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ivani santana - universidade federal da bahia - [email protected]
1
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SANTANA, I. Corpo-dança expandido pelos “tempos” do ciberespaço: novas dramaturgias. Z
Cultural - Revista Virtual do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, ano VIII, v1, ISSN
1980-9921. Revista Z Cultural (UFRJ). , v.8, p.5, 2012. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br
1Ivani Santana
Este artigo faz uma análise da pesquisa iniciada em 2005 no campo da dança que
utiliza as redes avançadas de telecomunicações como o locus e a “matéria-prima” para o
desenvolvimento do que aqui consideramos uma dança (e um corpo) expandido. Serão
discutidos alguns resultados dos projetos realizados pelo Grupo de Pesquisa Poéticas
Tecnológicas2 que apontam a dança telemática como um reflexo da cultura digital que tem o
tempo como fator relevante para seu acontecimento. Essa nova configuração artística
promove o surgimento do que denominamos dramaturgia telemática.
Desde o evento Nine Evenings for Theatre and Engeneering (Nova York, 1966) é
possível dizer que a arte (re)conheceu novos e complexos ambientes de atuação. Esse evento
idealizado pelo artista visual Robert Rauschenberg (1925-2008) e pelo engenheiro Billy
Klüver (1927-2004) reuniu 30 engenheiros da Bell Telephone Laboratories e 10 artistas
americanos. O projeto levou um ano para ser produzido e mostrou ao mundo performances e
instalações que surpreenderam o público. Naquele momento, Nine Evenings fincou um novo
marco na história da arte. Segundo Michael Rush, essa é uma reverberação do “confronto
com a tela” (1999: 7) que já tinha sido iniciada pelos russos Kasimir Malevich (1878-1935) e
Vladimir Y. Tatlin (1885-1953) e, um pouco depois, contou com Paul Jacson Pollock (1912-
1956) nessa ruptura, para citar apenas alguns. Esse confronto encontrou eco, portanto, em
movimentos como o Futurismo, o Abstracionismo, o Surrealismo, o Conceitualismo e outros.
Ainda segundo Rush (1999), a tela representa o pictórico e sua dependência do espaço.
1 Ivani é mestre (2000) e doutora (2003) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fez pós-doutorado no Sonic Arts Research Centre, Queen's University Belfast, na Irlanda do Norte, pesquisando a relação da sonoridade do corpo em ambientes telemáticos. Desde o início da década de 1990 pesquisa a relação da dança com as novas tecnologias. Tem atuado intensamente nesse campo, contando com expressiva produção artística e científica. Em 2006, pela apresentação de sua pesquisa no Monaco Dance Forum (MDF), recebeu o Prêmio Unesco para promoção das artes: novas tecnologias e a Residência Artística no renomado Centre Choregraphique National, com direção artística do coreógrafo Angelin Preljocaj, em Aix-en-Provance, França. 2 Os vídeos das obras citadas neste artigo encontram-se no site do grupo. www.poeticatecnologica.ufba.br.
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A realidade era, até então, expressa pelo espaço (compreendido como um local específico,
um ambiente) capturado e fixado nas imagens criadas pelo artista, aspecto que foi
efetivamente alterado pela cultura digital. O mundo do código binário apontava para um
outro alvo. O foco de interesse se movia do espaço para o tempo, um tempo redimensionado
da contemporaneidade.
A exploração do tempo alcançou seu ápice quando o ciberespaço saiu das histórias de
ficção científica para concretizar uma realidade (a nossa contemporânea). Muitos consideram
o ciberespaço como um “não-espaço”, posição contrária a deste texto. A compreensão de
“não-espaço” ocorre pela manutenção da visão pictórica em detrimento da cultura digital.
