Suas orelhas pontudas e longas voltaram‑se para o humano.

– Ainda acha que é uma ilusão? – questionou Charles, cuspindo saliva. – Dor é real... A dor mostra que você está vivo e também lúcido. Posso fazer você suplicar por sua vida somente usando a sua dor.

Charles ergueu a outra pata e cortou a lateral do rosto de Oliver.– Humanos são tão idiotas... Tão... Supérfluos e facilmente enga‑

náveis. Vocês acham que são donos da Terra. Julgam‑se deuses e também imaginam‑se capazes de enganar os outros com suas mentiras, mas é o mundo que engana os humanos... É ele que mente, é ele que manipula e os faz acreditarem que são poderosos e que estão sozinhos no topo da cadeia alimentar.

– Largue‑o! – gritou Pierre, desvencilhando‑se dos braços da mãe e chutando a perna do monstro. – Deixe‑o em paz!

Charles lançou Oliver contra uma árvore e urrou feito um trovão. Pierre recuou aterrorizado quando outros três monstros, idênticos na forma, mas diferenciados pelas cores, abriram um cerco ao redor dele e de sua mãe. Um era negro, o outro grisalho e, por fim, um de tom acafezado. Eles eram montanhas se comparados à estatura do pequeno leprechaun. Marlyn colocou o filho para trás de si.

Page 27: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 27 ×

– Me matem! Mas não façam mal a ele! – suplicou ela.Oliver arquejou e ficou de joelhos. Tossiu. Os cinco monstros

agora entretinham‑se com os leprechauns. Eles eram reais... Não faziam parte de sua imaginação. Tinha de fugir para salvar sua vida, não impor‑tava mais se era só sua loucura ou não. Se quisesse viver, precisava fugir. Ficou de pé com dificuldade e usou a árvore como apoio. Os vergões das garras de Charles marcavam seu pescoço sensível. Não podia lutar contra eles – e nem queria –, então estava na hora de fugir. Aproveitar‑se da isca que Pierre e sua mãe se tornaram.

– Oliver! – gritou Pierre apavorado. – Por favor, nos ajude! – Eu não posso... – murmurou o humano. – Eu não... Não posso

fazer nada por vocês.Foi com tremenda dor e pavor que Pierre viu Oliver desaparecer

entre as árvores ao fugir.– O humano está fugindo, Felipe! – informou Marcos.– Deixe‑o ir... Nós o pegaremos de qualquer jeito mais tarde. É

uma pena que você, leprechaun, tenha confiado sua vida a um humano.Oliver correu como uma criancinha acuada por seus pesadelos.

Tropeçava em qualquer coisa que houvesse no solo, mas não se permitia cair. Precisava salvar sua vida antes de qualquer coisa. Não podia fazer nada por Pierre. Era só um monstrinho... Um monstrinho que o ajudara a se desvencilhar do perigo maior. Só isso. Oliver pôs a mão na cabeça que doía como nunca.

– Não posso fazer nada! Sou só uma pessoa!Olhou para trás e notou que ninguém o seguia. Queria berrar de

alívio, mas algo o impedia. Sua consciência, ao contrário de seu instinto, gritava para que não continuasse. Como Pierre poderia esperar que um humano assustado e egoísta pudesse enfrentar monstros que, até o dia anterior, não existiam para ele? Arfou com falta de ar e caiu de bruços. Comprimiu a cabeça que doía e virou de barriga para cima.

– Pare! – gritou para a própria dor. – Eu preciso fugir!Covarde – foi o que uma voz fria disse no fundo de sua mente,

como se fosse uma segunda consciência.– Eu não sou covarde! – berrou Oliver para si mesmo. Não apenas covarde, mas um inútil. Se vai fugir, ao menos que faça

isso bem feito e sem olhar para trás! – repetiu a voz dentro de sua cabeça. Nunca a ouvira antes, mas sabia que provavelmente era o remorso. – Você já fez isso bem feito, pode fazer de novo!

– Oliver! – gritou a voz distante de Pierre.Oliver resmungou baixinho e uma lembrança invadiu sua mente.

Flashback I – 15 de outubro de 2004Oliver tinha 15 anos e seu olho ardia com o soco que havia acabado

Page 28: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 28 ×

de levar. Era ele e Artur, seu amigo, contra seis adolescentes. Estavam em um beco cheio de lixo. Na rua perpendicular ninguém os via, pois além de deserta, ela era muito escura. Oliver usava um casaco de moletom, calças jeans rasgadas no joelho e uma blusa preta. Seus olhos injetados e verdes, agora de cor mais realçada devido ao vermelho do medo, encaravam os inimigos. Seu nariz estava machucado não pelos golpes que recebia, mas pela droga que havia consumido e que não havia pago.

Devia dinheiro aos seus inimigos.– Cadê a grana, cara? – perguntou um dos garotos.– Eu não tenho! Já disse! – respondeu Artur, que era mais baixo e

novo do que Oliver.Um deles desferiu um soco do estômago de Artur. Oliver nada fez,

pois já havia apanhado um bocado até aquele instante. Precisava fugir ou acabaria morto. Mesmo que sua vida não significasse nada, ele não queria morrer. Não queria terminar ali...

– Eu vou pagar! – disse Oliver, afastando os cabelos bagunçados e colados na testa devido ao suor. – Só mais um dia e posso roubar algo!

– O prazo acabou...Aquela frase ajudou Oliver a tomar sua decisão.– Desculpe, Artur – pediu o garoto, cerrando os pulsos.– O quê? – questionou o amigo sem saber o que aquilo significava.Quando Oliver ia receber um soco, esquivou‑se para o lado e cor‑

respondeu com um chute seguido de uma cotovelada no nariz do adversá‑rio. Com aquilo, conseguiu fugir, ao abrir uma brecha pela qual passaria apenas uma pessoa.

– Você me disse que estávamos juntos nessa – gritou Artur, ao ver Oliver fugir. Dois garotos foram ao encalço dele, os outros quatro ficaram.

Oliver não voltou e nem olhou para trás. Não chorou quando sou‑be que seu amigo estava em coma no hospital, no dia seguinte. Devido à situação, os pais de Artur levaram‑no para outro estado. Ele nunca mais andaria, consequência da surra que diziam valer algumas gramas de coca‑ína. Era sua culpa por tê‑lo abandonado lá, mas era a vida de Artur ou a sua... Foi covardia ter escolhido a si mesmo.

Fim do Flashback I.

A chuva havia voltado a cair e agora banhava o rosto de Oliver, voltado para cima. A quem queria enganar? Ele era um fracasso como pessoa, filho, amigo ou protetor. Não que devesse algo a Pierre, mas deixar um inocente sozinho era um crime. Oliver prometera para si mesmo deixar os crimes enterrados no passado.

O passado nunca nos deixa, Oliver. Nós o esquecemos, mas não para sempre – disse sua consciência de voz gélida. – Você é um covarde e assassino, e nada disso mudou.

– Eu não posso fazer isso! – gritou Oliver com as mãos no rosto.

Page 29: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 29 ×

Então corra, pois o tempo está contra você. Ainda há uma chance, se você não quiser viver com essa dívida – insinuou a consciência.

Oliver entranhou os dedos na grama barrenta e baixou a cabeça. Não havia lágrimas em seus olhos, apenas medo em seu coração. Era um humano... Apenas um humano.

Page 30: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 30 ×

Capitulo 3Nem amigo, nem inimigo

Felipe pousou sua pata negra sobre o pequeno peito do Pierre humano. Marlyn gritava, em pânico, suplicando para que não ferissem seu filho. Queria poder salvá‑lo, mas os outros dois monstros segu‑ravam‑na contra a grama, pisando em seus braços. Os olhos de Pierre lacrimejavam de medo. Como uma criaturinha tão ingênua poderia ter um fim tão triste? Os cinco inimigos eram enormes. Jamais, em toda a sua existência de leprechaun, se deparou com um demônio de pelos.

Uma gota de saliva escorreu do espaço entre os dentes de Felipe e caiu sobre os cabelos de Pierre.

– Não há espaço para você nesse mundo. Nunca houve... Os fra‑cos precisam morrer para dar espaço aos fortes.

Ele abriu a boca, mas antes que pudesse abocanhar o garoto, um som alto ecoou à direita deles, no meio das árvores.

– Ei, imbecis! Por que não me pegam? – indagou a voz.Pierre reconheceu como sendo a voz de Oliver.– É aquele humano de novo... – resmungou Marcos. – Não se esqueça de que humanos são estúpidos e gostam de fa‑

zer idiotices – lembrou Charles.– Vocês fedem a esgoto! – xingou Oliver. – Se ele quer dar uma de valente... Então peguem‑no! – ordenou

Felipe rosnando. – Covardes! – acusou o humano. – Acham que não posso acabar

com vocês também?Marcos e Charles começaram a caminhar em direção a voz. Por

um momento, a atenção voltou‑se completamente para os dois. Charles tomou a frente enquanto se embrenhava na floresta. Eles caminhavam sobre quatro patas com uma destreza e uma elegância superiores à de um urso. Pierre não acreditou que Oliver pudesse ser tão idiota a ponto de se arriscar daquela forma. Imaginou que talvez ele tivesse um plano.

As duas criaturas apressaram o passo em direção à voz.– Que humano estúpido – retrucou Marcos irritado.Charles arrancou com uma patada uma planta que se encontrava

Page 31: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 31 ×

em seu caminho.– Ei, imbecis! Por que não me pegam? – repetiu Oliver.Mais próximas da voz, as duas criaturas se entreolharam e redu‑

ziram o passo. Havia uma parede de arbustos em seu caminho. Charles gesticulou com a cabeça, sinalizando a presença do humano ali atrás.

– Vocês fedem a esgoto! – Oliver disse.Os dois avançaram por entre as plantas.– Que porcaria é essa? – questionou Marcos, esmagando com as

garras um aparelho celular deixado sobre um tronco.– É um celular! – respondeu Charles. – Aquele idiota estava nos

enganando com uma gravação!Marcos esmigalhou o aparelho ao apertá‑lo.– Que cheiro é esse? – perguntou Charles, farejando fumaça. –

Parece que estão queimando algo...Marcos ergueu o focinho para o alto. Não havia nenhum sinal

de queimadas e nem haveria como, pois a chuva havia molhado tudo. Se fossem humanos, os monstros já teriam pressentido suas presenças. Charles sentiu algo gelado em sua pata e, ao olhar, viu que ela estava imersa em uma textura estranha. Parecia muito com uma fumaça, no entanto era de cor vinho escuro e de aspecto aveludado. Enojado e re‑ceoso, tentou puxar a pata, mas ela parecia presa como se estivesse em areia movediça.

– Marcos! – exclamou o monstro, cercado pela fumaça.Ela serpenteava entre o gramado e as folhas dispersas pelo solo,

nunca passando dos quinze centímetros de altura. A estranha substân‑cia vinha de todas as direções e agora fixava ao chão as patas traseiras de Marcos, que ergueu‑se antes de ficar com as patas dianteiras também presas. Puxou a perna, mas estava totalmente imobilizada.

– É gelado! O que é isso, Marcos?– Santa porca! Aqueles lupus do norte disseram que viram um

Caçador de Recompensas por essa região... E eu já ouvi falar sobre eles antes. São criaturas que caçam Gerações Passadas em troca de uma por‑ção de suas almas, eles pegam suas vítimas com seus véus.

– Véus? – questionou Charles com muito medo. Suas orelhas apontavam para trás.

– Lupus – disse uma voz tão sussurrante quanto o próprio vento.Os dois olharam no mesmo instante para frente. O homem que

Oliver e Pierre haviam visto na casa encontrava‑se agora diante deles. Sua silhueta de armário intimidava até os dois monstros. A manta que envolvia sua nuca, e também toda a região da base do nariz para bai‑xo, era do mesmo tom escuro da fumaça. Não era possível ver seus olhos, ocultos na sombra do boné. Sua respiração, que mais parecia o resfolegar de um touro, causava arrepios.

– Quem é você? – perguntou Marcos, arreganhando o cenho.

Page 32: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 32 ×

O Caçador não respondeu. E o seu silêncio foi pior do que qual‑quer resposta dada. A fumaça vinho cobria até a altura de seus calca‑nhares e tinha um cheiro inconfundível de fuligem. Caçador arregaçou as mangas, e ainda assim não revelou um único pedaço de pele em seu corpo. Luvas de couro pretas protegiam suas mãos. Marcos irritou‑se e conseguiu soltar uma das pernas, embora tivesse a sensação de que o Caçador os desafiava a lutarem por suas vidas. Charles também viu‑se solto e, embora desejasse fugir, Marcos tomou a frente da briga, o que o obrigou a fazer o mesmo.

Caçador estalou o pescoço e gesticulou para que o primeiro vies‑se. O ar ao seu redor parecia turvo, denso e frio. Marcos rondou o ini‑migo de longe.

– Se acha que pode contra nós, vou mostrar do que nossa espécie é capaz – ameaçou o lupus.

A essa altura, a fumaça aveludada já cobria todo o solo do local onde estavam. Marcos arqueou o corpo e saltou com suas garras em riste. Esfolaria aquele desgraçado da mesma forma que já fizera com outras presas suas. Um humano, por mais alto e forte que fosse, jamais seria um problema para um lupus como ele. Ao invés de recuar, Caçador avançou um passo, levou o braço para trás e depois desferiu um soco na face do monstro. Marcos experimentou a sensação de bater com a boca em aço. Foi atirado para o lado e, antes que pudesse pedir por socorro ao seu companheiro, ele teve a boca, as patas e metade do corpo envolto pela fumaça. Arregalou os olhos de pavor e tentou se soltar, inutilmen‑te. Olhou para Caçador segundos antes de seu corpo terminar de ser coberto e tornar‑se cinzas.

Charles contorceu‑se horrorizado. Tentou gritar, no entanto a fu‑maça já cobria sua boca quando pensou em abri‑la.

– Onde estão aqueles dois? – perguntou Felipe, sinalizando para que o irmão de Charles fosse procurá‑los.

Nesse instante, Pierre sentiu uma pedrinha bater contra sua bo‑checha. Do outro lado da clareira, atrás dos arbustos, Oliver gesticulava para o leprechaun, que entendeu o que ele queria dizer. A carabina, caída a menos de um metro e meio de distância de Pierre, precisava chegar até o humano. Pierre concordou, juntou uma pedra que estava ao seu alcan‑ce e a bateu contra a pata de Felipe. Aproveitando o momento em que o lupus se distraíra com o desaparecimento dos companheiros, Pierre libertou‑se. O leprechaun arrastou‑se, apanhou a carabina e atirou para Oliver, que já saía de seu esconderijo.

O humano tinha uma expressão séria, de quem está refletindo ou calculando algo. Oliver pegou a arma e a empunhou enquanto corria. Seus movimentos eram precisos: ele poderia não ter matado um mons‑tro como aquele antes, mas tinha no sangue uma tendência assassina. O suor escorria por sua testa quando saltou sobre o leprechaun estirado no

Page 33: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 33 ×

chão e reduziu a distância que o separava do inimigo de uma única vez. Felipe não teve tempo de reagir quando a ponta da carabina tocou seu pescoço.

Os dois se encararam por segundos que pareceram intermináveis. Não houve diálogo. Oliver sabia que falar daria tempo de revide ao ini‑migo, tempo este que estava ao seu favor. O disparo foi feito e, antes que o monstro caísse, seu corpo reduziu‑se a cinzas que se dissiparam com o vento. Tão rápido quanto seu sangue‑frio voltou a ser quente, Oliver conseguiu mirar novamente.

Apontou para Lucas. Sabia, no fundo, que ter matado Felipe fora apenas um golpe de sorte. O outro inimigo não cairia com uma bala que não fosse precisa. “Sorte”, pensou ao soltar a respiração e ofegar. Seus dedos escorregaram quando o outro monstro largou Marlyn e o enca‑rou com olhos assassinos.

– Você o matou... – murmurou ele incrédulo e, ao mesmo tempo, satisfeito. Hierarquias entre lupus eram como alcateias, se o líder fosse morto, outro deveria tomar seu lugar. Não havia apego ou amizade en‑tre os monstros.

– Eu vou matá‑lo também! – exclamou Oliver, perdendo um pou‑co da coragem que o motivara a agir.

– Você veio, Oliver! – disse Pierre. Marlyn foi ao encontro do filho e os dois se protegeram atrás do

humano. Eram eles e Lucas. Ou melhor, Oliver e Lucas. O monstro te‑ria prazer em ter, como um troféu, o humano, que, afinal, fora o assassi‑no de seu ex‑líder. Após a primeira ação, Oliver começava a sofrer com sua consciência. Jamais deveria ter se dirigido para os braços da morte. Estava se entregando ao inimigo por quem mesmo? Um monstrinho e sua mãe que mal conhecia?

– Onde eu estava com a cabeça? – perguntou‑se Oliver, baixinho.Pierre sentia cheiro de medo de Oliver. Criaturas com os sentidos

aguçados, como ele e Lucas, tinham essa capacidade.– Obrigado, Oliver – agradeceu Pierre com sinceridade.– Cale a boca, monstrinho – pediu Oliver rispidamente. – Não me

agradeça até você estar definitivamente em segurança.Lucas rosnou e avançou um pouco.– Eu vou atirar se chegar mais perto!– Não sou tão estúpido quanto Felipe. Não vou menosprezá‑lo,

mas também não tenho medo de você.Afinal, o que era Oliver com sua única bala?– Só tem uma bala a mais, não é? Quando matei o caçador do

acampamento, ele só tinha duas balas... E você gastou uma em Felipe – disse Lucas avançando mais um passo.

Pierre abraçou mais sua mãe. Oliver nunca ia acertar um lupus em movimento... Ainda mais se tinha apenas uma bala disponível.

Page 34: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 34 ×

– Corra, Pierre – disse Oliver após um tempo em silêncio. – Vou segurá‑lo o quanto conseguir...

Felipe riu. Oliver havia aceitado tão rapidamente a morte. – Correr só vai tornar as coisas mais divertidas...– Rápido! – ordenou Oliver, rangendo os dentes. Mesmo que sua

consciência o mandasse correr, Oliver não queria mais fugir. Não havia para onde fugir...

Lucas era o menor de seus problemas agora. Sua mãe doente, seu emprego desgraçado e seu passado o esperavam em casa. Não queria voltar para aquilo. Já pensara várias vezes em se matar com um tiro, mas nunca teve coragem. Essa era a sua oportunidade. “Quero morrer aqui, hoje”, pensou consigo.

Marlyn puxou o filho relutante ao dizer um “obrigada” fraco. Oliver não retirou os olhos de Lucas por nenhum instante. Levaria o monstro junto para o inferno. Queria ter mais balas para poder reta‑lhá‑lo como ele merecia de verdade. Os dois leprechauns deixaram o local, embora Oliver soubesse que Pierre relutava até o último instante em sair dali, para ficar com ele.

Lucas avançou mais. Carabinas eram ótimas para tiros de curta distância... Quanto mais perto o inimigo estivesse, melhor seria para Oliver, por isso não se distanciou. Ao invés disso, também avançou.

– Você está pronto para o inferno, humano?– Estou tanto quanto você – ameaçou Oliver, trazendo o rifle para

perto do rosto.– Só espero que sua consciência limpa tenha valido tudo isso.Era o momento decisivo. Lucas atacou mais rápido do que Oliver

esperava, o que o obrigou a atirar. Mesmo tendo atingido o ombro do lupus, ele não parou e o derrubou com uma pancada no peito. Usou a carabina para impedir que a boca dele arrancasse sua cabeça. Sentiu a baba fétida escorrer por sua bochecha. Fez toda a força que conseguiu e não o afastou um centímetro. As juntas dos braços doíam conforme os músculos cediam.

O rosto de Oliver enrubesceu e suas veias ficaram mais aparentes. Lucas mastigou o metal do cano, até que, com um puxão, arrancou‑a das mãos de Oliver e a atirou longe. Nesse instante, o irmão de Charles, ain‑da não refeito do choque, surgiu apressado no bosque. Tinha os olhos arregalados de pavor.

– Estão todos mortos! – exclamou apavorado. Oliver achou que estivesse alucinando, mas havia uma fumaça cor

de vinho escapando das costas do monstro. Ele sacudiu o pelo, mas isso não foi suficiente para afastá‑las.

– Do que você está falando? – perguntou Lucas irritado.– É um Caçador... Caçador de Recompensas... – gaguejou o lupus.Diante dos olhos de Lucas e Oliver, a fumaça rasteira do Caçador

Page 35: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 35 ×

invadiu a clareira e agarrou as patas traseiras do lupus. Ele tentou se sol‑tar, mas quanto mais se movia, mais rápido o véu o envolvia.

– Socorro! – gritou ele quando restava apenas sua cabeça de fora.Lucas não se moveu de tamanha surpresa. Oliver não entendeu o

que acontecia, assim como também não entendia a existência de todas as criaturas que estavam aparecendo em sua vida. Reconheceu o homem parado entre dois cinamomos, logo atrás do irmão de Charles: era o Caçador de Recompensas que havia visto na casa. Incomodou‑se muito com o fato de não poder ver seu rosto.

O desconhecido sempre assombrava mais. O irmão de Charles, para o pavor de Lucas, tornou‑se cinzas. Lucas sabia o que eram aqueles “homens” e do que eles eram capazes. Não eram vivos e nem mortos, mas eram capazes de fazer mal a ambos. Saiu de cima de Oliver, acuado, e partiu em corrida. Para seu azar, segundos antes de deixar a clareira, elevou‑se dos arbustos, em seu caminho, uma cortina de fumaça que o envolveu e o fez cair de costas. Engatinhando, Oliver afastou‑se o má‑ximo que pôde, assistindo à luta em vão do monstro para salvar sua vida.

Ele latiu, grunhiu, rosnou e nada foi capaz de deter o véu que o cobriu por completo. Assim que o silêncio se fez presente, a silhueta do que era Lucas foi diminuindo até se equivaler ao nível dos calcanhares do Caçador. Silêncio. Caçador avançou um pouco e parou, agora de frente para Oliver.

Só restavam eles. A energia densa continuava a esfriar o ambiente. Oliver afastou a mão da fumaça que se aproximava. Sabia que não deve‑ria tocá‑la se quisesse continuar vivendo. Precisou abraçar os próprios joelhos para se comprimir no espaço limitado que ainda sobrava. Por onde olhasse, aquela coisa fedendo a cinzas esperava apenas uma ordem para matá‑lo também.

Era como se o tempo houvesse parado. Os raios haviam cessado, assim como o vento não soprava mais. Que tipo de mundo era aquele em que lobisomens devoravam pessoas, e que fumaças engoliam lobiso‑mens? Riu da ironia de seu pensamento.

Não podia saber o que Caçador pensava. Não havia olhos e muito menos expressões... Restava apenas o silêncio de um final que assom‑brava a mente de um humano. “Não pode ser real”, pensava Oliver, começando a se mover para frente e para trás, em choque. Nada fa‑zia sentido. Duas colunas de fumaça vinho se ergueram diante de seus olhos e voaram lentamente em sua direção, como duas mãos prontas para abraçá‑lo. “Venha aqui, meu filho, vou levá‑lo para um lugar me‑lhor. Você está a salvo agora”, elas lhe diziam.

Flashback II – 23 de Dezembro de 2001Oliver tinha 12 anos e a viagem de carro com seu pai estava ficando

cansativa. Eles já estavam viajando fazia uma hora e meia pela tal da Es‑

Page 36: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 36 ×

trada Velha, uma estrada que interligava a capital do Rio Grande do Sul ao estado de Santa Catarina, mas que não era usada devido a um infortú‑nio que impediu sua finalização. Não se via nada além de uma planície de gramado ressecado, que terminava ao pé de morros verdes e encobertos por nuvens. Aquela tarde meio amarelada parecia que nunca ia terminar. O sol esquentava muito o metal do carro e fazia Oliver suar demais. Moscas também se faziam presentes.

– Afinal, por que estamos aqui? Poderíamos ter ido para a praia, ou ter jogado futebol, ou outra coisa que não fosse essa chatice de viagem!

Guilherme, um homem de trinta e nove anos, rosto lívido e com algumas rugas, cabelo já grisalho e olhos e sobrancelhas como os de Oliver, dirigia a caminhonete azul encardida. Com toda a paciência do mundo, ele sorriu e depositou a mão sobre os cabelos de “cuia” de Oliver. Uma mú‑sica de Rock dos anos 80 tocava no rádio e, assim que ela começou a falhar, pela perda de sinal, seu pai abaixou o volume até desligar. Eles passaram por uma placa envelhecida que dizia “Posto Carvaris II a 1 km”.

– Isso aqui é mais interessante do que parece.– Por causa daquela história que você contou? – indagou Oliver,

cínico. – Não tenho mais idade para ficar com medo, pai.– A história também é interessante. Não acha estranho que mui‑

tas pessoas tenham morrido em três acidentes ocorridos no mesmo lugar, mas em tempos diferentes? Ninguém consegue interromper a construção de uma estrada sem causar muita desgraça.

– Se é tão perigoso para os outros, por que não é para nós também? – desafiou o garoto, cruzando os braços.

Guilherme revirou os olhos e riu. Era um homem calmo e nada do que Oliver fizesse o tiraria do sério.

– Para que são as flores ali atrás? – perguntou Oliver, apontando para um buquê de rosas deitado cuidadosamente sobre o banco traseiro.

– Você vai ver.Oliver notou, mais adiante, centenas de pequenas cruzes fincadas

desordenadamente no solo. Era um cemitério. Seu pai reduziu a veloci‑dade até parar na frente da cerca baixa que delimitava o lugar. Deveria haver uns cento e vinte túmulos lá. Guilherme desceu. Oliver também saiu do carro e acompanhou seu pai, já com o buquê em mãos, até o centro do cemitério. Ele parou diante de um túmulo com uma pequena cruz de madeira. O nome “Alberto Drummond” estava escrito com tinta preta um pouco apagada.

– Alberto? – perguntou Oliver, estranhando. – Não é o seu pai?Guilherme abaixou‑se, fez o sinal da cruz e depositou as flores sobre

o túmulo.– Sim. Ele participou da construção dessa estrada e morreu no úl‑

timo dos acidentes que levou o governo a fechar a Estrada Velha. Como eu disse, eles estavam construindo uma ponte sobre um rio que cortava

Page 37: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 37 ×

a estrada. Quando estavam quase terminando, algo fez com que vários operários fossem atingidos e mortos pela dinamite que eles estavam usando para explodir uma parede rochosa. Todos sabiam que o acidente foi inten‑cional... Era um crime sem provas. Muitos operários deixaram de traba‑lhar na época, porque sabiam que as coisas não terminariam ali. Mas meu pai não ia parar o que ele tinha começado. Alberto tinha acompanhado a construção da estrada desde o início e não ia deixar ninguém pará‑lo.

“Seus amigos insistiram para ele ir embora com eles quando o se‑gundo desastre matou mais operários. Alguém queria parar o trabalho nas minas de carvão da região e encontrou a melhor forma ao destruir a ponte pela segunda vez. Sem a ponte, não havia como fazer essa estrada funcio‑nar. Alberto não quis ir embora...”

– Por quê? Que velho idiota! Deveria ter ouvido os amigos... – re‑trucou Oliver, tentando parecer independente e sabido.

Guilherme meneou a cabeça.– Meu pai sempre foi muito teimoso, assim como você! Ele nunca

deixava para trás uma coisa sem que pudesse terminá‑la. Algumas pessoas escolhem objetivos em sua vida e não há nada que as faça dar para trás, nem mesmo a morte. Entenda, filho, que a morte é só mais uma fase. E en‑tão, – prosseguiu o pai – Alberto morreu na noite do terceiro desastre. Ele estava trabalhando durante noites a fio para terminar a ponte que abriria a estrada para o público. Faltava muito pouco... Estava chovendo aquele dia... Eu era jovem na época, tinha vinte anos. Foi uma pena eu ter perdido meu pai tão cedo. Suas palavras me fazem falta... E seu sorriso, também. Ele deixou uma carta para nós, porque sabia que corria riscos se continu‑asse trabalhando lá.

“Na carta, ele contava que, se acontecesse qualquer coisa com ele, era para ficarmos calmos. Eu sei que parece absurdo alguém pedir uma coisa dessas, levando em consideração as circunstâncias, mas ele pediu paciência e compreensão. Ele estava fazendo seu trabalho. Aquele velho teimoso...”

– E por que você me trouxe aqui? Por que nunca falou sobre isso? – indagou Oliver, confuso.

– Você nunca me perguntou sobre meu pai, então eu resolvi trazê‑lo aqui. Um dia, filho, você vai estar de frente com a morte. Um dia a morte vai levá‑lo... Talvez cedo ou talvez ela só o leve quando você for bem velho. As pessoas dizem que não, mas quando a morte está por vir, a gente sempre sabe. Nós sentimos a chegada dela, mesmo que inesperada. Nem mesmo uma enfermidade é capaz de vencer alguém determinado a viver. É sem‑pre mais fácil aceitar, mas quando você luta... quando luta bravamente, a morte não consegue pôr os dedos em você. No caso de meu pai, ele aceitou o desafio. Ele tinha ambições e a morte não o amedrontou, porque ele sabia que poderia lutar. E assim como poderia vencer, também poderia perder.

– E ele perdeu – afirmou Oliver com ares sombrios.– Depende... Há pessoas que perdem mais coisas se continuarem

Page 38: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 38 ×

vivendo, do que se tivessem a metade de suas vidas impedidas pela morte. Continuar vivendo, para elas, seria o mesmo que “vegetar”. Logo, se um dia você tiver uma ambição e a morte tentar impedi‑lo, não se entregue. Nunca abandone um sonho ou você será devorado pela ceifadora. Suas metas são suas armas mais fortes contra a foice. Não acredito que meu pai ganharia alguma coisa largando o trabalho a que ele se propôs terminar, mesmo que o perigo o espreitasse. Aquilo era sua vida... Uma de suas coisas mais preciosas, sem aquilo também estaria morto.

– Morto por dentro – concluiu Oliver, pensativo.Guilherme sorriu. Oliver havia entendido a mensagem. Colocou

o braço sobre os ombros do filho enquanto admirava as flores. Embora estivessem apenas os dois naquela região, eles não se sentiam sozinhos. No fundo, tinham um ao outro. Os túmulos devorados pela erosão eram tam‑bém seus espectadores.

– Viver e morrer é mais do que as pessoas pensam. Um dia você vai lembrar dessa conversa... E eu espero que teu avô ajude.

Fim do Flashback II.

Seu pai estava certo. Lá estava Oliver, com a morte apontando a foice para seu peito. E que argumentos tinha? Nenhum. Era um fra‑cassado, um lixo. Era tão miserável quanto os que moravam debaixo da ponte. Só tinha a reclamar da vida e nenhum sonho que suprisse sua vontade de viver. Havia errado feio em suas escolhas e era tarde demais para se arrepender.

“Não é possível que eu não possa ter feito nada que valesse a pena em minha vida”, pensou quando a fumaça estava perto de tocar seu pes‑coço. “Não é possível que eu não tenha um sonho... Nem nada. Eu sempre estive morto... Que diferença faz continuar vivendo?”

Uma segunda chance foi à única coisa que seu “eu” mais íntimo conseguiu gritar. Não era completamente um perdedor. Mesmo pensan‑do anteriormente em se matar, sua vontade, agora, era contrária.

Caçador ergueu um pouco de sua cabeça, e ainda assim não foi possível ver seu rosto. Não havia nada além da escuridão em seu inte‑rior. Nem vida, nem alma. Ele inquietou‑se quando a fumaça vinho que estava ao redor de Oliver afastou‑se violentamente, como se estivesse amedrontada. Da mata atrás do humano, o imenso cavalo negro surgiu com seu passo pesado e majestoso. O cavaleiro em sua montaria usava um manto e um capuz roxo que o cobria quase que por completo, com exceção dos calçados metálicos e as luvas de couro preto. O animal, maior do qualquer cavalo normal, tinha as pernas de musculatura um pouco atrofiada, mas seu peitoral e seu pescoço eram fortes como aço. Sua pelagem negra era imperceptível durante a noite, não fosse a lumi‑nescência de seus olhos vermelhos que deixavam um rastro espectral e brilhoso por onde passavam.

Page 39: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 39 ×

A criatura parou, relinchou e bufou. De sua respiração emanava uma fumaça de enxofre. Uma cicatriz que dividia o focinho ao meio destacava‑se em sua face de traços grotescos. A fumaça, que não ousava a chegar perto do recém chegado, afastou‑se até o animal parar e ficar acima de Oliver. Em choque, o humano não conseguiu mexer sequer um músculo quando ficou sob a proteção da barriga do cavalo. Estava difícil para Oliver saber distinguir a verdade da alucinação... Até onde tudo o que se sucedera era real?

O cavaleiro acomodou a mão, que segurava as rédeas, no seu colo, enquanto analisava o Caçador de Recompensas. Oliver respirava entrecortado através dos dentes, pois a dor em sua cabeça causava uma pressão estratosférica. Usando sua força de vontade máxima, ele con‑seguiu tocar a barriga do cavalo. Puxou a mão num reflexo imediato e assustou‑se com a queimadura que ardia em seus dedos: a criatura era tão quente quanto o próprio fogo.

– Fique longe do humano – ordenou o cavaleiro de capa roxa. Sua voz fria soou familiar para Oliver.

– Ele é meu – chiou Caçador com sua fala de vento. Sua fumaça agora pairava na altura de seus joelhos e escalava as árvores como ser‑pentes. Persistia em não se aproximar do cavalo.

– Não, não é – retorquiu o cavaleiro.Oliver pensou que o temporal tivesse recomeçado, mas o trovão

que acabara de ouvir era outro relincho do cavalo. Mesmo sendo uma criatura que derrotara facilmente dois monstros na sua frente, Caçador, com toda a sua força, não possuía qualificações para encarar o novo inimigo.

– O que quer com ele? É só um humano – disse Caçador bravo.– Não é de sua conta, criatura. Você não passa de um abolido e

amaldiçoado... E sabe, tanto quanto eu, que seu véu não é capaz de deter nem a mim, nem a meu guia.

A ameaça do cavaleiro despertou hesitação. Oliver engoliu a seco, evitando ao máximo fazer qualquer barulho que pudesse atiçar a ira dos dois estranhos.

– O que eu também sei é que você está sozinho... Os outros seis cavaleiros desertaram e o deixaram para trás – A risada do Caçador de Recompensas dava facadas no ar. – As notícias correm rápidas... Posso ser um dos poucos que têm conhecimento disso agora, mas em breve haverá muitos inimigos unidos atrás de você. Conheço seu poder, mas imagino que você não seja capaz de lutar contra legiões inteiras.

– Você só está me dando motivo para fazê‑lo engolir sua própria fumaça – disse o cavaleiro sem se alterar. No entanto, seu cavalo bufou de ansiedade. – Eu o aconselho a ir embora enquanto sou piedoso.

– Não vai sobrar nada de você quando tudo isso terminar... Não é este humano que irá...

Page 40: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 40 ×

Caçador parou de falar quando o cavalo cravou os cascos no barro e galopou em sua direção. Seu relincho, dessa vez, soou idêntico a um rugido. O animal empinou e, por muito pouco, suas patas dianteiras não amassaram o inimigo. A fumaça vinho envolveu Caçador que, segundos depois, havia desaparecido de vista junto com o vento.

– Acalme‑se, Mabelle – pediu o cavaleiro, passando a mão no pes‑coço da égua.

“É uma égua” pensou Oliver, reconhecendo tanto o animal, quan‑to seu montador: os dois pertenciam ao seu pesadelo. O mesmo que estava tendo há muitos anos. A noite ficou novamente viva quando pe‑quenas gotas de chuva despencaram do céu. O som do atrito da água com as plantas acalmou um pouco os pensamentos de Oliver que, dis‑traído com o cheiro de terra molhada, não teve medo quando o cavalei‑ro finalmente lhe deu atenção. Mabelle, a égua monstro, já não parecia tão ameaçadora. Sua respiração barulhenta ainda fedia bastante.

– Isso é outro pesadelo? – perguntou Oliver não encontrando forças para ficar de pé.

– Dessa vez, não – respondeu o cavaleiro. O fato de seu rosto manter‑se oculto, continuava perturbando Oliver.

– Quem é você? O que significa tudo isso? – perguntou Oliver, arfando de cansaço. Só agora doíam‑lhe os ferimentos que recebera no decorrer da noite. Estava começando a sentir frio também. – Por que nada faz sentido?

– Concentre‑se no esforço de manter‑se vivo... Esse confronto não deveria ter acontecido. Eu estou de olho em você faz muito tempo e jamais deveria ter intervindo em suas experiências, mas dessa vez não tive escolha.

Mabelle aproximou o rosto do de Oliver e quando ele tentou to‑car seu focinho com uma cicatriz, ela bufou e se afastou de novo.

– Você se mete muito fácil em perigo. Da próxima vez talvez não haja tanta sorte para você.

– Você não pode me deixar sem explicações!O cavaleiro riu.– Mas, se você sentir que precisa de minha ajuda, pode me chamar.

Meu nome é Shafa, o sétimo cavaleiro da Terra‑Inversa.– Shafa? – repetiu Oliver assombrado. – Então eu o chamo agora,

Shafa! Responda minhas perguntas!– Mabelle, minha querida – pediu Shafa.Oliver não conseguiu se defender da patada desferida em sua testa

e tudo ficou escuro quando desmaiou. O som da chuva foi aos poucos amenizando até que o silêncio o engoliu. Estava em paz: momentanea‑mente em paz.

Shafa olhava o humano desfalecido na grama. – Outra hora nós conversaremos, Oliver.

Page 41: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 41 ×

O cheiro de barro e terra molhada invadiu mais uma vez as na‑rinas de Oliver. Como se recebesse um choque, ele relembrou de tudo o que havia acontecido e acordou por completo. A primeira coisa que viu foi o rosto monstrengo de Pierre quase colado ao seu. Os olhinhos miudinhos dele cintilavam de expectativa.

– Ele acordou, mamãe! – gritou quando o humano se encolheu no canto da cama.

Marlyn surgiu na porta do quarto, limpando as mãos no avental que usava. Oliver respirou fundo até se acalmar. Estava em um quarto pequeno com uma cama e um criado mudo. Não havia lâmpadas no teto, mas não era preciso, pois a luz do sol entrava através da janela en‑treaberta. As paredes de madeira estavam cobertas por limo.

– Me desculpe! – pediu Pierre e, num piscar de olhos, estava em sua forma humana. – Como você está se sentindo?

Oliver apalpou uma faixa que envolvia sua testa e lembrou‑se de Shafa com rancor. A marca do ferimento feito por Felipe desfigurava um pouco sua bochecha.

– Onde eu estou?– Por mais que eu tentasse impedir, Pierre quis voltar para aju‑

dá‑lo. Quando chegamos até a clareira, encontramos você desmaiado e sozinho. Então, o trouxemos para nossa casa – explicou Marlyn, apro‑ximando‑se para ver como estava Oliver. Ela ignorou a hesitação dele e tocou sua faixa. – Parece que, por ora, está tudo bem. Porém, sua boche‑cha ficará com uma cicatriz.

Oliver processou a informação.– Há quanto tempo estou dormindo?– Algumas horas, apenas. Pelo seu estado, eu esperava que você só

acordasse amanhã, mas me enganei. Você deve estar com fome, junte‑se a nós na mesa. Estou preparando algo para o almoço que você também possa comer – disse Marlyn, acenando com a cabeça. Ela ainda usava o lenço e não tinha cabelos.

– Eu não sei se deveria... – Qual é, Oliver! É o mínimo que podemos fazer por você que

tanto nos ajudou! – exclamou Pierre, puxando o humano com a mão.Uma pontada nas costelas de Oliver indicou que havia se ferido

ali também. Levantou com dificuldade e acompanhou o leprechaun. A casa tinha só mais um quarto e, como a casa do Caçador, a cozinha e a sala ficavam no mesmo ambiente. A decoração era bem interiorana e feita à mão, como guardanapos de crochê, cortinas de tecido florido e quadros que retratavam paisagens. Pierre ajudou o humano a sentar‑se

Page 42: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 42 ×

na pequena mesa e, depois, acomodou‑se ao seu lado. Ele estava feliz e animado, ao contrário do emburrado Oliver.

– Como você acabou com eles? – perguntou Pierre, mal contendo sua emoção.

– Pierre! – ralhou a mãe, que cozinhava algo no fogão. – Não foi essa a educação que eu dei a você!

– Ah, mamãe, ele é um herói! Quero saber a história dele!– Eu não lembro – respondeu Oliver que, simplesmente, não que‑

ria entrar nos detalhes da história. – Não sei nem como bati minha testa.Pierre resmungou de decepção.– De qualquer forma, – prosseguiu Oliver – o que eram aquelas

“coisas” ? E aquele Caçador de Recompensas que vimos na casa? Aliás, o que são vocês?

– Eles eram lupus – explicou Marlyn com um ar mórbido. Ela se estressou pelo simples fato de pensar neles. – Pertencem à sexta Geração Racial. Os humanos costumam chamá‑los, nas lendas, de lobisomens. Eles são uma espécie muito orgulhosa, e sua organização, territorial... São monstros, com certeza. Nós não temos permissão para falar isso a você, mas não acho que exista alguém aqui que possa nos impedir de contarmos algo depois do que você passou.

– Já os Caçadores de Recompensas são piores... Existem mais de‑les por aí – Pierre se ajeitava na cadeira frequentemente. Havia contado para sua mãe que estivera na casa do Caçador. – Sabe, os humanos não têm acesso à verdade. Eles não podem saber sobre nós e nem sobre qualquer outra criatura.

– Então existem outros monstros?– Sim – concordou Marlyn. – De todos os tipos que você possa

imaginar. Eles sobreviveram aos apocalipses e agora vivem escondidos entre as espécies que estão em ascensão. Como você pode ver, é a vez de os humanos comandarem a Terra. Um dia os lupus já foram dominantes. Os Caçadores de Recompensas, no entanto, são criaturas diferentes. Eles nunca foram vivos, embora possam matar uma criatura viva. An‑tes de se tornarem caçadores, eles são conhecidos como cavaleiros do Chamado, usam capas vermelhas e andam em cavalos negros. Existem centenas de milhares deles vagando pela Terra... Sua função é controlar as espécies que vivem entre os humanos... Eles não podem permitir que a existência desses monstros venha ao conhecimento público, então é o dever deles destruir qualquer um que se torne uma ameaça. Isso inclui também apagar pessoas... E só nós, criaturas, podemos vê‑los. Quan‑do um cavaleiro do Chamado faz algo não permitido, ele é expulso de sua função e se torna um Caçador de Recompensas. Para resgatar sua existência, ele precisa capturar a alma das criaturas que vagam pela terra e mandá‑la para o julgamento final. Dessa forma, ao captar um pouco da energia de cada alma, poderá continuar existindo. Caso contrário, ele

Page 43: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 43 ×

é destruído.– Cavaleiros do Chamado... – repetiu Oliver, lembrando‑se da

noite anterior, porém Shafa tinha um manto roxo escuro e não verme‑lho. – E por que vocês podem ficar parecidos com humanos?

– É uma habilidade concedida pelos cavaleiros do Chamado às es‑pécies que sobreviveram ao apocalipse para poderem se camuflar. Qual‑quer criatura pode receber essa concessão e, assim, estará capacitado a tomar a forma de outro ser. Seu vizinho, seu amigo, sua esposa pode ser um leprechaum. – Marlyn colocou três cumbucas na mesa e depois uma panela com uma sopa verde e gosmenta. Ela serviu a comida e também se sentou. – Fiz uma sopa com ervas e alguns cogumelos nutritivos. Não sei o que vocês, humanos, estão acostumados a comer, mas isso não lhe fará mal algum.

Oliver admirou um cogumelo vermelho retorcido que boiava na gosma. Não estava em condições de negar comida e muito menos de reclamar. Pegou a colher e respirou fundo.

– E o que são esses apocalipses?– Difícil explicar, não tenho mais o que contar – disse Marlyn.– E vocês sabem algo sobre... – Oliver pensou um pouco antes de

continuar – Cavaleiros de capa roxa?Pierre, que tinha comida na boca, cuspiu sobre a mesa.– Um cavaleiro da Terra‑Inversa?Marlyn ficou um pouco preocupada com a pergunta.– Esses cavaleiros, em especial, são diferentes de todos os outros.

Os cavaleiros da Terra‑Inversa são as criaturas mais fortes que existem. Eles são ao todo em sete e nunca ficam em oito ou seis, sempre em sete cavaleiros. Não existe ninguém que possa superá‑los em poder. Para você ter noção, um Caçador de Recompensas não teria problema em acabar com os lupus, da mesma forma que um cavaleiro da Terra‑Inversa aniquilaria dezenas de caçadores – explicou Marlyn, séria.

“Eu já percebi isso”, completou Oliver em pensamento. Shafa mostrou o quão poderoso era ao espantar o Caçador só usando sua égua. “Mabelle”, repetiu irônico. Como era possível que ele, o cavaleiro de seus sonhos, fosse real? Isso significava também que outras coisas que havia visto no pesadelo também seriam.

– Como você sabe sobre eles? – perguntou Marlyn, rompendo o silêncio que se formava.

– Eu não sei... Não sei por que fiz essa pergunta – mentiu Oliver longe de ser convincente.

O humano permaneceu um tempo em silêncio, até que Pierre levantou correndo e trouxe para Oliver uma bolsinha de couro.

– Tome, é para você – disse ele, sorrindo de orelha a orelha.Oliver, que recém tinha dado a primeira colherada da sopa, engo‑

liu com dificuldade.

Page 44: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 44 ×

– O que é isso?Pierre virou o saquinho na mesa: eram dez moedas finas de ouro

de quatro centímetros de diâmetro. Oliver ficou embasbacado.– De onde tiraram isso?– Nossa espécie, além de produzir couro, também pode fazer

ouro. Podemos mastigar determinadas substâncias e cuspi‑las transfor‑madas em ouro – contou Pierre. – Claro que não em grandes propor‑ções, eu levei seis meses para fazer essas aí. Achei que você merecia!

– Isso é sério? Se vocês podem produzir esse ouro todo, por que não estão ricos?

– Não precisamos de riqueza... Estamos bem aqui. Temos tudo o que precisamos – Foi o que a leprechaun disse antes de se levantar.

– Não tenho certeza se devo aceitar isso... – Oliver, embora edu‑cado, estava muito tentado.

Tinha dívidas a pagar, e não eram poucas. Pierre guardou as moe‑das e colocou o saquinho na mão de Oliver.

– Por favor, aceite. Dá‑las a você me deixará muito feliz...Oliver hesitou, mas aceitou. Havia arriscado a sua vida e era óbvio

que acreditava merecer o ouro.– Podemos levá‑lo, se quiser, até a cidade para que volte para a

casa. Não acho que você queira ficar muito mais tempo aqui, afinal, tem a sua vida a levar.

Estava claro que Pierre não concordava com a mãe, mas ela estava certa. Horas mais tarde, quando Oliver se achou apto a caminhar, eles partiram. A caminhada foi longa, cerca de uma hora e meia. Esperava que fosse demorar mais, até se lembrar de que o homem que lhe in‑formara o tempo de caminhada até a cidade era um lobisomem prestes a caçá‑lo, e não uma fonte confiável. Tiveram de seguir pela estrada e, ao chegarem à entrada da cidade, Marlyn achou melhor se despedir de Oliver antes de se encontrar com outros humanos.

– Ficaremos aqui, Oliver – disse ela, parando – Obrigada por nos salvar! Você é diferente dos outros...

– Mas, mamãe...– Tudo bem – concordou o humano, acenando com a cabeça. – É

mais seguro para vocês e para mim. Vou ficar bem... Eu agradeço pelo tratamento e... Pelas moedas.

Pierre correu para abraçar Oliver. “Na realidade, sou muito igual a todos eles” pensou Oliver, pou‑

sando a mão na cabeça do garoto.– Eu não diria que foi bom conhecê‑los – retrucou o humano,

rancoroso. – Mas foi, no mínimo, interessante.– Tente não contar o que viu para as pessoas, ou elas pensarão mal

de você – pediu Marlyn, despedindo‑se com a mão.Oliver apalpou o saco de moedas guardadas no bolso. Não que

Page 45: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 45 ×

não quisesse deixar Pierre e Marlyn, mas estava ficando com receio de voltar para casa. A sua vida e os seus problemas continuavam lá, espe‑rando seu retorno. Eram muitas informações para sua cabeça. A ideia de haver monstros vivendo entre as pessoas atormentava‑o. E se seu chefe fosse um? Distanciou‑se dos dois leprechauns com os pensamen‑tos distantes e o coração na mão. Estava confuso e cheio de perguntas. Ninguém havia esclarecido todas as suas dúvidas... As coisas ainda não faziam total sentido. Por que ele estava naquela clareira? Por que ele fora protegido por um cavaleiro da Terra‑Inversa?

– Adeus, Oliver! Espero um dia vê‑lo de novo! – gritou Pierre, sorrindo.

“Só se tiver mais moedas” respondeu o velho Oliver em pensa‑mento.

Page 46: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 46 ×

Capitulo 4 1704

Oliver esperou duas longas horas, na sombra do abrigo da parada de ônibus, até a chegada do pequeno fusca rosa.

– Finalmente – murmurou com a boca seca. Desejou um copo de água mais do que nunca.

Não havia nada em volta além do mato alto, um armazém de fa‑chada gasta e a carcaça de um carro velho envolta pelo mato selvagem. Oliver aguardou a poeira da estrada baixar e entrou, forjando uma ex‑pressão séria.

– Oliver! Por onde andou? – questionou a mulher, preocupada.Seu nome era Anne e seu olhar, amigo. Deveria ter a mesma idade

de Oliver, cabelos cor de mel, lisos até os ombros e olhos verdes como o oceano. Seus lábios rosados comprimiram‑se, formando uma linha fina reprovativa. Era bonita, entretanto não atraía Oliver de nenhuma forma. Talvez não houvesse espaço para uma mulher em sua vida con‑turbada, por isso não desenvolvia seu lado romântico. Ela era a mulher com quem havia conversado no telefone quando seu carro pifou.

– Fui roubado – mentiu. – E bati a cabeça, mas estou bem. Obri‑gado por vir me buscar e desculpe interromper seus estudos, mas não tinha ninguém mais a quem recorrer.

– E pensar que você não gosta desse fusca – comentou ela, rindo. – Como está se sentindo?

Oliver apalpou a faixa. – Estou bem. Vamos embora de uma vez desse lugar... Não aguen‑

to mais um instante aqui. Vou fazer um boletim de ocorrência quando chegar a Porto Alegre. Como está Cecília?

Anne deu meia volta com o fusca e seguiu pela mesma estrada por onde viera.

– Bem, fui vê‑la hoje de manhã. Os medicamentos estão acaban‑do... E eu não estou gostando de sua temperatura. Acho que está com uma virose. – Anne era a enfermeira que Oliver contratara para cuidar de sua mãe enquanto estudava e trabalhava.

A viagem foi silenciosa. Oliver não gostava de falar e nem Anne

Page 47: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 47 ×

fazia perguntas. O tempo estava ensolarado e fresco, devido à chuva que caíra no dia anterior. Uma brisa agradável entrava pela fresta da janela. A estrada também se encontrava vazia, mais do que o comum.

Haviam construções grandes e antigas de fábricas ao redor da es‑trada. Anne dirigia com cuidado e com velocidade reduzida, seu fusca também não era condicionado a grandes corridas. Quando já chegavam em Porto Alegre, Oliver apalpou o bolso e pegou a bolsinha de couro.

E se estivesse mesmo louco e Pierre não fosse real? Então o que fazia aquele ferimento em sua cabeça e o ouro, em seu bolso?

– O que é isso? – perguntou ela interessada.– Nada de mais, apenas algumas bugigangas. Sabe‑se lá quanto dinheiro conseguiria com aquele ouro. O su‑

ficiente para pagar o salário de Anne, a mensalidade da faculdade e as contas atrasadas. Seria o fim de suas dívidas? Não deixou de pensar em Pierre e Marlyn. Lembrava muito bem de suas fisionomias, mesmo que a cabeça doesse a ponto de incomodar sua concentração. Ouviu um zumbido distante. Pensou que fosse impressão sua...

– Como vão os estudos? – perguntou Oliver, enfiando o dedo na orelha para ver se abafava o som semelhante ao zumbido de uma abelha.

– Vão bem. Meu curso de enfermagem deve terminar no próximo semestre... Estou empolgada com as expectativas de trabalhar em um hospital, é o meu sonho desde pequena. Creio que realizarei meu pro‑pósito de ajudar pessoas.

Oliver ajeitou‑se no banco felpudo. O som estava ficando mais alto... Deu um tapinha em sua orelha e pigarreou, olhando para fora em busca de distração.

– Que bom – disse, mas não percebeu que o zumbido estava tão alto a ponto de fazê‑lo gritar. – Seus pais devem estar orgulhosos.

– Minha mãe está... – respondeu ela, estranhando o comporta‑mento do outro – Por que está gritando?

– O quê? – questionou alto, olhando para ela. – É esse zumbido que não me deixa ouvir direito!

Oliver olhou para o rádio achando que estava ligado.– Como se desliga isso?– Que zumbido? O rádio não funciona, Oliver! – exclamou Anne. Ele riu para desfazer o nervosismo que o dominava. A brincadeira

estava perdendo a graça. Começou a apertar os botões do painel do rá‑dio estragado e uma série de números acendeu‑se atrás da pequena tela negra. O número 1704 estampou‑se por fim. O chiado tornou‑se mais intenso, mas reduziu gradativamente.

– Atenção, torre de comando... – disse uma voz metálica prove‑niente do rádio.

Oliver fitou o aparelho. O chiado não permitia que se ouvisse com clareza.

Page 48: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 48 ×

– Atenção, aqui quem fala... Voo 170... uestro... ora de... Ole... – dizia a voz freneticamente. – Indo...

– O que você está fazendo? – Anne olhou para o rádio, sem com‑preender. Não estava ouvindo nada.

– Você não está ouvindo? – Oliver encarou‑a com preocupação. Anne meneou a cabeça negativamente, receosa. Os chiados do

rádio alternaram‑se. Teve a impressão de ouvir um estouro e um grito.– ...indo... amos indo... – dizia a voz histérica. – ...orro... socorr...Oliver partiu o rádio ao meio com um soco. Respirava ofegante e,

ao mesmo tempo, tentava controlar‑se. Anne estacionou no acostamen‑to e virou‑se completamente para o amigo.

– Oliver! O que está acontecendo?E o chiado não parou. Oliver cobriu os ouvidos.– Torre de controle... – repetiu a voz uma última vez. O som ficou claro, revelando‑se não estar dentro de sua cabeça.

Ignorou Anne e virou‑se para trás, em direção ao avião que descia do céu. Sua velocidade fazia o ruído que Oliver estava ouvindo. Sua carcaça de Boeing balançava ora para um lado, ora para o outro. Via‑se fogo na asa, e fumaça escura saindo da turbina, ambas do lado direito.

Oliver arregalou os olhos e saltou para fora do carro. Somente ele parecia ver o que se sucedia. Havia carros na rodovia, pessoas trabalhan‑do nas indústrias e armazéns ativos muito próximos. Ninguém percebia o tremendo Boeing descer do céu como um cometa.

– Corram! – gritou Oliver com o ar faltando dos pulmões.Caiu de joelhos e pôs as mãos na cabeça. O avião contorceu‑se

para o lado e sua asa mergulhou sobre o asfalto da avenida, erguendo carros, poeira e destroços para o alto. E ele veio em sua direção. Enor‑me, assustador. O calor emanado por suas turbinas acertou‑lhe o rosto, depois, quando a frente do avião mergulhou no solo, pode sentir o tre‑mor. Seus joelhos trepidaram e o tempo parou. No instante seguinte, o avião explodia, engolindo a estrada, as árvores ao redor e a ele mesmo.

O fusca desapareceu em pleno ar, transformando‑se em uma ma‑çaroca em chamas. Oliver cobriu o rosto com os braços e mesmo assim não impediu que o fogo o queimasse até os ossos. Gritou como pôde, mas nenhum som escapou de seus ossos.

– Oliver! – gritou Anne, sacudindo‑o.Oliver abriu os olhos e respirou fundo, tão fundo quanto seus

pulmões conseguiram. Suava frio e um filete de sangue escorria de sua orelha esquerda. Empurrou Anne instintivamente para o lado e si‑tuou‑se; estava dentro do fusca estacionado no acostamento. Não havia zumbido. Olhou para trás e também não viu avião nenhum.

Respirou rápido por longos instantes. Foi só um pesadelo.– Tudo bem? – perguntou Anne, pálida. – Você começou a gritar

como um louco enquanto dormia!

Page 49: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 49 ×

– Desculpe – pediu ele, atordoado. – Foi um pesadelo... Vêm acontecendo com frequência ultimamente.

– Quem é Hades? Oliver a encarou. Teria gritado isso também? Deu apenas de om‑

bros e ela aceitou sua resposta. – Só um pesadelo – repetiu num sibilo de lábios, sem som.

Page 50: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 50 ×

Capitulo 5Companhia Inesperada

Oliver fizera o boletim de ocorrência do roubo em uma delegacia de polícia de Porto Alegre. Ninguém questionou sua história. Haviam levado seu carro e lhe espancado a cabeça antes disso. Quando chegou novamente em casa, deparou‑se com uma ligação de sua empresa, dizen‑do que o carro fora encontrado. A seguradora – sim, a carroça tinha um seguro – já tratara de pegá‑lo com o guincho e o consertaria para que estivesse pronto para uso, pelo menos até semana seguinte. E ele que imaginou ver‑se livre do monte de metal ambulante.

Parou no centro de sua pequena sala com um sofá vermelho escu‑ro, uma mesa de centro, de vidro uma estante baixa com uma televisão antiga, daquelas que nem controle remoto tinha e com as laterais da tela arredondadas. As cortinas de crochê balançavam suavemente com o vento do entardecer. E lá se ia mais um dia... A parede do prédio vi‑zinho, cinzenta e encardida devido a um problema no encanamento, refletia os tons alaranjados e amarelados do pôr‑do‑sol.

Seu apartamento tinha, além disso, dois quartos, um banheiro e uma cozinha apertada. Simples, mas o suficiente para chamar a espelun‑ca de lar. Pagava o aluguel, as contas, a comida... Odiava ter de viver a mesma vida todos os dias, porém gostava de seu espaço, o seu quarto.

Sentiu náuseas e pontadas de dores na cabeça. Despejou as moe‑das sobre a mesa, cautelosamente, separando‑as uma a uma com o dedo. Elas eram lisas e sem nenhum detalhe, logo, a única coisa que as definia como moedas era o formato. Cada qual com quatro centímetros de diâ‑metro. Ele as levaria para um lugar onde trocassem ouro por dinheiro e pagaria suas contas. Não importava a maneira como as conseguira e nem queria ficar pensando nisso. Preferia esquecer‑se de Pierre, de Marlyn e dos cavaleiros. Mesmo que, no fundo, quisesse voltar a viver aquilo.

Andou descalço, porque sempre deixava os calçados na entrada, e rumou para seu quarto. Parou apenas em frente à porta encostada do quarto de sua mãe e abriu‑a cautelosamente para que não fizesse ruído. Pela janela entreaberta entravam os últimos raios de sol que iluminavam sua mãe.

Page 51: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 51 ×

Ela dormia silenciosamente deitada em posição fetal. Em suas fei‑ções de velha, brincava uma expressão pacífica e cansada, realçada pelas olheiras fundas. Desde que o tratamento contra seu câncer no pulmão começou, Cecília usava nos cabelos um lenço. Sua esquizofrenia tam‑bém se agravara com isso, mesclando‑se a uma depressão profunda e a psicoses. Tinha cinquenta anos, mas aparentava setenta. Suas mãos enrugadas fechavam‑se uma sobre a outra, diante do rosto.

Oliver aproximou‑se e agachou‑se ao lado da cama, silencioso. – Eu vou tirá‑la dessa, mãe – prometeu o filho. – Assim como o

pai conseguiu ajudá‑la, de modo melhor do que qualquer tratamento. Pousou as mãos próximas às dela.– Nós vamos sobreviver.Subitamente ela ergueu a mão e descansou sobre a de Oliver. Sem

abrir os olhos, Cecília apenas sorriu com os dentes pálidos.– Seu pai... – disse num esforço.Oliver estava acostumado a ouvir falar em seu pai. Não era ne‑

nhuma louca perturbada, apenas uma das pessoas que viviam felizes em um outro mundo inimaginável.

– Seu pai disse para tomar cuidado com os capas vermelhas, – prosseguiu ela com dificuldade – você é um bom menino, vai conseguir.

“Capas vermelhas”, repetiu Oliver mentalmente, lembrando‑se do que Marlyn e Pierre haviam falado ao contar um pouco da verdade. Levantou‑se de súbito, evitando o toque.

– Bom menino, bom menino... – repetiu ela cada vez mais baixi‑nho até calar.

Oliver deixou o quarto em pânico. Só a loucura poderia definir a coincidência. Sua cabeça doeu e seu coração também, mas de angústia. Centrou seus pensamentos enquanto ia para seu quarto.

Oliver estava decidido no amanhecer seguinte. Não era louco e isso era suficiente para fazê‑lo agir normalmente. Porém, quando saiu de seu apartamento e alcançou a rua, soube que a tarefa de ignorar sua loucura não seria fácil. Havia sombras escuras paradas no topo dos pré‑dios. Criaturas que nunca estiveram lá, coisas que sequer Oliver imagi‑nava existir. Esfregou os olhos quando se deparou com a primeira delas: era um cavaleiro, embora não tão grande e aterrador quanto Shafa, mas ainda assim uma criatura de manto vermelho, armadura, capuz. Estava montado em um cavalo negro que se assemelhava a Mabelle, mas era mais magro e fraco do que ela. Tinha o brilho nos olhos mais intenso e uma respiração mais pesada, e estava parado no topo do prédio da frente.

Page 52: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 52 ×

Havia outro idêntico a este no prédio da esquina, outro sobre um supermercado. Um ainda se encontrava parado abaixo de uma ár‑vore que estava no caminho de Oliver. O humano esfregou os olhos e ofegou, precisando de um tempo para acalmar as batidas de seu cora‑ção. “Eles não são reais”, pensou Oliver aturdido. Todos, sem exceção, estavam completamente ocultos por suas vestimentas vermelhas, e tão imóveis quanto umas estátuas. O vento não era capaz de afetá‑los, assim como também o sol não projetava suas sombras.

E, como era de praxe, ninguém parecia notá‑los além de Oliver. – Está tudo bem, isso não é real... Só pode ser uma consequência

da batida em minha cabeça – disse para si mesmo.“É a verdade me perseguindo de novo... Por que essas coisas não

podem me deixar em paz?” questionou‑se. Respirou fundo e decidiu que passaria pelo maldito cavaleiro em seu caminho como se ele não exis‑tisse. Estufou o peito e manteve o olhar sempre em frente. No entanto, quando passou pelo cavaleiro do Chamado, Oliver pensou: “Sim, esse é o nome deles... Cavaleiros do Chamado” . Foi como se o mundo ao seu redor estivesse prestes a acabar. Não se conteve e acabou encarando‑o. Ele era apenas um pouco maior do que um humano comum, e seu cavalo tinha um aspecto cadavérico que causava arrepios. Ficou mais tempo do que planejava, admirando o cavaleiro, por isso se assustou quando o animal piscou e o cavaleiro sacou a espada embainhada em sua cintura.

Oliver exclamou algo sem sentido e correu desesperadamente. Não quis olhar para trás, mas ficou aliviado quando sinalizou para o ônibus que vinha pela rua e o pegou. Respirou fundo, já na segurança de seu banco, e olhou contra a própria vontade para a rua: o cavaleiro con‑tinuava lá, parado. A espada novamente embainhada e a sua compostura de estátua. Quando encontraria paz novamente? Oliver odiou‑se por ter escolhido obedecer a seu chefe e ir para o Lami.

Após ignorar todos os outros cavaleiros do Chamado, que, ali‑ás, estavam por toda a parte, Oliver parou diante da entrada pequena e discreta do prédio, situado entre um restaurante e uma loja de livros usados. Além dos dois homens que fumavam em frente ao restaurante, não havia mais ninguém por perto. Oliver usava um casaco preto, uma camisa azul com gola branca e uma calça jeans. Carregava no bolso de seu casaco suas dez preciosas moedas, garantindo a si mesmo que a for‑ma como as encontrara não importava.

Subiu rapidamente as escadas até o terceiro andar. Já tinha esque‑cido dos cavaleiros quando deslizou em passos obstinados até a porta no final do corredor, onde uma placa simples de “compro ouro” estava pendurada na maçaneta redonda e dourada.

Bateu três vezes e esperou. Viu uma sombra deslizar por baixo da porta e, então, silêncio.

Demorou cerca de quase um minuto para que alguém abrisse um pouco,

Page 53: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 53 ×

pelo menos até onde a corrente que trancava a porta permitia. Um anão, usando óculos, esgueirou metade do rosto pela fresta. Só então o hu‑mano percebeu que o olho mágico ficava mais abaixo do que o normal.

– Sim? – questionou o anão com sua voz possante e desdenhosa. – Tenho algo de seu interesse para vender, vi nos classificados do

jornal seu anúncio da compra de bens preciosos – ponderou Oliver um pouco nauseado.

O homem fechou a porta, destrancou a corrente e abriu‑a por completo. O aposento era uma sala quadricular com uma porta e, no centro, uma escrivaninha. Fios escorregavam pelas paredes até o telefo‑ne sobre a mesa, ao lado de um jarro de papoulas.

Oliver sentiu um vazio estranho diante daquela imensidão.– Sente‑se – pediu o negociante, apontando para a cadeira em

frente à escrivaninha.Oliver obedeceu, usando a sua máscara carrancuda para disfarçar

seus medos. – Meu nome é Pantaleone – apresentou‑se ele ao sentar na cadei‑

ra. Notava‑se que havia livros empilhados para deixá‑lo mais alto.Pantaleone, de terno e gravata, era um homem que, apesar de pe‑

queno, esbanjava uma áurea de medo com seus olhos negros. Seu cava‑nhaque acentuava sua malandragem. Em seus dedos pequenos descansa‑vam dois anéis de ouro nem tão pequenos e humildes assim.

Passou os dedos nos cabelos negros, lisos e penteados.– Então, o que posso fazer por você?Oliver despejou cuidadosamente suas dez moedas de ouro puro

sobre a mesa. Pantaleone arqueou as sobrancelhas grossas, estupefato. – São magníficas... – comentou ao juntar uma delas.– Cada uma contém exatas doze gramas – disse Oliver. – Eu as

pesei antes de vir para cá... São feitas de ouro puro. Sei que posso con‑seguir pelo menos dez mil com todas.

– Você é esperto... – vislumbrou Pantaleone.Ele abriu uma das gavetas e retirou uma balança digital. Juntou

todas as moedas em uma pilha e pesou‑as; como Oliver dissera, o peso era de 120 gramas.

– Ofereço‑lhe nove mil por elas.Oliver esticou a mão e juntou as moedas sem dizer uma palavra.

Pantaleone segurou sua mão.– Tudo bem, me precipitei um pouco. Como percebi que é um

cliente deveras intrigante... Dou‑lhe onze mil por essas moedas. – Sei que as venderá por muito mais do que isso – disse Oliver,

recolhendo a mão e deixando que Pantaleone pegasse as moedas. – Não sei que tipo de vendedor você é, mas eu não sou nenhum idiota. Já pas‑sei por situações que me deram o conhecimento necessário para saber como as coisas funcionam. Se me passar a perna, volto para lhe pegar.

Page 54: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 54 ×

Oliver fora solene em sua ameaça. Pantaleone sorriu e abriu outra gaveta. Puxou onze maços de mil reais e atirou‑as no colo de Oliver.

– Gosto de sua audácia. Agora vá embora, nossa negociação ter‑mina aqui.

Oliver conferiu se as notas eram verdadeiras, então levantou. An‑tes de ir embora, deu uma olhadela para o homenzinho que lhe sorria atrás da escrivaninha. Pantaleone esperou Oliver sair e, em seguida, pe‑gou o telefone e discou rápido.

Alguém atendeu.– Pegue o engomadinho. Há onze mil com ele... Dê‑lhe uma sova

para aprender a segurar a boca. Não gosto dele.E desligou. Juntou as moedas, guardou‑as no bolso e acendeu um

charuto que repousava sobre a mesa.

Há ocasiões na vida em que nos deparamos com uma sorte mara‑vilhosa. E essa era uma delas para Oliver, que sorria com vontade após muito tempo, embalado pelo desejo de comprar uma barra de chocolate das mais caras. Quando foi a última vez que parara em uma loja para comprar algo sem pensar nas dívidas?

Dentro de seus bolsos estava aquilo que precisava para retirar um peso enorme de seus ombros. Estava finalmente livre de dívidas...

Parou quando desceu o último degrau e olhou para a entrada aberta do prédio. Oliver nunca foi bom com sexto sentido, mas naquele instante algo o incomodou. Ficou parado, observando a calçada desni‑velada, o prédio antigo à frente, folhas e papéis carregados pelo vento. Não havia luz no corredor, as sombras o espreitavam sedentas. Uma das portinholas das dezenas de caixas de correio embutidas na parede abriu e fechou com o vento sorrateiro.

Não houve nenhuma dúvida na cabeça de Oliver de que entrara em uma enrascada quando dois homens pararam em frente à saída.

Corra – disse uma voz distante em sua mente, quase inaudível. Mas, mesmo assim, Oliver compreendeu, era exatamente isso que faria.

Oliver correu na direção oposta a seus perseguidores, subindo novamente os lances de escada. Gelou da cabeça aos pés ao olhar por sobre o ombro; ambos também corriam. Não para fugir, mas sim para pegá‑lo.

Arfou de dor de cabeça assim que atingiu o primeiro andar. Pros‑seguiu com sua fuga sem desistir, esbarrando nas paredes ao contornar a escada para alcançar o lance seguinte. Era mais rápido que seus perse‑guidores, pois conseguia saltar de dois a três degraus por vez com suas pernas longas. Essa era a vantagem de ser alto e desengonçado.

Page 55: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 55 ×

Estirou o corpo sobre o corrimão e viu seus inimigos se aproxi‑mando no andar de baixo. Eles eram lentos, mas insistentes. Alcançou o terceiro andar num instante, mesmo que suas pernas ardessem e seu co‑ração quase explodisse no peito. Agarrou uma vassoura que jazia ao lado de um balde no quarto andar, deixada por algum faxineiro do prédio.

Quase tropeçou durante a subida para o quinto andar. Seu dinhei‑ro valia mais do que a própria vida, portanto a perda das valiosas notas seria seu fim como filho, homem e trabalhador.

Os andares terminavam no quinto andar. Subiu a meia escada que o levaria até o terraço e abriu a porta de metal, trancando‑a com força assim que passou. Enfiou a vassoura no espaço da maçaneta, garantindo que a porta só cedesse se os marmanjos fizessem força.

Afastou‑se da passagem enquanto julgava‑se num caminho sem saída. O terraço era vasto e aberto, não havia nenhum lugar para se es‑conder ou uma porta para fugir. Imensas caixas metálicas guardavam as saídas do antigo sistema de calefação e três antenas parabólicas emara‑nhavam seus fios umas nas outras.

Oliver grunhiu quando ouviu o solavanco violento proveniente da porta. A vassoura os seguraria por poucos segundos, não havia mais nada para fazer. Correu até o peitoril e olhou para baixo, aflito. Uma vertigem percorreu suas entranhas só de imaginar como a queda o leva‑ria para a morte.

Outro solavanco quase abriu a porta do terraço. Do fundo de sua mente, uma pontada de esperança, seguida de incredulidade, fez com que Oliver dissesse em voz alta:

– Shafa!– Estava demorando para que fizesse isso – disse o cavaleiro.O humano virou o rosto e fitou o cavaleiro parado ao seu lado.

Era o mesmo cavaleiro que o salvou do Caçador, no entanto estava sem Mabelle. O manto negro de leve brilho arroxeado sacolejava, diferente dos outros cavaleiros não afetados pelo vento, revelando ora as pernas revestidas pela armadura metálica, ora o peito prateado. Seu rosto per‑manecia sempre oculto por baixo do capuz. Ele era enorme visto de perto... E assustador.

Ele deu um passo. Dele emanava um cheiro de fumaça e enxofre; o ambiente ao seu redor parecia ser abatido por uma gravidade pesada.

– Meu Deus! Você veio mesmo! – disse Oliver com dificuldade para respirar.

Um filete de sangue desceu de seu nariz até os lábios. Pousou a mão sobre o rosto sem saber por que era tão afetado pela estranha cria‑tura que ia além do compreensível.

– Sou seu amigo, sou seu inimigo. Vim para ajudá‑lo, assim como você desejou.

– Não quero nada que seja seu! – grunhiu Oliver, cerrando os

Page 56: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 56 ×

dentes.– Não foi isso que você acabou de pensar quando me chamou.– Eu estou louco, não estou? Eu não sei por que o chamei, mas já

me arrependi! Não quero você e nem aquelas coisas vermelhas atrás de mim!

Shafa olhou em direção à porta.O hematoma arroxeado de sua testa estava mais escuro do que

o do dia anterior. A vassoura rachou, mas ainda não cedeu. Oliver, que suava como nunca, sabia que na próxima batida eles entrariam.

– Eu não acho que tenha me chamado em vão. Você quer minha ajuda – ponderou o cavaleiro, flexionando os joelhos e se abaixando para fitar Oliver melhor. – Você está cansado disso. Posso perceber isso melhor do que você, porque posso ouvir o que pensa. Sinto o que sente, sei o que quer. E você não quer continuar assim. Eu posso tirá‑lo da‑qui... Posso salvar você e o seu dinheiro. Eu posso lhe dar o orgulho de volta, e uma nova vida em que você será o que nunca foi antes. Posso ajudá‑lo, basta aceitar – prosseguiu o cavaleiro, sério. – Você tem a chan‑ce, Oliver, que todo o humano gostaria de ter. A chance de ser diferente e de mudar o que está prestes a ser destruído em sua vida.

Oliver não entendeu.– Cale a sua boca, não tenho que ouvir suas palavras! – gritou ao

apoiar‑se novamente no parapeito e olhar lá para baixo.Houve uma pausa na investida dos seus perseguidores.– Você é um assassino, Oliver. Um ladrão, um excluído da so‑

ciedade e um privado de uma vida normal – disse Shafa ao ficar de pé. – Que tipo de vida espera continuar levando? Acha que alguém nesse planeta dará outra oportunidade como eu lhe dou? Posso provar o que estou falando se me permitir. Deixe‑me tomar seu corpo e tirá‑lo daqui. O salvarei assim como fiz na clareira, se assim quiser. Só me conceda o controle por um instante...

– Por que eu? – perguntou Oliver entre dentes.– Porque você não é ninguém... Não há nada de especial que saiba

fazer ou que o destaque. Você sabe mais do que qualquer um sobre a verdade, apenas não é capaz de acessá‑la ainda. Ninguém sentirá sua falta se você morrer.

Oliver riu. Abriu os braços, gesticulando para os lados como se acabasse de vencer uma luta de boxe e pedisse por aplausos.

– Esse é o ponto do seu jogo de maluquices? Minha alma? Você é o quê? O diabo de armadura? Quer me enlouquecer, não é? Quer que eu acredite que estou louco!

O cavaleiro, para a agonia de Oliver, apenas riu. A porta finalmen‑te se escancarou e os dois homens puderam entrar no terraço. Um, o mais alto e magro, tinha os lábios grossos, as sobrancelhas quase unidas, e um corte que descia da ponta da narina esquerda até um pouco acima

Page 57: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 57 ×

do lábio. O outro, mais forte, era loiro e tinha os olhos escuros. Em suas mãos, duas armas.

– Desgraçado! – xingou o loiro com um sotaque arrastado no “r”.Nenhum dos dois enxergava o cavaleiro, como Oliver previra. O

que faria para se defender se não tinha nenhuma carta na manga? Prefe‑ria morrer a entregar um único centavo aos dois imbecis armados.

Um deles ergueu a arma em sua direção. – Tudo bem! – gritou Oliver desesperado. – Me ajude! Eu aceito

que tome meu corpo! Só me tire daqui! Faça o que quiser!Oliver teve certeza de que o cavaleiro sorria por baixo do manto.

Ele voltou a ficar de pé, exibindo toda a sua exuberância. – Pule – ordenou o cavaleiro. – Não questione, não temos tempo.– Pular? – gritou Oliver, subindo sobre o parapeito de concreto

sem saber ao certo se deveria obedecer. – Não sei se...– AGORA! – gritou Shafa num tom que Oliver não pôde revidar.Oliver saltou.– Ei! – berrou o perseguidor mais magro. Foi como se o tempo parasse para Oliver. A inércia ao seu redor

desapareceu; o chão abaixo de si sumiu e foi substituído pelo ar. A calça‑da, lá embaixo, parecia distante no momento. Suas roupas sacolejavam com violência durante a queda.

Viu, pelo canto do olho, Shafa erguer um pouco a cabeça e esten‑der o braço, como se apontasse para suas costas humanas. A seguir, o cavaleiro transformou‑se em uma fumaça cinzenta, e lançou‑se sobre Oliver. O humano gritou quando a fumaça o englobou e adentrou sua boca, penetrando por completo suas narinas.

Oliver sentiu um calafrio, não porque seu corpo caía, mas porque viu suas mãos, braços, pernas e todo o restante de si transformar‑se na mesma fumaça cinzenta que foi Shafa. Num instante estava ali, em plena queda e, no outro, estava de pé, na calçada, lá embaixo. As moléculas de fumaça uniram‑se tão rápido quanto se separaram, reconstruindo Oliver novamente por inteiro. O cavaleiro havia sumido.

Respirou ofegante e quase caiu ao não encontrar força nas pernas para permanecer de pé. Olhou para seus dois perseguidores lá no alto. Oliver não conseguia entender e nem acreditar no que acabara de acon‑tecer. Num segundo estava prestes a explodir os miolos na calçada, e, no outro, estava intacto e saudável na calçada.

Apalpou o bolso, constatando que seu dinheiro continuava lá. “Tele‑transporte?” cogitou por um milésimo de segundo, antes que sua sanidade o obrigasse a esquecer o ocorrido e fugir, até desaparecer na esquina, desejando nunca mais ter que voltar para aquele lugar.

Quando Oliver acordou, lembrava‑se de ter chegado em casa, contado seu dinheiro e depois de tê‑lo dividido entre as despesas, antes de desfalecer no sofá. Quanto menos pensasse no ocorrido, menos es‑

Page 58: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 58 ×

tranho lhe pareceria.– O que está fazendo aí? – perguntou Anne, assim que entrou no

apartamento.Oliver esfregou os olhos e limpou a baba úmida que escorria por

toda a bochecha, até sentar demoradamente no sofá. Havia dezenas de papéis de contas ao seu redor. Usava um moletom branco e seu cabelo despontava em várias direções.

– Você está péssimo! E essa sala está com um cheiro de... – Como ela não encontrou nenhuma palavra certa para definir, apenas abriu a ja‑nela da sala, permitindo que a frágil claridade do dia nublado adentrasse.

– Está frio lá fora? – perguntou Oliver, ignorando o que ela disse.Anne gesticulou negativamente. O homem ficou alguns instantes

pensando até juntar do carpete, onde estavam atirados, um dos dez en‑velopes pardos em cujo verso estava escrito o nome Anne.

– Tome, isto é seu. Ela analisou o envelope antes de pegar.– Isso não é o que eu estou pensando, é?Oliver limitou‑se apenas a sorrir. A mulher abriu o envelope com

dois dedos e arregalou os olhos, surpresa.– Meu salário!– É, e tem um abono por tudo o que tem feito por minha mãe. Anne olhou‑o como quem quisesse dar um abraço, mas após ana‑

lisar seu estado lastimável mudou de ideia. Sorriu agradecida e colocou o envelope dentro da bolsa.

– Vou ver como sua mãe está, depois faço algo para você comer.Oliver viu‑a distanciar‑se e relaxou o corpo sobre o sofá.– E então, como se sente hoje? – questionou uma voz conhecida.Ela vinha de dentro de Oliver, ou melhor, de sua própria boca,

embora a tonalidade fosse diferente. Seus lábios moveram‑se por conta própria.

– Mas o que... – Oliver não encontrou forças para falar.– Então já se esqueceu do meu favorzinho de ontem? – perguntou

Shafa, sorrindo.Oliver fitou o próprio reflexo através do espelho no outro lado

da sala. Sua face expressava‑se e movia‑se contra a sua vontade. Shafa encarou‑o, usando os próprios olhos de Oliver.

– Ou você acha que pularia cinco andares sem, pelo menos, que‑brar o seu pescocinho?

Oliver não conseguiu falar, assustado demais quando ficou de pé contra sua vontade. Shafa esticou os braços, estalou o pescoço e voltou a ficar de frente com o espelho, colocando as mãos na cintura.

– Nós temos muito trabalho até o final do dia.– O que você está fazendo? Saia de dentro de mim! – exclamou

o humano, por fim, tentando retomar o controle de seu próprio corpo.

Page 59: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 59 ×

– Estou cumprindo o nosso acordo. Você pediu minha ajuda... E eu nem comecei a ajudá‑lo ainda – retorquiu Shafa irônico, calando‑se assim que viu Anne retornando para a sala.

O cavaleiro, ou Oliver, aproximou‑se da mulher e segurou sua mão, levando‑a até os lábios enquanto realizava uma reverência.

– Que bela dama tenho diante de mim.Anne fitou Oliver sem compreender. Seu tom de voz havia muda‑

do de uma hora para a outra.– Você está bem? – perguntou ela sem entender. – Pare já com isso! – ralhou Oliver, puxando a mão de volta, segu‑

rando‑a com toda a força que conseguia. – Eu não pedi para que usasse meu corpo como se eu fosse um marionete!

– Isso estava incluso nas “entrelinhas” que você não leu – alegou Shafa, revirando os olhos.

– Tudo bem... Isso tá ficando estranho – murmurou a mulher diante do homem que falava consigo mesmo em dois tons diferentes.

– Desculpe, querida – pediu Shafa, recuperando o movimento das mãos sem dificuldade. – Mas vou ter que levar o seu amiguinho em‑prestado para dar um passeio. Tem dinheiro ali no chão se precisar de qualquer coisa. Faça o favor de pagar as contas... Estou cansado de ouvir esse imbecil contar a noite inteira.

Anne arregalou os olhos.– Do que está falando, Oliver? Desde que você voltou do Lami,

parece não regular direito! Estou preocupada com essa batida na sua cabeça.

– Anne! – exclamou Oliver desesperado que, até então, estava tentando falar e se mover, em vão. – Socorro!

– Shhh! – chiou Shafa ao pegar um dos envelopes de dinheiro.Olhou para Anne antes de sair, acrescentando:– Não nos espere para o jantar.– Pare! – gritou Oliver, enfiando o pé na frente da porta.Shafa puxou‑o de volta com violência.– Trato é trato, amigo. E, além do mais, faz tempo que tenho

planos para você.

– Espere aqui, querida – pediu uma mulher negra, de cabelos cur‑tos e ralos, usando um terninho marrom e carregando várias pastas.

Ela abriu a porta do carro e desceu.– Vou deixar a janela entreaberta, mas vou levar a chave e trancar

o carro.A garota de dez anos, sentada no banco traseiro, não respondeu

Page 60: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 60 ×

e muito menos pareceu dar atenção à sua assistente social. Seus olhos marejados encaravam a calçada e o prédio da prefeitura, mais adiante.

A assistente social ajeitou as pastas no colo e suspirou.– Escute, você não deveria ter fugido. Não está fácil arranjar tu‑

tores para crianças da sua idade, então não fique causando problemas para seus pais...

– Eles não são meus pais! – exclamou ela. – Eu não quero voltar para aquela casa... Ela fede a cigarro e eu odeio aquela mulher!

– Não fale assim, mocinha – retrucou a assistente. – Quando eu voltar teremos uma longa conversa e você entenderá o que digo. Um dia isso acabará, mas por enquanto terá de aceitar a família que a adotou!

A garotinha, cujo nome era Julia, não respondeu. Seus cabelos loiros em desalinho caiam‑lhe por sobre os ombros, até a altura do pei‑to. Ao invés de dar a atenção para sua assistente, cruzou os braços e respirou fundo quando a porta foi fechada e o alarme, acionado.

Julia estava obstinada a abandonar a vida de orfanato e tutores quando fugiu de sua casa. Não voltaria mais atrás, nem mesmo com a insistência de sua assistente social. Ela esticou o corpo entre os dois bancos da frente a fim de arranjar uma forma de escapar, mas antes que pudesse tentar qualquer coisa, um desconhecido parou ao lado da porta.

Ele olhava para os lados quando Julia voltou para o banco de trás e se abaixou o máximo que pôde para não ser vista.

– Você, definitivamente, é perturbado! – exclamou o homem, re‑virando os olhos. – Me deixe ir embora! Eu não sei que loucura está me afetando, mas deve ser algo grave! Primeiro, eu pulo de cinco andares, depois... Você! Você aparece e comanda meu corpo!

– Não se preocupe, agora somos íntimos – argumentou Shafa, satisfeito, olhando para os lados. Apesar do movimento de pedestres, não havia ninguém prestando atenção neles.

– O que você está querendo? Roubar um carro? Isso é um absur‑do! – gritou Oliver, sem poder se mexer. – O que quer de mim?

– Absurdo é você me criticar por roubar um carro! Quantas vezes você já fez isso? Você não tem cavalheirismo e nem estilo, meu jovem, você é como as criaturas a quem despreza – comentou Shafa, enfiando a mão pelo vidro entreaberto do carro.

Shafa estava atento, por isso viu a dona do carro deixar o veículo e entrar na prefeitura.

– E se o alarme tocar? – perguntou Oliver incrédulo.– Essas coisas são muito simples de se resolver... Vocês humanos

são muito complicados – O cavaleiro tocou o pino que abria a porta. – Preste atenção... ABRA!

Assim que Shafa deu a ordem, ouviu‑se um estalo e a porta do carro destrancou. O alarme não tocou quando ela foi aberta e os dois entraram.

Page 61: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 61 ×

– Ah, caramba! Como você faz isso? – indagou Oliver perplexo.Shafa retirou um canivete do bolso, enfiou na ignição e fez força

para arrancá‑la. – Esse é o canivete do meu pai! – protestou Oliver, que se lem‑

brou de levá‑lo consigo quando foi trocar as moedas.Shafa soltou dois fios da ignição e uniu‑os pelas extremidades. – Liga! – ordenou. Oliver se assustou quando o carro ligou. Shafa abriu os braços.– Está vendo? Fácil demais.A lataria prateada refletiu o sol escaldante quando tomou a aveni‑

da, que era recoberta de árvores. – Afinal, aonde você vai me levar? – questionou Oliver, cansado

de retrucar. – Me diga pelo menos o que acontece! É a verdade, não é?– Você verá, você verá – riu Shafa com um tom de satisfação ao

ligar o rádio.– Ainda não entendi a sua – falou Oliver, abaixando o som do

rock pesado. – E nem vai entender tão cedo – disse Shafa, aumentando o som.Oliver abaixou de novo, Shafa aumentou e Oliver desistiu, perce‑

bendo que estava saindo da cidade ao passar pelo aeroporto. Não tardou para chegarem à rodovia; Shafa, então, tomou o ca‑

minho para a serra. Iriam subi‑la, e Oliver não queria nem saber aonde iam. O vento entrava barulhento pelas janelas semiabertas, e Shafa se divertia, pondo uns óculos escuros que achara no porta‑luvas. Repen‑tinamente, Oliver ouviu um barulho estranho vindo atrás de si. Virou levemente o rosto, e Shafa não permitiu que Oliver visse.

– Tenho que prestar atenção no transito, idiota – alertou Shafa, cantarolando a música que passava no rádio.

– Eu não sei se você percebeu, mas acho que você roubou o carro com alguém dentro...

Shafa levou a mão no retrovisor e voltou para o banco de trás. Oliver aproveitou a distração de seu possuidor e deu uma freada no carro. Os pneus gritaram no asfalto. Shafa estacionou o carro no acos‑tamento. Nada, além de montanhas e mato alto, ladeava a pista de duas mãos. Quando Shafa e Oliver viraram bruscamente para trás, de olhos exaltados, viram a pequena garota sentada no banco de trás. De olhos verdes, chorando copiosamente, olhava o estranho no banco da frente.

– Moço, – disse ela com a voz apagada – para onde o senhor está me levando?

Shafa ficou emudecido. Oliver pôs‑se a falar calmamente. – Você... – ele mediu as palavras – era parente daquela mulher que

entrou na prefeitura?– Não, ela é assistente social – disse ela bem baixinho. – Você vai

me matar?

Page 62: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 62 ×

A inocência da garota era engraçada. Os cabelos grudavam na face inchada de chorar.

– Você se escondeu? – perguntou Shafa.Ela assentiu com a cabeça.– Qual o seu nome? – tornou a perguntar Shafa, forçando um

sorriso amarelo.– Julia.Shafa virou para frente.– Isso não deveria acontecer – comentou ele, coçando a nuca. – Seu imbecil! – xingou Oliver, dando um safanão no próprio ros‑

to. – O que faremos com ela?– Largaremos aqui. Não podemos seguir com ela! – respondeu

Shafa, sem dar importância à garota. – Se dermos alguns pilas para ela, ela se vira. Já é grandinha!

– Não podemos largar crianças por aí! – Mas também não podemos carregá‑la conosco!– Por favor! – pediu a garotinha. – Não me levem de volta... Eu

fico com vocês! Meus pais me abandonaram e a última casa de tutores que eu fiquei era horrível... Eu prometo me comportar.

Oliver pensou um pouco. A garota talvez fosse sua passagem de volta para a vida normal, caso a usasse como motivo para voltar para sua cidade. Inusitado, mas, possivelmente, sua salvação.

– Faço o que você quiser se levá‑la conosco em segurança. Eu lhe obedeço e paro de retrucar... Prometo também que não farei mais perguntas sobre nada! – prometeu Oliver, suando frio. – Você vai se comportar, não é, Julia? É esse seu nome, não é?

A garotinha concordou. Embora estivesse assustada, não queria voltar para a casa. Qualquer coisa para fugir de sua realidade.

– Juro que não farei nada... – disse ela se ajeitando no banco.– Eu mereço isso... – rosnou Shafa, passando a mão na cabeça. A

oferta de Oliver era tentadora, mas temia que a criança lhe trouxesse problemas. – Eu a levo, então, se prometer parar de me encher o saco e me obedecer! Mas não me responsabilizo por ela e nem por nada que lhe aconteça! Não vou ficar me preocupando com criancinhas... E nem a levarei de volta para a casa!

Oliver aquietou‑se, e Shafa voltou a dirigir. Agora não fazia mais sentido tentar negar‑se a qualquer coisa.

Após cerca de duas horas, das quais uma hora foi gasta conversan‑do para acalmar a garota, Oliver, intrigado e curioso, ouviu Julia pigar‑rear e falar timidamente:

– Ainda falta muito para chegar?Oliver observou‑a pelo retrovisor.– Não sei, por quê?– Eu estou com fome e preciso ir ao banheiro – murmurou ela.

Page 63: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 63 ×

– Agora? – intrometeu‑se Shafa irritado. – Crianças! Eu sabia que deveria ter te deixado na estrada.

– Ela é só uma criança – opinou Oliver, forçando Shafa a virar a rua em um posto bem decorado e lotado de caminhões. – Vamos parar.

– Nós não temos tempo! – alertou Shafa, tentando virar o volante para pegar o retorno à direita.

– Eu também tenho necessidades – interveio Oliver. – Não comi nada desde que acordei.

O carro estacionou ao lado de um caminhão e Oliver desceu, abrindo a porta para que Julia saísse. Com um comportamento absur‑damente calmo e os grandes olhos vidrados em Oliver, ela segurou sua mão. Entendia a fatalidade da situação, por isso apenas seguia aos co‑mandos de Oliver para não ser levada de volta para sua “casa” e nem ser largada em algum fim de mundo.

Ao lado do mercado, o restaurante cheio de caminhoneiros estava animado. Oliver guiou a pequena até o banheiro, parando na entrada e coçando a nuca.

– Você... – começou ele, constrangido.– Sei sim – finalizou Julia, abrindo a porta. – Pode deixar.– Ok. Então você faz o que tem que fazer que eu pego a comida

para nós. Depois seguimos viagem! A garota assentiu com a cabeça, sem pensar em fugir. Era filha

adotiva de um casal que vivia em constantes brigas e que não se impor‑tava com ela. Seus pais adotivos tinham mais vontade de sair em dupla, mostrá‑la em público e viverem suas vidas separadamente. Para o casal, ela não passava de um mero objeto. Sua tutora levava homens diferentes todos os dias para a cama, enquanto seu tutor fumava e bebia como um porco e, sempre que estava em casa, ignorava sua presença.

Oliver contava o dinheiro na carteira demoradamente.– Não tenho muito dinheiro – falou Oliver, contando as moedas. – Isso não é problema. Eu peguei dinheiro, lembra? – Shafa apa‑

nhou um pacote de bolachas. – Sempre quis comer isso. Vamos sair da‑qui, podemos deixar a garota. Alguém vai levá‑la de volta para a casa.

– Nós é que vamos levá‑la para a casa – sorriu Oliver, crente de que a garota poderia ser a sua passagem livre de volta para casa.

Dos fundos do restaurante, próximo à saída dos fundos, um odor denso, sentido apenas por Oliver e Shafa, chamou‑lhes a atenção. O odor, era indistinguível, fétido, mas, ao mesmo tempo, um cheiro atra‑ente. Repugnância, alegria, tristeza e ódio juntos num só cheiro.

– Problemas – anunciou Shafa, depositando a cesta com manti‑mentos sobre o balcão.

Oliver sentiu preocupação. – Que cheiro é esse?– Ele serve para nos dizer que existe algo muito errado – concluiu

Page 64: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 64 ×

Shafa, seguindo para o restaurante. – É o cheiro inconfundível de morte.Caminhou entre as mesas cheias rumo ao banheiro. O cheiro de

morte tornava‑se mais intenso na direção da saída. Oliver abriu a porta do banheiro feminino sem encontrar ninguém. Onde estaria Julia? Ele sentia‑se responsável por sua proteção, já que o cavaleiro a sequestrara sem saber. Teria ela fugido?

– Pra lá! – indicou Oliver, apontando para uma porta que os leva‑ria à saída para funcionários do restaurante.

Shafa conferiu, o cheiro deixava um rastro até a porta. Empurrou o garçom, que derrubou os copos de bebida sobre algumas pessoas, e continuou seu caminho, agora correndo. Saltou para fora do restaurante, dando‑se de frente com um extenso mato e veículos estacionados. Os gritos de Julia vinham da esquerda; um homem grande e gordo, seguido de uma mulher mirrada e baixa, carregavam a garota contra a vontade para um espaço onde um caminhão de médio porte estava estacionado.

– Temos que fazer alguma coisa – preocupou‑se Oliver, procuran‑do alguma arma para usar. – Essa garota é nossa responsabilidade!

– Você e essa responsabilidade idiota! Estamos perdendo tempo!Oliver apenas rosnou e Shafa não se opôs.– Você tem que entender como funciona, Oliver – arfou Shafa,

correndo mais rápido para o veículo. – Eu lhe dou o que você precisa, mas quem faz é você. Eu não posso machucar humanos, apenas influen‑ciar outros a isso. E, no caso, apesar de errado, é possível. Por isso que não matei Julia, já que nada me impediria de assim fazê‑lo.

Oliver não escutou, apenas queria estraçalhar o homem que rou‑bara a garota. Não deixaria que alguém a molestasse. Ela era seu caminho para voltar para a sua casa. O ódio e a raiva entravam como adrenalina nas veias, vertendo para a cabeça. Aquela vontade parecia vir de seu ín‑timo, seria o poder de Shafa lhe assolando? Valter, o cafetão, jogou Julia para dentro do caminhão e lacrou a porta com a tranca, virando o corpo robusto para Oliver enfurecido. Por um momento, um formigamento percorreu o cérebro de Oliver e sua visão turvou, dando espaço para feixes de luzes que carregavam consigo imagens e lembranças de Valter

– Ele é um cafetão – disse Shafa, cujo dom de ler a mente alheia permitia‑lhe dar aquela informação. – E explora a prostituição infantil.

O possuído saltou para cima de Valter, antes que ele demonstras‑se reação ao ataque, e socou‑lhe com fúria.

– Filho da mãe! – urrou Oliver, desferindo outro soco pesado no rosto de Valter. – Me devolva ela!

– Pare! – pediu o homem, alucinado pela força dos golpes que o estavam nocauteando.

Antes que pudesse continuar, Oliver levou uma pancada na nuca e perdeu os sentidos. Caiu de bruços no chão, enfiando a cara na terra. Lucia , a mulher de Valter, desferira o golpe.

Page 65: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 65 ×

Valter, o homem robusto de cabelos ralos e brancos, levantou cambaleante.

– Como você perde para um magrelo desses aí? – Questionou a mulher.

– Cala a boca – rosnou o cafetão. Apanhou o corpo desmaiado de Oliver pela gola, abriu a porta do caminhão, jogou‑o lá dentro e trancou a porta.

Engolido pela escuridão, ele permaneceu desmaiado.

Page 66: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 66 ×

Capitulo 6 Tratando com Ghostgans

O motor barulhento do caminhão andando pela estrada acordou Oliver. Sua cabeça latejava como nunca. Estava escuro na parte traseira do veículo e não enxergava nada além de seus pés iluminados pelo feixe que entrava por um rasgo no teto. Jurou para si que aquele homem pa‑garia caro pela dor de cabeça que estava tendo. Apoiou a mão em uma caixa de madeira, levantando, mas caiu com um frear brusco.

– Finalmente você acordou! – xingou Shafa, desferindo um tapa na cara de Oliver.

– Oliver? É você? – perguntou a voz conhecida de Julia.Com os sentidos voltando, Oliver escutava melhor. Ouviu o ca‑

carejar das aves que se encontravam na caixa em que se apoiava. Retirou a mão de lá, limpando‑a na blusa.

– Julia! – chamou Oliver, apoiando‑se de novo na caixa.– Aqui! – exclamou ela, segurando a mão de Oliver.O possuído sentiu a mão quente da garota na sua, e fechou‑a so‑

bre a dela, com medo de perdê‑la. Estava com Julia há algumas horas e sentia‑se apegado a ela.

– Eles te fizeram algum mal? – perguntou Shafa, cujos olhos pe‑gavam fogo de raiva.

– Não, eu estava no banheiro e, quando saí, a mulher ruiva veio falar comigo. Insistiu para que eu a seguisse, eu não quis. Mas veio o ho‑mem e me pegou, ameaçou me matar. Então, eu fui, e ele me carregou...

Oliver esfregou a nuca dolorida.– O que vamos fazer?– O que você acha? Fugir! – respondeu Shafa, de supetão.– Oliver – chamou a garota, escondendo‑se atrás do humano en‑

quanto apontava para o outro lado do caminhão.Oliver e Shafa prestaram atenção no que a garota mostrava com o

ar da dúvida. Assim que o caminhão voltou a andar, e a árvore que tapa‑va a luz da brecha na lataria desapareceu, o trio pode ver o amontoado de crianças sentadas em fileiras entre as caixas de galinhas. Todas usando farrapos sujos e presas por correntes. O estômago de Oliver embolou, e

Page 67: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 67 ×

ele acabou por vomitar no canto fechado. Shafa franziu o cenho.– Meu Deus... Eles... – gaguejou Oliver surpreso com o estado

lastimável das crianças. – Quem são vocês? – perguntou uma das garotas, vestindo uma

espécie de blusa encardida.Oliver não respondeu, e Shafa tomou o controle.– Me responda você, quem são vocês?A garota pensou um pouco antes de responder.– Trabalhamos para Valter e Lúcia. – A voz dela era embargada,

com o olhar de quem chorava internamente, mas não queria demonstrar.– Como assim trabalham? – insistiu Shafa.O possuidor aproximou‑se do grupo, contando cerca de quinze

crianças. Inocentes que entravam na escravidão sexual, que não tinham infância e nem amor. Shafa indignou‑se, apesar de estar acostumado a ver a frieza dos humanos, mas, por mais que conhecesse esse lado absurdo, ele jamais deixaria de se surpreender com tal baixeza. Tinha princípios, servia ao bem de maneira que anjos não serviriam, e fazia maldades que nem demônios sonhavam. Era seletivo, escolhia a dedo como trabalhar.

– Fazemos o que nos mandam fazer em troca de comida, – disse a garota – eu e eles.

E apontou para os demais que a acompanhavam. As outras crian‑ças carregavam tristeza nos rostos. O bolo na garganta de Oliver ex‑pressava seu rancor.

– E seus pais?– Mortos.– Desde quando vocês fazem isso?– Desde que fomos sequestrados ou “adotados” por eles – ex‑

plicou a garota. – Alguns de nós não veem a família faz muito tempo. Quatro ou cinco anos... Já outros foram sequestrados de lares adotivos.

Shafa não demonstrava pena deles, apenas raiva do casal. Voltou o rosto para a porta metálica como mecanismo interno de tranca, Oliver leu o que o “parceiro” pensava.

– Vocês podem fugir, – disse a garota, forçando um sorriso – va‑mos ficar bem. O senhor Valter disse que ia nos levar para um novo lar, e lá todos nós encontraríamos uma família.

A ingenuidade da garota entristecia Oliver. Shafa encarou‑a, introduzindo‑se na mente dela. A sensação de invadir a mente de ou‑tra pessoa era estranha e assustadora para Oliver. Era uma capacidade nunca almejada pelo humano, pois sabia que poderia se apropriar de verdades que não precisavam vir à tona. Oliver agora via o tal Valter abrindo a porta do quarto imundo em que as crianças se encontravam, apinhadas em cobertores velhos. O mofo do quarto sem móveis causava doenças respiratórias nas crianças. Muitas tossiam, outras sentiam‑se

Page 68: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 68 ×

mal. A única janela servia para iluminar todo aquele horror. Nas mãos do homem, os exames de sangue das crianças. Todas estavam doentes, e crianças doentes não davam dinheiro. Precisava eliminá‑las antes que fosse tarde; Shafa conseguia ler isso no olhar do homem. Oliver come‑çava a se enojar da capacidade de Shafa de ler pensamentos e intenções quando bem entendesse.

– Que monstro – intrigou‑se Oliver, dividindo a visão com Shafa. Ambos usavam os mesmos olhos, compartilhando o horror do mundo.

– Isso não é da nossa conta, Oliver! – a voz de Shafa fora tão fria que assustara Oliver.

– Do que você está falando?– Você ouviu... Eu já sei o que você está pensando! Não podemos

fazer nada por essas crianças! Temos que prosseguir viagem, já não basta a garota? Agora vai ficar recolhendo coitados por aí? – sussurrou Shafa, dando as costas para o grupo de crianças. – Eu prometi que a levaria conosco, mas não que faria o que você bem entendesse!

– Não, nós vamos ajudar – foi a vez de Oliver demonstrar frieza. – Novamente você e seu heroísmo. – Shafa riu sem motivo.– Você me pôs nisso contra a minha vontade... Até agora não

entendo o que está acontecendo, mas não vou me permitir perder a oportunidade de ajudar de alguma forma, – disse Oliver, fitando a porta metálica – pois eu não quero ser mais um inútil.

– E você vai fazer o quê para ajudar? – contestou o cavaleiro, que não tinha apreço pela vida das crianças, nem por nenhuma outra pessoa. – Você viu, estão todas doentes. Vão morrer igualmente!

Oliver fechou os olhos, baixando levemente a cabeça. Julia se‑gurou‑lhe a mão de novo, e os dois se encararam. A garota entendia a dúvida de Oliver, e ele sentiu que compartilhavam da mesma opinião.

– Mas elas merecem um pouco de dignidade. Não vamos deixar esses idiotas se safarem assim – retrucou Oliver, deixando a incerteza de suas palavras de lado.

– As crianças pelo menos acreditam que vão para um lugar me‑lhor. Vai tirar essa realidade delas?

– Isso é errado! Nós vamos ajudá‑las. Esses dois vão continuar com isso, e o mundo vai agradecer pelos dois bandidos a menos por aí. Muitas dessas crianças ainda têm chance de sobreviver.

– Está bem, chega. Eu entendi! Nós vamos ajudá‑las e depois continuaremos a viagem. E não carregarei mais ninguém conosco, já temos essa peste – interrompeu Shafa, entediado.

Julia lançou um olhar odioso para Shafa.– Não se preocupe, darei um jeito de deixá‑las em segurança. – E

Oliver passou a mão nos bolsos, estava com o celular lá desde que saíra do apartamento. Shafa fechou o aparelho antes que Oliver discasse.

– Ainda não, – disse‑lhe, com serenidade – temos trabalho pela

Page 69: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 69 ×

frente e a ajuda da polícia só vai atrapalhar agora. Instantes depois, Oliver e Shafa discutiam o plano que iriam fa‑

zer. Estavam dentro do caminhão fazia mais de três horas, prosseguindo com a viagem para um rumo desconhecido. Julia permanecia junto com as outras crianças, conversando com elas. A palha no chão fazia com que Oliver escorregasse algumas vezes, e o cavaleiro lhe repreendesse.

– Eu não consigo enxergar nada – disse Oliver, em busca de apoio.– Então comece a enxergar, não podemos ser nocauteados de

novo! – Shafa ruminava a ideia de ter apanhado da mulher. – Esse casal‑zinho vai aprender a lição.

– Foi um descuido nosso – defendeu‑se Oliver, notando que o veículo reduzia a velocidade.

O caminhão começou a tremer, saíam do asfalto e tomavam uma via de terra batida. As galinhas no compartimento excitaram‑se.

– Prepare‑se, o cheiro de morte está mais intenso – avisou Shafa, franzindo o cenho; estava hesitante.

Shafa queria ver até onde Oliver conseguia ir. Era divertido, para o cavaleiro, avaliar o limite da capacidade das criaturas ao lidarem com situações extremas, principalmente humanos.

– Está pronto? – perguntou Oliver depois de dez minutos de si‑lêncio enquanto o caminhão estacionava.

Oliver adorava a ideia de dar uma lição no casal. Dias atrás não se interessaria por aquilo, teria fugido na primeira oportunidade e ligado para a polícia. No final, os vilões sairiam impunes. Mas desde o momen‑to em que Shafa lhe dera a oportunidade de fazer as coisas diferentes, queria testar até onde aquela frase era verídica. Não sabia de onde Shafa vinha, nem quem era. Perguntar seria tolice, pois não teria resposta al‑guma. Oliver deitou‑se. Julia, obedecendo a sua parte do acordo, fica‑ra encarregada de manter as crianças sob controle. O possuído sentia energia de Shafa rodear suas entranhas e a sede de matar tomava seu ser, queria triturar a dupla de assassinos, mas tinha que esperar o momento certo. A vontade não era sua ou, talvez, até fosse, mas estava guardado em um íntimo tão distante que não compreendia. O antigo Oliver pare‑cia ter mudado um pouco.

A porta do compartimento se abriu e Valter, segurando uma pis‑tola, entrou acompanhado da mulher repugnante. Oliver fechou os pu‑nhos para conter‑se.

– Ele ainda está desmaiado – informou Valter, chutando o ombro de Oliver, que sequer se moveu, engolindo a dor.

– Tem certeza? Depois de todo esse tempo? – Lúcia estava inse‑gura, mas o olhar do marido a convenceu. – Bem, então traga‑o para cá. Vamos colocá‑lo junto das galinhas para terminarmos o trabalho e fugir.

– Você fala como se mandasse em alguma coisa – retrucou Valter, apanhando a corrente mestre que se ligava às algemas que prendiam as

Page 70: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 70 ×

crianças em fila. – Levantem‑se!As crianças, obedientes, levantaram‑se, posicionando‑se em fila.

Valter saiu primeiro, saltando para o gramado. Entregou a corrente para a mulher, que guiaria a fila. Julia ia sem reclamar logo atrás, juntando‑se à garota que dera as informações. Ela confiava no louco Oliver, tinha esperanças no homem que a “sequestrou” sem querer. Havia garotos e garotas cujas idades variavam de oito a quinze anos. Loiros, morenos, mulatos e albinos. Todas as crianças, ingênuas e pobres, que tinham suas vidas interceptadas por cafetões da prostituição infantil, como o casal. Crianças que não tinham sonhos, nem esperança de crescer, de se for‑mar na faculdade e de criar a própria família. Seu afeto encontrava‑se nas camas com estranhos que as molestavam como queriam. Entristecidas, sujas e com rostos abatidos, aguardavam o destino sem revidar.

Oliver fora pego pelo colarinho, atirado de dentro do caminhão e viu de relance que estava em uma fazenda, na serra. Shafa pensou alto, e Oliver ouviu: “Por sorte, continuamos a seguir pelo caminho que deve‑ríamos tomar.” Valter arrastou Oliver, pelo braço, através do caminho.

– Se você tentar alguma coisa, desgraçado, eu meto uma bala na sua testa! – ameaçou Valter, como se previsse os planos de Oliver.

Shafa tentou virar o rosto para cima na tentativa de ver melhor. Havia uma pequena casa branca de dois andares mais adiante, bem sim‑ples. Um galpão, cercados intermináveis com vários animais como vacas e um celeiro marrom. Árvores circundavam a casa.

Valter abriu a porta do celeiro. O teto alto era suportado por to‑ras de madeiras. Lá dentro havia uma gaiola de metal vazia e suja de palha e fezes de galinha. Um pequeno trator estava oculto no meio das tranqueiras. Valter pegou as chaves de seu cinto de vaqueiro e abriu a gaiola. Olhou com nojo para Oliver, pois aquele imbecil, com aquele tamanho, havia lhe dado uma surra. Ele o mataria mais tarde. Agarrou‑o pelo braço e atirou‑o no meio das fezes de galinha. Oliver trancou a res‑piração para não vomitar. Deixou escapar uma careta que não foi vista. O cafetão trancou a porta, juntou o chapéu de vaqueiro pendurado na gaiola de metal, colocou‑o na cabeça, e saiu do recinto.

– Filho da mãe! – exclamou Oliver, saltando do monte de fezes. Não tinha como ficar de pé em um lugar pequeno como aquele,

de altura reduzida, talvez não passasse de um metro por isso ficou de joelhos. Segurou o cadeado grande e velho, bateu‑o contra uma das gra‑des e nada aconteceu.

– Ele nos trancou aqui. – Demorou muito tempo para perceber, não? – questionou Shafa

arrogante. – Preciso pensar em como vamos sair daqui.– Você não tem algum super poder guardado aí? Tipo derreter

metais ou força de super‑herói? – falou Oliver irônico ao encostar as costas na cela metálica e soltar um longo suspiro.

Page 71: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 71 ×

Shafa não respondeu, havia, sim, outros tipos de dons que ele poderia usar contra aquilo, mas foi Oliver que resolvera envolver‑se na‑quela história e ele é que deveria sair. Após quinze minutos em silên‑cio, a dupla ouviu o ruído de pneus amassando cascalho ficar distante conforme o veículo se afastava do celeiro. Oliver viu Valter e Lúcia de relance dentro de um jipe.

– Eles estão saindo!– Devem ter ido buscar alguma coisa. Se o cafetão quer mesmo se

livrar dos corpos vai precisar de uma grande fogueira. Acho que temos a nossa deixa... – deduziu Shafa, abrindo um sorriso. Se dependessem de Oliver naquele momento, nunca sairiam dali.

– Tínhamos a nossa deixa, porque eu não sei se você percebeu, mas estamos presos.

– Isso é uma fazenda, não é? E em fazendas tem muito verde. Estamos na serra, então vamos recorrer a uma ajuda excêntrica – disse Shafa enquanto inclinava o corpo para frente. – Tem algo de valor aí?

Oliver não entendeu o que Shafa quis dizer com “ajuda excêntri‑ca”, mas tateou o pulso direito e retirou o relógio de prata.

– Eu tenho esse relógio que meu pai me deu no aniversário de quinze anos, mas ele está estragado desde que eu estive na clareira.

O cavaleiro ergueu o relógio diante dos olhos analíticos.– Vai servir. – O que pretende fazer com isso? Tem um grande valor sentimen‑

tal! – exclamou Oliver na tentativa de pegar o relógio com a outra mão.– Não vai valer nada se você morrer, idiota. Você vai ficar quieto

agora, entendeu? Não importa o que aconteça, deixe que eu fale e aja – ordenou Shafa.

– Eu não estou entendendo...– Não importa! Você vai entender, então fique quieto. E pare de

tentar pegar a droga do relógio! Ele vai ficar comigo.Shafa tomou o controle do corpo e ajoelhou‑se diante da porta

de metal. Oliver aquietou sua ansiedade. O cavaleiro limpou os dedos mínimos nas calças e levou‑os à boca, assoviando três vezes consecu‑tivas. Esperou alguns instantes e assoviou novamente, enfiando a mão entre as barras metálicas da grade e colocando o relógio de prata diante da gaiola. Juntou um graveto caído ao lado do amontoado de esterco e desenhou um círculo na terra ao redor do relógio.

– O que você está fazendo? – perguntou Oliver incrédulo.Oliver achou que o cavaleiro estava ficando louco, mas mudou

de ideia quando pousou o olhar sobre o círculo. Se seus olhos não men‑tissem, pequenos pontos escuros surgiam no chão de terra ao redor do desenho e paravam um pouco antes da linha que delimitava seu espaço. Pequenos silvos esquisitos, semelhantes a estalinhos ecoavam em seu ouvido. E então o mais improvável e impossível aconteceu: um pequeno

Page 72: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 72 ×

vulto saltou para dentro do círculo. À primeira vista parecia um rato verde, mas olhando atentamente Oliver não soube definir o que era aquela coisa.

A criatura era um pouco menor que uma palma de mão. Seu rosto um pouco achatado lembrava o de um rato, mas não possuía pelos, a cabeça era descomunal em comparação com o corpo. A sua textura de pele lembrava algo como um vegetal. Os olhos eram duas bolotas negras de ar inteligente. O focinho longo não terminava em um nariz, apesar de possuir uma boca grande com dentes serrilhados. O corpo era com‑posto por dois braços e duas pernas longos e finos, verdes, semelhantes à textura de raízes de plantas. Os dedos terminavam em pontas afiadas e cortantes. Pequenas folhas verdes nasciam no topo da cabeça arre‑dondada e seguiam pela coluna vertebral, terminando na ponta de um rabo comprido e fino. E, como se nada pudesse ser mais nauseante do que aquilo, a criatura ainda usava um chapéu de palha com a aba trian‑gular e uma blusa feita com retalhos de tecido vermelho. Uma cinta de trançado marrom, ou melhor, um pedaço de corda, envolvia a cintura e guardava vários objetos minúsculos e cintilantes entre os fios trançados e gastos, semelhantes a pequenos bolsos. A parte de baixo de seu corpo não era coberta, mas apresentava a mesma textura de planta.

A criatura abraçou o relógio.– Ei! Não toque no meu relógio! – gritou Oliver, chocado. – Era para você ter ficado quieto! – xingou Shafa, enfiando a mão

entre as grades e apanhando a criatura antes que ela fugisse.Seus dedos se fecharam perfeitamente ao redor do rato verde. – Venha cá, seu safadinho, me diga seu nome! – disse Shafa de

sorriso crispado. O monstrinho, pasmo, continuou abraçado com força ao relógio.– O que é essa coisa? – perguntou Oliver enquanto aproximava o

rosto para ver melhor.– Não fique muito perto! – alertou Shafa, afastando o rosto e

apertando um pouco mais a criatura na mão. – Isso é um ghostgan. Não lembro bem o que exatamente são, mas acho que são herbíris.

O ghostgan muxoxou. – Nós somos Chifônias! Chifônias! – resmoneou a criatura irrita‑

da. Oliver arregalou os olhos ao ouvi‑la falar. – Os herbíris não vivem em florestas altas, eles preferem matas rasteiras.

– Que seja – disse Shafa, dando de ombros. – Chifônias? Que diabos são essas coisas? – perguntou Oliver que

quase largou o ghostgan por terra. Lembrou‑se de já ter ouvido aquela palavra antes. – Me explique!

– Ah, está bem... – suspirou Shafa. – Mas se eu explicar rapida‑mente você não vai entender, uma explicação mais profunda levaria muito tempo. Chifônias são criaturas perigosas que vivem em florestas.

Page 73: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 73 ×

Não se engane por sua aparência inofensiva...A chifônia apoiou o cotovelo na mão de Oliver. – Mais respeito com a nossa espécie. Por que você fala sozinho?

E como sabe sobre mim? Humanos não devem saber sobre ghostgans.– Espere para descobrir quando terminarmos a nossa viagem, eu

prometo que você terá todas as suas dúvidas elucidadas sobre isso. Tudo o que você precisa saber é que ghostgans existem. Humanos não sabem a respeito deles... Poucos foram os que viram – disse Shafa.

– Eles são como os leprechauns, não é?– Você já ouviu falar sobre eles em histórias. As chifônias apare‑

cem em versões de contos de fadas representadas como...– Gnomos – disse a chifônia com desprezo – a nossa raça foi

transformada em um absurdo chamado de gnomo! – Deixaremos as explicações para outra hora. Temos que tratar

agora de algo importante que requer a nossa atenção... – Shafa voltou a olhar para a chifônia. – Diga‑me seu nome.

– Diga o seu primeiro – desafiou a criatura. – Eu sou Shafa, um cavaleiro de Terra‑Inversa. E este é só Oliver. A chifônia entreabriu a boca.– Um cavaleiro da Terra‑Inversa? – A criatura abaixou a cabeça

numa semi‑reverência. – Bem que pressentimos a sua presença, senhor. Oliver começou a achar engraçado o jeito daquela criatura. Se o

que Shafa dizia era verdade, então na realidade os humanos sabiam de tudo, mas não acreditavam ou não tinham provas que tornassem suas existências concretas. Shafa largou o ghostgan, que se ajoelhou diante do humano e assobiou duas vezes. Nesse instante Oliver ergueu os olhos, notando dezenas de pontos verdes surgindo entre os tufos de palha do celeiro, entre as tábuas do teto e entre um e outro buraco nas caixas empilhadas. Deveria haver trinta chifônias por ali, no mínimo, e eram todas semelhantes àquela parada diante de si. Usavam roupas, chapéus, carregavam objetos e tinham vários tamanhos e formas. Alguns mais magros e outros mais gordos, e nenhum com o rosto exatamente igual.

– Meu nome é Sir Duwe, mas pode me chamar apenas de Duwe. Eu sou o líder do grupo de chifônias da região. – Duwe fez uma nova reverência. – O que desejam de nós, senhores?

– Nós precisamos de sua ajuda. Primeiro, nos tire daqui. Duwe pareceu hesitante. – Ah, claro. – Shafa empurrou o relógio na direção dele. – Fique

com isso em troca de seu trabalho.Duwe sorriu para o relógio e arrastou‑o para fora da gaiola. Duas

outras chifônias surgiram debaixo de um punhado de palha e carregaram o objeto para longe. Duwe gesticulou para uma chifônia que os observa‑va, pousada sobre uma das tábuas do teto.

Oliver viu uma corda fina ser jogada até a altura do cadeado.

Page 74: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 74 ×

Duas chifônias desceram agilmente, uma saltou sobre a gaiola e a outra continuou pendurada, usando a cauda para manter‑se segura.

– O que essas chifônias fazem?– Elas costumam roubar objetos perdidos para colecionar ou

guardarem para si. Eles adoram qualquer tipo de coisa, principalmente se tiverem muito valor material. E quando não fazem isso, protegem as florestas em que vivem, fazendo com que os caçadores e lenhado‑res se percam até desistirem e voltarem para a casa – explicou Shafa ao observar as duas chifônias trabalharem rapidamente com o cadeado até desmanchá‑lo e retirá‑lo da tranca, abrindo a passagem para a saída.

Shafa saiu da gaiola. Duwe cruzou os braços sobre o peito com um ar de vitorioso.

– Agora que já concluímos o nosso trabalho...– Não, espere! – pediu Shafa, abaixando para olhar melhor a chi‑

fônia. – Eu tenho outro trabalho para vocês. Oliver ouviu os pensamentos de Shafa.– Você não está pensando em realmente fazer isso, está?– Tem alguma ideia melhor? Estamos desarmados e com pouco

tempo. Creio que o casal de cafetões já esteja chegando.– E então? – perguntou Duwe, cansado de ouvir aquela discussão

maluca de duas vozes.– Nós precisamos de sua mão de obra para realizar um trabalho.

Se aceitarem ajudar a resolver meu problema, deixarei que vocês levem o que quiserem daquela casa branca.

Shafa levantou e caminhou até a porta do celeiro, apontando para a casa de dois pisos da fazenda. Os olhos de Duwe cintilaram enquanto ele esfregava as mãos.

– Tudo o que quiserem – Shafa repetiu satisfeito. – Vocês não podem entrar em uma casa e roubar, mas eu lhes estou dando a permissão.

Oliver continuava incrédulo. Além de ter que acreditar que estava sendo possuído por um cavaleiro, ele precisava crer que chifônias exis‑tiam e os ajudariam a salvar Julia e as outras crianças. Pierre estava certo sobre a existência de outras criaturas por aí.

– O plano é simples... – disse Shafa. – As chifônias roubam a arma, entregam para você e, então, é só chamar a polícia.

– Eu posso fazer isso – retrucou Oliver de peito estufado.– Claro que pode – desdenhou Shafa.

Exatamente doze minutos depois, o carro de Valter e Lúcia esta‑cionava no terreno. Duwe e mais cinco chifônias estavam parados aos pés de Oliver, montados sobre cinco gordos e truculentos gambás. Os

Page 75: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 75 ×

animais usavam uma sela minúscula e tinham rédeas curtas, e atendiam a qualquer ordem dos pequenos guardiões das florestas. Shafa recuou até se esconder atrás das sombras proporcionadas pelas portas do celeiro.

– Tudo bem, estão com o plano em mente, certo? – indagou o cavaleiro com pressa na voz.

– Sim, é claro que estamos. – Duwe comprimiu as pequenas ré‑deas com as garras afiadas. – Nós devemos cuidar da mulher, mas não matá‑la. Porém, antes devemos desarmar o grande homem para que vo‑cês possam pegá‑lo. E depois tudo será nosso?

– Tudo será de vocês – confirmou Shafa. – Agora façam sua parte.Duwe retribuiu o gesto e puxou as rédeas, soltando um grito

semelhante ao ruído dos grilos. Dois gritos de grilo ao longe soaram como resposta. O quinteto de chifônias se dividiu e entrou na mata.

– Agora é só esperar eles trazerem a arma – murmurou o cavalei‑ro, sentando em uma caixa e repousando as pernas em outra mais baixa.

– Como os humanos nunca viram isso? – perguntou Oliver. – As pessoas são ocupadas demais para verem o que está diante

dos seus olhos. Sem contar que chifônias podem ficar “camufladas” por determinados períodos de tempo, você mesmo viu que Duwe só apare‑ceu porque eu fiz um círculo ao redor dele. Não um círculo qualquer, é claro, existe todo um misticismo no qual você não acreditaria agora. Mas em breve você conviverá com isso tanto quanto eu e, com o tempo, você vai enjoar de tanto saber.

– Acha mesmo que eles conseguirão desarmar Valter?Shafa suspirou e encostou a cabeça na parede do celeiro. Somente

agora se dera conta de que estava cansado.– Chifônias matam caçadores quando não conseguem fazê‑los de‑

sistir de matar um animal. Toda a criatura tem instintos assassinos, não duvide disso Oliver...

Ele calou‑se. Valter desceu do jipe carregando dois galões de ga‑solina e os depositou na entrada dos fundos. Teve a impressão de ver uma sombra se movendo agilmente ao seu lado. Deveria ser algum pe‑queno animal ou algo do gênero. Lúcia veio em seguida com os outros dois últimos galões de cinco litros.

– Vamos queimar tudo isso e viajar para a Suíça. Tenho parentes lá que nos receberão – disse Valter, fitando a mulher, enquanto apanhava a caixa de fósforos do bolso e a entregava para ela – pegue isso e vá es‑palhar a gasolina pela casa. Quando eu terminar com aquele idiota, nós daremos cabo das crianças.

– Tudo bem – disse Lúcia, secando o suor da testa. Os seus cabelos crespos, ruivos e curtos colavam na testa como

grude. Valter deu‑lhe as costas e seguiu para o celeiro. Lúcia juntou um dos galões e entrou na casa, satisfeita com seus planos de futuro. Nunca ligara para a vida daquelas crianças; afinal, quando ela mais precisara, a

Page 76: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 76 ×

única ajuda que havia recebido fora na cama com estranhos. Logo, tudo mudaria, e ela, finalmente, teria um investimento maior com lucros para sustentar o luxo que tanto almejava.

Valter fechou a cara para o celeiro, onde estava o safado que lhe dera uma surra das boas. Um cricrilar veio da direita, alertando que o plano havia começado. Quando Valter passou ao lado do carro, um vul‑to escuro e rápido passou na frente de seu pé, fazendo com que se es‑tatelasse no gramado. O grandalhão olhou com raiva para o gambá que provocara seu tombo. O animal chiou.

– Quietinho, bicho nojento – pediu Valter na esperança de que não recebesse um esguicho de fedor na cara.

Duwe encostou as costas no pneu, gesticulando para que duas chifônias escondidas embaixo do carro, junto com ele, avançassem sobre o coldre do homem caído. Valter sentiu um formigamento na região onde a arma estava presa e, quando se preparava para levar a mão até lá, o gambá avançava contra ele, mordendo‑lhe a mão que usava como apoio. Ele grunhiu de dor e levantou num salto. O gambá rolou e levantou‑se cambaleante. Valter teria acreditado ver um pequeno rato verde sobre o gambá se não estivesse passando por uma crise de dor intensa.

O gambá desapareceu na orla da floresta. – Maldito bicho! – xingou Valter, puxando um lenço do bolso

traseiro da calça para envolver a mão. Ele olhou uma última vez para a orla e voltou para o celeiro, deci‑

dido a acabar com o homem. Duwe alisou o metal da arma recém rou‑bada de Valter. A primeira parte do plano fora concluída com sucesso.

– Levem essa arma para o nosso esconderijo – ordenou para as duas chifônias que assentiram e se distanciaram com o objeto.

Oliver ouviu um cricrilar vindo da rua. Aquele era o sinal de que Valter estava desarmado e a caminho.

– Tudo bem, – disse Shafa levantando – agora é com você. – Comigo? – Oliver engoliu a seco. – Cadê a arma?– Arma? – questionou Shafa irônico. – Não me lembro de ter dito

para Duwe trazer nenhuma arma!Ele estava certo, Shafa não dissera para Duwe lhe trazer a arma

quando passou as ordens. – Mas você disse para mim que eu teria a arma!– Era óbvio que eu estava brincando... Você buscou essa situação

e quis ser o herói, agora trate de se virar com seu heroísmo!“Espere, eu não vou deter esse homem sozinho”, pensou o huma‑

no, sacudindo a cabeça. Oliver não contava com essa parte do plano, já que Shafa lhe dissera que as Chifônias lhe trariam a arma.

Shafa sorriu cínico.– É a sua vez de mostrar ao mundo para que foi feito. Para ser um

herói ou um covarde?

Page 77: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 77 ×

Oliver franziu a testa de raiva: se era isso que o cavaleiro queria, assim o teria. Provaria a ele que não era nem um fraco nem covarde.

Valter encontrou o celeiro vazio ao entrar. Antes que pudesse re‑agir, Oliver não pensou duas vezes e desferiu‑lhe um soco no estômago. O cafetão caiu desprevenido, grunhindo quando a mão ferida tocou no solo para sustentar o corpo.

– Isso é por todas aquelas crianças! – exclamou Oliver raivoso.Oliver desferiu um chute, mas Valter defendeu‑se usando o ante‑

braço. Oliver já se metera várias vezes em brigas do passado e, embora preferisse esquecê‑las, sabia um pouco como lutar.

– Você não faz ideia de como vou ter prazer em matá‑lo! – rugiu Valter, segurando o pé de Oliver para depois puxá‑lo, fazendo ir ao chão.

O cafetão levantou num impulso, desferindo um chute nas cos‑telas do intruso.

– Eu que pergunto agora, gostou disso?Oliver comprimiu o lugar atingido com os braços. A dor era tão

intensa que por pouco ele não desmaiava com um único golpe. – Oliver! Levanta! – ordenou Shafa. – Não perca para esse idiota!Valter desferiu um novo chute no mesmo lugar, fazendo Oliver

rolar até bater contra um amontoado de caixas. – Pare de falar sozinho, aberração. Isso me irrita! – bradou Valter,

passando a mão pela cintura em busca da arma, mas, para a sua surpresa, ela não estava lá.

Oliver começou a ter odiado a ideia de se meter na briga. A co‑vardia penetrava seus pensamentos e o fazia pensar em recuar, talvez aquelas crianças não valessem tudo aquilo. O homem era uma monta‑nha de força...

– Concentre‑se! – exclamou Shafa agoniado. – Eu estou tentando! – defendeu‑se Oliver, enquanto levantava,

porém o medo já se apoderava de seus pensamentos com intensidade. – Essa sua ideia de me tirar a arma foi péssima!

O rosto do cafetão enrubesceu de raiva. – Vou arrancar seus dentes!Valter agarrou Oliver pelo colarinho e o prensou contra a parede,

movendo os dedos de encontro ao pescoço saliente do possuído. – Que‑quem você pensa que é para fazer o que você fez com aque‑

las cr‑crianças? – perguntou Oliver, engasgando e segurando as mãos de Valter que estavam sobre seu pescoço.

Valter riu. Oliver sabia que ia perder... Sem dúvidas jamais deveria ter se metido a salvador, como Shafa mesmo já dissera. Já era a segun‑da vez que fazia isso e se dava mal. Sempre fora um fracassado e um covarde em toda a sua vida. Sempre fugira das obrigações e problemas, deixando para os outros resolverem a sua sujeira.

– Aquelas crianças não são nada. Ninguém sentirá a falta delas! –

Page 78: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 78 ×

riu o cafetão. – Elas não têm dono, logo eu me apossei de seus corpos. Arranjei uma função de vida para cada uma. Dei‑lhes roupa, comida e um lugar para dormir em troca do trabalho que ofereci a elas. Agora elas não me servem mais, então terei de descartar‑me delas para que eu possa ajudar outras crianças.

Oliver sentiu um frio na barriga ao ouvir a frieza das palavras de Valter. Como alguém conseguia ser tão monstruoso e tão rude quanto aquele homem? Repentinamente, o fato de estar sendo estrangulado não chegava nem perto da raiva que estourava em seu peito.

Oliver já fora um assassino, um ladrão, a própria escória humana, mas jamais usurparia de tal forma uma alma inocente.

– Er‑eram só... crianças...– Crianças sem futuro – disse Valter entre uma gargalhada e outra.

– Você não entendeu ainda? Essa é a vida, garoto!Os dedos de Oliver apertaram as mãos de Valter com uma for‑

ça sobre‑humana, partindo os ossos com um apertão. Valter se afas‑tou gritando de dor. Oliver caiu de joelhos, juntou fôlego e levantou, apoiando‑se numa caixa lacrada. Uma energia estranha, que viera lhe acompanhando desde a primeira presença de Shafa em sua vida, pene‑trou suas veias.

– Quem você pensa que é para julgar o futuro dessas crianças? – perguntou Oliver agressivamente.

Shafa não ousou a falar, pois estava pasmo com a atitude e a raiva que aflorava dentro do humano que estava possuindo.

– Não trate a vida como lixo, como se não tivesse nenhum valor! – bradou Oliver. Avançou contra o cafetão, e desferiu‑lhe um soco que o lançou sobre a gaiola vazia.

Valter grunhiu de dor com a pancada. – Elas têm tanto direito à vida quanto você! Mas você as usou até

que não existisse mais nada dentro de cada uma, tirou‑as de suas famí‑lias e enfiou‑as em um pesadelo, destruiu seus sonhos e qualquer chance que elas tinham de viver! Você é um monstro... Um monstro da pior espécie! – gritou Oliver, agarrando Valter e atirando‑o sobre o esterco. Chutou‑lhe as costelas e recuou, tentando controlar o temperamento.

– Mate‑o – disse Shafa satisfeito com a cena. – Acabe com ele! Vingue todas as crianças com sangue!

Oliver soltou um rosnado estranho. Valter riu entre algumas tos‑sidas, limpando a saliva que escorria de sua boca com a manga.

– Me mate. Destrua‑me! Faça com que eu pague por tudo que fiz – incentivou Valter feito um lunático. – Porque eu não vou parar... Eu não vou deixar de fazer o que faço de melhor!

Oliver juntou um pedaço de madeira que estava entre a palha e avançou na direção de Valter. Ergueu‑a o máximo que pôde ao encarar o homem. As imagens que captou da mente de Valter eram indescritíveis...

Page 79: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 79 ×

Eram imagens que marcariam a ferro a mente de Oliver para sempre. – Mate‑o – ordenou Shafa malicioso. Shafa não teve a mínima ideia do que passou na mente de Oliver

naquele instante, pois o cavaleiro baixara a tábua com tanta intensidade que, ao bater contra o chão, estraçalhara‑se em milhares de pedaços. Por centímetros, Valter não virava geleia, mas não era isso que Oliver que‑ria... Aquele homem diante de si não era digno da morte. Nem mesmo o inferno conseguiria castigá‑lo do modo como Valter merecia. Queria que o homem recebesse o troco na mesma moeda. O choque de Valter por ter passado tão perto da morte o fez desmaiar, apagando, assim que seus olhos encontraram‑se mais uma vez com os de Oliver. Shafa tomou o controle do corpo ao perceber que o humano tinha chegado à exaus‑tão completa.

– Não era bem isso que eu esperava, mas... Shafa vislumbrou o corpo desmaiado do cafetão e sorriu, juntan‑

do as cordas escondidas atrás da jaula. Lentamente começou a amar‑rá‑lo, amordaçando‑o para que não pudesse abrir novamente aquela boca. Da próxima vez talvez ele não tivesse tanta sorte e piedade da parte de Oliver.

– O que foi isso? – perguntou Oliver, incrédulo. – É o que eu lhe ofereci – respondeu Shafa. – A oportunidade de

mudar o rumo da história!Naquele mesmo instante, Lúcia, após despejar gasolina pela casa,

terminava de passar o último galão de gasolina no quarto que dividira com Valter nos tempos em que ali moraram. Ela parou para pensar um instante, perdendo‑se em lembranças devassas e ruins.

Um cricrilar proveniente da porta a fez acordar dos pensamentos. – Ei, tia! – chamou uma chifônia que usava uma blusa de retalhos

azul e sem chapéu, com folhas do topo da cabeça espetadas para cima.Lúcia congelou diante daquela criatura bizarra.– O que foi? – inquiriu a chifônia com ironia. – A minha beleza

não serve para os seus negócios?Ela recuou pasma e assustada em direção à janela. O ghostgan ca‑

minhou em passos vagarosos em direção a ela. – Vai aonde? Fique e converse comigo! Tenho certeza de que te‑

mos muito a acertar – riu ele. Lúcia preparava‑se para gritar quando duas chifônias desciam por

uma corda presa ao telhado e pousavam sobre o batente da janela, sal‑tando sobre a mulher e colocando, com dificuldade, uma mordaça em sua boca. A cafetina bateu contra o armário e tropeçou em uma das bo‑tas de Valter atirada no caminho, tombando de bruços. Cinco chifônias surgiam pelo corredor e entravam no quarto, carregando uma corda.

Ela tentou levantar, mas as duas chifônias, sobre suas costas, puxa‑vam seus cabelos e a faziam ficar deitada até que o quinteto começasse a

Page 80: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 80 ×

amarrá‑la. A criatura de azul parou diante dela com um sorriso de den‑tes serrilhados. A mordaça não permitiu que Lúcia gritasse.

Uma chifônia, parada sobre o armário, empurrou uma caixa de objetos sobre a cabeça da mulher, que desmaiou.

– Missão cumprida! – exclamou uma chifônia que acabava de dar o último nó nas amarras que prendiam os pulsos dela.

Duwe ouviu o cricrilar, avisando que a mulher também fora aba‑tida. Ele desmontou do gambá, entregando as rédeas do animal para um ghostgan ao seu lado. As portas do galpão onde as crianças estavam presas eram muito altas e o cadeado estava muito longe para que pu‑dessem alcançar, mas isso não impediria que os guardiões da floresta concluíssem sua missão. Duas chifônias desceram usando cordas presas ao telhado, parando na altura do cadeado. Enquanto uma segurava a tranca, a outra retirava da cintura a chave roubada de Valter, na hora do tombo, e a enfiava na fechadura, girando até que abrisse, e o cadeado despencasse perto de Sir Duwe.

Duwe juntou a chave brilhante, olhou contra a luz e prendeu‑a no cinto, sorrindo satisfeito para o nada.

As duas chifônias, ainda na altura de onde estivera o cadeado, amarraram uma segunda corda na porta, soltando‑a até que tocasse a grama. Dois gambás puxaram a ponta até que a porta se abrisse.

O líder do bando não tinha nariz, mas podia perfeitamente sentir os odores através de um sistema de respiração na pele. Os cheiros de suor e excremento invadiram o ar. Duwe e mais seis criaturas tomaram a frente das crianças imóveis e chocadas no fundo do galpão.

– Qual de vocês é a Julia? – perguntou em alto e bom som. Uma garota loira e de olhos vibrantes levantou a mão trêmula. – Sou eu... – respondeu ela. – Viemos a mando de Oliver e Shafa, eles pediram que viéssemos

resgatar vocês. – A chifônia realizou uma reverência. As crianças permaneciam imóveis e fascinadas, fitando as peque‑

nas criaturas com receio e, ao mesmo tempo, com curiosidade. – Q‑quem é você? – perguntou Julia, destacando‑se ao ficar de pé. – Ah, claro, perdão senhorita! – Ele retirou o chapéu triangular

com uma folha na ponta e encarou uma a uma das crianças. – Eu sou Sir Duwe, o líder das chifônias dessa região. Peço que não tenham medo de mim e nem de meu grupo, nós somos amigos e queremos apenas o bem de vocês.

Julia olhou para as outras crianças sem saber ao certo o que dizer. – Está tudo bem, vamos sair daqui! – falou ela finalmente, gesti‑

culando para os outros. – Nos sigam, Oliver estará nos aguardando perto do celeiro – pe‑

diu Duwe, montando em seu gambá.Julia assentiu com a cabeça, andando logo atrás da estranha cria‑

Page 81: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 81 ×

tura falante. Uma onda de sussurros invadiu o ar quando, em fila, as crianças saíam do calor sufocante do celeiro. Três gambás parados logo na entrada com suas devidas chifônias montadas faziam a escolta. Um gato selvagem estava sentado sobre o capô do veículo com uma chifônia na sela. Ele não se retraiu quando um grupo de crianças chegou perto e passou a mão no pelo liso.

Oliver desligou o celular e o entregou para uma das chifônias, que, com a ajuda da outra, o carregou para a floresta. As costelas ainda estavam feridas quando ele saiu finalmente do celeiro. As crianças es‑palhadas pelo pátio da fazenda estavam encantadas com o movimento das criaturas bizarras. Dezenas, ou até centenas, de chifônias entravam e saíam da casa, carregando utilidades como roupas e comida. No jar‑dim, dois cervos encilhados com uma sela presa a duas mochilas, no interior das quais as chifônias deveriam colocar pertences para, depois, irem embora. Em nenhum momento os animais demonstraram receio em presença das crianças.

Julia se destacou do grupo e veio correndo ao encontro de Oliver e Shafa, abraçando‑o apertado.

– Pensei que eu fosse morrer junto com aquelas crianças. – Você está viva é o que importa – comentou Oliver com a mesma

rispidez de Shafa. – Precisamos ir embora antes que a polícia chegue. – Mas e as crianças? – perguntou a garota preocupada.– Elas serão bem cuidadas agora, mas se nos pegarem aqui aca‑

baremos envolvidos em um crime que não é nosso – respondeu Oliver.– Ela fica, – alegou Shafa – quando a polícia chegar você será en‑

tregue a seu devido lugar...– Não! – grunhiu Julia, segurando a mão de Oliver. Ela sabia que

acabaria nas mãos da assistente social de novo.A conversa terminou, pois Sir Duwe chegava com sua montaria. – Foi ótimo fazer acordo com vocês, senhores – murmurou a chi‑

fônia, gesticulando com a cabeça. – É, posso dizer o mesmo – concordou Shafa. – A polícia está

a caminho, então peguem o que precisam e vão embora antes que os humanos cheguem.

– Já estamos terminando – comunicou Sir Duwe satisfeito. – Se‑nhores, senhorita...

Duwe gesticulou mais uma vez com a cabeça e se afastou. Oliver não sabia, mas aquele era o seu último instante de vida. Talvez ele tivesse aproveitado mais se soubesse. As crianças pareciam mais animadas do que nunca, vivendo um conto de fadas que era real. Ao menos em um momento da vida, pensou Oliver, eles puderam sentir um pouco de es‑perança. O humano só esperava ter feito a coisa certa.

Enfim, talvez ele não fosse tão louco assim. As coisas não esta‑vam fazendo sentido.

Page 82: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 82 ×

Capitulo 7Sacrifício

Shafa pegou o jipe de Valter e Lucia. Ao desarmar Oliver, Shafa precisava testar o humano e saber se tinha feito a melhor escolha. Ago‑ra, a certeza de que tinha escolhido o lado certo da guerra, que ainda estava por vir, começava a ter suas confirmações.

– Satisfeito? – perguntou Shafa, já na estrada. Lá longe, as sirenes dos carros de polícia apitavam freneticamente.

– Ainda não tenho certeza... Por que você fez aquilo comigo? Mentiu quando disse que me daria a arma.

– Você é um mal agradecido, – Shafa revirou os olhos, observando a garotinha que dormia no banco traseiro – você prometeu para mim: nada de perguntas e levaríamos ela conosco.

Oliver ficou quieto.– Certo, vamos fazer o seguinte: eu vou tomar o controle à noite,

daí você poderá repousar mentalmente. Continuarei na estrada e, quan‑do você perceber, amanhã estaremos chegando a nosso destino.

O sol começava a se pôr no horizonte. Os raios laranja tingindo o capô cinza e enferrujado do jipe. Oliver estava confuso. Todo aquele papo estranho e misterioso não apaziguava suas novas dúvidas. O que Shafa queria com ele?

Escurecia. A caminhonete continuava a correr pela estrada. Shafa desligara Oliver dos comandos corporais, e logo o possuído adormeceu. As estrelas pairavam dominadoras no céu, iluminando a estrada quase vazia. Num determinado trecho, ao chegar em uma bifurcação, a estrada tornava‑se íngreme porque seguia para cima de um dos morros que se espalhavam pela paisagem.

As árvores eram densas e rodeavam a estreita estrada. Os picos das montanhas enfeitavam o céu escuro. Pelo zunido no ouvido direito de Shafa, eles continuavam a subir a serra. Shafa era um cavaleiro distin‑to, trabalhava com meios termos. Não era bom nem ruim, sabia fazer ora o bem, ora o mal, no momento adequado. Estava na hora de revelar a verdadeira finalidade pela qual Shafa viera acompanhando Oliver des‑

Page 83: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 83 ×

de o início. O humano estava ficando pronto.Oliver mal esperava o que aconteceria com ele. Por mais que o

cavaleiro não admitisse, estava começando a gostar dele. Mesmo que o odiasse em outras circunstâncias. Oliver era um homem como qualquer outro, mas que se lhe oferecessem a oportunidade, seria capaz de ir lon‑ge. Os heróis não tinham super‑poderes, não tinham capas nem roupas enfeitadas. Os heróis eram aqueles que morriam pelos objetivos e que enxergavam os outros como seus semelhantes, não como pessoas a se‑rem salvas. Os verdadeiros heróis não surgem na hora certa, aparecem antes. Não se importam com quem é o inimigo; batalham para defender o que querem, mesmo que a morte seja iminente. Um humano comum poderia ser um herói sim.

Shafa estava se ligando demais ao mundo humano. Isso era proi‑bido; humanos e cavaleiros não eram iguais. Piscou os olhos irritados, aliviado por, em breve, chegar ao seu destino. Já enxergava, lá longe, o campanário de uma igreja, à beira do morro mais alto. Estavam longe da civilização e da própria rodovia.

Os pedriscos eram amassados pelas rodas velhas do veículo. A casa lentamente ficava visível, surgindo entre as folhas das árvores. Era de cor bege, de três andares. Janelas, portas e telhado cor de âmbar. A frente possuía uma varanda, com uma cadeira de balanço, duas outras cadeiras artesanais com forro vermelho e uma pequena mesinha. As pes‑soas da casa ainda dormiam, pois o sol nem nascera ainda. Shafa estacio‑nou diante da pequena “mansão”. Ao redor da casa havia uma trilha de cascalho, à frente um pequeno lago e, ao lado direito, um espaço no qual o cavaleiro estacionou o carro.

Shafa respirou fundo. O cheiro de natureza, que não sentia fazia milênios, penetrou suas narinas sutilmente. Por um momento, aprovei‑tou‑se do silêncio. Retirou Julia, que dormia no banco de trás. Os sapa‑tos escuros anunciavam sua presença ao galgar nos pedriscos. A porta era alta, de mogno antigo e pesado com desenhos estranhos talhados nas laterais. Pôs a garota deitada no ombro direito e entrou pela porta que não estava trancada. Ninguém o seguira e poucos sabiam onde esta‑va agora. Talvez apenas ele, já que Oliver repousava mentalmente.

No escuro não enxergou nada além de uma escadaria que levava ao piso superior. Shafa subiu‑a como se já conhecesse aquela casa. O cheiro de incenso inundava o lugar deveras misterioso. Shafa entrou no primeiro quarto que viu, depositou a garota sobre a cama. O quarto era pequeno comparado a outros, mas grande para quem vivia em um apar‑tamento como o de Oliver. Shafa saiu do quarto e entrou no recinto ao

Page 84: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 84 ×

lado. Esparramou‑se na cama. A exaustão de usar um corpo humano era grande, se comparasse à vida etérea, durante a qual nunca precisava dor‑mir. Estava num lugar seguro agora. Amanhã teriam muito que fazer.

A estranha casa continuou em silêncio. No outro quarto, a mu‑lher fitava o teto.

– Ele chegou – anunciou. A voz pacifica soou rouca. O homem que repousava a seu lado remexeu‑se na cama.– O quê? – resmungou ele. – Shafa está aqui – repetiu Dhava, com os olhos vidrados.– Já era tempo – falou ele, coçando os cabelos prateados, voltando

a se acomodar na cama. – Agora durma, logo resolveremos isso.Os outros cinco quartos já estavam ocupados pelos outros ami‑

gos. Agora com Shafa, eram oito membros. Finalmente reunidos depois de muito tempo. Ela sentou‑se na cama, juntando o lençol branco. As janelas abertas deixavam o brilho do luar crescente entrar. Dhava sorriu de canto, voltando a dormir. Amanhã seria um grande dia.

Oliver sentou‑se na cama, coçando a cabeça. Pela intensidade dos raios de sol que adentravam no quarto, pela janela, chegava perto do meio dia. Estalou o pescoço e levantou. Chocou‑se assim que percebeu que aquele quarto não se parecia com o de seu apartamento, ou com qualquer outro quarto em que já entrara. Correu até a janela, debruçan‑do‑se no peitoril. Lá fora, um jardim e uma cadeia interminável de mon‑tanhas. Seria aquele o lugar para onde Shafa lhe dissera que iria levá‑lo?

– Shafa? – chamou, mas não obteve resposta.Oliver lembrou‑se de Julia, assimilando ainda a paisagem que a

janela descortinava. As árvores eram tão verdes e numerosas que se per‑diam de vista. O possuído seguiu até a saída, e notou uma pequena porta embutida na parede da direita, ao lado do armário velho. Abriu‑a, en‑trando no pequeno banheiro verde. Lavou o rosto e achou seu próprio reflexo estranho.

– Então, é isso? – perguntou sozinho. O cheiro de incenso o perseguia desde que acordara. Quando saiu

do quarto, deu‑se diante de um corredor extenso e cheio de portas. Que tipo de lugar era aquele? Um hotel? Uma pensão? Deveria ser algo pa‑recido. No final do corredor, uma janela alta mostrava a floresta e, no início, a escadaria que levaria ao andar inferior. Oliver desceu por ela cautelosamente. Os símbolos, desenhos e objetos davam‑lhe arrepios.

Segurando o corrimão, Oliver finalmente desceu o último degrau como se estivesse diante da morte. Ouvia vozes provindas de uma porta de vidro fosco à direita. Postou‑se diante da porta, desconfiado. Vendo apenas borrões negros através do vidro, Oliver tentou ouvir alguma pa‑lavra da conversa, mas nada foi compreensível. Preocupou‑se com Julia, pois Shafa não gostava de crianças. Temia que o cavaleiro a tivesse larga‑do na estrada, a mercê do perigo. Acordou dos pensamentos, ouvindo

Page 85: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 85 ×

um grito de Julia lá da cozinha. – Julia! – chamou ele ao entrar com tudo.Oliver deparou‑se com uma extensa mesa de madeira rosa coberta

por uma toalha feita de crochê sobre a qual havia pequenas flores, pra‑tos, talheres, pão, frios e outros alimentícios. Havia dois homens senta‑dos à mesa já se servindo. Duas mulheres dividiam a pia, um homem lia livros no espaço não montado da mesa. Outro estranho segurava Julia no colo, enquanto ela ainda gritava. A atenção de todos, sem exceção, se voltou para Oliver. Sem perder a pose, ele apontou para o estranho que segurava Julia. Era um indivíduo branco de cabelos encaracolados e castanhos, com um ar jovial e infantil.

– Solta ela! – ordenou ameaçadoramente. O homem não respondeu. O silêncio persistiu, Oliver iria revi‑

dar, mas a garotinha se intrometeu.– Tudo bem, Oliver – disse Julia, sorrindo e pedindo para que o

estranho a colocasse no chão. – Tinha uma aranha ali, ele me salvou. – Ah – desconcertou‑se Oliver, coçando a nuca. – Perdão...– Tudo bem, – adiantou‑se ela, que postava o último prato com

frutas na mesa – não tem problema, junte‑se a nós! Meu nome é Dhava!Oliver ficou parado. Não conhecia aquela gente, e não entendia

como conseguiam estar tão familiarizados com a presença dele. Desejou que Shafa aparecesse de uma vez para ajudá‑lo com a situação.

– Vamos, sente‑se – continuou a chamar Dhava, vendo que Oliver não respondia. – Está tudo bem com você?

– É que... – Oliver mediu as palavras – eu não...– Entendi, – concluiu a mulher, abrindo um sorriso amigável –

você não sabe onde está.Oliver assentiu. Dhava deixou a raiva transparecer no olhar.– Shafa é problemático – ralhou ela, dando um leve soco na mesa. – Eu sabia que ia dar encrenca – comentou um dos homens, en‑

fiando uma fatia de pão na boca, ele tinha cabelos escuros e espigados. – Eu já falei que ele deveria sumir, assim não causaria tantos pro‑

blemas para nós – prosseguiu Dhava, pondo os cabelos castanhos e on‑dulados para trás da orelha.

– Silêncio – ordenou secamente o homem de cabelos prateados que lia o livro, ajustando os óculos com a ponta do dedo. – Eu estou lendo. Agora sentem e comam, depois discutiremos isso. E sirva para você também, Oliver, afinal, está na minha residência, querendo ou não.

Todos obedeceram à ordem clara. Oliver, apesar de indignado, optou por fazer o mesmo. Dhava apontou‑lhe um lugar vazio, ao lado de onde Julia sentava agora. Como todos pareciam saber dele?

– Eles são legais – sussurrou a garota ao ver Oliver preocupado. – São educados e estão me tratando muito bem, não se preocupe.

Todos se postaram à mesa, contando oito pessoas. A cozinha era

Page 86: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 86 ×

gigantesca e aparentava destinar‑se a comportar muito mais gente do que o grupo. O silêncio persistiu durante o café. Oliver não estava à vontade, não conhecia ninguém e não sabia de nada. Estava cansado de ser uma marionete, e assim que Shafa voltasse, teriam que ter uma longa conversa. Oliver serviu‑se de café e uma salada de frutas para saciar sua imensa fome. Os outros presentes pareciam nem notá‑lo, agindo nor‑malmente diante de Oliver e Julia. Sem saber o porquê, Oliver odiou quase imediatamente o homem mandão de trajes escuros e opacos.

Havia ainda outro lugar vago ao lado de Oliver e ele imaginou que haveria mais alguém ali.

Instantes depois, Oliver estava sentado no sofá da sala. Julia brin‑cava lá fora, acompanhada de uma mulher ruiva. Os outros homens, espalhados pela casa, passavam por ele sem lhe dirigir a palavra. Oliver estava irritado, nunca sabia de nada, nunca lhe contavam nada. Eram descorteses por não dirigirem‑se a ele a fim de incluí‑lo na conversação.

– SHAFA! – rugiu ele, franzindo o cenho de raiva. Sentiu uma terrível dor de cabeça. Seu ferimento na testa estava

quase sumido, cicatrizando‑se mais rápido do que o normal.– Dirigir a noite toda foi cansativo – disse Shafa friamente. – Fazia

anos que eu não tinha sono.– Onde nós estamos? – adiantou‑se Oliver.– Calma, acabei de acordar – falou Shafa, situando‑se na sala.– Nada está fazendo sentido para mim. Você deveria apenas me

safar daqueles dois perseguidores e não me sujeitar a tamanha loucura. – Teremos tempo ainda para conversar mais a respeito – retrucou

o cavaleiro, e Oliver percebeu que havia algo de errado.Nesse momento, dois dos estranhos que estavam à mesa, na hora

do café, apareciam na sala. Carregando cordas grossas, aproximaram‑se do possuído no sofá. O estômago de Oliver deu uma volta tremenda.

– Shafa, o que está acontecendo? – indagou Oliver, nervoso.O cavaleiro não respondeu, havia desaparecido. Oliver levan‑

tou‑se em um solavanco, eram dois contra um.– Eu não sei nada sobre vocês, eu não quero me envolver nisso!

Me deixem ficar em paz, e eu juro que volto de onde eu vim e nunca mais apareço – suplicou Oliver, apanhando uma almofada e pondo‑a diante de si.

Eles não responderam. Um era negro, alto e magro, com os cabe‑los trançados e olhar ameaçador. O outro, baixo e atarracado, era o mes‑mo que brincava com Julia anteriormente. Ambos estiveram na mesa com ele. Oliver não distinguia as feições nos rostos deles, o que o ame‑drontava. Quando o moreno tentou apanhá‑lo, abaixou‑se e desferiu uma rasteira. Este partiu a mesa ao cair de costas. O baixinho teve mais sorte, desferindo um soco na face de Oliver e recebendo em troca um chute na virilha. Com os dois praticamente caídos, o possuído correu

Page 87: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 87 ×

para a porta de saída. Ao abri‑la, foi nocauteado com um soco na cara. Cambaleou para trás, confuso. Aquele estranho da cozinha, que botava respeito nos outros, estava bloqueando a saída. Oliver avançou sobre ele, mas tombou com um soco na garganta e ficou sem ar.

Amarraram suas mãos e pernas. Teve um pano enfiado na boca como mordaça. O ar que entrava cortado na garganta dolorida fazia o rosto de Oliver avermelhar. Moveu as mãos inutilmente, as cordas bem colocadas não lhe permitiam soltar‑se. Dois o erguiam pelos braços, o terceiro apenas caminhava à frente.

As imagens da casa passavam como borrão enquanto sua mente tentava assimilar. Um filete de sangue manchou a mordaça. O desgra‑çado tinha lhe machucado feio com um único soco, Oliver tinha de ad‑mitir. E o cavaleiro o havia traído, sabia disso. Não deveria ter confiado nele, mesmo que não tivesse escolha. Shafa manipulou‑o muito bem quando mais precisou. Tendo o rosto banhado pela luz do sol, Oliver fechou os olhos. Estava sendo carregado para a floresta, iriam então matá‑lo? “Improvável, Shafa poderia fazer isso sem problemas”, pensou Oliver, desejando jamais ter entrado no prédio para trocar as moedas com Pantaleone. Deveria tê‑las guardado...

Os fachos de sol diminuíram de intensidade. Oliver ergueu a ca‑beça, não vendo nada além de mais verde. As árvores tinham uma dis‑tância favorável entre si.

– O que vão fazer comigo? – falou mais mentalmente do que com a voz, pois com a mordaça não fez mais do que ruídos.

Aquelas pessoas eram estranhas e não se comunicavam. Habita‑vam corpos humanos, mas não eram tais, não se comportavam como. Oliver sentia algo ruim em relação a elas. O passo deles foi reduzindo, e Oliver foi posto sentado, encostado em uma árvore cortada pela raiz. Oliver viu e, se não fosse pela mordaça, estaria boquiaberto. A igre‑ja era grande. As paredes de tijolo à vista estendiam‑se atrás das árvo‑res. A porta era de carvalho, com maçaneta dourada. Havia uma cruz de prata encravada nas portas, refletindo o brilho do sol. Do telhado avermelhado erguia‑se um campanário que Shafa vira anteriormente.

Os três ajoelharam‑se diante da pequena escada de mármore e rezaram baixinho. Um deles entrou, e os outros dois apanharam Oliver, levando‑o para o interior do recinto. O tapete roxo dividia os bancos de carvalho; as vidraças da igreja eram coloridas, com desenhos de Jesus Cristo, apóstolos e anjos. Enfileiradas, as banquetas da nave estavam vazias. Os pilares de mármore suportavam o teto alto. Oliver ainda no‑tou que, logo à frente, onde estava a estátua principal de Jesus Cristo crucificado, de gesso, havia um retângulo feito de pedras redondas e grandes. Era uma espécie de mesa baixa construída no chão. Algumas pedras preciosas de variadas cores adornavam‑na.

Maravilhado e aterrorizado, Oliver debateu‑se em vão na tentati‑

Page 88: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 88 ×

va de se soltar. O ambiente era lindo, o sol transpassava os vitrais dese‑nhados, projetando as cores das obras de arte no chão. Oliver ainda não notara, mas havia vidros transparentes no teto e nas paredes, pelos quais entrava a luz do amanhecer. Ele não tinha a menor ideia do que um lugar daqueles fazia no meio do nada; pela beleza, no entanto, deveria ser, no mínimo, um ponto turístico.

Oliver foi pego pelos pés pelo terceiro homem a quem tanto odiava, e foi deitado sobre a mesa de pedra. Soltaram‑lhe as mãos, que foram presas novamente por amarras prateadas. Foi então que Oliver percebeu: estava em uma mesa de sacrifício. Os desenhos entalhados nas pedras eram sentidos pelas costas de suas mãos. Naquele momento, duas mulheres e outro homem de cabelos espigados entravam na igreja, dirigindo‑se aos primeiros bancos de madeira.

– Então, Shafa resolveu aparecer? – perguntou Dhava. – Eu quero me livrar disso tudo logo.

– Onde está a garotinha? – perguntou o de cabelos prateados.– Com ele, – afirmou a ruiva – pensei que ele se juntaria a nós, mas

prefere não ver o que vai acontecer.“Ele?” pensou Oliver sem entender. “E se Julia estiver em peri‑

go? Aliás, por que não consigo simplesmente me preocupar com minha vida? Tenho que pensar na integridade dos outros?”

Oliver sacudiu‑se com brutalidade, porém as algemas eram fortes demais e o prendiam àquela mesa.

– Já, já, tudo acaba, Oliver, – brincou a outra mulher – em breve.– Certo – disse o homem de cabelos prateados. – Levantem‑se e

formem um circulo. Está chegando a hora e hoje é o último dia. – Raizan, – alertou Dhava – acho que devemos invocar Shafa.– Eu sei o que fazer – interveio Raizan, o chefe do pequeno gru‑

po, postando‑se diante da mesa. – Agora, tomem suas posições.Os seis presentes postaram‑se ao redor de Oliver. O prisioneiro

puxava as mãos, gritando abafadamente. “Eu vou ser vítima de uma seita maluca! Senhor, por favor,me ajude!” suplicou Oliver para a estátua de Jesus Cristo, que olhava tristemente para o chão. Oliver urrou.

Raizan posicionou a mão sobre a testa de Oliver, murmurando al‑guma coisa. Lentamente Shafa ressurgia, tomando o controle de Oliver. Dhava retirou‑lhe a mordaça.

– Todos reunidos, finalmente! – disse Shafa satisfeito. – Desculpe Oliver, mas prometo que não vai doer... Pelo menos em mim.

– Traidor! – vociferou Oliver. – O que você vai fazer comigo?– Acalme‑se. Não será tão mau assim, outras pessoas almejariam

isso. Até que seu corpo vai me servir muito bem – ironizou Shafa.– Soltem‑me! – gritou Oliver, encarando um a um com raiva. – É hora – anunciou Raizan, levando a mão até a parede da mesa.Ele tocou uma saliência no centro de uma pedra lisa, puxando

Page 89: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 89 ×

uma “faca” do que antes era uma cruz de metal. Era uma espécie de espada feita de prata, os rubis e esmeraldas cintilavam. Todos deram as mãos, com exceção de Raizan, que segurava o artefato.

– Não! Socorro! – gritou Oliver, porém Shafa não lhe dava folga.– Veja, observe a beleza do ritual da vida! – tentou amenizar Shafa,

sorrindo de canto.– Ritual da vida? Eu não vejo vida nisso! Ei espera! O que você vai

fazer com essa faca?A preocupação de Oliver triplicou; Raizan levantava a faca na al‑

tura da própria cabeça, que estava semi‑abaixada, murmurando palavras estranhas. Os outros presentes também diziam palavras desconexas, de um outro idioma. O que antes era um murmúrio, transformou‑se em uma canção em voz alta. Estavam todos de olhos fechados, ignorando os protestos de Oliver.

Alarmado, Oliver já não sentia as pernas. Raizan gritou uma pa‑lavra que se destacou das outras, e Oliver já não sentia o corpo do peito para baixo. Era como se seu corpo amortecesse. Antes, quando Shafa tomava seu corpo, ele sentia o que o cavaleiro sentia. Apavorado, puxou os braços com força, rompendo uma das correntes. Com um pingo de esperança, tentou soltar a outra mão. Raizan emitiu outro chiado alto, e Oliver sentiu sua mão tombar para o lado, sem movimento. Isso se repetiu mais três vezes, até que pudesse apenas escutar e ver. Nem a cabeça movia mais.

“Seu traidor! Desgraçado! Eu sabia que era o diabo em pessoa!” pensava Oliver, xingando Shafa.

Finalmente Raizan abriu os olhos e visou o peito de Oliver.– Agora, eu realizo a última parte do ritual. Shafa, eu lhe entrego

este corpo e este coração. Agora, você vive. E este, que antigamente habitava seu corpo, será condenado à vida eterna da inexistência.

“Vida eterna da inexistência” repetiu Oliver mentalmente.A faca percorreu o ar e penetrou seu peito. A lâmina transpassou

seu coração, e sem poder gritar ou se defender, Oliver sentiu pavor. Foi afetado por uma dor alucinante enquanto o grupo de estranhos elevava as mãos para o céu. O sangue brotava do ferimento, mas o coração não parava de bater. Com um estampido, as portas principais se abriram. Os ventos entraram ferozes, açoitando o grupo e uivando. E em meio à alu‑cinação e dor, Oliver ouvia os gritos, gemidos e sussurros emitidos pelo vento que o rondava. As folhas repousavam sobre seu corpo, depositan‑do‑se suavemente nas vestes. O sangue agora gotejava no chão, forman‑do uma poça que descia a escadinha que levava à nave da igreja. Formas cintilantes pairavam ao seu redor como crianças em uma ciranda.

Julia ergueu o olhar para a janela quando uma revoada de pássaros sobrevoou a capela, no meio da mata.

– Oliver vai ficar bem? – perguntou ela com receio.

Page 90: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 90 ×

– Eu lhe prometo que vai – respondeu o homem de costas para ela, escolhendo um dos vários livros distribuídos pela estante. Ele não estava com os demais na mesa e aparentava ser o mais normal. – Por en‑quanto você ficará conosco, aconteça o que acontecer com ele. Raizan gostou de você e eu prometo cuidá‑la enquanto eu puder.

Seu rosto oculto pela penumbra dizia algo inexpressível.

Page 91: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 91 ×

Capitulo 8 Guiando o futuro

Um puxão, foi tudo que Oliver sentiu. O peito doía da mesma forma que suas entranhas latejavam. A visão falhou e o corpo afundou para dentro da mesa. Oliver parecia entrar solo abaixo, enterrar‑se pelos grãos de terra do magnífico solo da igreja. O ar tornou‑se quente até chamuscar‑lhe o rosto. Tentou gritar, mas não encontrou forças. Tentou mover‑se, mas o corpo não respondeu. As vozes dos estranhos que can‑tarolavam em outras línguas foram enfraquecendo, até o silêncio com‑pleto. Era apenas ele, no vazio.

A impressão constante de estar em queda livre reduziu assim como o mormaço. Suas costas bateram em algo duro, e a cabeça doeu quando entrou em contato com o solo áspero. Parecia, agora, inerte, como se fosse um morto. Estava frio no novo lugar. A brisa arrepiou os pelos da nuca de Oliver, que levou a mão até o rosto. Estava sobre um chão de terra preta. Piscou diversas vezes.

Era noite, seja lá onde estivesse. Passou a mão no peito e encon‑trou uma espécie de atadura de um tecido vermelho e viscoso sobre o ferimento que sofrera. Apoiou a mão na casca úmida e fétida de uma árvore para ficar de pé. As pernas tremeram, e Oliver esforçou‑se para não tombar. As pálpebras pesavam; não conseguia mantê‑las abertas. Começava a sentir frio, por isso comprimiu os braços contra o peito. Ao seu redor, uma imensa floresta morta estendia‑se para todos os lados que olhasse. Os animais como corujas, grilos ou morcegos não faziam barulho. Teriam lhe abandonado à própria sorte em algum brejo?

– Meu Deus! – gemeu ele, sentindo pontadas de dor no coração.Avançou dois passos, escorando‑se em outro cadáver de árvore.

Pisava em folhas azuladas de mofo. A névoa cobria a mata e deixava tudo o que tocava oleoso. Mais adiante, alguns fachos de luz destacavam‑se no horizonte como se fosse uma cidade. “Isso, uma cidade! É o que eu preciso”, pensou Oliver, apressando o passo. Núvens grossas cobriam o céu negro e sem estrelas. Não fazia a mínima ideia de onde estava. “Shafa me traiu! Como pude confiar, como pude!” lamentava‑se Oliver, segurando o ferimento no peito como quem carregasse um bebê.

Page 92: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 92 ×

O vento frio provocava‑lhe o medo. Quando viu à direita um ca‑minho feito de pedaços desordenados de madeira, Oliver correu e se‑guiu a trilha. Desde que fosse para sua salvação, iria para qualquer lugar. As madeiras dos degraus tornavam‑se mais frequentes e alinhadas. A distância entre as árvores mortas aumentava.

Oliver ouviu o barulho de água. – Um rio! – exclamou, correndo mais rápido.Já via o inicio da ponte e desejou correr mais. Imaginou que en‑

contraria um pescador que lhe salvaria a vida e o levaria de volta para a civilização. O que via, no entanto, era muito diferente. A ponte que passava sobre o extenso rio era um arco com cerca de vinte metros de vão de uma margem a outra. O suporte usado para sustentá‑la era de‑senhado em espirais. Havia uma placa suja de limo com letra ilegível que Oliver mal conseguiu ler. Por baixo da ponte passavam dezenas de pequenas canoas. Em cada uma havia duas pessoas; uma delas, vesti‑da completamente por um manto, usava o remo para levar o veículo adiante, e a outra pessoa, sentada diante do encapuzado, destacava‑se do ambiente obscuro. Pareciam ser humanos, eram semitransparentes com brilho espectral no centro do peito. Quietos e obedientes, eles es‑peravam o fim. Parado perto da margem, Oliver correu até a metade da ponte e perguntou‑se onde estava e se estaria morto. Acima de cada canoa, uma esfera de luz planava sem que nada a segurasse, como uma luminária. Vistas de cima da ponte, as canoas passavam sob a estrutura e reapareciam do outro lado, continuando seu percurso. Reparou que as águas eram escuras.

Oliver pensou se estava, naquele momento, deitado naquela mesa de sacrifícios, agonizando. Tudo parecia ilusão maluca. No outro lado da margem, à qual deveria chegar, havia mais árvores secas espalhadas até o topo do pequeno monte, depois, não via mais nada.

Relinchos de cavalos ecoaram da margem por onde Oliver passa‑ra. Havia um pequeno grupo de três cavaleiros de capa vermelha, blo‑queando seu retorno. Eram os cavaleiros do Chamado. O líder deles avançou, mas os animais cadavéricos pareciam temerosos. Não queriam alcançar Oliver, e por mais que seus cavaleiros ordenassem, as montarias resistiam. Oliver sentiu uma agonia intensa e inexplicável, dividindo‑se entre a vontade de enfrentar os desgraçados e fugir para salvar‑se. Mas era fraco, um humano banal que estava tendo uma ilusão. Decidiu que o melhor era fugir e assim o fez, correndo na direção oposta. Os cavalei‑ros avançavam mais lentos atrás devido à relutância dos cavalos. Oliver olhou uma última vez para as canoas sinistras e seus integrantes, tendo consigo a impressão de que um dos encapuzados o observava. Seus cal‑çados causaram um ruído desconfortável quando voltaram a amassar o chão podre. Esforçou‑se para subir o monte íngreme, apoiando os dedos, quando possível, nas raízes expostas das árvores.

Page 93: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 93 ×

Oliver olhava para trás apenas para certificar‑se de que os cava‑leiros ainda o seguiam. “Graças a essas porcarias de cavaleiros estou assim. Nesse lugar... Aliás, que porcaria de lugar é esse?” questionou mentalmente, tropeçando. Estatelou‑se no chão, sujando a blusa com a terra fedida e escura. Levantou com dificuldade, escorregando diversas vezes. Oliver conseguia enxergar o topo do monte atrás das árvores e não estava tão longe. Seu peito ardia de uma forma estranha. Os cava‑leiros tinham vencido a resistência dos cavalos e agora vinham ao seu encalço. Oliver apoiou as mãos na pedra ao seu lado, e sentiu algo pe‑sado tocar‑lhe o ombro. Percebeu uma mão velha e enrugada, num tom cinzento. As veias azuis saltadas deram‑lhe arrepios.

A mão pertencia a uma mulher idosa, que se escondia entre um amontoado de galhos quebradiços. Ela levou um dedo até os lábios res‑secados para pedir silêncio. A face antiga e sulcada estava semi‑coberta por um capuz. Ela fez sinal para que a seguisse. Oliver não retrucou, preferia ser morto por uma velha com aparência inofensiva do que ser traído novamente por um cavaleiro. Arrastou‑se para o meio das ár‑vores mortas. Rastejava abaixo dos troncos grossos e pesados, que se apoiavam uns nos outros.

A velha engatinhava à frente, guiando‑o no meio do “corredor” de raízes. Quanto mais entrava, mais escuro parecia. Cortou a mão num graveto, mas esta não sangrou. Oliver olhou pelas fissuras entre os ga‑lhos que os cavaleiros ainda procuravam‑no. Os cavalos estavam atur‑didos com o perigo iminente. A velha cutucou‑lhe com o pé, já que não poderia virar‑se no caminho estreito, e prosseguiu. Oliver rastejou até que o barulho dos inimigos sumisse e o deixasse em paz.

Agora, era só ele e a estranha senhora.– Senhora? – chamou ele, fechando a boca para não engolir um

graveto suspenso no caminho.Ela não respondeu.– Pode dizer onde estamos? – insistiu ele. Nada de resposta. Ela apenas continuava fugindo.– Será que alguém nesse mundo pode me ajudar? – gritou Oliver,

socando a terra, irritado. A velha lhe fez um sonoro “shiu”, e Oliver silenciou. Teria de

obedecê‑la se quisesse sair dali. Imaginou‑se deitado em sua cama aper‑tada, contemplando o teto sujo de teias de aranha. Imaginou‑se também trabalhando no escritório fechado, sem nenhum ventilador. Lembrou‑se de ver sua mãe tendo psicoses que a faziam gritar e bater‑se. Parou de engatinhar e suspirou.

– Será que eu quero mesmo voltar? – indagou‑se. – Garoto! – pediu a velhota, e Oliver notou que o caminho come‑

çava a se expandir. – Chegamos?

Page 94: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 94 ×

Oliver atirou‑se para fora daquela imundície. Embora inacreditá‑vel, Oliver fora salvo por uma velhinha num amontoado de árvores ve‑lhas e caídas, meticulosamente posicionadas como um túnel. A velhota caminhava, utilizando uma bengala de cidra. Estavam numa espécie de bosque morto iluminado pelas estranhas esferas de luz que planavam sozinhas. Oliver coçou a cabeça, e a velha parou, chamando‑o com a mão em direção a um pequeno casebre.

– Olha, senhora, eu gostaria de... – Venha, eu tenho as respostas – ordenou a mulher, entre tossidas.Oliver pensou um pouco. Fora salvo por ela, mas não conseguia

confiar em mais ninguém. Por fim, correu para acompanhá‑la. O casebre era relativamente pequeno, e parecia diminuir mais à medida que dele se aproximavam. O telhado era feito de palha, e as paredes de madeira escura. Havia um amontoado de lixo indefinível na entrada da casa. A floresta abraçava o casebre. A porta sulcada rangeu quando a velha a abriu e entrou. Oliver abaixou‑se para passar pela porta, trancando a respiração quando sentiu o cheiro forte de bálsamo e incenso de rosas. Tossiu e lacrimejou.

Diferente do que parecia, a cabana era grande por dentro. Oliver pôde ficar de pé sem tocar a cabeça no teto. O local tinha geringonças por toda a parte. O chão era a terra escura. Tudo era formado por uma única peça onde se via uma pilha de panos que deveria ser a cama, a cozinha com caldeirões empilhados, e a sala, um amontoado de objetos e sujeira. Oliver sentou‑se sobre uma caixa de madeira, dessas que ser‑viam para carregar frutas. A velha apanhou um dos caldeirões e pôs no centro da sala. Juntou alguns frasquinhos das prateleiras recobertas de potes de vidros com gosmas e líquido viscoso.

– Senhora, onde estamos? – perguntou mais uma vez, enquanto observava a velha juntar as coisas e depositá‑las sobre outra caixa que servia como mesa.

– Espere... – A velha, ainda com o rosto coberto, apontou o dedo ressequido para Oliver. – Você, cavaleiro.

Oliver moveu a boca sem nada dizer.– Você, cavaleiro – Ela retirou o capuz.Seu rosto tinha tantas rugas quanto um velho de cento e vinte

anos. Seus olhos pareciam dois riscos no meio das pelancas. Os cabelos brancos como a neve trançavam‑se num coque, preso por um objeto pontudo e escuro. Sua cor não era rósea comum, era cinza puxando para o amarelo. Ela sentou‑se com dificuldade. Oliver apenas acompanhou‑a com um olhar duvidoso.

– Eu sou Kale – apresentou‑se a senhora. Seus lábios secos nem se mexiam para pronunciar as palavras.

– Eu...– Oliver, – completou ela, movendo a mão para que ele calasse e

Page 95: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 95 ×

ouvisse – você é um cavaleiro...– Não, eu não sou nada! – esbravejou Oliver, levantando e apon‑

tando para ela. – Shafa, o traidor, é um... Como sabe meu nome?A velha meneou a cabeça negativamente.– Sente e ouça – ordenou timidamente.– Olhe, eu não quero saber de nada a respeito de suas histori‑

nhas... Só me tire daqui! – A súplica na voz de Oliver não funcionava.– Você não pode – disse ela, com desdém.– Como assim não posso? – Sente e ouça – mandou ela, novamente.Vendo que não tinha opção, Oliver sentou. Juntou as pernas e

levou as mãos até o rosto, apertando os olhos, tentando acordar daquele pesadelo. Ela prosseguiu.

– Você é o sétimo, e o último! – começou Kale, puxando um fras‑co, abrindo‑o e jogando o conteúdo no caldeirão. – Os antigos contam que existem sete cavaleiros. Não são bons, nem são ruins. Cabe a você julgá‑los e decidir se o que eles fazem é o que você espera de bem, ou mal. Eles foram criados para ajudar a encontrar a perfeição e destruir tudo o que pode danificá‑la, guiar as almas perdidas, aquelas banhadas por sangue inocente, cuja desorientação causa muitos males, mesmo que suas intenções sejam das melhores. Os cavaleiros não devem decidir por conta própria ou avaliar uma situação através de influências.

– Você ainda não...– A única decisão que eles podem tomar é aceitar ou não o cargo.

O livre arbítrio de corretores da raça humana. – A velha ignorou Oliver, jogando mais coisas no caldeirão. – E como estamos mais próximos do fim do que se imagina, os eleitos ao cargo não querem saber de ter que sujar as mãos por seres ingratos. Você foi escolhido por um deles para ocupar o cargo de cavaleiro. Você poderá escolher entre negar e aceitar.

– Eu me nego – antecipou‑se Oliver.– Existem barreiras, no entanto. Como fez o cavaleiro anterior a

você que se negou a assumir a tarefa, um substituto precisa ser encon‑trado. – Uma fumaça vermelha exalava da estranha poção. – Respon‑dendo a sua dúvida, você está na Terra‑Inversa.

– Terra‑Inversa? – repetiu Oliver, confuso. – É um tipo de cidade?– Não, – Kale jogou uma bola preta gosmenta na poção, a fumaça

ficou azul – é a terra dos mortos. A terra daqueles que não tem terra... Não é o inferno, não é o céu e nem a Terra dos humanos. Não existem regras e nem donos. Aqui é o lugar dos que não aceitam o julgamento.

– Julgamento?– Quando uma alma morre, ela passa por um julgamento feito

pela própria morte. Ela decide se a alma está pronta para avançar de nível ou se ela deve retornar para a Terra até ficar pronta. Entenda que existem muitos níveis por aí e a Terra é apenas mais um deles. Ninguém

Page 96: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 96 ×

sabe o que há além do julgamento, por isso as almas fogem por medo de encontrar algo muito pior do que a Terra.

Oliver engolia as informações; lá fora, a escuridão dominava. Ele se lembrou das canoas e dos outros cavaleiros.

– Eu quero voltar para a Terra! – insistiu. – Eu não tenho nada a ver com isso! Foi uma armação.

– Não importa, você aceitou que o cavaleiro tomasse seu corpo – replicou Kale, juntando um pó amarelado para por na poção. A fumaça ficou verde‑musgo, exalando um cheiro atordoante de podre.

– Não tive escolha! Foi a única maneira de me salvar... Se eu não aceitasse a ajuda de Shafa, eu morreria! – lamentou‑se Oliver com o olhar baixo. – Onde eu vim parar! E por que você foi me ajudar?

– Não importa, Oliver... Você permitiu que Shafa se apossasse de seu corpo, e isso foi suficiente para que ele o escolhesse. E você, nesse momento, é um dos sete cavaleiros. Se eles não estiverem vivos, nosso mundo não viverá. Não haveria céu, Terra e nem inferno sem a Terra‑Inversa. É aqui que as escolhas são tomadas e os caminhos esco‑lhidos. Todos, antes de serem julgados, devem passar por aqui. Você viu as canoas, não viu? Eles são os mortos recentes. Imagine um peixe sem percurso, um viajante sem trilhas, um caçador sem o local para caçar. Isso que falta, é a Terra‑Inversa. Com ela, descobrimos se o peixe vai subir o curso para desovar, ou vai ser devorado. Se o viajante vai achar o caminho de volta, morrer perdido ou arranjar uma nova aventura. Ou, ainda, se o caçador terá sucesso na caçada ou não.

– Isso tudo é tão surreal... – murmurou Oliver. – Como eu nunca ouvi sobre isso? E se eu negar?

– Porque não há necessidade. O peixe, o viajante e o caçador não precisam saber onde seus objetivos estão, precisam apenas saber achar as pistas, usar o instinto e a vontade de sobrevivência. Se todos soubes‑sem onde o pote de ouro está, não haveria tesouro para todos. – A ve‑lha levantou‑se, postando‑se diante do caldeirão. Moveu as mãos sobre a fumaça amarela, que cessou. Murmurou várias coisas estranhas que Oliver não entendeu. Kale pediu para que Oliver se aproximasse, e este obedeceu. A fumaça reapareceu, dessa vez branca. Oliver viu o líquido enegrecido no fundo do caldeirão, borbulhando sem haver fogo embai‑xo. – Negue e receberá em troca vinte anos de dor, e mesmo assim, não se verá livre de seu trabalho. Aqui o “livre‑arbítrio” tem um preço.

Oliver bufou.– Oliver – chamou‑o a velha para mais perto.Desconfiado, ele o fez. A velha arrancou a atadura de seu peito

e pôs a mão na cavidade escura. Oliver urrou de dor. As tochas que iluminavam o casebre diminuíram de intensidade, sacolejando feito es‑pectadores ansiosos. Oliver não tinha forças para retirar a mão dela de lá. A dor aumentava gradativamente. Kale murmurava enquanto agitava

Page 97: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 97 ×

a mão sobre o caldeirão. A fumaça branca moveu‑se em círculos, até formar uma bola semitransparente. No interior, uma pequena luz cin‑tilava timidamente. A velha puxou a mão do peito de Oliver, trazendo consigo uma massa vermelha úmida. Oliver aterrorizou‑se ao perceber que aquilo, na mão dela, era seu coração. Em seu peito, havia um buraco negro sem fim.

– O que você fez? – perguntou Oliver, com a voz sumida.O coração palpitava lentamente sobre sua palma. Oliver caiu de

joelhos, lacrimejando com as mãos próximas ao ferimento. Se aquilo fosse real, então estava morto. “Não tem como você morrer! Não ouviu a velha? Você já está morto!” pensou Oliver. Kale atirou o “coração” de Oliver na tal poção. A dor foi intensa, seu corpo inteiro queimou. Urrando de dor, Oliver contorceu‑se no chão sujo. Sentia prazer e dor ao mesmo tempo, queria rir, mas o choro o impedia. Enfiou as mãos na terra, procurando algo para apertar.

– Eu, Kale, terceiro oráculo da Terra‑Inversa, concedo a esta alma, o título de sétimo cavaleiro da Terra‑Inversa – declarou a mulher. – Agora, entrego seu coração em troca da dádiva. E você, Oliver, – Kale abaixou o rosto, alguns fios de cabelos esvoaçavam sem ter brisa – está pronto para fazer o que lhe é concedido?

Oliver gemia baixo. A carne do peito queimava. Se respondesse, talvez a dor acabasse logo. Seria aquela a dor que sentiria se negasse? Não queria experimentá‑la por mais tempo.

– Oliver, está pronto para fazer o que lhe é concedido? – reper‑guntou Kale.

– Sim! – exclamou ele – Sim! Mas por favor, pare com isso!A dor reduziu imediatamente, mas a fumaça persistiu em rodear o

ambiente. A esfera bizarra flutuou acima da mão de Kale, que continua‑va a murmurar palavras. Os ventos entraram violentos pelas janelas, e os cavaleiros que antes perseguiam Oliver postavam‑se em frente à cabana. O oráculo reduziu o tom da voz, até que se calasse. Ela aproximou‑se do corpo abatido de Oliver, segurou‑o pelo braço e enfiou a esfera em seu peito, no lugar do coração. Numa explosão de ventos, a cabana não estava mais silenciosa.

A nova onda de dor foi pior. Parecia que lhe enfiavam milhares de facas, estraçalhando sua carne. Veias por todo seu corpo estavam di‑latadas e marcavam a pele. Os ventos açoitavam os objetos do oráculo, jogando‑os para o meio da floresta. O teto de palha fora arrancado e seus destroços atirados contra os cavaleiros. Um deles se destacou, ob‑servando a cena com reprovação.

– Sua velha imunda! – xingou ele, cuspindo. – O que você pensa que está fazendo?

Ela não respondeu, tapando o rosto com os braços para não se ferir com os cacos esvoaçantes. Oliver foi parando de tremer lentamen‑

Page 98: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 98 ×

te, até ficar em silêncio. Havia desmaiado? Morrido de vez? Ghaja, o cavaleiro, puxou as rédeas do animal monstruoso, que bufou.

– Está na hora! Suas magias farsantes acabaram! Peguem os dois! Não ganharemos muito com um oráculo fajuto. O tempo de espalhar profecias e causar alarde acabou! – Ghaja informou, contemplando a casa semi‑destruída. – Chega de capturar gente perdida para cumprir seus sacrifícios. Vamos destruir você e seu povo!

– Vocês não podem! – defendeu‑se ela, finalmente. – Os oráculos são essenciais para a sobrevivência da Terra‑Inversa!

– Oráculos são substituíveis. Existem mais por aí... – Ghaja mos‑trava raiva na voz. – Agora, destruam o que sobrou desse lixo que ela chama de casa. Não vamos levá‑la, extermine‑a aqui. E esse experimento desmaiado também.

– Não! – exclamou a oráculo, postando‑se diante do corpo inerte de Oliver. – Não toquem nele. Levem‑me, mas deixem‑no aqui!

– Você não tem escolha – interferiu o segundo cavaleiro, a voz mais grave do que a de Ghaja.

– Eu disse para exterminá‑los! – ponderou Ghaja, avançando con‑tra a velha ao sacar sua espada.

O galope ficou mais rápido. Ele ergueu a lâmina para arrancar‑lhe a cabeça. O metal silvou no ar, porém não acertou nada. Um pouco mais afastado, a velha estava caída no chão, com Oliver à frente. Este respira‑va pesadamente, com seus os olhos voltados para o cavaleiro. Tirou‑a de lá tão rápido quando foi possível. Suas vestes sujas e rasgadas expunham o peito nu e claro. Espantado, Ghaja tentou disfarçar com uma risada.

– Eu estava esperando que você levantasse, – mentiu, acompanha‑do da risada de seus parceiros – como resolveu dar o ar de sua graça, já posso terminar o serviço.

– Você não vai terminar nada! – bradou Oliver, irritado. Aqueles seres causavam‑lhe tamanha repulsa, que não contestava a sua vontade de enfrentá‑los.

Oliver, que mais parecia um animal selvagem, não sabia o que ha‑via acontecido consigo, mas as mudanças em seu organismo começavam a ficar evidentes. O medo simplesmente desapareceu, dando vazão à raiva. Passou a mão no peito que, já cicatrizado, conservava apenas um corte fino em formato de meia lua.

Ghaja não gostou da resposta e franziu o cenho por baixo do capuz. Agilmente, atacou com a espada, errando o golpe novamente. Oliver impressionou‑se com o próprio reflexo, conseguira antever o golpe antes que ele acontecesse. Seja lá o que a velha tinha feito, havia acertado. A velha levantou‑se e correu para trás das árvores. Observava satisfeita a ousadia de Oliver. Abriu um sorriso, revelando os dentes pretos e sujos. O céu negro não clareava, mesmo com o amanhecer se aproximando. A névoa da lagoa cinza, no final da floresta, cobria os

Page 99: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 99 ×

calcanhares de Oliver.– E o que você vai fazer? Matar‑me? – questionou Ghaja, rindo

com os outros cavaleiros. Oliver saltou sobre o cavalo, na tentativa de acertar o cavaleiro,

mas acabara por levar um corte vertical no peito com a espada de Ghaja. Caiu de costas com a força bruta do golpe. Levantou após constatar que não sentia dor, passando a mão no peito são mais uma vez. Avançou so‑bre os restos mortais do barraco ao qual Kale o levara; Ghaja continuou a observá‑lo superiormente.

– Acabem com ele! – ordenou o cavaleiro com a voz fria. O cava‑lo em que estava recuou, ficando logo atrás dos outros três cavaleiros. Não ia perder seu tempo com aquele lixo. – Todos a favor dos oráculos devem ser exterminados.

Os outros três cavaleiros tomaram a dianteira. Puxaram suas es‑padas, intimidando com suas capas e capuzes. Oliver, no entanto, sen‑tia‑se seguro. Não tinha medo, nem tinha nada. “Esses cavaleiros são os mesmos que Marlyn contara a respeito. Talvez seja essa Terra‑Inversa que está me deixando louco”, pensou Oliver, de pernas flexionadas. O cabelo úmido grudava na testa e, se antes Oliver estava sujo por engati‑nhar, agora era um homem‑lama ambulante.

Antes de perceber, os três cavaleiros partiam para cima dele. Re‑cebera tão inesperadamente os três cortes, que nem pensar numa defesa conseguira. Um corte diagonal no ombro, outro no pescoço e outro na barriga. Não sangrou, mas dessa vez sentiu um latejar invadir seu corpo. “Esses idiotas não têm o direito de fazer isso comigo!” xingou Oliver mentalmente, grunhindo baixinho. Agora os outros cavaleiros guiavam‑se na direção da velhota, que, de joelhos, rogava pragas.

– Vocês irão sentir a ira! – murmurava ela com cabeça levemente baixa. – Irão pagar! Vocês não cuidam do que devem cuidar, outros irão fazer isso por vocês...

– Silêncio! – gritou Ghaja com o dedo metálico apontado para ela. – Façam o que devem fazer.

Os cavaleiros desceram dos animais. Segundo as Leis Priori, para fazer o ritual de proibição, que fecharia o poder “oracular” dela, deve‑riam arrancar‑lhe a cabeça. O cavaleiro que estava ao seu lado ergueu a espada na altura do pescoço dela, enquanto o do meio abaixava‑se para apanhar a cabeça que cairia, e o outro montava prontidão. Este último procurou Oliver com o olhar, mas não o achou onde deixara.

– Aqui, imbecil – disse Oliver, surgindo atrás do cavaleiro. Ele encaixou as mãos perfeitamente ao redor do capuz do cava‑

leiro, fechando os dedos sobre a saliência do pescoço. Puxou sua cabeça com tamanha violência, que a arrancou de uma única vez. Instantanea‑mente, corpo e cabeça transformaram‑se em cinzas.

Sem que percebesse, a fisionomia de Oliver aumentava de tama‑

Page 100: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 100 ×

nho. Seus músculos tornavam‑se um pouco mais rígidos, e a pele adqui‑ria a cor cinzenta. Uma estranha mancha preta surgia de seu rosto na consistência de um tecido, formando uma venda que cobria seus olhos, mas não atrapalhava sua visão. Oliver sentia‑se como um animal, cujos instintos faziam‑no rosnar e caminhar com o corpo um pouco arque‑ado. Sua única função no momento era proteger Kale dos cavaleiros adversários. Chutou o segundo cavaleiro que estava de joelhos no chão, para receber a cabeça do oráculo, para cima do outro que a cortaria.

Seus golpes eram violentos e fortes, diferentes dos “mata‑moscas” que conseguia fazer antes com Shafa. Outra mancha prateada envolvia seu corpo, e as mãos foram rapidamente recobertas pelo metal líquido que, após cobrir a parte do corpo, endurecia. O que antes era um huma‑no mirrado, agora era um novo cavaleiro. As previsões do oráculo esta‑vam certas quanto a ele, era o sétimo de sete cavaleiros da Terra‑Inversa.

A bandagem preta cobriu completamente a cabeça das maçãs do rosto para cima. Não se viam olhos, pois cavaleiros não deveriam de‑monstrar expressões. As pontas dos cabelos lisos salpicavam para fora do tecido e cobriam a nuca. Sua estatura estava maior. O corpo foi co‑berto por uma malha preta e densa até o pescoço. Por cima dessa malha, a armadura de um suposto metal prateado defendia os pontos vitais. A textura do metal também era maleável, apesar de densa, o que gerava uma boa proteção nas juntas. Nas mãos, luvas grossas de couro preto garantiam a segurança dos dedos. E, por fim, nos pés, calçados metáli‑cos pesados. Além da prata, a armadura tinha detalhes dourados em for‑ma de escritos. Algumas lâminas afiadas localizavam‑se nos antebraços, cotovelos e costas. Presa no cinto largo da cintura via‑se uma bainha de prata vazia. E, nas costas da armadura, havia o símbolo em ouro de um dragão de braços cruzados sobre o peito segurando na mão direita uma foice e na outra uma espada. Suas asas envergadas rodeavam o corpo e um círculo delimitava o dragão em seu interior.

Uma capa roxa adornada por uma bainha dourada balançava sutil‑mente, começando nos ombros, presos por dragonetes de prata, e ter‑minando nos calcanhares.

Oliver finalizou o nocaute do outro quando amassou parte de sua armadura com um soco. Levantou irritado, virando‑se para um Ghaja espantado.

– Você... É um... C‑Cavaleiro da Terra‑Inversa! Pensamos... Pen‑samos que estivessem todos na Terra!

– Devo acabar com você – sentenciou Oliver vingativo. Ghaja bateu as rédeas do animal com ferocidade. O novo cava‑

leiro avançou e o inimigo recuou mais. Oliver respirava pesadamente, esperando que Ghaja sumisse de vista a galope ao entrar na floresta. Sua visão escureceu, mas não foi porque perdeu os sentidos. Apalpou a nova armadura, e tentou tirar a tarja que ocultava seus olhos.

Page 101: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 101 ×

– Não adianta – informou Kale, enquanto, manca, se aproximava. – Você não pode retirar a venda. Ela serve para nortear seus princípios.

Mais calmo após um tempo, Oliver virou‑se para ela. – Mas eu não enxergo nada! – relatou Oliver.– Acalme‑se. Para enxergar, um cavaleiro deve ter princípios.

Você enxergou porque desejou me proteger e corrigir aqueles bastardos.– O que você quer dizer com isso? – desconfiou Oliver.– Cumpra a sua missão e poderá ver. Infelizmente, o cargo de

cavaleiro da Terra‑Inversa não é fácil. Eu vou lhe resumir o que deve fazer, e vai voltar para a Terra. Lá é seu lugar por hora, e lá deve ficar. Mesmo que acabe ficando mais fraco entre as pessoas, sei que você se virará muito bem.

– Não estamos indo rápido demais? – O velho Oliver ainda estava presente, constantemente reclamando.

– Não temos mais tempo. Meu povo está sendo perseguido por espalhar as profecias dos cavaleiros da Terra‑Inversa. Você deve ir à ter‑ra, buscar seus outros companheiros. Eles estão vagando pela Terra. Estão em corpos humanos, presos por mim. Achei que seria melhor disfarçá‑los – informou Kale, agarrando a mão de Oliver. – Venha comi‑go, temos que conversar.

– Para onde vamos? – intrigou‑se Oliver, irritado pelo fato de não enxergar nada.

– Para minha casa.– Ela foi destruída...– Fique quieto e venha comigo – sorriu‑lhe Kale, puxando‑o e

guiando‑o entre o lixo.Oliver apenas ouvia o vento nas árvores, os passos dos dois e a

água do lago mais adiante. Não ver irritava‑o, porque queria saber o que acontecia. Tentara tirar a faixa que tapava seus olhos, mas era impossível.

As árvores apinhadas iam acabando até que chegassem à outra orla da floresta. Kale arranjou um pedaço de madeira, usando‑o como bengala. O chão de barro tornava‑se gramado amarelado, e, diante deles, a pequena aldeia se formava. As casas pobres feitas de palha e pedras ladeavam‑se ordenadamente para dar espaço às ruas. Algumas crianças trajando farrapos brincavam por lá e observavam a chegada dos estranhos. E elas saíram correndo, avisando outros das novidades. O oráculo tinha conseguido encontrar o sétimo cavaleiro tão esperado. O sete de sete. Em poucos minutos, pessoas surgiam nas portas e janelas, expondo os rostos curiosos. Oliver ficava apreensivo, sem saber o que acontecia ao seu redor.

– Kale... – chamou ele, tentando retirar o pano preto dos olhos.– Acalme‑se, filho. Estamos quase lá.As pessoas gritaram urras e vivas, assustando Oliver, que parou

com os braços afastados do tronco, esperando receber algum ataque.

Page 102: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 102 ×

Usou a audição para se localizar. Pela quantidade de gritos, eram muitas pessoas. E pelos tons, de várias idades e sexos. Deveriam estar em algum esconderijo, protegido dos outros cavaleiros. Alguma aldeia protegida por Kale. Uma criança aproximou‑se dele para segurar sua mão.

– É ele! É ele! – exclamou a menina, sorrindo de orelha a orelha. – É o cavaleiro de nossas previsões.

Ao perceber que era uma criança, Oliver acalmou‑se. Não sentia mais a velhota por perto. Oliver pensou no que ela dissera: “Era preciso ter princípios”. Mas, quais eram seus princípios? “Pensa, Oliver, pensa! Você queria defendê‑la dos desgraçados, teve princípios! Então, deve ser isso” pensava ele, concentrado. “Eu preciso ver para ajudar os ou‑tros. Eu preciso descobrir mais sobre minhas tarefas... Preciso entender melhor este mundo para ajudar essa gente.” E nada aconteceu. Oliver respirou fundo mais uma vez, continuando a concentrar‑se. “Eu não quero ser um herói, quero ajudar e proteger.” Lentamente, o que era escuro, foi clareando. Passou para um borrão colorido, até que Oliver pudesse enxergar. Sua vista encontrou as numerosas pessoas ao seu re‑dor, que aplaudiam e aclamavam a chance de nova esperança.

O céu continuava escuro. Todos os habitantes usavam trapos e estavam sujos. “Que tipo de Terra era aquela?” perguntava‑se Oliver. A criança que segurava sua mão estava suja de barro. Apertou levemente seus dedos e depois a soltou. Lembrou‑se de Julia, e pensou em como ela estaria, e se Shafa havia dado cabo dela também. Kale guiava‑o, cha‑mando‑o para continuar.

– Não temos tempo, em breve eles estarão aqui! – disse‑lhe Kale preocupada.

Oliver adiantou‑se, passando entre as pessoas. Tinha a armadura tocada e foi nesse instante que se deu conta de que usava uma. Ela pare‑cia grudada à sua pele, dura e áspera. Os calçados metálicos sujavam as dobradiças na terra. “Que mundo é esse? Que loucura é essa? Em que tipo de situação eu me meti? Ou melhor, que me meteram”, pensou.

Kale entrou na cabana mais alta da pequena aldeia, que era ilumi‑nada por tochas. Oliver abaixou‑se para entrar pela “porta” feita com tecidos vermelhos. Lá dentro, diferente do outro casebre, a organização predominava. As prateleiras estavam cheias de livros devidamente co‑locados lado a lado. Frascos de vidro empilhados na mesa da sala eram postados por nome. A cama, situada abaixo da janela, era um cobertor imundo. Constituída por uma única peça, a casa também tinha outros móveis como um sofá velho, ao lado da porta de entrada, e a grande lareira, com três caldeirões pendurados em um cilindro fino mantido no ar por uma força invisível. O teto estava coberto de tecidos, desenhos antigos e símbolos. Kale apanhou uma sacola vermelha, depois, um ta‑pete, estendeu‑o no centro da sala e sentou‑se sobre ele, convidando Oliver para acompanhá‑la.

Page 103: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 103 ×

Oliver, sempre de cabeça baixa, obedeceu. – Oliver, o que fizemos não tem mais volta – anunciou ela, sem

nenhum pesar na voz. – Você conseguiu completar a fase de mutação com facilidade, melhor do que os outros demonstraram conseguir. Ape‑sar de não parecer, você tem um coração humilde. E não apenas isso, também conhece o mal da humanidade. Agora, você não tem lado. Nin‑guém o ajudará a não ser você mesmo e seu guia. Terá de ir em busca de seus aliados. Sem eles, você estará só. Eu os mandei para a Terra, fiz com que encarnassem em corpos humanos, para que os inimigos não os encontrassem. Dessa forma eles desconhecem a própria identidade. Somente um cavaleiro da Terra‑Inversa pode achar outro cavaleiro da Terra‑Inversa...

– E como eu vou saber onde eles estão? – perguntou Oliver.– Você saberá na hora. Terá que aprender tudo sozinho, não posso

ensiná‑lo a ser um cavaleiro – respondeu sinceramente Kale.– Como assim? Você me enfia num corpo como esse, me dá pode‑

res que eu desconheço em uma missão que nem pistas eu tenho! – dis‑cutiu Oliver, estressado. – Como vou saber que posso confiar em você?

– Você não deve. Nunca confie em ninguém além de você. Não há ninguém melhor do que você mesmo para saber o que é certo ou errado. A terra é um lugar muito grande, cheio de humanos. Use sua intuição, sua força de vontade. Você conseguiu enxergar sozinho. Eu apenas lhe dei os pauzinhos e você fez o fogo.

– Mas como? Como eu vou saber quem são os outros? Se eles vão estar como humanos, vão parecer humanos e não cavaleiros! – preocu‑pou‑se Oliver. Para ele, jamais descobriria nada a respeito deles.

– Vocês são mais parecidos com os humanos do que pensam, só existe uma grande diferença. Os cavaleiros da Terra‑Inversa não pos‑suem alma, assim não podem ser domados nem possuídos.

– A sombra... – balbuciou Oliver, erguendo a mão e notando que a luz frágil que adentrava pela porta iluminava‑o, mas não proporciona‑va uma sombra.

– Viu? Você é mais esperto do que pensa – sorriu Kale. – Mas lembre‑se de que não é pela sombra que você deve encontrá‑lo... Em terra ele terá um corpo e a carne gera sombra. Tente concentrar‑se nos seus objetivos... A verdade virá até você.

– Então, como existimos? Pensamos? – indagou Oliver, confuso. Eram informações demais. – Como posso estar aqui?

– Porque você pertence à vida e à morte, ao meio‑termo. E, por isso, não pode ser igual aos outros. Vocês possuem energia pura e con‑densada, isso se chama Mantra da Luz. Isso em seu peito é um Mantra de luz. Suas lembranças, pensamentos, conhecimentos estão condensa‑dos aí, mas não passam de energia. Você vai notar que esqueceu algumas coisas de seu passado, mas com o tempo essas lembranças retornarão à

Page 104: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 104 ×

sua memória. – Oliver olhou para o peito coberto pela armadura, sem compreender. – Você irá entender sozinho. Eu não posso explicar, você terá que viver para aprender e aprimorar‑se.

A velha irritava Oliver, mas ele se conteve. Cruzando as pernas para conseguir ficar dentro daquela casa, ele suspirou com aparente pre‑ocupação. Kale pôs a mão sobre a dele, que repousava sobre o joelho.

– Essa não é uma função apenas sua. Você não será o herói, e como mesmo disse em pensamento, será o protetor. Irá apenas dar a mão necessária para a humanidade. Os humanos devem salvar a Terra, e apenas eles. Você não é mais um. Portanto, se fracassar, as coisas sim‑plesmente continuarão como são. Você está aqui para melhorar, não há como piorar o último estágio de degradação – reconfortou ela, de uma forma “estranha”. – E, em breve, você não estará sozinho. Também te‑nho algo a lhe dar.

Kale pegou o saco vermelho. Dentro, havia uma espada de metal reluzente, adornada de símbolos e pedras preciosas. Os rubis e esmeral‑das reluziam sob as luzes das tochas. Ela estendeu a arma, oferecendo a Oliver. Embasbacado, ele aceitou. O tamanho era perfeito para ele, e sua mão se encaixava confortavelmente no cabo. Era também muito pesada, mas ele em breve conseguiria usá‑la com mais facilidade.

– Vai precisar – sorriu ela, levantando com dificuldade. – Agora, vá fazer o que deve ser feito.

Oliver fez cara de dúvida. O oráculo puxou um saquinho do bol‑so, abriu‑o e dele retirou um punhado de pó. Jogou para cima, murmu‑rou algo e desferiu um tapa no topo da cabeça de Oliver. Este sentiu uma tontura repentina, e um puxão. O pó acumulou‑se no ar, e entrou por suas narinas rapidamente. Seu corpo foi se transformando em areia diante de seus próprios olhos. Aterrorizado, Oliver desmaiou. Com poucas palavras e uma espada de metal, Oliver teria que encontrar os outros seis. Mas onde? Havia tantas perguntas para poucas respostas.

Oliver acordou assustado e se tateou, afastando para o lado o len‑çol azul que o cobria. O cavaleiro chegou a se encabular ao perceber que estava nu. Sentou no metal gelado do catre e percebeu que havia mais dez macas metálicas com corpos cobertos por lençóis. Os pés, de tamanhos e cores variados, estavam etiquetados nos dedos. Intrigado, o novo cavaleiro se levantou. A sala era ampla e de lajotas brancas, con‑trastando com o piso azul‑marinho. Apoiou‑se na mesa do lado para ficar de pé. Notou que sua pele estava marrom cinzenta, diferente da palidez de antes. Observou que as mãos adquiriam cor, conforme o san‑gue voltava a correr por suas veias. Ouviu vozes vindas de uma das duas

Page 105: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 105 ×

portas da sala. E, através da vidraça, viu duas mulheres conversando. Para sua sorte, elas não o tinham notado. Vestiu o jaleco azul que estava pendurado ao lado da porta de saída, pôs a máscara e a touca para com‑pletar, ignorando o fato de que suas pernas continuavam de fora. Olhou uma última vez para a cama que deixara desarrumada. “Que se dane, ninguém vai notar mesmo”, pensou ele. Deparou‑se com as médicas do necrotério, ao sair.

– Oi! Estou só de passagem. O médico pediu para eu... Checar um dos corpos – comentou Oliver, coçando a nuca. Sorriu de canto sob a máscara e continuou andando.

As mulheres o encararam com espanto, voltando a conversar bai‑xinho, enquanto Oliver cruzava o corredor. O cavaleiro secou o suor da testa. Passou por uma sala envidraçada onde um médico examinava um corpo, enquanto outro o abria e dele retirava o coração.

– Um necrotério – tartamudeou Oliver, cumprimentando um dos legistas com a cabeça.

Caminhando mais rápido que suas pernas puderam, entrou no cô‑modo seguinte sem saber aonde ia. A nova sala tinha armários de metal cinza, numerados de um a cinquenta, e um banco estofado. “Perfeito!” pensou Oliver, achando‑se sortudo. Tratou de trancar a porta, retirou o jaleco que usava e foi abrindo os armários. Encontrou roupas que lhe serviram perfeitamente, uma calça jeans, uma blusa preta com algumas frases em inglês e um casaco marrom forrado. Vestiu a touca preta e apa‑nhou o par de tênis. Assim que terminou de se arrumar, surpreendeu‑se com a bagunça que fizera, largando roupas por tudo. Coçou a cabeça, que possuía cabelos crespos e ralos, diferente dos longos e lisos que tivera antes.

Só saiu do recinto quando se certificou de que os corredores es‑tavam vazios. Conferiu o mapa do prédio na parede, seguindo com o dedo o caminho que deveria usar para sair. “Droga! O que eu estou fazendo nesse necrotério? Certo, achei trezentos e cinquenta em uma das carteiras... Deve dar para ficar em algum lugar. Preciso falar com Anne!” refletiu o cavaleiro. Desceu as escadas para o térreo e passou pela recepção, cumprimentando os presentes com a cabeça, sem des‑pertar muita atenção. As portas automáticas de vidro se abriram e, por segundos, Oliver fitou seu novo corpo. Era um negro, alto, um pouco mais de um e oitenta. Cabelos ralos, olhos amendoado e físico forte. O rosto era amigável, de sorriso contagiante. Assustou‑se um pouco com a condição de estar em um corpo novo.

No mínimo estava em algum lugar do Brasil, perdido e sem muito dinheiro. Se Oliver soubesse meses atrás que teria de passar por isso, teria pensado seriamente em se matar.

– Agora, por onde começar? – perguntou‑se, descendo a rua.Havia parado de questionar. Talvez pudesse voltar para a casa...

Page 106: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 106 ×

Ninguém acreditaria na história de seu rapto e sumiço, principalmente por estar habitando um corpo que não era o seu. Era noite de céu estre‑lado, e assim que passou pelo poste, viu sua sombra. No entanto, não a reconheceu.

– A única coisa que sei é que os cavaleiros não têm almas – res‑mungou, no final da rua, que dava em uma avenida movimentada.

Os carros passavam velozes, e o barulho de gente conversando aumentava. Finalmente chegando à esquina, imaginou que Kale poderia lhe dar uma mãozinha, talvez algum sinal. Foi só pensar nisso, que ou‑viu um latido à sua direita. Lentamente, um “cachorro” preto se apro‑ximava. Era magro, alto e de patas grandalhonas. O animal lembrava um pastor alemão desnutrido. Ou um pastor belga, porque era todo preto, um pouco mais robusto no peito e magro nas pernas traseiras. O cachorro sentou perto de seus pés, com as orelhas grandes e pontudas voltadas para frente, encarando Oliver de canto com certa desconfiança. Os olhos de íris avermelhadas chegavam a ser assustadores, e o cavaleiro reconhecia aquilo de algum lugar.

Cansado de ficar ali, Oliver deu as costas e atravessou a rua. Obe‑diente, o cachorro seguiu‑o. As lojas alinhavam‑se uma do lado da ou‑tra. Na primeira ruela, Oliver entrou. Enquanto subia a lomba, olhava para trás constatando seu medo: o cachorro ainda o seguia, com o rabo pontudo e felpudo ereto.

– O que você quer? – perguntou Oliver, irritado. Virou totalmen‑te para o cachorro, que sentou.

Ambos ficaram cara a cara, trocando olhares intimidantes.– Você não me é estranho, sabia? – disse Oliver, arqueando a so‑

brancelha. – Vai me dizer que você é um cavaleiro?O cachorro não se moveu. – O que eu estou fazendo? Isso é perda de tempo.A árvore próxima a eles moveu‑se freneticamente com o vento.– Badeck – murmurou o cão.– Quê? – Oliver, que se preparava para continuar a subir a rua,

parou.– Badeck, esse é meu nome! – A voz dele era fria e um tanto sus‑

surrante. Os pelos da nuca de Oliver se ergueram. – Sou seu guia.– Guia?– Kale me disse que você era novato, mas eu não sabia que era tan‑

to, – rosnou o animal quando levantou – vamos continuar; a essa altura os médicos já notaram a saída do seu corpo do necrotério.

Visto de perto, Badeck não era bem um cão. Seus dentes mais alongados e o focinho arroxeado não eram normais. Oliver seguiu‑o, apressando os passos.

– Você, ao menos, já viu um cavaleiro? – perguntou Badeck ironi‑camente, vendo Oliver assentir. – Eu sou o guia.

Page 107: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 107 ×

– O cavalo, você quer dizer – completou Oliver, tentando de‑monstrar que não estava tão ruim assim quanto aparentava.

– Guias – corrigiu Badeck. – Nós carregamos os cavaleiros, e os guiamos através da luz e das trevas.

Oliver continha o olhar decepcionado; os cavalos dos outros pa‑reciam maiores e mais ferinos.

– Agora, me siga. Vou levá‑lo para o abrigo abandonado, amanhã teremos que partir – afirmou Badeck. – Você consegue sentir?

– Sentir o quê? – indagou Oliver confuso, eram informações de‑mais por uma noite.

– Onde estão os outros cavaleiros! – indignou‑se Badeck com sua burrice. – Você deve descansar e comer, fazer essas coisas de humanos. Não pode ficar andando por aí, você está no corpo de um procurado pela polícia.

– Que ótimo! – grunhiu Oliver.Badeck começou a correr, resmungando. Oliver seguia‑o desajei‑

tado, ainda não acostumado com seu novo corpo. A dupla não trocou mais palavras. No final daquela mesma rua havia um terreno baldio, cujo mato alto cobria praticamente todo o lugar. O cão embrenhou‑se nele para ignorar os protestos de Oliver. O cavaleiro passou por cima da cerca. A rua estava silenciosa, com exceção do barulho feito por um fio com curto circuito. As pequenas casas estavam fechadas. Oliver embrenhou‑se no mato, usando as mãos para defender‑se de galhadas no rosto. Depois de um tempo em que se embolara e voltara ao ponto de partida, finalmente deparou‑se com uma pequena casa lacrada. O cachorro aguardava sentado na entrada.

A casa minúscula, feita de madeira que fora um dia vermelha, ti‑nha janelas lacradas por tábuas carcomidas. Oliver ficou atento ao baru‑lho de sirenes que logo ecoaram pelo ar. Forçou a porta; entrou apenas na terceira tentativa. O pó no carpete, acumulado de anos, ergueu‑se de uma única vez, fazendo com que Oliver tossisse sem parar. A casa era formada por dois aposentos: uma sala e um banheiro. Um sofá ver‑melho havia sido devorado por traças e desbotado pelo pó. O banheiro fedia a podre, espalhando o odor por tudo. Faltavam pedaços de piso, das paredes e do teto.

– Que joça – reclamou Oliver ao retirar o casaco, pois a noite esquentava.

– Contente‑se com o que tem, ninguém aceitará hospedar um as‑sassino procurado – ordenou Badeck ríspido, atirando uma vela apagada nos pés de Oliver.

O cavaleiro pegou um isqueiro que estava no bolso e acendeu. Mal dava para enxergar o banheiro, mas estava bom. Seria apenas uma noite. Oliver vasculhou os armários da cozinha. Não achou nada para comer a não ser uma lata de feijão estragada. Não se preocupou, preci‑

Page 108: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 108 ×

sava mesmo era descansar. As informações bombardeavam seu cérebro cansado; se dormisse, talvez assimilasse melhor a ideia de ser um cava‑leiro. Badeck saiu e não voltou, e Oliver não quis saber aonde o “guia” tinha ido. Amanhã trataria de resolver as diferenças e buscar seu cami‑nho. Aquele dia terminava ali, mas a história mal começava.

Page 109: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 109 ×

Capitulo 9 Vozes do Além

Já era dia ensolarado quando Oliver saiu da casa abandonada. Ao

não voltar, Badeck deixava o novo cavaleiro supor que tudo o que se passara no dia anterior havia sido fruto de sua imaginação. Atravessou o mato alto até chegar à rua, onde, naquele momento, diferente da noite, havia movimento. Por sorte, ninguém o notou. Não sabia exatamen‑te a quem seu corpo pertencia, mas achou melhor não atrair atenção. Lembrava‑se de ter visto um pequeno bar na avenida enquanto fugia do necrotério, já que precisava comer. No entanto, pensou melhor e resol‑veu procurar um lugar mais afastado do IML. Não queria que a polícia o encontrasse. Contou o dinheiro que estava no bolso, contente por saber que dava para se sustentar por mais de uma semana. Até lá, teria que arranjar outra fonte de dinheiro ou passaria a morar debaixo da ponte.

O cavaleiro atravessou a rua, despreocupado, e com as mãos nos bolsos. Assim que se alimentasse, procuraria buscar mais informações sobre o paradeiro dos tais cavaleiros. A ideia de talvez voltar para a casa não o abandonava. O bar que escolheu ficava ao lado de duas casas lacra‑das. A porta era metálica, e via‑se o interior do recinto pelas vidraças da janela. Entrou. A porta fez um chiado, arranhando o piso marcado pelo tempo. Lá dentro, havia algumas mesas redondas de madeira azulada e um balcão. O estilo colonial de mobília era até confortável.

Oliver sentou‑se em uma das cadeiras do balcão; não havia nin‑guém lá além dele e de uma velha senhora, comendo torradas, enquanto a garçonete lhe servia café.

– Licença – chamou Oliver.Ela terminou o que estava fazendo e depositou o bule no balcão.

Puxou o bloco de notas e a caneta do avental vermelho quadriculado, aproximando‑se dele. A mulher tinha cabelos pretos presos num coque, e a franja encaracolada caída na testa.

– Em que posso ajudar? – perguntou ela.– Duas torradas, dois ovos fritos, café e... – Oliver pensou um

pouco, pegando o cardápio que ela lhe entregara no momento – um hambúrguer para levar.

Page 110: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 110 ×

– Aguarde, já está saindo – disse ela, dirigindo‑se à cozinha, loca‑lizada ao lado das prateleiras de bebidas.

Oliver encarou seu reflexo no espelho à sua frente. Se soubesse que iria para outro corpo quando voltasse à Terra, teria se preparado melhor emocionalmente. A velha senhora terminou o café, depositou as moedas sobre o balcão junto com o jornal do dia. Ela lançou um olhar de desprezo a Oliver enquanto passava por ele, empinando o nariz até que saísse do recinto. Ignorando‑a completamente, Oliver aproveitou para pegar o jornal.

Quando a comida chegou, comeu o sanduíche com voracidade. A fome era tanta que seu estômago ardia. Tomou tranquilamente dois goles de café, sorrindo afetivamente para a garçonete, que o observava com desdém.

– Então, que dia bonito não é? – comentou ele descontraído, vol‑tando a folhear o jornal.

A televisão no canto do bar foi ligada pela garçonete. Passava no momento um programa que ele jamais tinha visto na vida antes, ou me‑lhor, que ouviu apenas falar.

– Esse programa não é apenas um programa piloto? – perguntou Oliver, franzindo a testa.

A garçonete estranhou a pergunta.– Não, já existe desde o começo do ano. – respondeu ela, aumen‑

tando o volume para cortar assunto. – Desde o começo do ano? Mas ele ia estrear em 2010 – insistiu

Oliver, batendo o punho na mesa, achando que a mulher brincava.– Senhor, – disse ela, temerosa – nós estamos em 2010.Oliver sentiu um súbito frio na barriga. Parecia que a mulher lhe

tinha jogado um balde de água gelada, e apesar de ser moreno, seu rosto empalideceu. Procurou a data do jornal, levantando em um salto.

– 10 de Fevereiro de 2010! – exclamou Oliver, horrorizado.A garçonete pôs o embrulho pardo com o hambúrguer sobre o

balcão e recuou. O cavaleiro juntou o dinheiro do bolso e atirou sobre ela. A garçonete manteve‑se calada, observando‑o sair. Havia deixado, pelo menos, dez reais de gorjeta para ela.

Oliver corria atrapalhado pela rua, para qualquer lugar. Precisava apenas achar Badeck.

– Badeck! – chamou ele, parando em uma esquina.Recebeu xingões de um motorista quando foi quase atropelado.– Badeck! – repetiu o chamado enquanto corria para uma praça

infantil próxima.Estava vazia, ali não havia muitas árvores, mas dava para sentar.

Após repousar o corpo, descansou o rosto nas mãos.– Apareça Badeck, apareça! – repetiu ele várias vezes, pressionan‑

do os dentes nervosamente na boca.

Page 111: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 111 ×

O cão emergiu de dois arbustos, percorrendo a distância de onde estava até o banco de Oliver vagarosamente.

– Finalmente encontrou uma pista? – perguntou Badeck, como se lesse seus pensamentos.

– Não é bem isso – grunhiu Oliver, descobrindo o rosto.Ele era realmente feio e torto, parecia ter levado uma boa surra e

ficado daquela forma. Desviou os pensamentos novamente para o peda‑ço de jornal que pegara, mostrando‑o ao cão.

– Olhe a data! – exclamou Oliver, apontando para o papel.O animal fez o pedido.– O que tem? – indagou o Guia rudemente. – A Terra‑Inversa e

a Terra são duas dimensões diferentes. O tempo que você ficou lá passa mais lento do que na terra. Enquanto passou um dia lá, já se passaram mais de onze meses aqui.

Oliver engoliu a notícia como se comesse algo podre.– Eu não acredito nisso! Essas novidades e surpresas estão me

matando! – implicou Oliver, fechando os olhos. – Céus! Eu não aguen‑to mais isso. Eu vou voltar para a casa!

– Você não pode! – rosnou Badeck tão ameaçadoramente que o cavaleiro novato se encolheu.

– Não consigo aceitar tudo o que está acontecendo. Eu tinha uma vida... Um corpo. E então do nada tudo muda!

– Não temos escolha! Escute bem – esbravejou o cão, expondo os dentes. – Eu não gosto de você! Não gosto de ter que passar o res‑to dos meus tempos obedecendo às suas ordens estúpidas e tendo que mantê‑lo fazendo suas obrigações. Se ousar a sair um instante que seja de seu objetivo eu o colocarei de volta em seu lugar!

Oliver processou as palavras. Se esperasse que o cão saísse de per‑to talvez conseguisse fugir.

– E não pense em fugir. Eu posso ouvir seus pensamentos... Aon‑de você for eu estarei junto.

– Maravilha... – retrucou Oliver. O jeito era aceitar por enquanto, pelo menos até achar uma saída. Pensou em como estaria a sua mãe após todo esse tempo, precisava arranjar um jeito de vê‑la. – Onde estamos?

– No estado de Santa Catarina, mais precisamente, no norte – res‑pondeu Badeck, levantando‑se também.

– Norte de Santa Catarina? – Oliver não acreditava. – Essa velha me paga! Pegaremos um ônibus essa noite mesmo para Porto Alegre.

– Você não pode pegar um ônibus, esqueceu? O seu corpo per‑tencia a Vicente Bowager, um louco que dizia ser a reencarnação de um judeu que viveu na época nazista e que agora tinha como missão vingar seus antepassados, matando arianos.

Oliver riu de sua própria desgraça.– E, além do mais, por que quer ir a Porto Alegre?

Page 112: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 112 ×

– Se você quiser que eu faça meu trabalho direito, preciso antes terminar alguns assuntos. Deixei minha mãe doente lá.

Badeck rosnou em desaprovação, mas nada disse. Os dois levan‑taram‑se, puseram‑se a andar e passaram por uma oficina onde um ve‑ículo velho estava estacionado. O chapeador trabalhava deitado na cal‑çada e com metade do corpo enfiado embaixo do carro. Ele assobiava a melodia do rádio do carro. Oliver prestou atenção não na música, mas no chiado que acompanhava o som ao fundo.

– Ajudem... Atenção, aqui é o voo 170... Estamos caindo! Mayday!Oliver sacudiu a cabeça e colocou a mão sobre o ouvido direito.

Um chiado baixo o afetava. A música falhou, mas ninguém pareceu per‑ceber. O chapeador continuava assobiando... E as pessoas presentes na rua conversavam... O som foi ficando cada vez mais alto.

– Socorro! Torre de comando – a voz masculina ecoava metálica. – Estamos caindo... Não temos controle do avião.

Houve uma pausa em que o zumbido aumentou.– Nós... v... os... morr... – disse a voz e, antes que terminasse a

frase, ouviu‑se um estampido. – Oliver! – chamou Badeck. – O que está acontecendo?O chiado parou e tudo voltou ao normal. Oliver apenas meneou

a cabeça negativamente ao perceber que, mais uma vez, era ele somente ele que ouvia aquelas esquisitices.

– Nada – respondeu o cavaleiro.Horas mais tarde, Oliver vagava a pé por uma estrada vazia que

o levaria até uma interestadual movimentada. Não tinha dinheiro para pegar um ônibus e a polícia estava por toda a parte, procurando‑o. Nin‑guém daria carona para um assassino “morto” e um cão com ares psi‑cóticos. Badeck ladeava‑o com seu andar lento, girando as orelhas para todos os lados, em busca de algum som estranho. Não havia nada além de campo, mato alto e casas desertas num raio de cinco quilômetros. A cidade em que estivera desde que deixara o necrotério estava longe ago‑ra. O sol morreria no horizonte dentro de poucos instantes.

– Onde está meu corpo? – perguntou Oliver subitamente. Seus pés começavam a doer e as pernas clamavam por um descanso. – Por que eu estou assim?

– Seu corpo original pertence à Shafa agora. Como Kale deve ter lhe explicado, se um cavaleiro quer desertar e deixar de ter o título que ele possui, deve arranjar alguém para ficar em seu lugar. E, em troca dos poderes de cavaleiro, Shafa ficará com o corpo humano e a liberdade. – Badeck falava sem olhar para Oliver. – Enquanto você estiver na Terra precisará trocar de corpo periodicamente, porque a casca humana não suporta a energia acumulada dentro de você por muito tempo. O mes‑mo serve para mim.

– Espere... – Oliver parou de andar, fitando Badeck. – Como va‑

Page 113: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 113 ×

mos encontrar os outros cavaleiros se eles vão trocar de corpo como eu?– Não, isso não vale para eles, apenas para você. Os outros cava‑

leiros foram enviados à Terra para nascerem e crescerem entre humanos, assim não serão achados por ninguém. A única maneira de um estranho reconhecer um cavaleiro é quando este se manifesta e libera a energia, mas isso não será possível, porque eles têm a memória apagada assim que encarnaram como humanos.

– Perfeito! Era tudo o que eu precisava em minha vida – retrucou Oliver, chutando um pedrisco longe. – Ninguém vai nos achar?

– Se evitarmos usar as nossas capacidades de guia e cavaleiro, sim. – Mas quem estará atrás de nós? Eu estava me referindo aos ca‑

valeiros como eu – disse Oliver inconformado as respostas lacônicas. – Não saberemos até que alguém venha nos procurar. Os cava‑

leiros da Terra‑Inversa possuem o Mantra de Luz, que é extremamente poderoso. Quando uma pessoa possui um Mantra de Luz, ninguém é capaz de segurá‑la. A mistura mais poderosa existente é de um Mantra de Luz com uma alma. Junte essas duas essências e terá uma criação for‑midável de forças – disse Badeck, deixando Oliver para trás. O cavaleiro apressou para não perder um fio de explicação do bizarro cão. – Mas não é tão fácil quanto parece conseguir um, porque cavaleiros são extrema‑mente fortes. Seria necessário uma legião de criaturas para apanhar um único Mantra de Luz, e isso acarretaria em uma desgraça massiva.

– Argh, essa porcaria toda é muito complicada! – retrucou Oliver irritado. – Por que Shafa foi logo me escolher? Com tantas pessoas úteis querendo salvar esse mundo ele escolhe logo o mais adverso à causa.

– Pare de reclamar! Você aceitou que ele tomasse seu corpo! Ago‑ra é tarde demais para falar qualquer coisa. Aceite logo o que é você e a sua nova missão para que possa se concentrar no que deve e não no que acha que deve.

– Fique calado! Eu preferia estar nessa missão sem um ser irri‑tante como você! – xingou Oliver em voz alta. – Pare de dizer o que eu devo fazer!

O guia arqueou as costas magras. Oliver recuou alarmado diante da demonstração de raiva do cachorro. Badeck preparava‑se para inves‑tir quando um galho estalou no mato alto à direita deles. Ambos olha‑ram na direção do ruído, onde as plantas se movimentavam e anuncia‑vam uma presença. Badeck farejou o ar. O sol já repousara no horizonte e estava escuro demais, apesar de seu rastro laranja ainda brilhar além dos morros.

– Tem algo vindo aí! – murmurou Oliver.O clima tenso fez o cavaleiro encolher‑se mentalmente de medo,

pois ele fazia de tudo para não demonstrar seus sentimentos. O mato mexeu‑se com mais intensidade e uma cabra irrompeu das sombras com uma corda amarrada no pescoço e um olhar assustado. O animal ig‑

Page 114: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 114 ×

norou o cão e o cavaleiro e soltou um balido, começando a pastar um amontoado de grama rala no meio da estrada.

– É só uma cabra! – exclamou Oliver, secando o suor da testa com as costas da mão. – Deve ter fugido de alguma das fazendas da região.

– Espere um pouco! – chamou Badeck, porém Oliver não ouviu. Oliver caminhou lentamente na direção da cabra, erguendo a mão

para tocar‑lhe a cabeça e tentar apanhar a corda solta, mas antes que alcançasse um metro de distância do animal, uma silhueta grande irrom‑peu do mesmo lugar em que a cabra estivera há poucos instantes. Antes de o cavaleiro cair para o lado empurrado, um grito fino e extremamente alto estourou no ar.

– Argh! – grunhiu Oliver de ouvidos tapados pelas mãos. Badeck gania ao seu lado. – O que é isso? – perguntou ele, quando o grito cessou. O cavaleiro pasmo levantou‑se com a mão na cabeça. O animal

tinha o tamanho de uma pessoa, até um pouco maior, pois tinha o corpo encurvado, e era extremamente delgado e magro. As pernas eram longas e mais ainda eram os braços cujas mãos tocavam o solo, ao pôr‑se de pé. Os ossos tinham formatos estranhos e estavam salientes sob a pele rala coberta de pelos amarronzados. A criatura não possuía rabo, apenas um talo do que seria o fim da coluna vertebral. No topo de sua enorme cabeça nasciam duas orelhas longas e pontudas que apontavam sempre para trás, assemelhando‑se aos cinco chifres que nasciam no topo da ca‑beça e terminavam na nuca. A cabeça achatada lembrava a de um cachor‑ro que levara um soco, com o pequeno focinho de duas fendas, colado na face um pouco acima da pequena boca fechada e, aparentemente, desprovida de dentes. Uma linha de tonalidade escura delineava a boca e a barriga, dividindo a criatura em duas cores diferentes.

– O que é essa coisa?Badeck sacudiu a cabeça e parou ao lado de Oliver, já recomposto. – É conhecido na Terra como um chupa‑cabra, mas é outro ghos‑

tgan da quinta geração racial. O chupa‑cabra de pupilas em fendas na cor verde‑néon admirou

o cão falante. Segurava a corda que prendia a cabra com a mão de dedos longos, com garras afiadas, e apontou com a outra mão para a dupla.

– É minha! – disse a criatura apenas com um mover de lábios. – Fiquem longe! Não irei dividir com ninguém!

Oliver engoliu a seco. – Não queremos a sua cabra! – deixou claro o guia, tentando não

parecer ameaçador. – Nós estávamos apenas de passagem.– Não somos inimigos, – acrescentou o cavaleiro – procuramos

apenas pela interestadual.Então aquela coisa bizarra diante de si era um chupa‑cabra? Aque‑

le que fazia as crianças morrerem de medo à noite? A segurança com a

Page 115: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 115 ×

qual Badeck falava com a criatura indignava o cavaleiro. E se ele resol‑vesse atacá‑los ou algo do tipo?

– Estão no lugar errado – declarou a criatura. Puxou a cabra para perto e deslizou a mão sobre o pelo macio de seu dorso. O animal não parecia assustado. – Mais adiante, essa estrada foi fechada por causa de um desabamento de terra. Não encontrarão passagem se continuarem.

– Nós perdemos viagem – lamentou Badeck.Oliver notou um quê de acusação na voz do guia.– E você me culpa? Eu sou enviado para essa droga de Terra sem

nenhuma informação! E não faço nem ideia de onde me encontro, com quem estou e por que isso tudo está acontecendo justamente comigo!

Badeck reforçou seu rosnado diante da ousadia e raiva de Oliver. – Você é um irresponsável!– Eu não pedi a sua opinião! – gritou Oliver, fechando os punhos.

– Você é apenas o maldito cavalo! Por que não fica quieto?O chupa‑cabra acomodou a cabra debaixo do braço enquanto ta‑

pava os ouvidos do animal. Antes que os dois pudessem prosseguir com a discussão, a criatura abriu a boca, que se revelava ser maior do que aparentava, e expôs as seis fileiras de dentes retráteis, enquanto soltava outro grito ensurdecedor. A língua fina e comprida saltou para fora e pendeu no ar, mostrando uma ponta afiada semelhante a uma agulha, que retornou para a boca segundos antes de fechar. Oliver e Badeck ficaram momentaneamente surdos.

– Por que você fez isso? – vociferou Badeck. – Porque vocês falam demais – disse o chupa‑cabra. – Venham co‑

migo, a minha casa fica a um quilômetro daqui. Eu posso ajudar vocês. – E por que devemos confiar em você? – perguntou Oliver. – Não devem, mas se não vierem comigo pernoitarão nessas ter‑

ras amaldiçoadas. – O chupa‑cabra deu as costas, afastando o mato alto para adentrá‑lo.

– Chupa‑cabras não comem gente? – indagou Oliver para Badeck.– Não – explicou o guia a contragosto. – Chupa‑cabras não ferem

humanos, por isso você ainda está vivo. Seu único interesse com a Terra são os animais. Eles criam as cabras desde pequenas para que possam comê‑las depois. Por isso os relatos sobre chupa‑cabras procedem de pessoas da zona rural, porque a maioria deles se disfarça em fazendeiros ou criadores de cabras.

Como não havia alternativa, Oliver seguiu Badeck. A escuridão nascia rapidamente conforme eles cruzavam os campos largos de milha‑rais em direção ao sul, atravessando apressados a plantação. Ver aquele chupa‑cabra implicava uma série de problemas: primeiro, chupa‑cabras não existiam; segundo, eles não falavam, e terceiro, eles não tinham casa. Porém, olhando por outro ângulo, eles existiam, falavam e viviam despercebidamente com humanos. Então, pensou Oliver, as lendas

Page 116: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 116 ×

eram verdadeiras. O que mais restava aparecer? A mula‑sem‑cabeça? Vampiros? Lobisomens já tinham se mostrado verdadeiros. Seria essa a tal verdade de seus sonhos? Foi então que se lembrou do pesadelo que lhe vinha ocorrendo durante toda a sua vida; ele era real.

E aquele Badeck. “Esse cachorro é muito estranho... Eu não gosto dele, mas sinto que é o único em quem eu posso confiar. Não entendo, simplesmente não consigo entender tudo isso!”

– Não entenda – respondeu Badeck subitamente. – Certas coisas são feitas para não serem entendidas. Não porque não haja respostas, mas porque ninguém está pronto para ouvi‑las. O mundo é muito mais do que os humanos pensam, Oliver, existem coisas que a humanidade jamais imaginou. Essas coisas vivem entre os humanos ou bem longe deles. O universo é um caminho sem fronteiras, mas se quiser ir a algum lugar, é preciso estar pronto para isso.

Oliver não respondeu, preferindo permanecer em silêncio en‑quanto afastava os pés de milho do caminho.

– A Terra é apenas uma minúscula célula em um organismo in‑teiro, vivo... E todos os planetas, incluindo a Terra, precisam umas das outras até que sua função não seja mais necessária ou fiquem “doentes”, ou seja, acabem interferindo no organismo que é o universo. A célula que fizer isso será destruída, ou em outras palavras, quando ela deixar de ser útil e começar a fazer mal ao organismo, ela será simplesmente descartada. E é isso que está acontecendo com a Terra, ela está ficando doente e contaminando as outras células.

– E como se faz mal a esse organismo?– Quando se deixa de fazer o que se deve e se começa a fazer o

que não é preciso. Não posso explicar isso para você... É muito comple‑xo. Você vem de uma mente humana, logo demorará muito tempo para começar a compreender o que acontece hoje. Eu já fui vivo uma vez... Estive presente nessa Terra até me levarem para o outro mundo e me fazerem o que sou hoje. Levei muito tempo para entender que não há significado para o indescritível. É preciso apenas compreender isso para deixar de buscar explicações. É necessário encontrar funções. É isso que você precisa fazer... Parar de buscar explicações para o indescritível, e começar adquirir funções com o que você tem. As respostas aparecerão com o tempo... Elas sempre aparecem.

Oliver meneou a cabeça negativamente, empurrando o último pu‑nhado de milharal para sair daquela plantação. Do outro lado havia uma enorme casa de dois pisos, um celeiro, um galpão, dois moinhos antigos e um cercado vasto com centenas de animais como vacas e cavalos, mas em sua maioria cabras. O chupa‑cabra havia sumido, ou melhor, em seu lugar havia um homem de estatura média, magrelo, porém com uma barriga avantajada, cabelos ralos e cinzentos. Trajava uma jardineira je‑ans, uma blusa amarela e um par de botinas marrom.

Page 117: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 117 ×

Ele encarou os dois com os olhos verdes vivos, que pareciam so‑cados no rosto enrugado. Oliver sabia que ele não chegava nem perto de ser humano. Oliver apresentou a ele.

O chupa‑cabra coçou o queixo com a barba meio comprida. Ago‑ra alguma coisa do que Badeck falara antes fazia sentido. Então era as‑sim que eles passavam despercebidos? Vivendo tão iguais aos humanos? Marlyn e Pierre também ajudaram‑no muito com suas explicações.

– Em outros tempos eu tinha um nome, mas ele já foi esquecido... Atualmente me chamam de Joseph, em homenagem ao meu pai inglês – Joseph sorriu irônico. – Disseram que aqui no Brasil a produção de cabra era boa, então viemos para cá em massa. A maioria por aqui é exa‑tamente como eu. E em outros lugares do interior também.

A porta da frente da casa com batentes brancos abriu e uma se‑nhora da idade de Joseph surgiu. Ela usava um avental por cima do ves‑tido laranja cavado.

– Querido? – chamou ela, passando a mão nos cabelos curtos e encaracolados. – Quem é essa pessoa?

– Apenas um amigo, querida – respondeu Joseph. – Prepare algo para eles comerem.

A “mulher” estranhou o “eles” na frase do marido, mas deu de ombros e entrou novamente. Joseph encarou Oliver.

– Essa é minha esposa Clarina, nos conhecemos quando eu estava vindo para o Brasil.

Oliver não precisou de muito para deduzir que ela também fazia parte daquela vida de ghostgan.

– Não queremos ficar muito, afinal não temos tempo. Precisamos chegar com urgência em Porto Alegre – disse Badeck com pressa na voz. – Já nos atrasamos demais.

Joseph gesticulou para que os dois entrassem na casa. Depara‑ram‑se com uma sala bem organizada, com móveis muito bem cuidados, como se ninguém os usasse (a maioria do tempo). Provavelmente os chupa‑cabras gastavam sua vida cuidando dos animais, ao invés de se socializarem em uma comunidade. A mulher estava diante do fogão, fri‑tando bacon com ovos, único tipo de alimento que existia naquela casa.

– Desculpe‑nos a falta de comida... – pediu Clarina constrangida.– Não se preocupe com isso, esposa, eles não são do tipo que se

importam com essas coisas. Joseph apontou para a mesa de quatro lugares. Oliver cumpri‑

mentou Clarina e arrastou uma das cadeiras para sentar. Badeck perma‑neceu parado ao lado do cavaleiro.

– E então o que você faz da vida, rapaz? – perguntou Clarina en‑quanto Joseph sentava.

– Me chame de Oliver, – apresentou‑se o cavaleiro pensativo; pre‑cisava de uma mentira – eu e Badeck estamos em busca de pistas do

Page 118: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 118 ×

paradeiro de alguns conhecidos nossos.– Uhh! – grunhiu ela pensativa. – E quem é Badeck?Os olhos dela foram ao encontro do cão embaixo da mesa.– Ah, entendi... – comentou ela, apanhando mais um prato de

porcelana do armário. – Comida para dois então.– Não queremos causar nenhum problema, já estamos de partida. – Faça a comida, querida – disse Joseph rabugento. – Encontrei‑os

perdidos na estrada faz pouco tempo. Como pretendem chegar à estra‑da interestadual à noite? Não tem noção de como há perigos por aqui. Duvido que alguém dê carona para um assassino e um cão desse porte.

Oliver congelou. Então o uso do corpo humano assassino esta‑va tão perceptível assim? Clarice entregou o jornal que estava sobre a geladeira para o marido, que mostrou a manchete sobre o soldado as‑sassino finalmente morto. A foto grande de Vicente Bowager ocupava a primeira página.

– Eu acho que preciso de explicações se quiserem ser ajudados. Quem são vocês? Eu ouvi a conversa que tinham quando estávamos a caminho daqui.

– Não creio que vocês gostariam de ter um envolvimento conos‑co. Não há motivos para que entrem em nosso perímetro de perigo. É melhor supor o que somos do que saber o que realmente somos – disse Badeck, apoiando as patas grandes sobre a mesa.

Joseph coçou o queixo e disse:– Parece sensato, mas da maneira como estavam falando, parece

que vocês têm algo importante a fazer. Clarina serviu os bacons e ovos em dois pratos, colocou um no

chão e um em frente de Oliver. Depois saiu da casa, indo em direção ao celeiro sem dizer nada.

– Se não quiser nos ajudar sem nossas explicações, então nós par‑tiremos agora.

– Esperem! – pediu Joseph, pondo a mão sobre a mesa. – Não preciso saber o que são realmente, apenas me digam uma coisa... Está acontecendo, não está?

Pela primeira vez Oliver não precisou perguntar “O que está acontecendo”, porque se tratava daquilo que Badeck dissera... A Terra estava intervindo no organismo.

– Está – confirmou Badeck.– Era o que eu pensava... – murmurou o chupa‑cabra. – Os ani‑

mais estão nos dizendo isso e os sinais estão por toda a parte. Eu en‑contrei um conhecido há um tempo e ele disse que os animais estão incontroláveis. Eu noto isso com a minha criação, as cabras não querem comer e passam a maior parte do tempo andando de um lado para o outro, perdidas e tristes. A nossa espécie cuida muito bem dos animais, nós os matamos para comer, mas antes disso os criamos até que fiquem

Page 119: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 119 ×

adultos da melhor qualidade. Nossa comunicação com eles é muito boa, portanto é fácil descobrir o que sentem e querem, e eles também fazem isso com facilidade conosco.

“Nós as criamos assim e, ao morrerem, elas ficam agradecidas. Ultimamente os animais estão muito apreensivos, não gostam de apro‑ximações muito rápidas e pressentem coisas inimagináveis.”

Oliver olhava um sulco na mesa de madeira.– Já estava mais do que na hora de acontecer, não é? Toda essa

destruição... Nunca vi algo tão cruel da parte humana.– Não podemos julgar ninguém, ghostgan – retrucou Badeck. –

Precisamos partir agora, não há porque ficar aqui.– Fiquem aqui essa noite, – pediu Joseph – eu os levarei até Porto

Alegre... Eu tinha umas cabras para entregar, até o final do mês, para um amigo que está começando uma criação, portanto se eu chegar antes não haverá problema.

– Não podemos esperar até amanhã – disse Badeck, porém Oliver interveio.

– Nós iremos com você, não há outra forma de chegar em Porto Alegre antes. Vão notar um assassino perambulando por aí e atenção é tudo o que não queremos chamar. Se sairmos agora nós andaremos a noite inteira e não chegaremos a lugar nenhum – ponderou o cavaleiro imutável.

Joseph pareceu um pouco mais tranquilo. Ele não fazia ideia de quem eram aqueles dois, porém sabia que podia confiar neles.

– Tem um quarto vago no andar de cima. Fiquem lá até que ama‑nheça... Nós partiremos antes do nascer do sol.

Oliver assentiu e começou a cutucar o bacon com ovos com o garfo, levando uma pequena porção à boca. Sua cabeça começou a mar‑telar pensamentos estranhos em relação a esse tal de “apocalipse”.

Dormir para Oliver foi fácil, apesar de supor que não conseguiria

fazer isso estando com dois chupa‑cabras na mesma casa. Badeck passou a noite ao seu lado, resmungando hora ou outra, caminhando até a janela para verificar o movimento ou para ver se havia algo errado.

Ao amanhecer, Joseph aguardava‑os na sala com dois potes de comida. Clarina, sua esposa, deixara o café pronto para que comessem durante a viagem e evitassem pausas desnecessárias.

– Estão prontos? – perguntou ele armado com uma espingarda, uma pequena bolsa com dinheiro e uma muda de roupas. Estava com ares de quem enfrentaria uma guerra.

Page 120: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 120 ×

– Quanto menos tempo perdermos, melhor será – confirmou Oliver, recebendo os dois potes de ovos e bacon.

– Me sigam, então.Lá fora um caminhão pequeno com a frente cinza e janelas teladas

no compartimento de carga estava estacionado diante da casa. Clarina colocava a última cabra para dentro do caminhão.

– Está tudo pronto, querido.Joseph abraçou‑a. – Tome cuidado – pediu ela.Oliver olhou de soslaio para Badeck.– E se não encontrarmos o cavaleiro?– Então nós nunca completaremos a nossa missão. Pare de se re‑

moer e comece a agir – respondeu Badeck.O cavaleiro sentiu uma necessidade enorme de bater em Badeck,

mas se conteve. O guia deveria ser o melhor amigo do cavaleiro, não de‑veria? E não um pé‑no‑saco. Agastado, Oliver abriu a porta do caminhão quando Joseph gesticulou para que entrassem e, por pouco, não a bateu na cara de Badeck, apenas para ter o gostinho de vitória.

Joseph acionou o motor, respondendo aos acenos da mulher com a cabeça. Oliver tentou ficar o mais longe possível de Badeck e vice‑ver‑sa. A viagem ia ser longa, cansativa e irritante.

– E então, Oliver, você já foi humano? – perguntou o ghostgan. Os balidos, lá atrás, vez ou outra preenchiam o silêncio constran‑

gedor dentro do veículo.– Sim, já fui. Eu estava fazendo faculdade de advocacia e traba‑

lhando em uma empresa associada. – E como era sua vida? – perguntou Joseph interessado.Oliver pensou um pouco antes de responder. “A minha vida?”

indagou‑se em pensamento, “Foi vergonhosa, irritante e tediosa. Matei meu pai quando menor, não gosto de lembrar do meu passado, enlou‑queci minha mãe, fui morar em um apartamento, trabalhava o dia intei‑ro, não dormia à noite e ainda estudava nas horas vagas. Fim de semana e férias são dois conceitos que nunca conheci...” Oliver perguntou‑se novamente como sua mãe estaria. Estava ansioso para vê‑la.

– Não foi uma das melhores, – respondeu ele finalmente – mas foi o que eu consegui fazer.

Joseph notou que o estranho ao seu lado não queria conversar.Duas horas depois, fizeram uma parada quando o veículo ainda

não chegara à interestadual. Segundo Joseph, eles apenas alcançariam a estrada quatro horas mais tarde e ainda levariam dez horas para entrar em Porto Alegre, isso se o trânsito estivesse acessível. Provavelmente só estariam na capital por volta das nove horas da noite. Oliver tinha mi‑lhares de dúvidas e pensamentos ricocheteando como tiros em sua men‑te. Badeck olhava constantemente através da janela ou deitava e dormia.

Page 121: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 121 ×

Joseph se contentava apenas em ouvir música, assoviar, às vezes, e parar para conferir como estavam suas cabras no compartimento.

Nesse instante Oliver também saiu, ignorando os chiados do rá‑dio (que ligara sozinho). Badeck parecia não percebê‑los.

– Mayday... – dizia a voz entre chiados.Perto das duas horas da tarde, nuvens negras começaram a cobrir

o horizonte. Raios cruzavam o alto e estouravam na mata próxima, tra‑zendo consigo uma forte chuva de granizo.

– Vamos ter que parar... – disse Joseph receoso. – Essa chuva de granizo está muito forte e eu não consigo enxergar nada. Se continuar assim o vidro da frente pode quebrar.

Um granizo trincou o para‑brisa, preocupando o trio dentro do veículo. As cabras lá atrás ficavam nervosas e gritavam frequentemente, batendo umas nas outras ao tentarem se mover.

– Badeck, consegue arranjar um abrigo? – perguntou Oliver, fe‑chando a janela quando um granizo entrou e bateu contra o banco.

O guia demorou um pouco para responder. – Eu não sei se devo usar meus dons. Podemos atrair os inimigos.– Não pense! Apenas faça – pediu Oliver preocupado. Badeck soltou um rosnado curto.– Tem um posto de gasolina abandonado a um quilômetro daqui,

mas não creio que seja certo pararmos agora! Nós estamos com pressa.– Você ouviu, Joseph, vamos parar nesse posto abandonado. Não

podemos correr o risco de perder a viagem.Menos de cinco minutos depois, o carro estacionava no posto

abandonado. Uma loja estava lacrada com tábuas e pedaços de papelão; pó e terra manchavam as paredes. Os granizos batiam com intensidade sobre o teto. O ghostgan desceu do veículo e correu para a parte traseira, abrindo as portas e conferindo a sanidade das cabras. Joseph estendeu a mão para tocar uma, que acabou por recuar até misturar‑se com as outras sete que ocupavam o espaço.

Oliver desceu acompanhado de Badeck. A neblina impedia a visi‑bilidade. O movimento estava parado na estrada.

– Eu não estou gostando disso, Oliver. Eles podem nos localizar.– Ninguém vai saber de nossa localização, porque não tem nin‑

guém nos perseguindo! – retrucou Oliver para Badeck. – Nós estamos num posto abandonado! Não nos acharão aqui!

– Está escuro, não acham? – Joseph interrompia a discussão. – Os animais estão com medo e não é por causa da tempestade.

O cão discordou. – Deve ser o barulho do granizo. Oliver deixou os dois conversando e deu‑lhes as costas. Cami‑

nhou até o limite da proteção que o posto permitia ter. Uma pedra do tamanho de uma bola de tênis caiu próximo a Oliver.

Page 122: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 122 ×

– Tem algo de errado... Eu sinto que há – comentou, abaixando‑se para apanhar o granizo.

Seus dedos fecharam‑se em volta da pedra gelada e, no mesmo instante, um pressentimento terrível assolou‑o. No segundo seguinte, a chuva e o granizo cessou, o céu clareou um pouco e a vida ao redor de Oliver silenciou. O clima úmido pós‑chuva pairou no ar acompanhado de um cheiro agradável. O caminhão, Joseph e Badeck haviam sumido. Tinha a sensação de que era a única alma viva naquele momento.

Mas estava enganado. Na estrada, mais adiante, dez pessoas, divi‑didas em cinco para cada lado da pista, estavam paradas no acostamento, olhando fixamente para o alto.

“Quem são eles?” questionou‑se Oliver, esquecendo da ausência de Badeck e Joseph. Instigado a descobrir, ele partiu em direção a elas. Eram ao todo três homens, cinco mulheres e dois meninos. À medida que se aproximava do grupo, crescia a sensação de vazio e solidão.