Entretanto, na era da informação, espaço não significa mais lugar, local fixo à espera de ser
representado pela obra do pintor, que buscava recriar a realidade tal e qual. O espaço, que
agora é virtual, sintético, digital, torna-se múltiplo, é contextual e transitório. O espaço não
está dado (pronto e definido), ele é um enunciado que depende de suas situações internas e
externas para existir em contínua transformação e articulação. Nesse sentido, espaço é
contexto. Tais aspectos estão ancorados no mundo contemporâneo que se interessa pelo
processo e não mais (apenas) pelo produto. Estamos em um mundo rizomático e não serial e
(exclusivamente) linear3. Como contexto, vincula-se aos seus antecessores (situação externa)
como os cubistas que desejavam, de certa forma, ter todos os tempos ao mesmo tempo ao
“abrir” todas as faces e fases de um mesmo objeto em um único instante (situações internas
àquele contexto).
Mas antes de discutir os tempos do ciberespaço, é necessário trazer o contexto, a
situação externa que estimulou o surgimento da dança telemática para então poder analisar as
obras que serão apresentadas neste artigo. Para os idealizadores de Hole-in-Space. A Satellite
Comunication Sculpture (1980), Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz, esse “túnel do tempo”
que colocou os transeuntes das ruas de Los Angeles em contato com aqueles que se
encontravam em Nova York tinha como objetivo criar uma “performance sem nenhuma
fronteira geográfica” (Chandler, 2005:154). Essa já era a segunda obra nesse sentido. A
primeira, Satellite Arts (The Image as Place) (1977) foi realizada graças ao interesse da Nasa
em aproximar e ganhar simpatia e confiança dos estadunidenses aos seus projetos. Para isso,
abriu uma chamada para associações da sociedade civil com interesse em realizar
experimentações com o satélite US-Canadian. Apesar de nada compreenderem dessa
3 A linearidade continua a existir como a própria vida que depende de um desenvolvimento contínuo e cronológico irreversível. Nascer, crescer e morrer é uma condição linear que não tem como ser abolida.
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3
tecnologia, Galloway e Rabinowitz intuíram que essa poderia ser uma nova forma de fazer
arte, uma arte sem fronteira, como afirmaram. Nesse trabalho, dançarinos preparados pelas
orientações de improvisação da artista da dança pós-moderna Ann Halprin e
autodenominados “Mobilus” foram convidados para realizar uma performance entre duas
cidades dos Estados Unidos (Califórnia e Maryland), as quais estão distantes 3 mil milhas e
em lados opostos daquele continente. No meu entendimento, o furo (hole) não estava
(apenas) no espaço, mas nos tempos sobrepostos daquele contexto.
Quem já vivenciou reuniões por sistemas de videoconferência ou mesmo por
aplicativos somo o Skype entre países diferentes deve ter percebido que o enunciado para
marcar a reunião é outro, não mais pela medida de hora convencional. Agendar para às 3
horas da tarde ou 15 horas não significa nada, a não ser que se indique o horário de cada um
dos locais envolvidos. Talvez não tardará muito para que a unidade de referência do (até
então) confortável relógio, que uniformiza nossa agenda cotidiana, seja trocado pelas novas
medidas de tempo, agora atômicas e universais. O mundo é constituído de outras unidades de
referência, que agora passam a fazer sentido não apenas para especialistas ou cientistas, mas
para um cidadão comum e seu cotidiano globalizado. O sistema de referência não pode mais
ser local e o Tempo Universal Coordenado (UTC) torna-se o mapa indicativo dos vários
tempos de um mundo sincronizado4.