– Com licença! – gritou Oliver.Agora, de perto, era possível ver que eles trajavam roupas de co‑

loração branca ou preta. Inclusive a tonalidade da pele não apresentava aparência de viva, beirando uma coloração cinza. “Que tipo de gente é essa?” perguntou Oliver novamente. Pigarreou a garganta e chamou‑os mais uma vez.

Ninguém lhe deu atenção a princípio, mas quando Oliver pensou em ir embora, um homem de aparência jovem virou o rosto na direção do cavaleiro. O estranho era inexpressivo, os olhos cinzentos vagos e um aspecto de lentidão em todos os movimentos. O rosto era como qualquer outro que você veria na rua, não chamaria a atenção.

– Por que estão parados assim? – perguntou Oliver, aproximan‑do‑se um pouco.

– Estamos admirando o futuro, – disse o homem com uma voz apagada – nós podemos vê‑lo melhor do que qualquer outro.

– Futuro? – indagou Oliver. As nuvens cinzentas estavam imóveis no céu. – Não tem nada ali!

– Olhe atentamente... – disse uma mulher idosa do outro lado da rua. – Nós queremos lhe mostrar algo importante.

– Mas quem são vocês? – insistiu Oliver.– Apenas olhe – censurou um garotinho na mesma fileira que o

rapaz pálido.Oliver ergueu o rosto e observou as nuvens tediosas. – O que você verá será o princípio do fim, Oliver – explicou a

mulher idosa. – O principio da destruição terrena e do espírito. – O apocalipse? – questionou Oliver imóvel. – Não apenas isso – repreendeu outra mulher. – O apocalipse dos

apocalipses!– E o que acontecerá?

Page 123: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 123 ×

– A destruição, mas nós não podemos lhe contar tudo, ou de nada adiantará a existência do futuro. Porém você deve saber a primeira das profecias... – explicou a velha.

– Profecia? – Oliver esfregou a nuca que doía de tanto olhar para cima.

Dessa vez quem falou foi um homem com voz potente. – “O céu é a passagem para a destruição. Elas não serão aliadas ou

inimigas, mas trarão consigo a vingança milenar. Nenhuma arma é mais poderosa do que a que brotar do chão, nenhum ódio é mais intenso do que o ódio dos que virão do alto e nenhuma dor será mais dolorosa do que a dos condenados. Não haverá para onde fugir nem se esconder, a única saída será o campo sanguinário. E o tempo não será piedoso. Você precisará deles... Em seus peitos não há coração e nem vida, porém em suas mentes estará o fim... E é a solução, ah... A solução para achá‑los... Ela está tão perto e, ao mesmo tempo, longe demais; é tão alcançável, porém é quase impossível palpá‑la. E as fendas... Elas é que condenarão a vida à eterna morte.”

As pupilas de Oliver dilataram. Lá no alto, exatamente no centro do céu, um ponto negro surgiu e aumentou de tamanho, afastando as nuvens de seu caminho e tomando um gigantesco espaço. Seu interior tinha um brilho amarelado, porém se olhasse atentamente, não havia nada lá dentro senão o perfeito vazio. Oliver sentiu um terror profun‑do... Experimentou uma dor tão intensa que mal pôde ficar de pé. Os dez mortos fecharam os olhos e abriram os braços, permitindo que a energia os envolvesse.

– Não conte a ninguém... Espere o momento certo. Tudo ao seu tempo, cavaleiro. Você saberá a hora... – disse a velha.

Oliver jamais esqueceria aquele momento... A dor estava cravan‑do em sua mente as palavras da profecia para sempre. Largou o granizo que segurava e no instante seguinte uma buzina estourou em seu ouvido direito e um vulto pesado jogou Oliver para o acostamento da estrada. Um carro preto passou velozmente onde o cavaleiro estivera parado anteriormente.

– O que está fazendo? – rugiu Badeck parado sobre Oliver.Joseph vinha correndo em passos desajeitados.– Rapaz! Por que você fez aquilo?O céu, agora nublado como antes, livre de chuva, não tinha nada

de anormal. As palavras dos mortos ainda ecoavam em sua mente. – Aquilo o quê?– Você saiu andando em plena chuva para o meio da estrada! Se

Badeck não tivesse corrido e te empurrado, você estaria amassadinho no asfalto agora! – exclamou o Ghostgan. – O que aconteceu?

– Eu... Eu não sei! – mentiu Oliver. A mulher dissera para esperar o momento certo... – Vejam, a chuva parou.

Page 124: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 124 ×

– Sim, ela parou mesmo... Podemos continuar – disse Joseph.– Nunca mais faça isso! – esbravejou Badeck, latindo ferozmente.

– Morrer agora seria uma perda de tempo!– A chuva parou, vamos continuar – retrucou Oliver, pondo‑se

de pé. Badeck olhou desconfiado para Oliver; podia ler seus pensamen‑

tos se quisesse, mas respeitou sua individualidade. Instantes depois o caminhão voltava para a estrada.

Page 125: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 125 ×

Capitulo 10 Caninos Pontiagudos

O caminhão estacionou na esquina de uma rua sem saída. O lugar abandonado garantia a Oliver que saísse do veículo, de forma ilesa e des‑percebida. Durante o restante da viagem, guia e cavaleiro se ignoraram.

Oliver não conseguiu parar de pensar na previsão que tivera du‑rante a parada no posto de gasolina. O cavaleiro havia percebido o es‑forço de Badeck em não ler sua mente. Joseph abaixou a janela de vidro e olhou para a dupla já fora do carro.

– Vocês querem mesmo ficar aqui?– Sim – respondeu Oliver. – Tenho uma amiga que mora nas re‑

dondezas.– Tudo bem então.Badeck gesticulou com o focinho.– Agradecemos pela carona, foi muito útil. – Sem você estaríamos ferrados agora! – acrescentou Oliver em

um tom infantil ao sorrir agradecido. – De qualquer jeito, obrigado.– Não há de que – disse Joseph, sorrindo de volta.O ghostgan assentiu, acionou o caminhão e tomou a rua deserta.

Oliver e Badeck sequer trocaram palavras.

Animada, Anne entrou na casa, pois durante o mês de fevereiro trabalhava menos. Trancou a porta, largando a bolsa sobre a mesa da en‑trada. A casa era simples, tinha uma cozinha, sala e dois quartos. Anne ouviu o barulho de talheres e pratos na cozinha enquanto lavava as mãos no lavabo. Eram nove horas da noite e não deveria haver gente em casa.

– Fábio? É você? – perguntou ela em alto e bom tom.Não obteve resposta; seu marido não chegava àquela hora em

casa. Apenas depois das onze, e ainda faltavam duas horas.– Quem está aí?Ela observava através do espelho enquanto vasculhava a gaveta do

Page 126: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 126 ×

lavabo, tendo a impressão de ver um vulto passar velozmente pela porta. Virou‑se armada de um canivete.

– Anne? – A voz desconhecida veio do lado de fora do lavabo.Oliver esticou o pescoço para olhar a mulher com alegria. – Anne! – exclamou ele, abrindo os braços e surgindo de corpo

inteiro, esperando um abraço. – Que saudade!A amiga não reagiu e nem veio ao seu encontro, pelo contrário,

apavorou‑se a ponto de apontar a lâmina para ele.– Saia da minha casa! – ordenou ela, desferindo canivetadas no ar.Oliver recuou. Depois, apontou para si, sorridente.– Do que você esta falando? Sou eu! – Desista, Oliver, olhe para o espelho – desdenhou Badeck, dei‑

tando no tapete branco da entrada.Anne ouviu o rosnado vindo da entrada. O cão, deitado no tapete

peludo e macio, ignorou o comportamento dela. Confusa, Anne apon‑tava o canivete ora para Oliver e ora para o cão.

– Eu vou chamar a polícia se não sair de minha casa! – bradou ela, avançando com a arma para cima de Oliver.

O cavaleiro obedeceu ao pedido de Badeck. Por um momento esquecera que não era mais “Oliver”. Suspirou diante de seu reflexo.

– Anne, – pediu ele – preciso que me ouça e me entenda!– E por que eu faria isso? – indagou Anne, mantendo a pose de

valente. Oliver gostava de ver como ela era forte. – Saia já de minha casa!– Porque eu sou Oliver! E não aponte isso para mim – defendeu‑se

ele, desferindo uma tapa na mão dela. O canivete caiu perto de Badeck. Anne puxou a mão para si. Encostou‑se na parede fria, demons‑

trando o receio dessa vez.– Você está me achando com cara de idiota? – perguntou Anne,

fuzilando Oliver com o olhar. – O que você quer de mim?– Mas sou eu, Oliver! O‑l‑i‑v‑e‑r! Eu preciso de sua ajuda! Se

você acha que está confusa, imagine eu! Acha que eu queria isso?– Olhe, eu não conheço você... – Anne aproximava‑se lentamente

da cozinha. – E você provavelmente está me confundindo com alguém. Oliver desapareceu...

Oliver calou‑se. O que Shafa teria feito com seu corpo? Fugido? Ficou em silêncio por segundos.

– Mister Sol, por que não vai embora? Mister Sol, deixe a lua chegar. Ela traz como convidadas as estrelas contadoras de histórias, que brilham em nossa janela até que possamos adormecer – Oliver entoou a canção de ninar um pouco rouco. Aquela era a história que Anne cantava para que a mãe dele se acalmasse quando tinha psicoses.

Anne parou repentinamente, encarando Oliver de olhos arregala‑dos. De certa forma a canção surtiu algum efeito nela.

– Como você sabe...?

Page 127: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 127 ×

– Eu já disse que precisa confiar em mim! – suplicou ele sem sa‑ber o que fazer. – Você me dizia que cantava essa canção para fazer suas irmãs dormirem. Que a primeira vez que a ouviu, foi quando caminhava perdida costeando o Guaíba. Uma senhora cantou para que você parasse de chorar. E depois você cantou para minha mãe!

Anne continuou espantada, porém, diferente do que Oliver pen‑sava, ela se jogou sobre ele e soqueou‑o no peito.

– O que você fez com Oliver? – questionou ela, chorando. – O que você fez com ele? Você o matou para que fizesse isso? Você é o as‑sassino do jornal, não é?

– Anne! – Oliver a segurou pelos braços para afastá‑la. – Eu já disse que sou Oliver! Se eu lhe explicar, jamais vai entender. Sabe aquele favor que você me deve por ter escondido o fato de que você perdeu sua sobrinha no supermercado? Vou precisar que você me pague agora.

– Ora, como você...– Que insistente! Eu sei que é difícil de acreditar, mas você vai

ter que se esforçar – alterou‑se Oliver, sem saber mais o que fazer. Foi então que se lembrou de algo. – Espere aqui.

Assim que disse isso, Oliver correu para a sala e Anne correu para a cozinha. Apanhou o telefone, digitou o número para chamar a polícia e aguardou. Badeck surgiu na porta

– Polícia... Polícia... – gemeu ela baixinho. A mulher da emergência atendeu, disse algo que Anne nem pres‑

tou atenção.– Tem um homem aqui, eu não sei quem ele é... Por favor, me

ajude! – suplicou Anne, apavorada.– A senhora terá que me passar seu endereço – informou a mulher

do outro lado da linha. – Essa prova você não tem como negar.Anne respondeu baixinho. Colocou o telefone no gancho, no

exato momento em que Oliver voltava com um livro na mão. Era uma “Bíblia Sagrada”.

– Acho que você vai se lembrar disso agora – comentou Oliver, abrindo a bíblia e estendendo para ela.

Trêmula, a mulher apanhou a Bíblia. Preso às páginas um pequeno papel velho e dobrado quase caiu.

– Lembra? Eu escrevi isso para você logo depois que começou a cuidar de minha mãe. Foi a minha primeira cantada, inclusive fui eu que comprei essa Bíblia. Eu achei que você tivesse posto fora, mas quando eu vim aqui na última vez lembrei de tê‑la visto na prateleira. Nós passa‑mos por uma banca e você gostou dessa bíblia porque o título é em azul.

– Você... – Anne tentou falar, mas a voz não saiu. – Sua amiga Anne chamou a polícia – disse Badeck.– Ela não faria isso! – falou Oliver. Sua esperança morreu na hora.

Page 128: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 128 ×

– Acabou de ligar e teremos que fugir – desdenhou Badeck. – Anne! Por que você chamou a polícia? – Oliver, sem reação, foi

surpreendido com um abraço dela.– Oliver! – choramingou ela, abraçando‑o com força. – Eu não sei

o que aconteceu, mas eu sei... Eu sei que é você. Eu senti, mas não pude acreditar! É loucura demais!

Oliver ficou um tempo com os braços abertos, até que fechasse os braços ao redor ela. Teria que explicar tudo, lembrar de tudo o que passara para que ela o confortasse. Ela era a sua única amiga no final das contas, sua única chance.

– Oliver... – ela disse com a voz apagada.Foi como se a felicidade de reencontrar o amigo desmoronasse.– O que foi? – perguntou ele, afastando‑se um pouco para enca‑

rá‑la. Por um triz... – Sinto muito, Oliver... Desde que você sumiu... Desde que...

Enfim, aconteceu, eu venho pensando em como te contar isso quando você voltasse. – E antes que ele perguntasse, Anne prosseguiu: – Sua mãe... Ela... Ela morreu. Vai fazer dois meses e dez dias amanhã. Eu... Eu fiz tudo direito, mas... Um dia antes de ela se matar, disse que sua presença não era mais necessária a ninguém. E então...

Oliver ficou inexpressivo.– Ela se matou?– Eu a encontrei. Ela ingeriu uma overdose de seus próprios re‑

médios. Sinto muito, eu deveria ter feito algo. Mas... sua mãe parecia fe‑liz. Ela estava abraçada em uma foto sua e de seu pai. Eu usei o dinheiro que deixou no apartamento para cuidar dela durante esse tempo.

– Oliver, a polícia – falou Badeck, voltando às orelhas para a porta. – Não se preocupe – Apesar de ela não ouvir o cão, aquilo tinha

parecido mais uma leitura de pensamento. – Eu chamei a polícia, espere aqui que eu vou mandá‑los embora. Meu Deus, Oliver! Sente um pou‑co, por favor, você está ficando branco.

E secando as lágrimas, Anne seguiu para a entrada quando ouviu as batidas. Respirou fundo, recompondo‑se e abriu a porta, pondo o rosto para fora. Ela tentou desconversar os dois policiais e, enquanto isso, Oliver administrava a raiva. Imóvel feito uma estátua, o ex‑huma‑no processou e reprocessou a informação que acabara de receber.

– Escute um pouco, senhora... – disse o policial do outro lado da porta. Sua voz soava clara. – Vicente Bowager, o soldado condenado por assassinato de trinta e cinco arianos, foi morto há um tempo, mas há um dia seu corpo está desaparecido. O vídeo do necrotério mostra‑o dei‑xando o IML... Antes do seu chamado, recebemos uma ligação de uma senhora que disse ter visto Vicente por essas redondezas. Se vir algo, qualquer coisa, fora do normal... Não hesite em nos ligar.

Anne concordou enquanto via‑os se afastarem . Quando a mu‑

Page 129: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 129 ×

lher fechou a porta, teve a impressão de que o amigo explodiria.– Oliver – Anne tentou abraçá‑lo, mas ele se desvencilhou. – Minha mãe...– Eu tentei Oliver...– Eu a abandonei, mas não tive escolha... Eu tento ajudar esse

mundo medíocre e é isso que eu ganho em troca? – O tom de Oliver aumentava. – É isso que planejam pra mim, Badeck?

O cão observava Oliver com serenidade.– É isso que o oráculo desgraçado queria para mim? – perguntou

Oliver, cujas lágrimas escorriam abundantes dos olhos. – É ISSO QUE SE GANHA?

– O que você acha que se ganha quando se é um cavaleiro? – iro‑nizou Badeck. – Não temos tempo para isso, aceite seu fardo.

– Cale a boca! – Oliver foi ríspido nas palavras. – Eu não tive es‑colha! Fui enganado e traído por seres como você.

O cavaleiro caminhou em direção à saída da casa, situada na co‑zinha, ignorando os chamados de Anne. Quando fez menção de abrir a porta, Oliver sentiu algo bater em suas costas. Bateu contra a porta, desequilibrou e foi ao chão de bruços. Virou de barriga para cima, cho‑ramingando de dor quando Badeck saltou sobre ele e cravou suas garras afiadas em sua pele. O cão tocava o nariz de Oliver com a boca.

– Você tem uma tarefa a cumprir – rugiu Badeck, enraivecido.Oliver tremia da cabeça aos pés.– Você pensa que pode escolher, pensa que pode largar tudo, mas

está errado. Eu vou acabar com a sua raça, persegui‑lo, matá‑lo quantas vezes for preciso para que cumpra a bendita missão, cavaleiro. Eu, como guia, não devo permitir que se desvie daquilo a que foi incumbido.

A saliva de Badeck pingava nas bochechas de Oliver.– Nada mais importa para você agora, nada além do que deve fa‑

zer. Vai se levantar e ir para sua casa, pegar o que deve pegar e nós iremos para onde devemos ir. Fui claro? A polícia já sabe que estamos aqui!

As garras de Badeck cortavam‑no. A energia do guia era tão forte que turvava a visão de Oliver.

– Fui claro? – repetiu ele, latindo grosseiramente.– S‑sim, – gaguejou Oliver – está bem!Badeck saiu de cima do cavaleiro. Oliver postou‑se de pé e passou

as mãos nas vestes. A mulher observava temerosa da porta da cozinha.– Eu devo ir agora... A polícia está atrás desse corpo. Se me pega‑

rem não terei como continuar meu caminho...– Oliver... – murmurou ela.– Eu sei que você fez tudo para cuidar de minha mãe e eu gostaria

de poder contar tudo a você, mas não tenho tempo.Ela deu‑lhe as costas, foi para o quarto e voltou instante depois,

carregando um molho de chaves.

Page 130: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 130 ×

– São as chaves de sua casa. Não tem nada funcionando por lá... O dinheiro que tinha foi suficiente para pagar tudo enquanto ela estava viva... Depois que se matou, não restava quase nada.

– Anne? – perguntou uma terceira voz.A atenção foi para o homem de cabelos engomados, camisa pólo

e calças cáqui. Seus olhos faiscavam por baixo dos óculos. Oliver reco‑nheceu‑o imediatamente: era o noivo de Anne, um homem desprezível por desejar que ela largasse os estudos e o emprego.

– F‑Fábio – gaguejou ela, surpresa.– Quem é esse? E o que esse cachorro tá fazendo aqui? – questio‑

nou ele, franzindo as sobrancelhas claras de um jeito afetado.– É apenas um amigo – respondeu Anne. – Ele já...– Estou indo embora. Desculpe o inconveniente... Ainda arranja‑

rei uma forma de agradecer pelos cuidados à minha mãe.Oliver abriu a porta, deixou o cão passar e olhou agradecido uma

última vez para a amiga. Lançou um olhar odioso para Fábio e saiu.

Do alto do prédio, as íris vermelhas da criatura acompanharam o humano e o cão descendo a rua. Com a audição aguçada, podia escutar até a mínima batida de um coração. Os aromas noturnos entravam por suas narinas, transmitindo impulsos nervosos para o cérebro. Inquieta, fitou os outros companheiros ocultos pelas sombras. Sabia que os par‑ceiros queriam o mesmo; comer até que sua garganta esquentasse com o sangue humano. Ansiosa, mergulhou nas sombras ocultas dos prédios.

Apressados, cavaleiro e guia seguiam silenciosos pela rua. A rua parecia viva, como se tivesse um par de olhos em cada janela.

Oliver pôs as mãos nos bolsos, insatisfeito. O sereno gelava seu corpo. As lágrimas haviam cessado, e mesmo que a dor gritasse dentro de si, nada fez além de rumar, rapidamente, para sua antiga casa.

A brisa fria ardia nos pulmões e nas bochechas de Oliver. Nunca fizera tamanho frio no mês de fevereiro em Porto Alegre. Segundo um jornal local, que Oliver leu enquanto esperava Anne chegar em casa, as temperaturas mudavam radicalmente. O verão resumia‑se em dias escal‑dantes e noites gélidas, e o inverno, em frio contínuo. O aquecimento global também destruía as reservas ecológicas. Seria possível que o ser humano não enxergasse nada além de si mesmo? Dobrando a esquina, Badeck farejou o ar.

Oliver parou quando ouviu um chiado. Virou‑se para a loja, em cuja vitrine uma televisão de vinte e quatro polegadas era exibida. A tela estava chuviscada. O zumbido preencheu seu ouvido direito no‑vamente, e um rosto surgiu na tela. O homem tinha os cabelos ralos, o

Page 131: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 131 ×

rosto redondo e trajava a vestimenta de um piloto. Atrás dele, o painel de controle do avião. A imagem falhava e estava parcialmente borrada.

– Fomos... – A gravação cortava de instantes em instantes, dei‑xando algumas frases sem nexo. O terror e a pressa do homem eviden‑ciavam‑se. – ...strados... les estão aqui. Nã... ei a nossa localiz... ção. Par... Parecem mi... as... ina Cárv... ris... quilômetros.

A imagem congelou no instante em que um homem vestido de preto, com o rosto coberto pelos chuviscos da televisão, entrou e apon‑tou a arma para a cabeça do piloto.

O chiado emudeceu. A televisão estava desligada.– Precisamos conversar, Oliver.– A respeito? – Oliver manteve o pensamento fixo no piloto.– Da sua função. – O faro aguçado do animal informava a apro‑

ximação de perigo. – Antes de fazer qualquer outra coisa, precisamos encontrar uma pessoa.

– “Uma pessoa?” – repetiu Oliver, estranhando. Até pelo que sa‑bia apenas fantasmas e derivados conheciam a respeito da Terra‑Inversa.

– Acolhedor. Ele lhe explicará coisas que eu não posso. Oliver arrepiou‑se da cabeça aos pés. O dom do reflexo aguçado

ativou‑se instintivamente, e o cavaleiro pôde mover‑se precipitadamen‑te. Num relance, agarrou Badeck e puxou‑o para si, salvando‑o de uma adaga que passara a centímetros da sua cabeça. A lâmina perfurou o as‑falto, tinindo. Surpreso, ele viu de relance um vulto saltar de um prédio a outro. O guia rosnou.

– Vamos correr!Oliver soltou‑o, mantendo sua atenção no alto enquanto corria. – O que são?– Morphes. Vulgos vampiros na língua humana – informou‑lhe o

cão. “Que péssima hora para aparecerem”, emendou em pensamento.Três sombras voaram do prédio da esquerda para o da direita. – Eu deveria ter adivinhado. Se existem lobisomens, por que não,

vampiros? Droga! Caímos numa armadilha! – arfou Oliver dobrando a esquina, ouvindo o zunido das adagas passarem rente a eles.

O final da rua sem saída era o fim da linha para os dois. O suor brotava de sua testa, pingando na blusa clara. Cinco silhuetas que do‑bravam a esquina, vinham em sua direção. Virou‑se, pois Badeck já não apresentava as feições de bom cão; adquiria, agora, traços agigantados e demoníacos. Os dentes alongaram‑se, roçando o lábio inferior. Os pelos negros abundantes espalharam‑se, realçando os músculos articu‑lados das pernas dotadas de patas pesadas e garras afiadas. Oliver se assustou com a mutação do companheiro.

A vampira líder, cujo nome era Aura, parou a uma distância se‑gura. Até o momento, ela era uma mulher de cabelos negros e curtos, espalhados de forma rebelde sobre o topo da cabeça, corpo escultural e

Page 132: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 132 ×

face angelical. Trajava um vestido negro justo e de couro.– Rapazes, encontrar este cavaleiro e seu guia foi mais fácil do

que parece – Apesar de ousada, sua voz era tão doce que acariciava os tímpanos humanos.

– Afastem‑se! – ordenou Badeck. – Como nos encontrou? Quem os enviou atrás de nós?

– Sentimos sua energia há poucos instantes, quando estava na casa de uma humana. Parece que você não sabe controlar muito bem seu humor... – interpôs a líder, lambendo os lábios rubros.

Oliver enxergava bem à noite, melhor do que qualquer humano. As luzes das lojas em volta permitiam ver amplamente os tais vampiros. Tinham estatura de humanos, pele escamosa e dura feito pedra, asas en‑vergadas, que lembravam papel, fechadas nas costas e pequenos chifres pontiagudos na testa. Os rostos demoníacos esbanjavam expressões horrendas e famintas. Nas garras afiadas dos dedos das mãos e dos pés um veneno fatal trazia a morte. Sem contar que os caninos repousavam nas bocas fétidas, esperando a hora de morder a carne macia e atrativa dos humanos para sorve‑lhes o sangue. Badeck rosnou de raiva; como pudera ser tão descontrolado? A culpa dos inimigos estarem ali era sua. Se a morphe pegasse Badeck, Oliver não teria nenhuma chance. Do te‑lhado do prédio, um vampiro curioso observava o ataque.

– Aura, matamos eles logo! Embora sejam mais fracos em Terra, não podemos dar‑lhes a chance de pensarem em algo – disse‑lhe um dos vampiros mais fortes, de escamas negras e mandíbula que se sobrepunha à arcada superior.

Ela desenhou um sorriso no rosto.– Isso, como você sabe, já está nos planos.Aura expôs os caninos sujos de sangue de vítimas passadas. Seus

olhos castanhos avermelhados analisavam Oliver. Diferente dos outros, ela mantinha a forma humana de corpo sensual e andar encantador. Se ainda fossem um ou dois, mas eram seis vampiros contra o cavaleiro e Badeck. Ainda mais, o cavaleiro não sabia o que as feras eram capazes de fazer. Super força? Cicatrização rápida? Agilidade extrema? Bade‑ck lutaria para defendê‑lo mesmo custando‑lhe o Mantra, mas Oliver, como bom cavaleiro, deveria defendê‑lo igualmente. Só de ver as cinco criaturas avançando contra os dois assombrava‑lhe a consciência. Oliver via‑se num beco sem saída. Morreria sem encontrar nem o segundo ca‑valeiro? Ou ao menos matar algum ser usurpador, malcheiroso e idiota? Repentinamente, algo frio tocou suas costas, por baixo da blusa. Algo pesado enroscou‑se no seu peito, apertando‑o. Por um momento ele imaginou que fosse algum ataque inimigo. Tateando receoso o objeto frio, cortou o dedo em uma ponta afiada. Discretamente, alisou o metal frio. Banhado por um jato de esperança, ele sorriu timidamente.

– Espere! – exclamou Oliver, estendendo a mão a tempo de impe‑

Page 133: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 133 ×

dir de ser trucidado pelos vampiros. – Vocês estão nos subestimando... Não sou um cavaleiro qualquer, estou aqui com um propósito.

Os vampiros entreolharam‑se em dúvida. – Do que está falando? – Aura tinha um tom de receio na voz. Badeck, que estava à frente de Oliver, olhou discretamente para

trás, buscando uma boa explicação.– Fuja enquanto eu os pego! – balbuciou o guia, preocupado com

o estado de sanidade de Oliver.– Peço que confie em mim – pediu‑lhe o cavaleiro, sorrindo con‑

fiante. – E voltou a olhar para as criaturas. – Se você nos matar, estará acabando com o mundo! Estamos aqui para defendê‑lo!

– Você está falando do apocalipse? – perguntou ela assombrada.– Todos sabem que ele irá acontecer. Se fizer algo contra nós,

estará fazendo algo contra vocês e o mundo! – disse Oliver misterioso. – Aura! Não acredite nesse imbecil! Acabe logo com ele! Nin‑

guém tão fraco quanto ele seria escolhido para uma missão dessas – aler‑tou outra vampira, de cabelos louros e pele esverdeada.

– Então, Aura, – Oliver falou com tal intensidade desafiadora que a atordoou – ainda quer nos matar e acabar com as poucas chances de sobrevivência de todos?

– Farsante. Você não passa de um imundo farsante! – bradou ela, puxando uma adaga do cinturão.

Oliver adiantou a mão até acima do ombro, preparando para apa‑nhar algo. Aura utilizou‑se de seu reflexo sobre humano e atirou‑lhe a adaga na mão, acertando‑a em cheio e prendendo‑a contra o ombro. Ele engoliu a dor enquanto o sangue vertia da mão ferida, forçando uma expressão de pânico e recuando alguns passos. Irada, Aura avançou, de‑sembainhando um longo punhal da cintura.

Do alto do prédio, a criatura que observava o embate não avistava nenhum outro inimigo por perto. Seus olhos, que via à noite como dia, miraram a outra mão de Oliver, que seguia lentamente até um pouco abaixo da cintura. Dentre sua blusa, algo cintilante apareceu.

– Uma armadilha! – exclamou o vigia, saltando do prédio.Badeck e os outros vampiros viram tudo. Aura passara pelo cão

e preparava‑se para esmurrar Oliver, que apanhava o cabo da espada, presa em diagonal, por baixo da sua blusa. Desembainhou‑a confiante, desejando defender sua missão. Os instintos do possuidor afloravam. A ponta afiada da arma sulcou o chão para completar a meia circunferên‑cia. A vampira estava tão alucinada em atacá‑lo, visando‑lhe o abdômen, que mal percebera a lâmina. Porém, o vampiro vigilante tocou suave‑mente o chão com os pés ao término do salto e ficou de pé, segurando a líder num abraço. A espada era tão fina e afiada que o vigia mal a sentira, cortando‑o em dois. O cavaleiro terminou o ataque, puxando com dor a mão presa no próprio ombro pela adaga.

Page 134: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 134 ×

Se tivesse acertado a líder ao invés do vampiro menos importante, teria um impacto maior. A bela espada, cravejada de pedras preciosas, ainda carregava no cabo, em uma das pedras afiadas e vermelhas, o san‑gue do dedo cortado anteriormente. Finalmente Kale havia lhe dado algo útil para sua sobrevivência. Aura segurou o parceiro nos braços, vendo‑o transformar‑se em cinzas diante de seus olhos.

– Não! – grunhiu ela. Aura ergueu os olhos, queimando de ódio para Oliver. Receoso,

Badeck alternava o olhar da espada para Oliver e depois para a vampira. Já Oliver estava confiante, forças tanto físicas como mentais inundavam cada centelha celular de seu corpo. Manusear a espada habilmente vinha de lembranças guardadas no interior de sua mente, uma lembrança que não era sua e, ao mesmo tempo, era. Ele empunhou a arma com as duas mãos. Sabia que a espada lhe diria, como um guia, a melhor maneira de trucidar cada um dos seus inimigos.

– Vamos lá! É só isso que sabem fazer? – retrucou Oliver.– Marquem‑no bem! – rosnou Aura, ameaçadora. – Porque vamos

voltar e acabar com ele! – Não! Não podemos temer a raça humana dessa forma! – irri‑

tou‑se o vampiro negro grandalhão. – E o que nosso mestre pensará?– Vamos embora! Não é a ele que tememos, seu idiota – corri‑

giu‑o Aura. – Posso sentir os cavaleiros do Chamado muito perto! Eles sim podem acabar conosco!

– Oliver, – chamou‑lhe Badeck – use a espada para nos tirar daqui. Não podemos ser pegos pelos cavaleiros do Chamado! Nós somos mais fracos que eles no momento... Não seremos capazes de nos defender enquanto estivermos em Terra. E é melhor que eles não saibam como nos encontrar!

“Usar a espada para nos tirar daqui?” repetiu mentalmente, ana‑lisando a arma fria. Se perguntasse como fazer, Badeck iria pensar no‑vamente que ele era fraco. E os vampiros também. Oliver continuaria confiando nos instintos. Cravando a espada no chão, pôs uma mão ape‑nas sobre o cabo, medindo os inimigos.

– Nos leve até Acolhedor.Dos postes, a luz projetava a sombra da espada e a estirava por

baixo das pernas de Oliver. Viva, a sombra aumentou de tamanho, esca‑lando o muro e tomando a forma retangular. Surpreso, o cavaleiro ob‑servou a silhueta na parede sulcada. Lentamente, as pedras cobertas pela sombra ficaram negras, e uma textura de madeira surgia no local áspero. A maçaneta de metal irrompeu da escuridão, instalando‑se no centro da madeira. Em segundos, a estranha porta de madeira velha ocupou o espaço da sombra.

– Corram! – gritou a vampira líder, apontando para o alto do pré‑dio. Oito cavaleiros do Chamado saltavam ao seu encontro.

Page 135: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 135 ×

– Seja o que Deus quiser! – exclamou Oliver, apanhando a espada.Girou a estranha maçaneta e abriu a porta. Lá dentro, havia apenas

a escuridão. Badeck entrou primeiro, depois Oliver. A porta fechou‑se instantaneamente, imergindo nas sombras. Por centímetros, a lâmina da espada do cavaleiro do Chamado não lhe arrancou a cabeça.

Page 136: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 136 ×

Capitulo 11 Acolhedor

Na escuridão, Oliver tropeçou numa saliência. Rolou escada abai‑xo, gemendo toda a vez que batia com a cabeça. Estatelou‑se ao lado de Badeck, enquanto sua espada deslizava tinindo para longe. Sua cabeça latejava com a batida num dos degraus.

– Badeck?Pelo grunhido, concluiu que Badeck também sofrera o mesmo

acidente.Pela enésima vez Oliver bateu a cabeça, dessa vez no teto ao ficar

de pé. Praguejou para todos os lados, alisando o couro cabeludo.Barulho de passos arrastados veio do alto, despertando a curiosi‑

dade de Oliver que, ainda surpreso, buscava enxergar no breu.– Não sei como, mas deixamos os inimigos para trás! – come‑

morou ele, trocando o momento de dúvida por felicidade, apalpando o chão em busca da espada. Encontrou‑a um pouco mais para a direita.

– Eles vão voltar – disse Badeck. Os olhos cintilaram de leve, ilu‑minando a escuridão.

O guia estava de costas para Oliver. Lentamente a visão noturna do cavaleiro retornava.

Os passos cessaram e os rangidos de um alçapão abrindo ecoaram do teto. A escada circular que levava até a abertura foi iluminada pela chama trêmula da tocha. A criatura pôs os olhos amarelados à vista.

– Quem está aí?Oliver não enxergava a criatura com precisão. – Oliver, o líder dos Cavaleiros da Terra‑Inversa, quer encontrar

Acolhedor – disse o cão e colocou‑se nos primeiros degraus metálicos da escadaria.

Soerguendo as sobrancelhas, a criatura abriu completamente a porta do alçapão, chamando‑os com a mão.

– Sigam‑me – pediu a criatura. – Vou levá‑los até lá.Com um estalar de dedos da criatura, seis tochas flutuantes atea‑

ram fogo no porão. Iluminado, o lugar revelou as caixas e objetos pon‑tiagudos tapados por lençóis. O cheiro de mofo vinha das paredes. A

Page 137: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 137 ×

escada em espiral era enferrujada e ocupava o centro do porão.– Apresse‑se – ordenou o cão, já no topo da escada.Oliver segurou o corrimão. Luvas escuras e grossas protegiam

suas mãos. Apalpou‑se, sentindo a armadura metálica de cavaleiro, e também a constante tarja negra nos olhos. Teve dificuldade para passar pela pequena passagem, roçando a cabeça no teto ao ficar de pé. O re‑cinto seguinte era um corredor subterrâneo úmido, também iluminado por tochas flutuantes. Apertou o passo para acompanhar os dois, e en‑tão agora, observava a criatura estranha que vira lá do alto.

Era um monstro baixo e curvo. A cabeça lembrava a de um dra‑gão‑de‑Komodo, mas o tronco era humano. Usava uma armadura de aço polido, um escudo dourado preso em seu braço por tiras de couro surradas e carregava uma tocha na outra mão. Espinhos brotavam do topo da cabeça e seguiam pela cervical até a ponta do curto rabo. A pele escamosa, cinza e opaca, ouriçava‑se na presença dos dois superiores. Oliver optou por esperar uma oportunidade para questionar Badeck.

No final do túnel malcheiroso, a porta enferrujada era adornada por uma cabeça idêntica à do pequeno monstro. Ela ficou imóvel até a aproximação deles, quando acendeu os olhos amarelos assustadores.

– Visitas para Acolhedor – anunciou o monstro, largando a tocha que permaneceu suspensa no ar.

A porta abriu‑se, revelando outro corredor de paredes brancas e assoalho empoeirado. O monstro incomodou‑se na presença da luz mais forte, parando na porta.

– Acolhedor está no final do corredor, aguardando‑os. Tendo a porta fechada às suas costas, a dupla estava só novamente.– O que era aquilo, e por que eu estou assim? – Acúmens ou gárgulas, como se chamam na Terra. E você está

assim porque nós estamos em território de Suspensão. Aqui é onde se encontra Acolhedor, um dos cavaleiros mais antigos da Terra‑Inversa. Estamos numa zona intermediária. É um meio‑termo entre a Terra‑In‑versa e a Terra, se é que me entende – explicou Badeck.

– E o tempo? – preocupou‑se Oliver. – Ainda assim estamos numa parte da Terra‑Inversa, onde o tempo corre mais rápido!

– Aqui não, porque estamos em suspensão. Aqui o tempo nunca muda... – O guia dirigiu‑se para o final do corredor. – Quando um ca‑valeiro completa quinze milênios de trabalho, ele tem direito de aban‑donar o cargo e ganhar um pedaço de terra no Mundo Suspenso, uma região da Terra‑Inversa que é muito próximo à Terra. Aqui o tempo nunca passa. Pode transcorrer o equivalente a anos aqui que nada se altera em nenhuma das Terras.

– Incrível. Além de existir a Terra‑Inversa, tem o Mundo Suspen‑so? As surpresas não param! E olha que tem gente com medo de morrer porque não há nada do outro lado.

Page 138: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 138 ×

O corredor terminava em uma passagem com cortinas vermelhas.– Certo – falou Badeck. – Tenha respeito e porte de cavaleiro.

Você está diante de uma lenda. Este, Oliver, foi o mais terrível de todos os cavaleiros. Antes, Acolhedor era conhecido como Navalha. Cada ci‑catriz que ele tem é uma batalha ganha.

Oliver concordou. Sentiu um receio crescente ao passar pelas cortinas, perguntando‑se o que aconteceria se o ex‑cavaleiro o conside‑rasse inútil demais.

Do outro lado, o enorme ambiente circular denotava simplicida‑de e luxo ao mesmo tempo. Duas fileiras de bancos de carvalho ocupa‑vam metade do lugar, e ainda assim, sobrava espaço na nave. Móveis de qualidade, adornados de joias e ouro, cintilavam. Diante dos bancos, uma cruz de porcelana, carregando a figura de Cristo, identificava o lugar como uma igreja. Cortinas roxas ocultavam os janelões e a porta principal de entrada. No momento, não havia ninguém lá além deles.

– Que lugar incrível! – estranhou Oliver, detendo‑se diante da cruz. – Pelo que eu entendi, um cavaleiro não pode tomar partido. Que espécie de cavaleiro é esse que tem uma igreja?

– Sou do tipo que ajuda – uma voz grave ecoou da entrada.Passando pelas grandes portas de madeira polida, o homem de

dois metros vestia um manto roxo e sorria para eles. Os cabelos cas‑tanhos, longos e ondulados desciam até a cintura. Ele abriu os braços, expondo o corpo forte e coberto por uma armadura peitoral velha e amassada em várias partes. Os braços fortes como toras estavam nus, revelando centenas, se não milhares de pequenas e médias cicatrizes. Nesse momento Oliver pensou que desmaiaria. Seu rosto trazia deze‑nas de marcas. Pela aparência, ultrapassava os quarenta anos de idade. A barba ia até o peito, trançada grosseiramente. Ele possuía um olho verde e outro azul, ambos cortados nas sobrancelhas. Lembrava os antigos guerreiros medievais que lutavam insanamente por horas, e, no final da batalha, carregavam o mapa de vitória no corpo, pintado por sangue alheio. Em cada pedaço seu, as marcas traziam histórias grandiosas.

– Visitas! – exclamou Acolhedor, curvando‑se levemente diante do novo cavaleiro.

Oliver não acreditava que este era o tal “Navalha”. De mau, ele não tinha nada. À primeira vista, aparentava ser assustador. Badeck rea‑lizou uma reverência.

– Badeck, meu velho amigo, – cumprimentou‑o, fraterno – vejo que trazes um novato.

– Oliver – apresentou‑se o cavaleiro, imitando a reverência.– Dispensemos as apresentações demoradas. – Acolhedor estava

curioso. – O que um humilde ex‑cavaleiro pode fazer para os dois?– Percebi que aderiu ao jeito humano de ser – disse o guia em

relação à igreja.

Page 139: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 139 ×

– Achei que, aderindo ao jeito humano, atrairia a confiança das almas. Mas você não veio aqui apenas para elogiar o lugar, veio?

– Não. Precisamos de sua ajuda...Badeck resumiu‑lhe a história. Oliver irritava‑se a cada comen‑

tário ofensivo que Badeck fazia a seu respeito. No final, Acolhedor ria. – Eu não creio que em milênios um grupo desnaturado de cavalei‑

ros pôs a perder todo o trabalho que montamos.– Então, peço que ajude Oliver a entender um pouco da essência

de ser cavaleiro.Acolhedor, devido às cicatrizes, fazia expressões indecifráveis. – A velha fez um bom trabalho, ele não parece ser o que você

disse. Oliver, posso ver sua espada?A contragosto, desembainhou cuidadosamente e entregou a espa‑

da. Acolhedor pegou‑a, alisando a lâmina. Demorou uns segundos para falar, manejando a arma para pesá‑la e testá‑la.

– Nada mal. O cabo dourado servia em todas as mãos que a seguravam.– Uma espada pode ser pega por todos, mas só serve a quem ela

realmente pertence. Segundo Badeck, você a invocou na Terra. Impres‑sionante para um novato e ao mesmo tempo preocupante. Se você fez isso, outros também poderão fazê‑lo. Pela assinatura do ferreiro, essa espada foi forjada há mais de trezentos milhões de anos. Por quantas mãos passou? Milhares. A quantas ela serviu? Pouquíssimas. Seu criador foi Alberon, ferreiro do Vulcão Anagon.

– Vulcão Anagon? – indagou Oliver, sem compreender. – Sim. Cada vulcão da Terra possui um ferreiro. – Acolhedor

apreciou as pedras cravejadas. – Quando um vulcão entra em erupção é porque uma nova arma foi forjada. Antigamente era mais frequente vê‑los ativos, hoje em dia, é raro. Anagon foi o segundo vulcão criado pela terra e, naturalmente, seu ferreiro possui mãos experientes. Nor‑malmente eles também forjam as armaduras e qualquer tipo de arma para quem lhes vier pedir apoio. Anjos, demônios... Cavaleiros. Está vendo as pedras? – ele expôs a espada dos dois lados. – São ao total dez. Cada uma delas simboliza um dos cavaleiros a quem que ela serviu. Esta, no topo da lâmina, simboliza você. – Oliver notara uma pequena pedra vermelha no topo da lâmina. Comparada às outras, era minúscula.

– Isso quer dizer que eu sou fraco? – ofendeu‑se Oliver.– No momento sim. Esta pequena representa o coração da espada

e a força que ela tem. Já vi cavaleiros com pedras que ocupavam toda a lâmina e também já vi cavaleiros que não tinham pedras. À proporção que você ficar mais forte, ela ficará mais saliente. Ser pequena, não quer dizer que seja fraca, mas adormecida. Eu servia junto de um que não tinha pedra porque ele não precisava da força da espada. Mas, no seu caso, logo que esteve em perigo precisou utilizá‑la. – Acolhedor sentou

Page 140: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 140 ×

nos degraus que levavam ao palco, fitando a espada com apreço. – Dei a minha para meu sucessor que a utilizou tão bem quanto eu.

– Por que você não vai direto à explicação de como é ser cavaleiro? Oliver interrompeu Acolhedor tão rudemente, que este se levan‑

tou de imediato. Sua mão enluvada agarrou o pescoço do novato. Mes‑mo com armadura, capa e todos os apetrechos de cavaleiro, Oliver não parecia nada perto do ex‑cavaleiro quando foi içado no ar.

– Respeito na minha presença – ordenou, expressando raiva.O cavaleiro levou os dedos até o pescoço e tentou retirar a úni‑

ca mão com que Acolhedor o segurava, mas não conseguiu mover um dedo. Apavorado e arrependido, procurou a ajuda de Badeck, que nada fizera.

– Esse tipo de comportamento me enoja. Demonstre respeito, cavaleiro, ou não será bem recebido por mim. Não cheguei aqui para ser pisado dessa forma. – A mão grossa apertou‑se no pescoço protegido pela gola, soltando depois.

Humilhado, Oliver caiu.– Ser um cavaleiro não é algo que possa ser explicado como um

produto. Quando você usa a armadura, carrega a capa e a espada, e o mundo nas suas costas. Grandes Cavaleiros já falharam e pequenos ven‑ceram. A partir do momento que perde o seu Mantra de Luz, você não existe mais. Diferentes dos outros seres com alma, que acabam voltando para o lugar de origem, nós sumimos. Viramos “pó”. Somos invencí‑veis? A princípio sim, mas muitos perdem a capacidade nos trabalhos. Controlar outras criaturas significa incumbir‑se de responsabilidades grandiosas. Lembra‑se dos cavaleiros do Chamado? Estes sim são pro‑blemáticos. Quanto mais próximo o apocalipse fica, mais abundantes eles são. Parecem formigas! E se não estão fazendo seu trabalho, certa‑mente estão tramando algo e trazendo problemas para nós.

Acolhedor respirou fundo, acalmando‑se. Estendeu a mão para Oliver, que aceitou a ajuda, temendo outra explosão de raiva.

– Vou lhe explicar resumidamente, o resto você aprenderá exer‑cendo a função. A Terra e a Terra‑Inversa sempre existiram, embora os humanos não saibam nada a respeito da última. A principal função da Terra é buscar a geração racial perfeita, ou seja, aquela que poderá acabar com a guerra que assola a humanidade, desde a manifestação da vida e morte, e encontrar a perfeição: o balanço entre o bem e o mal. Você deve estar se perguntando por que o nome é geração racial se as criaturas são espécies e raças. Pois bem, na Terra‑Inversa, só existe uma definição para raça: a raça dos vivos e a raça dos mortos. Aqueles que têm corpo de carne, e os que não o têm. Por isso, o termo geração “racial”, porque representa toda a evolução da raça viva. A queda e a ascensão de uma espécie. Existiram seis outras gerações raciais antes dos humanos, das quais três são conhecidas por eles: vampiros, dragões e lobisomens. O

Page 141: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 141 ×

apocalipse é o nome dado à extinção de um plano imperfeito. Todas elas já foram dominantes como são agora os humanos e tiveram seus ghost‑gans, mas acabaram exterminadas e destronadas. Alguns seres sobrevi‑veram durante todo esse tempo, escondidos entre os humanos sem que estes os percebessem. Você deve pensar agora em como nunca os viu, e é exatamente aí que os cavaleiros do Chamado entram. Eles controlam as criaturas das gerações passadas para que não interfiram na evolução hu‑mana. Aqueles vampiros que os atacaram na vinda para cá parecem tão humanos... De dia trabalham, convivem e se socializam. À noite, caçam.

“Uma criatura não pode passar diante de um humano sem ex‑terminá‑lo; se não o fizerem os Cavaleiros do Chamado os farejarão como caça. Por isso algumas mortes ou assassinatos são simplesmente inexplicáveis. Todas as provas devem ser destruídas. Se as criaturas fo‑rem fracas, são exterminadas ou, se forem fortes, fogem ou, em casos supremos, lutam. É difícil que vençam, mas aqueles que saem vitoriosos se tornam muito fortes, porque roubam para si o Mantra de Luz. Isso explica as tais lendas, histórias que ninguém jamais comprovou por‑que não viveu para contar. Existem muitas criaturas, mais do que você imagina existirem, vivendo como seus vizinhos ou amigos. O mundo, Oliver, é um livro codificado. Ele precisa apenas de uma palavra‑chave para se abrir: paz. Enquanto não houver paz e, de certa forma, perfeição, a busca pela geração racial perfeita persistirá.

“A espécie humana é imperfeita ao extremo. Nunca vi tamanha desnaturação junta! É a mais fraca de todas, porém a mais destrutiva. Provoque ódio e raiva em um humano e verá do que este será capaz; além de destruir, poluirá o ambiente alheio com o mal.”

Lentamente, Oliver começava a entender a verdade. Explicações de fatos pitorescos inexplicáveis arranjavam suas respostas. Acolhedor dirigiu‑se para uma pequena mesa atrás da cruz, abriu a gaveta e reti‑rou um pergaminho grosso. Curvou‑se e abriu‑o. Oliver guiou os olhos curiosos para as imagens. Havia uma grande cruz e sete criaturas pos‑tadas uma ao lado da outra, todas pintadas de preto, exceto a última imagem, de um humano. Ao lado dele, um vazio.

– Ninguém jamais entendeu o significado de uma cruz. As pesso‑as a interpretam como um objeto deveras temido. Colocam‑na diante de túmulos. No entanto, sua principal mensagem refere‑se aos vivos. Qua‑tro pontas, sendo que a maior delas significa o tempo atual. As outras, as direções que a vida pode tomar. – Acolhedor pousou o dedo sobre a ponta direita da cruz e depois à esquerda. – Você pode mudar o rumo, mas eles não são garantidos. Pode escolher como seguirá sua vida, mas sempre encontrará uma nova cruz. – A pequena ponta triangular se divi‑dia em três partes, como uma flecha. Cada uma dessas partes carregava outras três cruzes ainda menores, num interminável caminho de outras pontas menores. Depois indicou a ponta de cima, a mais curta. – Esta

Page 142: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 142 ×

indica constantemente a direção que se deve seguir. Sempre à frente, ja‑mais olhar para trás, mesmo que isto lhe custe sangue e lágrimas. O que isso significa? Que o início e o fim nunca existiram. Vivemos, mesmo após a morte. A cruz, meu amigo, é a existência. Sempre encontraremos uma encruzilhada. Caso contrário, não existiria o livre arbítrio. O maior ensinamento de Cristo está na cruz, pois teve um momento em que até ele precisou optar. Poderes, ele os tinha pois era filho de Deus, mas preferiu sacrificar‑se por suas convicções, mesmo que isso lhe custasse a vida. Ele é o maior exemplo de determinação que já existiu.

“A ampulheta aqui estampada determina o tempo que cada espé‑cie tem para atingir a perfeição. Cada grão que cai é um dia a menos. – A ampulheta estava no fim, um pequeno punhado sobrava na par‑te de cima. Oliver notou que o desenho estava vivo, pois a ampulheta movia‑se mesmo sendo uma imagem. – Sempre que o tempo está pres‑tes a acabar, e a espécie daquele momento não satisfaz os padrões de perfeição, uma nova surge ao seu lado. Aqui, como pode ver, não existe outra após a humana.‑ Acolhedor interpretava o vazio ao lado da figura humana desenhada no pergaminho. ‑ Isso, pode expressar duas coisas: ou o ser humano é a espécie perfeita, ou a ausência de outra imagem ao seu lado representa que a humanidade está distante da perfeição. Sendo assim, pode‑se deduzir que a destruição está próxima.

Oliver sentiu um súbito frio na espinha. Cada palavra de Aco‑lhedor suscitava uma dúvida. A explicação não pudera ser mais clara.

– A escritura mais antiga da Terra denota o princípio do fim, mas eu nunca a li. As criaturas não têm conhecimento sobre esse aconteci‑mento, porque nunca se pensou que fosse possível. Como o fim está próximo, acredito que as profecias surgirão a seu tempo. Todas elas fo‑ram programadas pelo primeiro oráculo existente. As profecias mais co‑muns já vagam de boca em boca. Mas existem aquelas cujas palavras não foram tocadas ou sequer lidas. E, acredite, – seu tom de voz tornou‑se sombrio – quando uma profecia sobre o Apocalipse dos Apocalipses surgir, não haverá volta. Eu, em meus quinze milênios de trabalho, nun‑ca descobri alguém, ou algo, capaz de deter uma profecia apocalíptica.

Acolhedor fechou o pergaminho. – Vai precisar de sete cavaleiros se quiser efetivar seu trabalho.

Encontre‑os. Só confie em seus companheiros e, principalmente, em seu guia. Ele faz parte de você; se você morrer, ele morre. Se ele morrer, você estará perdido. Não acha que já virou muito nas encruzilhadas? Não evite mais o caminho reto. Ele traz a vitória.

– E se eu não conseguir?– A sobrevivência do mundo não depende de você ou de qualquer

outro cavaleiro, mas da espécie que luta pela perfeição. Devemos garan‑tir a ordem e nada mais.

O silêncio prolongou‑se após o término da frase. Acolhedor pa‑

Page 143: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 143 ×

rou diante de uma das grandiosas janelas. Afastou a cortina pesada para o lado, revelando uma gigantesca cidade de prédios apinhados. Dezenas de acúmens repousavam sobre os telhados mofados, vigiando constan‑temente as extremidades da cidade.

– Esta é a Cidade do Esquecimento. Todos aqueles que escapam dos barqueiros dessa região vêm para cá, por desejarem fugir do julga‑mento final. Aqui não há perigo. Eu garanti que ninguém jamais colo‑caria um dedo nos habitantes. Criei essa cidade no intuito de ensinar as pessoas a não temerem diante de uma escolha de vida, ou de morte. Acredito que todos têm direito de escolher o que querem. No entanto, a única lei para os habitantes é ir diariamente à igreja, ouvir a respeito de verdades e mentiras. Alguns resolvem encarar a verdade e outros conti‑nuam refugiando‑se aqui.

– O julgamento final...– Ninguém sabe ao certo o que ele é – disse Acolhedor pensativo.

– Existem aqueles que foram e voltaram, porque não estavam prontos; e aqueles que só foram. Alguns dizem que o céu e o inferno existem e estão além do julgamento, mas ninguém tem certeza. Nenhum dos que foram e voltaram se lembra do que há lá. Sabem apenas que estiveram lá. Aqueles que foram e não voltaram, logicamente não estão mais aqui para contar a história. Por isso, muitos têm medo do que encontrarão lá ao passar pelo julgamento. Um céu absolutista ou um inferno anarquis‑ta. Anjos irados ou demônios usurpadores. Paraíso ou inferno...

Oliver admirava os prédios encardidos, imaginando o número de habitantes. Um acúmen grande e entroncado, pousado sobre um poste encarou‑o com curiosidade.

– Compreendi, só gostaria de fazer mais uma pergunta, se me per‑mitisse. – A exigência de respeito passada por Acolhedor surtira efeito.

– À vontade – ele fechou a janela, caminhando pela igreja.– O que acontecerá se eu não puder exercer meu poder na Terra?– Enquanto estiver na Terra seus poderes serão reduzidos. Logi‑

camente a carne não aguenta todo o poder do espírito... Portanto você necessitará de um bom guia – Acolhedor piscou para Badeck – e um Espelho Transversal. Existe um lugar na Terra que deve visitar.

– Que tipo de lugar?– A Cova do Fantasma. Badeck saberá guiá‑lo até lá. – O homen‑

zarrão alisou a barba trançada, sorrindo de canto. Assentindo, o cavaleiro agradeceu por ter tido aquela conversa.

Levara um corretivo, é verdade, mas suas dúvidas haviam se esgotado. – Agradeço por ajudar, Acolhedor, foi uma honra receber suas

explicações – disse Badeck, lendo os pensamentos alheios. – Considere‑se devedor de uma. Brincando, Acolhedor entregou a espada para Oliver. Este pediu

que o caminho para sua casa fosse revelado, a seguir tocou o chão com

Page 144: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 144 ×

a lâmina cuja sombra estirou‑se, montando a porta mágica rapidamente.– Jamais esqueça isso, Oliver. Você não é um humano, é um cava‑

leiro agora. Não seja lógico – acrescentou o ex‑cavaleiro.A parede da sala tremeu e partiu‑se em uma rachadura que cres‑

ceu uniformemente e traçou um enorme retângulo. O concreto amare‑lado dentro do retângulo borbulhou, originando uma porta de madeira. Oliver foi o primeiro a entrar, seguido de Badeck.

Page 145: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 145 ×

Capitulo 12 Na Estrada

O tempo corria sem parar, como era de se esperar. O homem tinha pressa, por isso fora obrigado a tomar um caminho inusitado para chegar a tempo em Porto Alegre. Uma reunião importante aguardava‑o para salvar seus negócios, caso contrário perderia o emprego. Uma pla‑ca corroída indicava a quilometragem da estrada. Desde que o veículo deixara Florianópolis e tomara a estrada, haviam percorrido, ao todo, trezentos e dez quilômetros. A sua mulher não concordava em usar uma estrada com a qual não estavam habituados, mas ele queria chegar a Porto Alegre na metade do tempo que normalmente levaria. E acabou por se enganar. A Estrada Velha estava num estado tão péssimo quanto a interestadual com todo o engarrafamento que conseguisse suportar. O asfalto rachado e os buracos causados pela erosão impediam o percurso em alta velocidade.

– Você acha que é seguro passar por essa ponte? – perguntou a mulher que acabara de acordar de um cochilo.

Não havia um raio de luz em quilômetros de estrada, iluminada somente pelos faróis do carro.

– Tenho certeza de que conseguiremos... Voltar agora seria uma total perda de tempo. E, você sabe, não podemos mais perder nenhum minuto. Isso é importante para os negócios! Se você quer mesmo me‑lhorar de vida, é claro.

– Entendo – disse ela compreensiva.A ponte diante deles interligava as duas margens do extenso Rio

da Várzea. Segundo os conhecimentos dele, a ponte havia sido implodi‑da três vezes no passado e reconstruída apenas alguns anos depois para que os habitantes pudessem transitar. Havia um vão de pelo menos sete metros entre a superfície do rio e a ponte por onde passava apenas um carro por vez. Sustentada por um amontoado de metais enferrujados, a estrutura não aparentava muita segurança.

– Tem marcas de pneus aqui! – comentou o garoto com metade do corpo para fora do esportivo preto. – Acho que algum carro passou recentemente.

Page 146: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 146 ×

– Então é seguro! – completou Basílio finalmente. Basílio era um homem de quarenta e dois anos. Alto, com o porte

forte e o rosto carrancudo. Tinha olhos castanhos, cabelos curtos e es‑pigados do mesmo tom e uma cicatriz sobre a sobrancelha grossa. Sua mulher, Maria, era baixa, magra e tinha os cabelos escuros e curtos. O rosto lívido e um pouco mais jovem que o dele estava constantemente bem humorado e sorridente. E, por fim, o filho Alan tinha doze anos, cabelos negros como os do pai e rosto fino como o da mãe. Os olhos escuros e espertos acompanhavam o céu estrelado.

– Você disse que essa estrada era assombrada... É verdade? – in‑dagou Alan, arqueando as sobrancelhas com a cabeça ainda do lado de fora. A lanterna em sua mão lançava um facho que dançava pelo chão de terra batida.

– Sente‑se, garoto – ordenou o pai, acionando o veículo.A ponte parecia um gigante fantasma de ossos metálicos e retor‑

cidos. A marca fresca do outro carro indicava que alguém havia passado pelo trecho e saído ileso. Portanto eles também conseguiriam. Alan vol‑tou a sentar com a impressão de ter visto um vulto negro passar logo ao lado deles. Apontou a lanterna na direção, mas não viu nada.

– Eu acho que vi algo... – É impressão sua, filho, você sabe que fantasmas não existem –

comentou a mãe reprovativa. – Mas o pai disse...– Esqueça o que eu disse! Acho que eu me empolguei com a ideia

de vir por esse lugar e acabei falando demais. Não existe nada aqui.O carro avançou sobre a ponte de asfalto rachado. Nada ocorreu,

só o som dos pneus contra os pedriscos. A água do rio batia nos pilares de suporte da ponte e faziam a estrutura tremer levemente.

– Tudo bem... Nós vamos sair dessa facilmente. Eu não sei de onde tirei a ideia de vir por essa estrada, afinal ela não é usada faz muito tempo... Mas eu pensei que pudéssemos atravessá‑la e economizar uma hora de viagem por causa do engarrafamento na rodovia.

Maria pôs a mão no ombro do marido.– Acalme‑se, se você diz que vai dar tudo certo, então vai – con‑

firmou ela com um sorriso confiante.Esse era um dos motivos pelos quais Basílio apaixonou‑se por ela:

sempre a favor de suas ideias, mesmo que algumas vezes fossem doidas demais. Ele ainda se lembrava da primeira vez que passara por aquela estrada: seu antigo chefe pedira‑lhe para entregar uma encomenda em Porto Alegre com urgência. Como as estradas estavam cheias, ele pedi‑ra para Basílio usar a Estrada Velha. Naquela época, cerca de oito anos atrás, a estrada não parecia tão ruim. O tempo era mesmo inimigo das coisas.

Alan brincava com a lanterna impacientemente.

Page 147: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 147 ×

– Por que estamos indo tão devagar?– Porque a ponte é velha – explicou o pai pacientemente. – Por

que você não dorme um pouco?Como a mãe, Alan cochilara alguns minutos e perdera boa parte

do sono. O relógio no painel do carro indicava oito e meia da noite.– Faltam quantas horas para chegar?– O suficiente, Alan! – retrucou Báz, acelerando um pouco o car‑

ro, porém reduziu ao perceber que a estrutura tremeu mais forte. – Tal‑vez umas duas horas. Eu preciso estar em Porto Alegre às sete horas da manhã! Então, por favor, fique quieto e descanse para que eu possa descansar também.

– Acalme‑se, querido, nós vamos conseguir chegar a tempo – pe‑diu Maria preocupada com o nervosismo dele.

– Eu preciso disso, Maria. É importante! Meu emprego depende disso! Nosso futuro depende dessa reunião.

– Reunião aqui, reunião ali... Esse saco de reunião ocupa todo o seu tempo! – reclamou Alan, cruzando os braços. – Quando é que vamos jogar futebol?

– Não fale desse jeito comigo! – disse Basílio impacientemente, encarando o filho pelo retrovisor. – Tudo o que você tem depende desse emprego! Sua casa, escola e comida.

– Mas é sempre isso! – exclamou Alan indignado. – Quando é que você tem tempo para mim e para a mãe? Está sempre fora de casa com aqueles idiotas de seu emprego!

– Alan, comporte‑se! – pediu a mãe ternamente ao perceber o clima ficar tenso.

Já haviam percorrido metade da ponte até então. – Alan! – rugiu Basílio, freando o carro. – Não desmereça o meu

trabalho dessa forma! Se você joga futebol, usa o computador, sai com seus amigos é porque meu trabalho permite isso!

– Mentira! MENTIRA! – gritou ele, abrindo a porta do carro. – Você prefere ficar com aquela gente chata do que conosco! Sempre naquela sala fechada! E eu nem gosto de computador!

– ALAN! – chamou Basílio quando o filho saiu do carro.– Seja paciente! – pediu Maria ao ver o marido. Suspirou enquanto

procurava alguma estação de rádio. – Homens... Sempre tão complica‑dos e brigões.

Não foi difícil para Alan deixar o pai para trás, pois a juventude e os treinos de futebol o ajudavam a correr mais rápido. Chutou um dos pedriscos e parou próximo ao final da ponte, a fim de recuperar o fôlego. Um buraco no meio do asfalto permitia ver a água correndo abaixo deles. Estava cansado de nunca ter tempo para passar com o pai. Levara incontáveis bolos nos últimos anos porque o trabalho de Basílio ocupava muito de seu tempo. Cansou de trocar um jogo de futebol com

Page 148: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 148 ×

o pai por um filme com a mãe ou um passeio com os amigos. Quando ele ia finalmente ter tempo para passar com o filho? Seria tão difícil assim? Não importava que ficasse sem computador ou aulas de futebol. Importava apenas o tempo que tinha a passar com o pai.

Apoiou os braços no parapeito corroído da ponte e olhou para baixo. Uma brisa gélida produzida pelas águas negras acertou seu rosto junto com um fraco odor de enxofre. Ouvia os gritos do pai ao lon‑ge, mas não respondeu a nenhum. Estava cansado daquilo... Virou para o lado para continuar a corrida quando se deparou com uma sombra negra. Entreabriu a boca de susto e medo, recuando até tropeçar duas vezes e encostar as costas no parapeito. O gigantesco cavalo cadavérico de olhos vermelhos bufou enxofre e sacudiu a cabeça. O cavaleiro sobre seu lombo trajava um manto vermelho esvoaçante e carregava uma foice de quase dois metros na mão.

O cavaleiro apontou a foice para o garoto.– Você, cavaleiro! – urrou a voz grossa e demoníaca do estranho.Alan soluçou, recuando mais. Da respiração pesada do animal

horrendo emanava fumaça fétida de enxofre. – Você, cavaleiro! – repetiu a criatura insistente. O garoto recuou e tropeçou em um dos buracos fundos, por pou‑

co não caiu lá embaixo. Basílio conseguiu chegar a tempo de segurá‑lo pelos ombros e colocá‑lo de pé.

– Peguei você! – rugiu o pai, sacudindo Alan pelos ombros. – O que pensa que está fazendo ao sair do carro desse jeito? Essa ponte é perigosa! Alan?

Basílio surpreendeu‑se quando o filho o abraçou apertado. Tre‑mia por inteiro e o rosto nunca estivera tão pálido.

– O que houve? Alan?Alan olhou para trás antes de falar: o cavaleiro e sua montaria

haviam sumido.– T‑Tinha algo ali!– Não! Não tente usar essas desculpas bobas para mascarar o que

você fez! – resmungou Basílio, largando o filho e o segurando pelo bra‑ço. – Vamos voltar para o carro!

– Não! – exclamou Alan realmente apavorado. Mesmo após o susto, suas mãos ainda tremiam. Nunca vira algo tão assustador em sua vida. – Tinha algo ali! Era um cavaleiro... Não, não só se parecia com um... Foi horrível! Ele tinha uma foice!

Basílio suspirou e se abaixou, colocando as mãos nos ombros do filho.

– Não há nada aqui! Está vendo? – indagou ao apontar para o escuro e vazio da ponte. – Somos apenas nós, eu e um garoto precisan‑do de uma conversa. Eu prometo que não vou brigar com você e nem gritar, está bem? Talvez possamos conversar e chegar a um veredicto, o

Page 149: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 149 ×

que acha? Você é muito importante para mim, Alan. Tudo o que eu faço é para você e Maria. Eu jamais me perdoaria se faltasse algo para um de vocês... Precisa entender que haverá um tempo para brincarmos, mas agora é essencial que eu trabalhe. Podemos marcar algo para o final de semana, o que acha? Não parece justo?

Alan apenas piscou. O olhar distante dizia que sua atenção não estava presente naquela conversa. Basílio puxou‑o para um abraço, aper‑tando‑o firme em seus braços.

– Você não sabe até onde eu iria por você...E, ao terminar a frase, respirou fundo. Um cheiro pesado de en‑

xofre penetrou seus pulmões. O casco escuro do cavalo bateu contra o asfalto e ele relinchou alto, preenchendo o ar com a fumaça densa, iluminada pelos espectrais olhos vermelhos. Ele estava tão próximo que Basílio conseguiu enxergar o couro retorcido e machucado da criatura. O cavaleiro em sua montaria ergueu a foice para o alto. Seu rosto co‑berto pelo capuz estava oculto, porém suas intenções eram tão claras quanto à água.

Alan não precisou ver para saber o que estava atrás dele. Aper‑tou o casaco do pai com as mãos, escondendo o rosto em seu ombro. A criatura baixou a foice e Basílio não teve tempo para pensar, agindo instintivamente. Atirou‑se para o lado com o filho, sentindo a lâmina da foice passar rente à sua cabeça.

– Cavaleiro! – urrou o estranho de manto vermelho ao virar o capuz para os dois no chão. – Você é o cavaleiro!

Basílio não sabia o que fazer. Nada do que seus olhos viam pode‑riam ser decifrados com a razão, logo, precisou recobrar a consciência antes que entrassem em um estado de choque. O filho em seus braços desmaiou ao bater a cabeça no asfalto. Levantou com um impulso, de‑positando Alan sobre o ombro com cautela.

– Eu não sei do que está falando! – disse Basílio, na defensiva. O cavalo relinchou. – Mentira! – contrapôs o cavaleiro do Chamado ao puxar a foice

de volta para si. – Me entregue o que te mantém vivo!“O que me mantém vivo?” repetiu Basílio mentalmente. Ele

olhou para Alan e depois para o estranho.– Jamais! Deixem meu filho em paz! – exclamou Basílio ao dar as

costas e correr em direção ao carro.Seja lá o que fosse aquilo, o bem é que não representava. Durante

toda a sua vida nada lhe parecera tão assustador. O ruído dos cascos do cavalo esquelético perseguia‑o logo atrás, encurtando a distância entre eles em pouco tempo. Pensou que fosse cair ou pisar em algum buraco, já que a lanterna ficara para trás e não havia uma fonte de iluminação. Porém seus olhos conseguiam enxergar os detalhes da noite tão bem quanto de dia, ajudando‑o como uma arma em potencial. Saltou agil‑

Page 150: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 150 ×

mente sobre um buraco de trinta centímetros, tomando cuidado para não deixar o filho cair. Viu o carro a menos de dez metros e desejou alcançar o veículo a tempo de se safar. Estendeu a mão para sinalizar para Maria, mas foi tomado por um pânico brusco quando um segundo cavalo saltou sobre o teto do carro e afundou seu metal. O cavaleiro em sua montaria apontou a foice para frente, como se dissesse: seu caminho acabou. Duas outras criaturas ladearam o veículo.

– Maria! – gritou Basílio sem ter para onde ir.Estava encurralado, em uma ponte abandonada, no meio do nada,

por criaturas que jamais vira na vida. Preocupado com a esposa e com o filho, em nenhum instante parou para pensar na própria salvação. O cavaleiro o perseguia com o ar de vitória.

– Cavaleiro, – disse ele, parando, ao apontar novamente a foice para Basílio – se entregue!

Uma gota de suor escorreu no canto da testa de Basílio. O que aquelas criaturas queriam com ele? Logo ele, que não tinha nada de es‑pecial? Seriam os demônios do inferno que vieram buscá‑lo mais cedo?

– Deixe minha esposa e filho em paz e eu me entregarei! – Sem provas – ponderou o cavaleiro do Chamado. – Sem provas?Nesse instante Basílio olhou para o carro. O cavalo sobre o teto

ergueu as patas da frente e baixou‑as pesadamente, afundando mais a lataria. As janelas estouraram em uma chuva de minúsculos pontos bri‑lhantes e se uniram ao fogo que explodiu de dentro do carro. O Cavalei‑ro em seu topo não se afetava em nenhum aspecto com o fogo místico e vermelho vivo que lhe cobria a metade do corpo.

– Maria! – gritou Basílio, arregalando os olhos com a explosão repentina. – MARIA!

O cavaleiro à direita do veículo avançou com a foice em riste na direção de Basílio.

– Abaixe‑se – uma voz feminina de origem desconhecida ecoou em seu ouvido. – AGORA!

Basílio não quis saber quem lhe ordenava aquilo, mas resolveu obedecer. Abaixou quando o Cavaleiro estava pronto para desferir o ataque. Uma sombra saltou sobre as costas de Basílio e chocou‑se con‑tra o cavaleiro. Um poderoso rugido estourou da garganta do urso ne‑gro que desferiu uma bofetada na cabeça do cavalo, que recuou ferido. O animal tinha mais de dois metros de altura, pelos negros como a noite e olhos vermelhos como o fogo. Seus movimentos ágeis eram cruéis e certeiros, arrancando pedaços do asfalto toda vez que batia com a pata. Seus músculos rígidos contrastavam com algumas costelas visíveis. De onde ele havia surgido? Não fazia a mínima ideia. Basílio apenas sabia que aquela criatura era a única capaz de vencer os cavaleiros assassinos. Pensou em Maria e sentiu uma dor no coração ao ver o carro em chamas.

Page 151: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 151 ×

Caiu de joelhos, apertando a cintura do filho com os braços. A dor da perda o consumia internamente. Seu espírito sofria. Naquele momento pareceu não se importar com o perigo, deixando‑se levar pelo acidente. A ursa batalhava arduamente contra os cavaleiros, afastan‑do‑os à força. Um deles tentou arrancar sua cabeça com a foice, mas ela parou a lâmina com as garras e partiu‑a ao meio com a outra. Avançou contra o cavaleiro e o arrancou do cavalo com um golpe. Outro tentou atacar por trás, mas ela era muito maior, mais forte e mais rápida. O cavaleiro que estava sobre o carro em chamas saltou na direção dela, visando acertar‑lhe as costas, mas ela desferiu uma pancada na foice, jogando‑a para o rio. Fechou as garras ao redor do pescoço do cavalo e, com um único gesto de sua força, atirou‑o contra o parapeito da ponte. O terceiro hesitou antes de avançar, intimidado com o rugido da ursa.

A ursa percebeu o motivo da hesitação do cavaleiro: eles estavam atraindo sua atenção. O quarto e último do grupo estava parado logo atrás do homem de joelhos e seu filho, preparando‑se para atacá‑los.

Basílio estava fora de si; os olhos distantes e os pensamentos va‑gos não percebiam o perigo.

– Fuja! – pediu a voz feminina novamente. – FUJA!Ele não reagiu. De que adiantava? Baixou o rosto, vencido pela

dor. Maria havia morrido, não? De que adiantava continuar lutando. E, como lesse os pensamentos do homem, a voz acrescentou:

– Seu filho precisa de você!“Alan” pensou Basílio, lembrando que carregava o filho no om‑

bro. Instintivamente rolou para o lado, esquivando‑se novamente da foice que ferira seu braço direito.

Baroon, a ursa, ergueu o punho fechado e rugiu ao baixá‑lo com toda a força, socando o chão e fazendo a estrutura da ponte tremer. Com a força descomunal da criatura, o asfalto rachou e o metal ran‑geu, deslocando‑se do suporte. Os quatro cavaleiros recuaram quando a ponte partiu e despencou em direção ao rio. Basílio tentou se segurar, mas o pedaço de concreto em que se apoiava cedeu, levando‑o junto com a ponte que se dividia ao meio. Pedaços de ferro, asfalto, vigas e o veículo em chamas despencaram em direção às águas furiosas. Segurou Alan como se valesse muito mais que a própria vida e bateu de costas contra a água gelada e turbulenta, afundando e sendo carregado pela correnteza. Tentou alcançar a superfície, mas não foi possível.

“Acabou?” indagou ele, sem forças para continuar. Abraçou Alan. A garganta coçou pela falta de ar. Viu, através da água, um ponto lumi‑noso, que era o carro, cair junto com a estrutura da ponte. que lenta‑mente cedia. Tudo o que caía, afundava na água. “Maria... Não pude pro‑tegê‑la. Nem você e nem nosso filho.” A correnteza tornava‑se cada vez mais impiedosa, empurrando‑os para um fundo escuro e negro. Era um pesadelo sem fim... O homem beirou a inconsciência quando sufocou.

Page 152: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 152 ×

Teve a impressão de ver um amontoado de pelo negro nadar logo acima dele. Seus olhos eram vermelhos, eram semelhantes ao dos cavalos hor‑rendos, mas a maneira como olhava era diferente. Protetores e ternos... Basílio sentia‑se confortável apenas por encará‑los. O gigantesco urso estendeu a pata para o homem, que tentou apanhá‑la, mas desmaiou muito antes de conseguir tocá‑la.

Oliver acordou de supetão no sofá de sua sala, o lugar para o qual retornou após o encontro com Acolhedor.

Badeck ainda dormia. Como ele, o guia estava exausto. Perma‑necer na Terra‑Inversa e atravessar portais arrancava‑lhe muita energia.

A luz do teto de sua sala tremulou e todo o ambiente tremeu. Oliver olhou para os lados, assustado. O zumbido férreo do avião vinha dali mesmo; era como se estivesse dentro dele.

Ficou de pé com dificuldade e cobriu os ouvidos, perturbado. A televisão chiou, reproduzindo a voz do piloto.

– Atenção, aqui quem fala... Voo 170... uestro... ora de ...Ole – dizia a voz freneticamente – indo...

Oliver ofegou e correu até a janela para entender o que acontecia.– Estamos... indo... Caindo!Sentiu um vazio devorar‑lhe as entranhas com o que viu. Não es‑

tava mais em seu apartamento, mas dentro de um avião. O sol, quase to‑cando o horizonte nublado, deixava seu rastro alaranjado de luz. Ouviu gritos, explosões na turbina... Mas sua concentração focalizou apenas os edifícios e as casas lá embaixo. Avistou o Guaíba mais adiante... E também milhares de pessoas que percorriam as ruas. O avião caía veloz‑mente e, logo, encontraria o centro de Porto Alegre.

Pressionou as mãos nos ouvidos para calar as vozes, o chiado e os gritos.

– Voo 789... Car... ris! Carvaris! – disse outra voz feminina. – Aju‑da... Também est... indo!

– Oliver! – latiu Badeck.O cavaleiro sacudiu a cabeça. Estava na janela, de frente para o

prédio vizinho, em seu antigo apartamento. Sem aviões, sem queda. Ins‑tintivamente e sem saber por que ligou a televisão. O jornal urgente mostrava o capitão da aeronáutica falando:

– “Os voos 1704 e 789 continuam desaparecidos desde a noite de ontem. Ainda não temos nenhuma pista de onde possam estar... Mas nossas buscas estão se estendendo até os estados vizinhos, embora não haja nenhuma evidência de que os aviões possam ter deixado o estado do Rio Grande do Sul. Os radares só podem captar a presença de aviões

Page 153: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 153 ×

até um certo limite de distância do solo, em caso de voo rasante. Vamos encontrá‑los. Dois aviões desse porte não podem desaparecer.”

A imagem foi substituída por uma do aeroporto, onde famílias se concentravam esperançosamente atrás de seus entes sequestrados.

– Segundo informações da polícia, um dos aviões estava repleto de crianças que... – dizia a voz da apresentadora ao fundo.

Oliver desligou antes que ela pudesse terminar. Um vazio e uma certeza percorriam suas entranhas.

– O que está acontecendo? – perguntou Badeck.– Eu ando tendo alucinações, não sei explicar... Estão me ator‑

mentando desde que eu voltei do Lami.– Cavaleiros não têm alucinações e nem sonhos, apenas previsões.

Esse é o sinal que estivemos esperando. Você teve, o tempo todo, as pis‑tas sobre o paradeiro de um dos cavaleiros – explicou Badeck ouriçado.

– Então eu sei onde o cavaleiro pode estar. Como não pude me dar conta disso? A primeira vez que tive a visão foi quando eu ainda vivia, por isso não achei que...

– Shafa – explicou Badeck sucintamente. – Vocês tinham uma li‑gação e isso fez com que você visse a localização dos cavaleiros. Afinal, a missão de reencontrar os cavaleiros era dele até passar isso para você. O que você viu?

Oliver resumiu suas visões para o guia.– Só que eu não consigo imaginar onde possam estar... – murmu‑

rou o cavaleiro, colocando as mãos na cabeça. – Se... Se essa previsão for verdade, então um dos aviões vai cair poucas horas antes do entardecer. E já é meio dia passado... E... É pouco tempo para fazermos qualquer coisa. O cavaleiro deve estar no avião... Não podemos deixar que o avião caia, mas não faço ideia de como encontrá‑lo já que nem a polícia é ca‑paz de fazer isso!

Houve uma pausa lenta durante a qual Oliver revisava mental‑mente a visão que tivera.

– Pense! – exclamou Badeck. – A pista está ai, nas suas visões!– Eu não sei! Oliver levantou‑se e caminhou até a janela da sala, debruçando‑se

no peitoril para ver a fachada do prédio ao lado.Badeck meneou a cabeça negativamente.– Se concentre! Você precisa descobrir o que essa visão nos diz!Oliver esfregou a testa novamente e fechou os olhos, concentran‑

do‑se nas imagens ainda frescas em sua mente. Por fim, sentou no sofá e religou a televisão.

– Os aviões não saíram do estado... Podem estar ao nosso alcance. Só precisamos saber onde! – incentivou Badeck.

– Car... ris – repetiu Oliver com o olhar vidrado. Tinha o pensa‑mento focado na visão recente.

Page 154: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 154 ×

Oliver ficou mudo, assolado por um estado estranho e letárgico. Uma sensação o inundou e a imagem de um homem velho, que julgou rapidamente ser seu pai, surgiu em sua mente. Era Guilherme levando‑o para conhecer o túmulo de Alberto, na Estrada Velha.

– Carvaris! – exclamou ele afoito e satisfeito por ter lembrado.Tinha visto seu pai, um veículo, uma viagem, uma estrada velha

e trechos de uma conversa longa. Sua memória voltava não para ago‑niá‑lo, mas para salvá‑lo de um infortúnio. Era a mesma lembrança que teve na clareira.

Oliver atravessou a sala correndo e esbarrando nos móveis. Re‑tornou de seu quarto carregando, em mãos, um mapa antigo. Esten‑deu‑o sobre a pequena mesa, procurando as marcas vermelhas feitas por seu pai. Badeck ficou sobre duas patas para enxergar o que Oliver fazia.

– O que está procurando?– Aqui! – exclamou o cavaleiro, apontando para uma linha verme‑

lha feita a caneta que ligava Porto Alegre até o interior de Florianópolis. – A Estrada Velha!

– Que estrada? – perguntou Badeck confuso. – Não há nenhuma estrada impressa no mapa. Isso é apenas uma linha vermelha feita por alguém!

– Não, – Oliver discordou, fechando o mapa e colocando embai‑xo do braço – a Estrada Velha não consta nos mapas porque não é con‑siderada uma estrada. Eu lembrei... Meu pai dizia que era assombrada, mas não é por isso que a estrada não é utilizada. Mas ela está lá... Apenas as pessoas mais antigas conhecem sua localização. Meu avô morreu en‑quanto trabalhava na construção de uma ponte para essa estrada.

– Como tem tanta certeza assim? – questionou Badeck desconfia‑do. – Como sabe que é lá que eles estão?

– Você não ouviu o que o telejornal estava dizendo? É possível que o avião nem tenha saído do estado. Realmente não é fácil esconder dois aviões, mas essa estrada é perfeita para isso. Ninguém a usa! Sem contar que ninguém mora por lá também – disse Oliver indo em direção ao quarto. – Vou trocar de roupa e juntar alguma coisa para levarmos. É para lá que iremos! Tenho certeza. Carvaris... A mina Carvaris.

Uma imagem distante e escura de uma placa com um C preto e “arvaris” em um tom cinza gasto veio‑lhe à mente. Mergulhava em me‑mórias que preferia esquecer.

O guia baixou as orelhas. A previsão estava fácil demais... Algo estava muito errado. Oliver encontrou a espingarda que pertencia ao seu bisavô, única coisa deixada por seu pai, e resolveu levá‑la junto. Em‑bora não funcionasse mais, gostava de ter a segurança de carregar uma arma. Era um ato “humano”. Minutos depois eles já chegavam à gara‑gem mofada. O estacionamento ao lado de seu apartamento finalmente servira para algo além de estragar seu sono. Oliver esgueirou‑se por trás

Page 155: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 155 ×

de um carro escuro, próximo ao elevador. Badeck permanecia de vigia do outro lado. Ao chegar à garagem, o elevador apitou. Já roubara carros tantas vezes que a experiência garantia‑lhe sucesso.

– É agora – murmurou para Badeck. As luzes acenderam‑se quando uma mulher, trajando um terno,

saiu do elevador. O cavaleiro respirou fundo, levantando e apontando a arma para as costas dela.

– Ei, você, pare. A mulher parou, assustada. – Quem é você?– Não importa! – riu Oliver, suando frio. – Me passa a chave. – Espere aí! Você não é Vicente Bowager? – perguntou a mulher. Oliver arqueou a sobrancelha, roçando o dedo no gatilho.– Cale a boca e me passe a chave!– Vou considerar isso como um “sim” – grunhiu ela, entregan‑

do‑lhe o molho de chaves. O cavaleiro desligou o alarme do carro. As luzes vermelhas do

esportivo cinza à direita acenderam‑se e apagaram. – Que sorte a minha. Parece novo... – comentou Oliver, satisfei‑

to, baixando a arma.– Mãos ao alto! – gritou a roubada, apontando a arma para Oliver. Boquiaberto, Oliver largou a espingarda, estendendo os braços. – Agora é moda andar armado? – questionou ironicamente.– Fique de costas e encoste‑se no veículo – ordenou ela, seguran‑

do firmemente a arma. Ela tirou a franja lisa e ruiva da testa e apanhou as algemas. O ca‑

valeiro fez o pedido, pondo as mãos sobre o capô. Furtivamente, Bade‑ck percorrera entre os carros, até tomar uma posição estratégica e saltar sobre a policial, fazendo‑a desfalecer ao bater com a cabeça em um pilar.

– Demorou você, eihn? – criticou Oliver, conferindo estado dela.– O que faremos com ela?Oliver remexeu os bolsos da desmaiada, encontrando duas armas

e uma carteira. Juntou o distintivo e leu a identidade dela.– Ariane Scaush, vamos levá‑la junto. – Mas é uma policial... – argumentou Badeck. – Não tenho certe‑

za se é uma boa ideia.– Vamos levá‑la – concluiu o cavaleiro. – Será melhor tê‑la conos‑

co... Não percebeu ainda com o que estamos nos envolvendo?Prendeu a policial com as algemas roubadas. Arrastou‑a até o car‑

ro, deitando‑a no banco de trás. Porque um homem os observava, Oli‑ver apressou o que estava fazendo. Ariane era bonita. Sardas enfeitavam suas bochechas, combinando com os cabelos ruivos cintilantes. Juntou a espingarda, pondo‑a abaixo do banco e, pensativo, desceu os três an‑dares do estacionamento.

Page 156: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 156 ×

– Estou com um mau pressentimento – afirmou o guia, inquieto.– Vamos resolver isso de forma simples. A convivência com Shafa dera‑lhe experiência, mesmo que bizar‑

ra. Ele acelerou o carro, destruindo a cancela amarela da garagem. O ve‑ículo tomou a rua com os pneus gritantes. Três carros da polícia e outro escuro, este Oliver lembrava como sendo do homem que desconversava minutos atrás, aguardavam‑no na saída do apartamento.

– Demoraram demais! – gritou Oliver eufórico.– Eles vão te pegar – falou Ariane, sentando‑se no banco traseiro. – Como me encontraram? – indagou Oliver, adentrando uma rua

velozmente. As sirenes dos carros policiais acompanhavam‑nos. Oliver dirigia

habilmente, pois já trabalhara como motorista por um tempo em sua vida. As batidas passavam rasteiras, anunciadas por buzinas.

– Não te devo explicações!Badeck, que estava sentado no banco de passageiro, rosnou furio‑

samente para a mulher.– Recebemos uma ligação de um cidadão chamado Fábio. Ele dis‑

se que um homem negro visitara sua casa no dia anterior, no mesmo momento em que recebemos duas ligações a seu respeito – disse Ariane, esfregando a testa dolorida. – Viemos conferir a ocorrência e nos depa‑ramos com você, o assassino encontrado morto há um tempo e que teve o corpo desaparecido do necrotério.

– Fábio? – murmurou Oliver. Lembrou‑se do noivo de Anne.– Eu sempre odiei aquele cara!– E o que você pretende fazer? Fugir? Acha que vai conseguir? –

retrucou a policial.O carro subira na calçada abruptamente e Ariane desmaiou mais

uma vez ao bater a cabeça. Oliver conhecia muito bem as ruas de Porto Alegre, mais até mesmo do que um policial. O sol sufocante da tarde aquecia o veículo.

– Eles vão nos alcançar! – exclamou o guia, grudado no banco. – Faça alguma coisa!

– Como eu ia saber que tinha um bando de policiais atrás de mim? Mas eu tive uma ideia.

Havia mais casas do que edifícios, naquela região. Era um bairro residencial? Oliver tricotava perigosamente as ruas, rumo ao norte.

Se antes eram três, agora cinco carros policiais perseguiam‑no. Oliver riu. Casebres enfeitavam a paisagem dos morros, denotando a pobreza brasileira. As crianças observavam emocionadas a perseguição, temerosas por tiros e alegres pela ação. “Como filme!” gritou uma delas, batendo palmas. No final da rua que Oliver acabara de dobrar, grandes portões metálicos protegiam o armazém abandonado. Dezenas de car‑

Page 157: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 157 ×

ros estacionados ao redor do portão confirmaram as suspeitas de Oliver.– Faz sete anos e isso não mudou nada. Eu praticava rachas para

ganhar uns trocados – explicou Oliver, fechando os dedos fortemente ao redor do volante. – Mas eu não pude continuar correndo quando percebi que precisava trabalhar para sustentar a casa. E também fiquei convencido de que aquele tipo de coisa era a mesma que matou meu pai e me fez querer esquecer o passado. Então os larguei e fui esquecido.

– O que exatamente você está falando? – indagou Badeck.– Não quero nem saber o que você pretende fazer... – retrucou a

voz fraca de Ariane. Um roxo nascia em sua testa. Acelerando, Oliver prendeu‑se bem no banco. Os portões me‑

tálicos explodiram ao serem acertados pelo carro, revelando a fábrica abandonada. Um grupo de jovens excitaram‑se na presença dos cinco carros policiais. Rodeando a antiga fábrica de tecidos, Oliver lembrava que costumava frequentar aquele lugar, onde normalmente ocorriam festas, tráfego de drogas e corrida com carros turbinados no meio da vila. E foi exatamente por aquilo que seu suposto pai morrera para sal‑vá‑lo. Depois de uma briga por causa de mulheres e drogas, Oliver fora parar na prisão no meio da noite chuvosa. Seu pai viera buscá‑lo. En‑quanto recebia um sermão na estrada a caminho de casa (na época eles moravam no interior e precisavam viajar uma hora e meia para chegar ao centro da cidade), um incidente lançou‑os para fora da pequena ponte que atravessava um rio largo. Oliver não se lembrava disso. Sua culpa não lhe permitia lembrar‑se do incidente ou, possivelmente, de um as‑sassinato. O veículo afundou, seu pai tentou salvá‑lo e, enfim, acabou por morrer.

– Louco! Você é louco! – gritava Ariane. – Pare o carro! O carro rodeou a fábrica sobre uma pista improvisada por tinta

e latas de lixo. Um dos carros federais até tentou bloquear a saída, mas os carros de racha que saiam da antiga fábrica eram acompanhados de muitas pessoas e a circulação do veículo se tornava inviável. Oliver con‑seguira atravessar a frente da multidão a tempo, tomando novamente a rua. Como formigas, os jovens apanhavam seus carros e juntavam‑se aos fugitivos. Perdidos, os carros policiais não encontraram saída.

– Pela primeira vez isso serviu para algo além de matar e viciar‑se – aliviou‑se Oliver, livre da perseguição.

– Seu idiota! – urrou Ariane. – Eu vou matá‑lo!Ela fez menção de avançar, mas Badeck impediu‑a.– Badeck, mantenha‑a parada. – Pare o carro! – pestanejou a policial.– Fique quieta! – irritou‑se Oliver. – Eu preciso de silêncio! Se

quiser continuar viva, tente agir como uma pessoa normal! Emburrada, ela fechou a cara.– Por que não me deixa sair?

Page 158: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 158 ×

– Eu tenho planos melhores para você... Irá me servir, e muito. – Oliver voltou a acelerar.

– Vai me matar? – desafiou ela, cruzando as pernas. – Morta você só serve para dar trabalho ao legista. – Grosso!Ela podia ser bonita, mas era mal educada.

Page 159: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 159 ×

Capitulo 13 Olho do dragão, lágrimas de anjo

Basílio demorou para sair do choque. Lembrou de onde deveria estar em Porto Alegre a princípio, imaginando que todo o acontecido da noite anterior não passava de um terrível pesadelo e que, naquele instan‑te, sua mulher o acordaria delicadamente, oferecendo‑lhe um saboroso café. Alan o esperaria ansiosamente para mostrar alguma novidade antes de pegar o ônibus e ir para escola e, felizmente, tudo poderia voltar ao normal. E então teriam de viajar à tarde usando a Estrada Velha, para serem atacados por cavaleiros encapuzados que incendiariam sua esposa enquanto o perseguiriam com seu filho. “Que seja um pesadelo, por favor”, pensou ele, enquanto encostava as costas no barranco à beira do rio e fitava as águas turbulentas. O pedaço traseiro da carcaça queimada do carro saltava para fora, enquanto o restante, mergulhado na água, estava preso entre as pedras do fundo do rio. A confirmação da verdade fez o peito de Basílio arder amargurado. Pensou em sua mulher com desgosto. Quis levantar, mas não encontrou forças. Lembrou que não podia fraquejar, pois ainda tinha o filho para defender.

Mais adiante, Alan observava o carro mergulhado na água e, ao seu lado, por incrível que parecesse, a gigantesca ursa negra fazia‑lhe companhia como uma mãe substituta. Ela lambeu o topo da cabeça do garoto, afastando os cabelos para o lado. Basílio levantou‑se cambale‑ante. A última coisa da qual lembrava era que se afogava, e a ursa viera salvá‑lo. De certa forma ela que o retirou das profundas águas antes que morresse. Mas... Como era possível que aquele animal fosse tão racional? Felizmente a ideia não era tão absurda quanto os cavaleiros armados de foices e montarias sobrenaturais.

“Céus,” refletiu ele incrédulo, “que loucura!”Basílio parou atrás dos dois, anunciando sua presença pelo amas‑

sar da terra com os calçados. A ursa voltou o rosto para ele. Seus tene‑brosos olhos vermelhos dividiam com os dois a dor da perda. Alan, di‑ferente do que o pai pensava, não chorava. Seu rosto abatido expressava serenidade.

– Pai! – exclamou ele ao levantar para abraçá‑lo.

Page 160: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 160 ×

Os dois permaneceram daquela forma por um tempo. – Filho, eu nem sei o que dizer...– Não diga nada. Eu já sei tudo o que preciso saber.Basílio afastou‑o e segurou‑o pelos ombros para encará‑lo. Alan

tinha um olhar calmo.– Eu sei que ela está bem agora. Vou sentir sua falta, mas... Baroon

disse que ela foi para o lugar em que merecia estar, longe desse mundo sofrido. Falou que nós nos reencontraremos, mas que irá levar mais um tempo, porque ainda existem pessoas que dependem de mim e de você.

– Baroon? – questionou Basílio sem compreender.A ursa parecia um pouco menos magra e menos terrível que o

aspecto da noite anterior. Sua face mais carnuda e natural carregava ex‑pressões mansas. Basílio pensou que o filho estivesse delirando.

– Ela disse que precisamos ser fortes e que teremos de enfrentar algo ainda pior, que está por vir – prosseguiu o garoto, mantendo o olhar firme no pai. – Quero que minha mãe fique orgulhosa de mim... E que saiba que quero tanto estar com ela que irei continuar vivendo, assim poderei ir para o mesmo lugar onde ela está, seja lá onde for. Não... Não vou chorar. Acho que... Acho que... Coisas mais tristes estão por vir.

Estupefato pela maturidade do filho, Basílio sentiu‑se envergo‑nhado por ter agido tão infantilmente. Estava certo de que Maria era um dos dois motivos pelos quais ainda vivia, mas isso não queria dizer que tudo havia acabado. Alan ainda vivia e dependia do pai. Precisava ser frio... Frio como no passado, para poder continuar.

– Não temos como voltar, então o único jeito é continuar – mur‑murou Basílio para si mesmo. A ursa os havia levado para a outra mar‑gem e só restava continuar o trajeto que estavam começando.

A ponte não existia mais. O homem sentiu, perplexo, algo bater contra seus pés. A ursa estava na beirada do rio, atirando peixes para fora da água com a pata grande. Um peixe gordo sacudia‑se frenetica‑mente perto de seu pé, ainda não convencido de que se tornara um al‑moço. Basílio soube que deveria ficar com ela, pois além de protegê‑los contra os cavaleiros do Chamado, ela também os protegia de si mesmos contra a desistência. Alan, com cara de nojo, juntou um dos peixes. Precisavam comer, mas não tinha alimento à disposição além do peixe caçado por Baroon.

O pai se abaixou e retirou o canivete que sempre carregava preso ao seu chaveiro, começando a limpar o peixe na tentativa de afastar os maus pensamentos da cabeça.

Cerca de duas horas depois, Basílio e Alan caminhavam lado a

Page 161: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 161 ×

lado na estrada. Haviam feito um pequeno velório para sua mãe, da beira do rio, com direito a uma oração e um buquê de capim. O calor infernal da tarde ardia em suas costas e os desidratava rapidamente. Baroon ca‑minhava logo atrás deles como uma guarda‑costas leal. Nenhum pingo de vida existia no meio desértico em que estavam. Não havia plantas ou árvores além do mato rasteiro que persistia no solo seco. Montanhas altas costeavam o horizonte a quilômetros de distância, semi cobertas por uma nebulosidade quase mística. Abutres rondavam‑nos do alto, aguardando o momento em que pudessem devorar seus cadáveres.

Alan acompanhou o olhar do pai.– Eu não gosto desses bichos...– Eu também não, mas eles não nos farão mal – prometeu Basílio,

fechando a mão em concha sobre os olhos.E, como se soubesse exatamente o que os dois falavam, a ursa

colocou‑se sobre duas patas e urrou para o alto, assustando tanto os abutres como os dois. Em questão de segundos não havia mais nenhuma ave no céu ou pelas redondezas.

– Por que você fez isso? – retrucou Basílio ao destapar os ouvidos.– Veja! – disse Alan, apontando para o alto. – Os abutres sumi‑

ram! Parece que... que...“Eles temem a ursa de uma forma fora do comum. Que espécie de

urso é esse?” perguntou Basílio mentalmente.– Você deveria parar de se questionar tanto e seguir seus instintos

– disse a voz feminina e sutil de Baroon. Seus lábios mexiam levemente, porém o som não era gutural e sim mental.

Basílio arregalou os olhos pelo simples ato de ouvir a ursa falar.– Quem é você? – gaguejou sobressaltado.– Eu sou você, – disse ela, aproximando‑se lentamente dele. Os

olhos vermelhos reluziam espectralmente com o sol – eu sou Baroon.– Baroon... – repetiu ele distante. – Mas... O que foi aquilo da... da

noite anterior? Minha esposa...– Sua esposa morreu, – ponderou ela friamente – porque existem

perseguidores atrás de você. Devemos continuar se não quiser pôr a vida de seu filho em risco.

– Espere! Quem está atrás de nós? O que eram aqueles cavaleiros? O que queriam? Por que diabos nos atacaram... E você... Por que fala?

– Tantas perguntas precisam de tempo para serem respondidas. Estive esperando por esse momento, mas nada pude fazer. A hora che‑gou e precisamos dar tempo ao tempo, cavaleiro.

– Cavaleiro? – berrou Basílio irritado. O simples fato de estar sendo comparado àqueles seres que mataram sua mulher causava‑lhe repulsa. – Nunca me chame assim! E eu exijo explicações!

Baroon exibiu os dentes pontudos. Basílio recuou receoso, baten‑do de costas contra Alan, que até então, não prestava atenção neles, mas

Page 162: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 162 ×

num ponto preto que se aproximava através da estrada.– Eu estou vendo um carro! – gritou o garoto exaltado. – É a

nossa salvação!O ponto negro, meio embaçado devido à reverberação da estrada,

lentamente adquiriu a forma de um jipe. – Devemos sair daqui! – exclamou a ursa. – Podem ser inimigos!– Sair? Essa é a nossa forma de salvação! – revidou Basílio, altera‑

do. – Não vou passar mais nem um tempo nesse lugar louco! Acabei de perder a esposa e estou conversando com uma ursa falante! Posso até imaginar o que vai acontecer depois!

Alan avançou alguns passos, protegendo a visão com a mão. Ha‑via um homem na direção. O veículo era novo, porém a poeira da estra‑da dava‑lhe um aspecto de velho.

– Me escute! – rugiu a ursa impaciente. – Existem coisas nesse mundo que são muito perigosas!

– Eu já percebi! – revidou Basílio grosseiramente. – E você é uma delas! Deixe a mim e meu filho em paz!

Acuada, Baroon recuou após o comentário. Basílio achou que tivesse sido muito rude com a criatura que salvara sua vida, mas não deixaria passar a oportunidade de conseguir uma carona. Alan parou ao lado do pai quando o jipe estacionou perto deles. O motorista usava um terno fino, azul escuro e preto. Ele desligou o veículo e desceu. Seus cabelos eram pretos e lambidos para trás, os olhos eram âmbar e as fei‑ções tranquilas. Ele ajustou a gravata e olhou para a dupla, abrindo um sorriso calmo. Tinha traços orientais nas feições.

– Achei que a estrada fosse abandonada – disse‑lhes o homem. Ele não parecia ter notado a ursa. – A propósito, podem me chamar de Wan.

Basílio não pôde deixar de notar que o homem usava terno. – Eu me chamo Basílio e este é meu filho Alan. Nós estávamos a

caminho daqui quando ocorreu um acidente. – Uma dor cresceu den‑tro do peito dele ao mentir a história. – Minha mulher... Minha mulher morreu, mas nós conseguimos escapar vivos. Estamos caminhando por essa estrada há horas!

– Oh, que terrível acontecimento! – comentou ele de olhos no garoto. – Espero que esteja tudo bem com vocês, ao menos.

– Nós estamos bem, sim. Recebemos a ajuda de... Ele olhou para trás, mas a ursa havia sumido sem deixar rastros.

Procurou ao redor, com expectativas de encontrá‑la atrás de uma árvore ou esconderijo, mas foi inútil. Teria sido ela uma invenção de sua ima‑ginação? Voltou a atenção a Wan, que o observava com cara de dúvida.

– Bem, eu consegui me soltar do cinto e salvar meu filho, porque a ponte caiu e nosso carro deslizou junto. Mas não tive tempo de pegar minha mulher – mentiu com uma expressão abatida.

– A ponte caiu? – indagou ele surpreso. – Então temo que não

Page 163: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 163 ×

conseguirei continuar meu trajeto. Terei de voltar... Querem uma caro‑na? A alguns quilômetros daqui nós temos uma instalação onde pode‑rão ficar até o momento de partirem em segurança para a cidade.

“As marcas de pneu”, lembrou Basílio quando estavam à beira da ponte. Então pessoas viviam naquele lugar abandonado? Até onde ele sabia, a estrada nada mais era do que um caminho largado ao desuso.

– Claro, por favor – pediu Alan subitamente. – Só nos tire daqui!Wan gesticulou com a cabeça e convidou‑os a entrar no jipe. Pai e

filho acomodaram‑se no banco de três lugares, ao lado de Wan que fez volta, tomando a direção contrária à ponte destruída.

– Eu queria cortar caminho... Conhecia essa estrada desde épocas anteriores; pensei que ainda pudesse usá‑la. Eu vinha de Curitiba para uma reunião, que seria ontem, às onze horas da noite, em Porto Alegre. Quando soube que a estrada de Florianópolis estava lotada por causa do feriado, não hesitei em vir por aqui. Não imaginei as consequências inusitadas desse lugar...

– Ah, sim –Wan concordou. – Essa estrada é cheia de perigos e não foi construída para trânsito de civis. É muito perigosa e mal cons‑truída... Admira‑me que a ponte tivesse durado tanto tempo. Custaria milhões para o governo reconstruir, não vale a pena.

“E está cheio de criaturas horrendas”, completou Basílio mental‑mente. Alan ouvia a conversa em silêncio, sentindo a ausência da ursa que fora deixada para trás. Estaria melhor se Baroon os acompanhasse... Os abutres voltavam a voar ao redor deles. Um corvo passou voando rasteiro sobre o vidro do carro e pousou no topo de uma placa corroída que informava “Mina Carvaris, Posto 3. 1km”.

– O que exatamente a sua instalação representa? Eu pensei que a mina daqui não existisse mais... – comentou Basílio pensativo.

– E, realmente, não existe mais mesmo, nós apenas aproveitamos o espaço que ela ocupava – respondeu o homem, reduzindo a velocidade após um tempo.

Mais adiante, grades altas de metal delimitavam o terreno grande onde se erguiam um prédio de dois andares, duas casas de concreto e centenas de pequenas cabanas em ruínas escurecidas. Quatro rastros de pneus grandes marcavam o asfalto em linha reta de onde estavam até dois metros antes dos portões, em seguida realizavam uma circunferên‑cia e desapareciam entre os pedriscos.

– Como eu posso dizer isso... – falou o homem para si e, em segui‑da, para eles. – Nós formamos uma organização que busca desenvolver novas formas de melhorar a vida humana. Montamos nossa base nessa mina abandonada porque existe uma substância na redondeza chamada “Olho do Dragão”, que, segundo as nossas pesquisas, é capaz de mudar a estrutura das moléculas de qualquer tipo e torná‑las imortais. Interes‑sante, você não acha?

Page 164: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 164 ×

– Nunca ouvi falar a respeito disso. – Não há nada a respeito disso ainda, porque não divulgamos.

Aliás, você apareceu aqui em um momento de comemoração, porque hoje será a nossa primeira aparição para o público. – Wan sorriu com certa malícia.

Os portões metálicos ficavam cada vez mais próximos. – E... O que esse Olho do Dragão tem de especial? – indagou

Alan curioso. – Por que esse nome?– Ah, – Wan riu – existe uma história que meu avo chinês me

contava. Ele dizia que existia um dragão negro de olhos azuis chamado Reru. Seu poder incomensurável foi selado pelos deuses da época, den‑tro de seus olhos azuis, porque Reru era dominado pelo mal e chacinava muitas aldeias. Junto com o poder, também foi selada a sua imortalida‑de. Diziam que o poder de Reru era puro e devasso ao mesmo tempo. Ele era capaz de mudar tudo o que queria, bastava apenas desejar. Trans‑formava água em fogo, terra em ar e também conseguia mudar a forma de pensar das criaturas a ponto de curá‑las de qualquer doença tanto físicas como mentais. Após muito tempo tentando provar que era bom, os Deuses disseram que para Reru liberar seu poder, ele precisava das lágrimas de algo tão puro quanto a água.

“Crente de que poderia conseguir as tais lágrimas puras, ele vas‑culhou a face da terra toda atrás de alguém que fosse extremamente puro. Certa vez um demônio disse que existia uma criatura pequena que vivia no alto da montanha. Ela era a única nas redondezas que ainda não tinha se corrompido pelo mal e que também não havia morrido nos in‑cidentes proporcionados pelo próprio dragão no passado. Reru foi até lá e ficou frente a frente com o pequeno cujas lágrimas deveriam ser mais puras do que a água. “Dê‑me suas lágrimas” pediu o dragão. “Me dê um motivo”, retorquiu o pequeno. Reru, querendo sua imortalidade de vol‑ta, pensou um pouco e respondeu em seguida, com um sorriso maligno: “Eu preciso de suas lágrimas puras para ser bom”. O ser baixou o rosto e começou a chorar. Reru ficou pasmo e estendeu a pata para aparar as lágrimas, mas o puro falou antes: “Então deveria usar suas próprias lágrimas, porque se contar as lágrimas puras que já conseguiu retirar de meus irmãos e amigos antes de matá‑los, você vai descobrir que possui mais pureza do que eu.” Pensando naquilo que o outro disse, o dragão começou a chorar. Chorou tanto que seu poder esvaiu‑se junto as lágri‑mas. Quando achou que era suficiente, Reru percebeu que o encanto que prendia seu poder se desfizera e, ao mesmo tempo, não restava mais nada de poder em seu interior. E o garoto usou de uma de suas lágrimas para si, adquirindo uma parcela do poder do dragão. Aprendeu a usar e transformar a matéria‑prima, de forma a ajudar outros tanto física como mentalmente. Antes que o garoto fosse embora, o dragão perguntou: “Qual é o seu nome?”, “Antes de tudo meu nome era Anjo, agora me

Page 165: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 165 ×

chamo Humano.” E foi assim que nasceu o primeiro humano.”– Uau – comentou Alan impressionado com a história. – E o que

aconteceu com a imortalidade?– O humano não a quis, e ela voltou a ficar selada nos olhos do

dragão, que morreu de velho.– Achamos que essa história combinava bem com nosso propó‑

sito, porque a substância ajuda e condiciona as pessoas a viverem mais. Então resolvemos nomeá‑lo como o Olho do Dragão.

Basílio pensou na história contada pelo homem. Os portões de metal diante do veículo foram abertos por um homem vestido de ja‑queta e calças pretas, óculos escuros e coturnos negros. Basílio esticou o pescoço para ver o corredor aberto entre as duas casas onde, anti‑gamente, os operários do posto dormiam. Se a morte de sua esposa o afetara, aquilo que veria seria ainda mais impactante. Seus olhos foram ao encontro de dois gigantescos Boeing 737 estacionados diante das três construções. A imagem dos aviões cravaram‑se em sua mente como brasa em pele. O que dois aviões daquele porte faziam naquele lugar perdido? Agora, as marcas de pneus na estrada ganhavam sentido. Um homem truculento vestido de preto abriu a porta do jipe e puxou Alan, que estava do lado da janela.

– Alan! – gritou Basílio, sem reação.– Aonde você vai? – indagou Wan, sorrindo maliciosamente ao

golpear a nuca de Basílio com a coronha da arma retirada do paletó.Ao cair sobre o banco, Basílio estendeu a mão para o filho que era

arrastado aos berros para longe do carro. Em um último fio de consci‑ência a única coisa que conseguiu foi pensar “Olho do dragão, lágrimas de anjo”.

Oliver concentrava‑se enquanto dirigia. Havia uma hora e meia que estava na Estrada Velha, cujo estado era mais do que péssimo. O caminho para o lugar ficava atrás de um mato alto no meio da interes‑tadual. Assim que encontraram a passagem, tiveram que subir o morro. Oliver teve a impressão de que o pneu fosse furar em um determinado momento, mas por sua sorte conseguiu atravessar todo o trecho até o outro lado do morro para encontrar o início da estrada. Logo na entra‑da, passaram pelo Posto Carvaris 1, que estava totalmente demolido.

– Estamos no meio do nada! – disse ela. – Solte as minhas alge‑mas, mesmo que eu tente, não há para onde fugir! Estamos viajando aqui faz um tempão e está doendo, cara.

Oliver atirou as chaves para ela, sem pestanejar. O vento seco causava ruídos pesados. “Quando eu o achar, o que vamos falar? Como

Page 166: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 166 ×

irei explicar? E se ele não acreditar?” pensava Oliver, remexendo‑se. “Ele deve ser compreensível, pensamento positivo.” Repentinamente, Oliver reduziu a velocidade. Mais adiante, as marcas negras de óleo e uma freada brusca de um pneu estavam na pista.

– Tem algo ali na frente. Vou ver, fique aqui – pediu Oliver, levan‑do a chave ao sair.

– Tome cuidado – pediu o guia.– Certo... Cachorrinho, eu vou só pegar a arma ali no chão... –

Ariane avançou o corpo para frente, esfregando os pulsos.Badeck dera um latido grosso, fazendo‑a recuar.– Entendi, não faço mais. O cavaleiro tocou o asfalto morno, onde uma trilha recente de

óleo, talvez de quatro a cinco horas atrás, deixava uma marca. Alguém teve o pneu furado em alguma das saliências e teve que parar para trocar. Agora... Quem andaria por aquele lugar? Seu cavaleiro? Outra pessoa? Era melhor continuar para descobrir do que ficar imaginando que tipo de inimigo ainda o aguardava. Estava receoso. Abaixou‑se, raspando os dedos no óleo novamente e refletiu. Entrou imediatamente no carro. Sabia que encontraria algo no final de sua viagem.

– Então... – incentivou o guia.– Alguém esteve por aqui recentemente e teve o pneu furado.

Acho que estamos na pista certa... Só não tenho certeza de quem foi. Amigo ou inimigo...

– Está falando com quem? – interrompeu Ariane, confusa. – Quem você persegue?

– Não é nada disso... – A ânsia de Oliver era evidente. – Eu vou encontrar alguém que há muito está no lugar errado. Eu não posso lhe explicar ainda porque nem eu mesmo sei direito, mas... Assim que des‑cobrirmos, você terá ideia do que eu falo.

O relógio digital embutido no carro indicava quatro e meia da tarde. Se não fosse mais rápido, perdê‑los‑ia.

– Será que ao menos você poderia dizer onde estamos? – questio‑nou Ariane impaciente.

Oliver suspirou.– Estamos na Estrada Velha. Ela é uma antiga estrada que passa

por cinco jazidas de minérios do interior. Foi criada em, acredito, 1960 e interditada em 1961, após um incidente durante sua construção. A ponte interligava o trecho sobre o grande Rio da Várzea, onde também era um antigo cemitério de escravos, foi destruída por uma detonação acidental. Trinta operários morreram... Em 1962 houve outra tentativa de reconstrução, mas um segundo e terceiro incidentes no mesmo lugar provocaram a morte de, ao todo, mais trinta operários e também pôs fim à construção da ponte. O governo proibiu o trânsito de pessoas no lugar, após descobrir que dois dos cinco postos não continham tanto

Page 167: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 167 ×

minério quanto o esperado. Meu avô morreu no último acidente. – E Oliver continuou:

“Tempos mais tarde, outros três postos foram destruídos por ex‑plosões criminosas... Puseram fim à empresa e fecharam o lugar para investigações. Segundo a polícia da época, o culpado provavelmente era algum inimigo da empresa que estava extraindo carvão da região. Dois anos depois, o último dos postos faliu por falta de matéria‑prima para pagar as dívidas e tudo foi abandonado. Meu pai conta que o motivo do desastre era do além... E que os culpados eram os índios mortos que desejavam vingança após terem seus túmulos profanados. Os operários que ficaram até o fim da empresa diziam ver espectros durante a noite, e ouvir vozes e gritos desesperados de amigos mortos.

“Dois motivos levaram as pessoas a não usá‑la: não é segura e não consta no mapa. Somente quem conhece a região transita por aqui... Mesmo sabendo da existência da Estrada Velha, é mais fácil usar a ro‑dovia que liga Porto Alegre a Santa Catarina. O governo não viu mais razões para continuar a construção da estrada e desistiu do projeto, abandonando‑a às próprias traças. Já passei por aqui duas vezes com meu pai... Daqui a alguns quilômetros passaremos pela segunda jazida de minério.”

– Eu não sabia disso... – comentou a policial, amedrontada pelo fato de haver assombrações por ali.

– Apenas quem esteve envolvido com a construção e os possíveis moradores das redondezas sabem disso. Não sei o que iremos encon‑trar... Só sei que estamos a caminho.

Badeck observou a paisagem meio desértica dos campos secos que rondavam a estrada. A mudança brutal de clima entre a interestadu‑al e aquele trecho desconhecido era enorme.

– Sinto que algo estranho está para acontecer...

Page 168: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 168 ×

Capitulo 14 Mil Anos

Basílio sentia uma terrível dor na nuca. Tentou se mover, mas cor‑das grossas e bem amarradas imobilizavam‑no. Uma mordaça de pano prendia sua boca, impedindo‑o também de falar. Estava em um quarto lotado de equipamentos e móveis antigos. Diversos quadros retratavam a construção do posto Carvaris três e também de seus operários. Um mesmo homem de bigode e monóculo aparecia em quase todas as fotos em preto e branco, sempre vestido de belo terno e acompanhado de alguém vestido com bom gosto. Sozinho no pequeno aposento, ele ten‑tou a todo o custo libertar‑se. No topo da parede, cuja tinta estava des‑cascada, funcionava um relógio, marcando quatro horas e cinquenta e três minutos. O entardecer não tardaria a chegar... E era difícil acreditar que todos os acontecimentos, como a morte de sua esposa, a aparição da ursa falante e os dois Boeing 737 estacionados no pátio daquele posto de extração de minério, aconteceram em menos de vinte e quatro horas.

Ele desistiu de se mover. Coisas estranhas sempre aconteceram em sua vida, como ouvir vozes, ver pessoas que não estavam lá e tam‑bém sofrer o preconceito por passar por aquilo. Mas nada fora tão in‑tenso como agora. Arfou pesadamente pelo nariz, esperando recompor o ar perdido.

“Preciso sair daqui e ajudar Alan”, refletiu Basílio, vasculhando o quarto escuro de longe. Ele desejou que uma luz acendesse no ambien‑te, mas como outras vezes, seus olhos pareceram ter uma capacidade especial para enxergar no escuro. A construção era bem antiga, pois não possuía indícios de iluminação elétrica. Deveria ter ouvido Baroon... A ursa sabia o que dizia. Começou a empurrar a mordaça com a língua, a fim de retirá‑la de dentro da boca.

– Você não parece muito confortável aí – comentou uma voz cor‑tês e com um forte sotaque francês.

Basílio pensou que estivesse sozinho, já que ninguém entrara no quarto nos últimos instantes.

– É, não parece mesmo – completou a voz estranha com um “quê” mecânico.

Page 169: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 169 ×

“Quem está aí?” indagou mentalmente, pois estava amordaçado.– Acalme‑se, eu posso ouvi‑lo. O coração do cavaleiro quase saltou por sua boca quando o es‑

pectro transpassou a parede ao seu lado com um sorriso por baixo da bigodeira. Ele parecia ter acabado de sair de um filme antigo: trajava um terno cinza claro de listras negras. Sua blusa debaixo do paletó possuía um estranho babado branco e contrastava com a pequena gravata bor‑boleta negra logo acima. Ele ajustou o monóculo no canto do olho e repousou a bengala lustrosa no assoalho. Não havia cor nele; o preto, branco e cinza eram os únicos tons. Também usava uma cartola preta com um laço branco na base. Basílio lembrava‑se de ter visto outros com aspecto semelhante. Seu rosto familiar e levemente enrugado era o mesmo das fotos estampadas na parede. O homem de sobrancelhas grossas, olhos escuros e nariz de gancho estava morto.

– Quem é você? – perguntou Basílio, arquejando doloridamente. Sua voz não passava de um abafado som sem sentido. Porém o velho pa‑recia entendê‑lo bem. “Esse cara está morto, céus...”, pensou agoniado.

– Meu nome é Adônis Carvaris. E... Obrigado pelo elogio. Eu sei que estou morto, obrigado – apresentou‑se ele, retirando a cartola e revelando a semi‑careca. Os cabelos da lateral da cabeça eram curtos e brancos. – Eu sou... digo, era o dono dessa mina.

Adônis recolocou o chapéu e apoiou as duas mãos enluvadas na bengala.

– Me ajude a sair daqui! – pediu Basílio raivoso. – Eu preciso pe‑gar meu filho!

– Embora eu realmente o queira, não posso desamarrá‑lo – co‑mentou o fantasma, ressentido.

Adônis ergueu a bengala, enfiando no peito de Basílio. Para de‑sespero dele, ela ultrapassou seu peito como se fosse um holograma.

– Sou de espírito e você de carne.– É, eu percebi... O cavaleiro forçou a mordaça mais uma vez, cuspindo‑a para fora

da boca com sucesso. Ofegou pesadamente e umedeceu a boca seca.– Eu não acredito que estou falando com um fantasma...– Que rude! – exclamou Adônis ofendido. – Nós, fantasmas, ado‑

ramos conversar. Vocês, vivos, é que nos temem! Se não quer minha companhia, então fique aí!

– Ei, espere! Não vá. Eu não queria ofendê‑lo... Passei por uma situação complicada nas últimas horas e perdi um pouco a cabeça, mas... Desculpe! – pediu Basílio com pressa na voz. Seria possível que estives‑se implorando a um fantasma para não deixá‑lo?

– Assim está melhor – disse o fantasma satisfeito. – Fantasmas não deveriam morrer e ir para o céu ou inferno? – Esse é um assunto muito delicado... – argumentou Adônis, ajus‑

Page 170: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 170 ×

tando o monóculo com a ponta do dedo. – Normalmente quem morre deve ir para o julgamento, sabe? Mas conosco a história foi diferente.

– Conosco? Então há mais fantasmas além de você aqui?– Sim, claro. Muitos de nós... Aliás, todos aqueles que morreram

no acidente da mina há um tempo atrás – disse o fantasma pensativo como se dialogasse sobre futebol. – Enfim, nós fomos assassinados e não descobrimos ainda quem foi o responsável por isso, logo, não po‑demos “descansar em paz”, entende?

Basílio não compreendeu. Adônis bufou impaciente.– Pessoas morrem e vão para o julgamento. Pessoas que são as‑

sassinadas e não sabem quem as matou, normalmente, vagam pela terra atrás da verdade e de quem lhes retirou a vida. Se você é morto e sabe quem o matou, nada o segurará aqui. Mas... Nós ficamos presos nesse lugar, entende? Vivos são sempre ignorantes! Não abrem a mente, por isso fica difícil explicar. Se nós não acharmos quem nos matou, nunca sairemos daqui!

– Entendi – mentiu Basílio que não conseguia mais raciocinar diante de tantas verdades. – Então você é uma alma penada?

– Digamos que quase isso... Mas eu acho esse nome muito vulgar. Sou apenas um andarilho em busca de verdades! – corrigiu Adônis. – Estou morto, mas ainda tenho sentimentos!

– Me diga o que está acontecendo aqui!– Não posso, – murmurou o fantasma – eles estão vindo.– Eles? Eles quem? EI! – chamou Basílio ao ver o fantasma desa‑

parecer quando transpassou a parede. – ADÔNIS!A porta abriu no mesmo instante e Wan entrou ladeado por dois

homens de preto.– Falando sozinho? Que estranho. – Ei, seu idiota! O que você fez com meu filho? Libere‑me daqui!

– ordenou Basílio, espumando de raiva. – Quando eu puser as mãos em você, arrancarei sua cabeça fora!

– Quanta violência... Existem meios mais fáceis de chegar a um acordo. Peguem‑no, Reru quer vê‑lo – riu o chinês.

Os dois homens levantaram Basílio à força em direção a saída.– Me soltem! Eu quero ver meu filho!– Se comporte e ele ficará vivo – ameaçou Wan já no corredor es‑

curo e extenso. Um aparelho movido a bateria fora preso na parede para iluminar, pois a construção era tão antiga que havia ganchos próprios para pendurar lampiões. A tinta da construção descascava. – Afinal ainda temos algo para negociar, não acha? Quando você não tiver mais nada além da própria vida, talvez fique mais fácil de nos acertarmos.

– Nem pense nisso! – rugiu Basílio, tentando se soltar, mas os capangas eram muito fortes e as amarras não permitiam movimentos muito bruscos. Uma poderosa dor assolava seus membros. – Aonde vão

Page 171: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 171 ×

me levar? Que tipo de instalação é essa? Um manicômio? Wan guiou‑os. Basílio achou melhor ficar quieto antes que ten‑

tassem algo contra Alan. Precisava raciocinar e descobrir que tipo de lugar era aquele e que pessoas viviam ali, assim ficaria mais fácil de agir. Odiou‑se por não ter ouvido Baroon.

Assim que passou por algumas portas mofadas chegou finalmen‑te à rua. Pousados com todo o fulgor na pista entre os prédios antigos, estavam os dois Boeing banhados pelo sol da tarde. Além dos aviões, dezenas de pequenas casas vazias preenchiam a vista até beirarem duas grandes crateras produzidas pela busca por minério, e um túnel que per‑furava o meio do morro. Basílio notou que, no interior da nave, rostos apavorados colavam‑se nos vidros dos aviões. Tratava‑se da tripulação e passageiros. Os reféns representavam a substância o Olho do Dragão.

Desconfiado de tudo o que acontecia em volta, Basílio deixou‑se guiar completamente pelo inimigo. Entre os dois aviões uma fogueira era montada por cinco homens de preto. Dois lobos que vagavam ao redor do terreno, farejavam e mantinham guarda. Foi com incredulida‑de que Basílio viu um abutre voar ao redor dos aviões e ir em direção aos dois lupinos. Abriu as asas, preparando‑se para pousar, e transfor‑mou‑se em um lobo branco. Sacudiu a pelagem alva para se livrar de algumas penas negras e juntou‑se aos outros dois como se trocasse al‑gum tipo de informação. Outros três abutres pousados sobre os prédios controlavam o movimento.

Uma mulher usava uma escada para pintar um olho na lateral di‑reita de um dos aviões com tinta vermelha, sendo auxiliada por outra que gesticulava e ajudava nos últimos retoques. Todos usavam preto. “Que estranho...” pensou ele ao ser carregado até o prédio de dois an‑dares. Wan abriu a porta e deixou que os dois brutamontes entrassem primeiro com Basílio. Aquele corredor era bem iluminado pelas luzes a bateria e tinham as paredes revestidas por mapas e fotos antigas. Wan guiou‑o até a sala, no final do corredor. Basílio foi atirado de peito so‑bre o tapete encardido e empoeirado da sala. A luz fraca do ambien‑te não era suficiente para mostrar os retratos e recortes de jornais nas paredes. Centenas de olhos de vários tamanhos e formas pintavam os móveis de vermelho e preto. Rabiscos, números, datas e símbolos es‑tranhos povoavam o chão. Um quadro branco encostado num armário de pinho continha uma estranha fórmula matemática, cujos números bizarros chegavam ao resultado final: um olho pintado de azul. O outro móvel do lugar era uma escrivaninha larga e repleta de papéis, em cuja superfície várias marcas feitas com uma lâmina guardavam frases em uma língua inumana.

– Reru, – chamou Wan, cruzando os braços sobre o peito – aqui está o homem do qual falamos.

Uma cabeça ergueu‑se de trás da mesa: era um homem que se

Page 172: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 172 ×

acomodou na cadeira rasgada. Ele tinha a pele morena, o nariz fino, o queixo proporcional ao rosto, cabelos ralos e claros e uma gigantesca cicatriz em diagonal que desfigurava‑lhe o rosto, começando na sobran‑celha do olho esquerdo e descendo até a orelha direita. Seus olhos azuis vivos refletiam uma malícia incomum. No centro da testa, um olho ta‑tuado em azul mirava sempre a frente. Naquele instante, a história que Wan contara sobre o dragão Reru viera à mente do sequestrado.

– Eu quero saber onde está meu filho! – insistiu Basílio. – Ele está bem – respondeu Reru rindo. Apesar do físico compac‑

to, sua voz era potente e clara. – Por enquanto, é claro.Basílio odiou aquele homem muito antes de conhecê‑lo.– Quem é você? O que aqueles aviões fazem estacionados nessa

instalação abandonada?A risada baixa de Reru virou uma gargalhada gostosa. O homem

levantou‑se, revelando o terno, a camisa, a gravata e os calçados pretos. Apesar do calor sufocante, ele usava também um sobretudo escuro de couro. Basílio cerrou os dentes de raiva.

– O que há de tão engraçado?– Você fala como se... Tudo fosse uma coisa ruim. Humanos têm

um ponto de vista tão pessimista, não é, Wan? – falou Reru, cruzando as mãos sobre as costas.

O chinês confirmou com a cabeça. Apesar do nome oriental, Reru era ocidental.

– Tem dois aviões estacionados em um lugar abandonado como esse! Eu vi pessoas lá dentro e... – lembrou‑se do abutre que virou lobo, mas não comentou sobre. – Me amarraram como se eu fosse um animal!

– É apenas um procedimento comum... Se colaborar não vai mais acontecer.

– O que quer de mim?Reru parou em frente a uma parede enquanto analisava alguns

recortes de jornais porcamente colados. Agora, mais perto de uma das lâmpadas improvisadas, Basílio pôde dizer que ele deveria ter por volta dos trinta e cinco anos.

– Existem sacrifícios que precisam acontecer... Certas pessoas de‑vem morrer para que outras possam sobreviver, não acha?

– Nunca ouvi tamanho absurdo! – retrucou Basílio, que na rea‑lidade já cansara de ouvir aquela frase em sua vida. – O que quer dizer com isso afinal?

– A humanidade está prestes a passar por uma situação muito di‑fícil e precisa de ajuda... E eu me dispus a ajudá‑la. Entreguei minha vida para auxiliar muitas almas condenadas – prosseguiu o homem.

Basílio arregalou os olhos.– Eu já ouvi essa história antes!– Claro que já, afinal ela está em todos os lugares!

Page 173: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 173 ×

O cavaleiro fechou os olhos ao lembrar da notícia que leu a res‑peito de uma suposta seita que estava chacinando pessoas. Como não foi capaz de lembrar daquilo antes? Agora os desenhos dos olhos faziam sentido, pois todo o lugar por onde os estranhos assassinos passavam, deixavam a marca de um olho.

– Vocês fazem parte da seita! – exclamou Basílio, pensando nos desenhos dos olhos nos aviões. – Eu li e ouvi ao respeito de vocês... Ma‑tam aonde vão! Chacinam inocentes sem a menor piedade!

– Tsc – muxoxou Wan. – Sempre de mente fechada.– Completamente. Tudo tem um propósito nessa vida – concor‑

dou Reru, voltando a encarar o prisioneiro. – Não existe propósito para matar inocentes, desgraçado! O que

vai fazer com aqueles aviões? Pretende matar toda aquela gente que vi?– Matar? Não... Apenas sacrificar para um bem maior. O fim de

uma terrível era está chegando e os tempos irão mudar. Precisamos estar prontos para isso – gritou Reru irritado com as acusações que recebia. Do seu ponto de vista ele acertava e os outros erravam ao contrariá‑lo. – Aprendi que as pessoas gostam de encenar! Gostam de chorar a mor‑te de alguém, alegrar‑se com o nascimento de outro, mas, no final das contas, não passam de mentirosos! Odeiam uns aos outros e logo se esquecem de perdoar.

“Eu me sinto enojado por pertencer a tal espécie... Mas isso vai acabar, porque apenas aqueles escolhidos por mim terão o direito de sobreviver! Ainda me falta uma alma para que isso seja possível... Você pode se juntar a mim se quiser. É tão impertinente e não teme a morte, acredito que seu lugar é ao meu lado! Então porque não troca seus olhos humanos para a visão privilegiada dos dragões? O Olho do Dragão tem como objetivo preparar apenas os melhores para sobreviver ao apoca‑lipse. Entregue seu filho e venha para o meu lado ou morra com ele!”

– Jamais! Jamais eu entregaria meu filho para um imbecil louco como você! – rugiu Basílio se desvencilhando dos braços dos capangas.

Conseguiu alcançar o canivete que sempre carregava em sua cin‑tura e cortou as amarras das mãos. Desferiu um soco na cara de um capanga e um chute na barriga do outro. Os dois caíram atordoados e Basílio aproveitou para cortar as cordas de suas pernas e pés. Quando terminou o trabalho e levantou, Wan desferia uma cotovelada em sua cara. Basílio recuou, deixou o canivete cair e bateu as costas na parede.

– É uma pena que tenha optado por isso, infelizmente. Pren‑dam‑no no porão e o deixem lá. Eu quero que o filho dele parta no primeiro avião junto com as cento e setenta e cinco primeiras vítimas. Quando o segundo avião partir, quero que ele vá junto – murmurou Reru, suspirando. E tratem de vistoriá‑lo para ver se não carrega mais nenhuma arma!

Wan assentiu e agarrou Basílio pelo colarinho, colocando‑o de

Page 174: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 174 ×

pé e desferindo uma joelhada em seu estômago. O cavaleiro arquejou e caiu de joelhos. Wan jogou o homem para cima dos dois capangas, que já estavam recuperados e de pé, e ordenou que o colocassem no porão do prédio. Basílio foi retirado da sala e levado até uma escada perto da porta pela qual entrara. Desceram os degraus que terminavam em uma porta de metal, abriram e o atiraram lá dentro. Basílio sentiu a porta ser fechada atrás de si e a escuridão absoluta rondá‑lo, por isso ele deduziu que não havia nenhuma abertura além da porta pela qual entrara.

Encostou‑se na parede e esperou a dor dos golpes passar até reco‑brar por completo a lucidez do pensamento. Seus olhos arderam quan‑do um foco luminoso acendeu‑se quase ao seu lado. A figura lumines‑cente de Adônis brilhava no escuro em um tom quase azul‑neon. Basílio conseguia enxergar os objetos cobertos por lençóis e caixas de madeira através do fantasma.

– Você levou uma surra de verdade, eihn? – perguntou o espectro debochado.

– Obrigado por me lembrar e por arrancar a minha última espe‑rança de salvar meu filho.

Adônis retirou a cartola e, após sentar‑se sobre uma das caixas empilhadas, depositou‑a sobre o colo. Lentamente, começou a despir as luvas brancas enquanto pensava.

– Gostei de você, rapaz. Lembrou a mim quando era uns cem anos mais novo. Na época em que eu vivia, quando tinha acabado de abrir a mina, tinha muitos sonhos. Eu achava que ia fazer sucesso, aju‑dar as pessoas com minhas descobertas... Na época, ocorriam muitas revoluções por essas terras e muita gente acabava sem emprego e, nisso, vi uma oportunidade de expandir meu trabalho e ajudar as pessoas ao mesmo tempo. Ah, não há nada como ter esperança e sonhos... Nós vivemos tão felizes durante nossas realizações. – Adônis suspirou. – Foi uma pena que eu tivesse morrido tão cedo.

Basílio olhou para o fantasma enquanto massageava o estômago.– Como você morreu?O fantasma pareceu entusiasmado em tocar naquele assunto,

como se esperasse a pergunta desde o primeiro momento em que co‑nheceu Basílio.

– Meus negócios atraíam muitas pessoas mal intencionadas, en‑tende? Eu atraía os pobres, dava‑lhes um emprego, moradia e dinheiro. Fazia com que crescessem e prosperassem na vida. Ninguém vê lucro na prosperidade dos outros. Parece que foi ontem que meu irmão entrou em minha sala. Ele era meu sócio e tinha direito aos cinquenta por cen‑to de tudo... O que era bom, já que ele também apoiava minhas ideias, sabe? Ele me disse que os operários estavam agindo estranhamente. Contavam que os espíritos de um cemitério antigo vagavam pelas terras à noite. Eu achava idiotice na época... Mas depois eu descobri que era

Page 175: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 175 ×

verdade. Depois da minha morte, é claro. Eu conheci um índio que gos‑tava de empalar pessoas... Ele era um sujeitinho bizarro, vou te contar! – narrou Adônis com um ar sonhador. Ao perceber que fugia do assunto, retornou ao foco da história. – Fui verificar como andava o desenvolvi‑mento da ponte. Como eu queria terminá‑la de uma vez, abri vagas para o trabalho noturno... E, ao chegar lá, os homens pareciam entorpecidos e assustados. Eles apontavam para a água e diziam que estavam vendo espectros brancos. Fui olhar e não vi nada... Quando me virei para falar com os operários, a ponte explodiu! Pensei logo ao morrer que tinha sido um acidente, mas depois de muito conversar com mortos me dei conta de que havia algo errado. Quando conheci esse sujeito empalador de quem te falei antes, ele me disse que eles pressentiram a explosão e o cheiro de morte. Foram avisar aos operários para que saíssem da ponte ou morreriam... Mas como ninguém entendeu, não adiantou muito. – O fantasma coçou a barba, empertigado com as lembranças. – Também soube depois que um dos espíritos tinha visto um homem encapuzado colocar dinamites abaixo da ponte. A iluminação noturna não era muito boa, portanto não foi difícil passar despercebido.

Basílio sentiu pena do homem.– Meu irmão tomou conta dos negócios e, lentamente, tudo se

desestruturou quando ocorreu o segundo acidente. Os operários fo‑ram despedidos e quando a terceira explosão criminosa destruiu a ponte novamente, eu tive certeza de que aquilo nunca mais ia funcionar. A empresa inimiga comprou as terras, continuou à procura de minerais e descobriu que não havia mais nada aqui... Então tudo foi explodido e a terra ficou em desuso. E cá estou em espectro e alma!

– Sinto muito. – Ah, não sinta. Já passou... – riu Adônis entristecido. – A morte

não é tão ruim às vezes... Permanecer assim é estranho no início, mas depois você se acostuma. Descobri muitas coisas quando permaneci por essas redondezas.

– Então você sabe sobre essa seita Olho do Dragão? – perguntou Basílio, aproveitando a deixa para coletar informações.

– Sei um pouco, sim – confirmou o fantasma, contente em ser útil e ouvido depois de morto. Gostava da sensação de conversar com alguém vivo. – Mas você vai ter que me prometer algo antes que eu fale o que quer saber.

– Se eu puder cumprir, sim... – Que irá salvar não apenas seu filho, mas todos os que estão no

avião – pediu Adônis, mexendo na aba da cartola.“Vai ser difícil, mas... Se eu negar, não conseguirei sequer salvar

meu filho”, refletiu Basílio, pensativo.– Farei o possível para salvá‑los também.– Esse tal de Reru chegou por essas redondezas faz alguns anos

Page 176: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 176 ×

e instalou‑se aqui na base C. Confesso que ele é um ser louco! Inteli‑gente, mas muito louco. Logo percebi que tinha coisas estranhas acon‑tecendo... Até o ano passado ele não fazia nada além de juntar pessoas para a sua seita e planejar alguma coisa grandiosa. A ideia do sequestro dos aviões foi daquele lupus... Como é o nome dele? Hon?

– Wan – corrigiu Basílio, secando o suor da testa. – O que é lupus?– Ora ! – exclamou Adônis insatisfeito com a falta de conheci‑

mento do desconhecido – Você já deve ter ouvido falar sobre os lupus. Não de forma correta, mas suponho que tenha uma mera ideia do que sejam. Lembro que minha adorada mãe me contava histórias sobre eles. Como é o nome mesmo? Lobisomem, eu acho.

Basílio sorriu, riu e depois gargalhou. Adônis não achou graça.– Do que ri?– Do que eu rio? Você... Está falando de... LOBISOMENS! E que

eles existem! – Lobisomens, não... Lupus. Os lupus assemelham‑se a lobiso‑

mens, mas, na realidade, não chegam nem perto – refletiu o fantasma, esquecendo que um dia ele também já fora ignorante em relação a essas coisas. – Eles são horrendos e impulsivos! Já vi o que eles são capazes de fazer quando brigam entre si. Provavelmente tinha abutres perto de você antes de o encontrarem, não? – Adônis sorriu misterioso quando Basílio parou de rir e ficou quieto. – Eles têm a capacidade estranha de se disfarçarem em animais quando querem. Você deve ter visto, não? É, pelo seu rosto, sim. Agora entende aonde quero chegar. Ainda quer rir, espertinho?

Basílio lembrou de ter visto o abutre transformar‑se em lobo. – Por que... Essas coisas estão acontecendo? Eu vejo essas criatu‑

ras por toda a parte... Cavaleiros, mortos, animais falantes e fantasmas!– Elas sempre aconteceram... Nós é que nunca paramos para ver!

Agora, preste atenção... Seu filho e você correm perigo. Eu sou um ve‑lho fantasma e não tenho mais condições de lutar na batalha dos vivos, mas seria terrível ver um homem tão virtuoso como você morrer nas mãos de um louco como Reru. Como eu dizia, Wan entrou para a seita com ideias inovadoras que tornaram a inteligência de Reru ainda maior! – contou Adônis. – Reru sequestrou os aviões com o propósito de rea‑lizar um sacrifício denominado Um Milênio de Vida.

– Um Milênio de Vida?– Sim, sim. Já ouviu a história do terrível dragão Reru? – indagou

Adônis ao ver Basílio concordar. – Então... Esse sacrifício tem muito a ver com essa história, segundo a qual, a pureza se encontra em re‑cém‑nascidos e crianças. Ou seja, os seres que ainda não tiveram a alma completamente tocada pelo mal e são os que mais se assemelham aos anjos. O sacrifício Um Milênio de Vida se trata de um ritual em que se trocam duzentas almas puras e cem almas adultas por um milênio de

Page 177: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 177 ×

vida e um poder quase inimaginável. Além de ganhar uma vida milenar, os sentidos são multiplicados, e o espírito do invocador se torna ex‑tremamente poderoso... É algo... Algo parecido com os cavaleiros que você viu. A alma de quem invocou se torna tão forte, com tanta energia que é capaz de afetar a carne. Se alguém conseguir um poder desses... Eu nem quero imaginar o que acontecerá. O poder da carne torna‑se, sem dúvidas, ilimitado... O poder do espírito tanto faz milagres, como causa destruição.

“Quando vivemos, estamos sujeitos à carne e ao espírito. A carne limita o poder do espírito para que não se transforme em uma arma po‑derosa. Para viver em terra, o espírito precisa do corpo. Morta a carne, cessa a possibilidade de o espírito tocar o material. E quando o espírito se vai, a carne torna‑se vazia e desprezível. Mas... Quando se encontra um corpo capaz de suportar o poder do espírito, não haverá limitações para seu poder se expandir pela Terra. E a força da alma, rapaz, é capaz de coisas inimagináveis. Agora imagine o poder de trezentas almas den‑tro de um único ser... Consegue imaginar o que quero dizer? Teremos um dragão Reru sem maldição e com muito poder, vagando por aí.”

Basílio baixou o rosto. Não se importava com a ideia de haver um dragão Reru matando por aí, mas sim com a segurança de seu filho. Se Alan tivesse que morrer para dar poder a alguém como Reru e Wan... Basílio jamais se perdoaria.

– Então existem crianças nos aviões?– Sim, muitas. Cento e noventa e nove pelo que eu sei... E mais

cem adultos contando com a tripulação. Falta uma criança para que o plano se concretize. Falta o seu filho...

– Jamais! – bradou o homem, ficando de pé. – Eu preciso sair daqui e tirar meu filho de lá!

– Não se esqueça da nossa promessa. Existem crianças lá! Crian‑ças inocentes! Não pode deixar que Reru concretize o sacrifício de mil anos! – Alertou Adônis também de pé.

O homem andava de um lado para outro.– Eu não esqueci! – retrucou, parando para retirar um dos lençóis

que cobria um piano velho. Retirou outro lençol que cobria uma penteadeira de madeira azul.

Abriu as gavetas sujas de teias de aranhas e atirou‑as no chão, derruban‑do pentes velhos e objetos de beleza.

– O que procura? – indagou Adônis curioso.Basílio não respondeu, ocupado em abrir uma caixa de papelão

mofada com dezenas de livros sujos e feitos a mão. – Ei! – exclamou o fantasma, abaixando‑se perto de um deles com

a capa de couro marrom escura. – Eu escrevi esse livro! Esses móveis... Pertencem todos ao meu antigo escritório!

Outras duas caixas foram ao chão revelando pastas e papéis anti‑

Page 178: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 178 ×

gos. Basílio descobriu uma escrivaninha de quase dois metros de com‑primento feita de madeira de salgueiro.

– Minha mesa! – murmurou Adônis com uma saudade marcante no olhar. – Está tudo aqui!

Basílio esfregou a testa e pôs as mãos na cintura.– É tudo seu?– Sim, tudo... Como eles ousaram tratar minhas coisas como lixo?

Existem documentos da mina que eram importantes nessas caixas! – disse ao passar a mão sobre uma pilha de papéis com mau cheiro.

– Tem alguma planta desse bloco por aqui?Adônis alisou a barba.– Acho que... Procure um armário de metal com quatro gavetas.

Deve estar por aqui em algum lugar!Basílio cobriu o nariz e a boca com um pedaço rasgado da manga

da blusa e começou a descobrir o resto das coisas no vasto porão. Au‑xiliado pela luz espectral do fantasma, o trabalho não ficou tão difícil, mesmo que uma névoa de poeira se erguesse. Havia muitas caixas com livros inúteis, e também pertences de muitos dos trabalhadores que dei‑xaram o lugar naquela época. Demorou um tempo para que eles achas‑sem o tal armário de metal e mais um tempo até conseguirem abri‑lo. Basílio usou um pé‑de‑cabra encontrado em uma das caixas. Destruiu o cadeado que prendia as gavetas, tendo acesso aos documentos mais importantes na época. Sem muito requinte ou paciência começou a jogar as pastas e papéis fora, ignorando os protestos do ex‑dono dos negócios, até encontrar uma pasta vermelha de cetim. Retirou o laço que a fechava, encontrando a planta do complexo 3 da mina. Basílio precisou manuseá‑lo com cuidado, já que o papel tão velho e frágil, com um toque mais forte, seria destroçado. Afastou a papelada do piso e estendeu‑a no chão.

Havia três construções grandes no mapa, distribuídas quase como um triângulo. O prédio A, que ficava de costas para a estrada, com um andar, o prédio B que ficava a direita do prédio A, com dois andares, e a terceira, que ficava de frente para o prédio B, era mais parecida com uma fábrica.

– Os aviões estão estacionados entre os prédios – disse Adônis.– Hmmm, – murmurou Basílio, analisando as construções – os

trabalhadores moravam onde?– Aqui, nessas casas... – Adônis usou a bengala para apontar cen‑

tenas de construções atrás do complexo. – O “esconderijo” de Wan e de Reru fica no prédio B, no final do corredor. – O fantasma afastou uma das plantas que mostrava apenas o complexo de dois andares. – Nós es‑tamos aqui, no prédio C. Antes de ser trazido para cá, você estava no A.

– O que é isso? – perguntou Basílio, apontando para uma das salas do complexo A circuladas de vermelho.

Page 179: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 179 ×

– É a sala “Explosiva”. Era lá que deixávamos as dinamites, usadas para abrir espaço na construção da estrada.

– Fica perto de onde estamos... – analisou o cavaleiro pensativo. – Acha que consigo chegar lá sem chamar a atenção?

– Dificilmente... Os lupus sentiriam você antes que chegasse lá.Basílio sondou a planta com os olhos de quem era experiente em

situações como aquela. Três assinaturas marcavam todas as plantas no canto direito. Adônis percebeu o interesse dele.

– Sou eu, meu irmão Doroval Carvaris e o advogado Antônio Martins, nosso primo. Nunca mais vi esse último depois de minha mor‑te... Ouvi apenas meu irmão falar sobre ele durante uma ligação uma vez. Disse que Antônio tinha viajado para fora do país quando a empre‑sa ficou perto de falir. Existia uma cláusula no nosso contrato de afilia‑ção de que Antônio tinha direito a vinte por cento dos nossos lucros e, só no caso de ausência de algum de nós, as rédeas dos negócios seriam dele. Como imaginei que isso era motivo de uma possível traição, ga‑ranti que as perdas de nossa empresa também pesariam em seu nome. O safado ficou enquanto a empresa lucrou, mas quando viu que, sem minha colaboração nos negócios, a chance de falir e criar dívidas era grande, ele fugiu.

– Quando os aviões pretendem partir?A frase acordou o fantasma de um amontoado de lembranças.– Creio que o primeiro deles partirá dentro de meia hora.– Meia hora? Por que não falou antes? – exclamou Basílio agitado. – Pensei que soubesse! – alegou Adônis, colocando a cartola na

cabeça. – Já pensou em algum plano?– Todos têm planos... Mas eles nunca dão certo. Preciso que olhe

para mim se há alguém no corredor – pediu o homem, retirando o pano que cobria o nariz e a boca.

O fantasma caminhou calmamente até a porta, transpassou a pa‑rede, aguardou alguns instantes e virou‑se para Basílio. Este abria o tam‑pão do piano e arrancava fora um dos cordões longos.

– Tem um idiota que está vigiando o topo das escadas. – Ótimo. Tenho pouco tempo para agir...Basílio enrolou as duas pontas do cordão do piano nas mãos e

desferiu um chute na porta. – O que está fazendo? Que brutalidade! – criticou o fantasma.Chutou novamente e novamente, provocando cada vez mais ba‑

rulho. Finalmente o som de passos e o ruído da chave sendo enfiada na fechadura preencheram o silêncio. Basílio meteu‑se entre duas pilhas de caixas e aguardou. Um dos capangas que o prendera naquele porão abriu a porta e entrou, apontando a lanterna para a bagunça em seu caminho.

– Qual é o seu problema, idiota? – indagou ele em voz alta. – Vou quebrar todos os seus ossos se não aparecer.

Page 180: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 180 ×

A única iluminação provinha da lanterna e de um resquício de luz que escapava do corredor lá em cima. O grandalhão avançou um passo e sacou a arma da cintura, apontando junto com o facho de luz.

– Reru ordenou que não o matasse, mas tenho a impressão de que se eu disser que você tentou fugir e, acidentalmente, disparei e o matei ele não me culpará. O que acha?

Basílio trancou a respiração quando o capanga parou perto das caixas.

– Você e aquele seu filho imbecil não poderiam ter aparecido em melhor hora... – prosseguiu ele, falando com intenção de fazer o homem se irritar e sair de onde estava. A grande quantidade de caixas cobertas por panos esconderia perfeitamente alguém na escuridão, mas ele tinha o olfato apurado.

Foi preciso muita força de vontade e controle de humor para não avançar no homem antes do esperado. Basílio soltou a respiração. O capanga sabia onde o homem se escondia. Sentia seu cheiro desde que entrara no porão. Espécies superiores como a dele eram capazes de re‑alizar façanhas inimagináveis, logo jamais perderia para um humano. O capanga retirou o silenciador do bolso e encaixou na ponta da arma en‑quanto falava e, num movimento, avançou até espaço entre duas pilhas de caixas. Disparou, mas não acertou nada. O desgraçado que tivera a má sorte de aparecer na hora e no lugar errado estava acocorado no chão. Basílio, que se abaixou um instante antes, chutou o joelho do ca‑panga com tanta intensidade que ouviu o barulho do osso ao deslocar. O inimigo despencou aturdido para o lado.

Sem pensar duas vezes, Basílio saltou sobre ele e o atirou con‑tra a parede. Golpeou seu ombro, fazendo com que largasse a arma, e envolveu‑lhe o pescoço com o cordão do piano.

– E aí, o que acha disso? – questionou Basílio. – E você errou... Eu não sou nenhuma das três opções que citou anteriormente.

O capanga tentou respirar, mas não conseguiu. O ombro direito doía e a perna esquerda estava deslocada para suportar o próprio peso. Se não fizesse algo logo morreria nas mãos daquele humano imprestá‑vel. Moveu a perna esquerda contra uma caixa e conseguiu colocar o osso no lugar com um impulso. Usando a perna ainda sã, desferiu um chute em Basílio e o atirou, com uma força maior do que o comum, sobre o piano. A dor que o cavaleiro sentiu foi cortante.

– Pensei por um momento que eu fosse realmente perder, mas... Sinto ter que retirar suas esperanças – gargalhou o capanga, massagean‑do o ombro dolorido e depois abaixando‑se para apanhar a arma.

– Ainda, não, idiota! – murmurou a voz pomposa de Adônis en‑quanto sua cabeça cintilante transpassava o piso abaixo da arma.

O capanga arregalou os olhos ao ver o rosto do fantasma.Aproveitando o momento de distração do inimigo, Basílio reco‑

Page 181: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 181 ×

brou a força e desferiu um soco em sua face. O homem recuou aflito e com o nariz quebrado. Sem pensar duas vezes, o cavaleiro recolheu a arma, levantou‑se e apontou‑a para o capanga.

– Acabou.E disparou. Não houve som, graças ao silenciador. A bala acertou

o peito alheio no coração. Assombrado, o capanga transformou‑se em cinzas, que se dissiparam no chão. Basílio, que esperava ver um cadáver, não soube como reagir. Adônis transpassou o resto do corpo para fora do piso.

– Você teve muita sorte de não ter morrido... Esse cara não é um humano, mas um dos lupus de Wan. Quando uma criatura dessas mor‑re seu corpo imediatamente desaparece, ou melhor, transforma‑se em cinzas... Por isso que não há vestígios ou provas delas pela terra, se é que me compreende. Você deve ter acertado o ponto fraco presente no coração! Imagino que, se tivesse errado, estaria morto, já que muitos deles não morrem tão facilmente!

Basílio sacudiu a cabeça e guardou a arma na cintura. Precisava se concentrar na missão de salvar seu filho... Subiu as escadas e saiu do po‑rão rapidamente, grato por não mais respirar o ar empoeirado do recin‑to. Agora... Segundo o mapa, a sala de dinamites ficava do outro lado, portanto precisava de algo para passar despercebido pelos tais lupus de faro aguçado. Ao olhar para o lado, um sorriso brotou em sua face: a lata de tinta vermelha usada para pintar os aviões estava sobre um banco ao lado da porta.

Adônis, sem falar nada, viu o homem sair do porão, já que estava pasmo com a precisão e frieza dele ao usar uma arma. Apenas um assas‑sino dispararia sem pensar duas vezes... Afinal, não é todo mundo que usa uma arma, acerta um tiro no coração e raciocina ao mesmo tempo. Mas quem se importava? Era só ele cumprir o prometido.

Page 182: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 182 ×

Capitulo 15Destino de um vencedor

– Há algo nas redondezas... – informou Badeck, saltando para o banco da frente e olhando para o alto através do para‑brisa. – Sinto que estamos sendo seguidos...

– Seguidos? Mas... Por quem? – indagou Oliver. A última vez que Badeck precisou usar seus poderes foi para localizar o posto de gasolina abandonado, quando ainda estavam com Joseph. Já Oliver foi utilizan‑do a espada para abrir passagem até a igreja de Acolhedor. Seria possível que estivessem sendo rastreados desde então?

Ariane riu, não sabia exatamente o que os dois conversavam, até porque apenas o soldado assassino falava, mas não pôde deixar de passar a oportunidade para pôr lenha na fogueira. Se ele iria matá‑la, então que ao menos ela o infernizasse o quanto conseguisse.

– Deve ser a polícia ao seu encalço. Em breve você vai estar atrás das grades ou, se possível, morto de novo!

– Não... – tartamudeou o cavaleiro. – Eu não me preocuparia tan‑to assim com a polícia.

Um abutre voou rente à estrada e pousou sobre o asfalto rachado, acompanhando o carro desde longe com o olhar apurado.

– Droga – grunhiu Badeck. Outras três aves negras voavam em círculos sobre o abutre pou‑

sado na estrada. Inesperadamente algo pesado caiu sobre o teto do carro e afundou o metal alguns centímetros. Ariane gritou assustada e Oliver freou bruscamente.

– Não! Não pare! – ordenou o guia nervosamente. – Continue!– O que está acontecendo? – perguntou Oliver, voltando a enfiar

o pé no acelerador. Uma segunda pancada afundou mais o teto metálico. – São os lupus... Eu não sei como são capazes de fazer isso durante

o dia, mas... Estão conseguindo! Continue, acelere!– Eu não posso acelerar muito mais! O carro vai pifar nessa estra‑

da esburacada! – exclamou o cavaleiro confuso e receoso. – Era só o que me faltava essas criaturas me incomodarem de novo!

Page 183: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 183 ×

Um rugido alto semelhante a um uivo estourou acima das cabeças do grupo e cinco garras longas e curvas rasgaram a proteção metáli‑ca junto com a terceira pancada. Ariane recuou apavorada e trêmula para o canto do carro. Badeck começou a latir e a rosnar ferinamente. “Que diabo está acontecendo? Como esse monstro veio parar no teto?” perguntou‑se Oliver sem compreender. E sua resposta veio em segui‑da: o abutre parado no meio da rua alçou voo quando o carro estava próximo. E então, Oliver viu, em câmera lenta, as penas da ave caírem e sua silhueta aumentar de tamanho até ganhar as dimensões um pouco maiores do que um homem alto. A criatura tinha pelos negros e densos, peito largo e orelhas longas e pontudas, como as de um cão esperto. A estrutura de seu corpo assemelhava‑se à de um homem, porém era muito mais forte e poderosa. As pernas longas realizavam quase um “Z” e terminavam em pés com quatro dedos longos com garras. A ca‑beça em formato lupino era muito maior do que a de um lobo comum, tinha o focinho longo e largo, os dentes afiados e capazes de arrancar uma cabeça humana num único movimento. Os olhos amendoados e desafiadores encararam os de Oliver diretamente, ao mesmo tempo em que seus poderosos braços envolviam o capô do carro, e, com suas mãos segurava‑se no metal para não cair de cima do veículo. O impacto fez o carro tremer e quase virar, mas Oliver conseguiu controlar a direção mesmo com um lobisomem sobre o para‑brisa, ocultando‑lhe a vista. Ariane encolheu‑se mais ainda no banco, choramingando de medo dos monstros que tentavam atacá‑los.

– O que essa coisa está fazendo aqui? – questionou Oliver, sem enxergar a estrada.

O monstro quebrou o vidro do para‑brisa com um único soco. Oliver tinha se esquecido de como eram os lupus, havia acontecido mui‑ta coisa desde sua noite na clareira com Pierre e Marlyn. Os olhos de Badeck cintilaram perigosamente ao avançar para cima da criatura a fim de mordê‑la. Porém, antes que pudesse atacá‑la, recebia uma pancada na cara e era atirado sobre o banco.

– Badeck! – gritou Oliver apavorado.– Tem carona para mais um? – indagou a criatura com uma voz

rouca e gutural. – Para você não, coisa ruim! – bradou o cavaleiro, enfiando o pé

sobre o freio.– Não! – gritou Badeck recompondo‑se. – Não pare!O carro, que desenvolvia quase cem quilômetros por hora e trepi‑

dava muito, gritou no asfalto com seus pneus. A força da freada brusca fora tanta que Ariane voara entre os dois bancos da frente. Precisou segurar‑se no braço de Oliver para não ser jogada para fora, pela janela dianteira, já sem para‑brisa. O lupus parado sobre o capô tentou cravar as garras no metal para se segurar, mas elas deslizaram sobre a superfície

Page 184: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 184 ×

lisa, fazendo com que voasse alguns metros e caísse no asfalto quente. Badeck enfiou‑se no espaço entre o banco traseiro e o frontal.

– Essa foi por pouco! – respirou Oliver, esquecendo‑se por um instante do segundo lupus.

Este, ainda sobre o teto do carro, fechou as garras e arrancou um pedaço do metal como se abrisse uma lata de atum. Oliver sentiu o bafo morno e fedorento do lobisomem quando este ergueu o pulso e prepa‑rou para amassá‑lo com um soco. Ariane recobrou a consciência e saiu do choque, retirou sua arma que estava na cintura de Oliver, apontou para o buraco e disparou quatro vezes contra o peito da criatura que, acuada e surpresa, não reagiu.

– Acelera! – mandou Badeck, aproveitando a deixa. – Antes que os outros venham!

Só de imaginar mais daquelas coisas peludas, mortais e fedoren‑tas, Oliver não pestanejou ao acelerar. O lupus caído sobre o asfalto havia sumido de vista e agora quatro abutres planavam no céu ao longe. O movimento súbito de aceleração fez o lupus ferido sobre o teto rolar sobre o vidro traseiro e cair. Rapidamente o veículo deixou‑o para trás, adquirindo velocidade e voltando a tremer com o estado precário da via de trânsito. Oliver ficou atento ao lobisomem caído até que ele se levantasse, como se nada tivesse acontecido, e se transformasse em um dos abutres, para se juntar em seguida aos seus companheiros.

– Os tiros... Eles não funcionaram! – comentou Ariane que ob‑servava a criatura ferida através do vidro traseiro. – Nem o impossibili‑tou por muito tempo!

– Os lupus têm a cicatrização avançada e são muito poderosos. Ao atirar contra um lupus, se você não acertar um ponto fraco, o máximo que vai conseguir será um pequeno espaço de tempo para fugir. Isso está errado! As criaturas das gerações raciais passadas não deveriam virar monstros durante o dia! – explicou Badeck ofegante.

Ariane ouviu a segunda voz masculina ecoar fraca no carro, pois a abertura no teto e a janela sem para‑brisa permitiam que um turbilhão barulhento de vento entrasse, e imaginou que estivesse começando a delirar. O que eram aquelas coisas que atacaram o carro? Pareciam... Lo‑bisomens. Seria uma conclusão até que boa se não fosse louca, porque lobisomens existiam apenas em histórias. Ou talvez não, pois acabara de atirar em um. Um frio na barriga a fez largar a arma sobre o banco quan‑do percebeu que a estranha voz vinha do cão. “O cão está falando...” pensou assolada por uma sensação de vazio.

– Isso só nos põe na pista certa! – pensou Oliver convicto e cho‑cado ao mesmo tempo. Sentira a morte passar bem perto e diante de seus olhos segundos atrás.

Se não fosse por Ariane estaria agora moído como guisado.– Você está bem?

Page 185: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 185 ×

– B‑bem? – gaguejou ela, passando a mão trêmula na testa pálida. – Como você quer q‑que eu esteja bem depois disso?

– Deve ser um choque grande para ela – comentou Badeck atur‑dido com o vento que passava pelo vidro quebrado e os golpeava. – Não deveríamos tê‑la trazido.

Ariane olhou incrédula para o cão como se ouvi‑lo falar tivesse sido uma impressão pós‑choque.

– Eu... Eu não... Vou discutir com um cachorro... – e desmaiou.– É impressão minha ou ela te entendeu? – indagou Oliver, no‑

tando uma placa metálica mais adiante.– Às vezes determinadas experiências trazem traumas tão grandes

que colocam as pessoas muito próximas de sua sensibilidade espiritual. Isso passará quando ela se acalmar – explicou Badeck que já esperava algo parecido.

“Sinto que nunca mais voltarei à minha vida normal...” pensou o cavaleiro, passando a língua sobre os lábios. Precisava aceitar a verda‑de... Se continuasse a relutar morreria vítima de sua própria incredu‑lidade. Acolhedor alertou‑o de que encontraria coisas as quais jamais teria imaginado estarem pela Terra. Admirava‑se que os humanos não soubessem da verdade que passava debaixo de seus narizes. Vizinhos, amigos, companheiros de trabalho, colegas de escola... Eles estavam lá, disfarçados e vivendo entre as pessoas como homens ou mulheres, mes‑mo que, em sua essência, não fossem humanos. O que mais existia? Uma estranha curiosidade martelou sua mente. A verdade estava sendo revelada para ele...

A placa, apesar de corroída pelo tempo, ainda tinha as letras ama‑reladas visíveis: “Posto de Mineração Carvaris 3 – 5 km.” Haviam passa‑do por dois postos e até agora nada de encontrar o cavaleiro, as esperan‑ças de Oliver teriam se esvaído se não tivessem encontrado o primeiro dos inimigos na estrada. Precisava continuar... Sabia que estava no ca‑minho certo. Seu cavaleiro estava naquela estrada e precisava de ajuda.

Basílio precisou dar a volta maior na instalação se quisesse chegar até o prédio A.

Reru queria sacrificar trezentos inocentes para adquirir mil anos de vida. Mesmo parecendo impossível e inacreditável, o homem despre‑zaria o direito de viver dos outros para incrementar o próprio poder. Um homem cujo pensamento chega a beirar a loucura, como aquela, não deveria existir. Reru escolheu, erroneamente, o filho de Basílio. Este nunca foi muito sentimental... Seu passado dizia isso. Então por que perder tempo salvando as outras crianças? Poderia simplesmente

Page 186: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 186 ×

pegar seu filho e fugir ao invés de perder tempo com terceiros. Mas somente de pensar o que Reru faria com tantos inocentes enojava‑o. Crianças não tinham culpa do que a humanidade fazia, logo não mere‑ciam pagar por tal preço. E Wan... Aquele desgraçado pagaria por tê‑lo batido de forma tão humilhante e enganado seu filho. Basílio não lutava por si, mas sempre pelos outros. Procurava uma razão que o levasse fazer o que sua consciência pedia: matar quem merecia.

Já havia cruzado mais da metade do caminho quando foi obrigado a parar e esperar. Dois lobos demoraram quase cinco minutos parados no espaço entre uma casa abandonada e o prédio a que queria chegar. Eles pareciam farejar o ar insistentemente e empertigaram‑se quando dois abutres pousaram diante dele.

– Tem estranhos a caminho. E eles nocautearam dois de nós em pouco tempo... Parecem saber o que fazem – informou uma das aves de penugem cinzenta.

– É a polícia? – indagou o lobo de pelo branco e voz feminina. – Não... É um homem, uma mulher e um cão, mas não parecem

muito normais! – explicou o outro abutre agitado. – O que há de errado com essa gente? – perguntou o lobo cin‑

zento de voz masculina. – Essa estrada é abandonada e, quando alguém decide usá‑la, é momento de trabalhamos nela. Vou avisar Reru e Wan a respeito dos estranhos... Comecem a juntar os outros. Faltam vinte minutos para que o primeiro dos aviões parta. E não podemos permitir que algo no plano dê errado por causa de intrusos.

O lobo branco e os dois abutres partiram em direção ao portão; o lobo negro ainda permaneceu um tempo pensativo. Sentiu o cheiro forte de tinta vindo de muito próximo e ignorou, já que os aviões pin‑tados estavam quase ao seu lado e, então, partiu em direção ao prédio B. Basílio esperou um pouco e avançou, correndo até alcançar a porta e entrar na instalação. Um grupo de capangas de preto discutia sobre a pintura feita por uma das mulheres no avião e não notou o intruso com os braços, pernas, pescoço e cabelos pintados de vermelho. A ideia de usar a tinta para camuflar o cheiro funcionara muito bem.

Logo que entrou, Basílio jogou‑se para dentro de uma saleta e fechou a porta, esperando que um grupo de duas mulheres e um homem saíssem da sala quase ao lado e se juntassem aos outros na rua.

– Eu detesto esse cheiro de tinta, – resmungou o homem, coçan‑do o nariz – e está cada vez mais forte... Meu nariz começa a arder toda a vez que o sinto.

As duas mulheres riram e uma delas fechou a porta assim que passaram . Basílio esperou pacientemente até o silêncio reinar, e deixou a sala, tomando o corredor novamente. Relembrou da planta do prédio e onde encontraria a sala de dinamites.

– Sétima porta à direita – murmurou ele, contando as portas até

Page 187: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 187 ×

encontrar a porta antiga perto do final do corredor.Apressou o passo, atento aos sons de perigo. Ouviu vozes, mas

relaxou ao perceber que vinham do lado de fora. Tentou abrir a porta da sala “explosiva”, mas ela estava trancada.

– Droga! – xingou baixinho.“Preciso agir” pensou o cavaleiro, encaixando o ombro na porta e

empurrando‑a duas vezes com toda a força disponível. Conseguiu fazer as fechaduras velhas e enferrujadas romperem, abrindo passagem para a sala pequena e escura. A luz espectral de Adônis preencheu o cômodo quando transpassou a parede.

– Você não fica bem de vermelho, mas fez um ótimo trabalho! Basílio não ouviu o que o fantasma falava, pois sua atenção estava

voltada para uma caixa de madeira forrada com palha, colocada no canto do quarto quase vazio. A palavra “Cuidado” entalhada em francês na superfície da tampa fez o cavaleiro engolir a seco.

– Ah, sim... As dinamites francesas eram as melhores na época – comentou Adônis, curvado para ver a caixa de perto. – Eu lembro muito bem o que uma gracinha dessas consegue fazer. Se for tocá‑la é melhor ter cuidado. Um movimento brusco e BUM! Você vai para os ares!

Um suor escorreu da testa suja de tinta de Basílio quando ele encaixou a mão na tampa e a puxou para fora delicadamente. A ponta vermelha de uma banana de dinamite já estava aparente em meio à palha velha, empoeirada e coberta por teias de aranha. O fantasma estava cer‑to... Se não tomasse cuidado, acabaria morrendo em vão. Um grito de pneus rasgou o silêncio do quarto. Lá fora, o som de metal sendo amas‑sado e arrastado, o estrondo de colisão contra o solo e de vidros sendo estilhaçados anunciavam um acontecimento. Basílio precisou compri‑mir os olhos e ignorar tudo ao seu redor: nada mais importava além da dinamite no momento.

– Ah, eu vi seu filho! – comentou Adônis quando Basílio estava prestes a pinçar a dinamite com o dedo.

– Meu filho? – indagou ele, quase deixando a dinamite cair.– Sim! Um garotinho muito esperto, por sinal. Ele está em um

dos aviões e quase escapou, burlando a segurança dos vigias de preto. Bem, ele está no avião que partirá primeiro! Então é bom ir mais rápido!

– Se aqueles imbecis tocarem em meu filho, eu juro que não terei piedade – ameaçou Basílio, voltando a concentrar‑se na dinamite.

Retirou a camisa que usava e envolveu a dinamite junto com um punhado de palha.– O que vai fazer com isso? Estourar Reru?

– Bem que eu queria – resmungou o cavaleiro ao sair do quarto e percorrer o corredor em passos lentos. Adônis acompanhou‑o logo atrás, mexendo nervosamente na barba.

– Rapaz, eu adoraria ter um companheiro como você por aqui, mas não é alguém que eu almejaria como um amigo.

Page 188: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 188 ×

– Eu sei o que estou fazendo.Basílio encontrou a porta entreaberta e terminou de abri‑la com

o pé. Surpreendeu‑se quando percebeu que o pátio estava vazio. Tanto os homens e mulheres de preto quanto os animais haviam sumido. Uma poderosa explosão movimentou a estrada e assustou o cavaleiro. O fogo e a fumaça tomaram conta da paisagem acima da instalação de onde aca‑bara de sair. Aproveitou a deixa para agir.

Andou vagarosamente em direção ao avião mais próximo à saída, que seria o primeiro a partir. Seu imenso porte chegava a causar cala‑frios... Encontrou o olhar de dezenas de pessoas apavoradas, com os rostos colados nas janelas. Certamente se houvesse algum vigia no avião esse já teria percebido sua presença. Apressou o passo e encostou as costas na roda gigantesca sobre a pista. Depositou no chão o embrulho feito com a camisa, abriu‑o e retirou a dinamite com cuidado. O início de um processo delicado começava.

Minutos antes, o carro escuro avançava na maior velocidade possível em direção à entrada da instalação 3. Ariane, Oliver e Badeck prendiam‑se com unhas e dentes nos bancos enquanto fitavam os dez homens e mulheres de preto parados no meio da estrada, apenas aguar‑dando a aproximação do carro.

– Eles querem nos impedir de chegar lá! O cavaleiro, Badeck... Acho que posso senti‑lo... Está perto, está sim! – exclamou Oliver emo‑cionado. – Uma sensação está me dizendo isso... É estranho, mas tenho certeza de que o cavaleiro está aqui, nessa instalação!

– Uma entrada sorrateira ia melhor numa situação como essa! – rugiu Badeck, sentindo o vento bater contra sua cara e arder nos ou‑vidos sensíveis.

– Não temos tempo para isso. Eu não entrei nessa para perder! E esses idiotas sabem que estamos aqui desde que nos atacaram antes – retrucou Oliver impaciente. Se havia aprendido algo com Shafa era não medir esforços em determinadas ocasiões.

– Você vai nos matar! – gritou Ariane agarrando‑se aos cintos de segurança. – E aquelas pessoas também!

– Aquilo não são pessoas! – rugiu Oliver, conferindo os cento e vinte quilômetros por hora no marcador. O carro sacolejou e voou mais de um metro ao passar sobre um buraco, por muito pouco não virando.

– Tome cuidado! – gritou Badeck enfurecido. Dois homens tomaram a frente do grupo. Suas fisionomias mu‑

daram de tamanho em questão de segundos, aderindo à forma de lupus. Um deles tinha a pelagem branca como a neve e o outro era um pouco cinzento. Ambos tinham mais de dois metros e meio de altura sobre duas patas, o corpo forte e a envergadura imensa.

– Se segurem firme! – ordenou OliverJá tinha em mente um plano de enviar dois daqueles cachorros

Page 189: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 189 ×

direto para o inferno. Os dois lupus aguardaram ansiosamente a chegada do carro, prontos para prensá‑lo com toda a força disponível e pará‑lo bruscamente. Era inimaginável que houvesse uma força capaz de parar um carro a cento e vinte quilômetros por hora. Mas eles eram capazes... Eles eram os lupus. Os dois monstros cravaram as patas no chão e pre‑pararam os braços, expondo dentes afiados e compridos, apenas aguar‑dando o momento certo. Sua saliva respingava do focinho comprido no asfalto, refletindo a raiva e a vontade de lutar.

– Nós vamos morrer! – gritou Ariane, terminando de colocar o segundo cinto e usando as pernas para segurar o corpo no banco.

Badeck cravou as garras no estofado e arregalou os olhos. E o ca‑valeiro riu. Talvez de nervosismo ou loucura... Não importava. Quando o carro estava a menos de cinco metros das criaturas, o cavaleiro virou o volante subitamente. Os pneus gritaram no asfalto, jogando fumaça e pó para o alto. Um dos pneus afundou num extenso buraco, fazendo o carro tombar para o lado e girar ao menos cinco vezes, enquanto quicava pela pista. Os lupus acompanharam o veículo que passou perto de suas cabeças e protegeram os rostos dos cacos de vidro e pedaços do pneu que estourara ao derrapar. Três dos lupus parados atrás do grupo não tiveram tempo de se esquivar do carro enlouquecido que os esmagou e os transformou em cinzas. Continuou a rolar pelo asfalto enquanto produzia uma barulheira infernal. Após o sétimo giro o carro virou ao contrário e deslizou com o teto. Dois pneus rolaram para fora da estra‑da; cacos de vidro e uma das portas deixaram pelo chão um rastro de destroços. Uma cortina alta de fumaça escondeu‑os momentaneamente dos olhos atentos dos lupus.

Lá dentro, Oliver abriu os olhos. Estava preso de cabeça para baixo no banco e seu rosto, espremido pelo airbag. Um corte sobre a sobrancelha sangrava bastante, mas, fora isso, o máximo que havia con‑seguido era um mau jeito no pescoço.

– Badeck? – chamou ele, olhando para o lado. O cão estava socado para dentro do banco, preso pelo airbag

numa posição estranha. Sua cabeça estava na altura das pernas traseiras devido à circunferência do corpo para dentro do banco. O animal soltou um rosnado irritado e agoniado.

– Ariane? Houve um longo silêncio. Oliver chegou a pensar que havia acon‑

tecido algo com ela, mas instantes depois um tapão acertava sua orelha.– Você está louco? – gritou ela irada. – Poderíamos ter morrido! Assim como Oliver, os dois cintos de segurança prendiam‑na de

cabeça para baixo. Os cabelos revoltos roçavam no teto lanhado e o rosto vermelho carregava um corte no lábio e outro na bochecha direita. Um metal, provavelmente da lataria da porta, estava perto da cabeça dela. A ponta afiada cintilava mortalmente como um alerta de que em

Page 190: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 190 ×

outra vez talvez ela não tivesse tanta sorte.– Precisamos sair daqui, – resmungou Oliver, passando a mão na

orelha dolorida – aquelas coisas vão vir atrás de nós... O cavaleiro realizou um malabarismo para se desvencilhar do air‑

bag e do cinto até conseguir engatinhar para fora. Badeck demorou um pouco mais, pois ficara preso ao banco, mas assim que recebeu a ajuda de Oliver, que precisou arrancar fora a porta, conseguiu sair. Ariane retirou os cintos e caiu de cabeça no asfalto, resmungou palavrões, igno‑rou a ajuda de Oliver e saiu do carro. Ela limpou o sangue que escorria dos ferimentos com a manga da blusa.

– Eu juro que... Que... Eu não faço a mínima ideia do que dizer.A cortina de fumaça começava a abaixar.– Vamos aproveitar a oportunidade! – disse Oliver, curvando‑se

para recolher a arma que Ariane deixara cair entre os bancos. Entre‑gou‑a para a policial e pegou a outra que se encontrava presa em seu cin‑to. – Use isso para se defender... Badeck, leve Ariane para a instalação. Eu vou me atrasar um pouco, mas nos encontraremos lá dentro. Posso senti‑lo, seja onde estiver e você também pode fazer o mesmo comigo.

– Eu não posso deixar você aqui! – exclamou o guia impaciente.– Faça o que eu mandei agora! E você, Ariane, vá com ele se não

quiser morrer!Vendo que não tinha opção a policial nem pestanejou. Não sabia

o que encontraria na instalação, nem mesmo o que o tal Bowager pro‑curava, mas era melhor do que ficar na estrada com aqueles animais. Badeck olhou irritado para o cavaleiro e depois seguiu em frente. Em sua patente como guia jamais poderia negar a ordem expressa de seu parceiro. Enquanto a nuvem de pó baixava, Oliver empunhou a arma em direção aos inimigos.

Os dois lupus monstruosos esperaram a fumaça dissipar‑se para agir. O veículo, em pedaços no chão, denotava que o indivíduo que rea‑lizara tal ato insano não sabia o que fazia. Os dois se olharam e começa‑ram a gargalhar. Outras duas mulheres acompanharam os grandalhões.

– Tem que ser muito idiota para fazer uma coisa dessas – argu‑mentou uma delas.

– Mais idiota ainda porque foi contra nós – completou a outra, sorrindo maliciosamente.

Os dois lupus esperaram que as mulheres se abaixassem para veri‑ficar o estado do carro e a presença de sobreviventes. Uma delas levan‑tou‑se rapidamente.

– Não há nada aqui! – disse ela.– Onde está o motorista? – indagou a outra, ficando de pé.– Como assim não há nada? – perguntou o lupus de pelo branco.– Porque eu estou aqui – disse Oliver, apontando a arma para o

lobisomem de pelo branco.

Page 191: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 191 ×

A fumaça havia desaparecido e revelado o cavaleiro parado a mais de dez metros deles, usando como escudo a outra porta que arrancara antes. Os olhos frios e calculistas encaravam as criaturas sem o menor receio. A raiva apoderava‑se de sua mente. O lupus cinzento gargalhou.

– Então você ainda está vivo!Oliver sorriu de canto.– Diferente de vocês que morrerão.– Não! – gritou a lupus que ainda estava abaixada.Oliver baixou a arma e disparou contra o motor do carro à vista.

Uma faísca foi produzida antes que o restante do veículo ateasse fogo e explodisse. Ele levantou a porta do chão, puxando‑a para si como um escudo. O fogo iluminou a estrada como um cogumelo laranja lumines‑cente que escurecia conforme a fumaça se expandia. O fogo engoliu as duas mulheres e as feras gigantes, transformando‑as imediatamente em cinzas. O calor e a força do impacto do vento atiraram Oliver para trás que precisou proteger o rosto dos pedaços de metal e vidro que caíam do ar como uma poderosa chuva.

Badeck já tinha atravessado um buraco na cerca que delimitava o prédio A quando ouviu a explosão proveniente do lugar onde Oliver estava.

– Continue andando! – ordenou o guia para mulher.Ariane viu o cachorro dar meia volta e correr novamente para

junto do seu dono louco. Desde quando ela obedeceria às ordens de um cão falante? Sacudiu a cabeça, comprimiu a arma nas mãos e seguiu costeando a parte traseira da instalação. Seu coração quase saltou pela boca quando percebeu os dois aviões sequestrados pela manhã e, desde então, desaparecidos. A marca vermelha da seita “O olho do dragão” reluzia com a luz do sol quase poente. O que aquele soldado assassino e seu cão falante tinham a ver com aquilo? Por que eles a levaram até lá? Nada daquele maldito lugar parecia fazer algum sentido para ela.

Basílio ficou de pé e secou o suor da testa. O peito largo e forte carregava algumas cicatrizes, um tiro no ombro direito deixara‑lhe a marca. Juntou com cuidado o pedaço de dinamite que sobrara, enro‑lou‑o no pano sujo e o repousou perto do peito.

– Mãos ao alto! – gritou uma voz feminina às suas costas.O homem olhou para trás. A tinta vermelha que coloria seus ca‑

belos e rosto dava‑lhe um aspecto de louco. – Eu disse para levantar as mãos! – retrucou Ariane, empunhando

a arma com firmeza.Basílio olhou para a dinamite nas mãos. Se largasse aquilo no chão

tudo explodiria e teria a vida terminada ali.– Quem é você? Ariane temeu o estranho que não receava o fato de ter uma arma

apontada para ele.

Page 192: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 192 ×

– Eu sou da polícia! E ordeno que levante as mãos!– Polícia? – questionou Reru, rindo com uma expressão ansiosa. –

Era só o que me faltava! As surpresas parecem não querer parar.Ariane apontou para o homem que acabara de chegar ladeado por

um chinês. Reru deu um sorriso maroto quando a policial empalideceu. Basílio virou de forma que pudesse enxergar os três. A dinamite ainda em suas mãos ameaçava explodir a qualquer movimento brusco.

– Você... O líder do Olho do Dragão! – murmurou ela pasma e tendo dificuldades para segurar a arma nas mãos suadas.

Uma nuvem espessa de chuva cobriu o sol e trouxe, precipitada‑mente, a noite. Os holofotes montados sobre os prédios foram aciona‑dos e iluminaram os dois aviões.

– É um dos fugitivos mais procurados nos últimos seis anos! – ex‑clamou Ariane. – É aquele louco... Antônio Martins, acusado de matar mais de cinquenta pessoas! E ainda invadiu um shopping durante um programa escolar e tentou matar outros inocentes, mas foi preso na época e fugiu um mês depois!

Reru, riu desgostoso. Basílio franziu a testa quando ouviu o nome “Martins”. Seus olhos pousaram em Wan, que o encarava desde que che‑gara lá acompanhado pelo líder.

– Me chame de Reru, milady – corrigiu cínico. – Meu destino de vencedor não permite que eu tenha um nome humano, porque dentro de algumas horas eu não mais pertencerei a essa raça de criaturas perde‑doras e fracas.

– Por quê? – perguntou Basílio, encarando Reru. – Por que preci‑sa matar tanta gente? É um erro! Você é um assassino! Jamais será um vencedor se seguir esse caminho! Alguém que... – ele baixou o olhar momentaneamente, recompondo a firmeza da frase em seguida – mata um inocente não merece existir! Tanto mais garantir mil anos!

– Quem te falou isso? – indagou Reru surpreso com o conheci‑mento do estranho. – Espere... Foi aquele fantasma idiota que vaga por aqui, não é?

Ariane não entendeu do que se tratava.– Eu sempre soube que aquele idiota do século passado, ou seja lá

o que for, ia me trazer problemas mesmo depois de morto!– Do... Do que você está falando? – indagou Basílio confuso. – Ah, então ele te contou a história. – Reru riu. – Você foi usado

pelo fantasma, humano idiota. Eu sou Antônio Martins, o advogado de Adônis e seu irmão. Você deve estar se perguntando “como é possível uma pessoa viver mil anos?” Então eu lhe responderei: “Da mesma for‑ma que é possível viver cem.” Essa não é a primeira, nem a terceira vez que eu tento algo parecido. Desde que descobri ser a fonte da imortali‑dade alimentada de almas humanas venho sobrevivendo à base da vida de inocentes. Uma vida aqui, dez ali... Porém eu cansei de ficar trocando

Page 193: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 193 ×

de corpo dessa forma esdrúxula! Então resolvi jogar grande... Usei as almas puras e infantis. Tantas quantas eu pudesse juntar! Foi então que descobri o pacto Um milênio de vida, que consiste em sacrificar duzen‑tas almas infantis e cem adultas. Viverei mais tempo e com muito mais força! Aumentar somente alguns anos de vida já não basta para mim... Se eu quiser sobreviver ao que está por vir precisarei de força! É uma imortalidade além do comum!

– Adônis disse que não poderia seguir enquanto não descobrisse quem era seu assassino! – exclamou Basílio incrédulo.

– Ele sabe quem o matou! Sabe que, quando ele morreu, foi sa‑crificado para incrementar meus anos de vida! E mais... – Reru riu com vontade. – Sabe também que pode partir a qualquer instante para o mundo dos mortos! Ele o está enrolando. Está usando para se vingar de mim! E você acreditou que era capaz de me matar! Wan, acabe com esses dois. Vou partir com o primeiro avião dentro de dez minutos. Faça o que quiser com esses dois, não me importa!

O chinês sorriu maliciosamente. Fazia certo tempo que esperava para acabar com a vida de Basílio. Ele levou a mão ao paletó e Ariane agiu instintivamente, disparando o que restava das balas no peito do inimigo. Wan arregalou os olhos e recuou um passo.

– Oh, que desgraça! Meu paletó de linho que eu encomendei do Egito! – exclamou ele incrédulo ao deslizar os dedos pelo ferimento e sacudir a camisa: duas cápsulas de bala amassadas caíram no asfalto. Os buracos no terno e na camisa mostravam a pele pálida do assassino. – Isso não se faz com os outros!

Ariane gemeu e Basílio decidiu que não usaria sua arma, pois não adiantaria contra os lupus. No entanto, Reru ainda era humano e digno de receber tantos tiros quantos fossem necessários para matá‑lo.

– Como é possível? A bala nem chegou a deixar marcas! – mur‑murou Ariane, olhando para a arma em sua mão.

– Há muitas coisas que vocês, pobres humanos, não são capazes de assimilar. Ah, tão fracos e ignorantes, será um prazer acabar com vocês. A policial despreparada e o papai metido a herói... Uma raça tão inferior quanto a sua não é capaz de enfrentar a minha.

Basílio e Ariane se entreolharam. Nunca se haviam visto antes, mas tinham a certeza de que eram aliados naquela briga. Wan começou a rir enquanto retirava o terno social lentamente.

Reru fez a volta, rumando para a pequena escada embutida provi‑soriamente no avião. Dois homens armados selecionados para controlar o grupo de cento e cinquenta pessoas, entre adultos e crianças dentro do avião, recepcionaram o chefe. Havia crianças, homens e mulheres aper‑tados nos bancos com expressões de terror e medo, fazendo hipóteses do que aconteceria com suas vidas nos próximos instantes. Alguém os salvaria? Onde se encontrava a polícia naquelas horas? Um amontoado

Page 194: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 194 ×

de crianças escoltadas por um terceiro homem armado chorava copio‑samente, esperando que o homem pintado de vermelho, lá fora, pudesse fazer algo por eles. A vida ainda lhes era próspera e a ideia de morrer tornava tudo em vão.

– Muito bem, crianças... Suas horas estão chegando. Prometo que a próxima parada desse avião será para um lugar diferente e inusitado. Seus pais ficariam felizes ao saber que serviram para um propósito tão importante... Para mim é claro.

– Você não pode fazer isso! – exclamou um homem careca e de olhos saltados que suava frio. – Não tem o direito de nos matar! A maioria são crianças, onde está a sua piedade?

Reru gargalhou gostosamente.– Ah, sempre tão tolos... Não conseguem ver que eu estou sendo

piedoso. Não fazem a mínima ideia do que irá acontecer com a humani‑dade nos próximos tempos e acham que minha decisão é errada. Estou poupando suas vidas, meus caros, ajudando para não pagarem na pele o castigo do fim.

O homem careca levantou, mas antes que pudesse falar algo, rece‑bia na nuca a coronhada do rifle de um dos capangas e desmaiava.

– Poupem meus ouvidos – reclamou Reru, dirigindo‑se para a ca‑bine dos pilotos. – Tem uma policial lá fora, tomem cuidado.

A necessidade de Basílio de pôr as mãos naquele oriental maluco de sorriso irritante fazia‑o perder a razão. Ele depositou a blusa com dinamite no chão.

– Você é da polícia, não é? Então pegue Reru e não deixe que parta com o avião! Ele vai matar todos os passageiros e morrer num suicídio maluco – pediu Basílio para Ariane, encarando Wan de frente.

Como Ariane confiaria em um homem pintado de vermelho?– Não pensem que passarão por mim com tamanha facilidade –

retrucou o lupus, terminando de retirar o terno e estalando o pescoço. – Vá! – clamou o cavaleiro apressado. – Não pense muito! Meu

filho está lá dentro e não merece morrer por causa da vontade maluca de um desmiolado!

A policial assentiu. As leis da razão não surtiam efeito naquele lugar, logo racionalizar não a ajudaria. Olhou para a escada ainda fixada no avião e avançou um passo em sua direção. Wan sorriu irritantemente ao arregaçar as mangas da camisa azul marinho.

– Tenho dez segundos para fazer isso antes que a policial entre no avião, então poupemos conversa – disse Wan, arrastando um pé para trás e posicionando outro na frente, inclinando o corpo e fechando o punho rente ao corpo e estendendo o outro com a palma aberta apontada para Basílio.

O cavaleiro não tinha nenhuma técnica de defesa pessoal a não ser a aprendida nas ruas. Sem sentir‑se menosprezado pelo adversário, foi

Page 195: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 195 ×

o primeiro a avançar. Tentou desferir um soco na face do inimigo, mas este esquivou‑se facilmente e revidou com uma espalmada em seu peito. Basílio recuou quase sem ar. Se um golpe de um humano já era duro de aturar, o que diria de um lupus cuja força é triplicada. Wan aproveitou a deixa para socar o inimigo no rosto e desferir um chute em seu peito, no mesmo lugar da espalmada, e atirá‑lo no chão como se não pesasse nada além de algumas gramas.

Basílio caiu de costas e sem ar, quase beirando inconsciência. “Não posso perder para um idiota que pretende sacrificar a vida de meu filho para viver mil anos!” pensou, com a visão turva. Seu peito parecia receber milhares de facadas conforme recobrava a capacidade de respi‑rar. Sobrevivera tanto tempo com a estirpe mais repugnante das ruas e, agora, perderia? Jamais. Alan precisava de sua ajuda.

Ariane colocava o primeiro pé na escada do avião quando a mão fria de Wan segurou seu pulso.

– Aonde vai? Fique comigo, belezinha.– Me solte! – exclamou ela, tentando puxar a mão de volta, mas o

lupus a deteve com intensidade. – A sua briga é comigo, idiota! – urrou Basílio, agarrando os cabe‑

los de Wan e batendo sua cabeça contra a escada de alumínio duas vezes.O lupus recuou aflito e confuso, dando a oportunidade de que

Basílio precisava para pegá‑lo.– Vá logo! Ariane continuou a subir a escada. Wan passou a mão na testa,

recuando a tempo de um soco proporcionado pelo inimigo. Basílio pre‑cisava de um único golpe para acabar com a felicidade daquele vaga‑bundo, portanto avançou e tentou desferir outro soco, defendido pelo antebraço do oriental.

– Ainda insiste em lutar! – disse Wan, esquivando‑se de outro soco de forma flexível como uma mola.

O lupus tentou contra‑atacar e foi bloqueado por um podero‑so soco de Basílio. Vendo que perdia, Wan precisou recuar e recobrar a concentração, fugindo de uma joelhada de Basílio para chutar‑lhe o estômago. O cavaleiro não se moveu, como se uma força potente e in‑descritível o mantivesse na luta.

– Não me subestime – ameaçou Basílio com os olhos raivosos.– Você deve morrer assim como seu filho idiota! – riu Wan, lam‑

bendo o lábio superior. – Isso acabou muito antes de começar!– Não fale de meu filho! – berrou o cavaleiro tomado pela ira. –

Você nos veio como um amigo e nos usou como um inimigo! Wan acertou outro chute no estômago do homem, espalmou seus

dois ombros e socou‑o na face. Diferente do que esperava, Basílio não demonstrou dor ou abalou‑se.

– Minha vez – tartamudeou o cavaleiro com malícia.

Page 196: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 196 ×

E, como num raio de segundo, Basílio desferiu uma sucessão de poderosos socos no inimigo. Wan usava os antebraços para aparar os golpes, porém estes vinham com mais intensidade a cada instante. Sur‑preendeu‑se quando o osso do braço direito realizou um sonoro “cre‑ck”, quebrando e proporcionando uma dor aterradora. Wan segurou o membro ferido, aterrorizado quando Basílio o segurou pelo colarinho e desferiu‑lhe uma cabeçada de quase rachar o crânio. Recuou alarmado e foi pego por um golpe final: Basílio juntou toda a força no punho e quebrou o nariz do lupus.

Wan deu dois passos para trás antes de desmaiar diante da potên‑cia dos golpes. Basílio admirou o corpo do inimigo com um ar vitorioso e caiu de joelhos, sofrendo com a dor dos ataques recebidos. Tombou de lado, cravou os dedos na terra e arqueou o corpo de dor.

– Maldito Wan – grunhiu ele, adquirindo uma posição fetal para pressionar os ombros doloridos.

O cavaleiro aprendera a bloquear a dor por alguns instantes, po‑rém ela sempre voltava com o dobro de intensidade quando cessava seu domínio. Cuspiu um pouco de sangue ao segurar o estômago. Tinha que admitir que o lupus sabia bater bem... Mas nenhum tipo de caratê batia suas lições nas ruas quando sua meta era salvar o filho. Pensou em Alan momentaneamente.

Uma bufada pesada e um grunhido fizeram Basílio gelar: o orien‑tal se contorcia enquanto seu corpo adquiria proporções animalescas. Um pelo marrom comprido recobriu todo seu corpo, músculos pode‑rosos desenvolveram‑se em questão de segundos e uma estrutura cor‑poral semelhante a uma mistura de lobo com humano transformou Wan no que ele realmente era: um lupus.

Ele ficou sobre duas patas, com a incrível altura de quase três metros. Semelhante a uma muralha de pelos e bafo morno, a criatura bufou. Uma espessa saliva escorria entre os dentes afiados e os olhos negros perfuravam o inimigo com gana e ira.

– Errei em subestimá‑lo! – exclamou a voz tirana de Wan. – Pro‑meto que isso não acontecerá mais!

Basílio arregalou os olhos. Então aquela coisa era um lobisomem? Eles pareciam menores nas histórias e nos filmes. Lutar contra uma besta com o dobro de seu tamanho não equivalia ao ato de bater num humano, ainda mais quando seu corpo ainda sentia a dor pelos golpes passados.

– Essa idiotice acabou! – bradou o lupus, avançando até Basílio. Quando ergueu a pata para esmagá‑lo, uma criatura de pelo negro

tomou sua frente e recebeu o golpe em seu lugar. Baroon grunhiu de dor e, sem recuar, jogou‑se contra Wan a fim de empurrá‑lo para longe.

– Baroon... – murmurou Basílio surpreso.Wan rosnou enfurecido para a ursa e começou a rondá‑la, intimi‑

Page 197: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 197 ×

dado pelo porte robusto. Ela não esperou para atacar, desferindo uma sucessão de bofetadas sobre o inimigo. Wan recuou ofegante, preparan‑do‑se para investir.

– Não fique aí parado! – alertou a ursa impaciente. – Pegue seu filho! E fuja!

Basílio entendeu o que a ursa estava fazendo e levantou com di‑ficuldade.

Oliver retirou a porta do carro de cima do corpo e ficou de pé, afagando as vestes com uma mão e segurando a arma na outra. A visão estava um pouco turva e, apesar de tudo, não estava ferido. Como a vida dava voltas, não era? Um dia trabalhava para uma firma de advocacia e culpava‑se pela morte de seu pai. No outro forçava acidentes de car‑ro para matar lobisomens. A princípio ficou hesitante em usar o carro como arma, mas depois de analisar os fatos, Oliver se dera por vencido e deixara o passado para trás. Não tinha porque continuar carregando o fardo de uma culpa que não era mais sua. Estava livre? Talvez. A vida continuava... Novas alternativas e caminhos davam‑lhe a chance de cor‑rigir o erro. Era exatamente isso que queria fazer... Corrigir os erros do passado. As necessidades pediam que esquecesse de tudo e acreditasse em si mesmo.

Quando Oliver viu os três lupus em forma de homens ainda vivos, através do fogo que crepitava sobre o carro acidentado, um sorriso bro‑tou em seu rosto. Finalmente encontrava algo que era bom e gostava de fazer, mesmo que parecesse tão errado para os outros. Fechou os olhos e chamou sua espada. Ficou satisfeito quando sentiu o metal frio tocando suas costas e a alça da bainha envolver seu ombro, pendurando a arma de forma que pudesse sacá‑la de baixo para cima. Parecia que sabia desde o início de sua vida como usar uma espada, sentimento que, até então, se mantinha escondido no fundo de sua mente. A espada dizia‑lhe como lutar e o ajudava a usá‑la. Queria lutar. Queria ser finalmente Oliver.

Os três lupus duplicaram de tamanho, adquirindo cada qual uma estatura de dois metros e meio de altura sobre duas patas. Um deles era preto, o outro cinza escuro e, por último, um de pelo bege amarronza‑do. As criaturas rugiram para Oliver agressivamente.

O cão negro saltou para o lado de Oliver. O corpo pequeno e arqueado começou a crescer num espetáculo bizarro e grotesco. O pelo do dorso e pescoço aumentou, os músculos ficaram mais visíveis e o aspecto tornou‑se bestial. Badeck alcançou quase dois metros de altura sobre duas patas; a cara com traços de pastor alemão quase desapare‑cia em meio à distorção anormal dos dentes longos e focinho magro.

Page 198: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 198 ×

Uma sensação de conforto afetou o peito de Oliver. Aquele era seu guia, parceiro, arma, e, acima de tudo, amigo. Um pressentimento ruim chamou‑lhe a atenção. Ele sabia que o cavaleiro estava em algum lugar da instalação precisando de sua ajuda.

Cavaleiro e guia não precisaram trocar nenhuma palavra, pois jun‑tos eram apenas um e sabiam de que precisavam. Badeck latiu e apontou as orelhas compridas para o trio de lupus que avançava em direção a eles.

O lupus negro foi o primeiro a saltar sobre o carro em chamas e foi recepcionado por Badeck, que avançou contra ele. Os dois rolaram pela estrada trocando mordidas e patadas poderosas. Rosnados e ga‑nidos repetiam‑se no ar enquanto a briga se desenrolava. O segundo, o lupus bege, correu afobado em direção a Oliver. Os dentes à vista, o pelo das costas arrepiado e as garras prontas para trucidar. Oliver enca‑rava o monstro com raiva e ansiedade, esperando o momento exato de atacar. Quando o lobisomem saltou com todo o peso, Oliver jogou‑se para o lado, rolou no asfalto e ficou de pé. O lupus bateu as patas no chão, irritado por errar o golpe, e virou para Oliver pronto para dar‑lhe o segundo bote. Seus olhos âmbares cintilaram quando viu Oliver que, parado quase ao seu lado, cortou seu pescoço com um único movimen‑to da espada. O lobisomem explodiu em cinzas.

Badeck abaixou‑se quando o lupus investiu pela segunda vez. Ro‑çou a barriga no asfalto, para saltar e agarrá‑lo pelo pescoço com os dentes. Sua mandíbula forte segurou firmemente o pescoço volumo‑so do monstro. O impacto dos dois corpos se batendo provocou um som oco, seguido de um “creck” após Badeck virar a cabeça do monstro para o lado e desarticular‑lhe as vértebras. Ao morrer, o inimigo tam‑bém tornou‑se cinzas que foram carregadas pela brisa fria, anunciando a tempestade que chegava.

O lupus cinzento que assistia de longe recuou diante da demons‑tração de poder dos estranhos e transformou‑se em um urubu para alçar voo. Oliver embainhou a espada, orgulhoso da forma poderosa do guia e por Badeck não se parecer em nenhum momento com os cavalos féti‑dos que tanto odiava.

Ariane precisou esperar um pouco para que pudesse entrar no avião. Os capangas estavam distribuídos pela aeronave, atentos e obe‑dientes como cães de guarda. Embora a briga entre Basílio e Wan se desenrolasse lá fora, eles não davam a mínima para o que acontecia. Viu Reru ordenar, antes de entrar na cabine dos pilotos, a um dos três su‑bordinados que retirasse a escada e preparasse tudo para partir. Uma mulher viu a policial parada na escada. Ariane pediu silêncio para a mu‑

Page 199: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 199 ×

lher e mostrou o distintivo, esta cutucou o homem ao seu lado, inician‑do assim um burburinho baixo entre os passageiros que chegou rapi‑damente até o fundo do avião. Em questão de segundos quase todos os passageiros ficaram esperançosos com a presença da policial. Um garoto de cabelos crespos e olhar graúdo gesticulou para o irmão ao seu lado, que rapidamente entendeu a mensagem e escorregou para fora do banco, fingindo desmaiar.

– Meu irmão! Meu irmão! – gritou o garoto de cabelos crespos ao sacudir o outro. – Ele não está passando bem!

Os três capangas olharam instintivamente para o fundo do avião e Ariane aproveitou a deixa para entrar, sentando‑se num dos assentos vazios ao lado de uma aeromoça trêmula.

– Você é policial? – perguntou ela baixinho.– Sim. Quantos homens têm aqui? – indagou Ariane.A aeromoça pensou um pouco.– Três estão cuidando do avião e, na cabine de pilotagem, existem

dois que sabem como pilotar – respondeu ela com a voz fraca. – Acho que os pilotos da nossa tripulação foram levados para o outro avião! Por favor, nos ajude... Estamos há horas aqui e... E...

– Shhh – pediu Ariane com os dedos nos lábios. – Vou ver o que é – disse um dos sequestradores, percebendo que

o controle do avião ia por água abaixo. O outro foi recolher a escada, que estava perto de Ariane. – Parem de falar! – ordenou o sequestrador, aproximando‑se dos

dois garotos e outros adultos que fingiam acudir. – O que ele tem?– Acho que está desidratado... – mentiu um homem, tocando a

testa dele com um falso ar de preocupação. – Parece não estar nada bem!– Deixe‑o aí, vai morrer mesmo dentro de algum tempo!Enquanto isso o outro sequestrador chegava até a porta. O ho‑

mem trajava preto e tinha uma metralhadora em mãos. Seus olhos im‑piedosos ignoravam o pavor das pessoas ao seu arredor. Ariane segu‑rou‑se firmemente nos braços da cadeira em que estava e preparou‑se para agir. Ele abaixou‑se para empurrar a escada e olhou para a policial obstinada quando ela o chamou.

– Isso vai doer muito mais em mim do que em você! – disse ela usando os braços da cadeira como apoio para desferir um chute no meio das pernas do estranho enquanto ele levantava.

O sequestrador caiu para o lado e a arma tombou de suas mãos. Rapidamente Ariane apanhou‑a e pegou o sequestrador pelo ombro, apontando sua própria arma para a cabeça dele.

– Quem é você? – perguntou ele com o rosto vermelho de dor.– Cale a boca e fique de pé! – xingou ela, posicionando o homem

diante de si como um escudo. – Vou estourar seus miolos se tentar qual‑quer coisa. E, acredite, essa não é a primeira vez que eu faço isso.

Page 200: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 200 ×

Um grupo de mulheres exclamou de medo e chamou a atenção dos outros dois para o que se desenrolava na entrada do avião.

– Mas que diabo está acontecendo aqui? – perguntou um, mi‑rando a arma para o parceiro nocauteado e a mulher ruiva atrás dele. Se atirasse acabaria por acertar o amigo.

– Larguem as armas ou eu o mato! – ordenou Ariane suando frio. – É a policial da qual Reru falou – informou o outro sequestrador.Era agora ou nunca. Se os sequestradores não demonstrassem

nenhum apego ao parceiro, os inocentes ali dentro corriam perigo. O capanga postado perto dos irmãos deitados no chão riu em voz alta e apontou o cano longo do rifle para a bochecha de uma senhora gorda e loira que chorava copiosamente no banco ao seu lado.

– Acha mesmo que essa sua tentativa vai salvar essa gente ridícu‑la? – indagou o capanga de olhos azuis e cabelos ralos, de arma na mão. – Olhe para eles! Tão medrosos e insensatos! Você é só uma idiota que acredita que salvará essas almas perdidas. Por que não muda de ideia e junta‑se a nós? Não perderá nada, sacrificando essa gente sem valor.

– Cale a boca! – ordenou Ariane com dificuldade. – Eu não quero saber o que pensa! Não me importo com o seu julgamento sem sentido! Já disse que vou matar seu amigo se não largar a arma!

As pessoas assistiam incrédulas ao espetáculo arrasador, que teria seu desfecho ali mesmo, dentro do avião. Morreriam, afinal, pois a ten‑tativa inútil da policial só provava que os sequestradores eram pessoas de sangue‑frio até mesmo com os da própria laia.

– Mate‑o se quiser.O capanga rendido se apavorou.– Está louco? Atire nessa mulher e me ajude!– Ninguém mandou você ser rendido por uma mulher! – falou

mal o sequestrador, pressionando a ponta do rifle com mais força contra a bochecha da senhora. Exclamações dos passageiros ecoaram no avião em conjunto. – Qual a graça de arriscar a vida por essas pessoas? Que diferença fará se essa mulher morrer aqui e agora?

– Não brinque comigo! – ameaçou Ariane, apertando o cano da arma contra a nuca do capanga rendido.

Havia errado feio na maneira de abordar. Os homens não de‑monstravam nenhum interesse pelo parceiro... O que colocava tudo a perder. Mesmo se o matasse ali, eles prosseguiriam com o plano normal‑mente. “Ele vai matar a mulher sem pensar duas vezes... Não posso per‑mitir que alguém morra por um erro meu. Eu sou uma policial e devo visar à integridade dos outros”, pensou aflita. Morrer precipitadamente não estava em seus planos, mas era uma das consequências do caminho que escolhera.

– Eu não devo matar ninguém aqui porque temos um número exato de pessoas para estar nesse avião. Porém... – ele sorriu maliciosa‑

Page 201: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 201 ×

mente. – Com você aqui, temos um a mais em nossa contagem. Você pode escolher entre a sua vida ou a vida dessa mulher, o que acha?

A senhora choramingou mais alto. – Por que está fazendo isso? – indagou Ariane firmemente. – Não

vê que está brincando com a vida dos outros? Como pode desprezar alguém assim? Não vê que irá morrer também quando o avião partir?

– Eu não me importo com ninguém! Essas pessoas são todas inú‑teis para mim e servirão apenas para o propósito de Reru! Não merecem mais viver, nenhuma delas! – exclamou o sequestrador com uma expres‑são insana. – Não são pessoas, são lixo! Reru entregou uma missão para mim e eu estou aqui para auxiliá‑lo, nem que custe minha vida! E então, já decidiu quem vai morrer ou eu terei de apertar o gatilho?

Ariane apertou a arma entre os dedos e fechou os olhos. Todos observavam a cena em silêncio. Repentinamente ela largou a arma e dei‑xou que caísse aos seus pés e empurrou o sequestrador para o lado.

– São pessoas sim e eu morrerei por elas – disse sem embargar a voz e abrir os braços. – Me mate, mas não machuque as pessoas.

– Com muito prazer – confirmou o sequestrador, mirando o rifle para a policial.

Um dos irmãos que antes encenavam um desmaio terminou de desenroscar um longo parafuso, já meio solto, que segurava o banco da frente no chão e o entregou para o outro. O garoto de cabelos crespos fechou o parafuso na mão e, ainda fingindo‑se de desmaiado, olhou com raiva para o sequestrador.

– Nós não somos lixo! Temos o nosso valor! – gritou, enfiando o prego no pé do homem.

O capanga disparou três vezes e os três tiros passaram rente ao corpo de Ariane. Um homem que observava a cena no assento ao lado bateu no punho do inimigo, fazendo com que soltasse o rifle. Antes que o terceiro e último homem pudesse agir, duas mulheres e três ho‑mens trataram de nocauteá‑lo rapidamente. Já que morreriam de qual‑quer jeito, ao menos fosse provando para si mesmos que não eram lixo. Rapidamente e, como se fossem organizados por um general astuto, os passageiros juntaram‑se ao redor dos três sequestradores e trataram de mantê‑los imóveis, amarrando‑os com cintos arrancados dos bancos e tomando posse de suas armas.

Ariane recuperou‑se do choque de passar tão perto da morte e sacudiu a cabeça.

– Monte uma saída para as pessoas, – pediu para a aeromoça – não devemos mais ficar nesse avião.

A mulher saiu em busca do escorregador de plástico que os reti‑raria daquele inferno.

– Isso foi incrível – disse uma voz masculina e ofegante. Basílio terminava de subir as escadas com um rosto abatido e

Page 202: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 202 ×

cheio de hematomas. Um rebuliço dentro do avião se formava. Não demorou para que o escorregador fosse montado e as pessoas saíssem dali aos montes e corressem para um lugar seguro. Os sequestradores foram presos no pequeno banheiro e a chave carregada junto com outra aeromoça. Ariane respirou fundo quando o último passageiro saiu do avião. Os olhos de Basílio temeram quando não encontrou o seu filho no meio da multidão.

– Devo pegar Reru – informou a policial obstinada.– Não, você precisa ajudar os passageiros antes que comece uma

confusão. O outro avião deve estar tomado também, então deixe esse comigo.

– Quem é você? – perguntou ela, pasma.– Sou alguém que teve o filho tomado por esse idiota. Agora vá e

ajude os outros, ou teremos um caos de grande proporção.Ariane pensou em relutar, mas uma gritaria lá fora começava. – Boa sorte – disse antes de descer pelo escorregador.Agora, finalmente sozinho, Basílio deu‑se conta da encrenca em

que ele e seu filho tinham conseguido se meter. A figura cintilante de Adônis transpassou o piso do avião até que surgisse com completo.

– Me desculpe por mentir – pediu o fantasma, retirando o chapéu e baixando a cabeça. – Reru era alguém mau que precisava ser extinto da face da terra e eu não pude perder a oportunidade de valer‑me de você, para tentar eliminá‑lo.

Atravessando a silhueta do fantasma, Basílio caminhou rumo à cabine dos pilotos. Sacou a arma com uma verdadeira perícia.

– Não importa. Agora é tarde para arrependimentos... Preciso sa‑ber onde está meu filho.

– Na cabine! – respondeu o fantasma no mesmo instante. – Reru sabia que o garoto representava uma ameaça e carregou com ele. Por que insiste em confrontá‑lo?

– Eu vou até o inferno para pegar meu filho – falou Basílio, enca‑rando o fantasma de soslaio.

Os olhos do cavaleiro ardiam numa raiva e intensidade comuns. Adônis sentiu‑se culpado por ter usado um homem tão diferente e inu‑sitado como aquele.

– Fui eu – murmurou o fantasma com vergonha. Basílio parou.– O que?– Fui eu que o trouxe até aqui. Um dos fantasmas do deserto me

disse ter visto um homem e um garoto na estrada que haviam sobrevivi‑do a um ataque dos cavaleiros do Chamado – revelou ele, constrangido e culpado. – Achei que... Achei que era uma boa chance e fiz com que os lupus percebessem sua presença. Até que você chegasse à nossa base levaria muito tempo e Reru não estaria mais aqui. Vocês estariam salvos

Page 203: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 203 ×

se não fosse por mim... Pus suas vidas em perigo!Adônis largou a bengala e se ajoelhou, tocando a testa no chão.– Me perdoe, por favor. Não foi minha intenção de que isso

acontecesse, mas você era a última chance que eu tinha de me vingar! Alguém que sobrevive a um ataque dos cavaleiros do Chamado não é alguém normal... Reru ia matar todas as pessoas e eu não poderia fazer nada! Não pensei nas consequências na hora, porque estava muito exta‑siado com minha tola esperança. Pus sua vida e a de seu filho em perigo sem sequer pensar. Achei que... Fosse capaz de acabar com Antônio!

– Levante‑se daí – mandou Basílio parado diante do fantasma. Seu semblante imponente e sujo de vermelho causava arrepios no fantasma. Aquele ser diante de Adônis não chegava nem perto de ser humano, sentia isso. – Já falei que é tarde para arrependimentos. Temos um res‑gate e uma vingança para cumprir e eu preciso de sua ajuda.

O fantasma levantou.– Não está bravo comigo?– Por enquanto não, – retrucou Basílio. Retirou da cintura a arma,

roubada do capanga que matara anteriormente, e conferiu‑lhe a muni‑ção. – Isso ainda não acabou...

Page 204: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 204 ×

Capitulo 16Vingança

Um frio percorreu a espinha de Oliver, anunciando um pressen‑timento ruim. Nuvens densas e grossas cobriam o céu e escureciam o dia uma hora mais cedo do que o normal. Raios assolavam o topo dos morros no horizonte, trazendo consigo uma poderosa ventania.

– O que está olhando? – perguntou Badeck já em sua forma ca‑nina normal.

– Não sei... – A lembrança da profecia fez os pelos da nuca de Oliver eriçarem‑se. – Algo muito ruim está a caminho.

Badeck mirou o céu com terror.– Precisamos apanhar o cavaleiro e ir embora daqui logo. Não

estou gostando disso!– Sinto a aproximação de alguém – informou o guia.“Polícia” pensou Oliver imediatamente. Um estrondo forte cha‑

mou a atenção dos dois: um lupus marrom atravessou as grades de metal que delimitavam a instalação e rolou até o meio da rua. Um rugido se‑melhante a um trovão ricocheteou no ar quando a imensa criatura negra e de olhos vermelhos avançou sobre o lupus, agarrou seu pescoço com uma pata e ergueu o outro punho fechado. Wan grunhiu e tentou recuar, mas a ursa era muito poderosa e o segurava firmemente contra o asfalto.

– Me deixe ir! – pediu o lupus, arranhando o asfalto com as garras.Mais um golpe da inimiga e viraria cinzas. Baroon arreganhou o

cenho, expôs os dentes afiados e rosnou ferinamente. – Jamais quero ver você novamente! – urrou ela, liberando o pes‑

coço do lobisomem.Wan arrastou‑se de costas, levantou‑se e transformou‑se em um

abutre de penugem marrom. Tão rápido como veio, ele desapareceu no céu. Oliver arregalou os olhos; a energia, o porte e os olhos da ursa eram‑lhe muito familiares.

– Badeck... – murmurou Oliver pasmo. A ursa virou subitamente para a dupla no meio da rua. Seus olhos

cintilaram como fogo e seu comportamento, diferente do que Oliver esperava, foi agressivo. O cão negro rosnou de volta.

Page 205: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 205 ×

– Badeck! O que está fazendo? – perguntou o cavaleiro confuso. – Ela... Ela é como você, não é? É a do nosso cavaleiro?

– Não há tempo para explicar agora! – exclamou o guia, tomando uma posição de defesa. – Vá e encontre o cavaleiro! Ela não vai parar até perceber que não somos uma ameaça!

Baroon rugiu alto e deu um passo à frente. Os músculos das patas e do peito assemelhavam‑se a toras. Oliver olhou uma última vez para o guia e partiu. Baroon avançou contra o pequeno cão que precisou recuar e esquivar‑se dos golpes. Lutar contra uma futura aliada era per‑da tempo, existiam outros inimigos mais interessantes no mundo que necessitavam daquele tipo de atenção. Oliver saltou sobre o pedaço de cerca caída, rumando para a instalação. Seu choque não pôde ser maior quando viu as dezenas de pessoas se acumulando no pátio e os dois gi‑gantescos aviões estacionados como feras de metal.

– Mas o que...? – perguntou para si. O primeiro dos aviões pareceu muito familiar; era o mesmo de

sua previsão. Então o que vira anteriormente era verdade? Cavaleiros não sonhavam, tinham previsões. Estendeu a mão e uma pequena gota de chuva alojou‑se em sua palma. Uma mulher ruiva destacou‑se do amontoado de pessoas, gritou algumas ordens e veio ao encontro de Oliver. Era Ariane.

A policial respirou fundo antes de falar.– Eu não sei como você soube dos aviões, mas...– Isso não importa! – exclamou Oliver extasiado. – O que está

acontecendo aqui?– Uma seita louca sequestrou dois aviões e pretendia matar toda

essa gente! – explicou ela ofegante. – Mas então quando eu cheguei ti‑nha um homem... Ele cuidou de um cara para que eu pudesse entrar no avião e resgatar as pessoas! E então... conseguimos prender os seques‑tradores! E esse mesmo cara, agora, está lá dentro atrás do filho dele! Vai tentar bater de frente com o líder da seita!

Oliver assimilou as informações o máximo que pôde.– Quem é esse homem?– Eu não sei! Eu cheguei aqui e ele já estava fora do avião! – expli‑

cou Ariane, perguntando‑se a mesma coisa.“Será o cavaleiro?” perguntou Oliver mentalmente. Repentina‑

mente uma preocupação se apossou de sua mente: e se ele fosse o cava‑leiro e morresse ao confrontar‑se com os inimigos? Como num passe de mágica, Oliver corria sem olhar para trás rumo ao avião. Algumas pessoas exclamavam ao ver o homem insano substituir o escorregador de borracha pela escada de alumínio. Um ronco poderoso proveniente do alto fez com que as gotículas caíssem do céu em abundância.

Page 206: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 206 ×

Reru, de raiva, socou o painel do avião. Alan encolheu‑se mais no canto da cabine, segurando o choro que ardia em sua garganta. Suas vítimas deixavam o avião rapidamente. Os dois sequestradores que ocu‑pavam os lugares dos pilotos estavam receosos.

– Aquele humano... – rosnou Reru com as veias do pescoço e da testa dilatadas. – Como pude ser tão idiota ao menosprezá‑lo?

– Meu pai está vindo me salvar! – exclamou Alan trêmulo de medo e ansiedade.

– Ninguém vai salvar você, garoto – ameaçou Reru, sacando a arma da cintura. – Você e seu pai morrerão essa noite, nem que eu preci‑se adiar momentaneamente o meu pacto milenar de vida!

Os dois pilotos exclamaram de susto e receio quando a cabeça cintilante do fantasma do século passado transpassou o painel e os ad‑mirou com nojo.

– Antônio, Antônio... Como ousa a se esconder por trás de um nome e matar inocentes para saciar sua vontade? – perguntou Adônis com ar superior.

Reru virou‑se para o painel. A expressão de raiva suavizou‑se um pouco e ele riu. Alan gemeu de incredulidade.

– Eu deveria imaginar desde o início que você seria um empecilho para mim!

– Falei que iria segui‑lo aonde fosse, traidor! – acusou o fantasma impaciente. – Acha que sou idiota? Além de levar minha vida e destruir meus negócios, agora tenta cometer um massacre de inocentes? Não permitirei tal ato insano!

– Eu já venci, velho idiota! – urrou Reru com um ar demoníaco.– Ele vai acabar com você, Antônio. Não sabe o tamanho do po‑

der daquele homem. Nem você com toda a sua capacidade conseguirá pará‑lo – alertou o fantasma, mergulhando no painel e desaparecendo.

Alan balançou a cabeça, acordando do transe de choque, e pisou no pé de Reru.

– Não vai sobrar nada de você!Reru bufou de raiva e dor, agarrou Alan pelo ombro com força a

ponto de fazê‑lo grunhir e parou diante da porta.– Preparem o avião para decolar. Vamos fugir assim que eu termi‑

nar com ele!Os dois sequestradores aquiesceram.– Esse jogo acabou!Basílio esperou que Adônis ressurgisse ao seu lado para passar

informações.

Page 207: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 207 ×

– Ele está vindo mais irado do que nunca! Por favor, fuja e não lute! Ele vai matá‑los! – pediu o fantasma preocupado. – Antônio já me matou no passado e não tardará a fazer o mesmo com você e seu filho!

Um “click” foi ouvido e a porta da cabine foi destrancada. A se‑gurança de seu filho estava em jogo. Reru e Alan pararam a porta da cabine, o líder da seita “O olho do dragão” sorria diabolicamente e Alan exclamou ao ver o pai.

– Pai!– Filho! Você está bem? – indagou Basílio, aliviando o semblante. – Tão bem quanto você estará logo – riu Reru, apontando a arma

para a cabeça de Alan. – O que acha de terminarmos com isso logo? Eu tenho algo a propor para você.

Basílio, que apontava a arma para Reru, tentou manter o controle.– O que você quer?– Vi que ama muito seu filho, – começou ele, forçando uma ex‑

pressão sôfrega – isso é realmente muito... Humano de sua parte. Ama o suficiente para dar sua vida por ele. Você me fez perder o que há muito tempo venho tramando! Acho que permitirei essa humilhação?

– Eu não tinha nada a ver com isso! – retrucou ele impaciente.– Desde o momento em que você colocou os pés nessa instala‑

ção, o assunto se resumiu em você. Deveria haver trezentos passageiros nas duas espeluncas voadoras! Mas infelizmente faltava uma criança que cancelou o voo de última hora. Pensei que recebia um castigo divino por não me empenhar o suficiente com minha seita, mas eis que me aparece um homem com seu filho, vagando pela estrada abandonada! – Reru sorriu amarelo. – Tudo o que eu precisava, não? Seria, se você não fosse um maldito desafiador! Ao invés de aceitar a morte quieto veio atrás de seu filho e liberou todos os meus passageiros! Nada generoso, Deus não foi nada generoso comigo até eu me dar conta de que ainda tinha o seu bem mais preciso comigo: seu filho. Eu perdi o que era mais precioso para mim e você também deve perder.

Basílio respirou fundo.– Deixará meu filho partir?Alan pareceu não compreender.– Do que você está falando, pai?Reru riu.– A sua vida pela minha é bastante justo. Largue a arma!A arma produziu um ruído metálico ao bater contra o chão. Alan

procurou o olhar frio e decidido do pai, mas não o encontrou.– O que... O que você está fazendo, pai?– Vire de costas e levante as mãos.Basílio faria qualquer coisa pelo filho, inclusive entregar a própria

vida por sua salvação. Havia falhado uma vez com Maria e não comete‑ria o mesmo erro duas vezes. Alan viveria sem ele, ele não viveria sem

Page 208: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 208 ×

Alan. Sem olhar para o filho, deu as costas, levantou as mãos e cami‑nhou até ficar cara a cara com a porta do banheiro.

As costas nuas do cavaleiro, sujas por tinta vermelha, traziam al‑gumas cicatrizes profundas de brigas passadas.

– Pai, você precisa sair daqui comigo! – exclamou o garoto com a voz embargada.

– Saia daqui – ordenou Basílio friamente. – Saia desse avião!– Não... Não! – gritou Alan em pânico. – Por favor, não!Reru soltou o garoto. – Saia desse avião antes que eu mude de ideia e mate você tam‑

bém! – ameaçou sem piedade na voz e no coração. Ares de vitória ron‑davam o homem louco.

– Alan, SAIA DESSE AVIÃO! – gritou Basílio, fechando os pu‑nhos contra a porta desesperado.

Alan soluçou, estreitando as órbitas. Reru riu como nunca em toda a sua vida; aquela cena valia pelo plano perdido. Alan baixou o ros‑to, fechou os olhos e avançou na direção do pai, abraçando‑o apertado.

– Não me deixe! Não quero ficar sozinho! Eu sei que a culpa pela morte da minha mãe é minha, mas não quero que você morra por minha causa também! – exclamou ele, afundando o rosto nas costas de Basílio.

Basílio ficou sem reação momentaneamente. Seu filho deveria fu‑gir e não ficar ali. “Você está estragando tudo!” pensou ele.

– O tempo acabou. É uma pena que isso aconteça, mas terei de matar os dois – suspirou Reru com ar vitorioso.

Num curto segundo o pai agarrou os braços do filho e puxou para perto, virando até conseguir esconder Alan e servir como escudo. O tiro ecoou no avião e acertou o abdômen do cavaleiro, atirando‑o para trás e rumo à morte certa. Alan gritou quando viu o pai cair aos seus pés e ajoelhou‑se ao lado dele instantaneamente. A dor que invadiu seu corpo foi tão intensa que nem mesmo dezenas de facadas seguidas seriam capazes de superá‑la. Levou a mão ao ferimento que começava a sangrar. Instintivamente, Alan retirou o casaco azul que usava e cobriu seu pai enquanto sentia as lágrimas rolarem pelo rosto.

– Saia daqui! – grunhiu Basílio empurrando o filho para longe. – Tarde demais para qualquer acordo – ponderou Reru, apontan‑

do a arma para o garoto.Um tiro espocou e Basílio fechou os olhos. Talvez temesse ver o

inesperado... Não queria imaginar o que sua mente tentava fazê‑lo acre‑ditar. Estaria seu filho... Morto?

– Q‑Quem é você? – indagou Reru, levando a mão ao ombro ferido. A arma que segurava havia caído em seus pés.

Oliver encarou Reru com os olhos de um verdadeiro demônio.– Eu sou o início de seu fim! – urrou o cavaleiro pronto para dis‑

parar novamente.

Page 209: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 209 ×

Basílio abriu os olhos quando ouviu a voz estranha. Alan estava intacto, sentado ao seu lado, olhando por sobre o banco com uma ex‑pressão aliviada e, também, preocupada.

– Meu pai! – gritou o garoto com lágrimas nos olhos. – Ele vai morrer se não ajudá‑lo!

Oliver olhou para o garoto e Reru aproveitou a oportunidade para atirar‑se para dentro da cabine. Um dos capangas lacrou a porta de metal de modo que ficassem em segurança na pequena peça. “Droga!” pensou Oliver ao atirar a arma sobre um dos bancos e correr até onde os dois estavam. Ajoelhou‑se ao lado do homem com o ferimento de bala no abdômen. O casaco azul adquiria tons vinho.

– Cheguei tarde demais! – praguejou Oliver. Basílio sentiu a visão turvar quando o estranho negro de olhos

escuros ajudou‑o a sentar‑se.– Quem é você? – perguntou com a voz entrecortada.Oliver rangeu os dentes de preocupação. Uma de suas certezas

estava confirmada: o homem diante de si era o cavaleiro pelo qual pro‑curava. Fizera toda a viagem até a instalação em que se encontrava para salvar o homem da morte e, agora, o via beirando o precipício de um triste fim... Ou não, pois a morte demonstrava ser muito mais do que um sono longo e eterno. Se o cavaleiro morresse o perderia por um longo tempo e seria difícil encontrá‑lo na Terra‑Inversa, isso se algum inimigo não o pegasse primeiro.

– Qual é o seu nome? – perguntou Oliver para o garoto.– Alan! Por favor, salve meu pai!– Eu vou fazer o possível. Ajude‑me a levantá‑lo! – pediu ao pu‑

xar Basílio, passando o braço sobre seu ombro. Apoiou com toda a força disponível, porém o cavaleiro ferido era

pesado. Basílio não sabia quem era aquele estranho que o ajudava.– Vá lá fora e chame por Ariane.Demorou algum tempo para que Oliver descesse com o ferido do

avião. Quando chegou lá embaixo encontrou‑se com Ariane.– Preciso de um carro! – ordenou o cavaleiro com dificuldade

para carregar o homem que estava beirando a inconsciência. – Meu Deus! – exclamou Ariane, colocando as mãos na cabeça. –

Ele não vai aguentar muito tempo!– Um carro! – insistiu Oliver suando frio. – Agora!– Tem um carro ali! – disse uma garota, apontando para um jipe

estacionado ao lado do prédio de dois andares.Badeck e Baroon trocavam poderosas patadas num conflito irra‑

cional. Os dois gigantescos guias eram hábeis e fortes, porém se igua‑lavam em todos os sentidos. Baroon desferia uma patada em Badeck e recebia em troca uma mordida.

– Pare com isso! – urrou Badeck num determinado instante. Este

Page 210: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 210 ×

mancava da pata traseira. – Estamos do mesmo lado!– Devo proteger o cavaleiro! – rugiu ela, cujo sangue de um corte

nas costas pingava. – Você é uma ameaça!– Não! Viemos aqui para salvá‑lo da morte! – insistiu o cão, fra‑

quejando para o lado. – Guarde suas forças para o inimigo!– Você é o inimigo! – revidou Baroon, avançando um passo e

tombando para frente, fraca.Os dois recobraram as forças por um instante.– Por que tem que ser tão difícil? Se quiséssemos seu mal não

dialogaríamos como fazemos agora!Baroon arreganhou um cenho, mas um estranho pressentimento

a assolou. Ela olhou na direção dos dois aviões.– Não... – murmurou com a voz apagada.Badeck farejou o ar impregnado de cheiro de morte. Quase que

magicamente os dois esqueceram‑se da briga e partiram na mesma di‑reção, lado a lado, indiferentes ao fato de serem amigos ou inimigos. De longe, o grupo de passageiros observava com medo a aproximação dos dois monstros negros. Ariane estacionou o jipe em frente a Oliver, abriu a porta de trás e o ajudou a sentar Basílio.

– Para onde irá? Não há nenhum hospital por aqui e nenhum mé‑dico em quilômetros de estrada! – exclamou Ariane preocupada.

Ao chegar até o carro, Badeck já estava em sua forma normal. – Como isso foi acontecer? – ralhou o cão. – Era seu dever impe‑

dir a morte dele!– Como eu ia saber? – defendeu‑se Oliver enquanto fixava o cinto

ao redor do ferido.Basílio murmurava coisas desconexas e sem sentido. Alan sen‑

tou‑se ao seu lado, segurando seu braço e pedindo para que ficasse cal‑mo. Uma chuva forte obrigou as pessoas a buscarem abrigo. Alguns curiosos observavam o movimento de longe através das janelas da insta‑lação ou do prédio de dois andares.

– Não temos tempo! – insistiu Ariane, esfregando o rosto. – A polícia já deve estar a caminho daqui porque havia um rastreador em meu veículo, mas mesmo assim ele morrerá se esperarmos por ajuda!

– Nós não podemos sentar e esperar! Você não entende a gravida‑de da situação – clamou Oliver diante dela.

– Há um jeito, – disse Badeck subitamente – podemos recorrer a mais alguém.

Os dois encararam o cão.– Que tipo de ajuda encontraria no meio do nada? – indagou

Ariane incrédula.– Confie em mim – pediu o cão. Baroon observava a cena a certa distância. Ela havia falhado como

protetora. Recuou alguns passos, receosa quanto à saúde de seu cavalei‑

Page 211: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 211 ×

ro. Badeck voltou a atenção para a ursa ansiosa e inquieta e disse:– Eu falei que estamos do mesmo lado. Confie em nossa ajuda. Oliver passou a mão nos cabelos ralos. A ursa grunhiu e recuou.

Ela nada mais poderia fazer naquele momento. Confiaria nos estranhos ou observaria a morte de seu cavaleiro sem poder fazer nada. Por um instante, o grupo desviou a atenção para Basílio que erguia a mão e apontava para o avião. Quando perceberam, a ursa desaparecera. As tur‑binas do avião foram acionadas e seu som quase não era ouvido graças aos trovões que ecoavam pelo o céu nebuloso.

– Ele pretende fugir – considerou Ariane sobre Reru. O zumbido do avião foi aumentado a ponto de doer nos ouvidos.– O avião... Precisamos sair daqui... – murmurou Basílio num es‑

tado letárgico. – Dinamite...Oliver não entendeu o que o homem falava.– Entrem no carro! – ordenou Badeck e saltou por cima da porta

do jipe.Oliver sentou‑se no banco do motorista e acionou o carro.– O quê? – perguntou Ariane sem entender.– Se ele está dizendo para entrar no carro, entre! – mandou Oliver

em voz alta. Ariane relutou, mas entrou no veículo mesmo assim. Antes que

ela fechasse a porta, o jipe já arrancava sobre pista lisa, passava em frente ao avião e atravessava sobre os destroços do que um dia foi um portão.

– E as outras pessoas? – indagou a policial, olhando para trás. O grupo de ex‑reféns observava‑os protegidos pelas construções.

Os passageiros do segundo avião também estavam lá. Com a aju‑da de Ariane, os outros reféns também tomaram conta da situação. De‑zenas de olhares incrédulos marcavam na alma algo que jamais esquece‑riam; o sequestro que mudou o fim de suas vidas.

– Meu pai está morrendo! – exclamou Alan, fazendo o possível para manter Basílio consciente.

– Continue andando! Acelere! – interferiu Badeck. O garoto olhou para o cão com um “quê” de normalidade. Talvez o fato de ter um pai à beira da morte fizesse qualquer coisa parecer normal e saudável.

– Não podemos ir mais rápido nessa via! – disse Oliver. Temia que o trepidar do carro fizesse mal ao cavaleiro.

– Não importa! – exclamou o cão. – Acelere! Existe algum lago ou rio por aqui?

Oliver e Ariane não souberam responder.– O rio... Existe um trecho em que ele costeia a estrada a alguns

quilômetros daqui – informou Alan que, ao mesmo tempo, retirava o excesso de água do cabelo. A chuva dificultava‑lhe a visão.

– Vá para lá – mandou Badeck imponente. Já estava em seus pla‑nos visitar aquele lugar, mas não esperava que fosse tão cedo e em bi‑

Page 212: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 212 ×

zarras condições.Aquele homem era o único capaz de ajudá‑los. Ariane desistiu

de perguntar para onde iam e começou a conferir o estado de Basílio, tocando sua testa e pressionando o ferimento da bala para conter o san‑gue. Oliver precisava confiar em Badeck mais do que nunca.

Enquanto isso, Adônis assistia ao desfecho da situação do alto do prédio de dois andares. A chuva atravessava seu corpo imaterial. O som ensurdecedor do avião aumentou quando alguém desconectou a escada‑escorregador e fechou a porta de entrada, selando Reru e seus capangas em segurança. Ou quase isso. Sairia ele impune? “De forma alguma”, pensou o fantasma com um sorriso amarelo por baixo dos bi‑godes. Ninguém ousou sair da segurança das edificações. Alguns dos ex‑prisioneiros carregavam armas nas mãos e um olhar atento, pronto para enfrentar qualquer um que tentasse apanhá‑los novamente.

– Posso seguir em paz agora – Adônis colocou a cartola na cabeça e ajustou o monóculo.

Apesar da chuva torrencial e das nuvens negras, alguns raios ala‑ranjados transpassavam as nuvens sobre os morros, denunciando o fim de mais um dia surpreendente. Tons do vermelho intenso ao arroxeado, do rosa ao azulado, tomaram conta da paisagem que, finalmente, foi coberta pelo tom alaranjado dos raios crepusculares.

– Está na hora de ir – disse ele, deu as costas e desapareceu.As rodas do avião se moveram lentamente, mas o que se sucedeu

foi muito rápido: assim que o avião atingiu a estrada e começou a adqui‑rir velocidade para o voo, o pedaço de dinamite, separado por Basílio e preso à roda do avião por uma tira de blusa, tocou uma falha no chão, produzindo o atrito com a borracha e o asfalto. O som da explosão foi quase abafado por um trovão da tempestade. O avião perdeu o controle e o equilíbrio sobre o lado direito das rodas, tombou para frente e foi engolido pelas chamas, quando alcançava uma velocidade razoável em solo. Pedaços de destroços misturaram‑se à chuva. A cerca de vinte minutos dali, os veículos da polícia e dois helicópteros aproximavam‑se da instalação para resgatar as vítimas do sequestro.

O pedaço do avião com o olho pintado caiu próximo à entrada da instalação e assustou as pessoas que observavam o fim merecido do assassino de crianças. Finalmente a vida parecia ter sido justa.

Page 213: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 213 ×

Capitulo 17Cova do Fantasma

A chuva batia no capô do jipe verde musgo e produzia um ba‑rulho forte. Sem enxergar direito, a impressão de Oliver era de ver as águas negras de um grande lago ao lado da estrada. O trecho era o único coberto de grama e outros vegetais exuberantes. Uma pequena cerca baixa rodeava o rio que cruzava a paisagem desértica.

– É aqui! – gritou Alan.– Acelere – ordenou Badeck.O carro tomou mais velocidade. Os buracos causavam solavancos

violentos. Alan temeu pela saúde do pai, que até agora não conseguia sequer distinguir a realidade da fantasia de sua mente.

– Maria... – murmurou ele ao estender a mão para o alto.– Vai ficar tudo bem – disse Ariane gentilmente. Ela atravessava o

corpo entre os dois bancos e ajudava a manter o ferimento pressionado.– Quando eu contar até três, você irá dizer para onde quer ir. No

quatro, você virará o volante para a direita. E no cinco, chamará meu nome. Entendeu?

– E para onde eu quero ir? – indagou Oliver ao fitar o cão através do espelho retrovisor.

– À Cova do Fantasma. Um... – O cão começou a contagem.Consternado, Oliver obedeceu.– Dois.As exclamações distorcidas de Ariane e Alan misturavam‑se nos

seus ouvidos aos trovões e ao ruído do motor.– Três. Oliver contraiu os lábios.– Me leve até a Cova do Fantasma. – Quatro!Como o combinado, Oliver virou o volante e o carro voou so‑

bre o acostamento destruído. A pequena cerca de arame e madeira foi derrubada. Os pedriscos saltaram junto com o veículo que, aos olhos de Oliver, planavam em câmera lenta rumo as águas negras. Os gritos vindos do banco de trás não foram suficientes para desconcentrá‑lo.

Page 214: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 214 ×

– Cinco. A voz de Badeck soara distante. O vento e a chuva cortavam seu

rosto e mãos. – Badeck, guie‑nos!A frente do carro foi rapidamente engolida quando encontrou a

superfície das águas negras. Oliver tivera a impressão de ver um brilho azulado quando a ponta do pneu dianteiro tocou a água. Uma sensa‑ção estranha afetou a todos, à medida que mergulhavam. Mesclou‑se ao medo e ao receio. Por segundos, tudo não passou de um incrível vazio. O cavaleiro assustou‑se quando parou sobre a grama macia do pátio. O carro, atrás deles, não tinha sequer vestígios de uma batida. Ariane, de joelhos, estava ao lado de Basílio estirado no gramado e Alan encontra‑va‑se preso no veículo com Badeck.

– O que foi aquilo? – perguntou a policial, respirando fundo. – O que você fez?

Oliver não ouvia, distraído demais com a paisagem. Antes, en‑contravam‑se dentro do carro e, agora, estavam numa espécie de pânta‑no. As árvores encrespadas e escuras rondavam o lago negro, cheirando a limo. O céu estava estrelado. Atrás do carro, uma cabana velha era o único resquício de vida. Lampiões antigos pendurados em ganchos nas paredes iluminavam a entrada. Gravado em metal, o nome “Cova do Fantasma” cintilava na porta. O musgo cobria parte das paredes e os detalhes da janela fechada por tábuas atiçavam a imaginação.

– Droga! Badeck, ele está inconsciente! – exclamou Oliver, ajoe‑lhado ao lado de Basílio.

– Pai! Fique comigo!Badeck latiu três vezes consecutivas. De imediato, a porta rangeu

e abriu. A cara enrugada do velho que surgiu lembrava um amontoado de toalhas. A cor cinzenta da pele era banhada pela cor alaranjada da lamparina. Seus olhos eram meros pontos escuros em meio às pelancas. Os cabelos brancos misturavam‑se às sobrancelhas até chegar à barba comprida. O nariz de gancho quase tocava a ponta no lábio superior. Vestia‑se com um “xale” sobre as costas e com uma ceroula rosa. O cajado na mão direita garantia equilíbrio.

– Eu os esperava – disse o velho enquanto gesticulava com o ca‑jado. – Entrem e tragam o ferido, não temos mais do que dois minutos para resolver isso.

Ariane e Oliver apoiavam Basílio em seus ombros para levá‑lo para dentro, seguindo Badeck. Alan ia logo atrás, tremendo de frio. Lá dentro era um lugar praticamente inexplicável. Existiam cinco estantes com prateleiras comportando infinitos objetos de várias cores, tama‑nhos e tipos. Canetas coloridas, relógios esquisitos, objetos pontudos, potes compridos ou redondos, animais bizarros empalhados, e vários outros. Plantas jamais vistas envolviam as paredes, coloriam e aromati‑

Page 215: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 215 ×

zavam a pequena cabana. O fedor de cachimbo impregnado no ambien‑te fez Ariane espirrar. Um balcão comprido sobre o qual via‑se uma cai‑xa registradora velha e pequenos potes e, dentro deles, insetos bizarros. Atrás do balcão, duas portas: uma levava ao banheiro e outra ao quarto.

O velho coçou a barriga, umedeceu lábios e apontou para um col‑chão carcomido em péssimo estado, no centro da sala. Ao seu lado, cinco potes de vidro encardidos estavam sobre um lenço vermelho.

Ariane e Oliver depositaram o cavaleiro sobre o colchão, e Alan fechou a porta, ainda trêmulo por estar encharcado. Badeck acompa‑nhou o velho que sentou‑se vagarosamente em frente à cama e coçou a barba, pensativo. Só, então, Oliver percebeu que estava com frio.

– Me chamem de Coveiro – apresentou‑se ele. A seguir, apanhou um dos frascos em forma de ampulheta e atirou no chão em frente ao trio de humanos.

O vidro espatifou‑se. Uma pequena faísca verde, ao tocar o piso, expandiu‑se até adquirir o tamanho de uma cabeça e parou. As chamas verdes arderam sem se alastrar ou queimar o que tocavam, serviam ape‑nas para produzir calor. Ariane olhou incrédula para as chamas sem he‑sitar em estender as mãos para aquecê‑las. O fogo morno e convidativo acariciou sem ferir suas palmas. O recinto também ficou iluminado.

Oliver não conseguia desprender os olhos do que acontecia: Co‑veiro retirou o casaco que estancava o sangue de Basílio e analisou o ferimento, selecionando a dedo o segundo pote de formato triangular.

– Nada bom, nada bom. Nada que Coveiro não faça também, co‑nheço os mortos como ninguém – murmurou ele ao retirar a rolha do frasco e derrubar o conteúdo sobre o ferimento.

O líquido amarelo transparente adentrou por completo a fenda por onde a bala passara. Instantaneamente Basílio soltou um grunhi‑do de dor e arqueou o corpo. Alan soltou uma exclamação e Ariane o envolveu com o braço, puxando‑o para perto. Acostumada a confortar muitas pessoas em sua experiência de policial, ela via‑se obrigada a afir‑mar que nada se igualava a essa, em especial. Badeck deitou ao lado de seu cavaleiro.

– Hmmm, nada bom. Isso está muito feio – comentou ele, sozi‑nho, com as mãos sobre os joelhos. – Tome cuidado com a artéria.

Basílio bateu as mãos contra o colchão. – Pare! Está doendo... Pare! – implorou com o rosto vermelho e

as veias saltadas.– Isso, assim.Coveiro estendeu a palma sobre a barriga de Basílio e a bala sal‑

tou para fora do ferimento, empurrada por uma miniatura de aranha de mesma consistência do líquido amarelo. Fascinado, Oliver admirava o procedimento mal contendo a ansiedade em ver o cavaleiro são e salvo. Ariane fitou a pequena aranha transparente, tapou a boca com a mão

Page 216: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 216 ×

para abafar um soluço. Coveiro depositou a bala sobre o lenço, esten‑deu o antigo frasco triangular para a aranha entrar. Abriu o segundo e o terceiro frasco, atirou um pó dourado e, depois, outro líquido prateado sobre o ferimento. Instantaneamente, ao tocar a pele, as duas substân‑cias se misturaram e fervilharam, produzindo uma fumaça avermelhada. Basílio arqueou o corpo novamente, fechou os punhos e gritou como nunca em sua vida. A dor fora tão intensa que mal sentira quando covei‑ro juntou a bengala e bateu com ela sobre seu abdômen. Ariane tentou intervir, mas Oliver a segurou pelo braço.

– Deixe – disse simplesmente. – Dush Hakm, – murmurou ele, acrescentando em seguida – ago‑

ra durma um pouco. Basílio parou de se mover, desmaiando de exaustão e dor. O feri‑

mento continuou a produzir as borbulhas avermelhadas. Coveiro abriu o último frasco comprido cujo conteúdo era um líquido azul cintilante e o bebeu. Arrotou sem pudor em seguida. Após alguns instantes, voltou a atenção para o trio que, chocado, o observava. Badeck ficou de pé.

– Coveiro – cumprimentou com uma reverência.– Há muito não o via, Badeck – comentou ao levantar com ex‑

trema lentidão e paciência. – O cavaleiro ficará bem. Eu esperava que viessem mais cedo... Sorte de vocês que minhas técnicas são infalíveis.

– Como você sabia que viríamos? – indagou Oliver, percebendo que suas roupas já estavam secas. O fogo verde extinguiu‑se lentamen‑te, escurecendo um pouco a peça iluminada somente pelos cinco lampi‑ões velhos nas paredes.

– Eu sempre sei de tudo... Os mortos sempre vêm a mim com a língua afiada – E completou a afirmação com um sorriso banguela. – Ei, garoto, não toque nisso! Aliás, não toquem em nada do que está aqui. Entenderam?

Alan recolheu a mão, olhando um pequeno cubo transparente que alternava de cor magicamente.

– O que... O que você fez com ele? – perguntou Ariane, apontan‑do para Basílio.

– O que um médico normalmente faria... – explicou Coveiro pa‑cientemente.

“Eu não contaria com isso” acrescentou Ariane mentalmente.– Retirei a bala, fiz a assepsia do ferimento e fechei o que estava

aberto. Vou me deitar um pouco, todo esse trabalho me deixou cansado. Eu aconselharia vocês a fazerem o mesmo.

Dormir era algo pensável para Oliver que, agora em segurança, não precisava se preocupar com muitas coisas. Fazia muito tempo a úl‑tima vez que tivera um sono decente. Coveiro bateu o cajado contra o piso e quatro coisas, que Ariane pensou serem grãos de pipoca, caíram da prateleira ao lado dele. Ao baterem no assoalho expandiram‑se num

Page 217: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 217 ×

único movimento e transformaram‑se em quatro colchonetes brancos. – Não toquem em nada! – repetiu ao passar pelo balcão e entrar

no quarto. Ariane hesitou, acabando por ceder instantes depois, imitando

Oliver que já deitara.Alan arrastou o colchonete e posicionou‑o ao lado do pai. Com‑

portava‑se como um bom cão de guarda diante do ataque inimigo. Se algo acontecesse a seu pai poderia estar ali para auxiliá‑lo. No entanto, instantes depois já dormia. Badeck, deitado, alinhou o corpo sobre o colchonete. Oliver olhou para o teto. As pálpebras relutavam em fica‑rem abertas. Temia cair na inconsciência e perder alguma coisa. A clari‑dade produzida pelos lampiões reduziu‑se a meros pontos alaranjados, criando um ambiente calmo para repouso. Ariane concentrou‑se no cheiro de bálsamo do incenso mais próximo e apagou. Vendo que era o único na guerra contra a perda da consciência, Oliver deixou que o sono o envolvesse com braços carinhosos. Finalmente dormia tranquilo como há muito tempo não fazia. O fato de estarem em um ambiente repleto de loucuras não os impediu de repousarem tranquilamente.

Basílio acordou com uma leve ardência na região onde levara o tiro. Sobre sua cabeça, os lampiões flutuavam junto às paredes. A janela entreaberta permitia ver o céu nublado, clareando timidamente a bizar‑ra sala em que se encontrava. “Levei um tiro”, pensou . “Morri? Não me lembro do que aconteceu ontem depois de receber o tiro.” Basílio perdeu‑se por alguns instantes em pensamentos e levou a mão, receo‑samente, até a região anteriormente ferida. Sentiu uma estranha crosta grande e dura do tamanho de uma mão. Levantou assustado e sentou, admirando a textura sólida e dourada da casca sobre o ferimento. Tocou a superfície e percebeu que estava solta. Fechou os olhos e arrancou a casca, não sentindo nada além de um puxão rápido. Deslizou a mão sobre a pele; por incrível que parecesse não havia nada ali além de uma pequena cicatriz circular. “Será que foi tudo um sonho?” perguntou‑se, admirando as marcas de sangue seco na calça e no colchão.

– Pai! – exclamou Alan, acabando de acordar e o abraçando. – Você está bem!

Basílio, confuso, abraçou o filho. Satisfeito por vê‑lo seguro, po‑rém perturbado com as lembranças e os fatos que não se encaixavam. Se ele morrera, então seu filho também estaria...?

– Eu morri? – indagou, constrangido pela pergunta idiota.– Nunca vi alguém mais vivo do que você – respondeu o homem

negro sentado sobre o colchonete ao lado e encostado na parede.

Page 218: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 218 ×

Ele cutucou a mulher ruiva que dormia ao seu lado. Ariane acor‑dou afobada, recobrando o controle um instante depois de perceber que estava tudo bem. Ficou surpresa quando viu Basílio comportando‑se como se jamais tivesse levado um tiro. Mesmo parecendo impossível, a policial não encontrou o ferimento do tiro; apenas uma cicatriz sadia.

– Não, pai! – riu Alan, voltando a sentar no colchonete. – Aquele velho te ajudou!

– Velho? – questionou sem compreender. – Quem são vocês afi‑nal? Por que me ajudaram? Eu me lembro de tê‑los visto em Carvaris.

Badeck se espreguiçou e sacudiu o pelo. – Incrível! Mesmo sabendo do real poder de Coveiro é impossível

não se impressionar – disse ele, satisfeito com a saúde do cavaleiro.– O cachorro também fala! – gaguejou o cavaleiro perturbado. – Acalme‑se e respire fundo – pediu Oliver, sorrindo amarelo.

– Acho que temos muito o que conversar... Eu estive procurando por você nos últimos dias. O motivo pelo qual roubei um carro, sequestrei uma policial e viajei até a Estrada Velha foi por sua causa.

– Me procurando? Quem é você?– Meu nome é Oliver – apresentou‑se Oliver, suspirando. Agora

entendia como Badeck e Shafa sentiam‑se ao tentar explicar coisas de cavaleiros. – Mas a pergunta certa é “Quem é você”!

Oliver ignorou a cara de dúvida do homem e a incredulidade de Ariane, e começou a explicar toda a sua história desde o primeiro en‑contro com Shafa até aquele momento. Escondeu sempre o fato so‑bre a profecia dos mortos. Tentou contar o máximo possível de fatos e explicar até onde ia sua compreensão. Apesar de a história não ter pé nem cabeça para olhos normais, algumas partes eram coerentes. Basílio relutou primeiro, mas foi cedendo conforme percebia que muitas partes faziam sentido. Quando Oliver terminou, foi a vez de Basílio explicar como foi parar na Instalação C. Oliver ficou surpreso quanto ao fato de ter‑se encontrado com cavaleiros do Chamado que sabiam sua identida‑de e também da morte de sua esposa. Ariane ouvia em silêncio. Cerca de quatro horas mais tarde, depois de muito diálogo, tudo estava tão claro quanto água potável.

– Como posso confiar em você? – perguntou Basílio.– Eu salvei sua vida – insistiu Oliver com cansaço no olhar. – Não posso largar meu filho para percorrer o mundo atrás de

gente cuja identidade eu desconheço. Basear‑me uma história maluca e incompatível com a realidade é loucura!

– Você terá de vivenciar para saber se o que eu digo é real ou não! – Não! – exclamou o homem, meneando a cabeça. – Jamais deixa‑

rei meu filho por isso!– Nós vimos que isso é verdade, pai – interferiu o garoto que

apenas ouvia, como Ariane. – A morte de minha... minha mãe é a prova

Page 219: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 219 ×

disso! Se for o seu dever, então deve cumprir o que Oliver explicou. – Alan! – retorquiu o cavaleiro nervoso.– Você não é humano, Basílio! – exclamou Oliver, ficando de pé.