4 O padrão de tempo científico aceito em 1967 como parâmetro universal é o Tempo Atômico Internacional (TAI) que é calculado pelo Escritório Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), na França. O TAI se utiliza das informações de cerca de quatrocentos relógios atômicos espalhados ao redor do globo entre setenta laboratórios de diversos países que fazem uma contagem contínua de segundos. Essa é a melhor aferição de tempo existente, ela varia menos de 1 segundo em 3 milhões de anos. Sendo um relógio atômico, o segundo equivale a 9.192.631.770 vezes o período da luz emitida pelo isótopo 133 do Césio. Desde janeiro de 1972, o Tempo Universal Coordenado (UTC) é a base de tempo para fins de natureza civil e funciona de forma sincrônica ao TAI, mantendo apenas uma diferença de um exato número de segundos, valor este regularmente ajustado (em junho ou dezembro) em função do acréscimo dos chamados segundos bissextos. O UTC fornece todas as zonas horárias do mundo: os fusos horários, ou seja, as 24 áreas em que se divide a Terra e que seguem a mesma definição de tempo. Pelo acordo da Conferência Internacional Meridiana de 1884, realizada em Washington (EUA), o fuso horário tem como ponto zero a região do meridiano central que passa por Greenwich (Inglaterra), onde se localiza o Royal Observatory, e varia de 0 h a + 12 h para leste desse ponto e de 0 h a – 12 h para o Oeste (ex.: o Brasil abrange três fusos horários UTC -2, UTC -3, UTC -4), instituindo-se assim o Greenwich Mean Time (GMT), Hora Média de Greenwich que há mais de 120 anos é a referência oficial do tempo em todo o mundo. A GMT é definida por dados solares, diferentemente do sistema de referência atômica (TAI), que utiliza o UTC, fato que impulsionou uma reunião a portas fechadas na prestigiosa Royal Society no final de 2011, com a participação de mais de cinquenta cientistas de todo o mundo, tendo como objetivo adotar definitivamente o novo sistema atômico como unidade oficial de referência do tempo. Comoção geral no Reino Unido, que se orgulha de ser detentor do grande símbolo da “pedra do tempo”.
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Hole in Space não estava furando os espaços, pois o que se tinha deles era apenas
uma pequena parede, um muro, um ponto de uma rua da cidade. Nem Los Angeles e
tampouco Nova York, como qualquer outra cidade (espaço), podem ser reduzidas a essa parte
insignificante do seu contexto. Mas o tempo, esse sim é atravessado e sobreposto em projetos
telemáticos, convergindo dois instantes de tempo em um mesmo. Hole in Space ocorre em
Nova York que encontra-se no UTC -3, enquanto Los Angeles está na UTC -5, o que
corresponde a uma diferença de 3 horas de fuso. Os tempos dessas duas cidades convergiam
para um mesmo instante de acontecimento. Pode-se dizer que aquelas pessoas de Nova York
estavam em um futuro em relação a Los Angeles, e vice-versa. Um portal do tempo se abria
para colocar passado e futuro juntos num mesmo instante. Essa diferença aumenta quando,
por exemplo, desenvolvemos o projeto entre três continentes, como em nossa criação entre
América do Sul, Europa e Ásia com os seguintes fusos horários: Salvador/Brasil (UTC -3),
Barcelona/Espanha (UTC +1) e Chian Mai/Tailândia (UTC +7)5. A diferença real entre
Brasil e Tailândia é de 10 horas, mas desce para 9 horas por conta do horário brasileiro de
verão. Dançamos aqui logo cedo pela manhã, enquanto em Chian Mai o sol já teria se posto.
A dança telemática potencializa a visualização dessa convergência do tempo quando é
construída através de camadas de imagens, como será mostrado adiante. O tempo é uma
variante muito maior do que usualmente se imagina no cotidiano, pois não visualizamos
essas pequenas diferenças no nosso dia a dia; o tempo civil fez com que a vida fosse baseada
no fuso horário mais próximo. Se um indivíduo verificasse o tempo solar a cada instante,
provavelmente obteria uma medida diferente do que o relógio marca. A vida é experienciada
em um tempo convencionado que a cultura digital pode desconstruir para dar visualidade aos
instantes até então invisíveis.
Para contextualizar a dança telemática de hoje, além de Rabinowitz e Galloway, vale
ressaltar a importância de Nam June Paik (1932-2006) com suas obras provocativas que
transgrediam as possibilidades (e interesses) dos meios de comunicação em massa, tais como
o inaugural Global Groove (1973) realizado em parceria com John Godfrey e, na década
seguinte, Goog Morning Mr. Orwell (1984), com vários participantes ilustres como o músico
John Cage (1912-1992) e o coreógrafo e dançarino Merce Cunningham (1919-2009). Desde
Paik, os meios de comunicação passaram a ser transgredidos pelos artistas expandindo o
corpo humano e a arte como expressão.