– Não possui alma! Você é como eu, um cavaleiro da Terra‑Inversa! Já disse que não foi fácil para eu aceitar, então imagine você! Mas se esfor‑ce... Por favor, pense bem!

Basílio levantou‑se pronto para revidar, mas Badeck interveio.– Seu filho estará em perigo enquanto estiver com você! – de‑

clarou o cão irritado. – Se o ama tanto, então entenda que, por ora, o melhor para ele é ficar longe, e para você, é estar conosco! Quer experi‑mentar outra vez o que os cavaleiros do Chamado são capazes de fazer? Eles não são como nós que perdemos nossa força enquanto estamos em Terra! Haverá um momento em que não poderá mais lutar e nem defender ninguém! Pense bem, cavaleiro, se nem você e sua guia Baroon foram capazes de defender sua vida, que dirá a de seu filho! Isso não é uma brincadeira! Vidas estão em jogo e qualquer aposta errada resultará em morte!

O cavaleiro calou‑se, e Oliver recuou, bufando de raiva. Naquele instante Coveiro deixava o quarto, esfregando a barriga e usando a ben‑gala para andar.

– O que significam esses berros a essa hora? – Coveiro, – disse Oliver para mudar rapidamente de assunto –

Acolhedor pediu‑me para vir aqui, lembra‑se? Por que motivo seria? – Acolhedor? Ah sim, espere aqui, vou buscar uns itens – balbu‑

ciou coisas e entrou no quarto atrás do balcão. – Não toquem em nada! Ariane, curiosa demais, fitava um objeto na prateleira. Parecia

uma bola de cristal. Assim que a tocou, o vidro empoeirado transparen‑te liberou uma fumaça azul que passou a girar dentro da esfera e liberar imagens dela. Primeiro, quando criança, depois mostrou‑a no colegial, em sua formatura na academia policial, na captura do primeiro assaltan‑te. A fumaça tornou‑se cinza, e a refletia. Depois, amarelou. Mostrou‑a numa sala onde passava ordens, a seguir quando conheceu um homem loiro, casou‑se, teve duas filhas e, por fim, seu funeral. Retirou o dedo de lá. Quando notou, o dedo arroxeou, e o resto da mão também.

– Ai, Meu Deus! – horrorizou‑se, segurando a mão. – Minha mão!Basílio assustou‑se e, sem querer, bateu no balcão. Um dos potes

caiu e espatifou‑se, liberando uma pequena larva vermelha. – Droga – resmungou ele, afastando‑se do bicho. – Olha o que você fez – irritou‑se Oliver e tentou apanhá‑la. A larva esticou‑se e rasgou‑se ao meio, gerando outra. As duas

repetiram o movimento e duplicaram‑se rapidamente. Em segundos o chão estava cheio delas, em contínua duplicação. O guia rosnava enfure‑cido. Alan aproveitou, enquanto todos estavam distraídos, para apanhar o cubo transparente de brilho colorido e colocou‑o no bolso.

Page 220: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 220 ×

– Elas não param de se reproduzir! – gritou Alan, encostando‑se na parede para esquivar‑se das larvas.

Oliver retirava as larvas que subiam em suas calças. A policial gri‑tava, já com todo o braço direito roxo. O Coveiro, carregando uma saca verde, surgiu novamente na sala. Pelo menos um metro de altura estava submerso nas larvas. Badeck começou a sumir de vista entre as criaturas.

– Mas que diabos! Não tocar significa não tocar! Por que hu‑manos adoram contrariar uma ordem? – ralhou o velho. – Eu deveria deixá‑los morrer aqui!

– Socorro! Meu braço! – gritava a policial que não conseguia mo‑ver os dedos.

– Vivos são tão idiotas! Prefiro os mortos, estes sim entendem o significado de perigo. – Coveiro apanhou um pote verde sobre o balcão, juntou um punhado de pó esverdeado e jogou sobre as larvas.

Instantaneamente elas transformavam‑se em borboletas colori‑das, do tamanho de uma mão. Suas asas brilhosas refletiam a luz dos lampiões como em contos de fadas. Elas voavam organizadamente em círculos, saiam pela janela e formavam pequenos grupos após adquiri‑rem a liberdade. Assim que o lugar estava liberado, Coveiro segurou a mão de Ariane. Analisou‑a, deslizando o dedo na pele roxa.

– Você tocou na Bola de Cristal. Além de burra é surda! Eu falei para não tocar em nada.

Mancando, foi até uma prateleira onde só havia frascos pequenos, escolheu um contendo líquido azul.

– Tome isto. A Bola absorve sua energia em troca das visões. Você deve ter visto muitas coisas. Ela lhe mostra o futuro possível, se nada acontecer à Terra até lá. E em troca, lhe rouba parte da energia vital. Por que você acha que ninguém usa Bola de Cristal hoje em dia?

Coveiro desferiu bengaladas em Basílio e Ariane. E respirou fun‑do. Ela tomou a poção, e o roxão, lentamente, desapareceu, para seu alívio. Badeck respirou fundo assim que a situação voltou ao controle e Alan parou ao lado do pai, reprovativo.

– Onde estávamos?– No motivo de Acolhedor ter me mandado aqui – completou

Oliver e retirou uma última larva de dentro da blusa. Esta se transfor‑mou em borboleta e rodeou‑os.

– Claro.Coveiro despejou os objetos sobre o balcão, após abrir o saco.

Eram ao todo cinco. – Acolhedor veio falar comigo e disse que mandou você aqui para

eu ajudá‑lo. Entendo a sua situação, por isso preparei o meu melhor ma‑terial. Conforme ficarem na terra, seus poderes enfraquecerão a ponto de não mais conseguirem detectar um inimigo. E saibam também que quando usarem qualquer dom em Terra, a presença de vocês será revela‑

Page 221: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 221 ×

da. Então, evitem os inimigos e estejam atentos.Coveiro apanhou o primeiro objeto. Era uma caneta preta velha. Ele girou a base e a ponta apareceu. – Ela escreve o que acontecerá num prazo de cinco horas. Basta

pedir o que exatamente quer saber. – Entregou‑a para Oliver, este jun‑tou, observando‑a. – Saiba que se mudar o futuro, o que estava escrito antes não funcionará mais. Só existem três dessas, então, tome cuidado. E ela só pode ser usada duas vezes, na terceira, explode. Pense muito bem antes de perguntar qualquer coisa.

– Entendo. – Isto é um Detector de Infração. – O celular na mão de coveiro

era tão pequeno que mal se enxergavam as letras na tela. Era cinza e ti‑nha apenas dois botões grandes, um verde e um vermelho. – Ele detecta qualquer infração feita por criaturas de gerações passadas ou cavaleiros do Chamado. Como está no corpo humano, seus poderes são limitados e normalmente não se pode senti‑los. Cuidado, só aperte o botão verde se desejar tratar da infração.

Basílio e Ariane observavam os objetos com um quê de dúvida. – Um dos objetos mais necessários é este aqui. – O anel de prata

tinha uma única e grande pedra preta arranhada. – É um espelho trans‑versal e pertence ao Mundo Suspenso. É único! Trate de cuidá‑lo muito bem. A energia condensada dentro da pedra será capaz de trazer um pedaço de Terra‑Inversa até você... Mas lembre‑se sempre: use‑o e será encontrado. Vocês dois serão extremamente procurados após o inciden‑te na instalação Carvaris. São fracos em Terra, logo presas fáceis para o inimigo astuto. Acolhedor falou deste aqui em particular.

Depois de analisar o anel, Oliver colocou‑o no dedo anelar da mão direita. Não compreendeu o que ele quis dizer com “Pedaço da Terra‑Inversa”, achando também melhor não perguntar.

– Quarto objeto, a lanterna. – Tinha a cor bronze e cabia perfeita‑mente na palma da mão. – Como disse antes, quanto mais permanece na Terra, mais seus poderes ficarão fracos. Ela ajudará a identificar as raças e suas intenções. Dará ao portador um poder muito almejado: ver a ver‑dade. Por enquanto seus olhos enxergam bem, mas daqui a dias, ou me‑ses, não conseguirá identificar quem é humano ou quem é uma criatura.

Ele acionou a lanterna, apertando um botãozinho vermelho. Apontou para Ariane, depois para Basílio. Aparentemente nada aconte‑ceu. Talvez sua lâmpada estivesse estragada. Ele entregou a Oliver, que apontou para o velho. No mesmo instante, um intenso facho de luz iluminou o ambiente e, no lugar de Coveiro, um ser trajando um manto e um capuz negro surgiu. As mãos tinham os ossos à vista e moviam‑se perfeitamente sem precisarem de nervos, músculos ou pele. E, por fim, uma pá fixava‑se em suas costas, cuja ponta oposta carregava também a lâmina de uma foice.

Page 222: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 222 ×

– Acho que está estragada – deduziu Basílio, cruzando os braços. – Só quem carrega a lanterna pode ver – corrigiu Coveiro e desli‑

gou o aparelho na mão de Oliver. – Incrível... – E por fim... – Coveiro entregou a Oliver um pingente circular,

adornado por duas safiras brilhantes. – Você saberá a serventia disso na hora certa.

Oliver distribuiu os objetos pelos bolsos.– Como conseguiu essas coisas? – indagou a policial com as mãos

na cintura.– Ah... – gabou‑se o Coveiro. – Sou caçador de relíquias quando

não trato de guiar os mortos. Os terráqueos gostam de dar poderes a objetos. Alguns vão longe demais, então, eu os capturo, descubro sua utilidade e os guardo. Todos os objetos capturados por cavaleiros vêm para eu estudá‑los. Assim, acabo ficando com muitos. Posso lhe dar uma lembrança.

O velho mancou até a prateleira ao lado da porta. Vasculhou os objetos em busca de um o espelho redondo. Tinha a moldura carmesim.

– Tem um poltergeist aí dentro. Ele vive no espelho, não serve para nada além de assustar pessoas. Como não vejo ameaça e nem serventia, pode levar. Assustar três pessoas por semana será o suficiente para deixá‑lo feliz.

Ariane segurou o espelho leve. Visualizou o próprio reflexo e, no lugar do seu rosto, havia a face de um palhaço feio. Nariz curvo, ma‑quiagem borrada e orelhas grandes. Ele soltou uma risadinha e sumiu.

– Eu não quero isso... – Atormentada, tentou soltar o espelho, mas este estava grudado em sua mão.

– Já é seu. Recomendo que o trate bem... Não fará mal a ninguém. Aproveite, não é sempre que pode assustar alguém de verdade. – Final‑mente Coveiro olhou para Alan. O garoto fingia admirar uma planta de folhas roxas e laranjas que alterava de coloração quanto uma ameaça es‑tava próxima, camuflando‑se como um camaleão. – Seu pai não ensinou que é feio roubar?

– Como você sabia? Ninguém me viu pegar! – retrucou Alan, retirando o cubo brilhante do bolso.

Basílio fuzilou o filho com o olhar.– Isso não faz parte de sua educação!Coveiro riu e terminou quase se engasgando. – A curiosidade matou as crianças, sabia? Perdi a conta de quantas

crianças já morreram por serem desobedientes e curiosas – contou o velho. – Eu vou dar outra coisa para você também...

Ele recolheu um pingente de uma miniatura de uma águia esculpi‑da na pedra o entregou ao menino.

– Um enfeite? – perguntou ele meio sem graça.

Page 223: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 223 ×

– O cubo vai ajudá‑lo a achar qualquer conhecido seu que deseje encontrar – explicou Coveiro. Alan pensou no pai e a fumaça vermelha brilhosa transformou‑se em uma seta apontando para Basílio.

– Uau! E a águia?Coveiro piscou para ele e sorriu de canto.– Um presente especial para um garoto especial.Basílio rosnou reprovativo diante da frase do velho.– Coveiro, precisamos ir. – Oliver olhou para a janela – Obrigado

pela ajuda, isso nos servirá bastante. – Há mais uma coisa que precisa saber... Existe um segundo caça‑

dor de geringonças como eu pelas redondezas e, diferente de mim, ele vende e cria objetos ao invés de destruí‑los. Você já deve ter se pergun‑tado por que existem criaturas de gerações passadas se transformando em plena luz do dia.

– Eu percebi isso. Pensei, a princípio, que fosse algum tipo de magia... – comentou Badeck pensativo.

– E é. Esse outro “Coveiro” está produzindo pulseiras que permi‑tem ao inimigo tomar sua verdadeira forma durante o dia. Então tome cuidado... O seu inimigo pode saber dessa arma.

– Agradeço novamente por sua ajuda.– Faço tudo pela sobrevivência dos humanos. São burros e só tra‑

zem problemas, mas, no fundo, têm o seu valor. – O velho mancou até o quarto. – Vou continuar meu cochilo. Fechem a porta depois de sair.

Oliver deixou o ambiente acompanhado dos companheiros. Che‑gando ao jardim, foram assustados por dois acúmens altos e magros, pousados sobre o veículo. A ponta aguda e comprida dos bicos cutuca‑vam os bancos vazios. Pareciam pterodátilos.

– Alan! – gritou Basílio que, horrorizado com a cena, puxou o filho para perto.

– Tudo bem, são gárgulas. Devem trabalhar para o Coveiro – ex‑plicou Oliver, aproximando‑se do carro. – Saiam daqui! Não tem nada para ver.

– Humanos sempre são detestáveis – comentou uma das gárgulas aladas, alçando voo.

– Gárgulas? – indagou Ariane. – Quanta coisa mais existe por aí que eu não sei?

– Muitas – respondeu Oliver secamente, já dentro do carro. O jipe foi acionado. – Para onde iremos? – indagou Ariane, colocando o cinto.– De volta à vida. Precisarei de você para acertar o próximo pas‑

so... Já sei onde podemos parar.Segundo Badeck, para voltar deveria repetir o mesmo passo da

ida. O veículo deslizou para dentro do pântano negro, sendo engolido pelas águas escuras e pastosas.

Page 224: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 224 ×

Capitulo 18Abdicação

As águas pantanosas grudaram nas vestes deles conforme o veícu‑lo afundava. Diferente da última vez, eles não foram tele‑transportados para onde deveriam. Ariane trancou a respiração e Basílio tapou o nariz e a boca de Alan. Após passarem pela camada grossa de sujeira e limo, as águas profundas do lago eram transparentes e escurecidas. Oliver sen‑tiu um frio acertar sua espinha quando imaginou novamente para onde deveriam ir, pois o carro não fazia nada além de afundar. Para pedir ao cavaleiro se concentrar, Badeck desferiu‑lhe uma patada no ombro.

Ariane cutucou o ombro de Oliver e apontou para baixo hor‑rorizada. Dois olhos azuis brilhosos do tamanho de bolas de futebol acenderam‑se na escuridão. Alguns traços monstruosos da criatura que vivia no fundo do lago acentuaram‑se e ela abriu a boca. Uma boca cir‑cular e repleta de dentes semelhantes aos de uma gigantesca piranha cujas nadadeiras eram tão longas que se perdiam de vista no fundo.

“Droga!” pensou Oliver apavorado.A piranha monstruosa nadou agilmente em direção a eles pronta

para engolir o jipe de uma vez. – Concentre‑se! – disse a voz nervosa de Badeck em sua mente. – Badeck, guie‑nos para uma pousada! – ordenou Oliver mental‑

mente, de olhos fechados.A água suja continuou a rondá‑los e o monstro aquático estava

mais perto. Basílio exclamou bolhas de ar, mas não foi compreendido. O cavaleiro sentiu uma pontada de dor pela falta de ar. A voz de

Badeck adentrava seus ouvidos, impertinente. – Oliver! O guia abocanhou seu braço, fazendo‑o acordar do choque.Oliver comprimiu os olhos, pensando em qualquer coisa que não

fosse o monstro que os engoliria breve. – Badeck, leve‑nos para uma pousada! – disse mentalmente.O brilho azulado de Badeck explodiu e os teletransportou antes

que a piranha sugasse‑os para dentro de seu organismo. No momento

Page 225: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 225 ×

seguinte, o jipe balançava como se tivesse chegado ao fundo de um es‑tômago faminto. Ariane abriu a porta e caiu para fora. A água presente no carro esvaiu‑se e espalhou‑se no asfalto. As tossidas duraram um tempo, até Oliver sair do veículo e limpar o rosto das sujeiras com a manga molhada. Estavam no estacionamento de uma pousada por onde Oliver dormiu uma vez, em Torres.

Ariane ficou sem graça quando um casal de velhos passou por eles, fazendo o sinal da cruz. Basílio abraçava Alan, aliviado.

– Você quase nos matou! – Ariane empurrou Oliver. – Aquele monstro quase nos engoliu!

– Mas estamos vivos! – defendeu‑se o cavaleiro de cara fechada. – A sua irresponsabilidade não terá tanta sorte da próxima vez!

– retrucou Basílio cujo aspecto não poderia parecer pior: seus cabelos estavam sujos de tinta vermelha e limo; algas verdes escuras recobriam todo o seu corpo e uma espécie de grãos pretos aderia aos seus braços.

– O que é isso? – perguntou Alan, puxando um dos grãos moles.– São sanguessugas! – exclamou Oliver e retirou uma idêntica de

seu braço.Ariane gritou apavorada quando percebeu uma em sua barriga e

outra no pescoço.Quando já estavam no quarto, o calor da lareira acesa foi o sufi‑

ciente para aquecê‑los.– Ariane – Oliver chamou‑a. A policial estava sentada no chão, enrolada numa toalha. Haviam

tomado banho e vestido algumas roupas compradas em uma loja ali per‑to. A pousada era simples, desprovida de luxo ou muito conforto. Tinha uma cama de casal e outra de solteiro ao lado, um banheiro e uma tele‑visão. A lareira ao lado da cama crepitava e aquecia o ambiente. Através da janela entreaberta, a noite entrava silenciosamente, causando certo desconforto ao grupo perdido nas horas.

– Precisamos conversar.– Antes que comece... – Ela juntou o espelho redondo para limpar

o vidro com a manga. – Começo, finalmente, a acreditar em tudo o que contou para Basílio.

Ele sorriu ao sentar‑se ao lado dela. Basílio e Alan conversavam ao dividirem um sanduíche sobre a cama. O piso frio refletia as labaredas alaranjadas e servia de distração para ambos.

– São duas horas da manhã. Bem, eu não tive um motivo aparente quando a sequestrei. Apenas tive uma impressão de que você me seria necessária... E eu não estava errado, pois agora preciso pedir‑lhe um favor. Vi que você era importante quando os policiais nos perseguiram, então acredito que tenha poder para o que planejo.

– Claro que sou importante. – Ela secou os cabelos. Depois, reti‑rou as últimas melecas. – Trabalho na Homicídios com o chefe. Como

Page 226: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 226 ×

lhe disse, estava investigando um acusado. Não tem nada a ver com tráfico de drogas, mas com assassinato. As mortes estão aumentando...

– Eu sei, eu vi isso. O índice de homicídios está bem alto. – Oliver achou uma boa falar naquele momento. – Eu não disse, mas descobri Basílio por uma visão. Ou melhor, foi num sonho... E não foi especifi‑cadamente dessa forma. Mas, o que importa, é que eu vi dois acidentes de aviões, encontrei Basílio e aqui estamos!

Oliver sorriu mentalmente, apanhando o telefone da pousada.– Ligue para a polícia. Minta a história de Basílio para que não

desconfiem de nada...Basílio virou para eles.– Você está no corpo de um assassino – Agora ele se lembrava de

ter visto o rosto moreno no jornal. – Eles vão prendê‑lo, ou acha que acreditarão na sua versão da história?

– Eu pensei sobre isso e tenho a solução. Como expliquei antes, tenho que mudar de corpo para ficar na terra, diferente de ti, Basílio. Você já decidiu o que quer fazer?

O cavaleiro fez cara de quem pensou muitas vezes nesse assunto.– Ótimo – disse Oliver ao sorrir de canto. – Existe uma pousa‑

da em Florianópolis, na Barra da Lagoa. Ela se chama Banho Lunar. Encontre‑me daqui a quatro dias lá.

– Mas aonde você vai?– Faça o que eu digo. Badeck, vá com eles. Acompanhe‑os e ga‑

ranta que tudo saia bem. O guia concordou. Ariane terminava de explicar uma história in‑

ventada ao telefone.– Estarão aqui em dez minutos. – Precisaremos de um plano...A policial retirou o cinto, improvisando uma corda. Ela havia en‑

tendido o plano.– Oliver, tenha cuidado – alertou Badeck. – Jamais entre em uma

luta sem a minha presença!– Não se preocupe, estou um pouco cansado de desafiar o perigo

por ora. Cuide bem de Badeck, Basílio. Pegue os itens e guarde‑os até que nós nos revejamos! E não use nada...

A pancada que Ariane dera no cavaleiro fora imediata, sem mui‑tos melodramas. Já tinha o plano em mente.

– Certo, memorize a história, Basílio. Eles lhe farão algumas per‑guntas... Iremos resolver duas histórias juntas. Você viajava pela estrada quando o assassino o fez parar, matou sua mulher e colocou fogo no carro. Eu estava junto e vi, mas não pude intervir porque estava presa. Prendeu você e seu filho e os levou para a Estrada Velha onde se encon‑traram com o grupo da seita “O olho do Dragão”. – Ariane começou a contar uma história rapidamente com fatos realmente convincentes.

Page 227: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 227 ×

Após alguns minutos Basílio revisava mentalmente as palavras dela. – Então o nocauteamos e aqui estamos. Assim, você não será acusado pela morte de sua mulher.

– Mas eu não a matei! – protestou Basílio.– Entendeu, Alan? – perguntou a policial para o garoto.– Sim... Mas essa história não é verdadeira!– Os policiais não vão acreditar na verdadeira história! Temos que

improvisar, estou lhe ajudando. Preocupado, Alan aceitou e perguntou em seguida:– Ah, e mais uma coisa... E o cachorro?Ariane pensou um pouco, mas Badeck interveio.– Vou procurar um esconderijo por ora e, no final das investi‑

gações, encontrarei com Basílio – explicou Badeck ouriçado, parando próximo à porta. – Eles estão aqui.

As luzes vermelhas e azuis brilharam, acompanhando as sirenes. Em segundos o estacionamento estava lotado de carros, supervisiona‑dos aereamente por um helicóptero. Eles precisavam ser espertos se quisessem sair inteiros.

Oliver piscava diversas vezes com a dor latejante em sua nuca. Uma porta ao seu lado direito abriu e alguém entrou. “Alguém entrou... espere! Onde eu estou?” pensou ele. As mãos presas por algemas doíam na região dos pulsos e gelavam‑lhe os dedos. Olhou melhor ao redor, estava em uma sala cinza espelhada diante de uma pequena mesa, e mais à frente, a outra cadeira vazia foi ocupada pelo estranho que entrara. Ele trajava um terno e parecia ligeiramente irritado.

– Onde eu estou? O homem coçou o cavanhaque.– Onde você acha? – Rudemente ele mostrou o distintivo, seu

nome era Edgar. – Acho que isso esclarece nossas dúvidas.O cavaleiro revirou os olhos. – Certo, eu confesso! Eu matei todo mundo e blábláblá. Agora,

me prendam! Quem sabe não me matam e, dessa vez, efetivamente?Edgar desferiu um soco na cara de Oliver.– Então merece isso, assassino!– Ei! – Oliver movimentou o nariz dolorido freneticamente. – Eu

tenho meus direitos ainda...– Homens como você não têm nada! Já que foi tão machão ao

confessar, por que não engole essa? – Que tal se eu engolir a sua mãe? – Oliver sorriu maliciosamente.

Precisava parecer um pouco mais realista.

Page 228: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 228 ×

– Seu imbecil!Edgar empurrou a cadeira que usava. Os olhos transmitiam ira.– Eu deveria ter feito algo muito ruim para você. – Inclinando

o corpo para frente, Oliver cuspiu o sangue que entrava pelo canto da boca. – Mas eu não me importo. Para mim não faz diferença... E sabe mais? Eu quero que você se dane!

As pequenas batidas no vidro não foram suficientes para segurar a fúria de Edgar. O alarme soou como o gongo salva‑vidas, parando o policial antes que lhe desferisse outra bofetada de desmaiar. Oliver ten‑tou olhar para a porta que abria, porém Edgar agarrava‑o pelo colarinho e não permitia.

– Pare com isso já. – A voz de trovão soou através da porta. – Agora volte para cá.

O policial contrariado ajeitou as roupas e deixou Oliver. Pensati‑vo, o cavaleiro moveu as mãos freneticamente na tentativa de liberar‑se das algemas. Novamente Edgar entrava pela porta carregando um café, juntou a cadeira caída e sentou‑se próximo ao ex‑soldado.

– Peço desculpas pelo meu comportamento. – Tudo bem, afinal, eu merecia. O suor brotava da testa de Oliver e escorria pelo canto da cabeça.

Tocava nas algemas com os dedos. Não deveria ser impossível abri‑las, não? Afinal, era um cavaleiro da Terra‑Inversa. Viu Badeck fazer aquilo quando entraram escondidos no quarto da pousada. Reduziu a respira‑ção para facilitar o pensamento, já que Edgar não parava de lhe dizer os direitos civis.

– Agora vou lhe dizer o que vai acontecer... Seu advogado está chegando...

“Concentre‑se nas algemas.” Oliver apalpou a fechadura, lamben‑do levemente os lábios.

– Vai ser massacrado na prisão... Ou, com um pouco de sorte, alguém o matará antes.

“A fechadura, eu quero que ela abra. Abra, abra!” As algemas tre‑meram de leve ao pedido. Oliver sentiu um calor irromper de seu peito, subir até os ombros e percorrer os braços, terminando nos pulsos. As algemas afrouxaram e liberaram suas mãos.

– Edgar, faça o favor a si mesmo e cale a boca. – Oliver levantou‑se com as mãos estendidas. As algemas tiniram quando caíram no chão.

O policial foi surpreendido com um soco na face. Edgar recuou e alisou a bochecha ferida.

– Seu cretino! – exclamou Edgar, buscando a arma que estaria na cintura.

– Está aqui, idiota! – Roubada a arma, Oliver mirou o pé do ho‑mem e atirou, errando por menos de um centímetro.

A porta, às suas costas, escancarou‑se para dar passagem a outros

Page 229: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 229 ×

três policiais armados. Recebia ordens de largar a arma e pôr as mãos na cabeça, mas não obedeceu a nenhuma. Encarava fixamente os olhos de um Edgar receoso diante de si ao engatilhar a arma. Quatro tiros es‑pocaram nas costas, empurrando‑o para cima de Edgar, que o segurou, antes de cair. Parecia que milhões de agulhas espetavam‑no.

Page 230: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 230 ×

Capitulo 19Bando de Tom

– Olá?A voz de Basílio soara abafada enquanto abria a porta para Badeck

entrar primeiro farejando. Sua preocupação só acabou ao ver o homem sentado na pequena mesa redonda comendo um hambúrguer.

– Desculpe, acho que entrei no lugar errado... – pediu Basílio.– É ele mesmo – disse o guia, farejando o novo corpo de Oliver.– Se soubesse que viriam mais cedo teria pegado mais comida. O homem sentado na cadeira não se parecia em nenhum aspecto

com o moreno assassino. Ele era branco, baixo, troncudo, cabelos cas‑tanhos curtos e ondulados, expressões duras e olhos cor de mel. Oliver lambuzava‑se com o catchup e a mostarda, sujando um pedaço do mo‑letom cinza que usava. Depois de ter “morrido” na prisão, arranjou um corpo, encontrado caído, sem ter sido achado por nenhum parente até então, no piso de sua própria casa. O antigo dono do corpo perecera de ataque cardíaco. Depois, Oliver dirigiu‑se à pousada.

– Onde está o garoto? – Eu embarquei‑o para a Espanha, vai morar com a avó materna.

– Basílio estranhou Oliver mesmo que Badeck lhe tivesse explicado so‑bre as trocas de corpo de seu cavaleiro. – A polícia aceitou a mentira de Ariane, a tutoria de Alan deveria ficar comigo, pois sou o pai, mas acho melhor que vá para a Espanha, é um país menos perigoso que o Brasil. Eu os visitarei quando possível...

– E como foi para você sem mim? – questionou Badeck. Acon‑chegou‑se abaixo da cadeira de Oliver.

Oliver resumiu seu breve encontro com Edgar enquanto termina‑va o almoço e satisfazia a fome.

– O que faremos agora? – Eu devo ir procurar Baroon... Ela deveria já ter se apresentado

a nós... Acho que o acidente com Basílio a fez sair um pouco fora de si. – Badeck pôs‑se de pé. – Tenho que trocar de corpo também, portanto tentem adiantar o trabalho enquanto fico fora.

– Eu já tenho uma ideia. – Oliver limpava a sujeira na mesa, gesti‑

Page 231: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 231 ×

culando com a outra mão. – Temos que... – Antes de tudo.Basílio observava o movimento fora da pensão lá na praia, o ir e

vir do mar acalmava‑o. – Preciso ir a Curitiba resolver uns negócios.– Não temos tempo para negócios! – exclamou Oliver, atirando

migalhas para o chão e, do chão, para baixo do tapete com a mão.– Teremos de ter! O dinheiro desses negócios servirá para a edu‑

cação e criação do meu filho. Oliver refletiu; antes de cavaleiro Basílio era um humano. Tinha

que compreendê‑lo melhor do que todos. – Partiremos hoje mesmo para Curitiba – alegou o cavaleiro de‑

pois de juntar os pertences numa mochila velha. Trazia consigo todos os documentos do corpo em que ora habitava. – Onde estão as coisas dadas por Coveiro?

– No carro. A palavra “carro” fez Oliver exaltar‑se. – Que carro?– Meu carro era assegurado, então o seguro deu‑me outro ontem

pela tarde – explicou Basílio, abrindo a porta do quarto. Badeck antecipou‑se até a porta. – Nos veremos em breve. – Tome cuidado, Badeck. O guia encarou Oliver uma última vez e correu até as escadas. Cheirando a novo, o carro esportivo agradava a Oliver não por ser

novo, mas por terem um meio de locomoção. Acomodou a mochila no banco traseiro e pôs o cinto de segurança. O carro já rodava fazia dez minutos e nenhum dos dois trocara palavras.

– Agora que sabe que é cavaleiro verá muitas coisas diferentes – alertou Oliver, cruzando os braços.

– Badeck me falou a respeito. É estranho acreditar que um cão tenha me contado essa história...

– Para mim também foi difícil! A diferença é que não tinha nin‑guém que me entendesse.

– Eu já tinha ouvido vozes antes. – Basílio atormentava‑se ao lem‑brar‑se do passado. – Quando era pequeno via coisas estranhas como sombras e pessoas que não estavam lá. Meus pais eram católicos fervo‑rosos e não acreditavam em mim, os padres diziam que eu era possuído e tinha o demônio em mim. Depois de sessões intensas de “exorcismo” eu parei de contar a eles. Nunca mais abri a boca e comecei a ignorar o que acontecia. Com o tempo parou. Quando me tornei jovem continuei a ouvir vozes. Os psiquiatras diziam que as coisas que eu ouvia eram lembranças reprimidas de ter sido incomodado por seus pais. Voltei a ignorá‑las para meu próprio bem, e funcionou. Depois que me casei

Page 232: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 232 ×

e tive Alan, elas tornaram‑se menos frequentes e pude viver melhor. Odiava passar perto de hospitais e cemitérios; volta e meia via gente por lá. Os médicos chegaram a crer que eu poderia ter alguma doença, dessas, mentais... Mas Maria me ajudou e acreditava em mim. Um dia ela confessou para mim que quando estava comigo também via coisas estranhas. Achei que ela só falou isso no intuito de confortar‑me...

Oliver ouvia atentamente a história do novo parceiro. O narrador fez uma pausa, recuperando o fôlego.

– Senti um pouco de dúvidas quanto à história que me contou... Mas na hora me vi em ti, Oliver. Agradeço por saber que não sou louco. Por isso irei com você até o fim. Mesmo não sabendo, você me ajudou.

– Todos nós passamos por infernos interiores. Alguns demoram anos para sair e outros nunca saem. Eu vivi muito tempo no meu e só saí porque fui obrigado... Muitas vezes não é fácil aceitar quem somos. Se não crermos em nós, nunca seremos alguém, mas apenas meros doentes da sociedade. Agora não somos apenas conhecidos, somos parceiros. Nos juntaremos aos outros cavaleiros e daremos a “mãozinha” que o mundo precisa.

Ele concordou mentalmente com Oliver. – E esse negócio seu aí, o que é, Báz? Posso te chamar de Báz? Basílio riu com seu novo apelido. – Perto de Curitiba, no interior do Paraná, tenho uma fazenda

que era de meu pai. Venderei para um capataz que a quer faz anos. Não vendi antes porque odiava o homem, agora o vejo como uma saída... Como vê, sou um homem simples, meu melhor negócio foi comprar o carro. Devo conseguir dinheiro suficiente para manter os estudos de Alan até ele completar a maioridade e se formar, isso se a velha conse‑guir controlar a mão. É só chegar lá, chamar o advogado dele e assinar os papéis, o dinheiro vai direto para a conta dela.

– Eu ia me formar em direito em alguns anos – contou Oliver, que parecia ter esquecido completamente o que era.

– Quem sabe um dia você possa exercer? – Impossível. Quem entra para essa vida, não consegue sair... E

eu não pretendo largá‑la até completar minha missão. Decidi há tempo: não abandono mais nada que me é dado. Reluto algumas vezes, mas aprendi a aceitar. Essa vida é maravilhosa mesmo não parecendo: não ser humano é melhor a cada dia que vemos a verdade.

– Sinto não poder criar meu filho... – lamentou‑se Basílio. – Contente‑se em cuidar do mundo para seu filho poder nele vi‑

ver – Oliver fora um pouco seco, mas era a verdade. Revezando‑se na direção e parando em certos trechos, os dois

chegaram a Curitiba perto da meia‑noite. Infelizmente a estrada estava movimentada. Ambos dividiram um quarto de um hotel no centro. No dia seguinte, partiram cedo até a outra cidade. Na fazenda de Basílio, até

Page 233: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 233 ×

então fechada, não havia nenhum animal ou trabalhador. Era extensa e abrangia um pedaço médio de terra. Oliver agradou‑se em estar lá. O único defeito era ficar longe da civilização, e o único vizinho se chamava Borges Condovalho. Borges era o tal comprador, um homem bigodudo e pançudo, dotado de ares de rico. Usava aquelas roupas apertadas que apenas realçavam as gorduras, além de ter um hábito irritante de mexer nos cabelos compridos. O contrato foi assinado depois de um almoço na casa do capataz.

– Pena que não assinou esse papel antes, mas foi um ótimo negó‑cio – comentou Borges, alisando o bigode comprido.

– Bem, o importante já aconteceu. Agora ela é toda sua! – Basílio apertou a mão repleta de anéis de Borges e os dois se despediram.

– Afinal, por que ele queria a fazenda? – indagou Oliver, curioso. – Dizem que essas terras têm petróleo. – E por que você não tentou procurar também? Teria ficado rico. – Não, isso é só um mito barato – disse Basílio ao entrar no carro. – Vamos para a cidade, onde descansaremos à noite. Amanhã já

partiremos em busca de um destino.Dez minutos de estrada eram suficientes para entediá‑los. – Essa estrada é vazia. Ela só ganha vida nos feriados, fora isso, só

o Borges para usá‑la mesmo. Depois que comprou todas as fazendas da região não deu outra.

Os trigais chegavam até o acostamento. Ao virar uma curva, dois homens caídos na estrada fizeram Basílio frear bruscamente.

– Mas que droga é essa? – questionou Oliver, deixando o carro assim que parou.

– Acho que eles estão desmaiados... – argumentou o outro cava‑leiro, apanhando a mochila em busca do celular.

– Vou ver. Oliver aproximou‑se dos corpos e abaixou. Eram homens jovens,

de roupas pretas, ainda estavam com os capacetes. – Acho que foi um acidente, mas não tem...O cavaleiro não chegou a concluir o comentário porque foi sur‑

preendido por um soco na cara. Os dois levantaram‑se agilmente, sa‑cando armas.

– Seu imbecil! No que está pensando? – ralhou Oliver, esfregando o nariz dolorido. Se ganhasse um real a cada vez que recebesse um soco na cara, desde que entrara para aquela vida, estaria rico.

– Vamos levar o seu carro – disse um deles e apontou a arma para Basílio.

– Tudo bem, pode levar – disse Basílio, parado ao lado do carro.– Não! Nós precisamos do carro! – exclamou Oliver, a suar frio

com o peito machucado pelo chute daquele que o mantinha no chão. Basílio caiu de bruços quando foi empurrado. O mais alto deu a

Page 234: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 234 ×

partida no carro e o outro procurou a moto escondida no matagal, sem‑pre apontando armas para os dois encurralados.

– Nós podemos fazer alguma coisa... – Deixe assim, – pediu Basílio – não podemos nos arriscar. Os dois sumiram de vista, pela estrada, com os veículos. Oliver

levantou irado, gritando milhares de palavrões. – O que importa é que está tudo aqui – Basílio mostrou as mochi‑

las que atirou no meio do mato ao abrir a porta do carro. Ele a abriu e conferiu se estava tudo lá. – E agora? Largados aqui, no meio dessa joça de interior não te‑

mos a mínima ideia de quando a ajuda vai passar!– Esse não vai ser o problema... – Basílio coçou a testa. – O que você quer dizer com isso?– Quando eu abri a mochila acho que deixei cair o anel. – O quê!? – Oliver chutou uma pedra. – Estamos literalmente

com o pé na cova! Como vamos conseguir o anel de volta? Tem noção de quanto aquilo é importante?

– E daí? Estamos com o resto, – defendeu‑se Basílio – caso con‑trário, não teríamos nada!

– Caramba! – reclamou Oliver, irritado. – Vamos continuar a pé. Se tivermos sorte daqui a três dias estamos na cidade.

– Deixa de ser dramático, – retrucou Basílio pondo a mochila nas costas – tivemos sorte de sairmos vivos.

– Somos cavaleiros e não temos problemas quanto a isso. Oliver esfregou o rosto, preocupado. – Na cidade veremos o que fazer. Foi mal a grosseria, mas, tudo

estava indo tão bem! Maldito sejam todos esses bandidos fracassados. Meia hora depois eles chegavam a uma bifurcação.– Direita ou esquerda? – Não sei. A resposta de Basílio fez Oliver tremer. – Como assim?A bifurcação da estrada levaria, de um lado, a Curitiba, de outro,

a alguma cidade interiorana. – Tinha uma placa aqui antes, agora não tem mais! Faz tempo que

não venho aqui, uns dez anos quase. – Báz deu de ombros. – Eles devem ter arrancado e jogado no trigal.

– Então vamos procurar...– Não precisamos disso. Basílio apontou para o chão. – As marcas mais recentes vão para a direita, isso quer dizer que

os ladrões foram para lá. E como queremos achá‑los, vamos segui‑los.Os sulcos na terra de chão batido não deixavam a desejar. Oliver

embasbacou‑se diante do conhecimento de Basílio e envergonhou‑se

Page 235: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 235 ×

pelo próprio comportamento infantil.– Certo, então tomaremos a direita. Seja lá aonde ela nos leve... Passaram‑se mais duas horas de caminhada incessante. O morma‑

ço do verão queimava em suas roupas. Mais uma hora, e nenhum dos dois conseguiria continuar. Oliver cansou de carregar o peso da mochila e transferiu os documentos para a de Basílio, e largou o resto no meio do mato.

– Eu estou com muita sede. – Só você? – Oliver estava irritado pelo calor. – Agradeça por

ainda estarmos vivos. O ruído de pneus amassando os poucos pedriscos fez Oliver e

Basílio sobressaltarem‑se. Uma caminhonete azul e velha parou ao lado deles. Em seu interior, um padre de pele negra trazia um sorriso.

– Precisam de carona, irmãos?– Por favor, fomos roubados e estamos sem carro – pediu Oliver. – Subam então! – convidou o padre de bom humor. Basílio entrou primeiro e Oliver, depois, ambos estavam aliviados

e agradeciam mentalmente.O padre era novo, por volta dos trinta e três anos, cabelos raspa‑

dos, olhos castanhos transmissores de paz, usava um casaco preto que deixava a gola branca aparecer e um pingente prateado de cruz. Basílio perguntou‑se como o homem aguentava usar tais roupas no verão escal‑dante. Os dois se apresentaram.

Os cavaleiros demonstravam‑se desconfortáveis nos bancos ras‑gados e tortos da caminhonete.

– Desculpe, não é de luxo – sorriu constrangido o motorista. – Tudo bem! – Oliver coçou a nuca. – Então o senhor é um padre?– Sim! Chame‑me de Padre Tom. – Ele sorriu fraternamente. –

Para onde vão?– A princípio para Curitiba, mas depois do assalto, precisamos

encontrar o carro. – Basílio segurou a mochila nos braços, como se ti‑vesse ouro dentro. Pode nos dizer onde essa estrada termina?

– Santo da Proença é para onde essa estrada leva – respondeu o padre. – Cuido da igreja da pequena cidade e também de um lugar para desabrigados. Eu acho que tenho uma noção de quem possa ter levado vosso carro. E se for quem penso, aconselho‑os a esquecerem.

– Esquecer? – Oliver estava inquieto. – Não podemos... Tem algo muito importante dentro dele.

– Nada é mais importante do que a vida, Oliver. É Oliver seu nome, não é?

– Não se preocupe conosco, padre. – Basílio parecia ser o mais responsável. – Não queremos trazer problemas, principalmente para a cidade. Acho que uma boa conversa resolverá nossas diferenças.

– Não me meterei em seus assuntos, então. Fazem o que por aqui?

Page 236: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 236 ×

– Vim vender minha fazenda, preciso do dinheiro para a educação de meu filho.

– E fazem o que da vida? Desculpe se parece um interrogatório, mas gosto de conversar.

– Não há problema. – Basílio entregou a mochila para Oliver, que continuava quieto. – Como aprecio o seu trabalho, faço questão de responder‑lhe. Oliver é aspirante a advogado e eu sou engenheiro civil.

– Gostei de vocês, parecem boa praça. – Tom virou a direita na outra bifurcação. – Já que estão sem carro oferecerei uma noite lá na pensão para vocês.

– Não queremos abusar, por favor.– Não há problema, meus caros. Os que roubaram seu carro re‑

presentam uma gangue, eles dominam um pedaço da cidade, volta e meia atacam nossos desabrigados. Usam preto e adoram causar discórdia.

Basílio suava frio, não gostava de “marginais”. – O lugar para onde vão é simples, não temos luxo. Espero que

não tenham problemas quanto a isso, afinal um engenheiro civil e um advogado...

– Nós não perdemos tempo com julgamentos, padre – desconver‑sou Oliver, encostando a cabeça na janela do carro.

A caminhonete estacionou na frente da igreja pacata ao lado da pensão caindo aos pedaços. A rua de chão batido mal tinha postes para todas as casas porcamente enfileiradas, das quais muitas eram pobres. O trio desceu do carro e subiu as escadarias rachadas, ultrapassando as portas de entrada feitas de madeira.

– Não queremos demorar, – repetiu um Oliver impaciente – se‑não vai ficar muito tarde para pegar o carro de volta.

– Seja ao menos educado... – balbuciou Basílio, encarando‑o de canto. – Se não conseguirmos o carro ele é que nos ajudará a voltar.

– Bem vindo ao humilde lar de Deus. Tom louvou a imagem de Jesus crucificado. A igreja humilde era

bem cuidada, diferente de muitas outras que os cavaleiros já tinham fre‑quentado. Tom guiou‑os para um jardim de inverno, atrás do palco.

– A janta será servida em uma hora. Aconselho a não procurarem hoje o seu carro, mas amanhã! Está escurecendo e não é mais seguro. – Tom abriu a outra porta que levava a um enorme e velho salão. – Por favor, jantem conosco!

Oliver e Basílio entreolharam‑se. – Tudo bem, – concordou Basílio – mas depois iremos procurar

o carro.

Page 237: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 237 ×

O salão tinha paredes pichadas, mas não deixava de ser limpo. Três mesas compridas e grandes feitas de madeira com mais de cinquen‑ta lugares cada. Duas jovens montavam as mesas com pratos e talheres baratos, enquanto outros trabalhavam para fazer a janta na cozinha. O cheiro de sopa invadiu as narinas dos cavaleiros esfomeados, atiçando os paladares. Oliver sentiu‑se ligeiramente desconfortável.

– O que foi? – Não sei... Estou com um pressentimento familiar. – Oliver re‑

duziu o passo. – Agora eu entendo o que Coveiro disse, se eu permane‑cer na Terra por muito tempo perderei meu poder gradualmente. Não serei mais capaz de reconhecer meu inimigo e nem de ouvir o que meus instintos alertam sobre o perigo.

Basílio deu de ombros. Tom guiou‑os até a cozinha situada atrás das mesas na outra ex‑

tremidade do salão, um lugar organizado e limpo. Junto ao fogão, três rapazes de avental cozinhavam.

– Estes são Pablo, João e Horácio, os mais antigos do abrigo. – Os três jovens empertigaram‑se quando ouviram seus nomes. Não tinham mais do que vinte anos cada um dos cozinheiros. – Meus acompanhan‑tes são Oliver e Basílio, vieram jantar conosco.

– Prazer, senhores. Bem vindo à nossa humilde estadia! – cumpri‑mentou Horácio, o jovem de cabelos ruivos.

– A sopa está uma delícia – gabou‑se Pablo, um latino. O último, que era um oriental chamado João, não dissera nada,

medindo a temperatura das panelas. Ele tinha cabelos pintados de azul‑vivo perfeitamente da raiz às pontas, apesar dos protestos do padre em relação ao seu visual.

– Não seja mal educado – corrigiu o padre, arrancando a colher da mão de Horácio e batendo na panela, para chamar atenção de João.

– Ah, sim. Olá! – exclamou João, queimando o dedo na tampa.Oliver, apesar de tudo, achara‑os estranhos. Tom também apre‑

sentou as jovens que cuidavam da louça, e as freiras supervisoras. Oliver sentia cheiros estranhos lá, mas não os reconhecia. O odor forte de cebola impregnado no ambiente não colaborava.

– Agora mostrarei seus quartos, se não se importarem. Acima do salão, os três andares da pensão tinham muitos quartos

pequenos. Alguns hóspedes caminhavam pelos corredores e os cumpri‑mentavam. O único quarto vazio do terceiro andar tinha dois colchões no piso com lençóis limpos e um travesseiro para cada cama improvisa‑da. No pequeno armário perto da janela mofada não cabiam mais do que sete peças de roupas.

– Espero que não se importem mesmo – disse o padre, tímido. – Para nós está uma beleza. – Oliver deu‑lhe tapinhas nos om‑

bros. – Será que posso ficar a sós com Basílio?

Page 238: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 238 ×

– Claro! Quando ouvirem o sinal é porque o jantar será servido. Tom atendeu ao pedido. – Tem algo errado neste lugar. – Oliver caminhou até a janela que

dava em um campo de futebol cercado por um muro. – Pode ser impressão. – Basílio jogou a mochila sobre o colchão.– Não é isso... Olhe essa gente. Oliver apontou a pelada no campo de futebol. Além dos jogado‑

res, havia muitas pessoas divididas em pequenos grupos. Uma freira in‑terrompeu a diversão, mandando‑os para dentro e encerrando a partida.

– A lanterna – balbuciou Oliver ao apanhar a mochila. – O quê?– Tenho uma intuição do que possa ser. – O cavaleiro acendeu a

lanterna e apontou para o campo. O poderoso facho de luz que apenas ele enxergava iluminou um grupinho que deixava o lugar. Oliver arre‑galou os olhos.

Basílio arrancou o aparelho de sua mão e fez o mesmo. – Você estava certo...– Não é só isso. – Oliver apanhou a lanterna e do quarto foi para o

corredor. Apontava a lanterna aparentemente desligada para todos que passavam, como um lunático.

Nenhuma pessoa, com exceção das freiras, era humana, todos os outros eram criaturas! Lobisomens, vampiros e até um ou dois dragões. Até o momento, só se deparara com criaturas que tentaram arrancar seu pescoço ou que adorariam estraçalhá‑lo. Nunca com criaturas que conviviam como se fosse um. Basílio tentava acompanhá‑lo, porém este tinha menos fôlego. Apontou‑a para um mendigo sentado no chão do corredor, a pele dele criou pelos longos e escuros. Os olhos cintilaram avermelhados e as garras acentuaram‑se: outro lobisomem! Apontou para uma pequena garotinha nas escadas, esta tinha escamas amareladas e chifres pontudos, outra vampira. Conforme o facho poderoso passava como um raio‑x, Oliver parecia incrédulo. Quando finalmente parou, Basílio roubou‑lhe a lanterna e guardou‑a no bolso traseiro.

– Pare com isso! Quer chamar atenção? – bufou Basílio, sacudin‑do‑o pelos ombros.

– Todos eles são criaturas, eu vi! – Oliver afastou‑o com um em‑purrão. – Eu estou entendendo.

– E você acha que eu entendo? Esse comportamento é anormal, não é? Só vi monstros que queriam me matar até agora.

– Não tanto, algumas criaturas convivem entre humanos sem problema como Joseph. Mas estas parecem ter um comportamento mais diferente ainda, como podem fingir‑se de pobres?

Basílio deu de ombros. – O que faremos?– Continuaremos aqui e fingiremos que não sabemos de nada.

Page 239: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 239 ×

– Oliver subia as escadas murmurando. – Essas pessoas não estão mal intencionadas, logo não irão se meter em nossos assuntos.

– Como sabe?– A lanterna permite que vejamos as intenções das pessoas, não

vi nada de perigoso. Parecem que nos temem, digo, não apenas nós, mas todos os humanos. Mais um pouco e diria que gostariam de ser humanos.

– Vamos subir ou seremos ouvidos. A ordem coerente de Basílio foi atendida. O som do sino da pe‑

quena igreja foi bem recepcionado, avisando que a janta estava servida. Em bando, os quarenta e três abrigados buscaram seus lugares nas três mesas. Quando chegaram, carregados pelos três jovens cozinheiros, os panelões agradaram os olhares esfomeados. Crianças, jovens e velhos empoleiravam‑se nos bancos para ganhar sua última porção de comida do dia. Oliver e Basílio, após discutirem hipóteses, surgiram no salão. Olhares curiosos miravam‑nos, buscando explicação para a presença de‑les. Alguns murmuraram algo como “Esse é o louco que apontou uma lanterna estragada para nós.” Risadinhas infestaram o ambiente até a chegada do padre, que os convidou para sentarem com eles à mesa.

– Antes de tudo quero apresentar Oliver e Basílio, eles serão nos‑sas visitas esta noite. Portanto sejam educados. Agora, rezemos.

Terminada a oração, a janta começou. Apesar de simples, a sopa estava saborosa. Oliver comeu tão rápido quanto os outros esfomeados.

– Então, o que estão achando daqui? – perguntou o padre, entre colheradas lentas.

– É um lugar muito organizado e bem cuidado – disse Oliver. Uma freira baixinha entrou correndo no salão, murmurou algo

no ouvido do padre e aguardou‑o. – Desculpem‑me, irmãos, mas aconteceu um imprevisto. Se eu

não voltar até o final da janta vocês sabem o que fazer. Oliver, Basílio... Espero que se sintam em casa.

E retirou‑se. Os cavaleiros estavam sozinhos em um salão lotado de criaturas de gerações passadas. Oliver desejou que Badeck estivesse lá para guiá‑los e protegê‑los. O cavaleiro não percebera o quanto se apegara ao cão nos últimos tempos.

– Ei, vocês, – chamou Horácio, subindo no banco da última mesa para ser visto – o que querem aqui?

– Nós? – Oliver deu de ombros. – Estamos só de passagem. – Passagem? – João, de pé, dera uma curta risada. – Esse lugar não

é para pessoas como vocês.– O que quer dizer com isso? – interceptou Basílio, abaixando os

braços e depositando as mãos no colo. – Que não são bem vindos – finalizou Pablo, intimidando a dupla.– A sua lanterna decodificadora de intenções não foi capaz de ler

Page 240: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 240 ×

esse tipo de intenção, Oliver? – perguntou Basílio. – Vamos com calma – murmurou Oliver. – Me tire daqui então – desafiou Basílio confiante.– O que está fazendo? Não os conhecemos direito. Qualquer ato

insano pode nos destruir! – xingou Oliver em voz baixa.O olhar de canto para Oliver fora um eloquente “deixa comigo”.

Basílio já estava mais do que convencido de sua nova função e, diferente de Oliver, não mais questionava os princípios de ser um cavaleiro.

– E aí, alguém se atreve?Horácio, de punhos fechados, esgueirou‑se entre as mesas. Enca‑

rava Basílio que estava com cara de poucos amigos.– Olhos enganam e os pensamentos podem nos matar. Nem tudo

é o que parece – sentenciou o ruivo, parando às costas de Basílio. O ruivo mirou um violento soco na lateral da face de Basílio, que

se esquivou. Perdendo o equilibro, o atacante debruçou‑se sobre a mesa e deu a chance que Basílio precisava para o revide. Este, com a faca por baixo da mesa, cravou‑a na mão que o garoto apoiava na mesa. Horácio gritou doloridamente, mas Basílio não lhe deu oportunidade de pensar e desferiu‑lhe um soco no estômago. Desgrudando a mão da mesa, o atacante tombou indefeso sobre o banco. O cavaleiro ficou de pé a fim de todos verem. Badeck havia lhe dito que as criaturas das gerações pas‑sadas eram fortes e impiedosas. Apenas o termo “Geração Racial Pas‑sada” dava‑lhe a ideia de poder, já que era preciso ser muito forte para sobreviver a um apocalipse em uma comunidade de raça reincidente.

– Nada realmente é o que parece – concordou Basílio.– Isso foi... Foi... Incrível – surpreso Oliver bateu palmas. – Como ousa fazer isso? – João acudiu o amigo ferido.Pablo apontou ameaçadoramente para Basílio.– Pagará por isso!– Ninguém pagará por nada. – Oliver pôs‑se na frente do compa‑

nheiro, encarando Pablo. Não foi preciso um segundo para que Pablo recuasse. – O que foi? – preocupou‑se João. – Faça‑os se arrependerem!– Não podemos – Pablo ajoelhou‑se perante Oliver. – Nos per‑

doe por nosso comportamento, senhor. Ajoelhem‑se também!– Eu não vou me ajoelhar! – grunhiu Horácio com a mão ferida

já cicatrizada. – Eles são cavaleiros da Terra‑Inversa. A palavra “cavaleiros” foi suficiente para pôr todo o salão em

pânico silencioso. Horácio e Pablo também ficaram de joelhos. Assim como os cavaleiros, as gerações raciais passadas também sabiam definir a identidade dos outros através de um olhar. Não era como uma leitura de pensamentos, estava mais para um “raio‑x” de identidade.

– Nos perdoe, – insistiu João – não nos elimine!

Page 241: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 241 ×

Basílio, estático ao lado de Oliver, não compreendia. – Por que nos temem?– Porque somos cavaleiros e podemos executá‑los. – Oliver sorria

de canto. – Acho que já podemos criar um diálogo.– Diálogo? – Basílio mostrava‑se irado. – Olhe para isso!E, com força, chutou João para trás. Ninguém o defendeu. – Não sabíamos que eram cavaleiros! – alegou Pablo.– Onde está seu orgulho? – Basílio encarou Pablo. – Onde está

sua honra? Como podem ter tanto medo assim? – Basílio...– Calado! – Oliver obedeceu imediatamente diante da fúria do

amigo. – Eu me nego acreditar que vocês sejam mesmo as criaturas que sobreviveram aos apocalipses! Eu deixei de cuidar de meu filho para tentar salvar humanos e criaturas como vocês da destruição!

– Inferiores? – João colocava‑se de pé e esfregava o peito. – Lançarei um desafio. Eu desafio alguém a me enfrentar. Se me

vencer, deixarei esses três irem embora vivos. O silêncio no salão foi total, ninguém ousou abrir o bico para

defender o trio comandante. – Então... – O cavaleiro suspirou insatisfeito. – Como ousam nos

dizer que não somos bem vindos? Acredito que não somos os primei‑ros, todos os outros humanos que vieram aqui devem ter recebido o mesmo tratamento.

– Humanos são inferiores! – bradou Horácio. – Não devemos nada a eles! São criaturas agourentas que devem morrer. Destroem tudo que veem, matam sem dó. Não temos a mínima intenção de aceitá‑los.

– Chama os humanos de inferiores e são tão repugnantes quanto eles. – Basílio, ainda segurando a faca, apontou para o ruivo. – Tem ódio deles por matarem, excluírem e destruírem. Agora me diga, por que vivem à sombra de Padre Tom? Por que excluem os humanos se deles vocês precisam, destruindo as únicas chances que eles têm de encon‑trarem um abrigo? Antes de ser cavaleiro, conheci a maldade durante a minha vida inteira. Nasci em família humilde, trabalhei desde pequeno e sofri as consequências da pobreza. Tive problemas quando menor e me classificaram como problemático. Me curvei diante de outros para poder crescer na vida, mas não tratei os mais fracos como lixo. Não me dei ao luxo de classificar alguém baseando‑me no que a pessoa passa. Diferente de vocês que não sabem diferenciar o bom do ruim, porque são cegos de medo e egoísmo, como típicos humanos se comportariam.

O salão inteiro encarava, em silêncio, aquele estranho cavaleiro.– Nunca tive medo dos grandes, apenas respeitava‑os. Sempre

tive empatia e vi em vocês o comportamento nojento e asqueroso para com os mais fracos. Vocês três são exemplo de infantilidade, de falta de maturidade e de egoísmo. Aliás, em todos os outros também, porque

Page 242: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 242 ×

nada fizeram para defender seus iguais quando a coisa ficou perigosa. – Senhor cavaleiro, – uma garotinha mirrada e suja sentada pró‑

ximo à discussão chamou‑o – eu nunca concordei com o que eles fa‑ziam, mas também não gosto de humanos e nem de criaturas estranhas. Somos ameaçados desde que chegamos aqui por uma gangue de preto, eles têm acordo com os cavaleiros do Chamado e podem fazer o que quiserem quando bem entendem. Muitos de nós já foram mortos no ato de andar nas ruas... Eles roubam, brigam e matam. Já cansei de temê‑los, mas não posso fazer nada.

– Uma gangue? – Basílio associou‑a aos assaltantes que os haviam atacado na estrada e ao que Tom dissera, ao levá‑los para o abrigo. – Ou‑tro motivo para não passarem de meros empecilhos. Se temerem tanto uma “gangue” jamais farão jus ao que são, criaturas que tiveram o direi‑to de vagar pela terra porque venceram o apocalipse. Vocês são muitos com medo de tão poucos.

– Mas eles são fortes, – Pablo tentava amenizar a vergonha – mais do que nós!

– Eu não preciso de informações para saber o que os difere dessa gangue. – Basílio deu as costas para os três no chão. – Eles não têm ver‑gonha e nem medo de encararem os desafios. Fora isso, vocês são todos iguais. Nem para se defenderem uns aos outros servem.

Ele encarou Oliver pensativo. – Vamos descansar um pouco e sairemos atrás deles, precisamos

buscar o anel e sair daqui. Não suporto autocomiseração. Agradecendo por Basílio estar mais calmo, Oliver acompanhou‑o. – Vocês não podem ir atrás da gangue! – exclamou João atordoa‑

do. – Eles são muito fortes, não somos nada perto deles!– E daí? – Basílio continuou andando. – Eu não tenho medo da

morte e muito menos de quem é mais forte que eu. Porque, se eu tiver motivos para enfrentar, eu terei força o suficiente.

Basílio lembrou‑se das coisas que tivera de enfrentar em sua vida. Subindo as escadas que levariam ao quarto, ouvia‑se apenas o burburi‑nho infernal.

– Você parece aceitar ser cavaleiro mais rápido do que eu – afir‑mou Oliver, deixado para trás. – Por que falou aquilo pra eles?

– Não sei. – Basílio estava indiferente. – Às vezes simplesmen‑te temos vontade de dizer algo e dizemos. Minha vida não foi fácil e, mesmo eles sendo “monstros”, seria um desperdício terem o mesmo destino. Esse é um caminho que não merece ser trilhado por ninguém.

– Você é um grande homem e será um grande cavaleiro também. – Oliver deu tapinhas nas costas do amigo. – Vamos descansar e, depois, partiremos. Seja o que Deus quiser...

– Não ponha Deus na história. Seja o que nós quisermos, Oliver. – Aquele golpe... De onde ele veio? Não foi sorte.

Page 243: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 243 ×

– É uma longa história – desconversou Basílio, cansado. – Como sabia que eles iriam se comportar daquela forma? – Tenho quase o dobro da sua idade. Vivi o suficiente para conhe‑

cer comportamentos e saber que, não importando a carne, o espírito é o mesmo.

– Só você me surpreende, Báz.Oliver calou‑se em seus pensamentos. Basílio o surpreendia.

Page 244: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 244 ×

Capitulo 20Roubando o Inimigo

– Esgotou o tempo, – disse o homem quando desligou o telefone – pode trazer.

Basílio sentiu o gosto amargo do pano enfiado na boca, tentou retirá‑lo, mas suas mãos estavam atadas por cordas. Uma venda cobria e apertava seus olhos para que não enxergasse. Tateou o banco traseiro do carro, procurando por algo afiado. Duas mãos fortes e grandes iça‑ram‑no para fora do carro e o jogaram na calçada. O ar gélido da noite açoitou‑lhe os braços, pernas e barriga sem vestes. Sentia‑se tapado por poucas peças de roupas. Agoniado, fora arrastado alguns metros até que o soltaram e cortaram as amarras das mãos. Removeu imediatamente a venda. Estava em um beco escuro recheado de grandes sacolas de lixo. Teve a impressão de ver dois pares de pés cinzentos por baixo das latas laranja de lixo. Na entrada do beco, três homens de preto, dos quais dois estavam com máscaras, discutiam algo em outra língua que magicamen‑te Basílio era capaz de compreender.

– Tenho que buscar minha sobrinha naquele show com o cantor americano que vai ter hoje... Não podemos demorar muito. Mataremos e deixaremos o corpo aí mesmo – disse o mascarado da esquerda.

– Podemos nos divertir um pouco, não acha? – comentou o mas‑carado da direita.

– Não! – O único sem máscara tinha cabelos pretos, olhos casta‑nhos claros puxados e nariz fino. Báz jamais vira um nariz tão perfeito quanto aquele. “Que idiota! Como posso pensar em nariz numa hora como essa? Quem eram aqueles homens? Como vim parar aqui?” – O chefe disse para deixar aí, já que falta pouco para a família Wakanagi terminar...

Basílio gelou da cabeça aos pés.O telefone celular tocou e o sem máscara atendeu, murmurou

algumas coisas e desligou. – Temos que ir.– Foi divertido enquanto durou. – O mascarado da direita aproxi‑

mou‑se de Basílio e agarrou‑o pelos cabelos, que eram mais compridos

Page 245: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 245 ×

do que o comum. – Me solta!As mãos frágeis de Basílio não foram suficientes para afastá‑lo en‑

quanto este lhe lambia a bochecha. Atordoado e fraco, fora deitado de bruços. Um pé pousou sobre suas costas e segurou‑o como um animal, apertando‑o contra o piso frio. O cano gelado do silenciador tocou‑lhe a nuca. Seria sua impressão ou estava no corpo de uma mulher? Báz vi‑sualizou um cartaz preso no beco, estava escrito em japonês. A imagem de um homem ocidental cantando trazia a data em inglês: 14 de Março.

– Sayonara – disse ironicamente o sequestrador sem máscara, apertando o gatilho.

Oliver segurava Basílio pelos braços quando ele acordou de supe‑tão e desferiu‑lhe uma cabeçada no queixo.

– Meu queixo! – gemeu Oliver, esfregando a região atingida. – O que há de errado com você, cara?

As cobertas atiradas para o lado, o travesseiro perto da porta e as vestes empapadas de suor fizeram‑no perceber que tivera apenas um pesadelo.

– Você estava berrando fazia dois minutos seguidos! Sorte nossa que ninguém veio ver – retrucou. – Então, não vai me dizer o porquê do escândalo?

– Eu tive um sonho louco, besteira... – despindo a blusa empapa‑da, Basílio respirou fundo. Traços musculosos escondiam‑se por trás de vários cortes.

– Besteira? – indignou‑se o cavaleiro. Apanhou a mochila decidi‑do a não ficar mais na pensão. – Nós não sonhamos, temos previsões. A última vez que sonhei foi quando o vi na estrada com Baroon. Con‑te‑me! Deve ser a pista sobre o paradeiro do novo cavaleiro.

Basílio relatou o sonho a Oliver. – Japonês? – perguntou Oliver pasmo. – Tem certeza que o cartaz

e os caras eram do Japão? Poderia ser da China, Coréia!– Sim, eram do Japão. Certamente era lá. “Sayonara” é uma pala‑

vra japonesa. – Não pode ser de algum bairro daqui? – considerou Oliver. Via‑

jar para o Japão era uma ideia quase obscena para os seus costumes. – Não, não era. Se o que diz a respeito das previsões está certo,

nosso cavaleiro é uma mulher de uma família chamada Wakanagi que vai morrer dia 14 de Março.

– Japão – repetiu Oliver, atirando o casaco que usava para Basílio. – Anda, temos que ir atrás do anel.

Page 246: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 246 ×

Horácio, aborrecido, abriu a porta do quarto para os dois cavalei‑ros. Já era madrugada.

– O padre não voltou ainda, precisamos de alguém que nos expli‑que onde encontramos a gangue – pediu Oliver.

– Você só pode estar brincando! – o ruivo forçou uma risada. – Não podem ir lá!

– Dane‑se. Não temos medo de nada, que dirá de uma ganguezi‑nha imbecil.

– Acalme‑se, amigo.Após o pedido de Oliver, o cavaleiro abaixou o tom. Estava se

exaltando muito, por isso falou mais baixo:– Não importa quem são, Horácio. Agora nos diga! Apesar de alfinetado, Horácio explicou exatamente onde ficava o

esconderijo deles. – Vai ser difícil, esqueçam o que perderam. A vida é mais valiosa.– Nós estamos no time dos que zelam a vida alheia, não a nossa.

Eles têm algo que nos pertence e queremos de volta, daremos um jei‑to. – Oliver suspirou, meneando negativamente. – Não precisamos nos esconder na pele de miseráveis para fugir das obrigações.

– Então tomem isso – João, que dividia o quarto com o vampiro, estendeu dois rifles que estavam escondidos atrás do armário. – Pode‑riam me explicar por que cavaleiros como vocês se preocupam tanto conosco?

– Não estamos preocupados com vocês, – Basílio apanhou a arma e verificou a munição. Recebeu um cartucho de balas e guardou‑o no bolso – mas com o tipo de comportamento que estão criando.

– Diga ao padre que tivemos de ir embora, agradeça‑lhe por nós. – Oliver apreciou a arma. – Então, até mais.

– Idiotice... – balbuciou Horácio. – Não é idiotice lutar pelos ideais, – corrigiu Basílio já de costas –

eles também têm algo que pertence a vocês. Os desabrigados se entreolharam. Oliver foi o primeiro a descer a rua. Escondeu o rifle nas costas,

no cós da calça. – Cara, lutar sem o Badeck me dá medo – admitiu Oliver. – Para você, que já fez coisas parecidas antes, é fácil. Seremos ca‑

pazes de detê‑los? – Nós vamos ser capazes – ponderou Oliver, pondo as mãos nos

bolsos. – Desconheço o medo, ele não faz mais sentido em nossa exis‑tência. Cavaleiros não sentem raiva, felicidade, ódio ou o que quer que seja. Somos como robôs.

– Eu sinto medo. – O máximo que pode acontecer é morrermos. Se isso acontecer

lute para salvar seu Mantra e fuja – gargalhou Oliver nervosamente.

Page 247: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 247 ×

– Eu vivi quarenta anos sem saber da existência de todo esse mun‑do – refletiu Báz. – Em cinco dias, minha vida perdeu o sentido e ga‑nhou outro rumo. Eu nunca tive alma, pode acreditar?

Houve uma curta pausa.– Para alguém que era um aspirante a advogado pé de chinelo,

você evoluiu muito. – Quem lhe disse isso? – Oliver sentiu‑se insultado. – Badeck me contou muitas coisas a seu respeito, principalmente

do passado. Algumas foram ruins, mas a maioria boa. Ele tem fé em você, Oliver. Acredita que poderá concluir a missão... Se o que ele me contou for verdade, então você tem bom caráter.

Oliver agradeceu por ser noite quando corou. – Não precisa ficar assim – rindo, Basílio deu tapinhas nas costas

do novo amigo. – Fique quieto.

– Horácio disse que eram, no máximo, vinte integrantes – anali‑sou Oliver debruçado no parapeito do prédio abandonado. De lá via‑se perfeitamente as quinze motos na garagem aberta da mansão. O sol dava sinais de que nasceria no horizonte. – Cinco devem ser vampiros, os outros são humanos.

Basílio guardou a lanterna de Coveiro. – Não daremos o luxo de sermos notados. Oliver apontou para a grande garagem fechada.– O carro deve estar lá e o anel também. Se nos concentrarmos

apenas em pegar o anel ficará moleza. Se tivéssemos Badeck aqui...– Mas não temos! A única coisa perigosa que eu vi além dos cava‑

leiros do Chamado foi aquele lobisomem Wan... E, droga, aquela coisa é feia demais e forte também. – Basílio, que demonstrava nervosismo, pôs a mochila nas costas e deixou o cartucho do rifle à disposição. – Tem muito barraco por aqui. Podemos entrar por lá.

Do lado oposto à garagem um amontoado de árvores interligava uma casa mal construída ao muro.

– De lá iremos até a garagem, entramos, pegamos o anel e iremos embora. Eles nem vão notar.

– Capaz! – irônico como sempre, Oliver rumou para a saída do prédio. – Se acontecer algo comigo, fuja. Vai ser melhor que você con‑tinue no corpo do que eu. Eu e você mudando de corpo a cada semana não vai dar certo.

– E deixar você lá? – Basílio seguiu‑o. – Vai ser um prazer.Alfinetado, Oliver deixou o rifle à mão.

Page 248: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 248 ×

– Entendeu?– Perfeitamente – Basílio não dera confiança suficiente a Oliver. Ambos tinham o conhecimento de que a tarefa não era fácil. Dis‑

cretamente eles saíram do estacionamento de dois andares e tomaram a rua. A mansão da tal gangue era o lugar mais rico da cidade, tinha muros altos, uma casa de dois pisos e uma garagem. Oliver foi à frente, saltou a mureta da casa vizinha, abaixou‑se e esgueirou‑se por trás de árvores baixas. Basílio vinha logo atrás atento a qualquer movimento. “É só um anel”, pensou ele, “Não, não é. É uma porcaria de anel dado por um ve‑lho.” A mansão e a casa do vizinho contrastavam nitidamente, a última era de tijolo a vista, mal pintada e repleta de objetos espalhados pelo chão. Oliver passou o rifle à mão do companheiro e escalou a árvore demoradamente, escorregando nos sulcos frescos. Apoiou‑se no galho mais alto com os pés e recolheu as armas para que Basílio pudesse subir.

– Cuidado, a árvore está escorregadia. Já em cima da árvore, Oliver analisou a casa de perto. A mansão era de dois pisos e cheia de janelas, atrás dela havia

um pomar e na lateral a garagem. Luzes e vozes provinham das janelas frontais.

– Acho que estão na sala – deduziu Oliver, saltando para o pátio. Basílio jogou‑lhe as armas e saltou. A noite demonstrava‑se mais escura e perigosa do que nunca.– Sinto o cheiro deles – relatou Báz ofegante. – O vento está a

nosso favor... Eles só notarão nossa presença se fizermos barulho. Basílio liderou o curso. Secava o suor da testa frequentemente.

Pisou em uma bola de borracha, causando um mínimo ruído. Ergueu o olhar, contemplando os três dobermanns repousando mais à frente.

– Ô‑ôu.Um deles acordou, chamando a atenção dos outros dois que se

postaram a rosnar enfurecidos. – Saiam daqui – bufou Oliver irritado, encarando os cães. Colocando os rabos entre as pernas, eles obedeceram e fugiram.

Báz por pouco esquecera que jamais fora humano. Oliver forçou a porta da garagem. Uma pequena luz presa porcamente na parede iluminava os quatro carros novos.

– Está ali – antecipou‑se Basílio, correndo até o seu carro, o se‑gundo veículo estacionado.

Tateou o chão escuro em busca do precioso item. Vasculhou abai‑xo dos bancos e tapetes, encontrou‑o perto dos pedais.

– Achei – murmurou Basílio, ouvindo um barulho oco. Oliver desmaiava ao seu lado. Atrás de si uma sombra pegou‑o

desprevenido com um golpe na nuca. Quando acordou, Oliver resmun‑gava palavrões pela dor na cabeça. Estava amarrado, assim como Basílio. O quarto fechado tinha um armário e uma cama.

Page 249: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 249 ×

– Fomos pegos?O silêncio de Basílio concordava. Por uma brecha, um feixe de luz

solar mostrava o olho roxo do parceiro. – O que houve? – preocupou‑se Oliver, tentando liberar‑se.– Finja‑se de desmaiado e não tire os olhos da porta, haja o que

houver fique quieto.– O que...?Basílio inflou os pulmões e gritou alto. Imediatamente a porta se

abriu, e dois brutamontes vestidos de couro preto entraram. – Você de novo? – xingou o loiro e desferiu uma tapa forte na cara

de Basílio. – Cala a boca!– Não o mate, o chefe quer vê‑lo antes – alertou o outro. – Vamos

terminar de buscar os caixotes e voltaremos para pegá‑lo. Basílio olhava constantemente para os pés por mais que a surra

doesse. Quando os dois se retiraram, ele cuspiu um pouco de sangue, cutucando o dente com a língua.

– Mais um pouco e eu perdia um dente.– Você está louco? – questionou Oliver insatisfeito. – Qual o mo‑

tivo disso?– Você olhou a porta? – interpôs Báz, sacudindo‑se freneticamen‑

te entre as cordas ao vê‑lo concordar. – Descreva‑me. – Vi um corredor e um pedaço de uma escada, por quê? – pergun‑

tou Oliver, confuso. – Estamos no sótão – Basílio gesticulou o telhado com o formato

de uma pirâmide chata. – Eu não desmaiei com a pancada, só fiquei ton‑to e machuquei o olho na porta. Então me fingi de desmaiado... Acre‑dito que eles estejam no primeiro andar; vi uma mesa de sinuca e uma televisão ligada. No segundo andar havia portas fechadas, lá devem ficar os quartos.

Oliver ruminou as informações. Como pudera ter desmaiado tão facilmente? Sentiu‑se envergonhado.

– Acho que ainda está aqui.– O que está aí? – Oliver continuava tentando desamarrar‑se. – Nossa salvação. Basílio conseguiu achar a brecha nas cordas das pernas para retirar

o sapato direito com o outro pé. Virou‑o para baixo e ergueu‑o habili‑dosamente, sacudindo‑o. A pequena lâmina tiniu no chão.

– Me empurre – pediu Basílio.Oliver assim o fez e Basílio caiu de costas sobre a lâmina, apa‑

nhou‑a e cortou as cortas da mão. Repetiu o movimento nos pés. – Você é uma caixa de surpresas – sorriu Oliver ao ser liberado. – Eles estão por toda a parte. Não vai dar para sair daqui sem ser

notado. Então usaremos o plano mais louco... Voltaremos para a gara‑gem, pegaremos o carro e sairemos pela frente. – Basílio virou para a

Page 250: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 250 ×

porta. – Eles estão armados. E nós também – O cavaleiro retirou duas armas presas nas coxas. – Ariane me deu e guardei‑as no forro da mo‑chila, assim ninguém iria notar. Achei que seriam úteis caso acontecesse algo conosco.

– Essa gangue é idiota demais ou muito esperta. – Espantado, Oliver recolheu uma delas. – Eles deveriam ter percebido que você es‑tava armado. Eu vi quando você não os encarou... Foi boa ideia. Eles só

saberão que somos cavaleiros olhando diretamente em nossos olhos. Por isso não nos temem, nos idealizam como humanos.

– Bem, – Báz guardou a lâmina no sapato e recolocou‑o – aposto que, se tivéssemos planejado, não daria certo. Eles estão brincando co‑nosco, devem nos achar dois ladrõezinhos meia‑boca.

Oliver abriu uma fresta na porta. – Aqui está vazio. – Eu vi dois deles conversando sobre a chegada de um carrega‑

mento bombástico de drogas. Eles devem estar ocupados com isso – contou Báz. Ressaltou terem tirado a sorte grande. – Então só há um problema.

– Sabia que faltava algo. Onde está o anel? – Oliver bufou de raiva.– Está com eles ainda. – Não me diga!Basílio abriu a porta. – Decida: o anel ou sua vida? Haviam enfrentado toscamente um grupo desenvolvido de inimi‑

gos vampiros. Báz olhou o corredor, depois, as escadas. Desceram do sótão, empunhando as armas até chegarem ao segundo andar.

– Não tem ninguém – disse Oliver diante do corredor vazio.Vozes baixas vieram da janela no final do corredor. Cerca de doze

homens transportavam caixas do caminhão azul para a garagem. Dois outros, carregando rifles, faziam a ronda de segurança, e um ainda per‑manecia de pé, coordenando as tarefas. Basílio se lembrou da lanterna.

– Eles não estão apenas com o anel... – informou apalpando o bolso traseiro. – Estão com todos os pertences!

Oliver engoliu a seco. – Eu não falei para deixar a mochila na árvore?– Eu sei – defendeu‑se Báz e afastou‑se da janela.– Mas achei que

seria melhor tê‑la conosco!Eles desceram mais um lance até o primeiro andar. Uma sala am‑

pla, com uma televisão enorme, móveis de luxo e uma mesa de sinuca.– Eu acho que...– Cale a boca! – exclamou Basílio quando outros dois excêntricos

homens entraram na sala, discutindo sobre futebol. – A mochila! – disse Oliver, apontando à frente.A mochila, aparentemente ainda cheia, estava atirada sobre uma

Page 251: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 251 ×

das poltronas marrons; os dois arruaceiros sentaram ao lado dela, discu‑tindo uma partida de truco passada.

– Droga, – Oliver encostou‑se na parede do corredor – não vai dar para pegar sem fazer estardalhaço. Não temos um silenciador!

– São humanos? – Acho que sim. Não vejo nada demais neles... Nem uma presença

ameaçadora, mas posso estar errado. – Então temos uma chance. – Basílio foi rapidamente até o quarto

de onde trouxe, pé ante pé, um lençol.– Não precisa dizer mais nada. Certificando‑se de que não havia mais ninguém na casa além dos

dois suspeitos, Basílio desceu as escadas acompanhado de Oliver. A co‑zinha, de frente para a sala, estava com a porta aberta. Qualquer aproxi‑mação seria notada.

– O que tu achas que o chefe fará com aqueles otários? – pergun‑tou o magrelo de traços indianos.

– Aposto dez pratas como vai comer os corações deles – riu o outro, mais forte e baixo. Ele apanhou a mochila, abriu e mostrou os utensílios dentro. – São pessoas loucas que não têm o que fazer! Vieram urinar no lugar errado.

– Devem ter vindo daquela igreja idiota cheia de infelizes. Basílio acenou furtivamente. O sofá ficava ao lado da escada e não tinha como serem vistos. – Tem uma carteira aqui. – O índio abriu. – Basílio. Que nome

bizarro. O lençol voou no ar cobrindo os dois capangas que se sacudiram

para se liberarem. Oliver juntou uma estatueta de cavalo, feita de pedra, e enterrou‑a na cabeça do mais baixo. Basílio fora mais audacioso dando socos sucessivos e poderosos no outro até desmaiá‑lo. Era vingança pela surra que havia levado. Juntaram as coisas espalhadas pelo sofá, e Báz conferiu os pertences.

– Ainda falta o anel! – aborreceu‑se ele enquanto chutava um dos desfalecidos. – Onde estará?

– E agora, do seu plano suicida de fuga, o que nos falta fazer? – Me ajude a carregá‑los para cima – pediu Oliver. Rapidamente os dois carregaram os corpos para o sótão. Retira‑

ram suas roupas e os amarraram com as cordas. Fecharam as janelas para escurecer o quarto de vez. Sem hesitar, os dois cavaleiros colocaram as vestes de couro dos arruaceiros na tentativa de se camuflar.

– Assim será mais difícil de nos reconhecer, – idealizou Oliver – pelo menos é o que esperamos!

– Eduardo! – a voz grave ecoou lá de baixo. – Daniel!– São os desmaiados – deduziu Oliver. – Temos que despistar ou

nosso plano vai para o saco.

Page 252: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 252 ×

– Estamos aqui! – Basílio abafou a voz. – Os ladrões resolveram continuar gritando e aplicamos um corretivo.

A porta se abriu, os cavaleiros ficaram de costas e abaixados sobre os corpos amarrados. Dessa forma não seriam identificados.

– Já vamos descer – murmurou Oliver, rouco.– Não se esqueçam de pôr o outro junto. – O homem parado na

porta estava tão chapado que falava enrolado e não percebia nenhuma diferença nos amigos.

– Que outro? – Oliver suspirou aliviado.– Aquele idiota, esqueceu? Ele tá preso no banheiro. Junte com

esses aí que o chefe logo tá aí para acertar contas. E, Daniel, vem logo que a droga é boa!

Oliver forçou uma risada, acenando com a mão, ele riu de volta e foi embora.

– Preciso admitir que a sorte talvez esteja do nosso lado!– De quem ele estava falando? – Basílio colocou um par de óculos

escuros encontrado. – Deve haver outro prisioneiro aqui...Oliver também colocou óculos escuros. No andar de baixo, havia

seis portas no mesmo corredor. Basílio abriu uma a uma até chegar à última. Um ruído estranho foi ouvido quando chegou perto da porta.

– É aqui – informou Báz.O cavaleiro espantou‑se com a cena ao abrirem a porta: Padre

Tom estava amarrado na pia, suas vestes estavam um pouco sujas de sangue e o olho bem inchado. Ele, sem os reconhecer, debateu‑se na presença deles.

– Padre Tom! Tudo bem... – Basílio retirou os óculos. – Somos nós, Basílio e Oliver!

Tom aquietou‑se enquanto Oliver retirava a mordaça de sua boca. – Como veio parar aqui?– Eles assassinaram dois desabrigados meus e deixaram os corpos

junto ao lixo da igreja, vim tirar satisfação – ofegou ele. – Por que estão vestidos assim? Não me digam que são...

– Não – Oliver liberava‑o das amarras. – Na tentativa de recupe‑rar o carro, entramos aqui e eles nos pegaram. Conseguimos nos soltar. Eles ainda não sabem. Iríamos fugir até descobrir que você estava aqui.

– Entendo... Ainda bem que chegaram, foram a ajuda de Deus. – Calma. Não vamos cantar vitória antes do tempo – Basílio cui‑

dava o corredor. – Façam silêncio. Aproveitaremos para descer agora. Liderando a caminhada, Báz guiou‑os até a cozinha. A tensão

pairava no ambiente. Conseguiriam eles sair com vida? Oliver padecia com a calça apertada que usava. Todos os homens concentravam‑se no descarregamento das drogas perto da garagem. Se fossem cautelosos o suficiente, chegariam à outra extremidade do pátio e fugiriam...

Page 253: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 253 ×

– Aí estão vocês! – Um mulato alto e forte bloqueou a saída deles. Oliver piou nas costas de Tom ao jogá‑lo no chão. – São os novatos? Que bom que chegaram, já estava na hora. Trouxeram as armas novas?

Basílio concordou. Reconhecia o cheiro impregnado que vinha do homem: ele era um vampiro.

– O que vocês estão fazendo com o padre?– Bem... – Oliver riu nervosamente. – Íamos dar uma lição nele...

Já que ele estava... Falando besteiras. Ben, o vampiro, sorriu satisfeito. – Terminem aí, o chefe está chamando vocês para fazer o ritual

de entrada. Vocês irão matar os ladrões que apanhamos de madrugada... Não se esqueçam de trazer o armamento.

– Mataremos com o maior prazer. – Basílio ajustou os óculos es‑curos com o indicador.

Ben voltou para a garagem às gargalhadas. – Fugiremos agora...– Não – interceptou Oliver, mudando de ideia. – Não sairemos

daqui sem o anel. Fuja e traga ajuda, Tom. Estamos entregando nossas vidas em suas mãos.

– E vocês? – preocupou‑se o padre, limpando uma gota de sangue que escorria do nariz.

– Daremos um jeito, portanto não demore – disse Basílio venci‑do. – Tem certeza de que quer fazer isso, Oliver?

– Certamente, Báz! – o cavaleiro apontou para o pomar. – Viemos por lá, é só escalar e saltar.

Tom observou‑os demoradamente. Basílio começava a ficar des‑gostoso com seu novo apelido.

– É a nossa chance de pegar o que procuramos, Tom. O padre deslizou as mãos pelos ferimentos e correu para o pomar.

“Eu os ajudarei, Senhor, pois graças a eles e à Sua vontade, estou salvo”, pensou o padre agradecido.

Page 254: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 254 ×

Capitulo 21Contra‑Ataque

As portas da garagem estavam abertas. Homens, que entravam e saíam, empilhavam caixas de papelão ao lado dos carros roubados. O sol quente da manhã anunciava um belo dia de verão, se não fossem as nuvens grossas e negras de chuva que devoravam o céu azul com sua aproximação. Um grupo de cinco conversava na entrada da garagem, três usavam terno, os outros dois, roupas de couro preto. Ben pôs a mão no ombro dos supostos iniciantes.

– Prontos para conhecer o chefe?– Nunca estivemos mais prontos do que hoje – comentou Basílio,

coçando a barba por fazer. – Ótimo – satisfeito, Ben guiou‑os até o quinteto. – A minha pri‑

meira vez foi facinho, tive que matar uma família. Ah, os gritos que eles davam... Vocês tinham que ouvir! E eu só pensava em continuar.

Oliver conteve a raiva diante das palavras do vampiro. – Por que será que os ladrõezinhos se aventuraram aqui? – o vam‑

piro continuava tagarelando. – Mal espero para cair de dentes e bocas neles. Faz tempo que não bebo sangue de gente... Quando foi a última vez? Ah, ontem de tarde.

Ansioso, Ben pigarreou. – Chefe. Vakovny era o vampiro líder. Tinha dois metros de altura, braços

fortes, cabelos louros desbotados, com aspecto de sujo, lisos e longos, sua expressão carrancuda não deixava a desejar quanto à sua reputação. Ele usava o mesmo casaco de couro preto com desenhos estranhos na altura dos ombros. Tinha covas marcantes nas bochechas.

– São os novatos? – Sua voz de trovão tinha um sotaque russo. – Chegaram na hora certa. Queria provar para nossos clientes o quão bons nós somos.

– Vakovny, – o chefe, de terno e mais velho, também riu – estamos ocupados agora. Adoraríamos assistir à iniciação, mas não será possível. Aguardaremos o seu pagamento até semana que vem.

Vakovny estendeu a mão para selar o negócio. Oliver deslizou

Page 255: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 255 ×

o olhar pelos dedos grossos do líder e para sua surpresa, o anel estava lá, no dedo indicador. Transmitiu para Basílio a mensagem através de gestos faciais.

– Uma pena que não possam ficar – trocaram aperto de mãos. – Até o próximo negócio.

Aguardaram até que o trio comerciante fosse embora.– Onde estão as armas? – perguntou Vakovny indo para o garajão. – Armas? – gaguejou Oliver. – Estão lá no carro, claro. Preferi dar

uma amostra antes de apresentar o produto.– Somos profissionais – riu Basílio secamente. – Entendo. – Vakovny sentou no capô de um carro importado

vermelho. – Quais são seus nomes?– Oliver e Basílio – respondeu Ben, dando tapinhas leves neles. – Traga os dois ladrõezinhos, Ben. – Pediu o vampiro russo, gesti‑

culando com a mão. – Até onde vocês dois estão dispostos a ir por nos‑sa organização? Quantas armas pretendem nos oferecer quando forem aceitos?

– Até onde nos mandarem ir – disse Báz, fitando o anel. – Quanto às armas, posso dizer que conseguiremos a quantidade que você pedir.

Os outros membros da organização formavam um círculo ao re‑dor, aguardando ansiosos o tal teste de aprovação. Eram cinco vampiros no total, contando Vakovny; os outros eram apenas humanos chulos. Os traços rudes do rosto de Vakovny combinavam com a aparência ferina; aquele certamente era um vampiro forte, apesar de ser conhecido como um traficante pequeno. Além do anel do Mundo Suspenso, o vampiro tinha outras joias caras nos dedos; uma pulseira artesanal vermelha e amarela estava no pulso de todos os membros. Oliver lembrou‑se dos artefatos ditos por Coveiro que permitiam a transformação das criaturas das gerações Passadas durante o dia. Aquela pulseira deveria significar algo parecido, pois era uma coisa em comum entre os membros, além dos casacos. Nervoso, Oliver imaginava até quando o plano duraria.

– As vendas serão suficientes – balbuciou Basílio na tentativa de acalmá‑lo. – Não demonstre tanto medo assim, eles vão desconfiar.

Ben entrava na garagem carregando dois corpos semi‑conscientes vendados, que se moviam involuntariamente ao serem postos de joelhos diante Vakovny.

– Vocês já sabem o que fazer. Você primeiro... Basílio sacou a arma. “Não posso fazer isso de novo...” pensou.– Essa arma faz parte do carregamento? – perguntou Ben.– Sim, faz – respondeu Oliver, retirou outra arma da cintura e

mostrou‑a de longe para o vampiro. – Qual é o seu problema? Mate‑o! – rugiu Vakovny, batendo o

punho no capô do carro. – Se quiserem entrar para a nossa organização terão de fazer isso.

Page 256: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 256 ×

Os observadores gritavam ouriçados. Oliver lançou um olhar de “vamos, faça logo!”, como se fosse fácil... Matar criaturas era fácil, mas humanos, nem tanto.

– Vakovny! – exclamou um dos vigias dos portões. – Os aspiran‑tes chegaram.

– Aspirantes? Mas eles estão aqui! – bufou Vakovny interrompi‑do de sua diversão.

Os cavaleiros gelaram. Tinham que agir rápido ou morreriam ali. – Negativo. Os carregamentos de arma estão com eles lá na entra‑

da – afirmou o vigia. – Daniel apresentou‑os a mim na semana passada, são eles mesmos.

– Impossível... Onde está Daniel? Que tipo de pegadinha é essa? – indagou o líder alvoroçado.

Um dos amordaçados grunhiu. Ben viu que até os pulsos os su‑postos ladrões no chão usavam as pulseiras do grupo.

– Eles são...Oliver atirou inesperadamente no peito do vampiro negro, em‑

bora mirasse em sua cabeça. Apesar da saliência do tiro nas vestes e na carne do peito, não houve nenhum derramamento de sangue.

– São eles! – urrou Ben. – Os ladrões!Basílio demorou a agir, mas quando o fez, atirou no abdômen de

Vakovny. A bala sequer entrou mais do que dois centímetros no ini‑migo. O vampiro riu e fez força até que a bala fosse “cuspida” por sua barriga.

– É muita ousadia tentar me enganar. – Ele fechou os punhos. – Afastem‑se ou matamos eles! – ameaçou Basílio, mirando em

Daniel e seu amigo. – Acha que isso irá salvar suas vidas? “Eu só quero o anel”, pensou o cavaleiro. A ameaça de Oliver fez todos os membros da gangue rirem.– Vocês são o quê? Justiceiros?Oliver pisou num crucifixo prateado no chão. Juntou‑o e o re‑

conheceu como o pingente de Tom. Isso só podia significar uma coisa.– Não chegamos nem perto disso. Se soubesse o que somos não

pensaria duas vezes antes de fugir! – desafiou Oliver. Vakovny enfrentou o “ladrão”. Basílio apontou a arma novamente

para ele, mas Oliver impediu‑o. Suas cabeças não chegavam perto do ombro do grandalhão. Oliver retirou os óculos, mas ao invés de en‑cará‑lo, abaixou‑se. Um tiro alto ecoou na garagem e atirou Vakovny contra o armário atrás do carro. Um forasteiro de casaco escuro, e de cabelos ruivos, parava abaixo do portão da garagem.

– Bingo! – exclamou o atirador baixando a arma.– Horácio – disse Basílio, aliviado. João e Pablo atiravam os corpos desmaiados dos vigias na grama,

Page 257: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 257 ×

junto com os dois supostos novos iniciantes. – Tom nos disse que vocês o salvaram, então viemos retribuir a

ajuda! – João piscou nitidamente nervoso. – Alguém atirou o crucifixo nos meus pés... Era de Tom – expli‑

cou Oliver antes de Basílio perguntar. – Logo soube que eram eles.As armas foram engatilhadas simultaneamente, visando os três

novos arruaceiros que se esquivaram, protegendo‑se da saraiva de tiros. – Abaixem‑se! – exclamou Horácio do lado de fora.Oliver agarrou o ombro de Basílio a fim de carregá‑lo junto para

o chão. As dezenas de tiros ecoaram secamente dentro da garagem, acertaram os humanos e vampiros da gangue. Um carro irrompia do portão, carregando quatro atiradores. As balas cravejavam o inimigo. Oliver sentiu uma bala passar zunindo no seu ouvido.

– Os deitados no chão, não! – gritava Pablo.Na freada repentina, os pneus do carro marcaram a grama.– Tá tudo bem aí? – perguntou João, conferindo o interior da

garagem com cautela.– Sim, eu acho. – Oliver arfou. Ao seu redor, todos os corpos

estavam abatidos.Basílio murmurou palavrões, enquanto se levantava pesadamente.– Tem algo errado aqui.– Eles estão mortos, não tem nada de errado – retrucou Oliver,

retirando a jaqueta. Algumas risadas deixaram Oliver pasmo. – É isso? – perguntou Vakovny, retirando os pedaços de madeira

sob o casaco. Pôs‑se de pé, sem nenhum ferimento no peito. Um grande rasgo nas costas do casaco confirmava o tiro certeiro, mas inútil. Uma das capacidades dos vampiros era a cicatrização e regeneração O armá‑rio atrás de si estava completamente destruído.

Outros quatro corpos desmaiados se moveram. João ordenou, entre palavrões, que atirassem mais. A noite pareceu ter vindo mais cedo quando as nuvens fecharam‑se por todo o céu.

– Acabaram‑se as balas. Nosso estoque não era muito vasto! – ex‑plicou um atirador ao engatar a ré com o carro para debandar.

– Acham que podem entrar na minha casa, matar meus homens e saírem impunes? – o vampiro transpirava raiva pelos seus músculos enrijecidos. – Impossível!

– Fujam! – gritou Oliver. – Fugir? – questionou Basílio. – Agora é tarde demais para isso!

Vamos ficar e lutar!– Preciso que fique vivo! – indignou‑se o cavaleiro. – Se você

morrer...– Não vai acontecer nada. – Báz deixou claro que não ia continuar

discutindo. – Pensei a respeito das várias coisas que aconteceram comi‑

Page 258: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 258 ×

go nos últimos dias. Não vou mais fugir ou temer o que quer que seja. Estamos aqui para lutar, não estamos? Então lutaremos.

– Fugir? Quem entra aqui jamais sai – sentenciou o russo, avan‑çando contra Basílio.

Pablo jogou‑se na frente para impedir o soco violento em Basílio.– O que está fazendo? – surpreendeu‑se Báz, recuando. – Essa briga é nossa – respondeu Pablo com um toque dolorido

na voz. Nitidamente irritado, Vakovny atirou Pablo contra a parede. Os

quatro vampiros restantes estavam recompostos e prontos para lutar. O corpo do vampiro líder duplicara de tamanho para, no mínimo,

dois metros e meio de altura, e envergadura. Nasciam‑lhe chifres e, na pele, escamas laranjas. No segundo seguinte, o vampiro russo causava arrependimento nos cavaleiros. Suas vestes negras rasgadas mistura‑ram‑se aos destroços do armário.

– Ele não deveria ter se transformado! – preocupou‑se Horácio. – É dia ainda! Como é possível? Não deveríamos ter vindo para cá!

Os quatro vampiros livraram‑se dos ferimentos à bala quando adquiriram a forma vampírica. Seus caninos longos e monstruosos cla‑mavam por sangue inimigo. Todos eram muito semelhantes e variavam apenas em tamanho e cor.

– Peguem isso! – Oliver atirou três pulseiras para o alto, retiradas dos homens caídos no chão. João apanhou‑as e pôs uma, entregando as outras duas para Horácio. – Resolverá seu problema.

Pablo contorceu‑se quando Horácio pôs a pulseira em seu pulso, e voltou a desmaiar.

– Parece que somos apenas nós dois – riu João nervosamente. Vakovny sorriu maliciosamente.– Ataquem! Ataquem para matar – mandou o líder.João correu para fora perseguido por dois vampiros grandalhões,

sendo Ben um deles. Parou no meio do pátio e encarou‑os. Encurvou‑se quando a dor da transformação afetou‑o. Após alguns segundos esca‑mas azuis revestiram seu corpo, brilharam à luz do raio que cruzava o céu nublado, espalhando‑se por toda a envergadura das asas enormes. As patas grandes, grossas e musculosas amassaram o solo. O dragão tinha sete metros de altura. Os chifres iam do focinho até a ponta da cauda longa. O pescoço comprido carregava a cabeça larga com uma bocarra. Os dentes encurvavam‑se para fora uniformemente na falta de lábios. O focinho fino, levemente curvo na ponta, terminava em duas narinas pequenas. Por fim, seus olhos avermelhados intimidavam os vampiros. As pessoas que moravam perto teriam ouvido a briga se não fossem os trovões da tempestade. Gotas pesadas irromperam das nu‑vens carregadas de chuva.

Hipnotizado pela cena do dragão, Báz esquecera‑se de que estava

Page 259: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 259 ×

à mercê do perigo. – Anda, cara! – chamava Oliver. – Acorda! Oliver juntou um rifle, mas este estava descarregado. – Merda!Antes que um vampiro desferisse um soco no cavaleiro imóvel,

Oliver aproveitou para pegar o inimigo desprevenido. Agarrou a arma pela ponta, usando‑a como bastão, e desferiu um fortíssimo golpe em seu pescoço. Horácio era um tanto diferente dos outros vampiros, ti‑nha a cor marrom‑avermelhada e era mais baixo, porém musculoso. Ele prendeu o vampiro recém golpeado e arrancou seu par de asas com um único puxão. Vakovny surgiu à frente de Basílio.

– O que faz de vocês tão especiais a ponto de serem protegidos por esses idiotas? – O vampiro russo içou‑o pela blusa, encarando‑o profundamente.

– Me solta! – rugiu Basílio sacudindo‑se.– Cavaleiros, – Vakovny largou‑o como se tivesse nojo – vocês

são cavaleiros...Basílio caíra sentado. – Cavaleiros da Terra‑Inversa!Não houve resposta. Vakovny teve a ideia que Oliver temia. – O Mantra... Se eu pegar seus Mantras de Luz terei a força que

tanto almejo. – Somos cavaleiros! Superiores a você... Jamais colocará suas

mãos sujas em nossos Mantras! – sentenciou Oliver, largando o rifle e fechando os punhos.

– Em corpos humanos vocês não são tão fortes!“Ele é esperto”, refletiu Oliver. O vulto negro e peludo empurrou Vakovny contra a parede. Sisu‑

do, o lobisomem era um pouco menor que o russo. Seu corpo era mo‑dificado para ficar tanto de pé como de quatro. O peitoral largo arfava pela respiração apressada. A região do pescoço tinha mais pelos do que o comum, lembrando uma juba esfarrapada e escura. O russo afastou a bocarra de Pablo com um soco. Horácio livrou‑se de um vampiro cra‑vando uma estaca de vidro em seu peito, que estava presa à janela do carro, e foi defender seu irmão lupino.

– Pablo, não lute! Você lembra o que aconteceu da última vez!– Cale a boca – retrucou Pablo num rugido. Vakovny fora mais rápido do que olhos comuns poderiam acom‑

panhar. Agarrou Horácio pelo pescoço e o atirou de cabeça contra um armário. Ouviu‑se um “clack” de suas costelas partindo quando as por‑tas vergaram contra o corpo dele. O líder atirou Horácio imóvel no chão, junto com as outras pilhas de corpos humanos feridos.

– Horácio! – exclamou Pablo ouriçado. Basílio correu até o corpo caído. Horácio voltava à forma huma‑

Page 260: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 260 ×

na, imóvel. – Ele vai morrer! – riu Vakovny. – Isso servirá para que não duvi‑

dem de meu poder. O urro ferino do lupus ardeu em seus ouvidos sensíveis, e seus

olhos opacos tornaram‑se rubros como sangue. Pablo atirou‑se sobre Vakovny e o imobilizou com uma mordida no ombro. Estraçalhou‑lhe a omoplata de tal forma que não poderia ser reparada nem que este qui‑sesse. O cheiro inconfundível de morte tomou o lugar, atiçando ainda mais o lobisomem descontrolado, que abocanhava qualquer coisa que havia na frente. A ideia de Horácio estar desfalecido obscurecia a cons‑ciência de Pablo, que transformou dois vampiros em cinzas, com uma mordida em cada um. Oliver abaixou‑se perto de um dos carros.

– Ele está louco... – balbuciou trêmulo. João estava tendo dificuldade em lutar, pois o gramado escorrega‑

dio fazia com que suas patas não se fixassem no barro. Já estava com as duas asas feridas, quando transformou um dos inimigos em cinzas, en‑quanto Ben ainda digladiava‑se agilmente. Um jato ácido lançado pelo dragão banhou a parede da garagem e degradou‑a lentamente.

Inutilmente, Vakovny tentava defender‑se das abocanhadas monstruosa do lupus. As garras que retalhavam seu couro, repetidas ve‑zes, impediam a cicatrização rápida. Como o sangue não vertia na veia dos vampiros, não haviam marcas no chão e nem nas paredes. Basílio tremia quando Oliver pensou em correr, mas sabia que não podia deixar o companheiro ali.

– Levanta!Basílio não respondeu, olhando fixamente para Horácio.– Por que ele não está se mexendo?Oliver estava mais preocupado com o lupus enlouquecido do que

com uma criatura desfalecida.– Não há tempo para isso! Ele deve estar morrendo, mas a culpa

não é nossa! Deixe‑o aí. Se ele for forte vai sobreviver!– Eu disse para olhá‑lo! – repreendeu Basílio, que passava a mão

na cabeça do garoto. Relutante, Oliver obedeceu.– Ele era apenas uma criança mesmo que não humana. Eu já vi

muitas pessoas morrerem... Não suporto ver uma vida perdida, princi‑palmente quando tem muito para viver e conhecer. E se fosse meu filho no lugar de Horácio? Um dia Alan irá morrer, mas não quero que seja assim! Horácio tinha sonhos, Oliver. O que importa ser cavaleiro se não posso ajudar? Eu tenho a oportunidade agora, mas não posso... Que tipo de ajuda tenho a oferecer?

– Talvez ser um cavaleiro signifique ajudar muitas criaturas de uma vez, e não apenas, criaturas separadamente... – respondeu Oliver.

Basílio suspirou. Ambos poderiam ver que o peito de Horácio

Page 261: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 261 ×

baixava e subia lentamente e cada vez mais devagar. Seu corpo interna‑mente brigava para viver, mas havia algo que o impedia de se reconsti‑tuir por conta própria. Os dois cavaleiros sabiam que Horácio morreria aquela noite e não havia nada que pudessem fazer.

– Não quero ser a criatura mais forte do universo se não consigo usar meu poder. Eu poderia ter impedido, de alguma forma.

– Eu já pensei nisso, Báz... – Oliver agachou‑se ao lado do parcei‑ro. Os gritos aflitos de Vakovny não surtiam efeito neles. – Entendo o que sente e não é fácil lidar com a perda e nem com a sensação de não poder fazer nada.

– Então por que...– Não fiz algo? Eu faço, nós sempre fazemos. Nosso dever é

manter o controle...– E se o controle não for suficiente? – Então dependerá da raça humana. – Me ajude a levá‑lo daqui, por favor. – Basílio acomodou o corpo

de Horácio no ombro. – Não importa, apenas faça. Oliver pegou‑o do outro lado e percebeu que pequenas cinzas

começavam a desprender‑se de sua pele. Instantaneamente os gritos de Vakovny cessaram e Pablo urrou vitorioso ao destroncar o pescoço ini‑migo e torná‑lo cinzas. Aquele era o tipo de criatura que não mais pisa‑ria os pés na cidade. Os pesadelos proporcionados pelo vampiro , enfim, haviam terminado, porém as cicatrizes insistiam em ficar.

Pablo ameaçou os cavaleiros visualmente.– Não corra, – pediu Basílio – fique onde está. – Ele vai nos estraçalhar! – Faça o que eu digo. O lobisomem prensou Basílio no piso com um salto. Oliver pre‑

cisou usar de toda a força para não deixar o corpo de Horácio cair. Imo‑bilizado, Basílio nada fez além de encará‑lo. Pablo rugiu furioso e fez menção de mordê‑lo. Ambos trocaram olhares por um tempo que pare‑ceu gigantesco. Basílio entendia perfeitamente a dor e a ira que devorava Pablo: os dois não poderiam fazer nada para ajudar um companheiro importante. Basílio já perdera Maria, e Pablo perdia seu irmão. Vagaro‑samente a criatura recuou, encolhendo‑se no canto da garagem.

– O que... O que você fez? – gaguejou Oliver horrorizado. Basílio levantou‑se cambaleante. – Nada. Ele só viu em mim o que sentia: raiva, dor, frustração...

O sentimento terrível de perda. – A massa escura no canto da garagem reduzia de tamanho. – Isso deve ter feito recobrar a consciência.

João, usando apenas calças, adentrou a garagem já na forma hu‑mana. Atrás de si as cinzas de Ben misturavam‑se ao barro. A chuva resumia‑se a um chuviscar moderado.

– Pablo? – João notou o “irmão” nu encostado na parede. – O que

Page 262: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 262 ×

aconteceu aqui? Por que ele não está se regenerando?João engoliu a seco, era possível que seu irmão de pacto estivesse

morto? O cavaleiro cobriu Horácio com um casaco longo e, com a aju‑da de Oliver, carregou‑o para fora. Uma trilha de cinzas ficava por onde passavam. O silêncio mortal sentenciava aos olhares aflitos a verdade.

– Ele deveria ter feito a cicatrização! Ele não ia perder sem antes lutar bravamente... – alterou‑se João. – Não entendo o que há de errado. O que podemos fazer para ajudá‑lo?

Do lado de fora dois carros negros estacionavam na entrada. – Eles não acabam nunca? – indagou Oliver preocupado, pois

dessa vez não tinham como vencer.Seis humanos armados deixaram os carros, haviam saído para apa‑

nhar mais bebida e, ao voltar, encontravam os portões escancarados, pedaços da casa incinerados (já que João queimara boa parte da moradia ao lutar contra os vampiros) e restos de cinzas por toda a parte. Os ini‑migos eram os únicos sobreviventes do ataque.

– Eles acabaram com a mansão? – supôs um, arregalando os olhos. – Vakovny está morto!

Basílio seguia com Oliver, diferente de João e Pablo que se deti‑veram com a aproximação dos inimigos.

– Pare! – ordenou um temeroso. Se eles haviam matado Vakovny, certamente os matariam também. – Eu mandei parar!

– Faça‑me parar – desafiou Basílio, acomodando Horácio sobre o ombro direito, ele era baixo e não muito pesado. O pescoço estava cuidadosamente posicionado, apenas virado estranhamente para o lado.

Oliver fechou a cara e permaneceu em silêncio, sentia o corpo febril de Horácio quase queimar sua pele.

– Eles vão... Se matar? – indagou João sem entender.– Deixe‑os, – Pablo interrompeu João – eles sabem o que fazem. – Atirem! – disse o homem e empunhou a arma. Na fração de tempo de as armas serem sacadas e os gatilhos, to‑

cados, a outra saraiva de tiros foi mais rápida. Oliver agradeceu a Deus quando viu o grande grupo de desabrigados de Tom aproximando‑se. Uma fileira de artilharia vinha à frente, empunhando armas. Os homens da gangue, mais rápidos, entraram no carro e partiram, deixando os fe‑ridos para trás. Báz depositou Horácio no chão e ficou de pé. Oliver cruzou os braços, pensativo.

– Não era para ser assim... – entristecia‑se João. – Éramos irmãos de pacto... Prometemos jamais sermos derrotados. Viemos aqui para fa‑zer justiça a Padre Tom! Horácio não queria vir porque sabia que pode‑ríamos morrer...

– Mas queríamos ver Vakovny pagar pelo que fez, então viemos acreditando em nossa força – murmurou Pablo ajoelhando‑se ao lado do irmão desfalecido. – Mas estávamos errados, não podemos impedir

Page 263: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 263 ×

ninguém! Fugimos a vida inteira, por que teríamos direito de vencer justo agora? Acorde, Horácio!

As criaturas passavam pelo portão e formavam um cerco silencio‑samente ao redor do corpo. Pablo sacudiu o irmão e depois olhou para as próprias mãos: estavam cobertas de cinzas. Ele estava morrendo... E logo não passaria de um bocado de cinzas no gramado, como os inimi‑gos. Por isso Basílio se entorpecia, pois sabia que embora o rapaz fosse arrogante, não merecia estar morrendo. Todos estavam lá com exceção do padre. Cinco dos atiradores da artilharia depositaram as armas no chão e fizeram sinal da cruz.

– Fomos idiotas... Deveríamos ter feito algo. – Lágrimas rolavam pela face do jovem de cabelos azuis. – Horácio...

– Culpar‑se agora não irá adiantar de nada. – A voz grossa foi reconhecida primeiramente por Oliver.

O cão negro, que abria caminho entre as pessoas, estava acompa‑nhado de um corvo.

– Badeck! – exaltou‑se Oliver.– Ele está morrendo! – gritou Pablo quando seu irmão lentamente

começou a se dissipar em cinzas. – Basílio, alinhe o corpo dele, rápido! Não temos mais do que

alguns segundos – ordenou o guia. Basílio obedeceu, perturbado com as cinzas que ficavam presas

em suas vestes. Horácio estava sumindo muito rápido. O corvo negro alçou voo de seu dorso e rodeou o círculo de pessoas para, em seguida, pousar sobre o peito nu de Horácio. A presença da ave aconchegava Basílio internamente da mesma forma que Baroon na estrada, como se o animal o tivesse acompanhado a vida inteira.

– Baroon – autorizou Badeck. Baroon, na forma de corvo, abriu o bico. Dele, cuspiu uma mi‑

núscula esfera roxa que pairou no ar. As criaturas curiosas, ao redor, sentiram um único puxão. Seus corpos tomaram uma cor arroxeada lu‑minescente que se propagava da pele e flutuava até a esfera. A luz ficava mais intensa ao unir‑se com a esfera, até tornar‑se um ponto branco, cegante. Baroon coletou, cautelosamente, a esfera cintilante com o bico e levou‑a até a boca semiaberta de Horácio. Depositou‑a no interior e se afastou, tudo em questão de poucos segundos. Instantaneamente o corpo de Horácio foi envolto pelo mesmo brilho. A maior parte de Horácio, que já era cinzas, esvoaçou no ar e reintegrou‑se novamente ao seu corpo.

– O que está acontecendo? – perguntou João, esfregando o peito dolorido após o puxão.

Ninguém respondeu. Um trovão cruzou o céu e forçou a chuva a cair forte mais uma vez.

– Abra os olhos, – ordenou Badeck – é hora de acordar para a vida.

Page 264: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 264 ×

Magicamente Horácio abriu os olhos para o céu escuro. Uma salva de exclamações o confundiu. A luz roxa que rondava seu corpo apagou‑se imediatamente.

– Levante! – A mesma voz que o acordara deu‑lhe coragem o su‑ficiente para sentar‑se no gramado úmido. Lembrava‑se apenas de estar num lugar escuro e ouvir vozes ao seu redor... Ouviu João e Pablo, mas não pôde responder‑lhes.

– O que está acontecendo? – perguntou o vampiro ao afastar al‑guns flocos de cinzas depositados em seu peito.

– Droga, Oliver. – Badeck caminhou até Oliver. – Eu fico um tempo fora e já acontece um desastre?

– Ossos do ofício – ironizou Oliver, recebendo o guia com um afago em sua cabeça.

Basílio estendeu o anel sujo de fuligem para Oliver. – Não falta mais nada – concluiu Basílio com a mão estendida

para que o corvo pousasse. – Você pode me explicar o que aconteceu? – O vampiro foi golpeado num dos Pontos de Imersão. – A voz

feminina e pacífica de Baroon era gratificante ao explicar. – Todas as criaturas não humanas possuem um órgão a mais chamado Bifurcação, responsável pelas transformações rápidas e pelos poderes. São estrutu‑ras de “nervos” elásticos que concentram pontos fracos chamados Pon‑tos de Imersão que, quando golpeados, perdem a função. No caso, ele foi golpeado na cicatrização avançada.

– Baroon apenas colheu um pouco da energia presente na Bifur‑cação de todos os outros para consertar o ponto ferido. – Badeck termi‑nou a explicação. – Isso foi possível porque ele estava desfalecido, e não completamente morto, ainda havia um restante de vida em seu corpo.

– Um pouco de vida? As outras criaturas morreram imediatamen‑te quando golpeadas!

– Existem Pontos de Imersão Essenciais e Pontos de Imersão Secundários. A cicatrização é um ponto secundário. Se uma criatura é golpeada em um ponto secundário, ela apenas perde as funções ligadas a ele. Já quando ela é golpeada em um ponto essencial, ela morre. Horá‑cio foi ferido, mas em um ponto secundário. Ele teria saído ileso se não tivesse sido ferido internamente. Quando o desfalecimento não decorre de um ferimento no ponto essencial, a criatura demora mais tempo para morrer. Embora criaturas de gerações passadas sejam muito difíceis de matar de modo convencional, eles também possuem suas fraquezas.

– Entendo... – Oliver terminou de ouvir a explicação de Badeck e guardou o anel no bolso. – Nosso trabalho aqui acabou.

– Ainda não – avaliou Basílio. – Eu estive pensando um pouco nesses últimos minutos e tive uma ideia proveitosa.

Ele andou até o grupo de desabrigados que festejava e muxoxou. João e Pablo explodiam de alegria.

Page 265: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 265 ×

– Nós... Nós não temos palavras para agradecer! – exclamou João e abraçou Horácio.

– Tenho algo melhor do que palavras para oferecer – disse Basílio. – Nós lhe devemos muito – disse Pablo exaltado. – Chegamos finalmente aonde eu quero. Eu tenho uma proposta

para vocês... Não só para os três, mas para todos que estão aqui.

Page 266: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 266 ×

Capitulo 22BlackSpoud

– Então qual é a sua proposta? – perguntou Horácio. – Bem... – Basílio pensou. – Depende de como vocês levarão suas

vidas. Irão continuar sob a proteção de Tom?– Nós decidimos que não queremos mais isso. – Pablo mostra‑

va‑se sincero na decisão. – Nenhum de nós. Passamos anos com medo de Vakovny e dos humanos, tínhamos vergonha do que nós éramos e por isso nos prendemos a “algemas” psicológicas que não nos permi‑tiam defender nossos ideais. Vakovny já poderia estar longe dessa cida‑de há muito tempo se tivéssemos a coragem necessária para enfrentar nossos medos.

– Ótimo! – o cavaleiro sorriu. – A minha proposta está em requi‑sitá‑los para uma missão. Vocês são fortes não apenas física, mas tam‑bém mentalmente, porém ainda têm muito o que aprender. O que vi hoje foi o suficiente para acreditar que, embora temerosos, vocês têm muito potencial.

O trio estava curioso. – Estamos passando por uma situação mais do que importante.

Não é apenas a raça humana que está prestes a ser extinta, mas todos os seres que andam e pensam sobre a terra. Isso envolve suas espécies também... Eu não sei que tipos de desafios virão a seguir, só entendo que precisaremos ter o máximo possível de ajuda. Quero que vocês se espalhem pelo mundo e se juntem. Procurem criaturas dispostas a ar‑riscar a vida, não somente pela raça humana, mas pela sobrevivência e pelos próprios sonhos. Afinal, se não existirem almas vivas, como po‑derão sonhar? – Ele pausou pensativo. – Um dia nos reencontraremos novamente e talvez eu possa ou não precisar de sua ajuda. E quando isso acontecer quero ver o quão fortes e unidos estarão.

Oliver ouvia atentamente; “Basílio teve uma boa ideia” pensou. – Estão dispostos a aceitar a proposta?Eles entreolharam‑se. – Há um tempo teríamos dito que não – desabafou João.– Mas acho que isso mudou – acrescentou Pablo. – Já não é neces‑

Page 267: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 267 ×

sário ponderar mais a respeito disso. – Aceitaremos sua proposta – decretou o vampiro com a mão no

peito. – Andaremos pelo mundo atrás de criaturas dispostas a lutar. Oliver abriu o sorriso e acrescentou em seguida:– Pedirei que sejam discretos. Seres como Vakovny existem por

toda a parte e não são só vampiros... Não sei que tipos de criaturas vi‑vem por aí, mas vale a pena arriscar.

– Tenho algo que irá ajudar. – Basílio acabara de voltar de dentro da casa, onde pegara a mochila. Retirou um pingente de prata de um dos bolsos. Era uma estrela de nove cravado no centro de um olho. – Essa será nossa marca... Quando eu era menor, ganhei isto de meu avô. En‑volve a história de...

– Os contos de Blackspoud! – completou o vampiro, apanhando o símbolo. – Eu conheço as histórias. Têm um significado e tanto...

– Que tipo de significado...? – Oliver arqueou a sobrancelha, em dúvida. Nunca tinha ouvido falar sobre tais contos.

– O olho têm muitos significados, mas nos contos de Blackspoud possui um bem simples – explicou Horácio. – O olho é a chave da solu‑ção, ele mostra direção a ser seguida enquanto desejamos algo, mas não se sabe muito a respeito disso... A mais complexa das imagens é a estrela de nove pontas.

– Existem duas explicações diferentes para a estrela, entretanto só lembro de uma delas. – Basílio tomou a explicação. – Meu avô dizia que cada ponta significa uma façanha de nossa vida: nascer, crescer, apren‑der, evoluir, errar, perdoar, amar, ensinar e morrer. Um dos contos fala que todos nós somos filhos das estrelas e, quando morremos, nos tor‑namos uma, cujo brilho resume nossa vida. Quanto mais forte é o bri‑lho, mais pontas ela tem. Quanto mais fraca, menos visível ela fica. Esse conto foi criado para inspirar as crianças, para que, quando olhassem para o céu, lembrassem de quanto devem se esforçar para serem boas. Talvez isso seja verdade... Se olhar o céu agora, existem muitas estrelas, porém poucas são visíveis. A outra explicação eu não lembro.

– Faz sentido – concordou o cavaleiro. – Fiquem com o pingente, não vou precisar dele – disse Basílio.– Iremos fazer um pingente de Blackspoud para cada integrante

– considerou Horácio ao guardar o objeto. – Quando alguém usar o pingente saberemos que é amigo.

– Devemos ir agora – Badeck terminara de verificar possíveis ini‑migos, no perímetro.

– Quando nos encontraremos de novo? – indagou João, sorrindo.– Isso só o tempo irá dizer – completou Basílio, afastando‑se com

Badeck e Baroon.– Ele está certo – Oliver estendeu a mão. – Diga para Tom que

tivemos uma emergência. Ele deve estar preocupado...

Page 268: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 268 ×

– Desacordamos ele... – Horácio apertou a mão do cavaleiro. – Quando voltarmos, teremos uma conversa com ele e, lentamente, nos dispersaremos por aí. Não queremos chocá‑lo e nem passar por ingra‑tos. Foi um prazer conhecê‑los...

– Digo o mesmo. Oliver distanciou‑se rumo à garagem onde Basílio o aguardava. – O que houve?– Duas noticias: o meu carro continua aqui, e a outra é que ele

está praticamente... – Basílio procurou palavras. – Feio!O veículo cinza estava com o capô amassado e a vidraça esquerda

do passageiro partida. Basílio entrou no carro e começou a tirar os cacos de vidro.

Oliver olhou para um veículo preto novo estacionado no fundo da garagem. Se sua memória não se enganava era um dos carros mais cotados do ano passado. Um sorriso brotou em seu rosto quando abriu a porta e encontrou a chave na ignição.

– Não vamos precisar dessa sua lata velha – o cavaleiro sentiu o cheiro de couro novo dos bancos.

– O quê!? – indagou Basílio ofendido. – Eu escolhi esse carro com muito amor e carinho!

Oliver apontou para o carro ao seu lado e o cavaleiro mudou de ideia imediatamente.

– Você pretende roubar?– Vamos dizer que estamos acertando contas, apenas – riu Oliver,

esfregando as mãos. – Deve ser roubado! Podemos ser descobertos! – empertigou‑se

Basílio tentado a não se apegar ao carro novo.– Está novo demais para ser roubado. Vakovny tinha dinheiro o

suficiente para comprar o que quisesse! Ah, qual é, eles roubaram o seu carro e você não vai pegar o gasto de volta?

Basílio franziu a testa. E Oliver vasculhou o carro atrás dos do‑cumentos.

– Está aqui e em nome de Vakovny! A polícia deve estar a cami‑nho, então, entra logo! – alertou Oliver, conferindo os documentos.

Badeck aconchegou‑se no banco de trás ao lado de Baroon, que volta e meia crocitava.

Tempos depois, o carro de Vakovny já rodava em direção à cidade. Oliver não respondeu a mais nenhum chamado depois de dormir feito uma pedra. Basílio suspirou, solitário. A ave negra farfalhou as asas e pousou sobre o seu banco.

– Ah, é você – assustou‑se ele. – Desculpe – respondeu Baroon, pressionando o couro com as

garras. – Eu gostaria de me desculpar por não conseguir defendê‑lo dos Cavaleiros do Chamado a tempo de salvar sua mulher. Também não fui

Page 269: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 269 ×

capaz de salvá‑lo do perigo na instalação Carvaris. Se Oliver não o acu‑disse você estaria morto agora.

– Não foi culpa sua – disse com um aperto forte no peito. Havia perdido a mulher para sempre e provavelmente também não veria o fi‑lho tão cedo.

E a culpa era de quem? Nenhum dos dois conhecia o inimigo. Baroon, já sobre o ombro de Báz, tocou o bico gelado na bochecha do cavaleiro.

– Me envergonhei tanto que fugi ao invés de continuar ao seu lado. Se Badeck não tivesse me procurado eu não estaria aqui, por acre‑ditar que era incapaz de proteger você.

– Já falei que a culpa não foi sua! A decisão de agir foi minha, logo devo pagar por minhas escolhas – retrucou ele. Apertou o volante fir‑memente e mudou de assunto. – Por que na estrada você aparecia como urso e agora, como ave?

– Nós, como guias, não podemos ocupar corpos humanos, então nos restam apenas os animais. Temos a capacidade de ocupar até três corpos de uma única vez. Nosso poder permite isso, apesar de custar muito de nossa energia em Terra. Eu ocupo dois corpos como pode ver... O de um urso e o de um corvo. Caso um dos corpos morra eu terei o outro à disposição.

Houve uma pausa reflexiva.– Por que sinto que já a conheço? – Porque acompanho você desde sempre. Nunca pude me revelar

a você porque Kale usou um feitiço para apagar minha memória e me permitir lembrar apenas de minha função. Quando Badeck veio falar comigo o encanto estava quase quebrado e não foi preciso muito mais esforços para me livrar dele. Agora já me lembro de tudo... Posso inte‑ragir com você falando. – Ela tinha um tom suave e pacífico. – Eu cuido de você desde criança, Basílio. Você é uma pessoa incrível.

Basílio calou‑se subitamente. – Eu conheço todo o seu passado e posso dizer, com todas as

palavras, que me sinto honrada em acompanhá‑lo. – Acho que não deveria dizer isso...– O seu comportamento hoje foi merecedor de todo o reconheci‑

mento. – Baroon corrigiu‑o pela autocomiseração. – Você já não é mais aquele homem do passado. Deve entender que você evoluiu e não deve deprimir‑se pelos acontecimentos. Você é uma nova pessoa desde que ganhou um filho. Quantos pais tiveram esse comportamento?

Silencioso, ele forjava uma expressão dura em seu rosto. – Eu sou uma guia e irei levá‑lo aonde quiser ir, mas terá de me

prometer que sempre confiará em mim, não importa o que aconteça. E, o mais importante, terá de aprender a confiar mais em si mesmo.