5 Performance telemática apresentada no The 33rd APAN Meeting, no período de 13 a 17 de fevereiro de 2012. http://www.apan.net/meetings/ChiangMai2012/.
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Vários acontecimentos continuaram a provocar e a desafiar essa fricção entre arte-
ciência-tecnologia. Os reflexos e ecos daqueles experimentos já pincelados em Nine
Evenings for Theatre and Engeneering (1966), em Hole-in-Space. A Satellite Comunication
Sculpture (1980) e nas transgressões de Paik estão hoje na apropriação que fazemos com as
redes avançadas de telecomunicação. Músicos reúnem-se diante de máquinas digitais e das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para tocar a partir de locais
geograficamente, ou melhor afirmando, temporalmente distintos. O mesmo ocorre com
dançarinos e atores realizando espetáculos por meio do uso das TICs.
Para a artista e pesquisadora da cultura digital Gisele Beiguelman, os usos da rede se
dão porque o espaço de ação da cultura das redes é um espaço informacional, mediado por
redes de comunicação que vêm implodindo sistematicamente não só as noções de distância e
de localidade, mas também os limites entre os lugares da arte, da propaganda e da informação
por um lado, e as relações entre lugar e não-lugar, por outro (2008:190).
O aspecto informacional se deve à potência e à natureza das máquinas digitais. Essas
tecnologias são as primeiras capazes de “roubar” do mundo informações que podem ser
manipuladas e transmutadas em algo outro, diferente de sua configuração primeira. Assim é a
tecnologia digital: ela atua como mediadora dos sistemas de signos do mundo através do
trânsito de informações. Esse é o ciberespaço: as TICs como parte da sua história, ou seja,
uma situação externa; e a informação como “matéria-prima”, a situação interna desse
contexto. O espaço da contemporaneidade, portanto, é constituído por esse contexto com as
situações das TICs e da informação, que são responsáveis por fazer do tempo um dos grandes
marcos da atualidade.
A dança telemática surge então desse contexto de um espaço informacional que se
apresenta não mais fixo, mas múltiplo na convergência de vários tempos que se sobrepõem
pelas redes avançadas de telecomunicação. Essa configuração estrutura uma dança que é
realizada entre corpos remotos, ou seja, entre dançarinos situados em diferentes pontos
temporais: corpos e dança expandidos pela cultura digital.
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A afirmação “corpos localizados em pontos geográficos distintos” é a forma
convencional com que normalmente a dança telemática é definida, o que procede, e era como
até há pouco tempo eu também a considerava. Todavia, conforme tenho concluído após seis
anos de pesquisa nesse campo, o local da apresentação não interfere concretamente na
configuração telemática, a não ser pelo seu posicionamento em um determinado fuso horário.
Em um processo de criação, o maior empenho dos engenheiros é minimizar ao máximo a
latência e o atraso no fluxo de transmissão. Numa situação hipotética, se as estruturas de
todas as redes do mundo fossem completamente idênticas, contando com a alta velocidade de
transmissão, com os dispositivos para alta definição etc., e os dançarinos fossem todos
vinculados à dança contemporânea, não haveria nenhuma diferença dançar em Chian Mai,
Barcelona, Fortaleza, Buenos Aires, ou qualquer outra cidade, a não ser que houvesse algum
interesse artístico, estético e/ou conceitual em abordar as questões culturais de cada local. Do
ponto de vista da engenharia de rede o que está sempre em destaque é o tempo de conexão.
Diferentemente de compreender que essa é uma questão apenas tecnológica, é importante
assegurar que uma criação sempre está implicada com seus dispositivos e é justamente por
isso que a considero como uma mediação tecnológica: uma está implicada na outra. Portanto,
não apenas pode existir uma diferença de fusos horários que se sobrepõem como, por
exemplo, uma performance entre Salvador (UTC -3) e Barcelona (UTC +1), ou ainda,
Proyecto Paso (2006, Estados Unidos/ UTC -7, Brasil/ UCT -3 e Espanha/ UTC +1), mas
contamos também com um retardo no tempo de transmissão da informação. As redes de
telecomunicação, mesmo as mais avançadas, contam com uma latência na transmissão da
informação que gera um atraso (delay no jargão do meio informacional) de segundos.
Dependendo da quantidade e da qualidade da informação, maior poderá ser esse atraso.
Portanto, a conclusão é que se trata de uma dança de tempos e não de espaços por
mais que estes, de certa forma, agreguem alguma importância cultural e semântica. A
convergência desses tempos nas obras de dança telemática é o foco de discussão deste artigo
nas obras que serão analisadas e demonstram que esse corpo e essa dança estão agora
expandidos.
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O corpo, a dança e o código digital Minha experiência de praticamente 20 anos trabalhando com a mediação tecnológica na
dança e na performance permitiram investigar diversas formas de transmutar o corpo do
dançarino, ou seja, digitalizando-o é possível transformá-lo em imagem, em som, em texto
etc., pois ele estará em forma digital, traduzido em código binário, em informação. Donald
Kuspit argumenta que
com a arte digital pós-moderna, a imagem passa a ser uma manifestação
secundária – um epifenômeno material, por assim dizer – do código abstrato que,
desse modo, se converte em um veículo principal da criatividade. [...] Agora, a
criação do código (ou, em termos gerais, o conceito) tem se convertido na
atividade essencial. A imagem já não existe por seu direito próprio, sua função é
sacar a luz do código invisível sem dar importância ao meio material empregado
(2005:11-12) .
O autor conclui seu texto afirmando que o “computador não é um novo instrumento
para fazer a antiga arquitetura, pintura ou escultura”, e afirma que as artes que se utilizam dos
“algoritmos ‘encrustrados’ do computador são novas formas artísticas com um potencial
estético, criativo e visionário inesperado e, em parte, ainda não explorado” (ibidem: 37). É
dessa forma que compreendo a emergência da dança telemática.
Quando o corpo do dançarino é convertido em códigos binários e esses são
transmitidos para seu parceiro em um ponto temporalmente distinto, o que está em jogo não é
o espaço (no sentido pictórico anteriormente mencionado), mas o tempo que, fragmentado
em vários tempos, converge para um mesmo acontecimento formado de camadas temporais.
Na dança telemática, os corpos tornam-se códigos que podem migrar pelos fluxos
informacionais sendo capturados em um ponto remoto e redistribuídos pela rede. De forma
simplificada, pode-se dizer que para compor um espetáculo de dança telemática é necessário
um dispositivo de captura, denominado encoders (por exemplo, as câmeras de vídeo), ligado
em um computador com conexão de rede de alta velocidade que transfere a informação para
um ou vários pontos, além da própria internet, conforme o objetivo da performance.
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Para a recepção, é necessário um outro computador ligado na mesma rede e a um decoder
(por exemplo, o projetor de vídeo) (Figura 1). Um programa específico para a transmissão de
áudio e vídeo também é necessário para essa operação. Existem trabalhos que utilizam a rede
apenas para envio da imagem de um local para outro, sem o interesse de que as mesmas
sejam disponibilizadas na internet, como é o interesse das nossas pesquisas.
Figura 1: Mapa da rede interligando as três cidades: Salvador (Teatro 1), Brasília (Teatro 2) e músicos em João
Pessoa. No canto inferior esquerdo, a taxa de transmissão de dados de cada parte do trajeto.