– Você sabe de tudo o que penso... – balbuciou Báz.

Page 270: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 270 ×

– E você sabe tudo o que penso também, bastando desejar. Somos um só, não vivi sua vida, mas o acompanhei. Você é forte, inteligente e faz o possível por quem ama. Cavaleiros devem ser indiferentes ou neutros com relação a muitos assuntos, mas eu digo para que você seja o contrário. Evolua, e adapte‑se ao que você é agora. – Baroon abriu e fechou as asas, aquietando‑se. – Já estamos chegando, tente relaxar.

O cavaleiro não respondeu, remexendo‑se no banco. Aquele dia trazia‑lhe muitas lembranças...

Flashback III – 28 de Março de 1995 Quinze anos atrás, Basílio precisava de mais dois anos para comple‑

tar a faculdade de engenharia. Estava contente por chegar tão perto de algo que o faria feliz: a confirmação da melhoria de vida. Fora expulso de casa quando tinha dezoito anos porque seus pais haviam desistido de cuidá‑lo devido a seus surtos de loucura. O trabalho que fazia não era suficiente para pagar a mensalidade da faculdade e era obrigado a buscar dinheiro em outros lugares. Tinha muitas habilidades e uma delas era o boxe. Trei‑nava boxe pelo menos duas vezes por semana em uma academia pobre da região. Também trabalhava para Nestor, o chefe dos traficantes do bairro. O negócio era pequeno, mas almejado pelos outros traficantes. Nestor era o único que entendia seus problemas e aceitava‑o assim como era, alguém que via a normalidade nele ao invés de rotulá‑lo como um monstro psi‑cótico porque via coisas sobrenaturais. Certo dia recebeu uma ligação de Nestor e foi até seu apartamento no centro de Curitiba.

– Basílio! – cumprimentou‑o Nestor. Ele era um homem de aparentes cinquenta anos, altivo, de expres‑

sões amigáveis e bem conservadas. Até que, para um traficante de médio escalão, ele era bem simples.

– Chefe, chamou‑me para algo? – assentiu Báz. Aos vinte e cinco anos era forte, carrancudo, não bonito, mas charmoso. Muitas mulheres cairiam na sua lábia se ele as quisesse.

– Acompanhe‑me.Ambos atravessaram a sala bem arrumada, chegaram ao quarto de

casal espaçoso e aconchegante. Uma mulher dormia na cama. – Ei! – Ao ser chamada, ela acordou e enrolou‑se no lençol. – Dei‑

xe‑nos a sós. Assim que ela se retirou, Nestor apanhou alguns papéis na escrivani‑

nha de carvalho e entregou para ele.– Basílio, creio que não há alguém que conheça você melhor do que

eu, há?Ele negou.– Sei de tudo o que passou. Da falta de aceitação dos seus pais, a falta

de amor que teve. Da discriminação por ouvir vozes e do fato de o rotula‑rem como louco. – O homem pausou e fitou a janela entreaberta. Era uma

Page 271: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 271 ×

noite pouco estrelada. – Eu o aceitei e acreditei em você. – Aonde quer chegar? Nestor riu levemente.– Além de ser bom em exercer engenharia, tem talento em outras coi‑

sas também. Suas habilidades como meu capataz são incontestáveis. Sem seu trabalho eu não teria chegado tão longe. Porém eu sempre lhe pedi pequenas coisas... Assuste aquele cara, dê um aviso para o outro... Agora eu quero que faça algo mais além.

Basílio apanhou e folheou os papéis entregues pelo chefe.– Existe uma pessoa que está impedindo o andamento dos meus ne‑

gócios. Aí estão às informações das quais precisará. Dessa vez não é para assustar. Acha que dará cabo do trabalho?

O cavaleiro refletiu um pouco e respondeu secamente.– Farei o possível. – Ótimo, – o sorriso de Nestor alastrou‑se – você é um bom homem.– Bons homens não fazem essas coisas – contestou Basílio. – Isso não tem nada a ver com o que eu disse, Basílio. A sociedade

confunde bons homens com homens de boa fé. Um bom homem escolhe um objetivo e cumpre, não importa o que seja. Você prometeu a mim que seria leal e me ajudaria e, agora, está cumprindo.

Obrigado a aceitar o “elogio”, o cavaleiro se retirou da sala. – Eu nunca fui tão a fundo nisso. Matar alguém... – Basílio encarou

o próprio reflexo no espelho do elevador enquanto descia. – Não importa. “Em toda a minha vida só servi para incomodar pessoas. Finalmen‑

te encontrei alguém que me entende. Não é o melhor dos homens, mas é um bom homem para mim”, refletia, “Não gosto de ser mal visto na rua e rotulado de insano por médicos. Eu não sou louco... Não sou louco! Isso apenas acontece! Talvez algum dia tenha explicação para isso”.

Baroon pousou sobre um poste, cuidando o homem lá embaixo. Corvejou baixinho em consentimento. Se era isso que ele queria, ela esta‑ria sempre ao seu lado.

Fim do Flashback III.

– Eu podia não ter feito. – Resmungou Basílio comprimindo‑se no banco do carro.

As lembranças feriam‑no. O corvo piou baixinho na tentativa de acalmá‑lo, mas já tinha ido fundo demais.

Flashback IV – 2 de Abril de 1995Basílio acabara de fazer desmaiar o último parceiro do seu alvo. Ti‑

nha lido a respeito dele, era um traficante de vinte anos que queria subir na vida e estava sendo um estorvo para os negócios de Nestor. Abordou‑o na saída da academia e foi atacado pelos seus três companheiros; nocauteou todos até que restasse, de pé, apenas quem ele buscava. A saída dos fundos

Page 272: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 272 ×

da academia dava num beco escuro e mal cheiroso. – Por favor, cara! – Marcos, o traficantezinho, ajoelhou‑se. – Não

me mate.– Não tenho nada contra você – murmurou Basílio. – Mas meu

chefe tem. Se é tão esperto para entrar em um ramo como esse, por que não saiu? Eu gostaria de não ter que fazer isso, mas devo. Eu prometi que faria!

O cavaleiro empunhou a arma que carregava.– Era a única coisa que eu podia fazer! – suplicava ele. – Eu não

conseguia emprego, minha vida é difícil! Eu tenho família... Não me mate!“Eu prometi que iria cumprir,” discutia Basílio mentalmente, “em‑

bora matar não seja o mesmo que bater.”– Deveria ter pensado melhor nisso antes. O corvo no alto do prédio soltou vários gritos e alçou voo. – Essa é a vida que escolhi – disse e deu as costas. “Ele era apenas um jovem, tinha muito para viver. Outra pessoa

poderia ter interrompido sua vida, mas fui eu.” – Droga – balbuciou, tomando a rua.“Justo eu que poderia entendê‑los melhor do que qualquer outro.” Após telefonar para Nestor e avisar do trabalho feito, a última frase

de seu chefe ao telefone foi inesquecível.– “Não é fácil matar, Basílio, mas alguém precisa morrer para que

outras vivam... Ele teve a chance de escolher e pagou caro por isso. Preferiu o caminho mais curto e fácil.”

Fim do Flashback IV.

Basílio freou o veículo bruscamente em frente ao hotel em que ficariam aquela noite.

– Dirija com calma – resmungou Oliver ao acordar subitamente.– É o sono – desculpou‑se o cavaleiro ao desligar o veículo.O silêncio do quarto fazia‑o sentir‑se mais só. Oliver dormia um

sono tranquilo. Badeck e Baroon permaneciam dormindo próximos às entradas. “Por que eu não consigo dormir? Sinto sono... Mas não fe‑cho meus olhos”, pensava, revirando‑se nos lençóis. “Que tipo de sen‑timento é esse? Essas lembranças do passado estão me machucando. Algo despertou isso em mim.” As luzes dos postes da avenida entravam sorrateiras pela janela aberta, o ar noturno trazia odores os quais jamais sentira ou pensara em sentir. Levantou‑se da cama e debruçou‑se no peitoril da janela. A cidade de Curitiba estava tão bela quanto de dia, mergulhada no brilho das estrelas. “Quem, realmente, sou eu?” A per‑gunta repetia‑se incessantemente.

Flashback V – 7 de Junho de 1996– Ela é tão incrível, mas... – o capataz suspirou sonoramente – não

é para mim.

Page 273: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 273 ×

Atentos, os olhos dele fitaram a mulher atravessar a rua. Era baixa,vultosa. Tinha cabelos castanhos ondulados e um andar cativante. Maria era seu nome... Trabalhava como professora em uma escola primária perto da academia onde lutava boxe. Sempre a via passar por aquela rua nas quartas e quintas‑feiras, dias em que ela cuidava de outra creche local. Basílio jogou o copo de café vazio no lixo, pôs as mãos nos bolsos e se‑guiu andando. Uma mulher como aquela jamais olharia para um assassino como ele... Havia matado outras pessoas depois do traficantezinho. Coisas pequenas, gente de que ninguém sentiria falta. Não fazia porque queria, mas porque seu chefe mandava fazer. Devia a ele e sempre faria o possível para satisfazê‑lo. “Gente como eu não merece uma vida normal. Não faz mais diferença tê‑la ou não.”

Dois dias depois, na mesma rua, um garotinho loiro agarrou sua calça e sorriu. Foi o momento mais embaraçoso da vida de Basílio que se abaixou e passou a mão nos cabelos dele. Estava olhando Maria levar as crianças até a praça no final da rua e perdera‑se em pensamentos. Ela tinha um jeito tão sutil, diferente de todas as mulheres que já possuíra.

– Qual é o seu nome? – Miguel – respondeu o garotinho timidamente. – Esse é um nome de anjo – comentou, e sorriu sem jeito. – O que

faz aqui? Não deveria estar com sua professora? Ela foi para a pracinha!– Eu perdi minha bola. Basílio levou o garoto até uma loja próxima e comprou‑lhe outra

bola. Ao voltar, deparou‑se com uma Maria preocupada e irritada.– Miguel! Onde estava?– Eu perdi a minha bola, e o moço me levou para comprar outra. –

Miguel mostrou a bola nova e correu para a sala de aula. Basílio encarou‑a meio timidamente. – Desculpe‑me pelo incômodo, mas achei que ele ficaria mais feliz

com uma bola nova.– Desculpe‑me eu... Descuidei‑me deles por um momento e já saem

aprontando! Bem, obrigada pela bola nova e... – Saia para jantar comigo. – As palavras de Basílio soaram como um

choque até para ele. Maria arqueou as sobrancelhas. “O que eu fiz? Deveria ter ficado

na minha”, pensou Basílio, baixando o olhar constrangido. “Um assassino corando? Isso é humilhante.”

– Com uma condição – ela ergueu o dedo indicador. – Nada de cama no primeiro encontro.

Basílio ficou estático. – Me pegue às oito horas da noite de amanhã. – A professora rabiscou

algo num papel e entregou a ele. Em seguida, deu‑lhe as costas e foi embora. Como ela mesma dissera, não aconteceu nada no primeiro encontro.

Basílio não sabia conversar sobre coisas do dia‑a‑dia, divertindo Maria

Page 274: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 274 ×

com sua timidez. – Nunca vi alguém como você – comentou ela sorridente. – O que

você faz da vida?– Eu estou me formando em engenharia. – Baixou o olhar para não

encará‑la. – E trabalho no escritório de um homem chamado Nestor.Nos encontros seguintes, a conversa já fluía melhor. Apenas no quin‑

to encontro, por vontade dela, houve o primeiro relacionamento amoroso. Basílio guardou‑o para si como o seu primeiro ato de “fazer amor” ver‑dadeiramente. Maria era sutil e surpreendente, de forma que o envolvia cada vez mais. Passaram meses encontrando‑se duas vezes por semana no mínimo. Certa vez após “fazer amor”, ambos relaxados, ela deitou sobre o peitoral dele.

– Terei de fazer uma viagem para a Inglaterra – informou hesitante. – Volto em um mês, irei fazer uma visita para minha avó. Ela está doente e preciso cuidar dela por um tempo.

– Um mês? – hesitou o cavaleiro. – É muito tempo!– É preciso – insistiu ela, mordiscando o lábio.– Se isso é tão necessário assim, então está tudo bem. Fim do Flashback V.

A brisa fria carregou as cortinas da janela, obrigando Basílio a voltar para a cama quente. Enrolou‑se nas cobertas, pensativo. As lem‑branças chegavam uma após outra.

Flashback VI – 10 de dezembro de 1996.Um mês sem vê‑la foi o suficiente para quase enlouquecê‑lo. Quan‑

do a viu entrando pela porta abraçou‑a como se fosse uma joia preciosa. – Pensei que não fosse mais voltar.– Não faria isso, – havia um tom hesitante na voz dela – mas eu

trouxe alguém comigo.– Al‑alguém? – gaguejou ele surpreso. “Alguém? Quem pode ser?” Num segundo, milhares de pensamentos

bombearam sua mente. “Seria um amante? Não faz nem cinco meses que estamos nos relacionando e ela já me trai?”.

– Sim, espero que não se importe. Aconteceu um pouco cedo, mais cedo do que eu esperava, na realidade. Agora terei de dividir meu amor com outro.

– Outro? – O capataz gelou. – Do que você está falando? “Terei de matar alguém? Jamais aceitarei dividir seu amor com ou‑

tro”, pensou ele quase decidido. Ela agarrou a mão dele e pôs sobre a barriga coberta por suéteres. – Eu estou grávida – disse decididamente. – E é seu. Se ele não tivesse um pouco de orgulho a sustentar teria desmaiado.– Um filho?

Page 275: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 275 ×

– Ele nascerá, – sentenciou ela – querendo você ou não. Basílio pôs os olhos na barriga dela ainda não saliente. Como al‑

guém que vê pessoas em preto‑e‑branco andando pelas ruas seria capaz de criar um filho? E se seu problema fosse genético? De forma alguma per‑mitiria que o acontecido em seu passado se repetisse novamente no futuro. Sorriu apaixonadamente. Naquele momento não havia dúvidas: realmen‑te a amava.

– Mas precisamos deixar algumas coisas claras antes. – Maria afas‑tou‑se dele.

– Que tipo de coisas?– Você vai largar o seu trabalho. – Não posso largar o estágio de engenharia, precisamos do dinheiro!

– desconsiderou Basílio.– Não falo desse – Ela encarou‑o severamente. – Eu sei da sua outra

vida. Eu encontrei uma arma em suas coisas certas vez e o segui. Eu sei que você faz negócios ilegais além do seu estágio.

– Maria! – Ele estava em choque. – Olha, eu...– Não me importa nada do seu passado, não quero saber o que você

fez! A única coisa que importa é que teremos um filho e eu quero estar do seu lado para criá‑lo, mas não posso dividir isso com o seu outro trabalho.

Ela tocou‑lhe a face afetivamente e disse antes de ir embora:– Pense no melhor para nosso filho. Hora mais tarde, Basílio já estava decidido.– Tem certeza de que quer fazer isso? – insistiu o chefe. – Você é meu

melhor homem.– Você disse que me conhecia, então sabe o que é melhor para mim,

Nestor. Você me deu tudo o que eu sempre precisei e eu lhe retribuí sempre. Agora não posso mais arriscar... – Basílio pôs o casaco de couro. – Eu vou ter um filho e não quero que sua vida seja uma repetição da minha.

Nestor franziu a testa, dando uma tragada no cigarro. – Se você acha que é melhor assim, então façamos do seu jeito. Eu sei

que sempre pude confiar em você e jamais iria traí‑lo. – Você vai mesmo me liberar?– Não há porque não deixá‑lo partir. – Nestor ergueu a mão sisuda

e envelhecida. – Você sempre fez tudo o que eu pedi sem questionar, devo retribuir este comportamento. Porém jamais esqueça de mim, eu fui a úni‑ca pessoa que o compreendeu além de Maria. Jamais repita a alguém o que seus pais fizeram com você, ninguém merece sofrer em vão. Todos os que você matou precisaram morrer para que outros evoluíssem. Eles desejaram assim... Mas há quem não mereça o mesmo destino.

– Você é um bom homem – disse Basílio ao apertar a mão de Nestor. Retirando um maço escuro do bolso traseiro da calça, o chefe entre‑

gou‑lhe uma boa quantia de dinheiro.– Isto será para você começar o que planeja.

Page 276: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 276 ×

O cavaleiro agradeceu e saiu. O corvo, na janela, alçou voo. Meses depois, a pequena criança deitada no berço era tão frágil

quando um copo de cristal. Os dois haviam voltado do hospital há três dias e ainda não se acostumara a ouvir os choros do seu bebê à noite. Basílio apoiou‑se cuidadosamente na grade estofada do berço e tocou suavemente na face bebê. Era um menino e seu nome seria Alan. O pai tinha tanto medo de feri‑lo que fazia o possível para não chegar perto dele.

– Será que vou ser um bom pai? – perguntou baixinho. – Não tenho as qualificações necessárias.

– Você tanto tem como as usa – Maria chegava furtivamente por trás envolta no roupão de cetim azul. – Você será um grande pai.

– Como você tem tanta certeza? – Se você não fosse um bom pai, tenho certeza de que não estaria aqui

se esforçando para dar ao seu filho uma vida maravilhosa. – Ela deu‑lhe um beijo na bochecha. – Vá deitar, está tarde e tem faculdade de manhã. É o último semestre, não esqueça.

Basílio não respondeu quando ela saiu do quarto. Estava repleto de inseguranças. Tinha um filho... “É difícil de acreditar!” Acariciou mais uma vez a face do neném quando ele segurou seu dedo. Sua mãozinha era a coisa mais pequena que já vira.

– E se você fosse como aqueles jovens que matei? E se você for como eu e carregar essa maldição de ver coisas desagradáveis? Eu não poderei protegê‑lo a vida inteira.

Basílio relembrava dos rostos dos quais dera cabo. – E se alguém te maltratar? Eu tenho medo, Alan. Jamais deixarei

que você seja como eu ou como eles. Fim do Flashback VI.

Oliver enfiou o garfo no prato de Basílio, roubando um grande pedaço de ovo frito.

– É meu café! – Você está distante ultimamente – comentou o cavaleiro e comeu

o ovo roubado. – O que há de errado? O céu nublado diminuía a claridade. – Eu estou bem! Não invente coisas – Báz cobriu o prato para não

ser mais roubado. – Hoje eu irei comprar as passagens para o Japão – Oliver tomou

o restante do café quente. – Lá investigaremos melhor o seu sonho e procuraremos por pistas consistentes.

– Com que dinheiro? Oliver retirou a carteira do bolso e mostrou o maço de dinheiro. – De onde saiu isso? – surpreendeu‑se Báz.– Horácio me deu em agradecimento quando estávamos partindo

com o carro. Ele disse que tinha mais. Estava guardando para uns ne‑

Page 277: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 277 ×

gócios. Fiz uma pesquisa a respeito do nome Wakanagi da previsão que você falou.

Oliver estendeu uma folha cheia de anotações. – E o que descobriu? – perguntou Basílio surpreso pela agilidade

de Oliver. – Encontrei poucas informações úteis... Os Wakanagi são uma fa‑

mília japonesa. Como você mesmo disse, vivem no Japão. Já temos uma localização para iniciar: Tókio. – Oliver ignorou o olhar admirado de Basílio. – A maioria deles eram médicos importantes que trabalhavam com a medicina que envolvia a fé. Tenho duas notícias, ambas ruins! Qual delas quer ouvir primeiro?

Basílio terminou de comer e depositou o garfo ao lado do prato.Oliver sorriu amarelo.– Os últimos membros da família foram quase todos mortos. En‑

contrei alguns registros em um site de homicídios famosos e aparece a história de um homem chamado Shibato Wakanagi que matou a esposa e dois filhos. Foi considerado louco e, por isso, internado em um ma‑nicômio. O site não apresenta o endereço dele em lugar nenhum. E seu irmão Hamoru Wakanagi está desaparecido e acredita‑se que Shibato tenha‑o matado também.

– E qual é a outra noticia ruim?– Se o cavaleiro for um dos Wakanagi e essas notícias forem verí‑

dicas... Então nosso cavaleiro está morto. Aqui não tem a data da morte deles, mas... – comentou Oliver com pesar. Basílio parecia um pouco distante para perceber a gravidade da situação. – Relevemos essa ideia por enquanto, porque não temos muitas informações. A internet é um meio útil, porém não nos informa o suficiente.

Pôs uma nota de dez reais sobre a mesa e levantou‑se.– Eu deixei um pouco de dinheiro na mochila se você quiser com‑

prar algo. – Aonde você vai? – perguntou Basílio ainda sentado. – Ver umas coisas no centro da cidade e depois tratar das passa‑

gens, lembra? Em que mundo você tá, cara? – Tudo bem, tudo bem. Vou ligar para Alan e ir para o hotel.– Não se esqueça de levar comida para Badeck e Baroon. Acenando, o cavaleiro deixou o lugar. – Estou estudando numa escola muito legal daqui da Espanha –

contou Alan entusiasmado ao telefone. – A avó tá cuidando muito bem de mim. Eu achei que nunca fosse precisar daquelas aulas chatas de Es‑panhol, mas elas me ajudaram a fazer muitos amigos aqui.

– Isso é bom, filho! – Basílio escondeu a infelicidade. Tinha ido até o telefone público após terminar o café da manhã. – Você estudou espanhol aqui, no ano passado, para poder cursar uma faculdade aí, no futuro.

Page 278: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 278 ×

– Você deveria estar aqui conosco... – Se pudesse juro que estaria – Basílio sorriu para o nada. – Eu lembro dela, – falou Alan subitamente – todas as noites antes

de dormir. Eu chorava, mas a dor vai sumindo. A avó anda me contando muitas coisas sobre a mãe, me sinto feliz quando a ouço. Só não posso dizer para ela como aconteceu o acidente, digo apenas que esqueci.

– É melhor assim. As pessoas não entenderiam você. Esqueça a forma como isso aconteceu...

Houve uma pausa prolongada.– Também sinto falta dela – desabafou o cavaleiro. – Gostaria de

estar aí e aproveitar a vida com você, mas não posso. Um dia talvez você entenda, ou não. Só quero que me p...

– Eu te amo, pai! – A voz de Alan soou embargada. – Só prometa para mim que nunca vai me abandonar.

– Nunca! – Basílio divagou. – Eu te amo muito para fazer isso. Posso demorar a vê‑lo, mas entenderá no futuro o que quero dizer.

– Tenho que desligar agora, meus amigos estão aqui. – Tome cuidado...Basílio colocou o telefone no gancho. “Eu não tenho mais vida...

Sou um cavaleiro agora. Será que um dia ele entenderá?” indagou‑se mentalmente.

Flashback VII – 17 de Fevereiro de 1999.– Senhor, ligação urgente – A secretária nova de Basílio entrou na

sala. Ela era baixa, velha e gorda, como Maria desejou que fosse. Basílio apanhou o telefone preto sobre a mesa.– Engenheiro Basílio falando.– Engenheiro! – A sonora risada atordoou Báz. – Que orgulho de

você, rapaz. Eu sempre acreditei que isso era possível.Demorou uns segundos para reconhecer a voz.– Nestor!– Achei que tivesse esquecido de mim.– Bons homens jamais são esquecidos. – Jamais! – repetiu Nestor. – Como vai o seu novo escritório? – Em perfeitas condições, continuo muito grato a você. Nestor havia emprestado o dinheiro que Basílio precisava para abrir

o lugar.– É bom saber, um dia passarei aí para ver o bom investimento que

fizeste. – Nestor riu gostosamente. – E a família?– Bem – respondeu Báz secamente. Não gostava de expor a família

em conversas alheias. – Ligou apenas para perguntar dos meus negócios?– Eu preciso de um favor seu. – O antigo chefe ficou sério. – Que tipo de favor? – “Eu sabia que tinha algo por trás”, pensou o

engenheiro.

Page 279: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 279 ×

– Você sabe... – Nestor enrolou um pouco até chegar ao ponto. – Eu preciso que você apague alguém.

– Eu não posso! – exclamou Báz. – Eu parei com isso faz dois anos! – Jamais lhe neguei ajuda! Por acaso eu já o deixei na mão? – Isso não convém. Matar alguém não é ajuda! Peça para seus aju‑

dantes fazerem isso!– Esse trabalho deve ser feito com muito cuidado, só você pode fazer

isso como eu quero. – Tenho um filho. – A voz de Basílio foi apagando. – Se fizer isso não cobrarei o dinheiro que me deve e ainda lhe darei

mais. Ligarei daqui a dois dias para saber se mudou de ideia – insinuou o chefe. Era difícil para o engenheiro negar.

E desligou.Quatro dias depois, a sentença de Nestor foi clara: mate aquele tra‑

ficante. “Por que fui aceitar isso?” perguntava‑se Basílio. “Eu parei de ma‑tar.” Ele andava silenciosamente pela sala escura e vazia. Invadira a casa fazia minutos e já se arrependera. “Seu nome é Rodolfo, ele mora num bairro chique e fica se metendo nos meus negócios. Mauricinho metido a besta, coisa pequena, mas que pode causar muito tumulto. Não queremos isso, certo?” dissera‑lhe o ex‑chefe. No ponto de vista do cavaleiro, Nestor estava pirando.

Click. Ajustou o silenciador na arma e subiu lentamente as escadas. Os móveis simples da casa não chegavam nem perto da descrição dada pelo ex‑chefe. Porta‑retratos de todos os tamanhos repousavam sobre os armá‑rios revelando imagens de uma família feliz. Quando chegou ao segundo andar encostou‑se na parede. Havia três quartos, um banheiro e um escri‑tório. Repentinamente algo caíra no chão às suas costas, virou e atirou. A bala transpassou o peito da vítima em segundos, que foram intermináveis para o cavaleiro. Era um garotinho de quatro anos.

– Uma criança... Não... – balbuciou, agachando‑se ao lado dele. Juntou‑o e carregou‑o escada abaixo. A criança grunhia baixinho

enquanto apertava o carrinho de brinquedo nos braços. O trabalho tinha dado errado para Basílio. Além de trair a confiança de sua mulher, fizera o mesmo consigo mesmo. O garoto apertou o rosto contra o peito de seu assassino, tossindo roucamente.

– Não... Não morra.Pedia Basílio, correndo até a porta de saída, pois a criança mor‑

ria nos seus braços. “Nos meus braços...” Ele fitou o rosto do menino e lembrou‑se de Alan. “E se fosse Alan agora? Eu traí a mim mesmo. Agora é tarde... Eu matei uma criança! Prometi dar cabo apenas dos que mere‑ciam.” Depositou o menino sobre o sofá da sala.

Era uma criança... Basílio não matava por prazer. Acabar com a vida dos traficantezinhos de merda era uma coisa, mas matar uma crian‑ça? Era errado. Ela poderia se tornar um bom médico, ou um professor.

Page 280: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 280 ×

Lágrimas doloridas correram de seus olhos. “Uma criança...” Ela ia ter uma vida, crescer, estudar, ter outra família! Basílio nunca sentira a culpa antes. Quem traficava drogas não ia criar família ou fazer algo de bom para sociedade, mas uma criança ainda tinha muito para crescer e decidir o que fazer. Afastou‑se do sofá e correu para a saída, era tudo sua culpa. Apenas sua... Quando chegou em casa desfez‑se das roupas e escondeu a arma muito bem. Passou dias em choque interno, lembrando‑se do aciden‑te. Tinha matado uma criança... Não atendera mais as ligações de Nestor. Desde então mudara completamente, carregando o segredo consigo. “Eu sou um monstro.” Castigava‑se constantemente.

Tempos depois, Nestor jogou o maço de papéis sobre a escrivaninha, esbravejando palavrões.

– Era para matá‑lo! Eu mandei matá‑lo, Basílio, qual o seu proble‑ma? Por que não voltou e terminou o trabalho?

– Foi um... Foi um erro!– Dane‑se o erro! – As folhas esparramadas no chão foram recolhi‑

das por sua secretária loura. – Nunca tive esse tipo de problemas com você. – Você não me avisou que ele tinha família! – Basílio encarou o an‑

tigo chefe. – Falou que morava sozinho, não sou adivinho. Eu não percebi a criança! Eu não queria matá‑la...

– Meus negócios são mais importantes – Nestor agarrou a blusa de Basílio e apontou o dedo ameaçadoramente. Basílio era dez centímetros mais alto. – Aquela criança era um empecilho mesmo! Um marginalzinho como os outros. Quem se importa?

Ardendo de raiva, os olhos de Basílio fizeram Nestor temê‑lo. Aper‑tou a mão que o segurava, fazendo o ex‑chefe grunhir de dor e soltá‑lo.

– Jamais fale nesse tom comigo – ameaçou Báz perigosamente. – Você não é mais meu chefe e muito menos tem o direito de julgar o futuro dos outros. Ele era uma criança, como eu ou você já fomos. Se seu pai sou‑besse que você seria traficante de drogas acha que ele iria mantê‑lo vivo?

Insultado, Nestor recolheu a mão. Basílio era um homem que nunca perdeu a paciência com ele.

– Isso não é da minha conta.– É sim – interpôs Basílio, enfrentando‑o como nunca fizera. – Até

porque esse é um problema só seu. – Vai pagar por isso... – murmurou Nestor maliciosamente. – Eu o

respeitei até o momento em que me desrespeitou.“Ele é incapaz de me matar, um inútil recalcado”, pensou o chefe. Basílio parou confuso.– Inútil recalcado?“Ele leu meus pensamentos? Não é possível...” pensou Nestor por

um instante. Balançou a cabeça e julgou aquilo como uma coincidência. – Eu não disse nada. Pare de imaginar coisas e vá embora! Não

temos mais nada para conversar – disse Nestor sem perder a pose.

Page 281: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 281 ×

– Não me ligue mais, finja que não existo – Basílio fechou o zíper do casaco. – Qualquer ligação que tínhamos acabou.

Fim do Flashback VII.

Oliver estendeu‑lhe uma casquinha de sorvete de creme.– Tome aí. Vai demorar uns vinte minutos para o voo partir. Basílio segurou‑a. Haviam saído de Porto Alegre fazia uma hora

e agora estavam em São Paulo, esperando o avião para Tóquio. Basílio refletia calado, incomodando Oliver.

– O que houve? Ele não respondeu.– Basílio?Irritado pela ignorância, Oliver deu um tapa na cabeça dele.– O quê!? – Basílio piscou dolorosamente, derrubando o sorvete

na calça. – Olhe aí o que você fez!– Olhar o quê? – perguntou Oliver grosseiramente. – Você está

me ignorando!Caminhando desconfortavelmente até o banheiro, Basílio retira‑

va o máximo possível de sorvete da calça com o guardanapo. Empurrou a porta do banheiro com o ombro. Esbarrou num senhor e pediu des‑culpas. Esfregou a calça cuidadosamente com a água e depois apoiou‑se na pia.

Flashback VIII – 1 de Março de 1999.Basílio sabia que o chefe não ia deixar barato. Conhecia‑o suficien‑

temente para saber que Nestor não deixaria um desaforo a desejar. Duas noites depois, um estranho arrombara sua casa, e, para azar dele, Basílio mandara a esposa para a casa da sogra com seu filho. Na época, alguns anos antes de se mudar para Espanha, a sogra morava no interior. Dera cabo do desgraçado ali mesmo e livrou‑se das pistas. Alguns dias depois foi fazer uma visitinha particular a Nestor. Chegara como quem não queria nada em seu escritório.

– Basílio! Que bom vê‑lo por aqui. – Nestor apertou a mão do ex‑servente como se não houvesse mais diferenças. – Sinto muito pelo nosso desentendimento da última vez. Eu não quero que nossa amizade de muitos anos acabe por aqui.

– Pois é, – Basílio atirou um envelope pardo e amassado sobre a mesa – isso é para você.

– Para mim?Nestor abriu e retirou um maço gordo de notas de cinquenta e um

papel pautado. – Pagamento do empréstimo. – Vamos esquecer aquilo tudo. – Estamos quites agora – Basílio sorriu‑lhe falsamente de canto. –

Page 282: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 282 ×

Assine o papel. – Não entendi aonde quer chegar. – Vai entender – Basílio apontou uma arma para ele. – Assine.– Permita que eu pegue minha caneta.Nestor apalpou a gaveta procurando a arma e foi surpreendido pela

de Basílio, apontada a cinco centímetros do olho direito, bem mais perto do que antes.

– Vou usar essa mesmo!Juntou a caneta jogada sobre a escrivaninha e assinou o papel. – Que comportamento é este, Basílio? – indagou Nestor nervosa‑

mente, içando as mãos depois do ato. – Leia o papel em voz alta.– Por que eu deveria? – questionou ríspido.A contragosto, ele obedeceu.– “Hoje é um dia como outro qualquer para mim, não vejo mais

sentido no que faço. Criei um império de destruição em volta de mim e agora não consigo conviver com isso. Mal posso me olhar no espelho só de pensar em todos os males que causei. Gostaria de deixar todos os meus bens para entidades infantis e orfanatos. Abaixo estão algumas informações de que vocês talvez precisem...”

– Até aí já está bom. Nestor riu gostosamente.– Vai mesmo me matar? Não faria isso, garoto. Eu o conheço. Não

faria isso com um dos seus.– Você fez isso comigo, por que acha que devo poupá‑lo? Você nunca

foi um bom homem, Nestor! – Basílio meneou a cabeça, reprovativo. – Mas você sempre foi um bom homem, Basílio! Como eu o ajudei,

sei que não me mataria – Nestor suava frio. “Ele não vai me matar, é um bastardo louco”, pensou o traficante.

Basílio ouviu o pensamento e transpareceu seu receio momentaneamente, dando a oportunidade para Nestor pegar a arma colada abaixo do banco. O traficante levantou pronto para matar, porém o tiro da arma inimiga fora mais rápido e jogara‑o sobre o banco. O cavaleiro estava apenas espe‑rando a hora em que Nestor se manifestasse para atirar.

– Sinto muito, Nestor, mas sua morte foi necessária. Basílio juntou a arma de Nestor e trocou os pentes. Todas as armas

do grupo de Nestor eram iguais. Pensara cuidadosamente para que tudo parecesse um suicídio. Limpou as possíveis digitais. Três outros pequenos traficantes entraram afobados na sala, deparando‑se com Basílio. Este re‑partiu o maço que trouxe em três partes e os distribuiu entre eles.

– Nestor andava abatido desde a morte do filho do traficantezinho que ele tentou matar, certo? Eu não estive aqui hoje.

Os homens entreolharam‑se. – Há um estoque de drogas no centro de Curitiba, peguem para

Page 283: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 283 ×

vocês. Deve ter uma tonelada no mínimo. O endereço está anotado na agenda cinza dele.

Basílio se retirou. Sabia que os homens não iriam delatá‑lo ou per‑deriam a droga. No dia seguinte a manchete do suicídio de Nestor Soares saiu nos jornais. “Ele morreu como um bom homem,” pensou Báz, “se eu não o tivesse matado, ele me mataria. A mim e a minha família... Enfim, está tudo acabado.” Estaria, caso as lembranças constantes do passado não o açoitassem às vezes.

Fim do Flashback VIII.

– Báz? – Oliver entrara de supetão no banheiro. Pegou o amigo encarando o espelho com os olhos injetados e vermelhos.

Surpreso e, ao mesmo tempo, preocupado, o cavaleiro percebera que Basílio não andava bem fazia um tempo.

– Eu... – Báz piscou atordoado. – Eu já estava saindo.– Já estava saindo? Faz quase quinze minutos que você está aí!

– Oliver juntou um bocado de papel higiênico e entregou a ele. – Fale, qual é o seu problema.

Basílio continuou secando a calça molhada após lavar na pia. – São coisas do passado que estão me atormentando. – Coisas do passado que estão prejudicando seu presente e, logo,

o futuro também. – Oliver cruzou os braços.– Aconteceram muitas coisas... E eu, eu...– Matou uma criança? – Oliver surpreendeu Basílio com o conhe‑

cimento. – Durante toda a noite passada você murmurou coisas estra‑nhas. Daí Badeck me esclareceu as coisas.

– Se você sabia, por que não disse antes?– Porque eu estou dizendo agora. – Oliver ajeitou o cabelo curto

com ajuda do reflexo. – Deixe de ser um chorão, isso já passou. – Não fale dessa forma, me insulta – rugiu Basílio irritado.– Dane‑se! – Oliver enfiou o dedo no peito dele. – Foi um erro,

não foi? Erros acontecem. Claro que não dessa forma, mas acontecem. Você não teve um passado comum, ou melhor, você não é comum.

Basílio começava a se ofender com as palavras alheias.– Eu também não fui! Quem disse que sou de alguma forma espe‑

cial? Meu pai morreu pelo meu egoísmo, passei tempo demais pensando nisso até perceber que o ser humano é capaz de coisas piores. Você é um grande homem!

– Não! – Basílio desferiu um tapa no dedo acusador. – Jamais serei um bom homem.

– Eu estava lá quando você se preocupou com Horácio, que nem humano era. Eu vi seu desespero, arrependimento e a preocupação. Seja lá o que foi em seu passado, você mudou. Mudou! Não é mais o que foi um dia. Seu filho é uma criança boa e bem educada e não me diga que foi

Page 284: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 284 ×

sua esposa que o criou, você estava lá também. – Isso não muda o fato de que eu matei um inocente! – Basílio

virou o rosto.– Centenas de crianças morrem por dia. – Oliver estendeu a mão e

a cada item listado escondia um dedo. – Fome, guerra, violência, explo‑ração infantil e várias outras coisas que eu não listarei. Alguém se sente culpado? Nunca vi. Inocentes morrem o tempo inteiro para suportar o egoísmo das pessoas. E elas se sentem culpadas? Também nunca perce‑bi. A diferença entre você e os outros, é a mudança. Além de não repetir o fato, você quis fazer algo para se redimir. E tentou fazê‑lo.

Oliver suspirou. – Não fique assim, coisas piores virão. Preciso de você bem ao

meu lado, sozinho não conseguirei nada. – Ele revirou os olhos. – Agora você é um privilegiado, aproveite isto.

– Você está certo, – Basílio pareceu melhorar um pouco – mas eu não chamaria isso de privilégio.

– Agora vai secar essa calça – pediu Oliver, irritado. – Não quero ser conhecido como “aquele que anda com o mijão”.

– A sua educação me mata! – retrucou Basílio, amontoando pa‑péis nas mãos. – Se recebesse uma moeda por ela, eu jamais teria visto dinheiro.

– Que seja – satisfeito com o resultado, Oliver saiu do banheiro. “Oliver está certo, tenho que parar com isso”, pensou Basílio en‑

quanto observava a enorme mancha molhada na calça.

Page 285: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 285 ×

Capitulo 23Obsessão

No dia 1 de março de 2010, o saguão de desembarque interna‑cional do aeroporto Haneda, em Tóquio, estava lotado. Centenas de pessoas espremiam‑se na fila para conferir documentos, apanhar malas ou aguardar os conhecidos. Oliver e Basílio, boquiabertos, admiravam o movimento. Não havia uma cadeira livre para sentar. Basílio conferia os pertences na mochila, enquanto Oliver contava os ienes trocados no dia anterior. O vasto saguão, ao menos, comportava os viajantes.

– É estranho estar longe de casa. Oliver fitou Basílio. – Do que você está falando?– Digo... – Báz fechou a mochila. – Estamos no Japão! Eu nunca

fui além de São Paulo em toda a minha vida. Que dirá o Japão! Olhe esse lugar, as pessoas...

Oliver dera‑se conta do que Basílio realmente queria dizer. Havia japoneses por toda a parte e poucos ocidentais. Algumas crianças passa‑vam por eles rindo, como se estivessem diante de aberrações.

– Viramos parque de diversões – ironizou Oliver, enquanto guar‑dava o dinheiro e deixava à mão os passaportes.

Ambos sentiam‑se pequenos diante do enorme lugar, mas gran‑dalhões perto dos habitantes. Placas escritas em japonês enfeitavam os espaços entre as cadeiras de espera. Lojas coloridas atraíam os turistas, ofertando variedades de objetos. Oliver perguntava‑se se teria feito cer‑to em ir tão longe por causa de uma previsão. Poderiam ter chegado ao Japão em menos de cinco minutos utilizando a espada, mas se os dois não quisessem ser rastreados pelos inimigos, teriam de usar os modos convencionais de transporte.

– Vamos pegar Badeck. Eu anotei o endereço de um hotel que parece aceitar animais. De lá, conversaremos melhor sobre o que fazer.

Basílio apanhou duas malas pequenas e vermelhas. Oliver esguei‑rava‑se entre as pessoas, tentando não manter muito contato. Odiava lugares cheios de gente, mais ainda um que não conhecia. As placas em japonês davam‑lhe dor de cabeça. Depositou os braços sobre o balcão

Page 286: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 286 ×

largo e esticou os documentos para a atendente japonesa. – Preciso usar o banheiro – disse Basílio, franzindo o cenho. –

Acho que tem um ali.– Cuidado, estamos num lugar estranho – Oliver encarou‑o de

soslaio. – Não vá se perder.O cavaleiro juntou as malas e saiu. A atendente conferia os papéis

de ambos no computador.– Pode me acompanhar, senhor? – perguntou ela educadamente em

japonês. – Eu... – Oliver não entendeu nada. – Sabe linguagem de sinais?A japonesa apontou para uma porta embutida no balcão e sina‑

lizou para que ele entrasse. Oliver obedeceu, empurrando a porta de vai‑e‑vem para entrar. A pequena sala tinha algumas mesas com com‑putadores. Acompanhando a atendente, o cavaleiro foi levado até ou‑tra porta, por onde passaram a uma sala mais ampla e escura. Caixas enormes empilhavam‑se até o teto, enquanto funcionários trabalhavam arduamente para empilhar outras nos lugares vagos. Muito fortes, as luzes do teto alto permitiam enxergar um conjunto de paredes metálicas que cercavam parcialmente as cinco gaiolas de transporte animal. Três grandes e duas médias. Badeck jazia na gaiola laranja.

– Badeck! – apressando o passo, Oliver ajoelhou‑se diante da gaiola. – Você está bem?

– Já estive melhor – resmungou o cão, pondo‑se de pé. A gaiola era grande o suficiente para permitir o movimento.

Oliver notou alguns arranhões sobre o focinho arroxeado do cão.– O que são essas... – Um imprevisto – murmurou o guia.– Senhor, – três oficiais japoneses estavam de pé atrás dele, acom‑

panhados de uma mulher e um civil com a mão enfaixada por grossas ataduras – precisamos conversar.

– Eu não entendo o que vocês dizem – disse Oliver para o oficial oriental de vestes escuras e ares impetuosos. – será que alguém aqui fala a minha língua?

Os oficiais trocaram comentários. – E vocês vão conversar com esse idiota? – exclamou o japonês de

mão enfaixada. Trajava vestes azuis, iguais aos outros funcionários do aeroporto. – O que importa é que esse cão desgraçado me mordeu!

– Acalme‑se! – ordenou o oficial. – Temos uma política a seguir.– Quem se importa com política? – retrucou o ferido. – Olhe para

minha mão! Meu orgulho também se fere quando você diz isso.– Senhor Goro, por favor, – pediu a atendente – controle‑se.Oliver, que observava a discussão sem entender uma palavra, aga‑

chou‑se novamente. – O que houve?

Page 287: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 287 ×

– Aquele homem implicou comigo desde a minha chegada aqui. Quando não tinha ninguém por perto, ele me aplicou choques com um aparelho. Acha que eu ia aceitar? Na primeira oportunidade lhe dei o bote – defendeu‑se Badeck.

– Mal chegamos ao Japão e me vem com esse problema? E o que faremos agora? – Insatisfeito Oliver fitou os ferimentos de Badeck. – Não entendo uma palavra do que eles dizem!

– Mas pode – Baroon surgiu por baixo dos pelos da barriga de Badeck, expondo apenas a cabeça. – Geralmente cavaleiros presos ao corpo desde o nascimento, como Basílio, teriam mais dificuldade em re‑alizar esta tarefa. Mas você é um hospedeiro e tem facilidade. Cavaleiros falam e entendem todas as línguas deste ou de outro mundo.

Interessado, Oliver aproximou o rosto para ouvir melhor. Os ofi‑ciais discutiam fervorosamente demais para dar atenção ao homem que falava com o cão.

– E como faço isso?– O Mantra de Luz não é uma simples esfera, é muito mais com‑

plexo. Você pode alterá‑lo, mas para isso, precisa controlá‑lo. Falar outras línguas é fácil e não requer tanto sacrifício. Portanto, feche os olhos. Imagine duas gavetas repletas de documentos, numa há aqueles que você pode acessar e na outra, os que não pode. Os que você quer são inacessíveis a menos que você tenha uma chave. E essa chave está no molho de chaves dentro do seu bolso. É assim que funciona o Mantra de Luz, as informações estão lá, porém guardadas e protegidas.

– Concentre‑se, Oliver – alertou Badeck num curto rosnado. – Falar é fácil, falar é fácil – repetiu Oliver, fazendo o pedido. O oficial encerrou a discussão e voltou‑se para o brasileiro acoco‑

rado diante da gaiola.– Senhor...“Uma gaveta...” Oliver imaginou as duas gavetas embutidas em

uma parede de aço. A primeira gaveta abria ao simples toque, os arqui‑vos armazenados ali eram acessíveis. Já a segunda gaveta estava tran‑cada. O cavaleiro, mentalmente, alisou a fechadura metálica, enquanto tateava os bolsos frontais, não tinha chave nenhuma ali.

– Eu, como oficial da policia Japonesa...“Concentre‑se, o Mantra está em mim. Então, as chaves também

estão. Eu posso acessar os documentos, eu posso...” Pensativo, levou a mão até o bolso direito traseiro e surpreendeu‑se quando sentiu a sali‑ência do molho de chaves. Pegou‑o, sentindo que era grande e repleto de chaves, desde novas até antigas. Procurou aquela que combinava com a fechadura.

– Aqui está você. Uma gota de suor escorreu por sua testa. Enfiou‑a na fechadura

e girou, com um click, a gaveta abriu. Os documentos estavam à sua

Page 288: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 288 ×

disposição. Reabriu os olhos voltando à realidade. A pronúncia estranha tornou‑se conhecida e compreensível aos ouvidos.

– Pediria que o senhor nos acompanhasse até a outra sala. – O oficial pausou, aguardando a resposta.

Oliver surprendeu‑se ao compreender perfeitamente a frase.– Eu... Acho que não posso. – As frases eram pronunciadas magi‑

camente por sua boca. – Temos uma injustiça aqui.– A única injustiça aqui é a existência desse cão! – começou Goro,

mas foi interrompido pelo oficial.– Explique‑se então, senhor – pediu o oficial. Oliver encarou Goro, acessando sua mente, quando terminou,

apontou para a cintura do funcionário. – Meu cão foi agredido por este homem. Goro se defendeu e o

feriu no focinho, mas, caso queiram investigar melhor, encontrarão fe‑ridas propositais no pescoço! Confiram, ele tem um aparelho de dar choque.

– Vão acreditar nele? O agredido fui eu! – Goro ergueu os braços enquanto os outros dois oficiais apalpavam‑no. – Isso é um abuso!

Um dos oficiais ergueu o aparelho de choque longo e fino, preso entre as costas e o cós da calça de Goro.

Daisuke, o oficial impetuoso, analisou o aparelho. – Como pode explicar isso? – perguntou para Goro.– Eu usei isso para que esse animal parasse de me morder – defen‑

deu‑se Goro, transpirando frio. – Mentira! Um funcionário chamado Iwao o ajudou.Confuso, diante da afirmação de Oliver, Daisuke alisou o queixo

fino e dirigiu‑se para a funcionária atendente. – Procure por esse tal Iwao.– Prontamente, oficial Daisuke – confirmou ela, saindo. – Eu não acredito... Eu era a vítima e agora sou o acusado? – Goro

lançou um olhar de raiva para Oliver. – Ocidentais idiotas, pensam que podem chegar aqui no Japão e fazer o que quiserem?

– Controle a boca, Goro – ordenou Daisuke, cruzando os braços. Minutos depois a atendente retornou acompanhada de um orien‑

tal baixinho e sisudo. – Washini Iwao – apresentou‑se o funcionário. – Então, Iwao, – Daisuke encarou Oliver – é verdade que você

ajudou Goro a se libertar do ataque do cão?– Sim, senhor. – E poderia me dizer como?– Claro! – Goro tentou gesticular para Iwao, porém Daisuke in‑

Page 289: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 289 ×

terveio. – Assim que vi Goro‑san1 sendo atacado pelo cão, usei o gram‑peador de caixas no focinho do animal, para ver se ele soltava. E funcio‑nou, depois, ajudei‑o a fazer curativos.

– Você lembra de ter usado o grampeador no pescoço do cão?– Não usei, Daisuke‑san.– Tem certeza disso?– Absoluta – concordou Iwao.– Lembra‑se de ter usado isso? – Daisuke mostrou o aparelho de

choque para Iwao.– De nenhuma forma. – Iwao arqueou as sobrancelhas. – Não

faço nem ideia da serventia disso. – Ótimo, pode se retirar.Iwao cumprimentou os outros e se retirou. Goro expressava o

nervosismo nitidamente.– Prendam‑no! – mandou Daisuke. – Levem‑no para a sala dos

oficiais, no terceiro andar. Conversarei com ele depois. Os outros dois oficiais algemaram Goro e o conduziram para a

saída. Apenas quando a voz do preso abafou‑se, Daisuke curvou‑se le‑vemente perante Oliver.

– Desculpe‑me pelo ocorrido, senhor. – Não! Por favor, – Oliver gesticulou com as mãos – não foi nada.– Não sei como você descobriu, mas, quero deixar claro que esse

tipo de coisa não costuma acontecer aqui no Japão. Espero que o senhor não leve isso para o pessoal, afinal, não queremos problemas para nin‑guém, certo?

Oliver entendia aonde Daisuke queria chegar. – Há alguma forma de reparar os danos?– Bem, eu negaria em outras situações, mas não posso perder essa

chance. Conseguiria algum lugar para que possamos ficar? Hotéis que aceitam animais são difíceis de achar e aluguéis a essa altura estão fora de cogitação.

Daisuke coçou os cabelos ralos. – Podemos resolver isso desde que possa esperar um pouco.– Sem problemas! – Oliver agradeceu mentalmente. – Leve‑o até lá fora, vou dar um jeito nesse problema – pediu

Daisuke para a funcionária. – Isso ia dar um problema desgraçado. – Daisuke repôs o chapéu

de oficial.

1 Sufixo “‑san” é utilizado como tratamento na linguagem falada japonesa quando não se tem intimidade com a pessoa. Usa‑se tanto para homem como para mulher.

Page 290: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 290 ×

– Oliver! – exclamou Basílio, indo ao seu encontro. – Onde este‑ve? Fiquei aqui esperando por você! Pensei que tinha me abandonado.

– Fui resolver uns probleminhas – explicou‑se o cavaleiro e ace‑nou para Daisuke, que acabava de passar ao seu lado.

– Logo alguém qualificado irá atendê‑lo – disse Daisuke, cumpri‑mentando Basílio. – Espero que todas as diferenças sejam acertadas.

– De todas as formas – considerou Oliver, vendo‑o se retirar. – Re‑solvemos nossos problemas.

Basílio estava pasmo demais para falar.– O que foi?– Você... Falou em japonês? – Isso faz parte da história – falou Oliver desconfortável, enquan‑

to relatava o acontecido. – Senhor, Oliver? Um japonês alto, magro, de cabelos ralos abordou‑os cerca de

vinte minutos depois, deveria ter por volta dos trinta e cinco anos. Usa‑va terno e gravata cinza.

– Me chamo Mamura Kotaro2, mas podem me chamar apenas de Kotaro – O oriental demonstrava educação ao inclinar‑se levemente. – Daisuke‑san me pediu um favor e cumprirei com muito apreço.

O cavaleiro apresentou‑se e imitou Kotaro, a fim de se acostumar com os costumes do país.

– É um prazer conhecê‑los e perdoe‑nos pelo imprevisto. – Kota‑ro gesticulou para que o acompanhassem. – Realizamos algumas ligações para os hotéis da região e nenhum aceita animal de médio/grande porte como seu cão.

– Isso não é bom – comentou Oliver. – Antes que se preocupem, – interveio Kotaro, constrangendo‑se

– eu ofereço minha casa para que vocês possam ficar. Ela não é de luxo, mas seria o suficiente para mantê‑los até que encontrássemos um lugar de hospedagem.

– Na sua casa?– O que ele disse? – perguntou Basílio contrariado por não parti‑

cipar da conversa.– Ele está oferecendo a casa dele para ficarmos, – contou Oliver

pensativo – disse que não há hotéis por aqui que aceitem cães do tama‑nho de Badeck.

– Aceita! – Basílio não pensou duas vezes. – Ou é com ele ou vai ser debaixo da ponte, isso se achar uma ponte.

– Então, o que decidiram? – perguntou Kotaro, achando engraça‑

2 No Japão, o sobrenome é apresentado antes do nome.

Page 291: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 291 ×

da a pronúncia dos estrangeiros. Conforme atravessavam os corredores do aeroporto Haneda, a

arquitetura os surpreendia. Quando chegaram ao saguão principal, os elevadores panorâmicos ofereceram‑lhes uma vista do aeroporto. Ha‑via muitos andares e escadas rolantes que transportavam dezenas, se não centenas, de viajantes. As lojas atrativas distribuíam‑se pelos vários cantos de visitação. A iluminação forte chegava a ofuscar os olhos can‑sados dos cavaleiros, que, maravilhados, não deixaram de apoiar‑se no parapeito metálico do segundo andar.

– Olha só para esse lugar! – murmurou Basílio, que jamais estive‑ra em um lugar tão limpo e populoso.

– É incrível... – Oliver procurou uma palavra que definisse melhor o que sentia e não encontrou.

Kotaro não entendeu o motivo da perplexidade, morava em Tó‑quio desde que nascera e trabalhava em Haneda fazia cinco anos. Olha‑va aquele lugar todo o dia e não achava nada de especial.

– Nós aceitaremos sua proposta – Oliver se recompôs. – Só espe‑ro não dar nenhum incômodo.

– Não, senhor– Kotaro sorriu gentilmente. – Podemos ir?– O quanto antes melhor – confirmou Oliver.

O carro era estranhamente pequeno por fora e grande por dentro. Badeck acomodava‑se no porta‑malas, a contragosto, pois os ferimen‑tos no focinho ardiam doloridamente ainda. Baroon acompanhava‑os pelo ar, já que sua presença não podia ser revelada. Basílio ia sentado no banco de trás abraçado às malas vermelhas.

– Qual é o motivo de estarem em Tóquio? – perguntou Kotaro, na direção.

– Estamos a negócios – respondeu Oliver, observando a paisagem. Os prédios e casas perto da rodovia eram aparentemente comuns

e, se observasse mais a fundo, veria a cultura japonesa presente. A me‑trópole era realmente incrível, tanto quanto o aeroporto. Algumas árvo‑res enfeitavam a entrada das casas construídas no estilo oriental. Basílio sentia‑se cada vez mais distante de casa quando via as placas escritas por símbolos cujo significado não entendia. Realmente era outro mundo, outras pessoas e outra cultura. “Gente esquisita” pensava Báz ao obser‑var os transeuntes.

– O que você faz exatamente em Haneda? – desconversou Oliver.– Sou supervisor de segurança. – Tóquio é realmente incrível! – avaliou o cavaleiro, vislumbrando

a paisagem urbana.

Page 292: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 292 ×

Kotaro riu descontraído. – Eu já ouvi falar sobre o Brasil, dizem que lá é um ótimo lugar. Tem

um tal de carvanal...– Carnaval – corrigiu Oliver. Oliver sentia algo de estranho no japonês, ele era gentil e aparen‑

tava ser alguém feliz. Mas internamente era diferente. Leria sua mente se não achasse uma violação de privacidade. Então, resolveu esperar para descobrir com o tempo. Se fosse mesmo ficar na casa dele, a verdade não tardaria para vir à tona. A viagem de carro durou cerca de meia hora, o tempo suficiente para que o dia se tornasse noite, e Kotaro aproveitou para explicar um pouco a respeito de Tóquio e seu dia‑a‑dia. Basílio mantinha‑se atento à rua, achando graça nos japoneses e suas tradições diferentes. O mundo era tão grande... Se tivesse tido oportunidade teria trazido Maria e Alan para visitar o país.

A casa de Kotaro localizava‑se no bairro Masaki, constituído em sua maior parte por casas. As ruas eram limpas e bem conservadas. Al‑guns mercadinhos de beira de esquina estavam abertos. Os postes ilu‑minavam a entrada da casa de cor creme. Diferente do Brasil, os lugares não precisavam de cercas para se proteger. A rua de Kotaro situava‑se em uma zona comercial. Tinha dois restaurantes, um bar e uma casa de dois andares comerciais. O movimento de carros intensificava‑se apenas a três ruas para o norte, onde começava o centro. Oliver até sentia‑se bem. Aparentemente simples, a casa tinha apenas o necessário. Adentraram o pequeno pátio enfeitado por ervas de chás, aguardando que o portão automático, embutido na casa, abrisse.

– Seu cão, – Kotaro apontou para Badeck – ele morde?– Não, de forma alguma – esclareceu Oliver. – É adestrado!– Eu tenho uma filha pequena em casa – explicou Kotaro, desli‑

gando o veículo e saindo do carro. A garagem compacta estava apinhada de objetos esquisitos.

– Não se preocupe, ele poderá dormir fora de casa. Badeck fizera cara de poucos amigos ao sair do carro. Ele parou

aos pés de Kotaro e grunhiu como se pedisse um pouco de afeto. O Japonês afagou‑lhe o pelo da cabeça.

– Não parece ser muito perigoso. Kotaro retirou os calçados e depositou‑os numa pequena caixa de

madeira assim que entrou na casa, através de uma porta que interligava a garagem ao interior da residência. Basílio e Oliver fizeram o mesmo. Oliver abriu a porta da frente para que Badeck saísse para a rua. Baroon aguardava‑o sobre a caixa de correio.

– Eu preferia falar japonês também – resmungou Basílio. – Me ensine a fazer isso.

– Quando puder, ensinarei. – Vou mostrar o quarto em que vão ficar – Kotaro tomava cuidado

Page 293: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 293 ×

para não fazer barulho.Estavam numa espécie de corredor que passava por duas portas e

terminava em uma escada. Uma das portas dava na cozinha e a outra na sala, enquanto que a escada conduzia aos três quartos. Repentinamente a luz do corredor acendeu, iluminando a mulher no alto da escada. Ela tinha cabelos louros e olhos azuis, utilizava um roupão roxo e grosso. Fez cara feia quando viu os dois estranhos.

– Kotaro, o que significa isso? – indagou ela irritada. – Quem são esses estranhos?

– Suzuku! – exclamou Kotaro surpreso. – Desculpe, querida, mas não pude te avisar a respeito. Aguardem aqui, por favor!

Apressado, ele subiu a escada e sumiu no corredor, carregando Suzuku junto.

– O que você pensa que está fazendo? – perguntou Suzuku.– Tive que trazê‑los. Ocorreu um problema no aeroporto e Daisuke

pediu que eu os hospedasse aqui em casa!– Justo na nossa casa? – indignada, Suzuku cruzou os braços e

deu‑lhe as costas. – Ocidentais não são confiáveis. – Pare de ser preconceituosa. É por pouco tempo!– Não podia ser em um hotel? – Eles têm um cão grande demais para ficar em hotéis – Kotaro

fechou a cara. – Um cão!? E você traz um animal para a nossa casa? – indagou

Suzuku incrédula, virando‑se para ele. – Ele está do lado de fora, não se preocupe. Eu vou levá‑los para o

quarto de hóspedes. Seja educada! Eu estou a um pé de perder o emprego, isso é necessário.

– Jamais! Eu os quero fora de minha casa até amanhã à noite! – exclamou ela, entrando no quarto de casal e fechando a porta de correr com força.

– Sobre o que eles estão discutindo? – perguntou Basílio, curioso.– Não sei, eu decidi que isso não é da minha conta. – Oliver deu

de ombros enquanto observava o biombo que ornava a sala. Havia dois dragões cinzas pintados nele. – Acho que não foi uma boa ideia.

– Subam! – Kotaro chamava‑os do topo da escada. – Kotaro, esperamos não estar trazendo problemas para você. – Não se preocupe Oliver. Vocês não são os problemas, ela é! O andar de cima tinha apenas dois vasos grandes com bambus

como adornos e, como a sala, os quartos eram separados por biombos da cor amarelo queimado, alguns tinham desenhos de plantas e kanjis de delicada beleza. Kotaro empurrou a porta de correr e entrou no quarto de hóspedes. O quarto tinha dois armários médios de madeira.

– Onde vamos dormir? Sobre os armários? – questionou Basílio, enquanto depositava as malas vermelhas no chão.

Page 294: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 294 ×

Oliver também fez cara de dúvida.– Eu e minha esposa temos uma cama de casal, mas para visitantes

guardamos os futons3, não sei se vocês conhecem. Enquanto explicava, Kotaro retirou três futons azul‑marinho do

armário, desenrolou‑os e deitou‑os no chão.– No Brasil isso se chamaria colchonete – disse Basílio, coçando a

nuca, quando Oliver lhe explicou a funcionalidade do futon. – Três...? – perguntou Oliver.– Espero que não se importem, acho que minha esposa não vai que‑

rer minha companhia esta noite – falou Kotaro pondo um travesseiro leve para cada um. – Então, estão com fome?

– Essa massa está uma delícia – elogiou Basílio, quando Kotaro o serviu, apesar da dificuldade de comer com os hashis4. – Esses pauzinhos são complicados demais. Não tem garfo?

– O que ele disse? – perguntou o supervisor interessado pela pri‑meira vez em Basílio.

– Ele disse que a comida está uma delícia – traduziu Oliver, tam‑bém degustando o yakissoba5.

O trio comia de joelhos diante de um kotatsu.6 No momento, a mesa aquecedora estava desligada, pois o inverno rigoroso ainda não havia chegado. Oliver guardou um pouco do Yakissoba para Badeck.

– Foi feito por Suzuku. Aliás, perdoem o comportamento dela.– Nós é que devemos nos desculpar – Oliver depositou o prato so‑

bre a mesa. – Não era para ser assim, planejávamos ter ficado num hotel.– Kotaro, – Basílio também terminava de comer – o que há com sua

esposa? Eu vi raiva e tristeza no comportamento dela.Oliver traduziu tanto a pergunta quanto a resposta dele, confor‑

me o homem falava.– Está tão evidente assim? – Kotaro baixou o olhar. – Como disse

antes, nós temos uma filhinha. Ela tem cinco anos e se chama Asami. Há um ano Asami sofreu um acidente na piscina de um clube que frequentáva‑mos, bateu a cabeça na borda da piscina por um descuido meu. Depois dis‑so, ela não falou mais. Levamos a um médico, ele disse que havia ocorrido

3 Futon é um tipo de colchão flexível que pode ser dobrado e guardado. É usado na tradicio‑nal cama japonesa.4 Hashis são palitinhos, normalmente feitos de madeira, utilizados como talheres na cultura oriental.5 Macarrão. É originário da China, mas o yakissoba é também muito apreciado pela cultura japonesa.6 Móvel (mesa) baixo que possuí um aquecedor em seu centro, voltado para o chão. As pessoas mantém as suas pernas ajoelhadas abaixo da mesa, sob a defesa de um cobertor, que garante que o calor fique isolado e não se dissipe.

Page 295: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 295 ×

um distúrbio em sua audição provocado pelo tombo. Desde então Suzuku não me trata bem.

Basílio comoveu‑se por ele internamente. – Não se preocupe, Kotaro. Tudo vai ficar bem – disse‑lhe Basílio,

Oliver continuou traduzindo a conversa. – Tenho certeza de que a culpa não foi sua.

Kotaro sorriu.– Não se preocupem quanto a isso. – Ele levantou‑se e carregou os

pratos. – Gostariam de tomar um banho antes de dormir? Amanhã eu não preciso ir trabalhar e, se quiserem, posso apresentar a cidade.

– Ele nos convidou para dar uma volta – contou Oliver. – Pode‑mos pesquisar quanto ao show e o terceiro cavaleiro.

– Será uma boa ideia – concluiu Basílio, pensativo.Gemidos baixos foram os sons que acordaram Basílio. Ele reme‑

xeu‑se no futon macio e confortável, perguntando a si mesmo se tivera algum tipo de pesadelo. Cavaleiros não sonhavam, tinham previsões. Os gemidos repetiram‑se mais uma vez, obrigando‑o a sentar e pro‑curar a origem do som. Kotaro e Oliver dormiam pesadamente, enros‑cados nos cobertores quentes como criancinhas. “Vou verificar”, pen‑sou. Atravessou o quarto sem fazer barulho. A porta de correr já estava aberta. A casa estava mergulhada na escuridão, o caminho a fazer só não era complicado graças à presença da janela no corredor, que iluminava parcialmente o piso e os biombos. Pensara em descer até ouvir os cho‑ramingues que vinham daquele mesmo andar.

“Alguém pode estar precisando de ajuda”, pensou. Basílio abriu parcialmente a segunda porta de correr do corredor

e espiou. O quarto continha apenas um armário, um móvel de escrever, uma caixa de brinquedos e a cama onde choramingava uma pequena menina de olhos puxados, apertando o cobertor nas mãos. Um chiado vindo do outro lado da cama fez Basílio avançar para conferir. Pé ante pé, ele tomava o máximo de cuidado para não pisar nos brinquedos es‑palhados pelo chão. Ele sabia que não deveria estar fazendo aquilo.

– Não falar, não falar... – O chiado tornou‑se uma frase compre‑ensível. – Você não pode falar... Não deve! Fique quieta, criança.

Basílio arregalou os olhos ao ver um “anão” acocorado ao lado da cama. Ele era baixinho, magricelo, a pele tinha tons cinza e os olhos eram esferas negras do tamanho de bolas de bilhar. Não tinha orelhas e muito menos nariz, sua cara chegava a ser distorcida, pois a boca quase se unia aos olhos, exibindo os dentes serrilhados e pequenos. As mãos ressequidas que, além de deformadas, com unhas alaranjadas e asquero‑sas, tocavam a beirada da cama. O bicho não lhe deu atenção; humanos não costumavam vê‑los. A garota observava‑o fixamente com as mãos na boca e gemia a cada vez que o bicho tentava tocá‑la.

– Saia daí, coisa nojenta! – ordenou Basílio repentinamente. Não

Page 296: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 296 ×

gostar da criatura era o suficiente para avaliá‑lo como ruim. O monstrinho estacou. Asami apertou mais o cobertor quando

viu Basílio. Os olhos inchados de tanto chorar piscavam rapidamente.– Deixe a garota em paz – disse Basílio rispidamente. Juntou uma

boneca aos pés da cama e atirou nele.A boneca transpassou o corpo da criatura. “Ele não é desse mun‑

do!” pensou o cavaleiro, surpreso. Intimidado por Basílio, o monstri‑nho afastou‑se e encostou‑se na parede. Asami levantou da cama e cor‑reu para trás de Basílio, segurando sua calça.

– Você pode vê‑lo também... – murmurou ele.Ela secou as lágrimas. – Quem você pensa que é para se meter nos meus assuntos assim?

– grunhiu a criatura, sua voz era sussurrada graças aos lábios tortos. Ele não falava português nem japonês, mas Basílio entendia perfeitamente a língua dos mortos.

– Alguém que vai te fazer muito mal se não for embora – ameaçou Basílio, aproximando‑se dele.

Comprimido na parede, e sem outras opções, o monstrinho gri‑tou tão fino que chegou a rachar a janela fechada. Basílio e Asami se viram obrigados a tapar os ouvidos.

– Pare com isso! – gritou Basílio Ao reabrirem os olhos, o monstrinho apenas sorria. – Eu vou voltar.E então sumiu, transpassando a parede. – Asami! – exclamou Suzuku correndo ao encontro da garota, que

abriu os braços e abraçou‑se na mãe. – O que você está fazendo aqui?Basílio virou‑se para ela sem entender o japonês.– Responda!– Eu estava ajudando! – respondeu Basílio dedutivamente.– Fale na minha língua! – repreendeu a mãe.– Que barulheira é essa? – perguntou Kotaro ao acender a luz e

adentrar o quarto acompanhado de um Oliver preocupado. – Esse homem estava no quarto de nossa filha!– Basílio! – Oliver encarou‑o repleto de dúvidas. – O que houve? – Eu ouvi um choro e vim conferir! Então eu vi algo ali – Basílio

Apontou para o lado da cama. – Tinha um monstro estranho e feio sus‑surrando coisas para ela. Eu nunca vi uma coisa dessas antes! Atirei uma boneca nele, mas ele era um espectro. Eu o mandei embora e ele come‑çou a gritar alto, até rachou a vidraça. Ele disse que ia voltar e sumiu!

– O que ele disse? – perguntou Kotaro, parando ao lado da mulher. Oliver sorveu as informações demoradamente. Sabia que Basílio

não estava mentindo, mas não poderiam conversar sobre o acontecido no momento. Então, Oliver caminhou até a janela.

– Basílio disse que ouviu um choro e veio conferir. Quando chegou

Page 297: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 297 ×

ao quarto tinha um corvo bicando na janela, então ele atirou aquela bone‑ca para espantá‑lo. – Oliver apontou para a boneca atirada no chão. – E então sua esposa chegou.

– Só pode ser mentira! Esse pervertido queria pegar nossa filha...– É verdade isso, Asami? – perguntou Kotaro, interrompendo a

mulher grosseiramente. A menina assentiu enquanto olhava a janela trincada.– Viu, Suzuku? Basílio só veio ajudar, pare de ser grosseira!– Não existem corvos aqui – disse ela ainda num tom acusador.Oliver chamou‑a para perto da janela. Desconfiada, Suzuku levou

o olhar até a rua, onde um corvo repousava sobre a caixa de correio. Ela bufou enraivecida e se retirou do quarto.

– Kotaro – Basílio segurou o braço do homem. – Há algo de erra‑do com a sua filha, você precisa conversar com a sua esposa a respeito de quem a está rondando. Acho que alguém está lhe fazendo mal.

Oliver traduziu enquanto observava marcas ao lado da cama e na parede, como se alguém, volta e meia, estivesse por lá.

– Bem, eu vou conversar sobre isso... Basílio soltou‑o e suspirou. – Acho que vou dar uma volta por aí. Oliver entendia o que o parceiro queria.– Só não vá muito longe, estamos em território estranho. Quando o ex‑engenheiro se retirou, Kotaro divagou. – Kotaro, confie em Basílio, ele sabe das coisas – contou Oliver

tentando confortá‑lo. – Vamos voltar para a cama. Ele confirmou e se retirou do quarto, apagando a luz antes de

sair. Basílio pôs um moletom azul e calçou os tênis. Baroon e Badeck aguardavam‑no do lado de fora.

– Eu vi uma criatura no quarto da garotinha.– Nós vimos um obsessor sair dessa casa há pouco – disse Badeck. – O que é um obsessor?– As pessoas costumam ter tipos diferentes de obsessões – expli‑

cava Baroon, pousando sobre o ombro do cavaleiro que atravessava a rua. – Comportamentos, atitudes e ambições obsessivas costumam acar‑retar uma série de danos. Quando alguém possui uma obsessão muito forte, ela acaba desenvolvendo uma massa de sentimentos que alimen‑tam determinadas criaturas. Um obsessor alimenta‑se dessa energia que emana da pessoa com quem ele convive e a influencia a continuar com os hábitos vis. São criaturas fugitivas da Terra‑Inversa que não têm onde e nem como sobreviver sem essa energia maligna.

Basílio pôs as mãos no bolso para defender‑se do frio. – Existem muitos por aí – falou Badeck. – Na maioria das ve‑

zes eles acompanham uma pessoa durante uma vida inteira e acabam tornando‑se capazes de ferir o próprio hospedeiro. O que vimos era

Page 298: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 298 ×

pequeno ainda. – Essa menina é pequena demais para sofrer um mal desse tipo. – Crianças vítimas de uma obsessão também possuem um obses‑

sor. Ela, por se tratar de uma menina de pouca idade, deve ter sofrido algo que a fez atrair o obsessor de alguém.

– Então a batida na cabeça dela pode ter criado um obsessor?– Não. Ela deve ter sofrido um trauma psicológico – respondeu o

corvo, tomando equilíbrio a cada movimento do apoio. – Acho que foi isso mesmo – analisou Basílio, passando pelo res‑

taurante da rua. Ele era grande e com detalhes em relevo. A entrada branca tinha refletores amarelos sobre a placa escrita em japonês. – O acidente não explica a mudez; quando vi o obsessor minha hipótese se reforçou. Acho que vou investigar isso amanhã.

– Não se esqueça do verdadeiro objetivo seu aqui.– Eu sei, Badeck. Pela manhã Oliver irá ao centro da cidade com

Kotaro e verá se consegue descobrir algo. Estamos com tempo ainda. Se eu conseguir ganhar a confiança daquela mulher, ficaremos uns dias a mais na casa de Kotaro.

– Tome cuidado – alertou a guia. – Obsessores costumam ser vio‑lentos e induzem as pessoas ao mal.

– Tomarei as devidas precauções.

Page 299: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 299 ×

Capitulo 24Atzaveri e Dítzamo

Quando voltou, Basílio percebeu que Suzuku e Asami já tinham saído do quarto. Esgueirou‑se pela parede do corredor e ouviu atenta‑mente conversa na cozinha e ruídos de pratos sendo lavados. Apesar de não entender, Basílio tentava adivinhar a conversa pelo tom sentimental da pronuncia.

– Kotaro está louco! Trazendo estranhos para dentro de casa. Aquele homem não te fez mal? Ou tentou?

Asami meneou a cabeça negativamente. As mechas castanhas caiam no rosto levemente inchado de dormir e chorar.

“Como eu queria entender o que eles dizem”, pensou. A barba por fazer de Basílio acentuava os quarenta anos de idade. Em outros tempos diria que estava velho demais para essas coisas, mas essa sua nova vida não lhe permitia essa regalia. Abriu a porta e saiu, encontran‑do‑se com Badeck e Baroon.

– Preciso conversar com você, Baroon. Badeck fique aqui, logo Oliver irá acordar e você terá de ir com ele. Kotaro recebeu uma ligação ontem de noite de Daisuke. Ele pediu para Kotaro nos levar a para dar uma volta pela metrópole, mas eu tenho outros planos em mente. Diga a ele que saí para pegar outro ar.

– Tomem cuidado – alertou o cão deitado no tapete da entrada. – Tem uma praça a duas quadras daqui – considerou a guia pousa‑

da sobre o ombro de Basílio. – Me leve até lá.Naquela hora, aproximadamente sete horas da manhã, o ar um

tanto gélido pairava na rua. As casas ainda fechadas davam os primeiros ares de vida. A cidade era bela, tanto quanto qualquer outra e as pesso‑as que ali habitavam, apesar de outra nacionalidade, comportavam‑se como quaisquer outras. Costumes diferentes não as classificavam como melhores ou piores que as do Brasil. A praça ficava a exatas duas quadras da casa de Kotaro. Era limpa, os brinquedos bem cuidados e as plantas minuciosamente podadas. Havia mais edifícios naquela região. Um e outro japonês passava pelo ocidental e lançava‑lhe um olhar curioso.

Page 300: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 300 ×

Além de Basílio ser mais alto, era mais forte que a maioria.Basílio sentou‑se num banco entre as árvores e relaxou. Baroon

pousou sobre sua perna e acomodou‑se sobre a calça jeans. – Eu estou errado, Baroon. Preocupo‑me demais com as pessoas

quando meu dever é ser cavaleiro da Terra‑Inversa – desabafou Basílio. – Oliver está mais preocupado do que eu em encontrar os outros.

– É normal que você sinta isso. Você tinha uma família, cuidava de uma esposa e de um filho. Mesmo com o seu passado, você se importa com o bem estar de quem o rodeia. E no momento quem está com você é a família de Kotaro, e eles não estão bem. Isso irá acontecer até que você aceite ser um cavaleiro.

– Eu já aceito ser um...– Não se engane – retorquiu Baroon serenamente. – Você fala,

tem bons pensamentos a respeito, mas ainda não consentiu em ser ca‑valeiro. Oliver vivenciou o suficiente para aceitar e incorporar a nova faceta. Sou guia há séculos e conheci muitos cavaleiros, nunca ninguém se comportou como você.

Basílio expirou preocupação.– Você defendeu seu filho, lutando de frente contra uma seita

centenária porque o amava, ajudou Horácio porque viu seu filho nele e, agora, quer ajudar Asami porque não imagina Alan na mesma situação. Conserve esse sentimento, Báz. Eu estarei com você seja qual for a sua decisão, porque eu sou você. Uma hora você aceitará e aprenderá a ver a vida como um cavaleiro deve ver.

– Obrigada, Baroon – disse Basílio um tanto aliviado. – Desde que eu soube de sua existência, você não me faltou um único momento. Espero que eu possa compensar isso futuramente.

– A minha recompensa é a sua segurança. Báz sorriu e afagou‑lhe as penas das costas. – Olhe quem está ali! – disse o cavaleiro.Suzuku e Asami acabavam de atravessar apressadas a rua diante da

praça em que os dois estavam. Pensou em deixá‑las ir, mas desistiu da ideia quando viu um carro negro seguindo‑as.

– Qualquer coisa que acontecer comigo, Baroon, procure Oliver.Basílio embrenhou‑se entre as árvores a fim de ver melhor o

que acontecia. Suzuku olhava volta ou outra para o carro, perturbada. “Quem é essa gente?” pensou o cavaleiro, avaliando a situação. Os vi‑dros traseiros abriram‑se, mostrando o interior luxuoso onde se encon‑travam três homens de terno e gravata. O da janela direita assobiou para ela e sinalizou para que o motorista a parasse. Abruptamente, o veículo subiu na calçada, impedindo a passagem dela. Suzuku tentou fugir, mas um deles saltou do carro e agarrou‑a pelo braço. O japonês era magro e bem vestido. Tinha um rosto com expressão de constante malícia.

– E então? Pensou na proposta? – indagou obstinadamente. – É a

Page 301: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 301 ×

última vez que pergunto: vai aceitar ou não?– Me solta! – exclamou Suzuku, puxando o braço repetidas vezes. Os outros dois homens, mais fortes e altos, saíram do carro e

cercaram‑na. Asami apavorou‑se diante da ameaça. – Se não responder irei cortar a língua de sua filha! – ameaçou No‑

boru, o oriental malicioso. – Eu não gosto de relutâncias! Coopere ou terei de machucá‑la!

– Asami! – exclamou Suzuku apavorada quando viu um dos ho‑mens retirar um canivete do bolso e agarrar a mão da garotinha muda.

Basílio fora tão rápido quanto qualquer pensamento de defesa. Agarrou a cabeça do oriental que segurava o canivete e jogou‑o contra o carro, e ainda segurando os cabelos, fez a cabeça dele colidir cinco vezes no mesmo ponto até que ele desmaiasse. Furioso pelo ataque repentino, o outro oriental mirou‑lhe um soco na cara e, em troca, recebeu dois no estômago. O cavaleiro já tinha passado por outras lutas e aquilo só não era tão fácil quanto antes porque estava perdendo a agilidade. Báz fez o inimigo recuar com uma cabeçada em sua testa.

Noboru pensou em pegar Suzuku pelos cabelos e cortar sua gar‑ganta, porém Basílio lançou‑lhe um olhar que o desencorajou e o fez largar o braço dela. Basílio parecia tão cruel quanto um demônio.

– Deixe ela em paz! – urrou Basílio, socando uma mão na outra. – Se você voltar, eu te mato!

Entre gemidos, os capangas recompuseram‑se, mas Noboru proi‑biu‑os de voltar a atacar, pois contra aquele homem acabariam perden‑do. O tom de ameaça de Basílio foi o suficiente para passar o recado.

– Eu vou voltar, pego essa piranha depois – murmurou Noboru, adentrando o carro, irritado.

Naquele instante Basílio tinha a certeza de quem era o dono do obsessor. Noboru e o obsessor tinham o mesmo olhar e maneira de falar... Báz bufou e, pela primeira vez, parou para observar o inimigo de Suzuku. Seu rosto era muito familiar. Noboru era um homem atraente e seu nariz era perfeitamente simétrico. “O nariz...” pensou Basílio, ar‑regalando os olhos. Aquele homem dentro do carro era o mesmo que matara a cavaleira em sua previsão.

– Hey! Volte aqui! – gritou Basílio ao começar a perseguir o carro. Noboru gesticulou para que o motorista acelerasse e deixasse

Basílio para trás, quando o carro entrou na outra rua. Basílio xingou em voz alta e voltou a atenção para Suzuku. Ela, nitidamente em choque, estava num choro convulsivo. Asami abraçara a perna de Basílio, como sempre fazia com alguém em quem confiava quando estava com medo.

– Não chore, menina, prometo que ele não vai mais voltar – pediu o grandalhão e pôs a mão no cabelo dela.

– Você também sentiu? Baroon pousou sobre o muro da casa ao lado.

Page 302: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 302 ×

– É dele que vem o obsessor – concluiu Basílio, ajudando uma Suzuku de cabeça baixa e olhar envergonhado, a ficar de pé. – E tenho uma notícia pior ainda... O homem que ameaçava as duas é o mesmo de minha previsão. Foi ele o assassino da cavaleira!

– Bem, isso é relativamente importante. No entanto, senti algo pior ao redor daqueles homens. Eu diria que reconheço aquela aura... Eu poderia segui‑los, mas se essa energia é de quem penso, é melhor que fiquemos longe até termos um plano seguro. Não podemos ser re‑conhecidos agora.

– Conhece? – estranhou Báz; envolveu a mulher com o braço esquerdo e segurou a mão de Asami com a outra.

– É de Zaburim, mas não é seguro falar disso aqui – grunhiu a guia, farfalhando as asas.

O cavaleiro guiou as duas japonesas para a casa.

Oliver chegou cedo à casa de Kotaro. Após insistir para voltar, o oriental fez a sua vontade. Badeck correu do carro para fora enquanto o portão fechava. Ao entrarem na casa, Basílio aguardava‑os sentado no sofá; a cara desiludida de Oliver contrastou com a vitoriosa de Basílio.

– Vou preparar o almoço – anunciou Kotaro quando retirou o ca‑saco e foi para a cozinha.

– Tenho duas notícias: – disse Oliver, sentando no outro sofá amarelo queimado – uma boa e outra má.

– Diga a boa primeiro.– O show é real – confirmou Oliver, esfregando os cabelos. – E a

notícia má é que ele aconteceu no ano passado e não há nenhuma pre‑visão para este ano.

Basílio riu nervoso. – Tá brincando comigo, não é?– Não – Oliver escorou‑se para trás. – A sua previsão foi, na rea‑

lidade, uma visão do passado. – Não pode ser! Você mesmo disse que cavaleiros tinham previ‑

sões e não visões! – exclamou Basílio incrédulo.– Estou mais surpreso do que você! – afirmou Oliver. – Badeck

disse que é raro acontecer uma visão. Normalmente cavaleiros estão su‑jeitos a antever mais o futuro do que o passado. Pelo menos minhas pre‑visões são mais exatas do que as suas! Por que eu não tive essa previsão?

– Não se altere comigo – repreendeu Basílio consternado. – Deve existir algo que não estamos vendo. E antes que entremos em atrito, eu tenho algo para lhe contar.

– O que pode ser mais importante do que isso?

Page 303: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 303 ×

– Hoje fui até a praça com Baroon e, por acaso, Suzuku e Asami, ao tentarem atravessar a rua foram interceptadas por três indivíduos, num carro. Eles discutiram e, quando iam fazer mal a Asami, eu as aju‑dei. Coloquei‑as no quarto, dei‑lhes um pouco de chá e estão lá desde então. E sabe o principal? O obsessor que estava no quarto de Asami pertence ao mesmo homem que assassinou nosso próximo cavaleiro. Baroon disse que a energia desse homem pertencia a Zaburim.

– Zaburim? – repetiu Oliver.– Ela não me explicou ainda, preferiu esperar que você chegasse. – Você está certo que o homem que abordou ela é o mesmo de sua

visão? – questionou Oliver, surpreso. – Estamos mais perto do outro cavaleiro do que pensamos. Agora

resta saber se isso é uma coincidência ou algo mais – comentou Báz.– Temos que encontrar esse homem novamente! – disse Oliver.– Baroon acha melhor não... Temos que manter a nossa identida‑

de em sigilo até que tenhamos um plano.Basílio deu passagem para Baroon entrar ao abrir a janela, e o cão,

ao colocar‑se de pé, apoiou as patas no batente para participar da con‑versa. O corvo pousou sobre o sofá.

– Quem é Zaburim? – perguntaram Oliver e Basílio ao mesmo tempo, em voz baixa.

– Zaburim é o demônio mais procurado da Terra. Nenhum dos cavaleiros do Chamado conseguiu encontrá‑lo até hoje... Sabe‑se que ele controla milhares de almas e mantém negócios ilegais tanto aqui na Terra, como na Terra‑Inversa – contou Badeck. – Segundo Baroon ele pode estar aqui mesmo no Japão.

– E como vamos pegá‑lo para saber sobre o paradeiro do terceiro cavaleiro? – perguntou Oliver, pensativo.

– Zaburim conhece a tudo e a todos. Não me surpreende que ele possa estar envolvido com a suposta morte do cavaleiro, porém acredito que o motivo do assassinato esteja relacionado a um de seus negócios e não à identidade do cavaleiro em si.

– A previsão pode não ser realmente aquilo que mostrou – con‑cordou Basílio.

– Mas se Zaburim é um demônio que ninguém, até agora, achou, porque nós conseguiríamos encontrá‑lo? Como pode ter tanta certeza de que ele não pegou o próximo cavaleiro por causa de seu Mantra de Luz? – questionou Oliver.

– Zaburim não iria desejar um Mantra de Luz porque já possui um – revelou Baroon. – Uma criatura não sendo um cavaleiro da Terra‑In‑versa não pode estar em posse de mais de um Mantra de Luz aqui na Terra ou acabaria exterminada imediatamente pelo excesso de energia.

– Com exceção de Baroon, ninguém mais o viu – explicou Bade‑ck. – Ele era um cavaleiro da Terra‑Inversa que desertou, adquiriu um

Page 304: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 304 ×

corpo humano como fez Shafa, e decaiu para demônio quando morreu. Ela foi guia de Zaburim... E o conhece melhor do que ninguém.

– Eu achava que demônios nasciam demônios.– Não necessariamente, Oliver. Qualquer criatura que almeja po‑

der, força e tem uma ambição enorme pode se tornar um. Isso deve ser negociável entre os demônios, mas não é muito aconselhável. Existem muitas traições e acordos mal feitos – disse Baroon indiferente ao fato de Zaburim ter sido seu cavaleiro. – Ele poderá nos ajudar e certamente sabe onde está nosso próximo cavaleiro.

– Receber a ajuda de um demônio não é lá aconselhável – supôs Oliver. – Mas, se isso nos ajudar, então iremos encontrá‑lo.

– As minhas palavras são as de Oliver.– Atzáveri – disse Badeck.– O que quer dizer com isso? – indagou Oliver sem compreender.– É o cargo que um demônio tem quando, assim como Zaburim,

consegue dominar tantas almas. Existem ao todo oito Atzáveris pelo mundo e oito Dítzamos, ou anjos com missões de extrema importância na Terra atualmente. Eles sempre vêm em pares distintos para este mun‑do. Esse é o cargo mais forte e importante que existe para essa categoria de entidades. Não é normal que um demônio ou um anjo consiga ficar na Terra sem ter uma missão como objetivo. Zaburim é do tipo que não aceita o comando de ninguém. Logo ele não possui vinculo com o infer‑no e seus habitantes. Ele é do tipo independente – explicou Baroon. – É preciso ser muito poderoso para estar na Terra sem possuir uma missão. E Zaburim é um deles... Não devemos enfrentá‑lo em hipótese alguma!

– Mesmo nós como cavaleiros? – questionou Oliver perturbado. Precisava recorrer a Zaburim, mas e se ele não fosse do tipo “amigo”? – Não podemos enfrentá‑lo caso seja necessário?

– Os Atzáveris conseguem usar seus poderes com mais intensida‑de na Terra do que os cavaleiros da Terra‑Inversa. Em um combate no plano espiritual teríamos mais chances – comentou Badeck, pensativo. – Sinto que não é uma boa ideia visitá‑lo. Iríamos despertar‑lhe a atenção, há outras formas de encontrar o cavaleiro sem abordá‑lo.

– Não tememos nada e nem ninguém. Se Zaburim é tão poderoso assim e está ligado à morte do cavaleiro, ele será capaz de nos dar as pistas de que precisamos – decidiu Oliver. – Mesmo que sejam notícias das quais já saibamos.

– Zaburim controla homens poderosos e possui uma rede de al‑mas subjugadas a ele que podemos usar – acrescentou Baroon. – Feliz‑mente, Zaburim tem um ponto fraco.

– Que tipo de fraqueza?– Ele é sujeito a bebidas. Qualquer tipo de bebida alcoólica pode

torná‑lo mais “passivo”.Basílio e Oliver trocaram um rápido olhar.

Page 305: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 305 ×

Kotaro surgira na sala com a impressão de ter visto um vulto ne‑gro sair voando pela janela.

– A comida está pronta.

A jovem ajeitou os óculos escuros e pôs o gorro preto na cabeça. A partir daquela noite, segundo os noticiários, o tempo começaria a esfriar muito. E frio no Japão era sinônimo de casacos e proteção ex‑cessiva para não pegar pneumonia. Ela fechou o zíper do casaco cinza, apanhou a mochila e conferiu se os cabelos negros, curtos e espetados combinavam com o visual. “Odeio a escola...” pensou ela, fechando a porta ao sair. “Ou melhor, odeio sair de casa.”

– Bom dia, Ayame‑chan! – cumprimentou a faxineira que esfrega‑va o piso do andar. – Hoje fará muito frio, né?

– Os jornais dizem que sim – confirmou a oriental, gentilmente sorrindo para a mulher idosa. – Tenho uns biscoitos que meu pai me deu e eu não gosto muito, passe lá no apartamento à noite.

– Obrigada, obrigada! – agradeceu a faxineira, inclinando‑se leve‑mente. – Tenha um bom dia!

Ayame morava com seu pai adotivo, num apartamento simples da cidade de Chiba, a duas quadras do metrô. Estudava em Tóquio numa escola chamada Uchida‑sensei7, próximo ao aeroporto Internacional Haneda. Ela era cumprimentada por alguns moradores locais ao atraves‑sar a rua e passar por pequenas lojas movimentadas. Esbarrou em uma senhora quando acenou para seu pai, cozinheiro que trabalhava num restaurante na mesma rua e que, no momento, fumava seu cigarro.

– Olha por onde anda, mocinha – disse a senhora gentilmente. – Desculpe. Ayame parou diante da loja de mangás de que tanto gostava e

analisou as novidades expostas atrás do vidro do mostruário– Aya‑chan8! – chamou o japonês rechonchudo no interior da

loja. – Chegou o novo volume que você queria!– Ih, eu não tenho dinheiro agora! – constatou ela, conferindo a

carteira no bolso do casaco. – Amanhã eu venho comprar...O ruído alto de carros derrapando na pista interrompeu sua fala.

Um veículo que descia a rua perpendicular àquela colidira com a lateral de passageiro de um táxi estacionado para o embarque de uma senhora. Outro terceiro veículo desavisado batera na traseira do táxi atravessado

7 O sufixo “‑sensei” é usado no Japão para chamar professores ou mestres de outros tipos.8 “‑chan” é um sufixo para designar afeto entre pessoas com intimidade. Embora sirva para ambos os sexos, é mais usado para mulheres e crianças.

Page 306: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 306 ×

e carregara os dois carros acidentados mais alguns metros pela rua. As pessoas mais próximas correram para acudir os acidentados que saíam dos carros. Cacos de vidro, metais e um pouco de sangue confeitavam não só a pista, mas até o único corpo que tinha sofrido as consequências.

– Meu neto! – exclamava a senhora que topara com Ayame minu‑tos atrás. – Meu neto!

Um rapaz que não deveria ter mais do que vinte anos de idade estava prensado entre a traseira do táxi e a frente do outro veículo. Ele estava aparentemente desmaiado e, quando um homem veio acudi‑lo, seu coração já não batia mais. Ayame afastou a senhora que chorava para que não visse o corpo de seu neto. Quando a tocou, sua vista turvou e um puxão forte a trouxe de volta para a realidade. No segundo seguinte Ayame estava de pé, na calçada, acenando para um conhecido. Olhou para a rua, que não tinha nenhum carro batido ou um morto, e deduziu que o acontecido não tinha passado de mais uma visão. Uma das cente‑nas que já tivera. A senhora esbarrou nela “novamente.”

– Olha por onde anda, mocinha – disse a senhora gentilmente, como minutos atrás.

– D‑Desculpe...Ayame continuou caminhando e olhando por sobre o ombro.

Um jovem rapaz, idêntico ao acidentado da previsão, abordou a senho‑ra e abraçou‑a.

– Vó! – exclamou ele. – Desculpe o atraso, mas tive que ajudar minha mãe com umas sacolas!

– Sempre ajudando os outros, não é? – brincou a senhora.– Aya‑chan! – chamou o japonês rechonchudo do interior da loja

de mangás. – Ei, espere! Aonde você vai?– Me deixa pagar o táxi dessa vez – disse o neto, juntando a mala

da avó e correndo para abrir o porta‑malas do táxi recém estacionado.Ayame segurou o braço do rapaz, e puxou‑o rapidamente de volta

para a calçada. – O que você... O que você está fazendo? – perguntou o garoto,

tentando se desvencilhar dos braços dela.– Não olhe! – exclamou ela, virando o rosto para o outro lado. A senhora correu para juntar os óculos que haviam caído da bolsa

perto do pneu traseiro esquerdo quando Ayame puxou o rapaz. No ins‑tante seguinte o acidente se repetira, porém não era o garoto que estava prensado entre os carros e sim a avó. Tão rápido fora o acontecimento que toda a barulheira alta fizera seus pelos da nuca arrepiarem‑se. O rapaz, perplexo, perdera de ver sua avó ser esmagada pelos dois carros, mas sentira na pele a sensação de perda. Duas pessoas que assistiam à cena de dentro da loja correram para segurá‑lo e Ayame largou‑o, afas‑tando‑se rapidamente da multidão que se formava. Era sempre assim... Desde criança via as pessoas morrerem da pior maneira. E, como se não

Page 307: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 307 ×

bastasse ver o futuro, suas visões tinham uma maldição: deveria esco‑lher alguém para morrer quando previa uma morte, porque a morte não saía de mãos vazias. Normalmente ela não se envolvia em substituir as pessoas que morriam, mas dessa vez fora obrigada a intervir e escolher: ou o garoto com uma vida inteira pela frente ou uma senhora idosa e com mais alguns poucos anos de vida.

– Desculpem mais uma vez! – pediu Kotaro. – Mas recebi uma liga‑ção do aeroporto e eles pediram que eu fosse com urgência para lá; o outro supervisor de segurança está doente e precisou ir para casa.

– Tudo bem – disse Oliver, acompanhando‑o até a porta. – Nós nos viraremos agora à tarde. Pretendo dar uma volta pela cidade com Basílio.

– Caso Suzuku resolva sair do quarto, diga a ela que precisamos conversar... – pediu Kotaro, calçando os sapatos. – Nos vemos à noite!

– Esse cara tem algum problema? Eu não entendo! A mulher se tranca no quarto por duas horas e ele não faz nada? – perguntou Basílio.

– Kotaro sofre muitas pressões psicológicas, Báz – contou Oliver que conversara bastante com o japonês. – Do trabalho, da mulher, dos pais e dos sogros. Ele está prestes a perder o emprego e por isso nos aceitou aqui. A mulher está sempre em depressão por causa da filha... Os pais acham que ele é um homem bem sucedido e vivem cobrando isso. E os sogros são pobres, passam o tempo pedindo dinheiro empres‑tado para Kotaro, que não o tem sobrando. E, ao mesmo tempo, tenta nos manter satisfeitos para que não recorramos à justiça a respeito do acontecido no aeroporto.

Basílio suspirou. – Ele tinha que tomar alguma decisão. Passar a vida como capacho

não vai levá‑lo à felicidade. Acho que devemos conversar com Suzuku, ela deve saber algo sobre Zaburim. Ou pelo menos nos dizer onde se encontra o assassino do nosso cavaleiro.

Oliver subiu as escadas rapidamente e bateu três vezes na porta. – Podemos entrar?Diferente da reação que a dupla esperava, ela abriu a porta. Seu

rosto estava inchado e seus olhos vermelhos de tanto chorar. – Entrem. Basílio entrou primeiro. Pequeno e bem organizado, o quarto era

modesto. Havia a cama, armário, escrivaninha e uma espécie de móvel baixo sobre o qual havia várias fotos. Asami dormia enrolada nas cober‑tas. Suzuku estendeu um tapete rosa sobre o piso. Sentou‑se e cruzou as pernas, convidando‑os a fazer o mesmo.

– Você está bem? – perguntou Oliver, adivinhando os pensamen‑

Page 308: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 308 ×

tos de Basílio.– Não muito – respondeu ela.Basílio sentou. – Gostaria de agradecer o que fez por mim e Asami. – Ela disse que...– Depois você me traduz. Converse com ela e apenas me cite as

partes importantes – antecipou‑se Báz. – Você sabe o que perguntar.– Ele só fez o que achou melhor na hora – disse Oliver. – Não que‑

remos pressioná‑la, mas queremos que você nos fale sobre o que aconteceu.– É difícil falar sobre isso, afinal somente eu e Asami sabemos a

respeito. É vergonhoso demais para uma mulher se subjugar tanto, eu sei, mas foi preciso. Aquele que Basílio viu hoje foi Noboru, um homem ambicioso e que trabalha para um diretor de hospital chamado Matsuo Fuuma. Quando levamos Asami até o médico para descobrir o porquê de sua mudez, consultamos Fuuma. Ele era um homem muito educado e tinha um ar poderoso. Tratou‑nos muito bem e prometeu arranjar uma cura para Asami.

De ouvidos atentos, os cavaleiros ouviam‑na. Mesmo não a en‑tendendo, Basílio compreendia os sentimentos dela pelas expressões.

– Como Kotaro é muito ocupado, tive que levar Asami várias vezes ao consultório sem ele. Fuuma era um homem dedicado no que fazia e sempre pedia para que voltássemos. O tratamento estava dando certo, pois minha filha voltava a pronunciar sons. Então, depois de algumas consul‑tas, aconteceu algo que mudou nossa vida para sempre. Eu ia entrar no consultório e parei no corredor quando percebi que Matsuo não estava so‑zinho... Ele conversava com um homem no telefone. Ele... Ele falou coisas horríveis a respeito de comércio ilegal de órgãos! Foi... Foi terrível ouvir aquilo. Quando eu ia recuar Noboru, que estava atrás de mim sem que percebesse, me segurou. Me empurrou para dentro da sala, contou para Matsuo e me trancou na sala com ele. Matsuo me agarrou e teve uma vio‑lenta mudança de humor. Ele tentou me molestar na frente de Asami, mas eu consegui revidar. Ele disse que se eu ou Asami contássemos aquilo para alguém, mandaria torturar e matar Kotaro. Eu... me senti tão vulnerável. Não voltei mais lá, mas eu era sempre seguida por Noboru. Há duas sema‑nas Noboru veio com a história de que Fuuma queria “se casar comigo”. Queria se redimir e faria isso me dando uma vida boa. Mas... Eu já tenho uma vida boa. – Ela pausou, enxugando o rosto. – Tinha uma vida boa. Mesmo que não pareça, eu amo Kotaro.

– Eu... Eu sinto muito – disse Oliver compadecendo‑se. – As ameaças continuaram e as visitas de Noboru sempre foram fre‑

quentes. Ele dizia para Asami não falar nada sobre o que acontecia ou iria cortar sua língua fora.

Ela levantou, não contendo o choro e correu para o banheiro. Oliver traduziu o que ela havia contado para Basílio.

Page 309: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 309 ×

– Essa mulher sofre muita coisa... – murmurou Basílio. – Matsuo Fuuma, – repetiu Oliver – esse homem sabe onde se

encontra Zaburim e Noboru, o assassino. Devemos procurá‑lo. A conversa curta foi interrompida pelo retorno de Suzuku. – Suzuku, onde fica esse hospital?– Em Chiba, – respondeu ela com a voz embargada – por quê?Oliver retirou do bolso um maço de notas de ienes que trazia

consigo e entregou para ela. – Tome isto. Pegue Asami e vá para o hotel mais longe possível. Use

o metrô no horário mais movimentado. Ligue para Kotaro e diga para ele não sair do aeroporto por enquanto, ele ficará seguro lá.

– O quê? Ela segurou o dinheiro como se fosse algo perigoso.– Apenas faça o que pedi. Eu e Basílio temos um assunto para resol‑

ver com Fuuma. – Você não pode! Ele irá atrás de nós... – receou ela.– Por isso mesmo peço que vão para longe. Ele tem algo que diz res‑

peito a nós também. Leve apenas dinheiro, se precisar de algo compre de‑pois. Essa história acabará logo, Suzuku, eu prometo, e você poderá voltar para a casa. Dê a Kotaro alguma pista quando ligar, ele saberá encontrá‑la.

O cavaleiro levantou. – Pegue nossas coisas, Basílio, vou falar com Badeck. Basílio segurou as mãos de Suzuku.– Vai dar tudo certo, – prometeu ele – acredite em nós.

Page 310: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 310 ×

Capitulo 25 Improvisando

– Baroon, dê uma olhada nas redondezas – pediu Basílio. Os dois cavaleiros acabavam de chegar à capital de Chiba. O lu‑

gar era cheio de pessoas. Não muito diferente de São Paulo, os carros entupiam as avenidas. O hospital Torres de Nagashi havia sido cons‑truído há dois anos e ainda supria a cidade com seu aspecto de novo. O táxi deixou‑os na entrada do vasto estacionamento dividido em dois terrenos bem cuidados, próximo ao primeiro dos três blocos. Cada blo‑co hospitalar era formado por três complexos de dez andares. A torre um, destinada à área de infectologia, era a mais provida de tecnologia. Ambulâncias entravam e saíam da Torre dois, que era montada para atendimentos de urgência. E a Torre três movia um grande número de médicos e consultórios.

– Como vamos encontrar Fuuma? – perguntou Oliver abismado. – Deve haver milhares de pessoas aí dentro!

– Não vai ser tão difícil assim. Esse lugar é um hospital de ponta. Além disso, Matsuo é um diretor, não um médico qualquer.

– Por isso mesmo! – disse Oliver secamente. – Imagine a seguran‑ça desse lugar! Ou você acha que Matsuo vai falar tudo na boa vontade para nós?

– Na hora improvisamos – avaliou Basílio e dirigiu‑se à entrada da Torre um.

Três carpas de concreto montavam um grande chafariz na entrada do primeiro complexo. Várias pessoas conversavam descontraídas, sen‑tadas nos bancos dispostos ao redor do monumento. Ao entrar, os dois depararam‑se com a enorme recepção de luxo onde seis funcionárias japonesas trabalhavam, colocadas na mesa circular situada no centro do hall. O efeito da iluminação amarelada refletida no piso de mármore en‑cantou Basílio. Penduradas nas paredes ou em suportes no chão, placas escritas em japonês e inglês apontavam as direções a serem tomadas. Uma planta dos três complexos desenhada em um biombo de vidro, logo na entrada, tinha luzes coloridas para localizar os recém chegados.

Page 311: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 311 ×

– Quando me disseram que os japoneses eram criativos, não acre‑ditei – comentou Basílio enquanto acompanhava Oliver até a recepção.

– Com licença – Oliver chamou uma informante ruiva. Ela não lhe deu atenção.– Moça...Ocupada em digitar coisas no computador de última geração, ela

não atendeu Oliver. Ignorado, ele desferiu um tapa sobre o balcão.– Desculpe‑me, senhor. Boa tarde! – cumprimentou ela educada‑

mente apesar do comportamento de Oliver. – Como podemos lhe ajudar? – Tenho uma consulta com Matsuo Fuuma – improvisou Oliver. –

Vim de longe para me consultar com ele e estou perdido. Como faço para encontrar seu consultório?

– Um momento. Ela digitou rapidamente no teclado do computador.– Acho que o senhor veio no dia errado, Matsuo apenas atende pa‑

cientes nas quintas‑feiras. – Você está errada! – disse Oliver sério. – Ele disse que me faria

uma exceção. Viemos até aqui para conversar sobre algo do interesse dele. Recebemos ordens expressas para estarmos aqui... Se eu precisar ligar para ele será para despedi‑la e não me pedir para subir ao seu escritório!

Quando Oliver fez menção em falar com Basílio, ela antecipou‑se.– Acho que li errado, o senhor está certo – desculpou‑se ela, ten‑

tando desfazer o engano. – Após o término da reunião de terça‑feira, ele estará em seu escritório. Peguem o elevador quatro, nono andar, sala 901.

– Da próxima vez, é melhor tomar cuidado com quem você fala. – ameaçou Oliver.

– Acha que deu certo? – perguntou Basílio, preocupado.– Ela é somente a recepcionista – anunciou Oliver, entrando no

elevador. – Sabe apenas que Matsuo não atende fora das quintas‑feiras. Devemos conversar com a secretária dele.

– Como você sabe?– Havia uma placa em homenagem a Matsuo na entrada. – Oliver

apertou o botão do nono andar. – Ele foi nomeado o diretor da Torre no ano passado. Ele é um homem importante, deve ter um espaço exclusivo para ele com uma agenda especial.

– E o que você pretende fazer? – estranhou Basílio. – Improvisar, como você mesmo disse. Eu dei uma analisada rápi‑

da na planta do lugar e há uma área para funcionários no segundo andar – raciocinava o cavaleiro, saindo do elevador e tomando o corredor. – A segurança já deve estar de olho em nós, há câmeras por todo lugar. En‑tão teremos de disfarçar.

O corredor era largo e cheio de portas brancas numeradas de 901 a 910, o escritório de Fuuma ocupava a melhor localização, na ponta do corredor. Vidraças ovais davam o direito à vista de jardins floridos entre

Page 312: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 312 ×

as Torres. Oliver abriu a porta metálica do 901. Chegaram a uma nova sala, repleta de assentos de luxo e quadros importados. Uma secretária ocidental sentada atrás do balcão estava pronta para recebê‑los.

– Boa Tarde, – disse ela em japonês – em que posso ajudá‑los?– Nós precisamos falar com Matsuo Fuuma. – Ele saiu para atender uma emergência na sala de reuniões – in‑

formou ela. – Mas podemos marcar uma hora com ele. Nesta e na outra semana ele estará muito ocupado.

Oliver vasculhou a mesa dela com um olhar minucioso.– Algum dia livre?A secretária conferiu a agenda no computador.– Quinta‑Feira, dia 25 de março, às dez horas da manhã está bom?– Bem, eu pretendia vê‑lo logo, mas está bem – concordou Oliver. – Na realidade, está com sorte. Um paciente acabou de desmarcar,

senão o senhor levaria meses para agendar uma consulta. Nome, por favor. – Ichiro Chon – mentiu Oliver, sorrindo.– Marcado então, senhor Chon – sorriu a secretária. Oliver assentiu para ela e retirou‑se.– Ele está mesmo em reunião, havia umas anotações sobre a mesa

que confirmam minhas ideias: vamos ter que recorrer para o plano B.– E nós tínhamos um plano A, para começar? – ironizou Basílio,

chamando o elevador. – Ei, aonde você vai?Discretamente, Oliver tomou o segundo corredor ao lado direito

do elevador, que os levaria a outros dois corredores separados por vidra‑ças espessas e foscas.

– Deve ser por aqui. – O que exatamente deve ser por aqui? – indagou Basílio, confu‑

so. – O que você planeja?Oliver, apressadamente, chegou ao final do primeiro corredor va‑

zio. Retornou e tomou o outro corredor; nele, um elevador tarjado com a placa “para funcionários” os esperava. Não era luxuoso como aquele pelo qual subiram. Oliver apertou o botão do segundo andar que, dife‑rente dos outros, era azul claro e não amarelo.

– Certo, agora me escute. Estamos indo para o piso de funcioná‑rios, já tenho um plano em mente. Iremos trocar de roupas com dois funcionários e depois iremos para a sala de reuniões. Faz parte do plano você não falar nada, pois estará temporariamente mudo.

– Tome cuidado para não chamar atenção. – Foi a única coisa que Basílio disse em relação ao plano.

Os dois chegaram a um corredor completamente diferente do anterior: mais simples com paredes brancas e piso de lajota. Nesse mo‑mento alguns funcionários, usando macacões verdes de mangas com‑pridas, transitavam, transportando equipamentos. Oliver abordou um oriental baixinho que carregava uma caixa.

Page 313: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 313 ×

– Com licença! Eu e o meu amigo mudo viemos para o Japão e nos chamaram para trabalhar aqui. Onde encontramos o vestuário?

O funcionário transformou a expressão preocupada em satisfeita.– Colegas novos do exterior que falam nossa língua, interessante! –

alegrou‑se ele. – Sigam para lá e virem à direita! Encontrarão duas portas, entrem na azul!

– Muito obrigada! – agradeceu Oliver.O vestuário era extenso e repleto de armários nomeados em ja‑

ponês. Não havia quase ninguém àquela hora, com exceção de três fun‑cionários que conversavam animadamente. Quando um deles calçou os tênis e saiu, Oliver aproximou‑se dos outros dois.

– Com licença. Os dois orientais os encararam. – Vocês estariam interessados em beber algo? – perguntou Oliver,

coletando duas notas de dinheiro do bolso. – Como assim? – estranhou o oriental mais alto. – Por que nos

ofereceriam bebida, sem mais nem menos?– Meu amigo aqui, – Oliver mostrou Basílio – tem problema de

fala. Viemos ao Japão justamente para encontrar com um médico famoso chamado Matsuo Fuuma, porém ele não quer nos atender. Dizem que ele é um homem fenomenal! Precisamos resolver esse problema ou meu amigo jamais poderá voltar a falar novamente.

– E o que a nossa bebida tem a ver com isso? – questionou o orien‑tal mais baixo, um tanto interessado.

Basílio lançou um olhar de “acho que isso está funcionando” para Oliver, incentivando‑o a continuar.

Instantes depois, Oliver ajustou o macacão enquanto observava, através da pequena janela do vestiário, os dois orientais que saíam da Torre utilizando as roupas trocadas.

– Você foi ótimo! Eles caíram direitinho em seu plano, mas acho que não dispomos de muito mais dinheiro, então pare de comprar pes‑soas – retrucou Basílio e fechou o cinto.

Ambos analisaram o mapa da localização da sala de reuniões feito por um dos orientais; ela ficava na mesma Torre, porém no décimo an‑dar. Basílio terminou de vestir‑se ao colocar o chapéu branco.

– Abordaremos Matsuo de uma maneira bem conveniente.Antes de prosseguirem, passaram por uma sala de porta branca.

Oliver apanhou duas vassouras e Basílio, o carrinho de limpeza. – Esse tal Zaburim deve ser mesmo um cara perigoso – comentou

Basílio já dentro do elevador.– Não tive muito tempo para pensar nisso – suspirou Oliver. – Eu

estou cansado. Não sei se você percebeu, mas estamos na correria. As coisas estão acontecendo muito rápido para nós. Olhe para a sua cara...

O reflexo no fundo espelhado do elevador mostrava o rosto enru‑

Page 314: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 314 ×

gado, os cabelos grisalhos e as expressões murchas de Basílio. Se não ti‑vesse feito a barba no dia anterior à viagem, estaria com dez anos a mais.

– Lembre‑se, somos cavaleiros e não humanos. Dormir e comer jamais terão os mesmos sentidos.

– Talvez. Primeiro vamos atrás de Zaburim, depois de Noboru. Assim, irá demorar para que futuros inimigos nos encontrem aqui – murmurou Oliver, mas sabia que o parceiro estava certo.

O carrinho de limpeza estava com defeito e produzia um ruído irritante com as rodinhas. A sala de reuniões, situada no décimo andar, ficava próximo ao elevador social e era escoltada por dois seguranças alemães de ternos azul‑escuro. Basílio baixou o rosto para não eviden‑ciar a impaciência perante a imponência deles.

– São alemães – disse Oliver.– Eu diria que alguém importante está aqui.Oliver concentrou‑se na gaveta “interna” que possuía e acessou o

“documento” que lhe permitia falar outras línguas. Caso falassem ale‑mão eles suspeitariam, então seria melhor começar com um inglês.

– Com licença, – pediu Oliver educadamente – o senhor Matsuo pediu nossos serviços, podemos entrar?

– Identificação – disse o segurança alto e de cabelos ralos e louros, estendendo a mão. O outro, de olhos azuis e cabeça calva, manteve a atenção em Basílio.

– Eles estão pedindo nossa identificação. – Diga que não temos! – Basílio deu de ombros. – Trabalhamos

aqui, ora. Por que deveríamos carregar identificação?– Não estamos com ela, senhor. E acho que não haveria necessidade

de portar uma, pois trabalhamos como faxineiros de hospital e o fato de estarmos aqui é a nossa permissão e identificação.

Os seguranças riram rudemente– Acho que você não entendeu – O segurança calvo estalou os de‑

dos. – Ninguém passa sem identificação enquanto estivermos aqui.– Queremos fazer nosso trabalho, senhor – falou Oliver impaciente.

– Se possui alguma reclamação contate o diretor desse hospital. Nós apenas seguimos as regras de trabalho que são impostas. Quer opinar? Faça, mas não conosco.

Basílio entendia inglês e ouvia a conversa atentamente enquanto colocava as luvas brancas presas no suporte do carrinho.

– A lei 278 do código civil japonês, cláusula sete, parágrafo dois per‑mite que possamos andar no setor de trabalho à exceção de áreas impostas pelo próprio empregador. Nosso empregador permite que andemos aqui – Oliver estendeu o dedo. – Estudamos os principais códigos civis e penais do Japão para trabalharmos aqui.

Os guardas não souberam como se defender da acusação.– Portanto vocês não possuem o direito de nos impor qualquer tipo

Page 315: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 315 ×

de ordens porque não são trabalhadores ou, muito menos, nossos superiores – prosseguiu Oliver. – Então, se não nos deixarem passar, seremos obriga‑dos a executar nossos direitos como trabalhadores desse lugar.

– Acho que não precisamos chegar a tanto, – desculpou‑se o segu‑rança careca – não queremos problemas com o Japão e seus cidadãos.

– E nós também não queremos – Oliver sorriu cinicamente. – Acho que podemos passar agora, não?

– Certo, – rosnou o careca, abrindo a porta e dando espaço para que passassem – schwein9.

Basílio descartou a ideia de que o segurança lhes agradecia e igno‑rou o que significava schwein. Entraram na sala de espera. O lugar estava impecavelmente limpo e tinha um sofá e uma televisão ao lado da qual via‑se uma porta branca com as palavras “Sala de Reunião” entalhadas. Oliver deduziu que Matsuo estava atrás da porta branca.

– Como você sabia dessa lei? – perguntou Basílio assim que fe‑charam à porta. – Ou você...?

– Inventei! – Oliver molhou o pano no balde preso ao carrinho e torceu. – Você não disse que deveríamos improvisar? Além do mais eu estava cursando faculdade de direito e conheço alguns macetes.

A porta da sala de reunião foi aberta impedindo que Basílio fa‑lasse. Um oriental acompanhado de um alemão enrustido chegou onde eles estavam. Oliver agachou‑se e começou a esfregar o piso. Báz jun‑tou o pano seco e começou a tirar o pó da televisão. Matsuo era alto, magro e bem vestido, tinha jeito de boa pinta. Ao passo que o alemão mais parecia um louco que acabava de sair do manicômio. Ambos despediram‑se em inglês quando notaram os faxineiros.

– Foi bom vê‑lo novamente, Alfons – articulou Matsuo, dando um tapa amistoso nas costas do alemão. – Até o próximo negócio.

– Auf wiedersehen – despediu‑se Alfons em alemão e retirou‑se, deixando o trio a sós na sala.

– Eu já disse que não queria ninguém trabalhando nesta sala quando eu estivesse em reunião! – xingou Matsuo. – Quem lhes deu a permissão para entrarem aqui?

– Requisitaram‑nos – respondeu Oliver em japonês. Parou o que fazia e encarou Matsuo, que se surpreendeu ao notar que os dois fa‑xineiros eram ocidentais. – Pedimos perdão por nosso erro, mas apenas fizemos nosso serviço.

– Que seja, que seja, – resmungou Matsuo, arrumando os cabelos curtos e espetados que lhe davam um charme especial – terminem logo aí e vão embora! Estou tentando trabalhar.

Oliver gesticulou para Báz quando Fuuma lhe deu as costas. O

9 Palavra alemã que significa “porco”, também usada como um xingamento.

Page 316: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 316 ×

cavaleiro largou o pano e caminhou até ele.– É ele?– Matsuo Fuuma? – chamou Oliver.– Matsuo‑sama para vocês – corrigiu o diretor impetuosamente,

virando novamente para eles. Fora surpreendido por uma mão pesada que lhe tapava a boca enquanto a outra o envolvia numa chave de pesco‑ço. Oliver introduziu‑se na sala de reuniões e certificou‑se de que não havia nada anormal por lá.

– Pode vir, está vazia.Matsuo tentou desvencilhar‑se do ataque, mas foi impossível. O

atacante, além de ser mais forte, sabia muito bem como defender‑se dos golpes que tentava aplicar. Basílio arrastou o homem para dentro da sala à força e jogou‑o na primeira cadeira que encontrou. Certificou‑se de que não havia nenhum objeto de ponta por perto e manteve‑se pronto para qualquer revide. Oliver trancou a porta. Ninguém os interromperia enquanto aquela sala estivesse fechada.

– Quem são vocês? – indagou Matsuo, horrorizado com o com‑portamento dos faxineiros.

– Cala a boca! – xingou Oliver. Tirou o chapéu e jogou‑o no colo do diretor. – Não tente fazer gracinhas ou o meu amigo vai lhe arrancar os dentes. Ser um diretor impertinente não vai ajudar em nada agora.

Basílio estralou os dedos, imitando o guarda alemão. – Eu sou o diretor desse hospital e nenhum empregado meu irá me

humilhar! – Matsuo pôs‑se de pé e ajustou a gravata.– Basílio – disse Oliver.O cavaleiro agarrou Matsuo agressivamente pela gola da camisa

e deitou‑o sobre a mesa e, com a mão livre, agarrou seu braço e torceu numa posição estranha. Fuuma não resgatou forças para defender‑se; todos os cursos de defesa pessoal que fizera eram inúteis contra aquele homem pavoroso. Encarou o rosto quase que demoníaco do opressor e espremeu a testa, sentindo repulsa por ser tocado por alguém tão sujo.

– Saia de cima de mim!– Vamos falar sobre duas coisas: uma se chamava Suzuku. – Oliver

arrastou uma cadeira e sentou.– Então foi aquela piranha que mandou vocês aqui!Basílio desferiu uma cabeçada na boca de Matsuo.– Pare de gritar, seu imbecil! – ordenou Basílio ameaçador.– É melhor tomar cuidado com as palavras, Fuuma. Aqui, conosco,

você não passa de um homem acuado e sozinho. Cuspindo sangue e alisando o novo corte com a língua, Matsuo

riu nervosamente. – Então seremos civilizados. Vocês me soltam e nós conversaremos

sobre Suzuku.– O outro assunto a ser tratado é Zaburim – interpôs Oliver.

Page 317: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 317 ×

Matsuo parou de se mover e permaneceu estático.– O que você disse?– Zaburim, – murmurou Basílio no ouvido dele – o demônio.– Exatamente, o demônio – ponderou Oliver. – Estamos procu‑

rando por Zaburim e achamos que você sabe onde ele está.– Não faço a mínima ideia de quem ele seja – respondeu Fuuma

nervoso. – Ah, você sabe sim... – Oliver gesticulou para que Basílio o soltas‑

se. – Aquele seu capanga Noboru nos disse, antes de o matarmos, que você sabia onde estava Zaburim.

– Vocês mataram Noboru? – indagou Matsuo perplexo, pondo‑se de pé. – Quem são vocês?

– Acho que agora podemos conversar civilizadamente, certo? – Sor‑riu Oliver, satisfeito que seu blefe tenha surtido efeito.

Matsuo limpou a boca ensanguentada com a manga.– Me falem quem são vocês.– Se fizer o que dissermos... Seremos seus amigos – declarou Oliver,

malicioso. – Não lhe faremos mal se resolver cooperar! Nossa intenção é passar um aviso e buscar informações.

O diretor sentou na cadeira, acuado.– Bem, temos informações de fontes precisas de que você e Noboru

fazem trabalhos especiais para Zaburim – revelou Oliver.– Não sei realmente quem é Zaburim. Sinto muito, mas não posso

ajudá‑los. Quem lhe deu essa informação estava errado.Imaginando que não seria fácil arrancar uma informação, Oliver

suspirou. Diante do olhar aflito do diretor, Basílio estralou os dedos.– Ele não quer colaborar? – perguntou Basílio.Oliver meneou a cabeça negativamente. – Já que você se esqueceu de quem é Zaburim, ele vai lembrá‑lo. – Espere! – exclamou Matsuo antes que Basílio chegasse muito

perto e deformasse seu rosto de tanto batê‑lo. – Eu falo! Eu falo! Eu não conheço Zaburim, apenas ouvi falar a seu respeito. Ele é dono de uma empresa que produz softwares hospitalares chamada Face of Tecnology, in‑clusive nosso hospital utiliza alguns programas dele.

Basílio afastou‑se lentamente. – E o que mais sabe a respeito dele?– Nunca o vi pessoalmente! É só isso que sei.– Isso é mentira! – rugiu Oliver. – Você acha que somos ignorantes? – Esse cara é um cabeça‑dura imbecil – resmungou Basílio e agar‑

rou‑o pelo colarinho.Dessa vez Matsuo reagiu e desferiu um soco no estômago do

atacante. Levantou e tomou uma posição de defesa pessoal. Basílio re‑cuou alguns passos, massageando a barriga para recobrar o ar perdido. Aproveitando a surpresa do adversário, Fuuma aplicou‑lhe dois golpes

Page 318: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 318 ×

espalmados no pescoço e na testa. – Filho da mãe, pare já com isso! – exclamou Báz, caindo sentado. – Isso é por me tocar! Jamais coloque suas mãos imundas em mim!

– bradou o diretor, preparando para desmaiar Basílio. Oliver agarrou o jarro de cristal branco sobre a mesa e quebrou‑o

na cabeça de Matsuo antes que o diretor fizesse mais mal a Basílio. O cavaleiro agachou‑se perto do amigo golpeado.

– O problema desse cara é subestimar demais as pessoas. Você está bem?

– Só fui pego de surpresa, – falou Basílio com o orgulho levemen‑te ferido – eu já ia acabar com ele.

– Eu vi... – ironizou Oliver, ajudando‑o a se levantar. – Vamos ti‑rar os produtos de limpeza e os baldes de dentro do carrinho e colocá‑lo lá, acho que tem espaço o suficiente. Eu vi um banheiro perfeito para usarmos nesse mesmo corredor.

Exercitando os braços doloridos, Basílio foi esvaziar o carrinho.

Matsuo recobrava a consciência lentamente. “O que aconteceu?” pensava enquanto sentia o latejar da dor de cabeça. Lembrou‑se de estar atendendo Alfons, um importante médico da Academia de Medicina Alemã, e de despedir‑se dele. “Por que minha cabeça dói?” pergunta‑va‑se na tentativa de recobrar as lembranças, “duas pessoas... Eu lembro de ver duas pessoas. Funcionários, eram funcionários!” Repentinamen‑te as cenas do último acontecimento bombardearam sua memória. Uma atadura tapava‑lhe a visão.

– Acho que ele está acordando, finalmente – disse uma voz grossa em uma língua que não conhecia.

– Está com a arma aí? – perguntou outra voz, agora em japonês. Matsuo moveu a boca demoradamente. – O que fizeram comigo?O diretor estava abraçado a uma privada com as mãos amarradas

envolvendo o cano metálico que surgia por trás da peça. Os joelhos desnudos tocavam o piso frio amarrados por um conjunto de pano ema‑ranhado ao redor do suporte da privada. Estava apenas de cueca. Os nós dados eram tão perfeitos que ele não conseguia mover um músculo.

– Me soltem! Cadê minhas roupas?– Escuta só, – disse Oliver ameaçadoramente, aproximando a boca

do ouvido dele – se você ousar a dar um grito ou pedir ajuda, iremos des‑cobrir o quanto você aguenta por nos afrontar.

Uma gota de suor frio escorreu pela testa de Matsuo.– Se me soltarem posso pagar‑lhes o que quiserem! – implorou o

Page 319: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 319 ×

diretor. – Eu prometo que cumprirei com o prometido.– Não queremos dinheiro, você sabe disso. Se não colaborar, não

será útil para nós – falou Oliver, sentando na beirada da pia. – Então comece a falar. Quem é Zaburim?