A dança telemática do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas: experimentos e
conclusões
Meu primeiro contato em dança telemática ocorreu nos Estados Unidos, em 2001,
quando participei do Environments Lab (Ohio State University) como convidada do
professor Johannes Birringer para uma residência artística durante meu período de
doutoramento. De volta ao Brasil em 2002, minhas tentativas para realizar uma sessão com o
ADaPT6 foram frustradas já que o sistema de rede que possuíamos não suportava conexões
dessa natureza. Entretanto, em 2005 fui convidada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa
(RNP) para criar um espetáculo de dança telemática para o lançamento da nova rede
avançada (Rede Ipê), que seria uma homenagem ao 10° aniversário do Ministério de Ciência
e Tecnologia. 6 ADaPT: the Association for Dance and Performance Telematic, formada pela Arizona State University, Ohio State University, University of California-Irvine, University of Utah, Florida State University e University of Wisconsin. Naquela época, os grupos se encontravam pela internet periodicamente e cada universidade apresentava uma performance de 10 minutos para as demais. Após a apresentação de todas, ocorriam mais 10 minutos com todos executando suas performances, mas sem necessariamente haver alguma interação.
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A Rede Ipê foi lançada com 10 gigabits por segundo, ou seja, uma velocidade
superior em cerca de 40.000 vezes à conexão doméstica de 256 Kbps. Naquele momento,
nossa rede acadêmica estava equiparada às principais redes avançadas do mundo, como
Géant2 (Europa), CaNet*3 (Canadá) e internet2 (EUA).
Foi assim que surgiu Versus (2005) (Figura 2), um espetáculo performado
simultaneamente e em tempo presente por artistas distribuídos em 3 cidades brasileiras:
Salvador, Brasília e João Pessoa. Os dançarinos do Grupo de Pesquisa Poéticas
Tecnológicas7 (GP Poética) estavam nas duas primeiras cidades e, na Paraíba, a música
eletroacústica foi tocada em tempo real e enviada para os dois outros pontos. O espetáculo
podia ser assistido no Distrito Federal e pela internet.
Figura 2: Versus (2005) entre Salvador, Brasília e João Pessoa.
7 Lançado em 2004, foi intitulado Grupo de Pesquisa Poética Tecnológica na Dança. Com o avanço das pesquisas e com o entendimento de um corpo e uma dança expandida, consideramos mais pertinente um nome com maior amplitude. Em 2009, mudamos para o nome atual.
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Além da minha experiência nos Estados Unidos no ADaPT, formato que não
pretendia seguir, eu não possuía nenhuma referência nesse campo e, como não era uma linha
de pesquisa de interesse naquela época, não tinha uma investigação prévia para auxiliar no
processo criativo. Assim, iniciei do zero, sabendo apenas o que eu não queria e carregando a
experiência de trabalhar com imagem em tempo presente nos espetáculos cênicos e alguns
estudos em videodança. Percebi que investigar as possibilidades de um dançarino
efetivamente interagir com seu parceiro virtual (aquele que estava no outro ponto remoto)
seria a melhor forma de utilizar aquele contexto para criar realmente uma relação de
mediação explorando as características que considero relevantes nas redes de
telecomunicação. A estratégia encontrada para atingir o objetivo pretendido centrava-se na
criação de camadas de imagens (e tempos). Cada ponto remoto constituía-se como uma das
camadas, sendo a última a compor o resultado final da obra (Figura 3). Em virtude do delay,
um dançarino vê sua própria imagem na tela-guia atuando com seu parceiro remoto durante a
performance, mas em um tempo passado, já transmitido pela rede. Dessa forma, o dançarino
se percebe no palco em dois instantes sobrepostos: o tempo presente do “corpo de carne e
osso” que dança no palco, e um tempo passado inscrito nas imagens que constroem a relação
entre os parceiros dos diferentes pontos remotos.
Figura 3: Por onde
cruzam as alamedas
(2006) entre dois pontos
em Salvador, Reitoria e
Escola de Dança, campi
universitários de
Ondina.
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Portanto, trata-se de um jogo de camadas de imagem e de tempo que compõem um
todo e, ainda, esse processo criativo demanda a construção simultânea de duas estruturas
semânticas, ou seja, uma dramaturgia era criada para aqueles que se encontravam na plateia
de Brasília, outra era percebida pelos usuários da rede. Nesses seis anos de pesquisa em
dança telemática, temos utilizados essas premissas para aprofundar a investigação nesse
campo e desenvolver uma dramaturgia telemática.
A enorme complexidade para realizar o espetáculo Versus tornou-se um estímulo para
a formação do Grupo de Trabalho de Mídias Digitais e Artes (GTMDA) em 2009 com o
objetivo de criar uma ferramenta que facilitasse a construção de obras dessa natureza.
Através do GTMDA desenvolvemos a ferramenta Arthron, para a transmissão e o
gerenciamento de imagem em alta resolução via redes avançadas, e o espetáculo
e_Pormundos Afeto, que contou também com a parceria do grupo catalão Konic Thtr.
Contemplado pela RNP por dois anos, esse foi o projeto com maior tempo para criação e
desenvolvimento, contando com financiamento nos anos de 2009 e 2010 e, em 2011, foi
convidado para participar do evento The Third European Network Performing Arts
Production8, realizado no Gran Teatre del Liceu em Barcelona. O Laboratório de Vídeo
Digital (UFPB), coordenado pelo Dr. Guido Lemos, foi responsável pela tecnologia
desenvolvida e tem sido um dos grandes parceiros dos meus projetos desde 2005, quando
criamos Versus.
Um dos objetivos do espetáculo e_Pormundos Afeto foi possibilitar a interação do
público da internet permitindo que qualquer pessoa conectada à rede tivesse condições de
assistir e participar do espetáculo. Para isso, o público, usuário da rede, entrava em um
sistema no qual podia interagir com um ambiente virtual através de um avatar que escolhia.
Essas imagens eram projetadas no palco compondo uma imagem final com o ambiente
virtual, os avateres e os dançarinos remotos. Assim, na obra e_Pormundos Afeto todos os
tempos do mundo poderiam estar sobrepostos, uma vez que qualquer pessoa do planeta que
estivesse conectado à internet poderia entrar no sistema.
8 www.terena.org/activities/network-arts/barcelona/
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A questão do tempo nesse trabalho também foi explorada de outra forma. Meu
interesse era continuar a pesquisa estética na utilização do delay, já iniciada em Versus.
Construímos então uma cena que apresentava os vários tempos de ação dos dançarinos
através de um efeito conseguido por colocar a projeção dentro do próprio enquadramento da
câmera, criando uma multiplicação da imagem. Na Figura 4, a dançarina Aline Rosas aparece
no palco e na imagem repetidas vezes. Cada imagem da Aline é a captura de um instante de
tempo atrasado no fluxo de informação da rede e revelado pela multiplicação das imagens.
Quanto mais ao fundo, há mais tempo foi capturada aquela camada de imagem.
Figura 4: e_Pormundos Afeto (2009) entre Fortaleza, Natal e Barcelona.
Portanto, a dança telemática propicia outras formas de configuração que alteram a
maneira de compreender e criar sua narrativa, que é distendida no tempo e na relação entre
corpos remotos. Consequentemente, outras possibilidades de dramaturgia surgem nesse novo
contexto.
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Para tratar dessa questão, analiso nosso último trabalho realizado em 2011, o espetáculo
Frágil, resultado do projeto Laboratorium Mapa D2 (2011) que articulou diferentes
linguagens artísticas em espaços distribuídos. Participaram desse projeto: o grupo de
Fortaleza, Laboratório de Poéticas Cênicas e Audiovisuais (LPCA-UFC)9, voltado para o
trabalho cênico com ênfase na exploração vocal; o Núcleo de Artes e Novos Organismos
(Nano-UFRJ)10, do Rio de Janeiro, responsável pela criação de uma escultura eletrônica-
digital que recebia inputs das ações dos dançarinos e atores de forma a interagir com os
mesmos; e o GP Poética (UFBA), de Salvador, responsável pela composição sonora, que se
valia das vozes dos atores em sua construção e da condução da performance através do
desenvolvimento cênico dos dançarinos. A obra como um todo, ou seja, em todos os seus
núcleos de atuação, contou com nove câmeras de captura que foram disponibilizadas na
internet através do Arthron, de forma que o usuário-web podia construir em tempo real sua
narrativa.