– Eu não posso! – gemeu Matsuo. – Vocês não entendem...Basílio retirou um objeto do bolso traseiro e aproximou‑o da

nuca de Matsuo. O cano frio do isqueiro o fez estremecer assim que tocou a pele pálida, pois lembrava muito a ponta de uma arma.

– Droga! – xingou o diretor, engolindo a seco. – Como lhes disse antes, ele tem uma empresa de softwares de informática. E é isso!

Oliver piscou para Báz, que pressionou mais forte o isqueiro.– É a última vez que aviso. O cavaleiro sentou ao lado da privada e retirou a venda do orien‑

tal. Mostrou‑lhe o maço de cigarros que encontrara sobre a mesa da sala de reuniões e Basílio entregou‑lhe o isqueiro. Matsuo, pasmo, viu o estranho acender o cigarro e recolocar o isqueiro, que antes pensava ser uma arma, no bolso.

– Vou lhe queimar as mãos e arrancar‑lhe as unhas... – ameaçou Oliver enquanto contemplava o cigarro caro. – E se isso não funcionar para que você abra a boca, precisaremos arrancar sua língua fora. Assim nunca mais poderá falar e fará jus ao seu silêncio de agora.

Oliver aproximou a bituca do cigarro do braço de Matsuo.– Certo! Certo! – exclamou quando seus pelos do braço foram

chamuscados. – Eu falo! Ele não faz apenas programas para hospitais, mas também controla dez por cento do mercado negro mundial. – Oliver afastou o cigarro neste momento. – Zaburim negocia com hospitais e ne‑crotérios do mundo inteiro para conseguir órgãos. Quando alguém morre e não aceita doar órgãos, o hospital os retira e leva o corpo ao necrotério, que aceita o óbito e preenche o corpo com órgãos de animais, como porcos. Ele vende barato e, se você multiplicar pelos pedidos que ele recebe, consegue controlar um mercado inteiro de órgãos!

Oliver, abismado, digeriu a informação.– Isso é um absurdo e deve ser mentira!– Você é idiota ou o quê? – riu Matsuo nervosamente. – Política,

dinheiro, negócios. Ícones mundiais, chefes de polícias, políticos, pessoas comuns! Todos já recorreram de alguma forma a Zaburim. Direitos iguais até que a desgraça resolva desovar no seu lago, não é? Ele move o mercado de órgãos, cara. Os corpos que saem desse hospital são enviados para necro‑térios específicos, a meu pedido. Noboru também trabalha para Zaburim... Sua família está há anos servindo o demônio. Ninguém pode contra ele!

Basílio cruzou os braços sobre o peito largo.– E como posso encontrá‑lo?– Ele tem uma filial da firma no centro de Tóquio e sempre está por

lá. Seu nome é humano é Hadakko. – Matsuo falava sem pausar, aqueles

Page 320: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 320 ×

dois estranhos eram mais assustadores do que o próprio Zaburim. – É isso que sei. O que mais querem de mim?

– Como podemos confiar em você? – indagou Oliver. Sabia que ele falava a verdade. – Talvez eu precise realizar algum teste.

Oliver fez menção de encostar o cigarro no braço do diretor, que não reagiu.

– Eu posso ser um homem ganancioso e aparentemente estúpido, – desafiou Matsuo – mas sei discernir uma situação de perigo. Não vou mentir, estando sob ameaça de tortura.

– Acredito em você.Oliver colocou o cigarro na boca do diretor. – Quero perguntar algo – pediu, falando com o cigarro entre os

lábios. – Tenho o direito, dei‑lhes as informações que precisavam.Oliver levantou e arrumou os cabelos com a ajuda do espelho

embutido na parede.– Por que querem falar com Zaburim? – Queremos encontrar alguém e achamos que ele pode nos ajudar –

respondeu Oliver, indiferente. – Prometemos manter sigilo a Zaburim a respeito das informações que você nos passou com uma condição.

– Que condição?– De que não atormentará mais perto de Suzuku, Asami ou Kotaro

novamente. Matsuo pensou um pouco.– Apenas isso?– Saiba que se não cumprir com a sua parte do acordo, não cumpri‑

remos com a nossa. – Oliver foi sincero. – Zaburim não gostará de saber que você resolveu falar sobre a vida pessoal dele.

– Certo, certo! – confirmou o diretor com ares não confiáveis. – Estou de acordo.

Oliver sorriu e chamou Basílio. – Agradecemos pelas informações. – Ei! Vocês não vão de tirar daqui?– Aproveite seu cigarro, – murmurou Basílio – trouxa.– Até a próxima, foi bom negociar com você, Matsuo – despediu‑se

Oliver, fechando a porta ao sair. O diretor baixou levemente a cabeça e deu outra tragada até co‑

meçar a rir. Demoraria pelo menos dez minutos até que Matsuo fosse encontrado no banheiro por outro funcionário. Meia hora depois No‑boru ligaria para ele. Eles o haviam enganado muito bem com pequenos blefes, mas Matsuo sabia que tinha sorte em estar vivo. Os estranhos não poupariam sua vida se não cooperasse.

– Esse demônio é perigoso – considerou Basílio após saírem do hospital. Ambos desciam uma rua sempre acompanhados do alto por Baroon.

Page 321: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 321 ×

– Ele deve fazer quase todo o comércio de órgãos e controla a tudo e a todos... Conspiração, controle, suborno. Zaburim está na raiz de todo o mal que corrói a sociedade.

– Isso me assusta! Isso acontece abaixo dos nossos narizes e não sabemos... O que mais existe por aí sem o nosso conhecimento?

– Muitas coisas, muitas – avaliou Oliver, chamando um táxi. – Va‑mos para casa. Precisamos descansar e reabastecer. Amanhã pela manhã iremos procurar por Zaburim.

Page 322: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 322 ×

Capitulo 26 Império de Chamas

Oliver, por mais sono que tivesse, não conseguia descansar. A casa agora pertencia, temporariamente, a eles. Apesar dos cuidados de Badeck e Baroon, ao fazerem a ronda do perímetro, a insegurança os atormentava. Um estranho pressentimento familiar inundou‑o, instan‑taneamente, quando um ruído forte estourou no banheiro do quarto em que estavam. Basílio acordou de supetão e postou‑se no meio do quarto, segurando a faca que pegara da cozinha e guardara debaixo do travessei‑ro. A vida de cavaleiro o estava deixando paranoico.

– O que foi isso?Os ruídos de passadas que persistiam no banheiro, por fim, cessa‑

ram. Oliver fez sinal para que Basílio permanecesse calado.– Tem alguém ali.– Alguém? – questionou Basílio, encostando‑se à parede do quar‑

to e deslizando até o banheiro. – Eu pego e você nocauteia. – Espere, eu acho que conheço essa presença. Oliver parou ao lado da porta do banheiro e gesticulou para que

Basílio ficasse atento. Empurrou a porta de correr e deslizou o olhar pela abertura. Sensações de surpresa, satisfação e alívio brotaram em Oliver. Dentro da banheira, um amontoado de trapos e cabelos brancos enrolava‑se na cortina arrancada do suporte. Kale afastou para longe a cortina enroscada na sua barriga e tentou acomodar‑se no pequeno es‑paço da banheira, erguendo o rosto enrugado e abatido para Oliver. Suas sobrancelhas espessas dividiram a testa em duas quando as soergueu.

– Kale? – indagou Oliver, ainda incrédulo. – O que você faz aqui?– Me ajude a sair daqui, por favor. Oliver correu para liberá‑la da cortina. Basílio assustou‑se com a

presença dela. – Quem é essa velha? – Velha é a sua mãe, rapaz – retrucou o oráculo quando Oliver

conseguiu retirar a cortina embolada com seus trapos. – Mais respeito com quem é mais experiente do que você.

– Ela é uma das pessoas que pretendia apresentar‑lhe no futuro –

Page 323: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 323 ×

disse Oliver, enquanto a guiava até o quarto sob o olhar aflito de Basílio. – Seu nome é Kale e ela pertence à Terra‑Inversa. Conhece aquele lugar como a palma da própria mão e me ajudou. Ou melhor, me trouxe para essa vida.

– Como se você não estivesse gostando – injuriou Kale, afastando Oliver para poder andar. – Respondendo a sua pergunta, vim procurá‑lo. Foi um pouco difícil achá‑lo... Eu não entendo nada desse novo mundo. Eu acho que traumatizei umas duas pessoas a caminho daqui, mas isso não é problema. Nada que um chá de ervas não resolva.

A velha captou toda a nova tecnologia do quarto. Coçou o queixo e virou para os dois cavaleiros.

– Então você realmente encontrou o segundo cavaleiro?Ela aproximou‑se de Basílio e segurou‑lhe o rosto com as mãos. – Interessante, você é o sucessor de Dhava. Oliver sobressaltou‑se ao ouvir aquele nome.– Basílio foi escolhido por aquela desgraçada que estava na casa

da Serra junto com Raizan? É esse o nome daquele homem de cabelos prateados, não é?

Kale confirmou. Inconformado, Oliver deu as costas a Basílio. – Eu não acredito nisso.– Afinal, por que procurava Oliver? – indagou Basílio um tan‑

to feliz por encontrar alguém que falava a sua língua. – Estou deveras curioso em saber como foi parar dentro da banheira.

– Primeiro, eu estou com fome e preciso descansar minhas per‑nas – desconversou ela, apanhando uma bolsa que apenas agora Basílio distinguira dos demais trapos. – Pode resolver esse meu problema?

Um tempo depois, Oliver ainda estava insatisfeito com a revela‑ção de Kale de que Basílio seria o sucessor de Dhava, a cavaleira traidora.

– Acho que você deve parar de birra, Oliver. Todos os outros ca‑valeiros também serão sucessores de cavaleiros traidores.

– Me lembro muito bem do rosto daquela desgraçada, como pode pedir que eu ignore o fato de Basílio ser sucessor dela?

Kale terminou de comer, em um prato, arroz e peixe. – Basílio, – chamou Kale; ele atendeu surpreso por ela saber seu

nome sem ao menos lhe perguntar – agora você pertence aos cavaleiros da Terra‑Inversa. Acho que já sabe que isso implica muitas coisas.

Ele concordou.– Você não tem vida, não tem alma. Não tem mais nada além de

lembranças... E isso será assim até que você seja destruído ou resolva desertar como os outros – prosseguiu ela, falando com um estranho sotaque chiado. – Você não se lembra, mas veio a mim da mesma forma que Oliver: caindo da Terra. Encontrei‑o desmaiado à beira do lago. Você foi o segundo substituto dessa trama envolvendo a última ordem de cavaleiros. Agora, na presença dos dois, posso contar o que está apa‑

Page 324: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 324 ×

rentemente acontecendo na Terra e na Terra‑Inversa.Oliver encarou‑a com certa indignação, porém continuou calado. – Acho que estou disposto a ouvir – declarou Báz.– Vocês, cavaleiros, formam a ordem de controle de toda a exis‑

tência. Existem sete cavaleiros escolhidos para realizar o controle das gerações raciais e dos cavaleiros do Chamado...

– Conte algo que nós não saibamos.Basílio lançou um olhar de censura a Oliver após o comentário.

Kale prosseguiu como se nada tivesse acontecido.– Houve uma traição e Shafa veio ao meu encontro. – A oráculo,

que comia com as mãos, limpou‑as nos trapos. Os hashis permaneciam intactos sobre a mesa.

– Novidade Shafa estar envolvido com traições – ironizou Oliver, porém, no fundo, falava sério. – O que ele fez dessa vez?

– O problema não foi ele. Segundo Shafa, o propósito dos anti‑gos cavaleiros terem entrado em acordo para desertar todos ao mesmo tempo deveria ser o descontrole e o caos que formavam sobre a Terra e a Terra‑Inversa, que os estava incapacitando de agirem conforme suas funções. A sétima geração racial foi, e é, a pior de todas as espécies. Complexa, orgulhosa e impiedosa, a geração dos humanos conseguiu alavancar o crescimento dos cavaleiros do Chamado.

– Como assim? – interrompeu Basílio, confuso. – É possível ala‑vancar o crescimento de cavaleiros?

– Os cavaleiros do Chamado são criaturas criadas para controla‑rem, em Terra, as gerações raciais, atuais ou passadas. Já na Terra‑Inver‑sa, servem para controlar os mortos. Vocês, cavaleiros da Terra‑Inversa, os vigiam, e mantêm anjos e demônios nos seus devidos lugares. Antes dos cavaleiros do Chamado, pensaram em escolher anjos ou demônios para essa tarefa, mas imagine um mundo comandado por demônios: o mal não teria freio e todos viveriam em caos, apreensão e dor. Agora pense num mundo governado por anjos: seria um absolutismo regido por uma única lei.

– Mas anjos são bons – interrompeu Basílio, nitidamente interes‑sado. Era a primeira vez que tiraria suas dúvidas com alguém realmente experiente. – Um mundo comandado por anjos deveria ser algo bom.

– Anjos são criaturas puras e boas, porém, apenas eles e seus se‑guidores possuem o direito de desfrutar dos benefícios de seu poder. Para eles, as criaturas que não seguem suas regras não merecem exis‑tir. E aqueles que vivem sob seu domínio não possuem livre arbítrio, mas uma existência absolutista ao redor dos ensinamentos divinos. Ou seja, se você não gosta, não pode e jamais poderá ser um anjo ou um protegido por eles. E o principal direito de todos os seres humanos e não‑humanos é o livre arbítrio.

– De onde vêm os cavaleiros do Chamado? – perguntou Basílio.

Page 325: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 325 ×

– Era necessário que houvesse criaturas aptas a controlar as gera‑ções raciais, portanto a busca não foi fácil. Todos os que nascem e vivem têm o direito de escolher, portanto os anjos foram descartados, assim como os demônios, porque nenhum deles aceita o livre arbítrio. Os ca‑valeiros da Terra‑Inversa, então, foram obrigados a se unir e a criar uma criatura capaz de realizar esse trabalho. Embora poderosos, vocês não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo e também têm uma função muito mais importante do que isso.

– Que tipo de função? – perguntou Basílio. – O que poderia ser mais importante? Eu acho que estou um pouco por fora das funções de um cavaleiro da Terra‑Inversa. Está tudo muito confuso para mim.

– Isso é uma coisa que vocês descobrirão com o tempo... – res‑pondeu Kale, baixinho.

– Você está dizendo que os cavaleiros do Chamado são nossos serviçais? – perguntou Oliver, perplexo.

– Eles costumavam ser serviçais, até que todos eles se uniram e criaram um contrato pelo qual eles continuam a servir os cavaleiros da Terra‑Inversa, mas, ao mesmo tempo, incluíram um item que lhes ga‑rante o direito ao livre‑arbítrio. Eles trabalham seguindo as leis, mas da maneira deles.

– Criaturas desgraçadas... – resmungou Oliver. – Espere, – Basílio coçou a cabeça e esfregou o rosto – você diz

que nem anjos, nem demônios podem manipular espécies e escolhas, mas por que cavaleiros podem? O que os faz especiais além de terem sido criados por nós?

– Além disso, e de terem o livre‑arbítrio, cavaleiros do Chamado controlam aqueles atos cujos efeitos podem ir além do que se espera. Algumas criaturas da sétima geração racial sabem evocar, utilizar anjos e demônios, espíritos e outros tipos de essências não terrenas para bene‑fício próprio ou para qualquer outra coisa. Os cavaleiros do Chamado têm a missão de exterminar as pessoas que resolvem abusar desse tipo de uso, porque essa pessoa não estará mais sob domínio de seu livre arbítrio, mas, da vontade dos seres que a acompanham. Um humano dominado por demônios sofrerá influências até que não escolha mais por si, mas pela vontade de quem o possui. As gerações raciais passadas também podem interferir no desenvolvimento da geração racial domi‑nante e contaminar‑lhe com a imperfeição. Eles não são bons ou maus, compreende? E nem poupariam outros cavaleiros de sua mesma espécie se fizessem algo errado. Eles ganham benefícios quando praticam sua verdadeira função.

– O que ela quer dizer, – Oliver resumiu – é que existem pessoas que se aproveitam da própria capacidade de usar criaturas do mundo espiritual. E, uma vez utilizados, esses seres permanecem com quem os evocou. Começam a ter hábitos estranhos, comportamentos anormais

Page 326: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 326 ×

e vontades que nunca tiveram antes. Executam ações que não são suas, mas dos que estão com ela. E os cavaleiros do Chamado, à princípio, são unanimes e não têm partido, o que é perfeito para seu trabalho. Apesar de muitas vezes destrutivos, os cavaleiros do Chamado são necessários. Sem eles não teríamos limites ou regras. Porém, como tudo o que envol‑ve poder, eles também são corrompidos. A menos que eles tenham feito pacto com outros seres, eles não pouparão ninguém.

Basílio fez ruído de quem entendeu.– A Terra‑Inversa existe para separar a carne do espírito e o bem

do mal. No entanto, um descontrole de forças está acontecendo graças à disputa pelo poder. Anjos e demônios ainda lutam para terem o direi‑to sobre a Terra. Não há melhor reinado do que um mundo repleto de almas, certo? Então, chego finalmente aonde eu queria: o motivo da de‑serção. A proximidade do apocalipse gera uma série de interesses, tanto positivos quanto negativos, que interferem no tempo de sua chegada. Ou seja, o apocalipse pode ser atrasado ou apressado.

– Prossiga, por favor – articulou Basílio, pensativo. Kale fez uma pausa demorada, ingerindo uma boa dose de saquê. – A tendência de todas as gerações é crescer ou decair, e, até ago‑

ra, todas decaíram. Como os humanos não se mostraram diferentes, presume‑se que o apocalipse deveria selar a existência desse experimen‑to para que outro começasse. Esse é um círculo vicioso e cansativo... E quando o apocalipse se aproxima, o caos torna‑se mais evidente e o ambiente em si vai perdendo a capacidade de manter o controle, exi‑gindo que mais e mais cavaleiros do Chamado sejam invocados para tentar conservá‑lo estável pelo maior tempo possível. Entretanto, como eu disse, cavaleiros do Chamado também podem ser utilizados por tais anjos e demônios e é aí que entra algumas das funções dos cavaleiros da Terra‑Inversa: manter a ordem entre criaturas vivas e mortas, evitar subordinações e buscar por erros que possam levar ao apocalipse. Um dos deveres de vocês é ajudar a desenvolver a espécie perfeita, cuidando como uma planta: retirando sempre as ervas daninhas e aprimorando para que nasça a próxima geração mais sadia, saudável e vivaz do que a anterior. Vocês dois, cavaleiros da Terra‑Inversa, são criaturas neutras que não ganham recompensa pelo que fazem.

– Esse é um trabalho sem notoriedade – comentou Basílio. – Nin‑guém gosta de viver sem reconhecimento à sombra de grandes inven‑ções com o único propósito de mantê‑las sempre no topo.

– Há quem goste e tenha feito isso muito bem, mas nem sempre é possível alcançar a perfeição... Poucos conheceram a perfeição – ex‑plicou Kale, enchendo o copo com mais saquê. – Era isso que os cava‑leiros da Terra‑Inversa antecessores de vocês pareciam pensar: que não deveriam passar vivendo à sombra de uma criação que se autodestruiria, levando todas as outras almas consigo. Cavaleiros como vocês não po‑

Page 327: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 327 ×

dem ser evocados, comprados e nem podem escolher. O direito máximo que possuem é a capacidade de lembrar o que foram enquanto vivos. Ao serem criados, a intenção era inventar criaturas irracionais que vi‑vessem pelo instinto, mas isso não daria certo por muito tempo. Então se resolveu que cavaleiros racionais realizariam o trabalho, querendo ou não, com mais consciência dos atos, evitando tomadas de decisões que prejudicassem inocentes.

Kale era uma velha culta e inteligente apesar da aparência. – Centenas de cavaleiros da Terra‑Inversa ocuparam esse posto

durante incontáveis anos. Alguns sucumbiram, outros desistiram. Há aqueles que foram destruídos e aqueles que gostaram do que faziam e foram até o final. Mas todos, sem exceção, fizeram seus trabalhos cor‑retamente. Então, se você for pensar assim, por que não encontraram a espécie perfeita? Devido ao livre‑arbítrio. Sempre haverá alguém apto a escolher o errado no momento de maior ascensão de uma espécie. Afi‑nal, é um direito de todo o ser: a liberdade.

– Sem liberdade seria tudo mais fácil – deduziu Basílio, apoiando a cabeça na mão e o cotovelo no kotatsu. – Que coisa complexa.

– Talvez, mas creio que não. Como eu disse, é um círculo vicioso. A única diferença para os humanos é que, dessa vez, parece não existir uma espécie sucessora, é o fim de um experimento que nunca teve um resultado positivo – Kale dera algumas tossidas amargas. – Shafa me disse que os cavaleiros de sua ordem pareciam planejar algo maior do que apenas a deserção. Lembro‑me nitidamente das palavras de Shafa: “nossa única intenção era apenas desertar e sumir; deixar para outros essa culpa. Porém, não percebi que havia alguns mal intencionados, aguardando apenas a deserção para agir.” – Ela repetiu o tom da voz de Shafa tão perfeitamente que fez Oliver embolar‑se de raiva. – Não sabia ele que alguns de seus companheiros desejavam a queda da sétima geração racial e do mundo.

– Posso deduzir até quem seja...– Raizan – declarou ela. – O cavaleiro que mais amou o seu tra‑

balho. Por mais estranho que pareça, ele exerceu muito bem sua tarefa e amou os humanos e as criaturas como se fossem seus filhos. Jamais alguém passou pela lâmina de sua espada sem se arrepender das amargas escolhas. Até agora não o compreendi, mas espero que possa fazê‑lo, no futuro.

– O que Raizan fez afinal?– Está prestes a abrir as “portas” para o apocalipse. Sua deserção

gerou o caos durante o tempo em que a Terra‑Inversa permaneceu sem controle – disse ela, embriagada, ingerindo mais saquê. – O que eu que‑ro dizer é que os desertores, seus inimigos no momento, estão um passo à frente de vocês em tudo. Eles querem destruí‑los, portanto trabalhem com cuidado. Tentem não ser rastreados. O apocalipse dos apocalipses

Page 328: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 328 ×

é real, cavaleiros. E ele vai destruir a tudo e a todos, inclusive vocês. Os seus inimigos tentarão impedi‑los de completarem seus deveres, custe o que custar.

Kale afastou os trapos que usava e retirou de sua bolsa um uten‑sílio longo, envolto em um pano azul sedoso. Estendeu‑o para Basílio com as duas mãos para que ele mesmo o desembrulhasse.

– Uma espada! – exclamou Basílio, fascinado. A espada era apenas um pouco mais comprida do que a de Oliver

e tinha a pedra central maior, o que deixou o cavaleiro mais novo muito rabugento. Basílio, após contemplá‑la, deitou‑a em seu próprio colo, para poder alisar o metal gelado.

– É incrível! – comentou ele.Kale sorriu.– E é sua. Sempre que precisar ela aparecerá para você, basta cha‑

má‑la – explicou o oráculo, soluçando. – Por qual motivo a pedra dele é maior que a minha? – perguntou

Oliver rancoroso. – Isso não é justo! Sou cavaleiro há mais tempo do que ele, eu deveria ser o mais forte!

– Não seja infantil, eu ainda não terminei o que eu tenho para dizer... A propósito, eu não estou me sentindo muito bem...

– Claro que não! Você não para de beber!– Deixe ela beber... Ela merece – retrucou Basílio quando a espada

em suas mãos desapareceu no ar. De alguma forma sabia que sua arma não havia ido para muito longe. – O que eu não entendi ainda é o pro‑pósito de buscar a perfeição... Talvez Kale possa me responder.

– Ela não pode passar mal agora, não enquanto não contar tudo!– Ela estava prestes a fazer isso... Basílio apontou para o oráculo que dormia em cima do kotatsu.

Oliver cutucou o ombro dela.– Acho melhor que a levemos para o quarto – aconselhou Basílio.– Você tem razão – finalmente Oliver demonstrou um pouco de

solidariedade. – Esqueci que os efeitos da Terra‑Inversa e da Terra são diferentes. Ajude‑me a carregá‑la para o quarto e vamos preparar as coi‑sas para sair. Quanto antes encontrarmos Zaburim, melhor será. Estou preocupado com essa história de apocalipse dos apocalipses.

– Só você? Badeck repousou a cabeça sobre o futon montado para Kale.– O que ela disse é muito sério. – Então você sabe sobre o que ela falava? Conte‑me mais sobre

isso – Oliver pôs as mãos na cintura, reflexivo.– Mesmo que eu soubesse mais, eu não posso falar. Se ela veio

até aqui é porque prefere ela mesma explicar, tudo tem o seu momento certo de ser revelado. – O guia afastou‑se da cama. – Você comprou o que eu lhe pedi?

Page 329: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 329 ×

– Os saquês? – indagou Oliver. – Comprei. Kale tomou uma gar‑rafa, mas ainda temos três. Para que precisaremos disso?

– Como eu mesma já disse, Zaburim tem um ponto fraco; – repe‑tiu Baroon – ao beber, torna‑se acessível para qualquer tipo de pessoa. Dê‑lhe bebida e tornará tudo mais fácil.

– Três garrafas serão suficientes? – indagou Oliver preocupado. – É suficiente. Caso Zaburim não colabore por bem, faça‑o cola‑

borar por mal: dê‑lhe bebida – concluiu Baroon.– Você tem certeza de que isto funcionará? – duvidou Basílio,

pondo a mochila nas costas. – Um demônio ex‑cavaleiro tão forte como ele não ia ceder por causa de bebida...

– Faça o que digo. Baroon o conhece como qualquer outro e, por mais que possam ter se passado milênios desde a última vez que eles se viram, a essência de todo o ser, “sua alma”, nunca muda – disse Badeck.

– Tome cuidado com Zaburim. Em momento nenhum converse sobre o passado dele de cavaleiro. Não há nada que um demônio odeie mais do que pensar no que foi um dia – aconselhou Baroon.

Basílio concordou.– Providenciaremos isso. – Ficaremos aqui para cuidar de Kale. Ninguém pode chegar per‑

to dela ou saber que ela está aqui. É perigoso demais ter um oráculo conosco.

Badeck caminhou até a porta. – Não esqueça das bebidas, Oliver. – Tudo bem, já estão na mochila! – retrucou o cavaleiro.Quando abriu a porta, já era dia lá fora.

O táxi estacionou em frente ao enorme prédio de vidraças azu‑ladas, cujo letreiro indicava Face of Tecnology. Pequenas banquetas com vendedores gritantes chamavam a atenção de Basílio. O céu com nuvens pesadas trazia um frio intenso, de arrepiar os pelos. Ao redor do prédio de Zaburim, duas outras construções antigas possuíam gárgulas na for‑ma de pequenos dragões ameaçadores.

– São acúmens – explicou Oliver surpreso ao vê‑los tão próximos ao movimento. – Devem evitar que visitas indesejáveis perturbem Za‑burim.

Basílio lembrou da explicação de Baroon sobre acúmens. Uma das gárgulas, no topo do prédio, piscou.

– Como ninguém vê essas coisas se mexendo?– As pessoas não podem ver ou simplesmente não têm tempo

de verem. Algumas até enxergam, mas não creem. – comentou Oliver

Page 330: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 330 ×

diante das portas envidraçadas da entrada. – Então é aqui. Seja lá quem for Zaburim, é bom que colabore conosco.

– Não se esqueça do que Baroon disse: nada sobre o passado de cavaleiro dele.

Apesar da exuberante aparência externa do prédio, o seu interior era humilde. Organizado, mas desprovido de adornos. Para entrar, era preciso mostrar um cartão para o porteiro e passar pela roleta que dava acesso a dois elevadores. Uma placa escrita em inglês, para a satisfação de Basílio, indicava quem eram os responsáveis e o que cada andar fazia. Oliver parou diante da mesa do porteiro carrancudo e aguardou que o mesmo o atendesse, porém ele assistia entretido o jogo de futebol ame‑ricano na televisão.

O velho, depois de alguns longos instantes, finalmente desviou a atenção do jogo. Era um oriental de aproximadamente setenta anos e semi‑careca. Trajava terno e gravata azul marinho.

– O que é? – O velho falou em português. – O que querem aqui?– Queremos falar com Hadakko. Oliver contemplou o velho. – Marcaram hora? – indagou o porteiro com mau gosto.– Não, é uma visita urgente – respondeu Báz, ainda surpreso pelo

fato de o homem falar a língua deles. O porteiro apanhou o interfone e discou um número, dessa vez

ele respondeu em japonês ao telefone. – Temos visitas para Hadakko‑sama10. Houve uma pausa.– São dois ocidentais, Oliver e Basílio.Oliver arregalou os olhos. “Como ele pode saber nossos nomes?”

perguntou‑se mentalmente. “Não esqueça que estamos indo falar com o demônio. Ele deve possuir muitas cartas nas mangas... Se tem acú‑mens, deve haver outras coisas também.” Rapidamente, o cavaleiro viu‑se obrigado a esconder a surpresa.

– Certo – respondeu ele. Por segundos, Oliver teve a impressão de ver duas pupilas como as de cobra nos olhos do porteiro. – Podem subir, Hamoru está esperando vocês. Quinto andar.

Reclamando, ele levantou‑se e passou duas vezes no leitor o car‑tão de plástico preso no pescoço por um cordão.

– É impressão minha ou esse velho é anormal? – indagou Basílio já dentro do elevador. – Eu acho que nada nesse prédio é humano.

– Vá começando a se acostumar... Provavelmente há centenas de outros lugares como esse por aí.

10 Sufixo “‑sama” é um tratamento para alguém de muita importância, como um rei ou um deus.

Page 331: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 331 ×

Assim que a porta do elevador se abriu, ambos depararam‑se com uma enorme sala de teto alto e paredes envidraçadas onde apinhavam‑se dezenas de funcionários, cada qual sentado diante de um computador pousado sobre uma pequena mesa. Não havia nenhum oriental à primei‑ra vista, todos eram ocidentais. Basílio notou que as mesas eram sepa‑radas umas das outras por pequenos biombos azulados e carregados de papéis e anotações. Pequenos grupos de funcionários passaram por am‑bos, empurrando‑os para o lado a fim de entrarem no pequeno elevador.

– Senhores? A mulher baixinha que os abordava falava em português. – Procuramos por...– Hadakko‑sama, eu sei – antecipou‑se ela, apressada. – Me acom‑

panhem, ele os aguarda.Oliver, surpreso com a rapidez com que estava sendo encaminha‑

do para o encontro, apertou o passo para acompanhá‑la. A funcionária guiou‑os para uma pequena sala situada à direita do salão em que esta‑vam. Passaram por mais uma sala envidraçada, que possuía apenas mu‑lheres ocidentais trabalhando distribuídas em dez mesas, até chegarem diante de duas portas; ela apontou a da direita.

– Podem entrar. Aceitam uma bebida?– Não, não, – respondeu Basílio educadamente – está bom assim.Ela se retirou. Oliver pôs a mão no ombro do amigo.– Pronto?Aguardou a confirmação de Basílio e abriu a porta. Basílio sentiu

vontade de rir, mas segurou‑se bem. Já Oliver deixou escapar um pe‑queno sorriso. Um homem alto, talvez maior que eles, e extremamente gordo estava sentado de pernas cruzadas sobre um pequeno tapetinho diante da escrivaninha. Diferente dos outros, ele era oriental e possuía uma longa trança que iniciava do topo de sua cabeça e deitava no chão. Era tão gordo que as roupas sob medida mal comportavam as gorduras que tentavam escapar pelas aberturas. Seu diâmetro era quase o dobro da mesa. Deveria ter dois metros de altura por um metro e meio de lar‑gura. A enorme papada caía sobre o peito denso, movendo‑se frenetica‑mente junto à respiração. Seu rosto lembrava quase o de um sapo devido à deformação pela obesidade. Basílio duvidou que ele conseguisse passar pela porta.

– Hadakko‑sama? – apresentou‑se Oliver, inclinando‑se leve‑mente. – Estivemos procurando arduamente pelo senhor.

Hadakko, ou Zaburim, depositou as mãos gorduchas sobre a es‑crivaninha e esboçou um sorriso quase que invisível. Naquele momento Basílio imaginou uma língua saltando para fora de sua boca e apanhando uma mosca qualquer.

– Eu soube. – A voz pastosa de Zaburim era extremamente grave e inumana, e também falava português. – Vamos descartar as honras e

Page 332: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 332 ×

digam logo o que querem. Estariam interessados em algum dos meus softwares hospitalares?

Zaburim lançou um olhar malicioso para Oliver. – Não, não tem nada a ver com seus softwares – Oliver tentou não

desdenhar. – Talvez você tenha conhecimento de uma situação que é de nosso interesse.

– Por favor, sentem‑se. Basílio procurou as cadeiras e só percebeu que deveriam sentar

no tapete dourado diante da escrivaninha quando Oliver assim o fez. Ajoelhou‑se e manteve a completa atenção em Zaburim e seus movi‑mentos. Tentou ler suas intenções o mais claramente possível.

– Então que tipo de informação querem? Uma súbita mescla de energias e sensações pesadas engoliu a sala.

Normalmente uma pessoa não captaria aquelas sensações demoníacas, mas com ambos era diferente. Por terem a sensibilidade avançada quase ouviam os pensamentos da “criatura” diante deles.

– Como você mesmo disse, vamos descartar as honras e ir direto ao que interessa. – Foi a vez de Basílio tomar a palavra. – Estamos pro‑curando por alguém e talvez o senhor possa nos ajudar.

Zaburim arqueou as sobrancelhas, quase invisíveis de tão finas, e enrugou a testa.

– Certo. O demônio pôs‑se lentamente de pé com suas pernas gordas e

curtas. Repentinamente, ele começou a grunhir de dor e levou os braços até a barriga. Oliver e Basílio horrorizaram‑se perante a cena seguinte: o terno de Zaburim rasgou‑se, revelando a pele clara e repleta de veias azuis. O demônio soltou um ruído gutural e a toda a pele de seu corpo rompeu, como se não aguentasse mais a gordura que carregava. Basílio pensou que fosse ver as vísceras, porém, por baixo da gordura, uma pele tão dura quanto o aço e vermelha como o fogo surgiu. A criatura liberou‑se da casca obesa e sacudiu‑se, deixando que os restos mortais cobertos por uma gosma amarela consistente caíssem sobre o tapete. O demônio possuía dois metros de altura, uma barriga dilatada, um peitoral firme e forte, braços musculosos e pernas grossas. Uma calça esverdeada era a única vestimenta que lhe cobria o corpo. Sua cabeça era completamente diferente do normal, sua boca era grande e os den‑tes, afiados, os olhos alaranjados brilhavam sustentados pelas maçãs do rosto salientes. As narinas eram pequenos riscos escuros acima do lábio superior, liberando vapor a cada respiração. Não possuía cabelos, mas chifres longos e afiados que desciam até suas costas. Sobre os ombros, ossos pontiagudos rasgavam a pele e espetavam para o alto. As cos‑tas largas, com músculos protuberantes, possuíam pequenos chifres. A cauda alongada e vermelha repousava no carpete, dando uma volta em torno de si mesma.

Page 333: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 333 ×

– Eu gosto de conversar com sinceridade.Oliver levantou‑se, lembrou‑se do que Baroon e Badeck explica‑

ram a respeito do ex‑cavaleiro e, então, sorriu.– Estávamos esperando por isso – alegou Oliver. – Cavaleiros da Terra‑Inversa procurando pela ajuda de um reles

demônio? Zaburim riu. Basílio por pouco não esqueceu que o demônio já

fora um cavaleiro também e deveria reconhecer um à distância.– Os atzáveris são capazes de muitas coisas, você sabe que não é

um mero demônio – disse Oliver.– Veremos o que podemos fazer a respeito – zombou o demônio.Ele pisou sobre a pele e a gordura amarela sobre o tapete, parou

no peitoril da janela e admirou o movimento lá embaixo. Ele precisava abaixar‑se um pouco para manter‑se de pé na sala.

– Achamos que você sabe sobre a família Wakanagi – ponderou Basílio ainda de joelhos, pensativo. – Você controla boa parte dos negó‑cios dessa cidade e de muitas outras, deve conhecer praticamente todos os milhões de habitantes.

– Wakanagi? – repetiu o demônio, evidenciando familiaridade com o nome. – O caso da família que foi assassinada?

– Exatamente – completou Basílio enquanto abria a mochila para retirar o saquê. – Precisamos saber mais sobre essa família. Até agora, não encontramos nada que nos detalhasse o caso. Mas você, grande de‑mônio, você sabe sim.

– É um caso confidencial, é claro – retorquiu Zaburim irônico. – De igual para igual, nos diga o que sabe – insistiu Oliver.– Jamais! Existem coisas nessa vida que não precisam ser revela‑

das! – disse Zaburim num tom superior. – Certas verdades são fortes demais para mentes tão frágeis quanto as mentes humanas. Eu gostaria de ajudá‑los, mas não posso. Vieram ao encontro do demônio errado. Acho que andam me superestimando ao falarem de mim por aí...

Oliver não se alterou.– Estamos aqui a trabalho, – revidou Basílio secamente – precisa‑

mos dessa informação. A Terra está prestes a passar por uma extermina‑ção e sua ajuda é essencial.

– Por que vocês acham que eu, um demônio, iria colaborar com vocês? Nós adoramos o caos! – Zaburim não retirava os olhos da janela. – O apocalipse para nós é um prato cheio.

– Para você não, Zaburim – Basílio postou‑se de pé com uma gar‑rafa de saquê. Parou ao lado dele para observar a vista e estendeu‑lhe a bebida. – Sabemos que você é um usurpador e necessita dos humanos. Não se faça de tolo, é um demônio inteligente demais para ter o racio‑cínio roubado pela ganância como os outros.

O demônio analisou a garrafa prolongadamente, aguardando que

Page 334: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 334 ×

o cavaleiro continuasse. – A espécie humana é, aparentemente, a última das gerações. Sem

ela você não terá quem manipular... – Basílio retirou a rolha da garrafa, deixando o odor fermentado da bebida invadir a sala. – Deve ser pro‑blemático demais tentar dominar outros demônios, afinal, eles gostam disso, não? Ao contrário dos humanos que tentam resistir. Sem eles você não terá mais a quem persuadir, manipular ou se divertir. Seu vasto império seria destruído com o apocalipse e outros demônios tentariam destruí‑lo a fim de dominar tudo o que foi seu. Sem os humanos você não seria nada.

Zaburim estava prestes a apanhar a garrafa.– Nós precisamos de sua ajuda ou acabará se tornando como os

outros: um nada. Não será mais o demônio capaz de controlar um mer‑cado negro de órgãos e almas desesperadas.

Oliver e Basílio ficaram aliviados quando Zaburim apanhou a gar‑rafa e despejou na bocarra.

– Você está certo – concluiu Zaburim, atirando a garrafa vazia para o lado. – Os humanos sempre foram a minha espécie preferida. Frágeis e manipuláveis, tudo o que eu sempre quis. Outras criaturas nunca se destacaram o suficiente para que eu pudesse me interessar por elas.

Oliver estendeu outra garrafa de saquê para Zaburim, que bebeu um gole. Apesar da pouca dosagem, notavam‑se muito rápido os efeitos da bebida.

– Os humanos são ignorantes, vaidosos, frágeis e fazem o possí‑vel para conseguir o que querem. – Ele sorveu mais um gole. – Nunca tive tantas almas para comandar. Estupradores, assassinos, viciados, es‑pancadores, ditadores, políticos, trabalhadores, homens, mulheres e até crianças. Já recebi todos os tipos de pedidos que poderiam se imaginar. Sexo, dinheiro, beleza, vida eterna, força e um amor. Posso manipulá‑los como peças de xadrez, pois acabam fazendo o que eu mandar por um pouco de poder. Meus preferidos são aqueles que pedem para morrer...

Ele riu gostosamente.– Gostam de desprezar e possuem muita tristeza. Vocês precisam

ver a cara das pessoas que convivem com minhas vítimas quando sofrem minhas influências. Já matei muitos e repetiria a dose tantas vezes quan‑tas fossem possíveis.

Basílio começou a gostar menos ainda do demônio.– Homens e mulheres são capazes de matar por um emprego...

Não há nada mais divertido do que isso. Vê‑los se matando por um punhado de papéis e reconhecimento. Banal, banal... Já conheci muitos líderes mundiais que me pediam a vida eterna. Muitas pessoas de princí‑pios que lutaram pela paz já passaram por minhas mãos... Imagens que se associavam ao bem vieram a mim, pedindo por poder.

– E, depois, como você lhes cobrava? – perguntou Oliver como

Page 335: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 335 ×

quem não queria nada. – Apropriando‑se de suas almas?– Também – assentiu Zaburim, terminando a garrafa. Sua voz

começava a embargar. – Mas eu preferia aproveitá‑los para conseguir outras. Muitos líderes vendiam as almas dos seguidores, alegando que faziam aquilo porque “era preciso que uns morressem para que outros vivessem”. Guerras, violência, distúrbios e movimentos revolucioná‑rios. Tudo não passava de um pretexto para que pudéssemos caçar as pessoas. Por isso que eu digo que humanos são frágeis, eles gostam de fazer barulho por pouco. Ao invés de lutarem pela paz, saíam às ruas destruindo casas e matando pessoas. Até eu, um demônio... – Zaburim agarrou a terceira garrafa com gosto. – Sei que no fundo o interesse do ser humano não é defender, mas destruir. Ele luta para se vingar do mal que fizeram a ele e descontar sua raiva nos outros. Nunca vi alguém que lutasse pelo bem do outro ou pelo futuro daqueles que ainda viriam. Sempre foi para se vingar de fatos do passado. Eu, quando fui cavaleiro, vi isso... Vi pessoas morrendo por leis que não faziam sentido, e aqueles que as matavam se honravam da execução. Isso sim é o que eu chamo de “perda de tempo”.

Para os cavaleiros, a bebida estava funcionando. – E vi também que isso não iria mudar e eu poderia aproveitar.

– Ele bebeu um pouco e deixou que a bebida escorresse pelo canto da boca. – Vocês deveriam aproveitar também.

– Nós aproveitaremos se você nos ajudar – falou Oliver, agarran‑do a oportunidade. – Se colaborar conosco iremos lhe garantir que nada acontecerá com seus negócios. O que sabe sobre a família Wakanagi?

– Eu já lhes disse que não posso. – Ele riu baixinho, já em um estágio avançado de bebedeira. – A família Wakanagi foi um problema para mim. Eu nunca matei humanos para conseguir órgãos, não preci‑sei.Afinal, milhares de pessoas sadias morrem por aí. Quem ia sentir falta de um órgão roubado aqui ou ali? A hipocrisia e o preconceito de que o corpo precisa estar inteiro quando morrer ainda existem. Então eu confirmo novamente: o ser humano prefere antes matar outros pela “vingança” a doar os órgãos a quem precisa. Por que a morte de um ente querido pode representar o prolongamento da vida de outro qualquer? Esse é o pensamento de fraternidade que vive dentro de cada um...

Ele pausou, pensativo. – Como eu dizia, a família Wakanagi foi muito conhecida. Shibato

Wakanagi me procurou uma vez. Na época, ele era um conhecido líder religioso. E possuía uma filha que precisava de um rim novo. E adivinha o que ele fez? Veio atrás de mim! Um líder religioso que espalha os ensinamentos ridículos de que o corpo precisa permanecer intacto veio a mim, pedindo órgãos. Decerto ele preferia que eu matasse alguém a violar um túmulo. – Zaburim riu, entrando em um assunto e indo para outro. – Então eu lhe consegui o órgão de que ele tanto precisava e,

Page 336: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 336 ×

como era pobre, me ofereceu tudo o que tinha no momento: seu pouco dinheiro. Alguns anos depois fui cobrar minha dívida e ele me disse que estava falido. No momento deixei passar, pensei que no futuro poderia pegar sua alma ou até outras, mas ele veio me procurar. Disse que a filha que tinha recebido o rim estava ficando doente de novo. Acusou‑me de ter enlouquecido a criança e que não pagaria nada por conta do órgão. – Ele soluçou algumas vezes durante o diálogo. – Acho que ele perdeu completamente a razão, na época, com essa baboseira e matou a família.

– A culpa foi sua de certa forma – instigou Basílio.– Eu não fiz absolutamente nada contra a família dele, eu juro.

Apenas ele: enlouqueceu – Zaburim parecia orgulhoso. – Degolou a es‑posa, esfaqueou o filho e mandou sequestrar e matar a própria filha num beco. Foi um trabalho magnífico.

Oliver estava silencioso. “Então a visão de Basílio estava realmen‑te certa. Ele disse que a garota havia sido vítima de um sequestro... E se isso aconteceu, quem buscamos está morto.”

Zaburim calou‑se, fitando as pessoas na rua lá embaixo. – E o que aconteceu com Wakanagi?– Não sei de mais nada – respondeu Zaburim, demoradamente,

com um toque de lucidez no olhar.– E onde acharemos mais informações? – questionou Oliver se‑

dento por respostas.– Existe uma delegacia de polícia em Chiba conhecida como

“C42” que cuida desses casos “interessantes”. Existe uma sessão espe‑cial de arquivos lá dentro que deve ter a história de Shibato e sua atual localização.

– Acho que isso é o suficiente para nós – argumentou Basílio. – Devemos ir embora.

– Mas já? – Zaburim riu grosseiramente. – Eu gostei de vocês. São como eu era... Sonhadores. Sinto cheiro de esperança em vocês... Eu tinha muito disso, mas acabou morrendo como tudo um dia. Talvez quando nos virmos novamente eu lhes mostre melhor meu trabalho.

– Teremos certeza que sim – confirmou Báz. – Notaram que eu faço tudo apenas pelo bem dos humanos, eles

é que resolvem abusar – injuriou Zaburim, secando a saliva que escorria pelo canto da boca. – Saiba que se precisarem de mim um dia me procu‑rem, eu os ajudarei. Pelo meu trabalho eu me uno até ao inimigo.

Oliver sorriu‑lhe.– Não pensaremos duas vezes em chamá‑lo.Zaburim voltou a olhar as pessoas lá embaixo. Oliver e Basílio

fizeram uma leve reverência e saíram da sala. – Eu acho que falei demais – tartamudeou o demônio, soltando

outra risada alta. – Não, você foi perfeito – disse a voz atrás de si.

Page 337: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 337 ×

Zaburim virou o rosto para a segunda porta da sala. Um homem trajando terno e gravata estava envolto parcialmente pelas sombras. Seu rosto desconhecido parecia carregar um sorriso. Ele gesticulou com a mão, que continha uma cicatriz na palma, para os cavaleiros que haviam recém saído.

– Não falei que eles viriam?O demônio riu.– Não vi que estava aí. Quer que eu os mate? – indagou Zaburim,

passando a língua nos lábios.– Não os subestime, demônio – retrucou o estranho. – Mande

outro de seus serviçais fazerem isso... De preferência o mais forte, como Noboru. Ele já fez aquele trabalho dos Wakanagi para você... Se ele não conseguir então dê cabo você mesmo. Não esqueça que Baroon está com eles.

– Há muito tempo que Baroon não é capaz de me deter – defen‑deu‑se Zaburim.

O estranho apenas riu desdenhoso.– E a garota? – indagou o demônio. – O que faço com ela?– Lembre‑se de que o único motivo de ela ainda estar viva é que só

dessa forma conseguiríamos trazer os cavaleiros até nós – prosseguiu o estranho. – Então não a mate enquanto aqueles dois não virarem cinzas.

Zaburim riu e voltou a admirar a paisagem lá embaixo. Um acú‑men, do lado de fora, olhou para o demônio, realizou uma reverência e voltou a ficar imóvel.

Page 338: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 338 ×

Capitulo 27Arquivo C42

Quando Oliver e Basílio se encontraram com os guias em casa, depararam‑se com uma surpresa: Kotaro esperava‑os, sentado no sofá da sala com o rosto chocado e pálido, porém com o olhar firme e ou‑sado. Suava bastante, pois a área do peito e axilas estava encharcada. Levantou‑se quando os dois entraram na casa.

– Desculpe, – pediu Badeck quando os cavaleiros passaram por ele – mas não pude impedi‑lo. A casa pertence a ele...

– Kotaro – murmurou Oliver surpreso. – O que faz aqui?– Até onde eu sei essa é minha casa – disse ele com a expressão sé‑

ria. – Recebi uma ligação de Suzuku e ela estava chorando.– É uma longa história! – defendeu‑se o cavaleiro sem graça. – Não

tínhamos a intenção de entrar em sua vida e causar toda essa turbulência, mas você não entenderia a gravidade da situação com a qual lidamos.

– Não importa – interveio ele secamente.Basílio afastou‑se.– Onde está a velha? – perguntou para Badeck.O guia olhou para a porta de saída.– Teve de voltar para a Terra‑Inversa devido a um infortúnio. Ela

pediu que vocês fossem para lá assim que encontrassem o terceiro cava‑leiro porque ainda tem algumas coisas para contar.

– Caso encontremos o terceiro, você quer dizer – corrigiu Basílio, consciente de que talvez não o encontrassem vivo. Depois, voltou e sentou no sofá.

– Kotaro, eu...– Espere – pediu o oriental com firmeza. – Suzuku estava chorando

porque Asami tinha falado finalmente. Ela me contou tudo o que estava acontecendo e o que tinha acontecido. Eu nunca imaginei que a situação com Fuuma pudesse estar passando impune debaixo dos meus olhos. Eu, como um pai de família, deveria ter protegido as duas coisas mais impor‑tantes para mim, ao invés de zelar por um emprego que tornava a minha vida e a delas infelizes. Fui tolo, idiota e irresponsável. Durante muito tempo aceitei que me tratassem como um animal e deixei de cuidar de

Page 339: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 339 ×

minha esposa e filha. Permiti que um estranho perturbasse meu lar! Eu me tornei um fracasso.

– Você fez tudo o que podia por sua família, Kotaro – falou Oliver, com pena do homem.

– Não, eu não fiz. Eu poderia ter feito, mas não fiz. – Kotaro olhou para as palmas das mãos. – Eu deveria ter matado aquele médico, mas isso de nada adiantaria, além de tornar minha família mais infeliz. Oliver, eu queria agradecer‑lhe por ter ajudado Suzuku e Asami, vocês fizeram aquilo que eu, tolo, não fiz.

– Escute, Kotaro. Você não é nenhum fracassado!– Eu sou sim, Oliver! – exclamou ele, agarrando o cavaleiro pelos

antebraços. – Eu não ofereci minha casa por que quis, mas porque fui obrigado!

– Nós sabemos que se não fizesse isso perderia o emprego...– Mas não foi só por isso! Oliver, esse não foi um negócio qualquer.

Foi tudo tramado desde o início! Eu fui chamado na noite anterior à que vocês chegaram numa sala com Daisuke e outra pessoa. Ele disse que pa‑garia o quanto fosse preciso para eu hospedar, em minha casa, duas pessoas que estavam a caminho do Japão – desabafou Kotaro. – Contou‑me que vocês dois deveriam morrer o mais breve possível.

Oliver engoliu a seco.– D‑Do que está falando?– Eu precisava do dinheiro para pagar algumas dívidas e também...

Eles ofereceram dinheiro suficiente para pagar a faculdade de Asami. Dis‑seram que eu deveria sair da cidade depois... Deixar o país sem nenhum remorso, já que vocês dois eram homens marcados para morrer de qualquer jeito. Ou seja, se eu não aceitasse isso, outra pessoa aceitaria! – prosseguiu o oriental. – Eu receberia uma ligação, confirmando o dia em que viriam matar vocês, mas enquanto isso eu deveria apenas ficar de olho e mantê‑los ocupados. Ou seja, ofereci minha casa a vocês para que fossem mortos de‑pois. Não sei o que vocês fizeram, Oliver, e também não é da minha conta, mas agora tenho que contar isso a vocês, em retribuição pelo que realiza‑ram por minha família.

O cavaleiro recuou confuso não pelo fato da traição de Kotaro, mas porque havia alguém em seu encalço, sabedor de sua viagem com Basílio, para o Japão, desde o início.

– Quem pediu isso? Kotaro suspirou.– Eu não sei... Eu não vi o outro homem que queria matá‑lo, na

realidade, ele falou pelo telefone conosco. Estávamos apenas eu e Daisuke na sala... Além de nós, ninguém está a par do assunto. Você me perdoa por tal ato vergonhoso de minha parte? Vocês ajudaram Asami e Suzuku e eu ia agradecer‑lhes, ajudando seu inimigo! Se eu soubesse isso desde o início, tenho certeza de que não aceitaria, pois nenhum dinheiro paga a cura de

Page 340: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 340 ×

Asami. Se um estranho abraçou meus problemas dessa forma, por que eu devo ajudar a matá‑lo? Não quero mais ser tratado como uma marionete. Sinto‑me envergonhado, mas quero mudar. Quero ser forte assim como você e seu amigo! Cansei de ver os outros pisando em mim. Eu sei que deveria ter mudado antes, mas... Somente agora me senti capaz e inspirado a fazer isso. Você me fez ver o que, desde o início, eu deveria ter enxergado. Eu errei, mas quero me redimir.

– Tudo bem – disse Oliver com seriedade. Ser traído era algo a que ele já se acostumara. – O que importa é que veio nos contar o que sabia.

– E não apenas isso... Eu recebi a ligação hoje, eles já estão planejan‑do a morte de vocês! Eu quero ajudá‑los.

– Você já se meteu demais nisso, Kotaro – disse Oliver. – Volte para sua família, não queremos piorar as coisas.

– Não, – respondeu de uma forma impetuosa; Kotaro parecia de‑finitivamente decidido a recuperar sua dignidade – não irei enquanto não conseguir me redimir. Aceitem minha ajuda ou estarão me ofendendo. Eu sei que posso fazer algo por vocês.

Oliver não gostou da ideia de meter Kotaro nessa história, pois sabia que o inimigo poderia caçá‑lo depois.

– É sobre a C42 que querem saber? – indagou ele repentinamente. – O estranho que me contratou disse que não deveríamos permitir vocês se aproximarem de uma pasta lá existente.

A reação de Basílio, conforme Badeck traduzia a conversa, não foi muito diferente da de Oliver.

– Já era de se esperar que tivéssemos inimigos. Quando pegaram Maria, eles sabiam muito bem quem estavam procurando. Há alguém em nosso encalço. Peça a ele para nos contar o que sabe sobre Wakanagi.

– O que sabe sobre o arquivo da família Wakanagi?– Eu não sei nada do que há nos arquivos da C42, mas eu sei tudo

sobre a C42. O nome significa Confidence e o número representa o ano de criação, 42 de 1542. É a identificação de uma delegacia especial que não existe apenas aqui no Japão, mas em todo o mundo. Ela foi desenvolvida especialmente para investigar assassinatos e acontecimentos de repercussão mundial, cujo conhecimento, se levado a público, poderia interferir em questões políticas de muitas nações. Ela é responsável por resolver a maio‑ria dos casos e depois repassá‑los à Polícia Federal. A maioria das pessoas desconhece sua existência, pois seu nome nunca aparece em lugar nenhum. Apenas quem está acostumado a se envolver com questões de segurança do Estado, como eu fazia no aeroporto, é que sabe alguma coisa. Eu sou‑be porque fui obrigado a entrar na investigação de um caso uma vez. Eu trabalhava como chefe da segurança antes de Daisuke aparecer, e então conheci a forma de trabalho deles.

“Não importa quem é o culpado e quem é o inocente; normalmente, quando um crime é resolvido, a C42 é encarregada de moldar a história

Page 341: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 341 ×

para que chegue ao público de forma neutra. Ou seja, se um político comete um crime que possa abalar o Estado, o caso é logo reportado para a C42, a história é moldada e apresentada ao público completamente diferente da realidade, e o caso original vai para o arquivo C42. Ninguém pode ler os arquivos que lá se encontram... E não há alguém vivo que saiba muito a respeito do que está de fato naquelas pastas. Há dezenas de portas na dele‑gacia C42, mas apenas uma delas o levará até o arquivo. Se quiser abri‑la, terá de pegar a chave que fica com o delegado. Quantos arquivos, dos que estão lá, você acha que são capazes de mudar a história do mundo?”

Quando Kotaro terminou de falar, Oliver sentiu um frio na barri‑ga. A reação de Basílio foi a mesma: choque seguido de decepção.

– O lema da C42 é “Há certas verdades que o mundo não precisa saber”. Você pode entrar culpado na C42 e sair de lá como vítima.

– É possível que exista isso? – indagou Basílio. – Uma polícia para proteger os criminosos? Não vejo como isso possa ser bom.

– Eles não protegem os criminosos em si, mas casos que envolvam as gerações raciais passadas e o mundo espiritual – completou Badeck.

– Temos como chegar até o arquivo Wakanagi? – perguntou Oliver, passando a mão nos cabelos.

– Podemos tentar. Os arquivos mais importantes da C42 ficam em uma base mais segura, mas provavelmente o caso Wakanagi está na sede aqui do Japão, em Chiba. Você pretende roubar o arquivo?

– Esse arquivo é a única forma de chegarmos até a pessoa que es‑tamos procurando – ponderou Oliver decidido. – E mais uma vez lhe pergunto: vai querer continuar?

– Irei até o fim, – retrucou Kotaro – e não apenas os levarei até lá, como os ajudarei a apanhar o arquivo. Ou melhor, roubar. Não há como pegá‑los sem uma autorização expressa do governo.

Basílio, que estava sentado no sofá, levantou obstinado. – Qual será o plano? – Nós podemos simplesmente entrar na delegacia e abrir a porta

do arquivo! Não precisamos de uma chave, certo? – perguntou Oliver.– Dessa vez isso não vai funcionar. A C42 deve ser protegida por

feitiços e levaríamos muito tempo para desfazê‑los; tempo esse que não temos, ou acabaremos encontrados pelo inimigo – respondeu Badeck. O guia sabia que uma delegacia com o porte da Confidence 42 era a prova de ladrões.

A delegacia C42 ficava em uma região chamada Akumajin, cuja fama deixava a desejar, perto do porto de Chiba. Basílio, Kotaro e Oliver precisaram caminhar certo trecho porque os táxis e ônibus não tinham

Page 342: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 342 ×

rota por lá. As ruas eram escuras e apertadas, repletas de prédios antigos e sujos. Ratos e baratas caminhavam juntos aos moradores esquisitos e obscuros. A água dos esgotos inundava as laterais das calçadas. Mesmo que fosse um dia ensolarado, Akumajin parecia sempre sombrio e úmi‑do. E, agora, com o céu nublado e escurecido, apenas as luzes dos postes e entradas dos estabelecimentos iluminavam as passagens. Alguns be‑cos, sombrios que eram, serviam perfeitamente para esconder qualquer coisa perigosa. Prostitutas de todos os tipos postavam‑se nas ruas com suas vestes apertadas, mesmo que o frio fosse congelante, e desfilavam em frente aos homens como se estes fossem jurados prestes a decidir se suas vidas valiam ou não alguma coisa. Uma mulher de cabelos loiros, quase brancos, trajando apenas um sutiã e uma calcinha pretos, passou a mão no peito de Basílio quando ele atravessou sua frente.

– Olá, garotão – disse sedutoramente em japonês. – O que acha de dar uma volta?

A maquiagem de seu rosto estava borrada e os lábios vermelhos e carnudos mandavam‑lhe um beijo. Basílio retirou delicadamente a mão dela de seu peito e sorriu de uma forma gentil. Mesmo não dialogando na mesma língua, os gestos foram bem compreendidos. A mulher reco‑lheu a mão e se afastou descontente. Badeck seguia a certa distância do grupo e Baroon sobrevoava do alto.

– Que lugar horrível, – comentou Oliver primeiro para Basílio e depois para Kataro: – será que não erramos o endereço?

– A C42 sabe onde se esconder – comentou Kotaro.– Vamos até o fim agora – resmungou Basílio, incomodado com a

degradação daquele bairro. Olhos curiosos acompanhavam‑nos através das janelas escuras das moradias.

– Não temos muito tempo até Zaburim achar que fez a coisa er‑rada ao nos falar demais. Aliás, tenho certeza de que ele já havia até programado nossa visita. É certo que o quanto antes conseguirmos esse arquivo, mais seguros com nossa informação estaremos.

– Esse tal de Shibato, que exterminou a própria família, deve ser um homem perigoso – concluiu Basílio pensativo.

– Há algo de errado na história de Zaburim – refletiu Oliver, re‑passando fatos em sua mente. – Um homem que entrega qualquer coisa pela saúde de sua filha não mataria uma família! Não é possível que exista uma loucura que afete um ambiente tão drasticamente e mude a forma de pensar de alguém. Loucuras nascem com as pessoas ou em consequência de traumas intensos.

– Sei lá, existe gente para tudo. Ele poderia também estar tirando proveito dos negócios de Zaburim, de alguma forma, quando pediu o rim para a filha. O que faremos se o cavaleiro estiver morto? Você ouviu o demônio dizer que Shibato mandou matar a filha em um beco... É o mesmo acidente de minha previsão.

Page 343: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 343 ×

– Não pensemos em nada até concretizarmos as ideias. Precisa‑mos falar com Shibato primeiro.

– Está na hora de nos separarmos – anunciou Kotaro ao parar em frente à rua sem saída que terminava em um beco escuro.

O plano consistia em Oliver entrar na delegacia e conseguir a cha‑ve do Arquivo C42 que ficava com o delegado. Ao retornar, Basílio e Kotaro tratariam de conseguir o arquivo, enquanto Oliver estaria ocu‑pado em criar um tumulto para desviar a atenção dos outros.

– Tome cuidado, Oliver – pediu Badeck, quando o cavaleiro pas‑sou por ele. – A qualquer sinal de perigo eu entrarei.

– Não será preciso, eu sei como agir – defendeu‑se o cavaleiro.– Nos vemos em breve – falou Basílio, ao lado de Kotaro, obser‑

vando Oliver entrar na rua.No final da rua sem saída, um beco escuro e ainda mais aper‑

tado chamava‑os para a morte. Alguns homens mal encarados e ves‑tidos como marginais rondavam a entrada, fumando e trocando algu‑mas palavras. Suas motos estacionadas perto da passagem apresentavam arranhões e marcas de tiros. Os cavaleiros passaram sem se intimidar, expressando uma seriedade quase perturbadora no rosto. Não temiam ninguém, nem humanos ou demônios. “Nós é que devemos ser temi‑dos”, pensou Basílio atento. Os homens nada fizeram além de cuidá‑los de longe, felizmente.

Basílio e Kataro se despediram de Oliver e saíram. No final do beco escuro e de muros verdes de limo, surgia para Oliver a delegacia de polícia C42. Luzes embutidas no muro produziam uma iluminação quase de outro mundo. A fachada, em estilo oriental, estava encoberta pela tinta descascada, que agora era decorada pela umidade fétida. Uma placa em metal sobre a porta dizia “C42” em letras ocidentais. Outras duas janelas abertas e de vidro fosco denunciavam a presença de pessoas no interior do estabelecimento.

– É aqui – confirmou Oliver para si mesmo. Ao olhar para o alto, constou que Baroon estava pousada sobre o topo do prédio vizinho.

Oliver apertou a campainha. Uma câmera sobre uma miniatura de dragão, abaixo da placa, focou‑o. A porta foi aberta por uma mulher com as vestes da Polícia Federal japonesa. Ela abriu mais a porta e gesti‑culou para que entrasse. Lá dentro, para sua surpresa, um ambiente pe‑sado aguardava‑o. Luzes amareladas iluminavam o recinto dividido em dois por um balcão de atendimento. Pequenas mesas com computado‑res e papelada enfileiradas ocupavam a sala onde policiais, também far‑dados, trabalhavam arduamente, passando informações e ordens através dos telefones. Oliver percebeu que todos ali usavam tarjas pretas no antebraço com o nome da delegacia. Na parede do fundo da sala, afixa‑dos em um quadro, viam‑se alguns gráficos, avisos, cálculos, recortes de jornal e papéis com informações, aparentemente desorganizados.

Page 344: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 344 ×

– Como poderia ajudá‑lo? – indagou a mulher oriental de aspec‑to cansado. Uma curiosidade nasceu em seu olhar, talvez pelo fato de Oliver ser um ocidental em uma delegacia tão desconhecida e reservada.

Oliver se adiantou em falar.– Quero a informação de um dos arquivos. Preciso falar direta‑

mente com o delegado. Ela estacou. – Você é policial?– Não, – respondeu Oliver rapidamente – quero apenas retirar

uma dúvida sobre o caso Wakanagi.– Desculpe, senhor, mas... – A policial pausou um pouco, pensou

e respondeu em seguida, com um transtorno no olhar. – Aguarde um momento, vou falar com o delegado.

Demorou alguns instantes para que a policial retornasse e o cha‑masse para uma sala cujas paredes de vidro espessas eram tapadas por venezianas. Oliver passou como fantasma em meio aos policiais que mal o olharam, compenetrados em seus trabalhos. A policial bateu três vezes na porta e abriu.

– Entre, o delegado Yokomono o espera.Oliver agradeceu a ela e entrou. O pequeno escritório possuía

uma mesa baixa, um computador, um telefone e dezenas de gavetas me‑tálicas embutidas em armários enormes. Oliver sentiu um mau pressen‑timento quando viu o homem de mais de dois metros de altura, sentado desconfortavelmente sobre o banco desproporcional ao seu corpo. Ele era forte e corpulento. Sua pele macilenta tinha um aspecto acinzenta‑do. O delegado trajava vestes de um tecido muito fino e caro, em tons de vinho e preto, um casaco de couro de boa qualidade sobre suas costas e calçados lustrosos e novos requintavam seus pés. Seu rosto sádico fi‑tava o cavaleiro com desdém. A testa larga proporcionava uma sombra sobre os olhos escuros, dotados de uma malícia incontestável.

Oliver não precisou de muito esforço para saber que o delegado era mal intencionado. Yokomono retirou o cigarro da boca e apagou sobre o cinzeiro de cristal, afrouxou o nó da gravata preta e sorriu, cru‑zando as pernas longas e fortes. Uma molho de chaves destacou‑se em sua cintura. “Kotaro disse que a chave deveria ser antiga, pois os docu‑mentos da C42 ficavam em arquivos velhos.” No entanto, para a sua surpresa, a maioria das chaves pareciam envelhecidas.

– Eu sou o delegado Yokomono, responsável pela delegacia C42 – apresentou‑se ele.

Havia uma cadeira em frente à escrivaninha, mas Oliver preferiu ficar de pé.

– Eu vim aqui em busca...– Eu já sei o que você quer – cortou Yokomono de modo pouco

gentil. – Quais são suas intenções com o caso Wakanagi?

Page 345: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 345 ×

Oliver procurou por alguma fraqueza no gigantesco porte de Yokomono. O homem lembrava um leão ganancioso e usurpador. “Concentre‑se na chave”, repetiu para si.

– Isso não é da sua conta, meu tempo aqui está cronometrado. Me dê a chave do arquivo de uma vez, porque vou tirá‑lo de você de qual‑quer jeito! – ordenou Oliver, estendendo a mão. – Eu não tenho tempo a perder com baboseiras.

Yokomono esperou um instante e então riu até gargalhar em voz alta. A sala era à prova de som, portanto ninguém do outro lado ouvia o que se passava lá dentro.

– Zaburim disse que você viria. A ordem foi expressa: “Mate to‑dos que vierem até você atrás do caso Wakanagi” – alegou o delegado descruzando as pernas. – Mas eu serei piedoso e pouparei o MEU tem‑po... O que acha de ir embora, assim posso deixá‑lo viver?

Oliver fechou a cara.– Dane‑se a sua piedade. Já que não me dará o arquivo, irei pegar

esse molho na sua cintura! – ameaçou o cavaleiro impertinente.Kotaro dissera que precisaria da chave para abrir o arquivo, certo?

Então não importava a maneira como Oliver agisse. Estava cansado de ser bom com os outros e sempre ser traído ou escorraçado. Um sorriso malicioso nasceu nos lábios de Yokomono.

– O que faz pensar que você irá pegar essas chaves?Ele levou a mão até a cintura. Quando ia levantar e sacar a arma

ao mesmo tempo, Oliver, que estava parado em frente à escrivaninha, colocou as mãos no móvel e a empurrou contra as pernas do homem. O delegado caiu sentado sobre a cadeira e deixou a arma sobre a escrivani‑nha. Surpreso e sem muito tempo para reagir, Yokomono ficou sem sa‑ber o que fazer. Enquanto isso, Oliver juntou a arma e apontou para ele.

– Me dê a chave – ordenou Oliver. Não estava brincando e não hesitaria em alvejar o homem terrível.

– Não vamos nos precipitar, garoto, – disse Yokomono ao recupe‑rar a voz – tem certeza de que quer fazer isso?

– Você é um idiota que passa o dia sentado nessa droga de cadeira e não faz nada além de usar o poder da polícia para encobrir os culpados de crimes hediondos. Você é o delegado dos criminosos e não vejo o porquê de não disparar – falou o cavaleiro, roçando o dedo no gatilho.

Yokomono começou a suar.– Tudo bem, mas eu acho que você está sendo impertinente. Em‑

bora tenha o molho, nunca saberá qual dessas chaves abrirá a porta. Até que a encontre, você estará morto por algum de meus policiais.

Oliver fitou as dezenas de chaves juntas. Não havia nenhuma igual e eram de vários tamanhos e formatos. Yokomono estava certo.

– Você está querendo dar uma de difícil, é? – perguntou Oliver, arrancando o molho de chaves da cintura de Yokomono e atirando‑o

Page 346: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 346 ×

sobre a mesa. – Qual dessas é a chave?– Eu não posso dizer. Há um feitiço em mim que não me permite

falar qual é a chave – riu Yokomono. – Querendo eu ou não, nem que você arranque meus dedos fora eu poderei abrir a boca.

Oliver praguejou. Não tinha muito tempo para pensar e nem agir.– Se você quer jogar, vamos jogar. Não preciso que você abra a

boca para me entregar essa chave.O cavaleiro partiu o metal frágil do chaveiro e espalhou as chaves

sobre a mesa. Em seguida, gesticulou para elas com a arma.– É a última vez que eu pergunto: qual dessas chaves abre o ar‑

quivo?Yokomono sorriu e isso foi suficiente para Oliver erguer a arma e

atirar. A bala, que era de borracha, acertou o ombro do delegado. Nin‑guém ouviu o disparo, pois além de ser baixo, a sala era à prova de som.

– O que está fazendo? – perguntou Yokomono, gemendo de dor.– Você teve sorte... Eu não sabia que eram balas de borracha. Não

achou mesmo que eu ia perder tempo e atirar nesse seu colete embai‑xo da camisa, não é? – comentou Oliver, malicioso. – Qual é a chave? Vamos! Não tenho tempo! Ou você acha que essa bala de borracha à queima roupa não vai matá‑lo?

– Eu já disse que não posso falar por causa do feitiço! – resmun‑gou o delegado entredentes.

Oliver atirou de novo, dessa vez quando Yokomono fez menção de pegar a segunda arma escondida entre o casaco e a cintura.

– Agora você não pode usar os dois braços... – murmurou o ca‑valeiro, impaciente. – Eu poderia atirar em você a noite inteira de tanto nojo, mas, infelizmente, essas balas vão acabar logo. Qual é a chave?

Diante da insistência de Yokomono, Oliver grudou a arma nas costas da mão do delegado que ainda repousava sobre a mesa. Os olhos do delegado lacrimejavam. O rosto estava vermelho e era mais do que evidente que mal conseguia conter a dor dos dois tiros.

– Ainda há muitas partes do seu corpo que não estão protegidas pelo colete... – retrucou Oliver, ameaçador. Ele havia mudado. O cava‑leiro não era mais um humano fracasso, fadado a aceitar seu destino. Ele forçou a arma sobre a palma que já estava roxa e Yokomono franziu o cenho, enquanto gotas de suor escorriam por todo o seu rosto. – Ainda faltam quatro balas...

Yokomono desviou o olhar para uma chave longa e antiga, feita de cobre, que estava quase sobre duas chaves pretas. Antes que Oliver a pegasse, percebeu que Yokomono lançou um olhar rápido para outra achatada e prateada. Oliver sorriu.

– Duas chaves? Isso é novidade para mim. Oliver recolheu as duas chaves. Certamente uma delas abriria a

porta do arquivo. Não havia mais tempo para questionários.

Page 347: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 347 ×

– Eu disse que não precisaria de sua boca para saber qual era a chave. Obrigado, delegado.

Oliver disparou mais uma vez. Não houve remorso de sua parte ao fazer aquilo. Oliver deixou a sala, fechou a porta antes de sair e sorriu para um policial que o observava numa mesa próxima. Gesticulou com a cabeça para a policial que o atendera e deixou o estabelecimento. O que havia de errado em disparar contra alguém culpado? Quantos inocentes eram mortos e ninguém reparava? Ninguém tinha o direito de culpá‑lo por fazer algo certo que, apesar de tudo, parecia tão errado. Ao sair da delegacia, atirou para o alto as duas chaves. Baroon despencou do alto do prédio, apanhou as chaves em pleno voo e sumiu de vista, ao sair do beco.

Oliver olhou para o final da rua, encarando o cão negro que o esperava ansiosamente com os olhos vermelhos cintilantes. Atrás de si, os gritos arfados de Yokomono, graças ao tiro que acertou seu colete e o fez ficar sem ar, ordenava que pegassem Oliver. O delegado saía de seu escritório com os dois braços imóveis e machucados.

– Peguem! Peguem‑no! – urrou o delegado. – Eu o quero morto! Os policiais sentados na mesa levantaram‑se e correram até a

porta. “É agora”, pensou ele, enquanto fugia. Badeck também iniciou sua parte do plano, correndo velozmente e não hesitando em derrubar um dos marginais que ocupava o dorso de uma das motos. Oliver ouviu um tiro e o sentiu passar rente de sua cabeça. Os outros marginais não reagiram ao ataque do cão, subindo em suas motos e partindo em reti‑rada ao ouvirem o tiro. Badeck rosnou para o homem caído e foi mais do que suficiente para fazê‑lo correr. Oliver montou na moto de que Badeck se apropriara, esperou o cão saltar sobre seu colo e acionou o veículo que já estava com a chave, adquirindo velocidade rapidamente. Dois tiros acertaram a lataria da moto e outro rasgou o casaco de Oliver.

– Como conseguiu a chave? – perguntou Badeck, procurando su‑porte nos braços de Oliver.

– Às vezes temos que fazer evoluir nossos métodos ultrapassados – respondeu ele, sorrindo malicioso.

Basílio estendeu a mão para apanhar as duas chaves atirada por Baroon. Kotaro não perguntou como era possível que o corvo tives‑se feito aquilo com tamanha obediência. “Agora temos pouco tempo”, pensou o cavaleiro ao lembrar‑se do que Oliver lhe dissera. “Talvez ape‑nas alguns minutos.”

– Vamos – disse para o oriental.Os dois entraram pelos fundos. Kotaro abriu a porta e o cavaleiro

Page 348: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 348 ×

entrou primeiro, não pensando duas vezes em fazer desmaiar o policial que estava preparando um café na cozinha. Os dois trocaram um rápido olhar e continuaram adiante. A peça seguinte era um corredor largo e com diversas portas. A porta ao lado deles se abriu e um policial saiu com um maço de papel em mãos. Ele só teve tempo de gemer antes que Kotaro o agarrasse pelo colarinho, desferisse uma joelhada em seu estômago seguido de uma cabeçada em sua testa. Basílio se impressio‑nou com a agilidade e poder de luta do oriental, lembrando depois que ele era o supervisor de segurança do aeroporto e aquilo era o mínimo que deveria saber. Basílio ajudou‑o a colocar o policial de volta na sala e trancar a porta.

Kotaro seguiu na frente, estendeu a mão para trás para pegar de Báz a chave e correu em direção às escadas. Basílio ia logo atrás, atento como um cão de guarda. O lance levava‑os até o andar seguinte, que além de ser maior, tinha uma grade prateada, de metal, que impedia a passagem, a menos que tivessem a chave. Os dois se entreolharam; ha‑via duas chaves em mãos, uma delas teria de servir. Kotaro descartou a antiga e escolheu a chave achatada para abrir a grade, mas a fechadura estava emperrada.

– Não está abrindo! – exclamou ele para Basílio.O cavaleiro engoliu a seco e empurrou o oriental para o lado. A

fechadura estava enferrujada, mas era visível que a chave estava certa. A tranca estava estragada ou emperrada por causa da maresia. A chave quebrou nos dedos de Basílio assim que ele fez força e abriu a grade.

– Bom, pelo menos não quebrou antes – comentou ele.Os dois passaram para um corredor repleto de portas pretas e

numeradas de um a vinte. – Qual é a porta? – indagou Basílio, mesmo sabendo que Kotaro

não o entenderia.Estendeu a mão para abrir a porta número cinco, mas Kotaro o

impediu. Ele meneou a cabeça e apontou para o estado da chave velha e a fechadura nova. Todas as fechaduras eram novas, com exceção da porta número dezoito.

– Achei! – disse o cavaleiro, gesticulando para o oriental que vas‑culhava a outra fileira de portas.

Kotaro ficou satisfeito ao conseguir abrir a porta. – Vai e pega o arquivo, – disse Basílio, gesticulando – eu ficarei

aqui de vigia.Kotaro entendeu e entrou. A sala possuía cerca de cinco estan‑

tes metálicas repletas de pastas pretas enumeradas e etiquetadas com um código. Respirou fundo e começou a procurar pelo arquivo, o mais rápido que conseguiu. Para conseguir iluminação, abriu as cortinas de uma janela com grades metálicas grossas, já que não tinha muito tempo para procurar um interruptor. O policial que surgia no corredor não

Page 349: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 349 ×

teve tempo de se defender do chute que recebera na cara, e que o fizera rolar escada abaixo.

– Droga! – exclamou o cavaleiro, ouvindo gritos no andar de bai‑xo. – Esse tipo de polícia só serve para trazer problemas.

Basílio foi obrigado a se atirar para trás quando um policial subia com a arma em riste. Voltou correndo para a sala dezoito e trancou‑se lá dentro com Kotaro. Ninguém entraria ali pelo menos nos próximos instantes. O oriental não parava de derrubar as pastas pretas no chão, esparramando as papeladas e misturando os arquivos diferentes.

– Estamos presos aqui! Não há saída – falou Basílio preocupado. Kotaro não deu atenção àquela questão, até conseguir encontrar

uma pasta preta no topo da segunda estante com o nome “Wakanagi” na etiqueta.

– Achei! – disse ele satisfeito e estendendo a pasta para o cavaleiro com um sorriso vitorioso que morreu em seguida.

Basílio correu até a janela, mas além do vidro não se mover, grades grossas impediam a saída e entrada de qualquer um.

– Como vamos sair daqui? Estamos presos nessa porcaria de dele‑gacia C42! Achei que estava muito fácil chegar até aqui, mas o problema mesmo é sair dessa prisão!

Do outro lado da porta os policiais já tentavam abri‑la com em‑purrões até desistirem; só a chave abriria a porta enfeitiçada. Ninguém atirou, com medo de danificar algum dos arquivos, mas não demora‑ria para que conseguissem entrar. O delegado seria muito burro se não possuísse uma cópia da chave do arquivo. Kotaro olhou perdido para a janela e depois para a porta. A ideia não fora das melhores... Pelo menos ele teve a intenção de ir até lá.

– Temos que sair! – gritou Basílio, partindo o vidro com um soco. Naquele instante o corvo negro pousou no batente da janela.– Você vai ter pouco tempo para fazer o que eu vou lhe dizer.– Fazer o quê? – perguntou Basílio angustiado. – Seremos presos

ou provavelmente mortos! – Escute! – ordenou ela firmemente. – Como Oliver, você tam‑

bém possui a espada que Kale lhe deu associada ao seu Mantra. Você precisará invocá‑la para sair daí!

Kotaro ficou agoniado quando viu Basílio falando com o corvo. Segurou a pasta rente ao corpo perguntando‑se se fizera a coisa certa.

– Tudo bem! O que eu devo fazer para invocá‑la?– Concentre‑se! A espada, como você mesmo sente, está dentro

de você, portanto para consegui‑la precisará alcançar a energia mais pró‑xima ao seu Mantra. Embora Kale lhe tenha dado a espada, não é fácil, já aviso, portanto peço que se concentre!

Uma gota de suor despencou da testa do cavaleiro. Ele fechou os olhos e tentou se concentrar, mas os gemidos de Kotaro e a gritaria dos

Page 350: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 350 ×

policiais do outro lado da porta o perturbavam. – Concentre‑se em minha voz, – pediu Baroon – confie em mim.Basílio respirou fundo, tentando desligar‑se dos pensamentos.– Esqueça tudo ao seu redor – prosseguiu a guia. – Estamos den‑

tro de você, na parte mais intocável de sua mente. Aonde ninguém pode chegar a menos que você queira. Esse lugar é onde você consegue ser você mesmo.

Basílio deixou‑se levar pela voz de Baroon. Quando abriu os olhos, estava em uma sala branca sem janelas e com uma única porta diante de si.

– Onde estou?Tentou se mexer, mas seu corpo parecia preso em um estado ca‑

tatônico intenso.– Essa é a parte mais profunda de sua mente, Basílio – disse‑lhe a

voz de Maria.A fisionomia de sua mulher entrou no campo direito de visão.– Maria! – gritou ele tomado por uma emoção intensa ao vê‑la.– Concentre‑se, querido – pediu ela afetivamente.Por um momento Maria sumiu de vista. Basílio tomou novamen‑

te a concentração de seu pensamento, fazendo‑a reaparecer.– Ah, Maria, como eu queria abraçá‑la...Ela vestia um vestido branco de alças que ia até o calcanhar. Tinha

o mesmo rosto de quando a conhecera.– Você não está aqui para isso, Basílio – corrigiu ela em um tom

carinhoso. – Sabe que sua vida corre perigo agora. Estou aqui unicamen‑te para ajudá‑lo.

– Por favor, me desculpe por não tê‑la defendido aquele dia na ponte! – pediu Basílio, agoniado por estar naquele estado catatônico. Queria tocá‑la e senti‑la novamente.

Maria estendeu a mão quente e tocou a face dele.– A culpa não foi sua... E nem de ninguém. Agora eu entendo o

motivo pelo qual tive de morrer.– Não há motivos! – contrariou ele. – Não há motivos lógicos

para uma morte inocente!A imagem de Maria voltou a sumir. Basílio precisou fazer um es‑

forço intenso para fazê‑la retornar.– Tenho pouco tempo aqui, então me escute. Eu o amo e amo

Alan. Vocês são as coisas mais preciosas em minha existência, então, por favor, me escute e se concentre. Se acontecer algo com você jamais me perdoarei por não o ter conseguido ajudar. Faça isso por Alan, Basílio.

Basílio se concentrou na palma quente dela ao tocar seu rosto e olhou para a porta.

– A espada está lá.– Eu sei... – grunhiu ele. – Mas não consigo me mover! Eu só a

Page 351: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 351 ×

toquei uma vez quando Kale me deu, não é fácil para mim fazer algo nunca antes experimentado.

– Você consegue sim! Essa é a única forma de sair vivo desse lugar. Faça isso por mim, faça isso por Alan – pediu ela, retirando a mão do rosto do homem que fora seu marido. – Sabe que estarei sempre com você quando precisar.

Basílio fez força sem resultado. Estava congelado como uma pe‑dra. Sentiu uma agonia quando não mais viu a esposa. Pensou em de‑sistir, mas lembrou de Alan. Pensou em todos os bons momentos que passaram juntos e no que se tornaram no final. Estava arrependido de ser um cavaleiro? Não. Seu único arrependimento era não ter se esforça‑do mais para salvar a esposa e criar seu filho. Fora isso, havia até sentido prazer em viver na pele de um cavaleiro.

Sentiu seu dedo indicador mover um pouco. “Eu preciso dessa espada. Ela está dentro de mim, então eu posso

controlá‑la. Preciso apenas me concentrar. Preciso desejá‑la”, pensou. Não havia mais volta... Basílio era um cavaleiro agora, querendo ou não, e isso não mudaria em nenhum aspecto seu amor por Alan ou Maria. Não precisava esquecê‑los ou abandoná‑los, pois sempre estariam con‑sigo em suas lembranças e em sua existência. Foi graças a eles que se tornara o homem que era. Basílio sorriu mentalmente. Por eles viveu e por eles continuaria vivendo, lutando e trilhando aquele caminho difícil e estranho. Aquela era sua nova vida e sua família sabia disso, então não podia mais decepcioná‑los. Era agora um cavaleiro.

Ao desfazer‑se o encanto que o prendia, Basílio estendeu a mão, girou a maçaneta e abriu a porta. Uma luz ofuscante acertou‑o em cheio, trazendo‑o de volta para a realidade. Os gritos de Kotaro e dos policiais lá fora não foram suficientes para desconcentrá‑lo daquela vez. Em sua mão, estava a magnífica espada entregue por Kale, guardada na bainha de prata. Baroon corvejou.

– Você conseguiu! – disse ela. – Agora saia daí!Fez‑se um silêncio na sala quando a cópia da chave foi enfiada na

fechadura. Kotaro olhava para a porta e não viu quando Basílio sacou a espada e a cravou no chão como se já tivesse feito aquilo muitas ve‑zes. Aquele tipo de conhecimento parecia fazer parte de sua memória, apesar de nunca tê‑lo realmente vivido. A sombra da espada expandiu na parede, tomando forma retangular e nesse espaço brotou uma porta branca, de madeira. Kotaro não soube como, mas quando a porta princi‑pal abriu e os policiais entraram, Basílio agarrou‑o pelo braço e jogou‑o para dentro da passagem branca, acabando por cair no chão de sua casa. O cavaleiro recolheu a espada e entrou também. Os dois homens de‑sapareceram diante dos olhos dos policiais que viram incredulamente a porta branca sumir. A parede voltou a ficar intacta como antes. O corvo pousado na janela foi embora ao garantir a segurança de seu cavaleiro.

Page 352: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 352 ×

Capitulo 28Fardo

– Ayame‑chan, terminei a arrumação – disse a faxineira, sorrin‑do‑lhe afetivamente.

A garota deitada no sofá verde levantou.– Eu vou buscar seu pagamento, – informou Ayame e dirigiu‑se

ao quarto – espere aqui.– Não precisa ter pressa, você sabe que... A garota tinha deixado a sala e não a ouvia mais. “Ela é estranha...”

pensou Yuba, a faxineira. Ayame sabia que antever a morte das pessoas não era normal. Por isso, nunca foi fácil para ela viver normalmente ten‑do de escolher quem merecia morrer, opondo‑se a todas as leis naturais e não‑naturais.

Flashback IX – 6 de Janeiro de 2002Ayame tinha dez anos na época e estava na sala de aula. A escola

havia patrocinado um passeio até um museu de automóveis, na cidade vizinha, para a turma que fosse vencedora da gincana, e, como sempre, Ayame era a mais quieta, e excluída pelos alunos. Tinha um único amigo chamado Ojiro que se dava bem com todos, mas preferia ficar sempre junto da garota. Os dois eram bem amigos, quase como unha e carne.

Ojiro, um garoto magrelo de cabelos curtos e escuros, virou para ela enquanto guardava o material.

– Por que está tão desanimada, Aya‑chan?Ayame apoiou o cotovelo na mesa.– Não gosto muito de carros.– Vai ser divertido! – exclamou ele como se Ayame tivesse dito uma

obscenidade sobre seu gosto por carros. – Eu vou estar lá também, então vou poder animar seu dia!

– Você é meu único amigo, Ojiro‑kun11! Todos aqui nessa sala me

11 O Sufixo “‑kun” é utilizado entre rapazes para demonstrar amizade e familiaridade, mas também pode ser usado entre mulheres que se referem a rapazes que elas tem interesse.

Page 353: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 353 ×

detestam, não consigo me divertir sendo tão odiada! – Não diga isso... – confortou ele. – Eu gosto de você! Então os

outros não importam. Agora pare de reclamar e se anime, nós vamos ver muitos carros hoje.

Ela cedeu e sorriu, porém seu olhar continuou triste e vago. As pes‑soas pareciam ser repelidas por ela, como ímãs de mesma polaridade, pois era sempre excluída das brincadeiras, sem saber o motivo. Seria ela algum tipo de monstro? Qual era o motivo de tanta indiferença? Algumas garotas passaram por Ayame com desprezo e viraram a cara. Ojiro, que estava ao seu lado, logo tratou de mudar de assunto e a arrastá‑la para fora da sala.

– Olhe o ônibus! – disse ele, apontando para o veículo em frente aos portões de grades altas da escola.

Rapidamente, os alunos da sala dela corriam para formar uma fila e pegar os melhores lugares. Quase instantaneamente, Ayame sentiu uma pressão forte no peito que a obrigou a parar para recobrar o fôlego.

– O que foi? – perguntou Ojiro preocupado. – Eu... Eu estou bem – gaguejou. – Foi só uma tontura! Vá na frente

e pegue um lugar para a gente, já estou indo.Ojiro hesitou, mas estava ansioso demais para ficar esperando pela

amiga. Convenceu‑se de que ela estava bem e saiu correndo, furando a fila para entrar no ônibus. Ayame apoiou a mão no pilar da escola de dois an‑dares e ofegou. A sensação era terrível e avassaladora, quase rasgando seu íntimo com garras afiadas. Olhou para o ônibus, entreabriu a boca de medo e pavor ao ver a criatura pousada sobre a lataria do teto. Ela era grande e completamente preta, possuía asas longas e envergadas, pescoço comprido, corpo delgado, membros longos e a cabeça semelhante a um crânio de pterodátilo, feito apenas de ossos, o bico curvo e serrilhado serviam como dentes afiados. O monstro sacudiu as asas quando notou que a garota o observava, e gritou. O som se assemelhava ao barulho ensurdecedor de metal amassando. Outras quatro criaturas idênticas espalhadas pelos telhados da escola atraíram sua atenção. Dentro das cavidades oculares, pairavam olhos negros e horrendos cujas íris eram brancas.

– O... O que são essas coisas? – perguntou com a voz apagada.Uma criatura pousou sobre o portão e esganiçou gritos em meio à

grande fila de crianças que não os viam. Ayame colocou a mão na boca quando um monstro parou atrás dela. Seu corpo tenebroso e escamoso, porque ele não possuía penas senão nas asas, se encolheu.

– Quem é você, criança? – indagou. Sua voz lembrava a de uma bruxa de contos infantis. – Como consegue nos ver?

– E‑eu... – gaguejou Ayame. Além de poder ver aqueles monstros ainda os ouvia? Que tipo de loucura era aquela?

– Fale! Ou está com a língua presa?A criatura pareceu se irritar com o silêncio dela e abriu o par de asas,

expondo todo o seu porte tenebroso. Naquele instante, Ojiro pôs a mão em

Page 354: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 354 ×

seu ombro, acordando‑a do transe em que se encontrava. – Aya‑chan? – perguntou ele preocupado. – Você está bem?A garota pálida tinha lágrimas nos olhos e um ar apavorado. Rapi‑

damente ela se recompôs, secando o rosto com a manga.– E‑estou sim. Acho que... Acho que estou só um pouco cansada.

Não dormi direito à noite – mentiu.Todos já estavam dentro do ônibus e a observavam de dentro do

veículo. As criaturas haviam sumido.– Vamos ou perderemos a viagem!– Está bem.Ignorando os olhares acusadores, ela seguiu. Quando pousou o pé no

ônibus foi como se seu corpo tivesse deixado de ser seu. Uma sensação ter‑rível assombrou‑a novamente, obrigando‑a a esconder o rosto para ocultar o transtorno. “Não é nada”, pensou para si ao passar ao lado da professora. Sentou ao lado de Ojiro num banco vago perto do fim do ônibus e ficou em silêncio. O motor do veículo roncou pesadamente e tomou a rua até chegar à interestadual. As crianças cantavam, brincavam e riam, diferente da garota isolada contra a janela. Ojiro conversava com um grupo de ga‑rotos animadamente.

Ayame abriu a janelinha e deixou que o vento batesse em seu rosto trazendo um estranho cheiro adocicado e ruim ao mesmo tempo. Fechou o vidro e afastou‑se da janela quando viu a criatura negra do lado de fora.

– Você não pode parar isso – falou o monstro, gargalhando. – Você não pode contra a morte.

– Mais rápido! – gritavam alguns garotos para o motorista. – Assim chegaremos mais cedo!

O homem riu e aumentou um pouco da velocidade. Estavam agora na rodovia. Ayame acompanhou a criatura pelo olhar, que apressou o voo, tomou a frente do ônibus, rumo a um caminhão‑tanque carregando diesel, vindo na direção contrária. Enquanto isso, os outros monstros planavam em voos circulares sobre eles. Naquele instante Ayame soube que algo mui‑to ruim aconteceria. Algo que calaria para sempre as risadas das crianças dentro do ônibus.

O caminhão estava a menos de cinquenta metros do ônibus quando a criatura pousou pesadamente sobre seu capô, no mesmo instante em que o pneu da frente do caminhão estourava, assustando o motorista que con‑duzia em alta velocidade. Ele virou o volante na direção oposta à estrada e bateu com a frente em uma barreira baixa de pedras no acostamento. Sua carroceria tombou, ao virar para o lado, e bloqueou a passagem do ôni‑bus. A gritaria das crianças apavoradas começou quando o ônibus tentou frear inutilmente, pois o contêiner de gasolina estava muito perto. Ayame foi jogada contra o banco quando o ônibus bateu de frente na lataria do caminhão. A explosão provocada pelo atrito de metais e o diesel engoliu os dois veículos. As chamas invadiram o ônibus com uma força arrebatadora.

Page 355: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 355 ×

Ayame tentou gritar quando viu a imensa mancha brilhante e alaranjada vindo em sua direção. Fechou os olhos e protegeu o rosto com as mãos. No segundo seguinte, viu‑se parada na calçada, colocando o pé na escada do ônibus, pronta para subir no veículo.

Ojiro ia logo à frente, em busca de seu lugar. Olhou para os lados assustada e desesperada; estava novamente em frente à escola. Todos os seus colegas, sem exceção, estavam sadios e vivos, brincando no interior do veículo. A professora, de braços cruzados, com uma expressão fechada no rosto, esperava que ela entrasse.

– Vai demorar muito? – perguntou o motorista, impaciente.– Você não pode mudar... Não pode mudar – repetia a criatura pou‑

sada sobre a grade metálica atrás de si. – Não pode mudar nada do que vai acontecer. Nós não saímos de mãos vazias.

Ayame estava confusa. O que havia visto era real ou não? Não im‑portava, a certeza que tinha era de que a situação se repetiria. Só de pensar no que aconteceria com todos no ônibus, mesmo que os odiasse de certa forma, não deveria acontecer.

– Nós... Nós não podemos sair! – exclamou ela, subindo um dos degraus. – Esse ônibus vai colidir com um caminhão e todos vão morrer!

O silêncio após sua frase foi absoluto. Todos se calaram diante da afirmação dela até alguém rir e todos acompanharem em coro. A professora olhou‑a com um desprezo nunca visto antes.

– Do que está falando, criança? Não diga besteiras!– É verdade! – gritou Ayame em pânico. – Vão todos morrer! O motorista riu desdenhoso.– Que brincadeira ridícula! Cale‑se e entre ou fique aí!– Aya‑chan! – chamou Ojiro parado no corredor. – Ojiro! Eu vi! – alegou a garota com lágrimas nos olhos. – O ôni‑

bus vai bater e todos vão morrer! Eu vi, foi horrível! Por favor, acredite em mim! Você sabe que eu não mentiria para você!

O garoto ficou pasmo.– Se você não quer ir ao museu, basta falar!– Não é isso, Ojiro! Acredite em mim! Eu vi! – repetia ela em pran‑

tos. – Vão todos morrer! Por favor, Ojiro, saia do ônibus! Saiam todos!– Cale a boca! – gritou um dos garotos que mais a odiava em sua

turma. – Você é uma maluca! A diretora nos disse que o seu mal é de famí‑lia! A maioria de seus antepassados foram doentes mentais!

A garota arregalou os olhos.– Agora saia desse ônibus! – urrou a professora, apontando para fora.– Não! Não deixe esse ônibus sair daqui! – gritou Ayame, avan‑

çando sobre o motorista. O homem empurrou‑a, fazendo‑a escorregar nos degraus e cair de costas sobre a calçada do lado de fora.

– Fique aí, sua garota louca! Seu castigo por falar besteiras será ficar fora do passeio! – mandou a professora.

Page 356: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 356 ×

O motorista fechou as portas antes que ela entrasse. Ayame levantou e bateu com os punhos sobre o ônibus.

– Não! Pare!O motor roncou e o ônibus começou a andar. Ayame se afastou em

pranto. Ojiro colou o rosto na janela, confuso pelo comportamento da ami‑ga e receoso pelo que ela disse.

– Você não pode mudar – repetiu o monstro atrás de si, abrindo as asas. – Você escolheu quem vai morrer: você ou eles? Você escolheu você.

– O que você está dizendo? – perguntou o homem, andando de um lado para o outro.

– Eu não sei! – respondeu Ayame com os olhos inchados. Estava sentada em uma poltrona bege, de frente para seu pai. – Eu apenas vi... E aconteceu, aconteceu de verdade! Todos estão mortos, menos eu!

Aproximando‑se em passos calmos, uma mulher de cabelos longos e lisos, que escorriam por suas costas como uma cascata de seda, colocou os braços sobre os ombros da filha. Sua beleza era encantadora. Era, pelo menos, dez anos mais nova que o marido.

– Acalme‑se, filha, você pode estar apenas em estado de choque. Eu sinto muito por... por Ojiro. Eu sei que você gostava muito dele.

– Você tem noção do que ela está falando? – perguntou o pai.– Controle‑se, Shibato. Essa é nossa filha... Tente entender que ela

acabou de passar por uma situação muito ruim!– Meu Deus, ela disse que previu o acidente, Naoko. Disse que avi‑

sou os professores, os alunos e ninguém a ouviu, nem Ojiro. Isso é loucura! Ninguém prevê a morte! – retrucou Shibato, passando as mãos no rosto.

Ayame chorava em silêncio. Embora Shibato tentasse transparecer incredulidade, Naoko conseguiu perceber que havia medo no olhar de seu marido. Medo de que sua filha estivesse enlouquecendo, como acontecera com o irmão gêmeo dele.

– Nossa filha está mentalmente bem, não se preocupe – respondeu ela, censurando o marido com o olhar.

– Ela não pode sair por aí falando essas coisas... E a reputação da nossa família? Ela não pode... não pode ser como... Digo, ela já... já teve problema com o...

– Ela não é – respondeu Naoko secamente.– O quê? – perguntou Ayame, parando de soluçar. – O que eu sou?

Eu sou louca, não é? Nossa família tem histórico de loucura. Shibato pareceu se dar conta de que estava assustando sua filha. Res‑

pirou fundo e caminhou até ela, abaixou‑se e segurou suas mãos pequenas.– Você não é louca, Ayame. Pessoas quando passam por traumas in‑

Page 357: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 357 ×

tensos, como a perda de um ente querido, podem recriar lembranças falsas. – Shibato colocou a mão na cabeça da filha. – Você vai ficar bem. Quero só pedir que não saia por aí falando essas coisas, ninguém vai entendê‑la. Eu a amo e não saberia o que fazer se algo acontecesse com uma de vocês.

Naoko sorriu para o marido.Fim do Flashback IX.

Ayame suspirou. Infelizmente, o acidente aconteceu de verdade e todos no ônibus morreram em menos de meia hora depois, inclusive seu amigo Ojiro. Não foi fácil aceitar a verdade e a morte de todos, principalmente quando ninguém acreditava nela, nem mesmo seu pai. A fama de sua família, Wakanagi, a perseguia... O fardo doentio e psicótico de seu pai biológico ardia, em fogo brando, em seu interior. Abriu o ar‑mário para procurar a carteira, surpreendendo‑se quando uma pequena caixa de cetim marrom caiu, espalhando o maço de cartas não violadas.

– Droga! – exclamou irritada.Detestava tanto aqueles envelopes, no entanto ainda não sabia

por que não os tinha queimado. Eram cartas enviadas por seu pai atra‑vés dos anos, tentando contatá‑la para conversarem. Mas Ayame não queria saber de mais nada a respeito do homem que destruíra sua vida em definitivo. Juntou um dos envelopes com raiva, pronto para amas‑sá‑lo quando sua visão turvou e o ambiente ao seu redor foi subitamente substituído pela frente de um manicômio chamado “Jardim do Sol”. Ela conferiu o endereço do remetente: era o mesmo daquele lugar. Por que se detinha diante do lugar a que menos desejava ir na face da Terra?

Os portões escancarados da entrada principal do prédio convida‑ram‑na a entrar. Piscou e viu‑se na recepção do lugar. Piscou novamen‑te, agora encontrava‑se em um quarto branco. Viu um homem de costas para ela, e um segundo, velho, embolado nos lençóis da cama. Piscou outra vez e viu a si mesma apoiada sobre uma caixa metálica, socou o vidro e puxou a alavanca de seu interior. Algumas pessoas gritando passavam correndo ao seu lado. Piscou mais uma vez e viu‑se frente a frente com um homem que a segurava pelo braço. Seu rosto era tão fa‑miliar que rapidamente o identificou: era seu pai biológico. Havia fogo por toda a parte.

– Em mim ou em você – disse ele com um sorriso sádico no rosto. – Sempre foi assim, não foi?

Em pânico, Ayame não conseguiu se soltar. Shibato atirou‑a no meio das chamas.

– Não! – gritou ela, acordando do transe. Estava de volta a seu quarto.

Respirou ofegante e olhou para o envelope. Sabia que sua vida corria perigo e aquilo era a última coisa que queria fazer, mas não pôde evitar. Colocou o envelope no bolso, juntou a mochila sobre a cama,

Page 358: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 358 ×

retirou a carteira, separou o salário de Yuba e guardou o restante do dinheiro no bolso. Conferiu a hora no relógio: faltavam duas horas para o anoitecer. Era tarde, mas não tinha mais tempo a perder.

Abriu a porta do quarto e fechou‑a quase instantaneamente quan‑do viu seu pai adotivo parado ao lado de Yuba com outros dois homens de terno e gravata. Teve a impressão de já tê‑los visto antes. Assolada por um mau presságio, ela recuou. “Por que estou fazendo isso? Chen é meu pai adotivo, ele não me faria mal!” perguntou ao colar o rosto na fresta aberta.

– Muito bem, Chen – disse Noboru, entregando um envelope gordo de dinheiro para Chen assim que Yuba saiu do apartamento. – Aqui está o dinheiro.

Chen, um homem baixo, gordo e semi‑careca, sorriu em agrade‑cimento e guardou o maço no bolso da calça.

– Agora, onde ela está?“Não pode ser! Chen me cuida faz anos! Eu confio nele! Por

que está recebendo dinheiro desses homens estranhos?”, perguntou‑se mentalmente com a mão trêmula. Chen apontou para o quarto onde Ayame se encontrava, e o estranho que acompanhava Noboru pôs as mãos na cintura, revelando uma arma. “Estão armados” pensou Ayame apavorada.

– Você fez um bom trabalho, cuidando da garota. Zaburim lhe agradece – riu Noboru, sacando a arma quando Chen lhe deu as costas.

Ayame ouviu o tiro seguido de um grunhido de seu pai adotivo. Outro tiro foi suficiente para selar a vida do homem. Ela ficou um mo‑mento sem reação.

– Vamos pegar a garota – disse Noboru, guardando a arma na cin‑tura. – Zaburim a quer viva, então não a mate... Atire apenas se precisar.

Noboru gesticulou para o parceiro e os dois avançaram. – Ayame? – chamou Noboru com uma voz doce. – Eu sei que

está aqui.Noboru estendeu a mão e empurrou levemente a porta, não ven‑

do nada a princípio.Empurrou um pouco mais a porta e ordenou que o parceiro en‑

trasse na frente. Ele mal entrou e foi surpreendido por uma golpeada na cabeça. Ayame bateu outra vez em seu ombro com o taco de baseball autografado pelo seu jogador favorito. Ayame, que estava escondida atrás da porta, empurrou‑a sobre Noboru.

Noboru recuou com a mão na testa e ela aproveitou a deixa para fugir, passando à sua frente e largando o taco no chão quando viu os pés de Chen por trás do sofá. Fechou os olhos para não vê‑lo morto e continuou até o corredor. O elevador não estava no andar e, como não tinha tempo, correu para as escadas de incêndio e trancou a porta pelo lado de dentro, ignorando os gritos de fúria de seu perseguidor.

Page 359: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 359 ×

Parou em um andar antes do térreo para apanhar o celular. Digi‑tou os dois primeiros números da polícia, mas mudou de ideia rapida‑mente. A polícia nunca chegaria a tempo de salvá‑la. Quando alcançou a saída, notou que o elevador estacionava no térreo. Tomou a rua e esten‑deu o dedo para um táxi que acabara de largar um passageiro.

– Para onde? – perguntou o motorista ao vê‑la entrar.– Me tira daqui! Rápido! Estão querendo me matar! – bradou ela,

quase colando o rosto no vidro. Os dois homens de terno acabavam de chegar ao portão e olha‑

vam para o táxi. Entendendo o pedido, o motorista arrancou o veícu‑lo e virou a quadra seguinte. Ayame aliviou‑se ao ver que eles não a perseguiram, mas preocupou‑se, pois sabia que eles tentariam pegá‑la novamente.

– Envolvendo‑se com pessoas erradas? Ayame ignorou a pergunta do motorista. – Já sabe para onde vai querer ir?– Pago o que for preciso para me levar a Chiba – pediu Ayame.

Estendeu ao motorista uma das cartas de seu pai. – Para esse lugar.Curioso, ele analisou o endereço.– A corrida é cara, mas se você me pagar... – Eu tenho o suficiente. Me levará até lá? – Ela mostrou a carteira

repleta de ienes. – Sem dúvidas! – E sorriu, oportunista.Noboru xingou alto quando viu a garota sumir com o táxi. Seu

parceiro secou o sangue do corte na orelha enquanto comprimia o feri‑mento no ombro.

– Nós a perdemos! – urrou ele irritado.– Não, – disse o parceiro, estendendo um dos envelopes encon‑

trado no quarto dela – acho que ela foi para esse endereço.Noboru sorriu ao apanhar o envelope. Conhecia aquele lugar

muito bem.

Oliver se assustou quando, ao abrir a porta da casa, encontrou Basílio e Kotaro estirados no tapete da sala. O portal atrás deles tinha acabado de fechar. Badeck recolheu com a boca a pasta preta caída ao lado do oriental e a levou para o cavaleiro. Oliver rompeu o lacre que a selava e acessou os papéis. Basílio levantou cambaleante e procurou visualmente pela espada que não se encontrava mais lá. Kotaro sacudiu a cabeça, confuso.

– Você usou o portal? – perguntou Oliver surpreso.– Não temos tempo para isso, – resmungou Badeck e cutucou a

Page 360: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 360 ×

pasta com o focinho – precisamos encontrar Shibato e sair daqui.– O que aconteceu? – perguntou o oriental incrédulo. – Como

vim parar aqui? Eu lembro de estarmos presos na sala do Arquivo C42.Oliver depositou a pasta sobre a mesa da sala.– Kotaro, você não está mais seguro aqui e terá de se mudar logo.

Não temos tempo de conversar agora... É melhor que vá ao encontro de Suzuku e Asami.

– Eu sei! – exclamou o oriental já lúcido. – Eu tenho o dinheiro dado pelo homem que me pagou para enganá‑los. Vou fugir com Suzuku para Ohayo. Tenho amigos que se mudaram para lá há algum tempo.

– Então vá agora! – ordenou Oliver preocupado com Kotaro e sua família. – Vocês correm perigo se continuarem aqui, entendeu? Lá eles não lhe farão mal.

– Mas... – insistiu Kotaro em busca de explicações lógicas.– Esqueça o que aconteceu. Essa nossa batalha está além da sua

compreensão – continuou Oliver com a mão no ombro dele. – Agora vá pegar suas coisas!

Kotaro cedeu. Quando voltou do quarto com a mochila nas cos‑tas, Oliver e Basílio estavam sentados na mesa lendo o arquivo C42. Eles estavam certos. Se continuasse ali, correria um perigo inútil. Já quitara a dívida com eles, então nada mais o prendia àquela casa, nem mesmo seu passado.

– Obrigado – disse Kotaro, realizando uma reverência.– Nós é que agradecemos – respondeu Oliver e fez o mesmo an‑

tes dele sair.– O que diz aí? – perguntou Basílio sem compreender a escrita

japonesa nas folhas.– Nessa aqui, é o histórico de Shibato. Na outra, é a foto dele...

– Oliver separou três folhas lado a lado e apontou para a da extrema direita. Na do meio havia a foto de um oriental com os olhos cansados, a barba por fazer e com sulcos fortes no rosto devido às rugas. – O histórico do crime que ele cometeu com a família; descreve mínimos detalhes. Na última folha, consta o laudo médico de sua sanidade men‑tal. Shibato está atualmente em um sanatório chamado “Jardim do Sol”, em Chiba. Foi considerado louco após os crimes que cometeu. É muito violento para permanecer com os outros pacientes, então foi isolado em uma solitária nesse manicômio. E assim está desde que foi internado.

– Aparece o endereço aí? – perguntou Basílio pensativo. – Sim, está aqui. Já temos a localização!– Tem mais uma folha na pasta – disse Badeck, empurrando a pas‑

ta e puxando com a pata uma folha preta com várias frases criptografa‑das com símbolos alinhados verticalmente.

Oliver apanhou a folha, mas não conseguiu entender nada. – O que está escrito aí? – perguntou Basílio.

Page 361: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 361 ×

– Não sei... – respondeu Oliver, olhando para o cavaleiro. – Está codificada.

– Não importa... Nós precisamos encontrar esse Shibato – pon‑derou Badeck preocupado. – Tenho a impressão de que acabamos de mexer com um assunto que Zaburim preza muito.

Oliver juntou as folhas, colocou‑as na pasta e essa última, na mo‑chila. O tempo corria.

– Vamos para lá.– É um pouco perigoso, não acha? – indagou Baroon ao pousar no

peitoril da janela aberta. – Lá é o primeiro lugar onde procurarão vocês, afinal é o que a pasta de Wakanagi, no arquivo C42, documentava.

– Com o documento em nossas mãos, o próximo passo deles será exterminar Shibato – deduziu Oliver como se fosse uma coisa lógica. – Afinal, não existe nenhuma cópia deste arquivo, como Kotaro mesmo disse. Esse homem deve esconder alguma coisa, e também conhece a localização ou a história do cavaleiro que procuramos.

Basílio levantou e conferiu a hora no relógio.– Faltam duas horas para o anoitecer... Ainda dá para chegar a esse

sanatório a tempo.

Basílio deu três tapinhas na lataria da caminhonete assim que sal‑tou da carroceria junto com Badeck. Oliver correu até a janela do passa‑geiro do veículo e estendeu o relógio que vinha utilizando nos últimos dias. O pescador oriental apanhou o item e analisou. Guardou‑o no bol‑so e gesticulou para Oliver, pedindo, em seguida, para que o motorista continuasse. Oliver e Basílio haviam conseguido uma carona para o ma‑nicômio com dois pescadores que estavam de passagem pela rodovia.

– Eu acho que tenho uma maldição com relação a relógios, por‑que sempre acabo tendo que entregá‑los a alguém! – retrucou Oliver.

– Se você morrer, para onde vai não existem relógios, então não precisa deles – alertou Badeck, farejando o ar. Baroon, que os seguia voando, pousou sobre o portão.

– É aqui? – indagou Basílio, ao passarem diante da entrada do lu‑gar. Guardou no bolso a folha negra que se encontrava no arquivo C42. O cavaleiro passara a viagem inteira tentando encontrar alguma pista que pudesse decifrar os códigos, mas foi inútil.

Oliver fitou o enorme manicômio com certo receio: era um pré‑dio de seis andares e com quase nenhuma janela. As entradas de ar con‑dicionado passavam quase despercebidas. Jardins floridos cercavam o hospital, e de certa forma atenuavam o aspecto triste de um manicômio. Uma placa afixada em uma pedra dizia, em japonês: “Sanatório Jardim

Page 362: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 362 ×

do Sol”. Os arredores eram cobertos por mato, não havia casas por per‑to. Podiam ver, ao longe, no horizonte, o porto de Chiba.

– Certo, tente se comportar como uma pessoa normal – ironizou Oliver. – Ou eles acabam nos deixando aqui.

– O mesmo vale para você – retorquiu Basílio.Os portões de barras finas e metálicas reluziam com o sol da tarde.

Oliver apertou o botão do interfone e aproximou o rosto do aparelho.– Sanatório Jardim do Sol, pois não? – anunciou a mulher do in‑

terfone.– Gostaríamos de fazer uma visita.– Identificação, por favor.– Somos amigos da família Wakanagi.– Um momento.A pausa durou alguns segundos e os portões abriram automatica‑

mente. Badeck ficou parado na entrada.– Estaremos de guarda – falou o guia, fora do alcance das câmeras.– Tudo bem, – confirmou Oliver – eu os chamarei se for preciso.Basílio tomou a frente e percebeu dois acúmens guardando a por‑

ta metálica da entrada. – Esse homem é muito importante para Zaburim.– Mais do que imaginamos, eu acho – comentou Oliver.As estátuas eram um pouco maiores do que o comum e, apesar do

corpo de lagarto, suas cabeças eram de águias. Uma das gárgulas sacudiu a cabeça e voltou a ficar imóvel.

– Eu ainda me pergunto como as pessoas não notam essas coisas.A porta metálica diante deles foi aberta e uma mulher pôs a cabe‑

ça para fora. Ela utilizava uma touca branca e jaleco. – Sejam bem‑vindos Entrem, por favor. O interior do prédio era completamente branco, incluindo o piso

e assentos. Qualquer quadro se destacava nas paredes. – Queremos ver Shibato Wakanagi – pediu Oliver.Basílio parecia consternado com o manicômio.– Interessante. Vocês são amigos dele de muito tempo, não? Quase

ninguém o visita. E o mais interessante é que hoje, pela manhã, ele recebeu a visita de seu amigo Matsuo Fuuma.

“Matsuo esteve aqui? Zaburim procurou por Shibato antes de nós irmos ao encontro dele?” Oliver escondeu a surpresa e limitou‑se a sor‑rir. “Quase me esqueci do que Kotaro falou. Zaburim deve estar envol‑vido com o homem que nos persegue desde que chegamos ao Japão.”

– Crescemos juntos e depois voltei meu país de origem, o Brasil. Re‑tornei esses dias e fiquei sabendo a respeito de seu incidente, então resolvi visitá‑lo.

– Compreendo, me sigam, por favor. – A funcionária deu‑lhes as costas e seguiu para um corredor à direita, que terminava na recepção.

Page 363: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 363 ×

– Matsuo esteve aqui – contou Oliver para Basílio. – Matsuo? – estranhou Basílio. – Faz pouco tempo? – Não, antes de nos encontrarmos com Zaburim. O demônio está

envolvido com aquele que nos persegue desde o começo... Creio que estejamos em uma armadilha.

– Fuuma sabia mais do que imaginamos – deduziu Báz. – Aquele demônio estúpido nos escondeu o jogo.

– Já era de se esperar – Oliver deu de ombros. – A bebida nos serviu de bom tamanho, pois ele entrou no assunto, mesmo que tenha sido muito vago.

A funcionária subiu as escadas para o segundo andar e guiou‑os por outro corredor branco repleto de portas numeradas. As placas me‑tálicas contendo os números contavam de 200 até 250. Ela chamou um dos seguranças do andar, um oriental baixo e forte, e murmurou algo em seu ouvido. Basílio sentia uma estranha sensação familiar inundar seus sentidos. Lembrou‑se instintivamente do obsessor de Matsuo.

– Ele os levará até Shibato. Eu só peço que tentem tomar o máximo de cuidado possível com ele e não abordem seu passado.

– Faremos o possível – adiantou‑se Oliver. – Só mais uma coisa... Pode me dizer se Fuuma estava acompanhado?

– Sim, – esclareceu ela – Noboru era o nome dele, se não me engano.Oliver esperou que ela se retirasse para acompanhar o segurança

até o quarto 243. As portas eram brancas e possuíam apenas uma jane‑la transparente que permitia enxergar seu interior. Uma portinhola no centro da porta servia para a passagem de bandejas com alimento. O se‑gurança de branco conferiu pela janela e depois abriu a porta, deixando espaço para os visitantes passarem.

– Vocês têm uma hora – informou ele. – As cadeiras da última visita ainda estão aí.

O quarto era branco e limpo: possuía uma cama, uma mesa retrá‑til, duas cadeiras, um vaso sanitário e a entrada da ventilação no teto. Embolado na cama, silencioso, jazia um homem. A porta atrás deles se fechou e o segurança cruzou os braços, aguardando‑os do lado de fora.

– Aqui estamos – suspirou Basílio. – Esta é a única pista que te‑mos do nosso terceiro cavaleiro.

– Wakanagi Shibato?O homem completamente coberto pelos lençóis sequer se mo‑

veu. A subida e descida de seu peito era a única indicação de vida. Basílio aproximou as cadeiras da cama, e ambos sentaram‑se.

– Eu me chamo Oliver e este é meu parceiro Basílio. Acho que quer saber quem nós somos e o que fazemos aqui, não é?

Não houve resposta. – Viemos de longe para encontrar alguém e o senhor é a única

pista que nos resta. – Oliver baixou o olhar. – O mundo está prestes a

Page 364: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 364 ×

passar por uma, como posso dizer... Mudança crucial. O senhor não é o único que passou por problemas sérios, digo, não sei exatamente o que o senhor passou, mas posso ter uma ideia...

– Vocês não fazem ideia! – A voz rouca de Shibato assustou os cavaleiros. Ele não falava japonês, mas português. – Não fazem...

Shibato afastou o lençol e sentou‑se na cama. Tinha os cabelos grisalhos cortados bem ralos, rugas cinzentas ao redor dos olhos puxa‑dos e escuros. Parecia possuir por volta dos sessenta anos, senão mais. Seu aspecto estava tão terrível que causava pena em Basílio. Shibato co‑çou a barba por fazer. “Loucos são aqueles que tentam curar essas pes‑soas!”, pensou Basílio, reconhecendo a energia ao redor do Wakanagi: era de Zaburim.

– Você sabe português? – perguntou Oliver, admirado. – Nasci no Japão e cresci no Brasil, meus tios possuíam uma fábri‑

ca de alimentos japoneses no país que rendia muito na época – contou Shibato com uma atitude aparentemente normal. – Como me acharam?

– Achamos sua localização no arquivo C42 – antecipou‑se. Basílio abriu a mochila e entregou a pasta preta para o homem.

– Arquivo C42? – questionou ele chocado. Apesar de sentir nojo, não hesitou em pegá‑la.

– Estamos procurando alguém, e apenas o senhor pode nos ajudar – disse Oliver com pressa.

Zaburim já deveria saber que estavam ali.– Você errou, não posso ajudar ninguém – declarou Shibato. –

Saiam daqui e deixem‑me descansar em paz.– Sabemos que Matsuo esteve aqui a mando de Zaburim – infor‑

mou Basílio. Shibato não demonstrou surpresa.– Diga àquele imbecil que não falarei nada! – xingou o Wakanagi.

– Eu não devo nada a ele! Todas as nossas dívidas já foram supridas pelo que ele fez. Aquele demônio estúpido retirou tudo de mim e não vai me tirar o que resta!

Diante do desespero do louco, Oliver aumentou o tom da voz.– Estamos do mesmo lado! Zaburim pode ter nos tirado a última

esperança que ainda temos. Precisamos da sua colaboração.– Colaborar com amigos daquele demônio? – resmungou o velho,

pondo as mãos nos ouvidos. – Não, não vou!Basílio retirou a mochila das costas e apanhou, de dentro dela,

a lanterna. Oliver não entendeu o que o parceiro queria fazer, mas se era para ajudar deixaria que o fizesse. O cavaleiro acionou a lanterna, e colocou‑a na mão de Shibato, bruscamente. Apenas visível por seu utili‑zador, o facho poderoso de luz inundou a visão do Wakanagi que parecia reconhecer a magia do aparelho. Basílio direcionou a luz sobre Oliver e, repentinamente, o homem mirrado sentado em seu lugar triplicou de

Page 365: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 365 ×

tamanho, adquiriu armadura, capa roxa e uma máscara negra que cobria somente a região dos os olhos. Além da identidade, o Wakanagi também foi capaz de ler as intenções do cavaleiro. Eles não eram maus e nem estavam relacionados a Zaburim. Shibato conteve o grito de pânico e encostou‑se na parede. Desligou a lanterna e depositou‑a delicadamente sobre o acolchoado da cama. Basílio guardou o objeto e voltou a sentar.

– Como você sabia que Shibato já tinha conhecimento dos cava‑leiros da Terra‑Inversa?

– Ele não sabia da existência dos cavaleiros da Terra‑Inversa, mas da magia que estava presente no objeto. Você viu como Shibato chamou Zaburim? De demônio. Shibato sabe da identidade de Hadakko e sabe também como os negócios funcionam. Percebi duas coisas quando en‑trei nesse lugar: uma delas foi a sensação de dejavú ao entrar aqui, pensei que fosse alguma lembrança do passado ou da previsão que tive, porém a sensação ficou mais forte ao me aproximar desse quarto. Foi aí que percebi que o reconhecimento não era do lugar, mas da energia emanada por Shibato: ela é semelhante à de Zaburim e do obsessor de Matsuo. A lanterna foi só uma... forma de mostrar a ele quem somos de verdade.

– Aonde você quer chegar? – questionou Oliver confuso.– Shibato é...– Irmão gêmeo de Zaburim – concluiu o próprio Shibato. – Você

é inteligente, inteligente.O velho aquietou‑se na cama, juntou e encolheu as pernas.

Olhando atentamente, percebia‑se que Shibato possuía os mesmos traços de Zaburim. Não foi fácil reconhecê‑lo de primeira mão porque Zaburim possuía um corpo obeso que o deformava. Mas os olhos eram os mesmos... Miúdos e sagazes.

– A família Wakanagi tem um gene especial responsável pelo nas‑cimento de gêmeos; meu pai tinha um irmão gêmeo assim como eu, meu avô possuía outro e assim sucessivamente – murmurou Shibato, incomodado. – Vocês são cavaleiros da Terra‑Inversa, não são?

Basílio concordou. – A nossa família tem uma “maldição”, que faz um dos gêmeos

sempre tender à loucura. E isso se mostrou desde cedo em Zaburim que dizia ter sonhos com cavaleiros de capas roxas e armaduras reluzen‑tes. Meus pais resolveram ignorar esse fato e nos mandar para o Brasil, acreditando que, dessa forma, conseguiriam mudá‑lo. Eu sempre fui um jovem estudioso e trabalhador que queria progredir na vida; já Hadakko Hamoru – Shibato preferia se referir ao irmão com o nome familiar – tinha comportamentos estranhos. Ele era inteligente e não precisava estudar para saber, ele era “prodígio”. Ou pensavam que era... Depois de um tempo, Hamoru recobrou suas lembranças de demônio e tornou‑se mais “louco” do que nunca. Uma noite ele contou‑me seu segredo do qual me vali para meu proveito. Eu sabia que Zaburim gostava de coletar

Page 366: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 366 ×

almas e utilizá‑las para benefício próprio. Então, ele e eu, nos juntamos e criamos um negócio.

Shibato enrolou o lençol na mão direita. Recusava‑se a encarar os dois cavaleiros.

– Hamoru aprofundou seus conhecimentos espirituais e foi me inserindo em seu domínio. Eu sou, e sempre fui, uma mera peça. Mas, mesmo assim, tinha uma forte ligação com o mundo de Hamoru e isso explicava o motivo de nos entendermos muito bem. Eu sempre sabia o que ele sentia e vice‑versa. Isso permaneceu até que o nosso laço que‑brasse e Zaburim começasse a pensar mais alto. Brigamos e, então, nos distanciamos, porque ele queria apropriar‑se de mais almas e tinha pla‑nos absurdos para conquistar legiões de pessoas. Veio com uma propos‑ta de vender órgãos no mercado negro e eu não quis saber, já tinha meus princípios formados e eles batiam com as regras do mundo, e não com as de Zaburim. Eu era médico na época e ele também.