Na telemática, as linguagens se fundem para a construção da obra criando uma forma
de dramaturgia específica desse meio. A criação a partir do jogo de camadas, da
convergência de diferentes tempos e a relação de interação virtual propiciam uma narrativa
que denominamos dramaturgia telemática, a qual emerge da confluência entre (os códigos
d)as estruturas da narrativa audiovisual, das tensões de uma estrutura teatral e dos elementos
composicionais da dança e da música. Os músicos especializados em telemática, Pedro
Rebelo e Franzisca Schroeder (2009) advertem que muitos autores buscam “repensar o
modelo de comunicação e argumentam em favor de um quadro que, contrário à frequente
abordagem holística de performance na rede, favoreça uma visão por golpe de vista,
fragmentos e desejos”. Compartilho essa posição justamente por considerar que na dança
telemática trabalhamos com “pedaços” do tempo que convergem para um mesmo instante e
com corpos transformados em códigos, conforme discutido neste artigo.
O projeto Laboratorium de Arte Telemática Mapa D2 é um reflexo de todas as
pesquisas anteriores que realizei, promovendo não apenas a construção de uma mesma obra
vista por diferentes pontos de vista (muitos deles remotos), mas também outras formas de
articulação entre os pontos e entre a obra e o usuário da rede. A utilização do tempo na
telemática foi investigada nesse espetáculo também por um outro prisma. Diferente das
demais obras, as quais envolviam apenas o universo da dança, no espetáculo Frágil, além da
9 Coordenado pela Dra. Walmeri Ribeiro e pelo Dr. Hector Briones. 10 Coordenado pelo Dr. Carlos Augusto Nóbrega.
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interação entre linguagens artísticas diferentes, cada grupo concebeu uma configuração
estética específica. Fortaleza criou um espaço de “corpos instalados”, ou seja, os atores
permaneciam numa mesma ação durante toda a obra que era pautada nas cenas construídas
pelo grupo de Salvador. Nosso grupo estava interessado em construir uma performance
cênica desenvolvida por um encadeamento de cenas com começo, meio e fim, mas
estruturado por uma semântica não-figurativa e não-linear. O organismo híbrido, até mesmo
por sua configuração escultórica, permanecia instalado no espaço compartilhado com
Salvador no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Como diretora artística, meu objetivo foi orientar para que conseguíssemos criar
pontos de articulação com a obra do outro, respeitando assim, as características internas, os
interesses estéticos de cada grupo. Considero essa postura uma continuidade da investigação
do jogo de camadas, que também puderam ser contempladas na internet. Diferentemente da
pesquisa anterior, que colocava o público dentro da obra, nesse projeto, o objetivo foi
enfatizar a individualidade do espectador, bem como a individualidade de criação dos grupos,
expandindo ainda mais a ideia de fragmentação, camadas e convergências. Construímos uma
interface (Figura 5) na internet na qual o usuário-web podia construir a narrativa da obra em
tempo presente, ou seja, a obra era contemplada de acordo com as escolhas desse público
específico da internet.
Tanto os vários aspectos das obras citadas neste artigo, como o potencial que temos
propiciado na rede para a participação do usuário-web, demonstram que essa é uma dança
expandida que promove a criação de uma outra narrativa e uma outra forma de configuração
de arte, específica da cultura digital. O corpo e a dança são expandidos em camadas de
imagem-tempo no campo da dança telemática através de códigos que se entrelaçam em
diferentes tempos para a criação de novos/outros significados para uma dramaturgia
telemática.
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Figura 5: Frágil (2011) entre Fortaleza e Rio de Janeiro.
Referências:
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contextos e educação. Orgs. Barbosa, A.M. e Amaral, L. São Paulo: SENAC, p. 189-198,
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SCHRODER, F. , REBELO, P. Weareble Music in Engaging Technologies. In: AI & Society,
vol. 22, issue 1, 2007. http://www.informatik.uni-trier.de/~ley/db/journals/ais/index.html