Ele fez menção de parar, mas Basílio incentivou‑o a continuar.– Me dediquei a outros planos e prometi nunca ter filhos, pois eu

não queria vê‑los tomando o mesmo rumo que Hamoru e eu. Porém, encontrei uma mulher que me fazia feliz. Ela quis filhos e, para não perdê‑la, dei‑lhe um par de gêmeas. Elas pareciam muito sadias e não apresentavam nenhum tipo de mal ou esquizofrenia. – Shibato levou as mãos até o rosto e começou a pressionar os olhos. – Só que uma delas começou a apresentar problemas de saúde. Nós a levamos a um médico e ele descobriu uma deficiência renal. Ela precisava de um novo rim. Não pensei duas vezes em recorrer a meu irmão. Negociamos e resolvi que daria tudo, inclusive minha alma e todos os meus bens, em troca da vida de minha filha. Não preciso dizer que a operação foi um sucesso...

Oliver moveu‑se na cadeira. Reunir a história de Zaburim com a de Shibato não era fácil.

– Um tempo depois, Zaburim veio cobrar o dinheiro que eu lhe devia, mas eu o havia gastado com o tempo de internação no hospital. Ele me deu um prazo para eu lhe pagar... Só que eu não iria conseguir todo o dinheiro! Entrei em desespero, acreditando que ele, sendo um demônio, ia preferir a alma de minha filha à minha. Eu só tinha um medo: que Hamoru matasse minha família! Eu precisava detê‑lo. Ele já não era mais o meu irmão querido que dividia emoções e sentimentos comigo. – Shibato pausou, contendo o sofrimento. – Por muito tem‑po Hamoru se conteve. Ele, vingativo como nunca, quando viu que eu realmente não o pagaria, me procurou por todos os lugares e, quando pensei que estava a salvo, encontrou‑me e arrancou minha alma do cor‑po. Demônios, mesmo encarnados, podem ocupar mais de um corpo ao mesmo tempo. Odeio essa capacidade deles...Tomou meu corpo e começou a infernizar minha família usando minha identidade... Matou minha esposa e seu filho, esqueci de mencionar que ela já possuía um fi‑

Page 367: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 367 ×

lho do casamento anterior. Para a segurança de minhas filhas, mandei‑as ao Brasil para que estudassem e ficassem longe das garras de Zaburim.

O silêncio reinou por minutos.– Zaburim disse que você tinha enlouquecido e matado por conta

própria! – contou Oliver chocado.– Jamais tocaria um dedo em minha família! Eu entreguei meu

trabalho, que era a coisa mais importante em minha vida, e também minha existência por eles! O arquivo C42 formulou toda uma história cujo principal culpado era eu.

– Eu entendo... – balbuciou Basílio.– Mas eu achei... Achei que minhas filhas estavam seguras. Uma

delas Zaburim fez questão de raptar e matar. E eu, que supunha não ter como sofrer mais, fui colocado de volta em meu corpo e castigado pela justiça japonesa e a C42 me enfiou nesse lugar. Afinal, quem ia acreditar num homem que alegava ter um irmão demônio? Mandei cartas para minha outra filha através de um amigo que era policial, mas nunca recebi resposta, nem do meu amigo, nem de minha filha. Zaburim já deve ter dado cabo dela também, mas preferiu não me falar para que eu vivesse esse terror de ignorar seu paradeiro.

Oliver soltou um ruído de indignação. – E em pensar que aquele demônio parecia ser alguém confiável! – Lamentar‑se agora não vai adiantar nada – Basílio pensou um

pouco. – Eu também cheguei a acreditar que Zaburim era amigo, mas estávamos errados. Shibato não é culpado e sabe tanto quanto nós onde está sua filha.

– Não. – Ele meneou a cabeça negativamente e cuspiu. – Eu fui um péssimo homem, fui um culpado sim. Não pela morte de minha família, mas por outras coisas que fiz. Deveria ter matado Zaburim quando po‑dia! Por mais irmão que ele fosse, ele, antes de tudo, era um demônio.

– Eu só poderei morrer assim que tiver a certeza de... de que... – Ela está viva. Nosso inimigo está usando essa informação para

nos manter sob controle – completou Oliver, pensativo. Basílio fechou os olhos.– Então eu vi a morte da irmã dela, e não dela, Oliver. Oliver aprovou a teoria enquanto contemplava Shibato. – Ainda há uma chance de o cavaleiro estar vivo.

Ayame estava parada diante do manicômio fazia cinco minutos. Fitava o envelope, cujo conteúdo nunca lera, em sua mão. Não se im‑portava com o que seu pai tinha a dizer sobre o assassinato de cinco anos atrás. Por mais que tentasse, Ayame não conseguia esquecer o

Page 368: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 368 ×

passado. As visões a perseguiam sempre e não lhe permitiam viver em paz. Era jovem, tinha muito a viver, mas não encontrava paz. Sentou‑se numa pedra grande que enfeitava a entrada e deixou que as lembranças, mais uma vez, a atormentassem.

Flashback X – 28 de Abril de 2004Ayame parou no corredor. Estava em sua casa, em Tóquio. Sua mãe,

sua irmã e seu irmão haviam saído, mas ela tinha ficado em casa a fim de preparar as malas para viajar ao Brasil pela segunda vez. Olhava para o escritório de Shibato, à sua frente. No momento, seu pai conversava com alguém. Pensou, a princípio, que estivesse ao telefone, mas ouviu uma se‑gunda voz. Reconheceu imediatamente: era seu tio Hamoru, com o qual não convivera muito durante sua vida. Os dois irmãos tinham muitíssima semelhança, à exceção da voz e dos traços de expressão. Hamoru tinha uma expressão malandra, determinada e constantemente risonha. Já Shibato era sério, rígido e sem muita demonstração de afeto.

A porta estava encostada, por isso aproximou‑se dela quando ouviu seu nome.

– O que você fez com minha filha? – perguntou Shibato apoiado com as mãos sobre a escrivaninha.

Hamoru estava de costas para ela. – Não sei do que está falando. Vim aqui para cobrar o que você me

deve! – acusou Zaburim batendo o punho na mesa. – Eu não pagarei por uma coisa malfeita! – Ohh, eu entendi – disse Hamoru, mais baixo. – A sua filha está

apresentando sintomas, não está? Ela é como eu, uma louca.Shibato soltou palavrões ao vento.– Não repita isso! Minha filha não é louca!– Se aconteceu algo com Ayame, tenho certeza de que não foi por

causa de meu “favor” a você. Você sabia desde o início que nós não deví‑amos ter filhos! Nosso legado genético ia aparecer de um jeito ou de outro.

– Favores não são cobrados dessa forma, Hamoru. Você sabia que eu não conseguiria pagá‑lo e agora está colocando sua maldição em minha filha. Quero que pare já com isso! Deixe‑a em paz! Já disse que pode ficar com minha alma!

– Sua alma não me serve – retrucou Zaburim, enojado. – Se eu a quisesse, já teria roubado para tê‑la ao meu dispor. O mais interessante é que nunca precisei forçar você a fazer nada. Sempre me obedeceu como uma mula! Não sei o que aconteceu com você. Agora, no entanto, age como se fosse santo. Você é um assassino, assim como eu. Você matou comigo!

– Eu nunca matei ninguém! – defendeu‑se Shibato.– E todas aquelas crianças? E aqueles experimentos? O que tem a

dizer sobre eles?Zaburim, que carregava uma pasta preta na mão, atirou sobre a

Page 369: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 369 ×

mesa. Shibato hesitou.– Elas estavam mortas... – Mortas? Desde quando você ficou tão burro? – indagou o demô‑

nio, rindo. – Pessoas em coma ou mentalmente incapazes, quando ainda respiram e têm batimentos, não estão mortas. Essas crianças que você usou estavam vivas... E você as matou. É tão assassino quanto eu!

– É diferente! Não me compare com você! Saia da minha casa, já! – gritou Shibato, segurando o irmão pelo braço e o carregando para fora do escritório.

– Não importa o motivo: quando você mata alguém, é um assassino. Você ainda não me pagou o que deve! – riu Zaburim.

– E nem pagarei. Se tocar um dedo em minha família, juro que aca‑barei com você! – ameaçou Shibato já no corredor.

Ayame, que se escondeu no quarto de seu irmão para não ser desco‑berta, entrou no escritório e juntou a pasta sobre a mesa. Nela havia duas divisórias: numa havia uma folha negra repleta de códigos os quais não entendeu, na outra, dezenas de fotos de crianças deficientes, e de pessoas em cama hospitalar, entubadas, aparentando estarem em coma. Anexados às fotos, os laudos médicos e a descrição de todos os experimentos feitos por Shibato. Ayame arregalou os olhos, incrédula. Havia relatos horríveis do que aconteceu com os pacientes durante os testes, coisas estas que não eram dignas de perdão. Na parte inferior de cada folha, havia um carimbo preto com a palavra “óbito”.

Como era possível que seu pai tivesse feito tanto mal àqueles huma‑nos? Shibato surgiu no corredor quando Ayame depositou a pasta no lugar.

– Ayame? – perguntou Shibato, surpreso. – O que está fazendo aqui? Pensei que tivesse saído com sua mãe.

Os olhos dela estavam cheio de lágrimas. “Meu pai é um monstro”, pensou consigo mesma. Ela se afastou quando Shibato se aproximou. Suas mãos tremiam tanto que precisou abraçar‑se para tentar se acalmar.

– Ah, Meu Deus... Você ouviu a conversa e olhou o que estava na pasta! – exclamou Shibato. Apanhou a pasta e a atirou para dentro de sua gaveta. – Filha, por favor...

– Você... Você é um monstro! Eu li... o que estava escrito. Quantas pessoas você matou daquela forma cruel?

Shibato ficou um tempo em silêncio, congelado de pavor. Sua famí‑lia jamais deveria tomar conhecimento de seu trabalho. A explicação de seus propósitos ia além da compreensão.

– Espere! Você está entendendo tudo mal... Eu não sou nenhum monstro. Você nunca entenderia o que eu tive de fazer, não é...

– Você matou inocentes! – bradou ela, atirando a cadeira para cima do pai quando ele tentou se aproximar. – Eu não acredito nisso! Eu achei que você fosse um médico, não um assassino! E... E você sempre criticou Hamoru, dizendo que ele era o problemático da família e que jamais de‑

Page 370: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 370 ×

veríamos vê‑lo.Shibato não sabia o que fazer. Ayame era sua filha. Como ela olharia

de novo para sua cara sem achar que era algum tipo de psicopata? Huma‑nos nunca entenderiam o seu propósito naquela Terra.

– Foi necessário, Ayame! – disse o pai, desesperado. – Toda a minha vida dependia desses experimentos! Você, sua irmã Kora, sua mãe... Ne‑nhuma de vocês estaria aqui agora se eu não tivesse feito o que fui manda‑do fazer! Os humanos precisam disso, querida... Eles precisam do que eu conquistei com os experimentos!

– Nada do que você fala faz sentido! Como a humanidade pode ga‑nhar com uma coisa baseada na dor, no sofrimento e na vida de inocentes?

– Mas eu tenho a cura! – defendeu‑se Shibato, assustado. – Milhões de mortes podem ser impedidas agora... Câncer, AIDS, Alzheimer... Posso passar a tarde citando as doenças que eu desvendei! Eu encontrei a cura para tudo isso! Não haverá mais dor, nem sofrimento, nem pessoas mor‑rendo em vão por causa de doenças! Entretanto, tudo tem um preço... E esse foi o preço que tive de pagar. Acredite, eu não queria isso... Eu lutei contra isso, mas não pude. Foi por uma boa causa!

– Boa causa? BOA CAUSA? – gritou Ayame, afastando‑se em dire‑ção à porta. – Não vejo boa causa no sofrimento daquelas crianças... Você tarjou‑as de desprezíveis! Valeu‑se da vida de umas pessoas para prolongar a de outras! Isso não é cura, é uma doença maior ainda, como um câncer, que vai devorar com o mundo... Não acredito que você fez isso! Meu Deus, você é meu pai!

– Ayame! – chamou Shibato quando a garota saiu da sala. Tentou al‑cançá‑la, mas ela era mais rápida e deixou a casa antes que pudesse detê‑la.

– Ela está certa, eu sou um monstro – disse Shibato para si mesmo.Ayame abriu a porta e entrou. Esperava encontrar uma família que

a recepcionasse com xingões por ter desaparecido o dia todo, mas o vazio da casa chegava a ser assustador. Depois que fugiu de Shibato, Ayame passou o resto do dia e início da noite vagando pelas ruas, pensando no que seu pai realmente era. “Talvez eu tenha herdado dele essa aberração de prever mortes”, pensou consigo. As lâmpadas da sala e da cozinha estavam acesas e uma chaleira no fogão gritava ao liberar vapor pela boca. Ela correu até o fogão e desligou. Pensou duas vezes antes de chamar pelos pais e irmãos ao subir as escadas para os quartos. Notou algumas marcas de sangue no biombo azul do corredor.

“Será que aconteceu algo por aqui?”, perguntou mentalmente.– Pai? Mãe? Não obteve resposta.– Kora? Kitaki?As manchas de sangue aumentavam conforme chegava ao quar to

de Kitaki. Empurrou a porta lentamente. Ayame recuou e bateu as costas contra o outro biombo. Não sabia se gritava, chorava ou corria: caído ao

Page 371: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 371 ×

lado da própria cama, o braço de Kitaki, única parte do corpo dele visível, estava imóvel. Tropeçando no carpete sujo, ela afastou‑se, mas as visões aterradoras não acabavam por ali: gemidos curtos e baixos provindos do quarto de casal fizeram‑na temer o pior. Então, a voz de seu pai foi ouvida.

– Você viu o que o seu maridinho podre me obrigou a fazer? – ques‑tionou o suposto Shibato. – São apenas negócios, mulher, estou pegando o que ele tirou de mim.

– Você é um monstro! – Era a voz de sua mãe. – Você é um demônio! Matou... Matou Kitaki! Como pôde? COMO PÔDE?

– Cala a boca! Um tapa foi desferido.– Falta pouco... Muito pouco para que eu termine a cobrança. Houve um tempo de silêncio, durante o qual Ayame engatinhou até

a porta semiaberta. – O que você vai fazer? – perguntou Naoko. Sua voz estava apaga‑

da. – Você não teria coragem... Não...Ayame espichou‑se para olhar. Sua mãe, amarrada à cama, com

roupas manchadas de sangue, tentava desvencilhar‑se. Shibato prendeu‑a pelo pescoço. “O que eu faço? Eu não posso deixar que meu pai faça isso!” Porém, não conseguiu fugir. “Por que ele está fazendo isso com sua própria família? Eu deveria ter adivinhado que ele se ele fez tanto mal para aquelas pessoas da pasta, também faria para mim”, pensava ela, imóvel. O rosto molhou‑se de lágrimas. “Eu não consigo me mexer.”

Zaburim sorriu maliciosamente assim que o trabalho terminou. O demônio apanhou o telefone, discou rapidamente o número e, ao falar, seu tom de voz mudou radicalmente. Tornou‑se grave e gélido.

– Já pegou a garota? – Ótimo. Execute‑a aí no beco e deixe o corpo junto com os outros. Ayame sentiu um frio na barriga.“Ele deve estar falando de Kora! Eu preciso fugir.” Trêmula, Ayame

engatinhou pelo corredor. Fechou os olhos, desejando não ver a cena.Levantou e correu até a cozinha com o coração saindo pela boca:

precisava de ajuda. Zaburim, possuindo Shibato, surgiu na cozinha. Seus olhos ardiam em chamas e sua fisionomia era demoníaca. Ayame sentiu, naquele momento, que aquele monstro não podia ser seu pai. Arrancou a chave da porta e trancou‑a por fora. Nada mais lhe importava. Só queria fugir: mas não havia para onde ir.

A rua escura e deserta de sua casa parecia interminável. Não ha‑via movimento em quilômetros de distância. Poderia bater na porta de qualquer vizinho e se esconder, mas sabia que o assassino de sua família não pouparia nenhuma vida inocente para pegá‑la. Ayame não viu os três capangas que acompanhavam seu suposto pai deixarem o veículo em frente à casa e a perseguirem.

– Volte aqui, menina! – gritou um deles, que era robusto e assustador.

Page 372: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 372 ×

– Droga! – exclamou Ayame, apavorada. Tentou apressar o passo, mas eles eram maiores e muito mais rápidos do que ela.

Ela entrou em uma pracinha, na esquina de sua rua. Havia muitos brinquedos infantis e bordos japoneses, que cercavam a praça com suas fo‑lhas levemente avermelhadas. Ali, onde as árvores eram mais abundantes, não era possível enxergar nada entre as sombras.

Ayame parou e olhou para trás. Infelizmente, eles continuavam em seu encalço. Afastou os arbustos em seu caminho, atrás de um escorregador, e percorreu a trilha que servia para as pessoas caminharem. A japonesa parou quando ouviu um som escorregadio e rápido, feito uma lâmina po‑dando plantas, e sentiu o ar se agitar ao seu lado. Forçou a visão e não viu nada na escuridão.

– Socorro! Alguém me ajude... – pedia a garota, voltando a correr. Embora sabendo que sua família estava morta, ela teve sangue‑frio o su‑ficiente para fugir. Queria viver. Queria fazer seu pai pagar pelo que fez.

Os perseguidores aproximavam‑se ao longe. Ayame precisava correr mais rápido, mas seus músculos doíam e sua respiração acelerava, quei‑mando‑lhe os pulmões.

“Você quer ajuda, minha pequena?” – perguntou uma voz tão sus‑surrante, que chegava a ser chiada e vinha propagada pelo vento. – “Eu posso te salvar, posso cuidar de você.”

Ayame exclamou de medo, mas não parou de correr. O ar mais uma vez se agitou, dessa vez à sua esquerda. As plantas chicotearam umas nas outras com o movimento brusco.

– Quem está aí? – perguntou ela, ofegante. Ayame tropeçou nos próprios pés e caiu. Ralou os pulsos e os joelhos,

mas mesmo assim não desistiu. Engatinhou de costas enquanto olhava apa‑vorada pelos lados. As plantas moveram‑se em sequência, primeiro à sua esquerda de novo, depois a direita e, por fim, às suas costas. Sentia medo, muito medo. Seria mais um inimigo, oculto nas sombras, entre as árvores? Viu os perseguidores se aproximando pela trilha, mais adiante.

“Eu vou cuidar de você, minha preciosa” – proferiu a voz sussur‑rante. Ayame teve a impressão de ver uma sombra negra se destacando das demais, à sua frente. Era comprida e tão grossa quando o caule de uma árvore. – “Deixe‑me protegê‑la desses homens maus...”

Um dos perseguidores sacou a arma. Ayame não quis saber se estava alucinando ou se a voz que ressoava em seus ouvidos era real. Sua única vontade era a de sobreviver.

– Salve‑me! – gritou ela, levantando aos tropeços e voltando a correr.O capanga troncudo parou de correr e gesticulou para seus dois par‑

ceiros: um deles seguiu Ayame, e o outro desapareceu entre as árvores.– Pare de correr, cretinazinha – tachou o sequestrador. Para a surpre‑

sa de Ayame, ele agora corria tão rápido que já estava em seus calcanhares.Porém, antes que a mão de seu inimigo agarrasse a gola de seu casa‑

Page 373: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 373 ×

co, o vento à suas costas ricocheteou com intensidade quando o sequestra‑dor, entre um grito de dor, foi atirado para a escuridão das árvores. Ayame ouviu o barulho de folhas sendo amassadas, corpos se batendo e, por fim, silêncio. “Senhor, o que está acontecendo?” perguntou ela assustada.

– Te peguei! – exclamou outro capanga, surgindo das plantas à sua frente.

Mais uma vez, antes que ele pudesse tocá‑la, Ayame viu, com seus próprios olhos, uma sombra negra comprida deixar a escuridão e envolver o corpo do sequestrador.

– Mas... mas o que é isso? – perguntou ele, apavorado, quando foi arrastado com violência para o mesmo lugar onde a sombra surgira.

Ayame recuou um, dois, três passos. O silencio da praça perturbou‑a. Engoliu a seco e não soube qual direção seguir. Se voltasse pelo mesmo trajeto, poderia encontrar o assassino de sua família. Se continuasse, um perigo maior ainda a espreitava. Estava encurralada. Lágrimas escorriam de seus olhos enquanto sua respiração barulhenta era o único som da noite.

– O que eu faço, o que eu faço... – repetia baixinho.Trincou os dentes quando o mato a sua frente se mexeu e dele surgiu

o terceiro e último sequestrador, o mais troncudo, que havia ficado para trás. Apesar do primeiro susto, Ayame percebeu que ele parecia fora de si. Suas mãos tremiam e de sua boca saíam palavras sem sentido. Seus olhos arregalados foram ao encontro dos de Ayame.

– Não há para onde ir, ele carrega o inferno nos olhos... Posso sentir... sentir o fogo queimando em minha pele!

O capanga avançou até Ayame e segurou seus olhos.– Me salve... Por favor, me salve!– Eu não sei do que está falando! – bradou ela, se afastando com

nojo do homem. Subitamente, o homem dirigiu os olhos para trás de Ayame, cerca de

dois metros e meio acima.– Me‑me perdoe! Eu n‑não queria machucá‑la! – suplicou ele.Ayame não se moveu. Acima de si, só conseguia sentir o som chiado

que provinha da boca da criatura. – Não me mate! – gritou ele ao se ajoelhar e tocar a cabeça no chão. “Corra...” – chiou a sombra. – “O máximo que suas pernas e seu

coração aguentam. Eu vou pegá‑lo, aonde quer que você for.”O sequestrador levantou e correu. Ayame, embora soubesse que ha‑

via algo às suas costas, sentiu‑se segura e relaxada. Uma energia quente apoderou‑se de todo o seu corpo quando a criatura negra aproximou‑se dela. Ayame olhou para cima; uma cabeça enorme, com dois olhos verme‑lhos como rubis, quase se mesclava ao negro do céu. O leque que envolvia seu pescoço fechou até se unir ao corpo. A cobra lembrava uma naja, caso não possuísse mais de quinze metros de comprimento e um corpo grosso, capaz de envolver um humano e partir‑lhe todos os ossos.

Page 374: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 374 ×

“Sinto muito, pequenina,” – pediu‑lhe a criatura – “mas nada pude fazer por sua família.”

A cobra abriu um pouco os lábios e assoprou uma fumaça arroxeada em Ayame. A garota sentiu uma forte sonolência que a obrigou a cair de joelhos e, depois, tombar para o lado desacordada.

“Apenas durma. Por essa noite, nada mais a machucará” – prometeu a cobra ao seguir pela trilha de terra‑batida, atrás de sua presa fugitiva.

Fim do Flashback X.A oriental guardou os envelopes no bolso. Entre alucinações e perguntas não respondidas, Ayame via‑se in‑

serida em um mundo de loucuras sem fim. Depois daquela noite, seu pai foi preso pelos assassinatos, e sua irmã encontrada morta num beco. Quando acordou, estava em um hospital, deitada em uma maca.

– Ele é um assassino! Um assassino... E vai pagar caro por isso! Eu não o temerei... Chega de fugir do passado – disse para si, seguindo até os portões. Um tempo depois o conselho tutelar entregou‑a para Chen, que a cuidou como um bom segundo pai.

O que estava acontecendo afinal? Por que diabos seu passado não a deixava em paz?

Page 375: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 375 ×

Capitulo 29Desventuras de um louco

A mão de Ayame tremia freneticamente quando parou no hall de entrada do manicômio. Tudo acontecia conforme sua previsão... Estava ali porque queria, não porque a obrigaram. Os envelopes dentro da cai‑xa no chão de seu quarto jamais foram abertos e, em nenhum momen‑to, ela quis isso: afinal, eram de seu odiado pai biológico. As lágrimas teimavam em molhar seu rosto, mas ela se esforçava para manter‑se sob controle. A funcionária ficou surpresa quando ela disse que queria ver Shibato Wakanagi.

– Você não é a primeira nem a segunda pessoa a passar aqui hoje. – Como assim? – estranhou a jovem. – Ele tem conhecidos?– Os registros dizem que apenas um amigo o visitava às vezes.

Raramente o sr. Wakanagi recebia visitas! Ele já passou um ano sem que ninguém viesse vê‑lo. E hoje, um dia como qualquer outro, ele recebe três visitas diferentes. Você é o que dele?

– Uma... parente próxima, sou sua prima – respondeu instantane‑amente. – Poderei vê‑lo?

– Sinto muito, mas o limite de visitas diárias já foi ultrapassado. Você poderá escrever um recado para ele se quiser.

“Droga! Eu vim de tão longe para isso? Essa pode ser a minha úl‑tima chance de vê‑lo. Só preciso perguntar o porquê de ter matado mi‑nha família. Seria um outro experimento talvez?”, pensou rapidamente.

– Vou deixar um recado então. Tem uma caneta e papel aí? – Claro, – disse a funcionária educadamente, estendendo a ela

uma caneta e um papel amarelado – entregarei a ele assim que possível.“É finalmente hora de conversarmos. Acho que você deve ter es‑

perado muito tempo por isso, portanto não medirei palavras ou esfor‑ços. Assinado.: WA.”

Dobrou o papel e entregou à mulher, que rabiscou o número 243 e o depositou sobre a mesa da recepção.

– Tem algum banheiro por aqui?– Pegue este corredor e vire à direita, há uma placa dizendo “Sa‑

nitários” – detalhou a funcionária, sinalizando com a mão o caminho.

Page 376: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 376 ×

Ayame fez uma reverência para ela e adiantou‑se até o banheiro. Suas passadas ecoavam através das paredes brancas. No reflexo do espe‑lho do banheiro, Ayame estava muito pálida e consternada. Molhou o rosto a fim de amenizar aquelas marcas.

– Eu não deveria ter vindo aqui. Shibato é um homem mau... Ele matou muitos inocentes e não é digno de minha presença! Nem acre‑dito que ele possa ser meu pai. O que conseguirei com ele além de lem‑branças más? Droga! Maldita previsão que me trouxe até aqui!

Respirou fundo. – Vou ficar em algum hotel e retornar amanhã, de qualquer forma.

Ainda preciso perguntar para Shibato por que matou minha família!Ayame chegou rapidamente à recepção e não viu a funcionária.

“Acho que vou chamar um táxi, ela nem vai notar se eu pegar o telefo‑ne”, pensou alto, apoiando‑se sobre o balcão. Esticou a mão e sentiu uma textura molhada sobre o telefone, recolheu rapidamente os dedos e viu que estavam sujos de sangue. Chocada, percebeu que o balcão in‑teiro estava manchado e, escondida embaixo da mesa, conseguia ver as pernas imóveis da funcionária.

– Caramba! Você viu quem fez isso? – indagou o homem em por‑tuguês, com as mãos também sujas de sangue.

Ele era alto, entroncado e tinha cabelos grisalhos. – Assassino! – exclamou Ayame em Japonês. – Afaste‑se de mim!– Eu não fiz isso! – Basílio limpou as mãos sujas nas vestes e ges‑

ticulou. – Eu ia até o banheiro e, quando cheguei aqui, já estava assim!O cavaleiro fazia um esforço tremendo para se explicar. – Quando cheguei aqui, ela já estava morta – repetiu, mesmo que

ela não entendesse. Basílio deu as costas para a garota.– Zaburim, – murmurou dedutivo, voltando‑se para ela – foi ele! Já era a segunda vez que Ayame ouvia nome Zaburim naquele

dia. A porta de entrada foi escancarada e Noboru entrou. Outros dois homens obedientes estavam atrás dele.

– Você é infantil e fútil, Ayame‑chan, para minha sorte – xingou o capanga, sorrindo maliciosamente.

Basílio reconheceu Noboru imediatamente.– O que faz aqui, baka12? – indagou Noboru para Basílio, surpreso. – Eu não sei o que fiz, mas me deixem em paz! – esganiçou Ayame.– Você é uma garota muito desdenhosa! Sua irmã foi muito mais

fácil de matar do que você! – xingou Noboru.Basílio sentiu um frio na barriga quando percebeu que Noboru

parecia mais interessado na japonesa ao seu lado do que nele mesmo.

12 É utilizado como xingamento. O mesmo que idiota, otário, bobo.

Page 377: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 377 ×

– Wakanagi, – murmurou Noboru – acabou para você.“Ela é a cavaleira!”, deduziu Basílio quando viu o homem pressio‑

nar o gatilho contra a garota. Jogou‑se na frente dela sem pensar duas vezes. Ayame afastou‑se de Basílio quando ele foi acertado. “Ele me aju‑dou sem me conhecer?” Mal Ayame terminou o pensamento, o tiro de Noboru selou sua vida. A visão escureceu, os pensamentos esvaíram‑se e a sensação de vazio afetou‑a: mais uma vez experimentava a morte.

A textura do papel amarelado nos dedos fê‑la retornar à realidade. A funcionária a encarava preocupada.

– Você está bem? Parece tão pálida!– Estou... Eu, eu estou sim! Ayame olhou para fora através da janela ao lado da porta e não viu

ninguém suspeito no pátio.– Posso usar o banheiro?– Sim, pode. Fica...– Eu sei onde fica – precipitou Ayame.– Vai querer que eu já chame um táxi? Ei... Ayame empurrou a funcionária na primeira oportunidade. Subiu

as escadas até o segundo andar com o número “243” fixo na cabeça. Seguiu a numeração dos quartos e parou na metade do corredor: havia um segurança em frente ao quarto aonde queria chegar. Pensou rápido, abordando‑o apressada.

– A funcionária está lhe chamando – mentiu Ayame. – Parece que um paciente fugiu do quarto! Ele está destruindo tudo!

O segurança, sem pestanejar, correu em direção às escadas. Quan‑do ele sumiu de vista, Ayame abriu a porta do quarto. “Por que eu não fujo? Por que não dou um jeito de sair daqui? Eu vou morrer essa noite se continuar atrás de Shibato” pensou. Seu coração disparou quando viu um homem de pé, defronte a outro vestido de branco, sobre a cama. Tanto Oliver quanto Shibato ficaram em silêncio. Eram os mesmos ho‑mens da previsão que teve quando ainda estava em seu apartamento.

A voz de Ayame emudeceu. A curta espocada de tiro vinda do andar de baixo levou‑a a entrar parcialmente no quarto. Usou o pé para não deixar a porta fechar. “As coisas se alteraram depois que eu mudei o rumo da história”, refletiu ofegante. Ayame estava abalada demais para responder. Afastou‑se do quarto e saiu correndo.

– Eu escutei um tiro? – indagou Shibato, pondo‑se de pé. A garo‑ta parecia ser muito familiar ao seu olhar.

– Sim, – confirmou Oliver – só pode ser coisa de Zaburim.– Quem é aquela garota? Ela não parece ser daqui! – perguntou

Shibato. – O que está acontecendo lá embaixo?Oliver pressentiu uma sensação familiar e associou‑a ao demônio.

O rosto de Basílio grudou na janela da porta assim que ela se fechou, assustando o cavaleiro. Basílio estava com as vestes sujas de sangue, po‑

Page 378: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 378 ×

rém não havia ferimentos. – Foi tão rápido! Eu estava saindo do banheiro quando Noboru...– Noboru? Por que você está sujo de sangue? – quis saber Oliver.– Eu vi Noboru entrar no manicômio e atirar na funcionária, só

que, coincidentemente, um segurança que descia as escadas atirou em um dos dois capangas. E então Noboru matou o segurança. Depois eles pegaram o comparsa e o retiraram de lá. Fui ajudar o segurança e a fun‑cionária, mas eles já estavam mortos! Então corri para cá e...

Basílio sacudiu a cabeça.– Noboru está aqui? – interrompeu Shibato.– Ele está armado e nós não! – exclamou Basílio, apanhando a

mochila. – Ele virá direto a nós, não temos nem chance de revidar. – Eu sei o que fazer. – O Wakanagi vasculhou as cobertas até en‑

contrar um grampo de cabelo. – O manicômio tem um sistema evasivo. Caso o prédio pegue fogo, basta puxar a alavanca no final do corredor que todas as portas se abrem para que os loucos possam sair e se salvar.

A porta possuía um sistema que não permitia ser aberta por den‑tro, então Shibato enfiou o grampo na fechadura e moveu‑a por inter‑mináveis segundos. Por fim, conseguiu destrancá‑la.

– Você já deve ter feito isso várias vezes, não? – perguntou Oliver, saindo à frente. – O corredor está limpo.

– Eu gostava de passear pelos jardins às vezes. – Você não fez nada! Por que nunca fugiu? – interrogou Basílio. – Eu sou mesmo culpado de tudo. Além disso, depois que meu

irmão acabou com minha vida, nada mais me sobrava. Como tinha a cer‑teza de que jamais encontraria minha filha, resolvi que este lugar seria a minha casa. Aqui é tão normal quanto o mundo lá fora; loucura é só uma característica que faz os internados se comunicarem melhor.

Oliver parou. No final do corredor, a oriental estava apoiada so‑bre a caixa metálica do sistema evasivo de incêndio. Os olhos castanhos dela fitavam Shibato como se este fosse uma erva daninha a ser podada. Naquele instante o cavaleiro gelou.

– Oliver! – chamou Basílio ao perceber passos na escadaria pela qual viera. – Eles estão vindo!

Ayame quebrou a porta de vidro da caixa do sistema e puxou a alavanca. A sirene espalhou‑se por todas as peças do enorme prédio e não demorou para que os médicos e enfermeiros começassem a gritar. As portas dos quartos abriram uma fresta que libertaria os loucos. Irri‑tado, Noboru atirou em um enfermo que tentou agarrá‑lo e viu a garota correndo em direção à outra extremidade do corredor para subir ao an‑dar seguinte. Os aparelhos anti‑incêndio embutidos no teto dispararam água sobre todos. Dezenas de pacientes tomaram os corredores. Os mais sãos corriam, e os mais insanos ficavam para apreciar o espetáculo.

Oliver correu na direção oposta de Basílio e Shibato, e mistu‑

Page 379: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 379 ×

rou‑se aos internados para passar despercebido por Noboru. “Estamos em uma armadilha...” pensou o cavaleiro, quando um estalo percorreu sua mente. Acima de tudo, Noboru parecia querer chegar primeiro na garota do que neles.

– Aonde você vai, Oliver? – gritou Basílio.– É ela, Basílio! – urrou Oliver, alcançando as escadarias por onde,

há pouco, passara Ayame. Báz precisou da ajuda de Shibato para esquivar‑se da horda ensan‑

decida. Um turbilhão de insanos impediu que Oliver subisse, obrigan‑do‑o a segurar‑se no corrimão, e ver‑se prensado contra a parede.

– Pare de atirar! – ordenou Noboru para o outro capanga, quando viu Oliver e Basílio. – Guarde as balas, precisamos pegar a garota! A garota! Eles estão todos aqui! Avise Zaburim que o plano foi cumprido.

“Zaburim está nos entregando a cavaleira, mas por quê?”, pergun‑tou Oliver, mentalmente, ao se grudar contra a parede a fim de não ser amassado.

Noboru fez o mesmo para conseguir passar pela revoada de de‑mentes que inundavam os corredores a fim de salvarem suas vidas. Al‑guns carregavam utensílios afiados encontrados nas salas ou retirados de algum enfeite. Ayame chegou ao terceiro andar e foi surpreendida por um louco de branco que a abraçou.

– Encontrei minha princesa!– Me solta! – exclamou ela, debatendo‑se.– Amigos! Vamos salvar essa princesa do mal que a corrompe. Outros dois homens de branco seguraram com força a garota, um

em cada braço, e guiaram‑na até a outra extremidade do corredor.– Me solta! Eu não sou nenhuma princesa! – É sim, você é! – riu o maluco, maliciosamente, caminhando logo

atrás dos outros dois capachos. – E se tornará minha rainha quando eu retirar‑lhe o coração!

“O que eu poderia esperar que acontecesse num manicômio?”, pensava ela enquanto tentava inutilmente livrar‑se das mãos deles. Os pacientes amontoavam‑se ao redor dos chafarizes anti‑incêndio. Basílio ouvira os gritos da garota e empurrou todos os que estavam à sua frente para acudi‑la. Usando toda a força e agilidade, corria agarrando‑se nas portas para não resvalar e cair. O trio de loucos carregava a garota em direção ao quarto andar.

– Oliver! Oliver! Báz olhou para trás e viu‑se sozinho; Oliver, que antes estava na

frente, tinha ficado para trás com Shibato na metade da escada, impedi‑do de continuar graças aos loucos.

– Essa ideia de disparar o sistema anti‑incêndio foi péssima!Yasuo, o louco que planejava a morte de Ayame, apanhou um caco

de vidro escondido nas meias brancas empapadas de água. Ayame fora

Page 380: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 380 ×

prensada contra a parede em frente à escada e Yasuo parou diante dela. Deslizava o vidro perigosamente entre os dedos.

– Minha missão é torná‑la rainha, mas para isso preciso pegar seu coração!

– Eu já disse que não sou nenhuma princesa! Se retirar meu cora‑ção eu vou morrer, e não poderei ser sua rainha!

Ele mirou o peito da garota, mas foi impedido de agir por um soco de Basílio na bochecha. O cavaleiro agarrou‑o pelas vestes e jogou‑o no chão. Yasuo deslizou alguns metros com as mãos na bochecha dolorida.

– Um intruso adentrou nosso castelo! Mate‑o! – bradou Yasuo, tentando ficar de pé.

Os dois loucos munidos de cacos de vidro tentavam acertar o cavaleiro. Basílio recebera dois cortes nos braços e retribuía em socos.

Enquanto isso, Oliver viu, num lance de segundo, Noboru e seu parceiro tomarem a frente do bando e passarem por ele, mirando as ar‑mas para Basílio. Os disparos acertaram primeiro Yasuo, depois os dois loucos e, por fim, Basílio. Um tiro alojara‑se na parede a centímetros do pescoço de Ayame. A garota caiu de joelhos, aproximando‑se do cavaleiro abatido sobre o piso. Pela segunda vez o homem fez de tudo para salvá‑la.

– Basílio! – chamou Oliver, finalmente, ao alcançar o corredor.– O tiro acertou meu ombro!Basílio levou a mão até o ombro e o pressionou. Noboru tomou

Ayame pelo braço e apontou a arma para Oliver. O outro atirador mi‑rou em Shibato, que havia acabado de chegar ao corredor.

– Fiquem aí e levantem as mãos! – ordenou o atirador.A dupla obedeceu. Estavam a menos de três metros da arma.– Como é bom revê‑los – zombou Noboru. – Eu... eu... – gaguejou Oliver, preocupado com Báz e, ao mesmo

tempo, com as armas na mão do inimigo. Ayame franziu o cenho e desferiu um poderoso bofetão na cara

de Noboru. O japonês desorientou‑se e a liberou. A garota subiu as escadas rapidamente. Um disparo proveniente da arma do capanga ar‑rancou pedaços de um degrau da escada.

– Não atire nela! – rugiu Noboru para o capanga. – Precisamos dela viva, eu já disse isso! Zaburim a quer viva! Fiquei aqui e cuide desses três que eu vou pegá‑la! Para mim já chega! Ele a pediu viva, não inteira!

O capanga assentiu, assistindo Noboru subir as escadas. Oliver decidiu que era a hora de agir.

– Shibato, cuide de Basílio até eu voltar – pediu Oliver, esboçando um sorriso. – Nós precisamos dela! Ela é a garota!

– O que você quer dizer com isso? – perguntou Shibato confuso.– Não tente nenhuma graça, – ameaçou o capanga – ou eu...– Ou você o quê? – ironizou Oliver.

Page 381: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 381 ×

– Controle‑se, Oliver! Já têm loucos demais aqui! – falou Shibato.– Deixe‑o. Ele sabe o que faz! – grunhiu Basílio, com dor.– Não há como matar algo que não possui vida. Oliver avançou contra o capanga e recebeu um tiro na barriga.

Antes de ficar impossibilitado de agir, segurou a cabeça do japonês e jogou‑a contra a parede. O capanga desmaiou imediatamente.

– Oliver! – gritou Shibato, incrédulo.O cavaleiro deu alguns passos em falso. A dor tomou conta de

seus sentidos e o fez cair de bruços no piso. Shibato veio acudir‑lhe.– Por que você fez essa babaquice? Agora irá morrer!– Cuide... – balbuciou o ferido – de Basílio... Ele não pode mor‑

rer... Eu... Eu volto em breve. Sua filha precisa de mim...Oliver parecia ter caído sobre cacos de vidro. Todo o corpo perdia

o controle conforme a vida escoava pelo ferimento na barriga. “Aquela garota... Ela... Eu preciso...”, pensou. Como da outra vez que morreu, a escuridão e o silêncio absoluto reinaram para Oliver.

Um puxão e dores horríveis na garganta. Oliver acordou com um gosto de sangue na boca. Apalpou o piso frio. Levantou‑se e apoiou‑se na mesa metálica da sala branca. Ergueu o olhar ofuscado pelas lâmpa‑das da sala de cirurgia e apalpou o corpo, sentia‑se mais alto do que o normal. A maca principal, centralizada na sala, possuía correntes for‑radas que haviam sido arrancadas. Imaginando o pior, Oliver retirou a máscara branca manchada de vinho e correu até a porta de saída. Por pouco não escorregou devido à água que ainda jorrava dos bocais no teto. Um incômodo vinha de sua garganta, onde uma cicatriz grande deixava sua marca. Estava em um corpo novo e não parecia ser de um dos pacientes, mas de um médico. Grunhiu quando tocou no ombro, retirando o bisturi ainda cravado na pele. Atirou‑o para longe, perce‑bendo que o ferimento cicatrizou em segundos.

“Eu preciso encontrar a garota!” Oliver ruminava pensamentos, buscando entender o que seus inimigos queriam. Precisava virar o jogo antes que alguém muito importante morresse.

Desceu as escadas, topou com um louco dançarino e prosseguiu. Os gritos de Ayame ficavam mais audíveis à medida que descia as es‑cadas. Parou ali mesmo quando ouviu os passos dela naquele andar. Encostou‑se na parede antes de virar o corredor e aguardou. Noboru, ainda com a arma em punho, finalmente alcançava o andar de Ayame.

– Se não parar, eu atiro! – gritou o oriental.Ela obedeceu imediatamente.– Você me quer viva! Não vai atirar – defendeu‑se ela. – Se eu desejar que você morra, eu a mato! Não me custa nada

meter‑lhe uma bala!Oliver respirou fundo. “Essa garota possui a aura semelhante à

de Shibato e Zaburim. É filha dele, tenho certeza. É o cavaleiro! Mas

Page 382: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 382 ×

há algo de errado... Ela não parece ter vindo com Noboru, então como veio parar aqui?” pensou, fechando os punhos. O prédio estava aparen‑temente vazio agora, porém os jardins enchiam‑se de pacientes que não conseguiam sair devido à cerca elétrica e à proteção dos portões. Alguns escalavam as árvores dispostas ao longo dos muros e acabavam levando choques ao tocarem os fios.

– Olha o caos que você me obrigou fazer! – declarou Ayame para o assassino. – Você matou Chen!

Noboru riu.– Obrigado! Mas eu já fiz coisas piores. Isso não é nada. Você não

sabe de nada, garota. Acha mesmo que Chen se importava com você? Acorde para a verdade! Chen é um idiota que foi subornado e é só mais uma chave do jogo de Zaburim. Logo você vai morrer! Todos vocês!

A vidraça da janela ao lado da escada permitia a Oliver observar, pelo reflexo no vidro, o corredor e aqueles que o utilizavam.

– Noboru? – perguntou Oliver, em voz alta.O capanga ouriçou‑se.– Quem está aí? Como sabe meu nome?– Eu posso ser um bom inimigo para você – ameaçava o cavaleiro

roucamente. – Deixe ela em paz.– Ou posso fazê‑la descansar em paz, se quiser – Noboru riu ner‑

vosamente. – Identifique‑se!– Se não soltá‑la, eu o mato. E se você fugir, eu irei atrás de você.

E se isso não for suficiente, posso esperar no inferno a sua chegada. E lá, acertaremos as contas.

– Você está blefando!– Você acha? – desafiou Oliver. – Conheço sua estirpe. Você é um

fracassado... Tem medo da morte. Eu sei que você tem... Estou sentindo o cheiro de receio daqui.

– Quer saber o que eu acho disso? – perguntou Noboru, atiran‑do e arrancando uma lasca da parede na qual Oliver se escorava. – Leia minha mente!

O assassino procurava visualmente a origem da voz. Prestava a atenção a qualquer movimento perigoso. Ayame já tinha percebido o reflexo no vidro da janela. Oliver forçou a visão: atrás de Noboru, no princípio da escada, alguém também os observava. Silencioso, um louco, utilizando uma coleira vermelha, pressionava o caco de vidro cortante nos dedos. Suas vestes já não eram mais brancas, mas sim manchadas de água e um tom róseo. Ele possuía também sangue no rosto e na região da boca. Ele arreganhou o cenho ferinamente. O cavaleiro considerou que o louco parecia tanto uma oportunidade como um perigo.

Precisava enrolar Noboru o suficiente até que o psicopata resol‑vesse atacar seu inimigo.

– Ah, isso eu posso fazer perfeitamente. Seu desejo pode ser uma

Page 383: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 383 ×

ordem. O que quer que eu diga sobre você? Oliver encarou os olhos perdidos de Noboru no reflexo na vidra‑

ça. Imediatamente, lembranças que não eram suas invadiram sua mente.– Sua mãe era uma prostituta que deitava com tantos homens e

não tinha tempo de cuidar de você? Preferia passar horas na cama com estranhos do que te cuidar? E seu pai?

– Blasfêmia! – exclamou Noboru, surpreso.Oliver riu malicioso.– Você nunca soube quem era seu pai, não é? Poderia ser qualquer

um! Afinal todos frequentavam a sua casa. – Cale a boca! Você não sabe o que diz – rugiu Noboru, frustrado. – Não sei? – Oliver prosseguiu. – E quando mataram sua mãe, o

que você pôde fazer? Nada... Como é engraçado ver você se lamentando a respeito disso. Olhe para você! Não é ninguém.

– Seu desgraçado! – bradou Noboru, apanhando Ayame pelos ca‑belos. – Eu vou matá‑la só por isso!

– No entanto, você teve sorte... Uma família que trabalhava para Zaburim resolveu retirá‑lo das ruas e educá‑lo para ser um assassino. Será que sua mãe ficaria orgulhosa?

Oliver pigarreou. Ayame não sabia como reagir à conversa que se desenrolava. Estava assustada demais com a iminência da morte.

– Mas mesmo assim você não foi capaz de cuidar de sua própria mãe, que foi morta e estuprada, como se não valesse nada. Eu posso ver você agachado aos pés da cama, chorando baixinho, como um bebezi‑nho. Você é um desgraçado! Você é como as pessoas que arrancaram sua mãe de você! A sua sorte é que um serviçal de Zaburim o adotou!

Noboru largou Ayame e recuou vários passos. Levou as mãos até os ouvidos, sacudindo a cabeça. A morte de sua mãe atormentava‑o mais do que qualquer outra coisa, talvez porque se achasse culpado. Noboru sempre acreditou que os assassinos de sua mãe eram os seus inimigos de rua, uns garotos selvagens e mal educados. Talvez se não os tivesse desafiado em uma briga um dia antes de sua morte, ela não teria falecido de forma tão humilhante.

Noboru conseguiu visualizar o homem que falava através do reflexo na janela. Atirou no vidro e depois mirou em Ayame. Nesse instante o louco, que até aquele momento observava, saltou sobre ele. Enfiou a boca em seu pescoço e mordeu, prensando‑o contra o chão. A garota, desesperada, finalmente saiu do choque e começou a correr. Noboru caiu de bruços e, na tentativa de se defender, arrancou a coleira presa no pescoço do agressor. O paciente acocorou‑se ao lado do ferido e continuou a atacá‑lo, grunhindo como um animal. Sem a coleira ele parecia mais feroz do que nunca.

Ayame virou o corredor e deparou‑se com Oliver. – Calma, estamos do mesmo lado – murmurou Oliver e pediu si‑

Page 384: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 384 ×

lêncio com o dedo indicador. – Não faça barulho ou ele virá atrás de nós. – Quem é você? – perguntou ela, aflita. Ela aumentou o tom de voz. – Eu pedi para ficar quieta! O louco farejou o ar e pôs‑se de pé assim que Noboru desmaiou.– Essa não! Ele está vindo para cá.Oliver segurou o braço de Ayame com força. Nesse instante ele

sentiu o quão importante era salvar aquela garota: o futuro da Terra, e do sucesso de Oliver como cavaleiro, dependia dela. Subiu correndo até o último andar e foi ultrapassando os quartos em busca de alguma arma que pudesse usar, mas todos eram desprovidos de objetos cortantes. Enfim, encontrou a sala na qual despertara com seu novo corpo e vascu‑lhou as prateleiras até encontrar um bisturi.

– O que você quer de mim? – interrogou Ayame, imitando o mo‑vimento de Oliver ao encostar‑se na parede da sala.

– Você é uma das salvações desse mundo – arfou Oliver, apertan‑do o bisturi. – Eu juro que não lhe farei mal! Você vai entender tudo depois... Agora o que importa é sairmos vivos daqui.

– Por que você está me salvando?– Porque somos iguais.“Porque somos iguais”, repetiu Ayame mentalmente “O que ele

quer dizer com isso? Até onde ele é igual a mim?”A porta da sala de cirurgia estremeceu quando o louco a abriu.

Oliver tentou fechá‑la, empurrou a maca e alguns aparelhos de monito‑ramento cirúrgico contra a porta, esmagando a mão do inimigo.

– Droga – reclamou Oliver, engolindo a seco. – Ele não é humano.– Ele é tão humano que chega a ser louco – retrucou a oriental,

tentando liberar‑se da mão de Oliver, que a segurava com muita firme‑za. – Estamos mortos! Ele vai nos matar!

– Eu vou protegê‑la custe o que custar! Não fique com medo!Oliver postou‑se diante dela, pronto para defender sua carga ex‑

tremamente preciosa. Três empurrões do louco foram suficientes para abrir passagem. Ele farejou o ar antes de entrar, e então saltou sobre a maca. Agachou‑se e grunhiu quando seu corpo estremeceu.

– O que ele está fazendo? – perguntou Ayame, preocupada.– Deixando de ser tão humano, como você diz.A pele do louco rompeu, deixando a vista a nova pelagem negra.

Garras, músculos, focinho alongado e orelhas pontudas se formaram. O lupus sacudiu‑se assim que terminou a transformação. Ele afastou a falsa pele com a pata e encarou Oliver.

– Meu... Meu Deus! – exclamou Ayame horrorizada. – Isso é um...– Lobisomem muito irritado – articulou Oliver. Ergueu o bisturi

como se fosse uma espada. – Afaste‑se!O lupus continuou parado, encarando‑o. Vez ou outra abria a

Page 385: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 385 ×

boca e deixava a saliva escorrer. – Se você chegar perto, não sairá vivo!– Ele vai nos matar – disse Ayame, escondendo‑se atrás de Oliver.

– Eu não quero morrer, me salve! Por favor!Oliver manteve‑se encarando a criatura assustadora. Um enorme

vulto sibilou à porta da sala. O cavaleiro pensou que fosse Basílio ou Ba‑deck até perceber que a energia emanada pela sombra era desconhecida. O lobisomem começou a rosnar e desceu da maca. Ayame calou‑se, de‑sesperada. A sombra sibilante ocultou a luz que provinha do corredor.

Oliver afastou a boca do lupus com o bisturi, desferindo um corte que partiu seu focinho em dois. A criatura berrou e socou o cavaleiro. Oliver foi parar aos pés do armário de metal, quase inconsciente. Ayame apertou‑se mais contra a parede quando se viu sem saída.

O lupus impulsionou as patas traseiras e abriu as garras frontais, prontas para abraçar mortalmente Ayame. Nesse instante a porta da sala estourou, indo parar quase em cima de Oliver. As máquinas e objetos que bloqueavam a entrada foram arrastados para longe, dando passagem para a criatura negra. Em pleno salto o lupus foi mordido no dorso pela criatura e, antes que pudesse se defender, foi envolvido pelo corpo forte e longo da serpente. Por mais que utilizasse as garras para safar‑se, elas deslizavam pelas escamas luminosas e duras. Rolando no chão, a cobra dera o golpe final no lobisomem, transformando‑o em cinzas. Ayame sentiu as pernas amolecerem. Várias lembranças vieram à tona naquele momento. Oliver levantou cambaleante. Usava as paredes para chegar até Ayame e mantê‑la protegida da outra criatura. Não sabia quem era, nem de onde vinha. Poderia ser o guia de sua cavaleira, mas não sabia até que ponto ele poderia ser amigo . Segurou Ayame com força para que ela não caísse e se machucasse.

– Garota! Fique acordada! – pediu Oliver, abraçando‑a.A cobra expôs os dentes para Oliver.– Estamos do mesmo lado – repetiu Oliver com toda a cora‑

gem que conseguiu juntar, erguendo a mão espalmada num silencioso “PARE”. – Não faça nada que irá se arrepender depois.

Onddo, a cobra, hesitou, retraindo as presas.– Eu cuidarei dela – afirmou Oliver, baixando levemente a cabeça.

Tremia tanto quanto a garota, mas não podia deixar‑se vencer. – Esta‑mos do mesmo lado, acredite em mim!

– Eu vi os dois guias lá fora – contou a cobra. – Obrigada por protegê‑la.

Onddo encarou‑o com os olhos vermelhos e afastou‑se, toman‑do o corredor. O cavaleiro correu para a porta a tempo de ver a cobra gigantesca descer as escadas e sumir de vista.

– Ela está viva, consegui... consegui... – Oliver carregou Ayame no colo enquanto descia as escadas. – Hora de ir para a casa.

Page 386: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 386 ×

Capitulo 30 Irreversível

Shibato ajudava Basílio a ficar de pé quando o oriental, de cabelos ralos e jaleco branco, surgiu carregando Ayame desmaiada.

– Como ele está? – perguntou Oliver.O Wakanagi quase deixara Basílio cair.– Quem é você? – perguntou Shibato.– Finalmente! – resmungou Báz, comprimindo o ferimento do

ombro. – Eu estou aqui morrendo e você demora desse jeito?– O que eu pude fazer? Você não foi o único a levar um tiro hoje.– Oliver? – gaguejou Shibato, sem ter certeza se deveria ter feito

aquela pergunta. – Como você está nesse corpo?– É uma história que precisa de tempo para ser contada. – Esses negócios de demônios e cavaleiros me dão enjoo. – Irre‑

quieto, Shibato deu apoio a Báz. – A polícia deve estar chegando, vamos embora. – Teremos de sair como entramos: pela porta da frente – conside‑

rou Oliver, ajeitando Ayame em seu colo e prosseguindo até o hall de entrada.

– Se você abrir a porta da frente, os loucos irão fugir – alertou Basílio. – Não precisamos de mais loucuras por hoje.

– Loucos são pessoas, não animais! – ponderou Wakanagi. – Você acha que há algo mais insano do que a sociedade em que vivemos?

– Olhe o que está dizendo! Instantes atrás eles estavam tentando saltar pelos muros, por que acha que vão mudar de ideia agora?

Shibato foi diretamente iluminado pelo sol poente quando abriu a porta da frente. Os raios alaranjados espalhavam‑se sobre a copa das árvores, colorindo a área verde e a paisagem urbana. Todos os pacien‑tes, sem exceção, estavam no jardim, parados, imóveis, contemplando o céu. Oliver pressionou o botão e os portões abriram automaticamente. Ao contrário do que os cavaleiros supunham, eles não aproveitaram a oportunidade de se evadir.

Page 387: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 387 ×

– Por que eles não fogem? – perguntou Oliver, incrédulo.– Quanto mais perto do caos chegamos, mais organizadas se tor‑

nam as coisas. Eles são loucos, mas não são burros. Quanto mais dis‑tantes ficamos da sociedade, mais próximos estaremos de nós mesmos. Raras exceções contradizem essa opinião. Eles sabem que, se escapa‑rem, serão mortos ou acabarão sendo presos novamente, então prefe‑rem ficar e aproveitar um pouco do sereno. Tem algo melhor? Observe a paisagem... A natureza está tão próxima e ao mesmo tempo tão distante deles. A loucura tem suas limitações.

Basílio gemeu com uma pontada no braço. – Quando se passa anos preso em um lugar como esse, por mais

loucos que sejamos, aprendemos a entender a vida e descobrimos o ver‑dadeiro significado de ser normal.

Os pacientes postados à passagem deles esquivavam‑se imedia‑tamente e abriam caminho para a saída. As cores estampadas no céu eram tão hipnóticas e magníficas! O sol desaparecia e as sombras alar‑gavam‑se dominantes. Os internados baixavam o olhar para o quarteto. Oliver ultrapassou os portões e não pôde deixar de olhar para trás. Eles continuavam a observá‑los, deixando à vista suas emoções: estavam em paz. “Se a paz está tão próxima assim, por que não conseguimos sen‑ti‑la?” pensou Oliver.

Assim que passaram, os portões metálicos voltaram a se fechar. E, lentamente, um a um, os internados pareciam agradecer aos estranhos.

– Vocês deram a eles a liberdade, mesmo que por pouco tempo. Eles tiveram o direito de sair e, por conta própria, escolheram ficar.

Basílio suspirou. – Acho que estou ouvindo sirenes.– Eu também... – confirmou Shibato. – Vamos pegar um carro.O carro cinza, roubado do estacionamento do manicômio, esta‑

cionou em frente à casa de Kotaro. Não havia nenhum sinal dele ou de Suzuku. Oliver desejou que a família estivesse bem longe do perigo.

Shibato depositou Basílio sobre o sofá. – Como você está se sentindo? – perguntou Wakanagi.– Nunca estive melhor – ironizou Basílio, suando frio. Shibato havia improvisado um curativo e agora precisava remover

a bala e limpar o ferimento. – Eu vou precisar de algumas ferramentas...– Espere! – disse Báz, alterado. – É você que vai limpar isso? Eu

prefiro ir a um hospital!– Eu sou médico, baka – retrucou Shibato.– Médico? Eu não acredito que você lembre como é ser médico

desde que Zaburim enfiou você num manicômio.– Cale a boca! – retrucou Shibato.– Não estou gostando muito disso – queixou‑se Basílio. Seus sen‑

Page 388: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 388 ×

tidos estavam sendo afetados e não se movia direito. – Preciso dar um jeito nisso logo ou vai morrer!Oliver chegava à sala nesse instante, carregando a garota ainda

desmaiada. Depositou‑a no outro sofá livre enquanto contava a respeito do acontecido para Badeck.

– Oliver, vou precisar de algumas coisas. Ele está piorando e está sangrando muito... Se continuar assim vai morrer em poucos minutos.

– Do que você precisa?Shibato pediu uma faca, toalhas e água fervida. Passou instruções

quanto às ferramentas pedidas e correu para a cozinha. Oliver ajudou‑lhe a arranjar todos as ferramentas e fez a assepsia dos instrumentos impro‑visados com um isqueiro. Depois, usou a toalha com água morna para limpar o sangue ao redor do ferimento, enquanto Shibato terminava de retirar a bala com a faca. Basílio suava como nunca, gemendo a cada mexida no ferimento.

– Até agora tudo está indo muito bem... – murmurou Shibato.Oliver envolveu o braço de Basílio, já sem a bala, com uma nova

toalha e pressionou. Shibato introduziu a linha na agulha e começou a fazer os pontos.

Basílio ficou tão avermelhado que Oliver não pode conter a risada.– Você ri porque o seu furo não precisou levar pontos. – Desculpe – pediu Oliver, atirando a toalha no chão. Wakanagi cortou a linha, largou a agulha e depositou duas gases

limpas sobre os pontos. Prendeu‑os com esparadrapos e soltou um so‑noro suspiro.

– Pronto. Agora você precisa descansar e beber muita água porque perdeu sangue. Tente não comer hoje, é melhor que espere, pelo menos, até amanhã para que não acabe vomitando.

Basílio escorou‑se no sofá e relaxou. A dor ia diminuindo grada‑tivamente até apenas latejar. Antes de perceber Ayame deitada no sofá, Basílio lembrou‑se de que trazia no bolso o papel preto da pasta do arquivo C42. Retirou‑o de lá, temendo que seu sangue na calça pudesse danificar o conteúdo codificado. Shibato arregalou os olhos quando viu o papel nas mãos do cavaleiro.

Oliver notou o reconhecimento.– Você sabe o que tem nesse papel?Basílio, curioso, entregou o papel para o oriental.– Onde encontraram isso? – perguntou Shibato, sentado no tape‑

te, sem desviar os olhos dos códigos.– Estava na sua pasta do arquivo C42 – explicou Oliver. – Tenta‑

mos decifrá‑la, mas é impossível. Shibato ficou de pé. Sua respiração curta e rápida denotava medo

e ao mesmo tempo, ansiedade.– Eu pensei que estivesse com Hamoru.

Page 389: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 389 ×

– Provavelmente estava com ele até roubarmos a pasta. – Oliver brincava com o isqueiro. – O que poderia ter aí que o interessasse?

– Aqui? – perguntou Shibato como se Oliver acabasse de dizer uma blasfêmia. – Aqui há material suficiente para mudar a história de todo o mundo. Zaburim já deve ter tentado desvendar os códigos, mas não conseguiu. Embora ele pudesse ganhar muito dinheiro com minha descoberta, ainda assim é melhor para ele que prossiga com negócios de extorsão de inocentes. Zaburim ganha com a desgraça dos outros...

Shibato esfregou os olhos com os dedos.– Este é o trabalho da minha vida. Levei mais de trinta anos para

formular o que está codificado aqui... E eu o chamo de Cura. – Poderia explicar o que é isso, exatamente? – perguntou Basílio,

interessado.– Entre esses símbolos está a fórmula para a cura de todo o tipo

de doenças que você possa imaginar. Câncer, mal de Parkinson, qual‑quer tipo de praga degenerativa e sem cura. Estão incrédulos? Bem, eu também estaria se me dissessem isso. Como um cientista, o que está aqui não faria sentido. Como um religioso, seria uma afronta contra Deus. Por isso nunca foi possível encontrar a cura para nada, porque os humanos não acreditam na cura científica misturada com a fé.

– Você está brincando conosco? – questionou Basílio, pálido.– Se isso for verdade, então por que já não está nas mãos das

pessoas? Milhões de doentes estão morrendo por aí... Por que até agora não fez nada? – perguntou Oliver, cético. – Imagino que muito dinheiro esteja sendo investido por pessoas em todo o mundo para encontrar a cura, logo, não posso acreditar que você sozinho tenha chegado a isso.

Shibato sacudiu o papel na frente dos dois.– Vocês não fazem ideia de como eu tive de chegar a isso. E é com

esse julgamento, Oliver, que torna a sua opinião descartável. Eu não consegui isso sozinho. A cura para qualquer doença segue o mesmo tipo de padrão para todos. Ela se encontra numa linha tênue que separa o corpo do espírito. Não pode ser tocada apenas pela ciência, porque en‑volve também o espírito, e nem vice‑versa. Não foi fácil para eu chegar a essa conclusão, não foi mesmo.

“Quando uma pessoa fica doente, há vários motivos para tal: des‑preparo, descuido, imprudência ou genética. Ou seja, há muitos alvos e muitas oportunidades para uma doença se alojar no organismo de al‑guém. Tecnicamente, a humanidade costuma ver isso como uma loteria. Você, eu ou qualquer um pode adquirir algum mal, mas, eu fui além disso. Eu estudei o ser humano em sua essência. E descobri, meus caros, que o espírito está mais envolvido nisso do que parece. É o espírito que regula a energia, que dá força e capacidade ao ser humano para continuar interagindo. Não adianta ter um corpo se você não tem um espírito... É como uma máquina: funcional, mas sem vida. Um corpo funcional sem

Page 390: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 390 ×

a capacidade de pensar é só uma casca.“E é também o espírito que coordena a entrada e a saída de males

do nosso organismo. O ser humano se sujeita a situações extremas de estresse para viver. E, novamente comparando o corpo a uma máquina, quando há sobrecarga, o espírito se encarrega de enviar sinais de que não está bem. Se a pessoa não é capaz de perceber isso, bem... O próprio organismo se prejudica para salvar a si mesmo. No entanto, essa é a pior forma de defesa que existe, porque boa parte das vezes não há retorno. O corpo se permite adoecer para melhorar. E, uma vez dentro, certos tipos de doenças não vão mais embora.”

– Eu não acredito nisso! Um corpo não ia se deixar adoecer para melhorar! – retorquiu Basílio. – Não é lógico!

– Bem, ‑ Shibato suspirou – o instinto humano, que é diretamente ligado ao espírito, tem como prioridade evitar a morte. E a morte é um dos resultados do estresse e da sobrecarga de sentimento e energias. Quando uma pessoa está em sobrecarga, atrai energias maléficas o sufi‑ciente para colocá‑la diante da morte, como, por exemplo, em acidentes de carro, incêndios, etc. A capacidade instintiva faz qualquer coisa para evitar a destruição, inclusive retardar a morte. É inacreditável e, ao mes‑mo tempo, muito inteligente. Você pode pensar que está bem, mas não está. Algumas pessoas acreditam tão intensamente que estão isentas de doenças, que não são capazes de aceitar quando perdem sua saúde.

– Certos tipos de enfermidades são aleatórias, como as DST’s – disse Oliver, pensativo. – São verdadeiras “loterias”, como você disse, e acredito que nem sempre um espírito queira se colocar em um perigo desses.

– Oh, não, não, você não está entendendo o que eu estou dizen‑do. – Shibato riu baixinho. – Em minhas pesquisas descobri que nos‑sa alma possui tonalidades diferentes quando habitam um corpo. Uma pessoa sadia, vai ter uma alma que varia do tom verde para o violeta, já uma pessoa que se encontra em sobrecarga vai adquirir uma tonalidade cinza. Pessoas sadias atraem almas que vibram no mesmo tom. Pessoas com a alma de tonalidade cinza atrairão aquelas cuja cor é negra. Devo alertar que uma alma verde vai repelir, instintivamente, qualquer conta‑to de risco com uma de cor negra.

– O que significa a cor negra? – perguntou Basílio.– São aqueles seres que já estão doentes. Dessa forma, se o espíri‑

to não é capaz de despertar em si mesmo o mal, como é o caso do cân‑cer, ele vai captar em outra pessoa uma doença que possa ser transmiti‑da. É interessante, não? Interessantíssimo, eu diria. E a cura se encontra na alteração da tonalidade da alma. É possível que uma alma negra mude de cor, assim como uma verde pode ficar cinza e vice‑versa. As negras são as mais difíceis, porque, para alcançarem a cura, elas precisam passar à cor branca. Essa cor é capaz de neutralizar completamente o mal que

Page 391: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 391 ×

há no organismo.– E como se faz para torná‑la branca? – perguntou Basílio.– Complicado... – comentou Shibato – mas não impossível. Eu

criei um processo mais direto e simples. É forçado, mas é eficiente. No entanto, antes da descoberta da cura, a troca de cor sempre ocorreu pelo mesmo método: é necessário libertar o organismo da sobrecarga, atra‑vés da mudança da forma de pensar e agir. Escapar do estresse e recupe‑rar a esperança. O espírito precisa burlar a morte e lutar contra a própria peste. Se unirmos todos os sentimentos que geram força e energia para lutar contra a doença, será como unir todas as cores em uma só. E eis que temos o branco. Tornar uma cor negra em branca é raro, porque humanos não estão prontos para isso. Com a neutralização efetivada, o ser humano pode se pôr fora dos braços da morte. É claro que o branco sempre pode voltar a ficar negro, não se descarta essa hipótese. Também tenho que deixar claro que depois de infectado, o corpo precisa também se tratar. Afinal, não estamos tentando curar apenas o espírito, mas tam‑bém o soma.

– Mas e as crianças que nascem doentes? Elas não têm culpa e nem consciência para que suas almas venham “negras” – contestou Oliver.

– Esse é um ponto muito complicado...Por enquanto não tenho essa resposta para dar a vocês, pois minhas pesquisas ainda não estão totalmente concluídas.

– Mesmo assim seu trabalho não perde o mérito – falou Basílio.– Chegar a essa conclusão não foi fácil. – Shibato sorriu amargo.– Se você conseguiu uma forma mais efetiva de transformar almas

negras em brancas, então você é um gênio. Quer dizer, você fez o que milênios de ciência não conseguiram alcançar.

– Não, eu não mereço isso. – Antes que Basílio revidasse, Shibato estendeu a mão. – Esse experimento custou vidas. Eu não tinha como encontrar o meio‑termo entre espírito e corpo sem testar em muitas pessoas. Eu tinha que cumprir minha missão... Custasse o que custasse e, infelizmente, o preço foi muito caro. Tive que forçar meus pacientes ao extremo, torturá‑los, obrigá‑los a passar por situações que gerassem muito sofrimento. Tive de matá‑los para que outras pessoas pudessem viver. E isso... isso não tem perdão, não importa o grau de importância da minha descoberta. Essa foi minha missão. Se eu não o fizesse, outro teria feito em meu lugar. Eu sempre usei almas de corpos que estivessem em coma ou de crianças “especiais”, ou com deficiências. Eu podia aces‑sar o espírito delas mais facilmente do que uma pessoa comum.

Os dois cavaleiros ficaram um tempo em silêncio, assim como seus guias que, até então, só observavam. Sem que percebessem, Ayame já estava sentada no sofá onde Oliver a deitara. Ela ouvia a conversa desde o início com os olhos cheios de lágrimas. A mão cobria a boca.

– Eu acho que... – Basílio fez um esforço para falar.

Page 392: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 392 ×

– Não havia outra forma? – indagou Oliver, perplexo.– Não... – negou Shibato, infeliz. – Acreditem em mim, é horrível

que eu continue vivendo. A única coisa que me manteve respirando foi o paradeiro de Ayame.

– De qualquer jeito, apesar dos meios, você fez o que pôde... – disse Basílio, apesar de não concordar com os métodos de Shibato.

– Não entendo porque sua missão foi tão importante assim... – murmurou Oliver.

– Para mim, e aqueles que são como eu, essas missões não têm nenhum valor emocional. Se não quisermos, nós não sofremos com a dor do outro. Eu, certamente, poderia ter negado a missão, mas depois que comecei a procurar a cura, o que me prendeu, no entanto, foi minha família. Eu errei quando me permiti ser humanizado. Se eu parasse de procurar pela Cura todos eles matariam Naoko e meus filhos.

– Como assim ser humanizado? Você não é humano? – pergun‑tou Basílio.

– Não – respondeu Baroon, já que Shibato escondia o rosto nas mãos. – Ele é um dítzamo.

Antes que a conversa prosseguisse, Ayame soluçou em voz alta. Todos olharam em sua direção.

– Ela acordou – disse Oliver. – Como você está se sentindo?– Quem é ela? – perguntou Shibato, só agora dando a devida aten‑

ção para a garota. Estava passando por tanto estresse que nem tivera tempo de pensar. No entanto, algo no fundo de seu peito gritava em voz alta: era sua pequena Ayame.

– Ela é sua filha – respondeu Oliver, pensativo. Basílio coçou o queixo. – Faz todo o sentido que ela seja filha do Wakanagi. A energia dela

é muito semelhante a de Shibato, mas como ela veio até nós?– Zaburim montou uma armadilha para nós, mas eu não entendo

como ainda não nos tenha acontecido nada – retrucou Oliver. – Como é que você soube que eu era filha dele? – indagou Ayame,

despertando do transe e procurando os envelopes nos bolsos. Ela falava português fluente. Havia aprendido quando passou alguns anos com seus parentes no Brasil. – Você viu as cartas?

– Não sei de carta nenhuma – respondeu Oliver. – Eu só liguei os fatos. Noboru não estava atrás de nós, mas de você! Somente a vida da filha de Shibato seria tão importante quanto a nossa. Caso contrário ele teria nos matado na primeira oportunidade. Se Zaburim a quer tanto assim, então a sua importância é enorme.

– Você tem razão – acrescentou Shibato. – E, ao entrar no hospi‑tal, ela foi direto para o quarto em que estávamos. Então também sabia o que procurava.

Shibato virou o rosto lentamente para ela.

Page 393: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 393 ×

– O que vocês estão falando não faz sentido! Eu odeio Shibato com todas as minhas forças e quero sumir desse lugar!

– Então por que veio atrás dele? Por que você foi até o quarto onde ele estava?

Ayame olhou irritada para Oliver. – Eu... só querida perguntar para Shibato o porquê de ter matado

minha família.– Não! – exclamou Shibato, horrorizado. – Eu nunca colocaria um

dedo em nenhum de vocês!– Mentiroso! Você é um assassino! – bradou Ayame. – Matou mi‑

nha família! Tirou de mim tudo o que eu tinha!– Calma lá! – interrompeu Oliver, parando ao lado de Shibato. –

Você não sabe de nada!– E quem é você para saber? – retrucou Ayame, irritada. – Fui eu

que vivi o terror do que esse homem fez comigo! – Oliver, não adiantará insistir. Ela cresceu com essa verdade e,

além do mais, ela tem seus motivos para não acreditar em mim. Eu sou um assassino e ela viu o que meu projeto me custou, as vidas que tive de tirar – disse Shibato vencido. – A coisa que mais importava para mim era saber se ela estava viva ou morta. Agora posso ficar em paz. Zaburim não destruiu minha família por completo! Alguém resistiu! Mesmo que ela sinta ódio de mim, fico feliz por ela estar viva.

– Isso não pode ficar assim! – interveio Basílio, levantando com dificuldade. – Ayame, você deveria ao menos tentar ouvir seu pai!

– Não! É graças a ele que eu vivi um inferno nos últimos anos. E é graças a ele também que eu sou louca! Que eu vejo coisas... Que eu não sou normal!

– Você não é louca, garota – retrucou Oliver. – Você é como eu e Basílio, é um cavaleiro da Terra‑Inversa!

O Wakanagi engoliu a seco. – Então ela é um cavaleiro como vocês?– Eu vejo as pessoas morrerem! É isso que eu vejo... Posso prever

a morte de qualquer um que toque em mim e que vá morrer no perío‑do de alguns minutos, ou horas. Eu prevejo a morte de pessoas tempo inteiro. E sabe do pior? Não posso mudar nada. Se eu salvar alguém, outra pessoa irá morrer em seu lugar! Esfoladas, estupradas, espancadas, assassinadas, acidentadas. Não quero mais, não aguento mais!

– Eu vi a morte da irmã dela, porque era a coisa que a marcou mais. Não foi a morte da mãe, ou do irmão, mas da irmã, que estava ligada a ela intimamente. Como para Zaburim e Shibato, a ligação entre as duas era muito forte. Talvez eu tenha captado alguns rastros desse vínculo – comentou Basílio.

Ayame ria por não entender nada da conversa.– Fomos salvos pelo guia dela antes de encontrarmos vocês – re‑

Page 394: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 394 ×

bateu Oliver. – Tivemos muita sorte em encontrá‑la. Nesse instante a porta da casa abriu e um homem quase idêntico

a Shibato entrou. Diferente do corpo obeso que habitava da última vez, Hamoru estava mais baixo, magro e humano. Ele trajava um terno e uma gravata escura e sua aparência não era tão velha quanto a de Shibato.

– A família está reunida hoje! – disse ele, fechando a porta depois de entrar. – Ninguém falou que é falta de educação esquecer de convidar os outros?

Badeck começou a rosnar.– Como ousa a chegar aqui depois de tudo? – perguntou Shibato.

– Não basta ter destruído a minha vida? O que mais você quer? Não conseguiu o suficiente?

Oliver baixou levemente o rosto e encarou o demônio. Sabia que faltava algo naquela história. O demônio não estava lá para ajudá‑los e nem para uni‑los. Zaburim sorriu, exibindo os dentes brancos e afiados.

– Não, eu gosto de diversões longas. Mas prometo que terminará essa noite tanto para você quanto para todos que o acompanham.

Ayame olhou para o recém‑chegado. Era seu tio Hamoru, não o via desde o dia do assassinato de sua família.

– Tio Hamoru? – perguntou Ayame confusa. – O que está fazen‑do aqui?

– Acho que temos contas para acertar hoje. – Ele riu e olhou para a sobrinha.

– Deixe minha filha em paz! – gritou Shibato enfurecido. – Se há algo a acertar é apenas entre nós!

– Você matou minha família! – interrompeu Ayame, apontando acusadoramente para o pai. – Não tente se fazer de bom agora!

– Pare, Ayame! – exclamou Oliver e segurou a garota pelo braço. – Shibato não teve nada a ver com a morte de sua família!

– Eu o vi! EU O VI! – Sim, você o viu, – confirmou Zaburim, com as mãos nos bolsos.

Seu ar de contentamento era grande – mas fui eu que fiz aquilo. – O quê? – gaguejou Ayame sentindo as mãos gelarem. – Não era

você! Era Shibato! Mesmo sendo iguais, eu não confundiria os dois!– De certa forma você está certa... – concordou o demônio – o

corpo pertencia a ele, mas a existência que habitava seu corpo era minha. – Eu não... Não entendo... – balbuciou ela com a voz apagada.– Ele é um demônio, Ayame! Ele se apossa de corpos e faz o que

quer com eles! – exclamou Basílio, incapaz de sentir empatia pela garota e se sensibilizar por ela. Estavam com pressa e precisavam se safar.

– Shibato não seria capaz de colocar um dedo nos cabelos de sua família, Aya‑chan, – contou Zaburim com um sorriso maldoso – por isso eu tive que realizar o trabalho por ele. Você quer saber a verdade?

Page 395: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 395 ×

Então lhe contarei. Shibato sempre foi um homem muito bom. Nós trabalhamos juntos em muitos aspectos desde pequenos... Eu o apreciei, porque era um homem inteligente. Porém um demônio nunca se apega a alguém... E eu, como atzáveri não podia perder tempo com familiari‑dades. Começamos um negócio...

– Hamoru! – exclamou Shibato pasmo. – Eu quero ouvir sua versão da história – pediu Ayame com um

semblante vazio. – Eu fui ao seu encontro porque queria saber da verda‑de! Mas preciso saber o resto!

Zaburim sorriu e continuou.– Nós nos formamos em Medicina e descobrimos que podería‑

mos fazer muitas coisas juntos. Tínhamos planos e inteligência acima do comum capazes de mudar o mundo! Sim! Nós carregávamos a revo‑lução em nossas mentes. Shibato desejava ajudar as pessoas e eu prefe‑ria usurpá‑las. Nossos esforços renderam, porém brigamos, porque eu queria evoluir e ganhar dinheiro,enquanto Shibato preferia continuar na mesmice de um fracassado. Nos separamos e continuamos trabalhando por conta própria.

– Como já contei para vocês, eu comecei a desenvolver uma pes‑quisa cujo objetivo era examinar as variáveis que interferem na cura de uma enfermidade. Hamoru logo se interessou por meus trabalhos. Com as minhas descobertas, eu tinha em minhas mãos o poder de mudar o mundo. E de me tornar um homem célebre por salvar muitas vidas.

– O poder que Shibato tinha em mãos era o que eu almejava e não conseguia! E ele, idiota que era, não foi capaz de usar isso em seu favor. Sua meta sempre foi salvar o mundo! Veja que imbecil: salvar as pessoas. Não faz bem para os meus negócios. Me vi tentado a usá‑lo, mas não pude fazer nada... Nada até que sua querida filha Ayame ficou doente e precisou de um rim. E, veja só... Eu sabia que conseguiria um para ela num estalar de dedos. Como a essência humana se apega muito aos ou‑tros, me vi tentado a usar essa possibilidade contra Shibato. – Os olhos de Zaburim faiscavam de malícia enquanto falava. – Ele me pediu ajuda e eu ofereci o que ele precisava em troca do projeto de Cura. A menos que eu tenha controle do mercado de cura, não posso permitir que meus negócios padeçam. Eu ganho muito mais com gente doente. Shibato hesitou, mas ao ver que o amor por sua filhinha era maior do que o amor por seu trabalho, aceitou. Então, assim que você ficou boa fui cobrar o que era meu, mas Shibato havia desaparecido com o trabalho.

– Eu não pude permitir que um demônio pusesse as mãos em algo tão precioso! O mundo precisava ficar sabendo disso. Passei anos fugin‑do com minha família de lugar em lugar, temendo o dia em que Hadakko viesse fazer mal. Entreguei uma cópia do projeto para um homem em quem confiava muito. Zaburim o encontrou e conseguiu roubar o que tanto queria. Não tive escolha nenhuma senão me entregar e parar de

Page 396: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 396 ×

fugir, ele já tinha o que queria. Pensei que não quisesse mais nada meu. – Shibato pensou que eu o perdoaria, mas demônios não perdoam.

Demônios são cruéis e implacáveis. Temos uma honra interna. Prome‑ti que não faria mal à família de Shibato se ele me entregasse a Cura de bom grado... No entanto, ele foi pretensioso a ponto de quebrar a promessa, achando que salvaria as duas coisas. – O demônio suspirou. – Possuí seu corpo e exterminei sua família. Resolvi deixá‑lo vivo caso um dia eu precisasse saber como decodificar a Cura que estava no arquivo C42. Você está viva porque eu desejei, Ayame. Se eu a mantivesse intei‑ra conseguiria usurpar futuramente Shibato para que me obedecesse. Cheguei a desistir de tudo e quase matei os dois, mas um homem veio até mim. Ele me esclareceu as ideias e me contou a verdade sobre o que ia acontecer com o mundo. Me contou o que eu poderia ganhar se eu o obedecesse. Contou também sobre uma data importante de uma visita ao Japão. O dia em que dois cavaleiros da Terra‑Inversa viessem ao en‑contro da filha de Shibato.

“Portanto, tratei de manter a garota sob os cuidados de um subor‑dinado meu. Eu precisava apenas que vocês ficassem debaixo de meus olhos. O estranho homem me ajudou... Disse que eu deveria juntar to‑dos vocês e assim dar cabo de suas vidas, exterminá‑los da face terrena para sempre! Se vocês estão juntos aqui nessa sala é porque eu quis as‑sim. EU! O ATZÁVERI ZABURIM! Essa história acaba aqui, agora, porque todos morrerão! Vou terminar o trabalho que eu comecei há cinco anos com sua família, Shibato. Você não voltará para aquele mani‑cômio e nem para lugar nenhum.”

“Eu estava certo, era uma armadilha”, pensou Oliver. “Mais uma vez esse estranho continua a nos perseguir. Quem é ele?”

– O que faz pensar que vai conseguir? – perguntou Basílio. Ainda segurava o ferimento no ombro.

– Já não se cansou de brincar com isso? – xingou Oliver, irritado. – Pensa que pode controlar a vida das pessoas como se fosse um jogo? Eu não sei o que foi oferecido a você em troca de nossas vidas, mas eu tenho certeza de que não vai ser fácil como pensa!

Diante da incredulidade de Ayame, os olhos de Hamoru ficaram vermelhos. Suas íris tornaram‑se fendas e a cor de sua pele adquiriu uma tonalidade acobreada. A temperatura da sala aumentou gradativamente até fazer todos começarem a suar. Por fim, ela deu‑se conta de que tal‑vez aquela história maluca fizesse sentido, e que todas as criaturas que via fossem reais... Tão reais quanto ela mesmo.

– Não sei como é possível que essa história de demônios e pos‑sessão, mas... mas.. Então... Então foi você o tempo todo? – gaguejou Ayame com os olhos repletos de lágrimas. As mãos tremiam e o rosto empalideceu muito. – Você me fez...

Ela pausou, recompondo‑se.

Page 397: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 397 ×

– Me fez pensar que o assassino de minha família todo esse tempo fosse meu pai! – rugiu ela enfurecida. – Um monstro como você não deveria existir! Tive ódio de Shibato, quando, na realidade, deveria ter ódio de você! Mesmo que Shibato tenha feito os experimentos com as crianças, ele era meu pai! E não era o assassino de minha família!

– Eu a matarei logo para que possa descansar em paz. Está bom para você? – riu Zaburim.

– Fiquem longe dele! – gritou Badeck ao ver a ansiedade de Oliver. – Ele é mais forte do que nós!

– Não vou aceitar que esse demônio continue fazendo o que faz! – discutiu Oliver e avançou em direção a Zaburim.

Repentinamente Shibato ergueu a mão e o impediu.– Não faça isso.Oliver encarou o homem agora determinado, diferente do velho

de minutos atrás. A outra mão dele repousava no ombro da filha.– A única coisa que me impedia de continuar lutando era o fato de

não saber onde estava minha filha. Eu precisava saber se os esforços de minha vida ao menos tinham alcançado êxito... E alcançaram. Eu perdi meu objetivo principal, minha família, minha honra e dignidade. Che‑guei a pensar que... Tinha fracassado. Mas não fracassei! Ela está aqui e está viva. Deixe isso comigo, Oliver. E cuide dela para mim. É única coisa que peço a você.

– Se você for contra ele sozinho, morrerá! – exclamou Basílio. – Não – negou Baroon. O corvo parado sobre o batente da janela

encarou Zaburim. – É dítzamo, atzáveri contra dítzamo.Zaburim, surpreso, arqueou as sobrancelhas e começou a rir. – Esse anjo desgraçado sabia desde o começo que não era páreo

para mim! Não é à toa que nunca conseguiu me derrubar! Sempre fugiu, e é assim que vai continuar sendo!

– Tire a minha filha daqui e a proteja. Ela é o que sobrou do meu fraco e destrutivo legado... – pediu Shibato, largando o ombro da garo‑ta. – Minha missão terminará por aqui.

Oliver pensou em retrucar, desistindo em seguida. Shibato pas‑sara por maus bocados por causa de Zaburim. O acerto de contas era entre eles, não entre os cavaleiros. Aquiesceu e recuou. Basílio também já tinha entendido o recado passado pelo oriental. Shibato estendeu a mão e Oliver entendeu: entregou a ele o isqueiro.

– A cura das pessoas não pode vir do sofrimento de outras. O que eu fiz foi errado... Eu jamais deveria ter aceitado e cumprido essa mis‑são. Depois que tive uma família e me tornei humano eu entendi... Não é a salvação de uma pequena porção de pessoas que deve ser feita, mas de toda a humanidade. Todos merecem ser salvos – Shibato acionou o isqueiro e queimou o papel negro. – Tudo isso está acabado.

Ayame viu as cinzas da folha queimando se espalharem pelo chão.

Page 398: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 398 ×

Aquele sim... Aquele sim era seu pai de verdade.– Ninguém sairá daqui essa noite! – urrou Zaburim, arqueando o

corpo enquanto sua pele humana rompia.Zaburim aumentou de tamanho, adquiriu pele vermelha e a mes‑

ma aparência de quando os cavaleiros foram ao seu encontro no escritó‑rio. Ayame não encontrou reação para a situação. Estava chocada, humi‑lhada e traída. Odiara durante sua vida toda a única pessoa que a amou e a protegeu. Não importava o passado do seu pai naquele momento, e nem as coisas que ele fizera. O que importava era que Shibato nunca tinha falhado como pai. Zaburim estendeu a mão e um calor infernal tomou conta da sala. Instantaneamente o chão aos seus pés pegou fogo, assim como as paredes e as cortinas. Os retratos de Kotaro e sua família foram incinerados. Oliver protegeu o rosto do calor com o braço. Das chamas atrás de Zaburim, a silhueta de três cães horrendos e cadavéricos sibilavam de um lado para o outro, impacientes. Seus latidos eram como explosões que largavam faíscas sobre os móveis. Comportavam‑se mais como gorilas assassinos do que como cães.

– Que coisas horríveis! – exclamou Basílio, assustado. Nunca es‑tivera tão perto do inferno.

– Nenhum dítzamo me impedirá! – urrou ele, destruindo a mesi‑nha de centro da sala com um soco.

– Oliver! – gritou Badeck. – O portal!Nesse instante Oliver finalmente adquiriu concentração. Duas fi‑

tas envolveram suas costas e algo metálico tocou sua barriga. Shibato se‑gurou o braço da filha com força, olhando‑a com uma ternura paterna. Oliver sacou a espada que pendia embainhada no peito. A casa estreme‑ceu levemente enquanto a sombra da espada estendeu‑se até a parede. O concreto afundou, criando uma espécie de passagem extensa. Tudo aconteceu tão rápido que o trio de cavaleiros mal teve a oportunidade de contestar a ideia. Havia chamas infernais por toda a parte.

– Em mim ou em você – disse ele com um sorriso sádico no rosto. – Sempre foi assim, não foi?

“Claro que foi” pensou ela, lembrando da previsão que tivera an‑tes de ir ao manicômio. Na hora estava com medo, agora, sentia apenas paz. Sempre jogaram com Shibato ou Ayame. Eram pai e filha vítimas do mesmo assassino. Agora a previsão fazia sentido... Aquele diante de si era seu pai. Aquele que a amara mesmo sabendo que ela o odiava er‑roneamente. E sem conseguir se conter, Shibato a atirou no meio das chamas, onde se encontrava o portal aberto. Shibato encarou Basílio que, agradecido, mergulhou no portal seguido por Baroon.

– Aonde pensam que vão? – bradou o demônio, avançando em direção a eles.

Os três cães de chamas atrás dele o acompanharam. Onde suas patas tocavam, o chão incinerava e de seus lombos exalava uma fumaça

Page 399: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 399 ×

venenosa.Oliver não conseguiu se mover. Estático, viu o fogo como uma

onda tomar, gradativamente, toda a sala e aproximar‑se de Shibato. Este continuava parado. Nenhum gesto. No instante seguinte, um brilho in‑tenso envolveu a sala e, no lugar do velho, havia uma criatura cintilante, com três pares de asas brancas nas costas. Oliver não conseguiu ver seu rosto, mas soube naquele instante que o dítzamo era poderoso, capaz de deter Zaburim e impedi‑lo. O anjo brilhava tanto que era impossível definir sua forma. As penas que revestiam as asas eram de uma lumi‑nosidade indescritível. Zaburim hesitou ao vê‑lo retirar uma lança das costas e avançar ao seu encontro. Esfacelou um dos cães‑gorilas sem nem precisar de muito esforço.

– Oliver! – chamou Badeck ao entrar na passagem, acordando‑o do choque.

Oliver tomou sua espada e correu para o portal. Atrás de si, o fogo rompeu a parede da sala com tanta gula, que Oliver sentiu o calor das chamas e a luz angelical roçarem‑lhe na nuca antes que a passagem fechasse às suas costas. O dítzamo cravou a lança no abdômen do demô‑nio no mesmo instante que atzáveri agarrava seu pescoço. As chamas e a luz branca envolveram os dois até que a forte explosão fizesse a casa tremer. No instante seguinte, os dois haviam desaparecido. Suas esta‑dias na terra haviam terminado ali.

Page 400: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 400 ×

Capitulo 31 Sem olhar para trás

Oliver e sua espada caíram pesadamente na terra batida. Rapida‑mente, recompôs‑se e olhou ao redor. O céu cor de chumbo ocultava as estrelas devido às nuvens de mau presságio, árvores secas, um tanto assustadoras, rondavam o pequeno caminho de terra batida. Bolas azu‑ladas suspensas sem nenhum suporte flutuavam ao longo do caminho em cujo final havia pequenas casas e edificações antigas. Confuso, ele viu uma sombra negra irromper das árvores mais próximas, era Baroon. A ursa sacudiu a pelagem densa para retirar as folhas pútridas.

– Onde estão Basílio, Ayame e Badeck? – perguntou o cavaleiro, estranhando o fato de não estar de armadura.

– Não sei. Você se desconcentrou demais quando chamou a pas‑sagem... Eles podem estar em qualquer lugar. Mas tenho certeza de que estão por perto – respondeu a guia.

– Tenho certeza de que essa é a Terra‑Inversa, mas por que não estamos...

– Na forma que deveríamos estar? Não sei. Oliver começou a andar em direção à pequena “cidade”. – Talvez eles pensem o mesmo que nós e acabem indo para lá. – Não sei dizer onde estamos exatamente. Não consigo usar ne‑

nhum de meus poderes, isso é estranho – disse Baroon.Oliver embainhou a espada no peitoral. Baroon ladeou‑o. – O que é isso sobre suas costas?Baroon abocanhou algo sobre o ombro do cavaleiro. Ele reconhe‑

ceu imediatamente o que era.– É uma pena de anjo! – disse o cavaleiro. A pena possuía cerca

de quinze centímetros, era alva e perdia o brilho cintilante, exatamente como as que estavam na asa de Shibato. – Shibato sacrificou‑se por nós.

A ursa liberou um curto grunhido.– Ele era um dítzamo. Um anjo tão forte quanto um atzáveri. – Por que Shibato nunca o impediu a ação maléfica de Zaburim, se

ambos pertenciam ao mesmo nível? Por mais explicações que ele tenha

Page 401: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 401 ×

dado, não entendo... Poder ele tinha para acabar com o demônio quando quisesse!

– Porque um dítzamo possui alguma missão a cumprir ou ensina‑mento a ser adquirido aqui na Terra. Isso é mais importante que uma batalha. Se ele não cumprisse o que se dispusera a fazer, ele seria caçado e sua família aniquilada, de qualquer forma, por seus iguais.

Oliver parou, indignado.– Você não escutou o que ele disse? – questionou Baroon, paciente

como uma mãe explicando algo difícil de entender, a um filho pequeno. – Ele era um médico que procurou associar a ciência à fé. Embora tenha feito os experimentos para encontrar a Cura, também propagou ideias que, mais tarde, serão seguidas por outras pessoas. Talvez ele tenha sido, hipoteticamente, um cavaleiro. Vive, trabalha, cuida e ninguém sabe que ele existe. Shibato encontrou grandes dificuldades durante sua estadia na Terra, Zaburim foi um desses empecilhos. E o outro, foi ligar‑se a uma família porque nem anjos e nem demônios têm o direito de criar uma família, a menos que seja sua missão. E, no caso dele, não era... Então ele pagou um preço por ter burlado as leis.

– E o que vai acontecer com ele? – perguntou Oliver, voltando a andar.

– Não sei dizer. Ele tem grandes chances de decair... Oliver guardou a pena no bolso traseiro. À medida que se aproxi‑

mavam da cidade, as edificações iam se tornando esquisitas. Havia casas velhas, medievais, novas e até um tanto futurísticas construídas sequen‑cialmente. Lojas vendiam esquisitices como as do Coveiro. As árvores, exóticas, dispostas uma ao lado da outra delimitavam o lugar, formando um muro. Um trecho povoado de barracos logo na entrada lembrava uma favela. A iluminação parcial era feita pelas esferas flutuantes que beiravam as ruelas e janelas dos “prédios” quebrados. O lugar dava a impressão de estar suspenso no ar.

As primeiras pessoas visíveis eram aparentemente normais, usa‑vam roupas, trapos, vestimentas antigas e exóticas. E todos, para o de‑sespero de Oliver, tinham os rostos deformados.

– Já estive aqui antes – informou Baroon. – Estamos em Gôndola, a cidade do comércio.

– Existe cidade do comércio na Terra‑Inversa? – Não apenas existe, como é ativa. Essas pessoas com rostos dis‑

torcidos estão aqui para fugir do julgamento, como você mesmo sabe e, para não serem descobertas, utilizam disfarces para não serem reconhe‑cidas. E, na Terra‑Inversa, necessidades como fome e sono precisam ser supridas quando se é uma alma fugitiva.

– Caramba... Eu não sabia que almas comiam. – Quando se está aqui, a alma ainda está ligada a vontades de cor‑

po. E para manterem‑se vivas precisam comer... Não somente alimentos

Page 402: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 402 ×

terrenos, mas outros tipos de coisas. Além de pessoas, também existiam animais e criaturas bizarras.

Todos agiam com normalidade. – Existem tantas coisas que você precisa saber em tão pouco tem‑

po – explicou Baroon, num desabafo. – Espero que durante a busca pe‑los outros cavaleiros, isso aconteça naturalmente.

– Sinto a presença fraca de Basílio aqui, – disse Oliver subitamen‑te – creio que vieram para cá também. Nós os encontraremos e depois iremos atrás de Kale, porque ela tem muito que explicar ainda.

Ela grunhiu em resposta. O que estava por vir precisava de muito conhecimento e compreensão deles e de toda a humanidade.

– Minha cabeça! – vociferou Ayame apoiando‑se em uma árvore seca para não cair. – Que lugar é esse?

Estava cercada de árvores velhas e pútridas. O solo em que pisa‑va era arenoso; o céu acinzentado de nuvens grossas dava a impressão de que a terra flutuava. Respirou ofegante e lembrou‑se de como viera parar ali. Como sentia por não ter dado a chance que Shibato precisava para se explicar. Como poderia adivinhar que seu tio era um demônio? Como poderia aceitar isso? Da mesma forma que aceitava ver pessoas sendo mortas em suas previsões. Procurou visualmente por um dos ho‑mens que estavam consigo e não viu nada além de sombras. Ouviu um tipo de choro, apurou os ouvidos e abriu os olhos ao máximo.

– Tem alguém aí? – perguntou em voz alta. O choro prosseguia e era de alguém que estava longe demais para

ouvi‑la. Correu na direção do choro, afastando os galhos que estavam à sua frente. As árvores foram ficando menos numerosas. Como o choro estava mais alto, Ayame escondeu‑se atrás de uns arbustos, inclinando a cabeça para ver. A cinco metros de onde estava havia uma enorme fenda no solo, formando um abismo, cuja distância de cem metros entre os dois paredões, era interligada por uma ponte. E nela havia um menino chorando. “O que uma criança faz sozinha nesse lugar?” pensou.

Apesar de seus instintos, ela largou o esconderijo. Estava sozinha com o garoto, ou ao menos era o que pensava. Caminhou até o inicio da ponte.

– Ei, menino! – chamou ela.O garoto ergueu o rosto oculto pelos braços que envolviam os

joelhos. Suas lágrimas molhavam o rosto sujo de terra e os trapos que utilizava como vestes.

Page 403: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 403 ×

– Me ajude! – pediu ele, secando as lágrimas com a manga suja. – Eu não consigo continuar a travessia, estou com muito medo!

– Vai ficar tudo bem – ponderou ela, enquanto olhava para os la‑dos. O acidente com seu pai saiu por um tempo de sua mente – Eu vou lhe ajudar! Qual o seu nome?

– Por favor! Me tire daqui... Eu estou sozinho e com medo! – ex‑clamou o garoto e voltou a chorar.

– Certo! Certo, acalme‑se. “Essa ponte está tão podre que talvez não aguente meu peso”,

analisou ela, “mas eu também não posso deixá‑lo lá. Deve estar há muito tempo preso e sem saber o que fazer... Aqui é um lugar deserto, não vejo ninguém por perto. Vou ajudá‑lo e talvez ele me ajude a descobrir onde estou e como sair daqui.”

– Eu vou aí, – disse Ayame – e o tirarei desse lugar. Espere!– Certo. Tome cuidado!– Tomarei, tomarei – repetiu ela e apoiou a mão na madeira velha

e deu o primeiro passo.A ponte, apesar de fixa, rangeu. “Acho isso uma péssima ideia,

mas vamos lá.” Incentivou‑se e deu o passo seguinte e assim conse‑cutivamente. Os ruídos da madeira podre rachando repetiam‑se à pro‑porção que se aproximava de seu centro. O lugar era dominado por sombras. Ayame, ao dar um passo em falso, e deixou o pé afundar numa das tábuas e, por pouco, não caiu.

– Cuidado moça! – alertou o garoto, preocupado. – Essa ponte é muito velha.

Após alguns minutos, ela finalmente chegou onde estava o garoto acocorado.

– Estou com muito medo!– Não precisa ficar, – disse Ayame afetivamente – eu vim buscá‑lo!– Ah, eu agradeço muito por sua ajuda... – lamentou ele – mas eu

não posso sair daqui.– Como assim? – Ayame afastou a franja, como sempre fazia

quando ficava nervosa.– Quem entra aqui não sai mais! – A voz do garoto tornara‑se

ameaçadora. – E você também não sairá! – Olha, eu não sei do que você está falando... – Ela demonstrou

nervosismo. – Se você não vier comigo, ficará aí para sempre!– Já disse que você não irá voltar! O garoto ergueu o rosto dotado de expressões demoníacas. Ela recuou e pisou em algo macio que produziu um chiado. Bai‑

xou o olhar para o chão e viu uma espécie de flor do tamanho de seu pé. Apavorada, retirou o pé de cima. A flor, ligada por um caule fino, ex‑tenso e esverdeado provinda do escuro abaixo da ponte, abriu as pétalas roxas e expôs fileiras de dentes afiados.

Page 404: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 404 ×

– Pegue‑a! – ordenou o garoto, apontando para a cavaleira. A flor tentou envolver sua perna com o caule, mas Ayame foi mais

rápida e pisou diversas vezes sobre ela. Dessa vez outra flor, ligada por um tentáculo três vezes maior, surgiu das sombras.

– Que porcaria de lugar é esse? – perguntou‑se Ayame. A flor tentou abocanhá‑la, porém ela saltou para trás. A ponte

rangeu forte com o movimento. Outros tentáculos, cada vez mais gros‑sos, longos e abundantes içavam‑se no ar e rondavam a ponte. As flores grandes e pequenas possuíam mandíbulas róseas e dentes amarelados tão afiados quanto uma lâmina. Uma delas abocanhou o suporte da pon‑te e arrancou um pedaço com apenas uma mordida. As tábuas gritavam, alertando que a ponte não aguentaria muito mais peso. Quando achou que nada mais podia ser pior, uma rosa, diferente das outras por ser mais bela, irrompeu das sombras. Era magnífica e suas pétalas reluziam sem precisar de quaisquer brilhos. Enfeitiçada por tamanha beleza, a oriental não conseguiu dar nenhum passo. A rosa possuía praticamente metade do tamanho daquela ponte. “Porque não consigo correr?” perguntou‑se Ayame, alarmada. “Essa flor... Olha como é linda! As pétalas parecem véu.” A rosa, movida por um tentáculo grosso, aproximou‑se da extre‑midade em que estava Ayame. “Eu quero tocá‑la, mas não posso... Posso sim... É uma rosa! Não vai me fazer mal.” Tentada, ela ergueu o braço para conseguir tocá‑la. “Sinto‑me tão bem perto dessa flor... Não quero mais sair daqui.” As pétalas da rosa moveram‑se sutilmente produzindo um aroma adocicado e atraente.

– Ayame... – Uma voz distante chamou‑a.Hipnotizada demais com a aparição da flor, Ayame ignorou. – Não toque nela! É uma armadilha. Lute contra isso. Olhe ao seu

redor, isso não são flores! São monstros! Monstros que irão te devorar!Ela tentou assimilar as palavras ditas pela voz que provinha da

extremidade da ponte por onde Ayame viera. Não conseguiu fazer nada. “Isso não são flores... Eu... Eu não posso ficar aqui! Aquele garoto disse que eu não poderia sair daqui, mas eu devo!” Lutando contra os pensa‑mentos, ela recolheu a mão e chutou a flor carnívora perto de sua perna. A rosa afastou‑se da ponte e abriu uma enorme boca localizada atrás das pétalas. Ela urrou irritada e ergueu um dos tentáculos grossos em direção à garota.

– Corra Ayame! – insistiu a voz estranhamente familiar.“Fugir!” Foi a única coisa em que pensara após a hipnose ser

quebrada. O garoto não estava mais lá: não havia menino nenhum. Era uma armadilha... Caíra numa armadilha e iria morrer se não corresse. Apoiou‑se no parapeito da ponte e esquivou‑se de uma abocanhada de uma flor pequena e então começou a correr. Apesar de ouvir a tal voz, Ayame não enxergou nada do outro lado da ponte. Se olhasse para trás teria certeza de que perderia as forças e não conseguiria mais fugir. O

Page 405: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 405 ×

ruído do vento sendo cortado terminou com um enorme estrondo. O tentáculo partiu a ponte ao meio, rompendo suas ligações e suportes. As tábuas aos seus pés começaram a faltar conforme a ponte cedia. “Eu vou morrer!” pensou ela, fazendo a única coisa que tinha em mente: saltar. Estava tão próximo e ao mesmo tempo tão longe. Esticou os braços na tentativa de agarrar‑se a alguma raiz que brotava da parede do penhasco. Suas mãos passaram a centímetros da terra endurecida.

A ponte que lhe servia de suporte havia sumido. Restava‑lhe ape‑nas sombras abaixo. Quando achou que iria morrer, um “tentáculo” en‑volveu sua cintura e a manteve pendurada.

– Fique firme – pediu Onddo, envolvendo o pescoço numa das árvores da orla.

E, com um puxão, Onddo a trouxe para a segurança da terra. A planta carnívora tentou avançar, mas algo barrou seus tentáculos: uma espécie de proteção invisível bloqueava sua passagem para a terra. A garota, ainda de olhos fechados, tateou o “braço” grosso que a segurava.

– Você está bem? – perguntou a serpente, chiando nervosamente para a planta monstruosa que tentava burlar sua prisão.

– Eu... Eu... Gaguejando, ela sentiu a cobra afrouxar a cauda e liberá‑la. Colo‑

cou‑se de pé. Ao invés de ficar com medo, sentiu‑se segura. Já a conhe‑cia de algum lugar.

– Obrigada. E então, ela olhou para o penhasco. A rosa recolheu seus tentáculos e retornou às sombras, irritada por ter perdido a presa. Magicamente, novos pedaços de madeira irrompiam da parede do pe‑nhasco e construíam uma nova ponte. Idêntica à outra, dando a ideia de que nada havia acontecido.

– Você teve sorte, – respondeu Onddo sem precisar que ela per‑guntasse – existem armadilhas aqui que servem para pegar as almas de‑savisadas e mandá‑las de volta para o julgamento final.

– Onde estamos? Que lugar é esse? Quem é você?Ayame não demonstrava mais temer a cobra. Estava confusa e

cansada demais para duvidar das coisas que aconteciam ultimamente.– Estamos na Terra‑Inversa. Já eu sou sua companheira, estive

com você desde o seu nascimento – respondeu Onddo subitamente. – Se vier comigo, lhe explicarei tudo o que quer saber. Somos mais ligadas do que você pensa... A partir de agora terá de confiar em mim.

“Confiar em uma cobra?”, questionou‑se Ayame mentalmente.– Não me rotule por ser um réptil. A oriental assombrou‑se pela segunda vez. – Você está lendo meus pensamentos?– Eu não leio, mas posso ouvi‑los se me permitir. Assim como

você também pode ouvir os meus... Eu não estou falando, estou pensan‑do. Não tenho capacidade para falar. Estranhamente perdi meus dons

Page 406: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 406 ×

quando vim para cá. Por isso precisamos nos encontrar com os outros cavaleiros.

– Cavaleiros? Nesse lugar? – protestou ela. – Se você esteve comi‑go desde que nasci, por que nunca se manifestou?

– Não pude fazer nada até então – Onddo começou a rastejar em direção à floresta. – Existe uma cidade para lá, eu vi enquanto caíamos. Os outros devem ter caído por perto também e devem ter pensado o mesmo que eu. Então, iremos para lá.

Pestanejando, Ayame a seguiu. – Eu poderia ter deixado você ser devorada, mas a salvei – re‑

trucou Onddo. – Então demonstre consideração com o sua guia caso queira saber a verdade que a cerca.

– Está bem, está bem, – desculpou‑se Ayame – eu fui rude com você! E tente entender também, eu nunca tive uma vida normal e tudo agora parece pior! Eu vim parar num lugar com uma planta devoradora de gente... Não sei nem como vim parar aqui! Estou me esforçando para não enlouquecer de vez!

– Não estamos na Terra e muito menos no céu ou inferno como pensa, estamos mais longe do que imagina de tudo isso. E agora tente se manter próxima de mim, pois, caso aconteça algo mais, tenho chan‑ces de salvá‑la. Se eu não posso adquirir minha verdadeira forma, você também não pode.

Ayame suspirou. Estava mais perdida do que nunca. – Apenas esqueça... – pediu a guia severamente. – Deixe para trás

o que te prende o caminho.Basílio sentou‑se sobre a superfície de concreto e esfregou a ca‑

beça dolorida. Para sua surpresa, seu braço estava são. Levantou‑se e aproximou‑se da beirada do prédio, assustando‑se com a visão. Estava de pé sobre o prédio mais alto da cidade de Gôndola. Vislumbrou as diferentes casas na escuridão; de onde estava, as nuvens cinzentas pare‑ciam mais próximas do solo do que nunca. Afastou‑se da beirada baixa e pensou um pouco.

– Onde estão os outros? – perguntou para si. – Eu lembro de ter entrado no portal e depois não vi mais nada.

Báz tateou o galo no topo de cabeça.– Acho que bati a cabeça e desmaiei. Deve ter acontecido algum

imprevisto. Isso é mau. Não sei onde estou. Melhor procurar os outros. Ele adiantou‑se até a porta da estranha cobertura e desceu as es‑

cadas envelhecidas. Conforme avançava pelos corredores, o ambiente mudava drasticamente. Em um andar havia muito luxo e pessoas bem vestidas, em outro as coisas eram mais humildes, e ainda viu o andar dos mendigos, cercados de estranhos objetos. Também percebeu que as pessoas, cujo rosto era deformado, não davam a devida atenção à sua presença. Quando chegou ao térreo, saiu para a rua repleta de lojas

Page 407: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 407 ×

bizarras e casas pobres. As “anomalias” passavam por ele, ora ou outra encarando‑o com os olhos fora de lugar. Um homem com a boca na testa e os olhos na nuca quase o repudiou.

– Merda! Essa deve ser a tal Terra‑Inversa que o Oliver falou, ou quase falou, porque ele não disse nada de gente com rostos anormais.

Num determinado momento, depois de longos minutos de cami‑nhada pelo lugar, Basílio encontrava‑se em uma rua quase deserta com casas abandonadas. O lugar era extremamente escuro e, quanto mais, avançava pelo caminho, mais perdido ficava. Retirou da mochila a lan‑terna dada por Coveiro e mirou a poderosa luz num beco , que não foi iluminado apesar de o facho penetrar as sombras.

– Eu esperava que isso pudesse servir como uma lanterna conven‑cional pelo menos aqui!

Um monstrinho cadavérico que se preparava para atacar Basílio derrubou algumas latas de lixo e saiu do beco, grunhindo com as garras afiadas expostas.

Basílio, de costas para o beco e preocupado demais com sua fuga daquele lugar, apontou a lanterna acesa para o próprio rosto. Olhou para trás e apontou o facho por sobre o ombro para ver o que acontecia. O monstro gritou de medo e retornou para o escuro.

– Esse lugar me deixa cada vez mais confuso.Ganidos mesclados com latidos chamaram a atenção do cavaleiro.

Vinham da parte mais escura da rua. – Badeck? – pensou, correndo ao encontro do som.Escondeu‑se atrás do muro que cercava uma casa de estilo medie‑

val, abandonada. Os ganidos tornaram‑se rosnados e latidos agressivos. Báz esgueirou‑se por entre as pedras do muro e espiou de canto. A rua seguinte era sem saída. Um cão negro, rodeado por quatro lobos me‑nores e um lobisomem gigantesco, lutava por sua vida. Badeck estava prensado contra a parede sem poder se defender, alguns ferimentos de mordidas marcavam‑lhe o dorso. O lobisomem, maior que o guia, ros‑nou ferozmente.

– Entregue‑nos seu Mantra de Luz! – ordenou ele.– Vão ter que me matar para isso! – Badeck rosnou de volta.Basílio largou o esconderijo e atirou uma pedra, que encontrara

no caminho, sobre o lobisomem. – Afaste‑se dele!O lupus sacudiu a cabeça ferida e voltou a face animalesca para o

“humano”. – Afaste‑se Basílio! – exclamou Badeck. – Eu não posso utilizar da

minha força para lutar! Há algo de errado comigo. Corra!Báz cuspiu no chão e arregaçou as mangas. Os músculos, apesar

de gastos, ainda estavam bem realçados. – Você não está com a sua armadura e vai ser estraçalhado!

Page 408: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 408 ×

Badeck desferiu uma patada na cabeça de um dos lobos que ten‑tou atacá‑lo. O lobisomem ameaçou saltar sobre Basílio.

– Se me atacar, vai se arrepender – provocou Báz maliciosamente. O cavaleiro apontou a lanterna para o lobisomem, ameaçadora‑

mente. Badeck continuou a defender‑se dos lobos insistentes, desferin‑do‑lhes poderosos golpes.

– Vai atirar essa lanterna na minha cabeça? – ironizou o lobiso‑mem. – Então testaremos seu poder de ataque.

O lobisomem partiu em direção ao cavaleiro, armando as garras e dentes para dilacerar‑lhe de uma única vez. Badeck, utilizando‑se de todas as forças, afastou os quatro lobos cinzentos e correu para salvar Basílio, que continuava parado ao invés de fugir. O guia tomou a frente do cavaleiro e arqueou as costas, preparando‑se para investir ao ataque do lobisomem. Basílio mirou o facho de luz na direção de Badeck, ofus‑cando não apenas a visão do lupus, mas toda a coragem que ele tinha. Badeck, que tinha o corpo também iluminado, triplicou de tamanho e adquiriu olhos vermelhos incandescentes. As presas assassinas do cão mal cabiam na boca.

Badeck emitiu um latido semelhante a um trovão.– Suma!O lupus afastou‑se rapidamente, tropeçando nas próprias patas.

Os lobos, que se recompunham, não aguardaram o líder para fugir, e desapareceram pela floresta.

– Não voltem nunca mais! – mandou Báz.O cavaleiro guardou a lanterna no bolso.– Como você sabia que isso ia acontecer? – perguntou Badeck,

que já sem a luz da lanterna voltava a sua forma original.– Eu não sabia, – Báz coçou a cabeça – eu deduzi! Acho que as

geringonças do Coveiro fazem mais efeito aqui... Não precisa segurar a lanterna para ver o seu efeito. Percebi isso porque, acidentalmente ex‑pus meu rosto e uma criatura que estava próxima viu minha identidade de cavaleiro e fugiu. Imaginei que isso fosse possível e apliquei em você.

– E se não desse certo? – xingou o guia, meneando a cabeça. – Você correu muitos riscos.

– Onde está Oliver e os outros?– Não sei. Provavelmente estão nessa cidade em algum lugar, te‑

remos de procurá‑los. – Tenho uma ideia melhor – pressupôs Báz. – Vamos procurar

pelo oráculo, afinal ela pediu para irmos até a Terra‑Inversa, não? Então é atrás dela que iremos.

O guia sacudiu o pelo, enquanto os ferimentos à vista cicatriza‑vam‑se rapidamente.

– Estamos em Gôndola – disse Badeck. – Na Terra‑Inversa. Há algo de errado nesse lugar. Além de não conseguirmos usar nossas ver‑

Page 409: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 409 ×

dadeiras formas, sinto algo pesado no ar. As nuvens cinzentas tomavam, lentamente, uma cor amarelada. – Badeck, precisamos encontrar Kale. Estou com um mau pres‑

sentimento. Eu acho que posso senti‑la próxima. Então se eu sinto, os outros também sentirão.

O cão assentiu, apressando o passo.

Ayame surgia dentre as árvores junto à cobra. Haviam conversado durante o percurso até a cidade e agora os dois se entendiam melhor.

– Como as pessoas nunca souberam sobre a Terra‑Inversa? – per‑guntou ela, parando para recuperar o fôlego.

– Há verdades que o mundo não está pronto para saber – Onddo ouriçou‑se nitidamente. – Veja, é o outro cavaleiro.

Próximo a entrada, Oliver acenava freneticamente para eles.– Ei! Ayame! O Cavaleiro estava em sua forma humana verdadeira: alto, esguio,

cabelos lisos e expressões nada amigáveis. Baroon, agora na forma de ursa, soltou um rugido.

– Aquela cobra junto com ela é a guia dela? – indagou Oliver, aguardando sua chegada. – De onde ela veio?

– Provavelmente ela sempre esteve atrás de nós – respondeu‑lhe Baroon. – Ela a acompanha aonde Ayame for, como eu fiz com Basílio. Sempre estive junto dele... Estamos ligados por nossos Mantras. Por algum motivo, na hora em que entramos no portal que nos redirecionou para cá, a guia teve tempo de rastreá‑la e segui‑la.

A guia silenciou.– O que houve?– A presença de Báz sumiu, mas acabei de sentir o oráculo. Ela

está na cidade... Acabarmos parando aqui deve ter sido obra dela.– Não duvido que seja mesmo... – Oliver deu de ombros. – Ela

deve ter algum motivo para isso.Ayame reduziu o passo ao encontro de Oliver.– Não explique – interrompeu a oriental ofegante, antes que o

cavaleiro falasse. – Façamos o seguinte, me leve a algum lugar seguro e conversaremos.

– Já estávamos fazendo isso... Ou quase isso. – Oliver passou as mãos no rosto. –Provavelmente Badeck também sentirá a presença do oráculo e irá atrás dela. Vamos indo.

Baroon ladeou a serpente. – Onddo, – enfatizou ela – estamos trabalhando juntas de novo...

Page 410: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 410 ×

Onddo chiou baixinho.– Segunda e última vez se a nova ordem de cavaleiros não for boa.Badeck e Basílio pararam para apreciar o céu. Os tons amarelados

antes imperceptíveis, agora formavam uma espiral de nuvens cintilantes. O cão havia sentido a presença de Kale não havia muito e guiava Báz até a oráculo. Não apenas eles haviam percebido a anomalia no céu, mas toda a cidade. As pessoas de rostos anômalos, animais, criaturas, monstros e meras almas aglomeravam‑se nas ruas para encarar o acon‑tecimento. Nem os mais velhos moradores do lugar sabiam explicar o fenômeno.

– Por que o céu está amarelo e as nuvens em espiral? – indagou Báz, afastando‑se de um grupo de curiosos.

– Eu temia que isso fosse acontecer, mas não tão cedo! – exclamou Badeck. – São as fendas.

Basílio fez cara de quem não entendera.– Fendas apocalípticas – tartamudeou o guia. – Elas nascem quan‑

do o mundo está próximo de um apocalipse. Servem como portas entre os dois mundos, porém, até onde eu sei, por enquanto nada passará por elas.

– Então não são perigosas.– Eu disse que nada passava por elas, não que não eram perigo‑

sas. – O guia começou a correr rua abaixo. – Vamos sair daqui, estamos vulneráveis.

Um conglomerado de criaturas grotescas e de rostos distorcidos empurrou o cavaleiro e o guia.

– Com licença! – exclamou Báz, apressado. – Eu preciso passar... Bando de gente mal educada.

– Estamos perto do oráculo, posso sentir sua presença cada vez mais próxima.

Ambos terminaram de descer a rua com dezenas de lojinhas aper‑tadas e pessoas espremidas no curto espaço. Badeck mirou o focinho para um beco quase escondido no final da rua. Pela fenda, um tênue facho de luz amarelada penetrava a escuridão quase absoluta.

– Eu acho que estou vendo Baroon – afirmou Báz, empurrando as criaturas para passar.

Oliver e Ayame pararam diante do beco. Baroon e Onddo confir‑mavam a presença do oráculo.

– É aqui. – Tem certeza de que é aqui, Baroon? – perguntou Oliver que não

sentia nada.Os chamados de Báz não foram ouvidos. O fundo do beco escuro

atraía os cavaleiros pela curiosidade. – Grite o quanto puder! – exclamou Badeck. – O céu está ficando

instável e precisamos de proteção.

Page 411: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 411 ×

Entre o aglomerado de curiosos, Basílio deu uma olhadela para o alto e viu as nuvens moverem‑se circularmente.

– Oliver! – gritou mais uma vez.Oliver viu Basílio movendo os braços nervosamente.– Báz está aqui também! – disse satisfeito, acenando‑lhe de volta.Repentinamente um trovão despertou medo nas pessoas. Basílio

empurrou duas pessoas distorcidas e finalmente alcançou os parceiros. Naquele instante, Oliver lembrou‑se da profecia que os mortos lhe ha‑viam dito quando viajava com o chupa‑cabra e Badeck. Os céus denun‑ciariam o fim.

– Vocês estão juntos, isso é bom – ofegou ele.Badeck viera por último, atrapalhado entre o movimento. – Baroon... Onddo! – surpreendeu‑se o cão com este último. Já o

conhecia de encontros passados. – As fendas estão se abrindo. Já vimos isso muitas vezes, mas elas jamais tomaram essa cor amarelada.

– Eu já soube de tudo – grunhiu Onddo. – Isso não importa – disse Baroon rudemente. – É nosso dever

manter os cavaleiros em seu rumo. Eles possuem a capacidade de con‑sertar isso.

– Talvez, se todas as soluções dependessem somente deles – iro‑nizou Onddo.

Badeck soltou um ganido quando o segundo trovão, alto e po‑tente, seguido de um raio amarelo e cintilante, acertou a cidade. Uma pequena esfera amarela surgiu no centro da espiral, liberando outro raio em direção à floresta, destruindo três árvores. O pânico rapidamente tomou conta de todos os que temiam pela própria existência. Ayame gritou quando o chão começou a tremer.

– O que está acontecendo?– Vamos sair daqui! – exclamou Báz, esquivando‑se de um pedaço

de concreto que, devido ao terremoto, se desprendia do prédio velho ao lado do beco.

O grupo entrou no beco em direção à presença de Kale. A porta se abriu magicamente para eles, convidando‑os a entrar e ficar em se‑gurança. Oliver não pôde deixar de pensar que uma nova fase de sua vida começava. Mas até onde ela ia e que consequências traria? Conven‑ceu‑se de que estava pronto para tudo o que viesse. Finalmente, depois de muito tempo, seu passado não mais o perturbava. Era ele e apenas ele, Oliver, o cavaleiro. Basílio sabia e Ayame apenas sentia que, se qui‑sessem que seus problemas passados não se repetissem, deveriam deixar para trás o que mais importava para que os outros tivessem uma chance de sobreviver ao que estava por vir. Aquele era um caminho sem volta... Ninguém imaginava que a história mal tinha começado.

Page 412: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 412 ×

Hades II Princípio do Fim

Gustavo parou de esfregar o piso do cargueiro estacionado no oceano. Secou o suor da testa e arrepiou‑se em seguida com uma brisa gélida. Usava um casaco amarelo para se proteger da água que espirrava para dentro do barco devido às ondas agitadas.

– Jesus! – exclamou subitamente. – Um calor desgraçado e me chega essa brisa?

Gustavo viu, em questão de minutos, nuvens grossas e chuvosas envolverem os raios solares. Ludo, seu companheiro de faxinas naquela tarde, cutucou‑o no ombro.

– Pare de ficar olhando o nada e vá trabalhar! – gritou Ludo.– Trabalhar? Eu não! Olha só o “chuvaréu” que tá chegando aí!– Chuvaréu? Do que tá falando, homem de Deus?Gustavo apontou para o horizonte oceânico e Ludo deparou‑se

com as últimas brechas de sol sendo engolidas pelo mau tempo. – Que tempo louco!– Temos que avisar o capitão, – aconselhou Ludo, receoso – vai

que cai um toró do demônio. É melhor recolher as redes de pesca!– Acho que não vai dar tempo. Gustavo encolheu‑se até o toldo que protegia o corredor de ma‑

deira. As boias que demarcavam as redes de pesca começaram a subir e descer nervosamente devido aos peixes presos e enlouquecidos. Alguns chegavam a saltar mais de um metro da água a fim de partir para longe.

– Olha esses peixes! Vá chamar ajuda! – gritou Ludo, segurando com força uma das cordas que prendia a rede ao barco.

Uma pequena onda de peixes atordoados conseguiu desprender a outra corda do suporte.

– Afasta daí, homem – pediu Gustavo, olhando fixamente para o céu. – Não estou gostando disso! Os peixes não ficam assim por nada, é um sinal de perigo!

– Para de ladainha e vem me ajudar! Gustavo encolheu‑se mais ainda junto ao toldo. Gotas grossas e

pesadas de água desciam enfurecidas do céu. Assustado, o pescador de sessenta anos jamais vira um céu tão revoltado. Ludo, trinta anos mais

Page 413: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 413 ×

novo, utilizava de sua força para manter a rede estável. Repentinamente, os ventos intensificaram‑se e lançaram poderosas rajadas que erguiam ondas incontroláveis. Gustavo afastou Ludo das redes, a tempo, antes que o raio amarelo cintilante tocasse a superfície da água. Como num passe de mágica, o turbilhão de peixes assustados parou, e seus corpos boiaram mortos. Centenas de animais sem vida rondaram o barco num raio de dez metros. Assombrados, correram para alertar o capitão. Seus únicos pensamentos concentravam‑se no eixo fino do inesperado ciclo‑ne que descia do céu até a água.

CONTINUA...

NÃO ESQUEÇA DE PASSAR ESSE ARQUIVO ADIANTE SE QUISER O VOLUME II!

Gostou e quer contrinuir? Segue duas contas para depósito de qual‑quer valor que desejar. Pierre agradece!

Page 414: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 414 ×

Contas para Depósito:

Banco do BrasilAg. 2806‑1Conta Corrente: 28723‑7Titular: Jordana Machado

Caixa Econômica FederalAg. 0447 Op. 001Conta Corrente: 21630‑4Titular: Jordana Machado

Quer tirar dúvidas? Quer dicas e conselhos? [email protected]@hotmail.com

Page 415: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 415 ×

Page 416: Hades Vol. I Terra-Inversa

× 416 ×