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Revista bimestral do Lectorium Rosicrucianum A GLÓRIA DO AMOR O CANTO DE AMOR PARÁBOLA DO NASCIMENTO DE UMA TAÇA GUIA DO VIAJANTE A ÁGUA BRANDA, COM O TEMPO, VENCE A PEDRA DURA A VITÓRIA SOBRE O EU O SOM DO UNIVERSO COMO PRINCIPIA O DISCIPULADO? O ERRO ESTÁ NOS OUTROS, NÃO É? PentagramA 2004 número 4

PentagramA · revista bimestral do lectorium rosicrucianum a glÓria do amor o canto de amor parÁbola do nascimento de uma taÇa guia do viajante a Água branda, com o tempo, vence

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Revista bimestral do

Lectorium Rosicrucianum

A GLÓRIA DO AMOR

O CANTO DE AMOR

PARÁBOLA DO NASCIMENTO DE UMA TAÇA

GUIA DO VIAJANTE

A ÁGUA BRANDA, COM O TEMPO, VENCE A PEDRA DURA

A VITÓRIA SOBRE O EU

O SOM DO UNIVERSO

COMO PRINCIPIA O DISCIPULADO?

O ERRO ESTÁ NOS OUTROS, NÃO É?

PentagramA2004 número 4

PENTAGRAMA

ÍNDICE

2 A GLÓRIA DO AMOR

8 O CANTO DE AMOR

10 PARÁBOLA DO

NASCIMENTO DE

UMA TAÇA

13 GUIA DO VIAJANTE

14 A ÁGUA BRANDA, COM O TEMPO, VENCE

A PEDRA DURA

19 A VITÓRIA SOBRE O EU

26 O SOM DO UNIVERSO

31 COMO PRINCIPIA O

DISCIPULADO?

36 O ERRO ESTÁ NOS OUTROS,NÃO É?

ANO 26NÚMERO 4

Parábola do nascimento

de uma taça

Inconsciente, mergulhada na escuridão,

dorme a argila, a terra. Ao mesmo tempo, à luz do dia,

aguardam-na um mestre, uma roda de oleiro,

um lugar fresco, um forno, o espaço-tempo

e um espaço de consciência.

O “corpo vivo” da Escola Espiritual daRosacruz Áurea, que envolve a tudo ea todos, foi edificado para sustentar eacompanhar o aluno em sua caminha-da e para que a grande obra que elaempreende com seus alunos culmine,um dia, no restabelecimento do ho-mem-alma-espírito, pois a transforma-ção e a transfiguração do homem e deseu microcosmo é o principal objetivoda Escola Espiritual. Ela é, em primei-ro lugar, um “lar espiritual” dotado deum corpo vivo no interior do qual oaluno realiza o renascimento do ho-mem imaterial, o celeste Outro.

ão é possível separar a Escola dodiscipulado. A forma material é intei-ramente consagrada a uma construçãoespiritual que não é deste mundo. Osalicerces dessa obra maçônica encon-tram-se na Terra Santa, de onde proce-de a supranatureza. Assim, a Escola setorna, temporariamente, um mediadorindispensável entre as duas naturezas:a supranatureza e a natureza dialética.Essa dualidade é encontrada no pró-prio homem que, segundo sua perso-nalidade, provém da natureza terrenae, em virtude de seu microcosmo e damônada, pertence à Terra Santa. Umobreiro espiritual, o que, na condiçãode alunos, sempre somos, está sempreconsciente dessa dupla constituição,não só no interior de si mesmo ou emrelação às duas ordens de natureza,mas também em relação a todo o Uni-verso. Eis porque, de tempos em tem-

pos, a Escola Espiritual, inspirando-senos antigos ensinamentos rosacruzes,fala de dois sóis: o sol do mundo ma-terial, que torna possível a vida sobre aterra, e o sol espiritual, Vulcano, a for-ça de vida que propulsiona todo devirespiritual. Também aqui esse princípiose reflete: de um lado, o mundo mate-rial onde tudo o que é de ordem espi-ritual está aprisionado, e de outro, omundo espiritual onde a vida se en-contra totalmente livre de todo laçomaterial, onde toda forma de aprisio-namento material está excluída, sim, émesmo impossível.

Questões vitais

Desse modo, existe um sol terres-tre, fonte de luz e de calor a serviço detoda existência transitória na matéria,e também um sol eterno, fonte e prin-cípio original de toda sabedoria e detoda vida. Aqueles que, verdadeira-mente, experimentam o despertar es-piritual, aqueles em quem algo da luzdo sol espiritual irrompe, esses co-nhecem um pouco de sua abençoadaradiação. Eles aprendem a conheceressa energia como a nova força kun-dalini, a nova energia vital nascida dopleroma. Enquanto o sol espiritualnão se elevar na vida de um ser huma-no, este permanecerá nas trevas. Esseé um axioma que provoca inúmerasperguntas, tais como: O que é o mun-do? O que é a humanidade e qual éseu destino? Por que os mistérios davida e do Universo são tão insondá-

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A glória do amor

Alocução de A. H. van den Brul, membro da Direção Espiritual Internacional

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Rosa dourada no

portal de uma

igreja em Pocatky,

Chechênia. Foto

Pentagrama.

veis? Comop o d e m o schegar ao co-nhecimento?Como alcançar ailuminação que nosliberta das trevas e põeum fim ao nosso vaguearno campo de vida material? São rela-tivamente poucas as pessoas queencontraram, até agora, a via efetivada iluminação, enquanto que a multi-dão daqueles que buscam em todas asdireções é incontável.

Como é difícil aceitar o fato de queo sofrimento e o pesar intermináveissejam a única colheita nos campos devida do homem terreno! Consciênciae intelecto, construídos em longaseras de desenvolvimento, continuamaté hoje presos à existência material,apesar de a Terra Santa também per-tencer ao cosmo sétuplo. Será que oser humano não pode compreendertudo isso?

Os ciclos do trabalho espiritual

O mundo e a onda de vida humanaestão submetidos a ciclos, e no decor-rer dos tempos o próprio trabalho es-piritual obedece a uma certa periodici-dade. O ciclo atual da grande obra delibertação desenvolve-se em harmoniacom as emanações do sol espiritual.Isso explica o poder de antecipação daFraternidade da Vida e o fato de a Es-cola Espiritual da Jovem Gnosis estarengajada, com todos os seus obreiros,

em um ciclode desenvolvi-

mento. O tra-balho da Escola

está subordinadoa um plano que se

realiza à medida que osobreiros se tornam cons-

cientes de seu imenso alcance. UmaEscola Espiritual setuplamente mani-festada não cai do céu: isso requer umapreparação muito séria, em diferentesníveis. Acontece que agora, o trabalhode construção material e espiritualchegou a um ponto crucial na curva deseu desenvolvimento. Permitam-nosexaminar a situação à luz de algumasindicações dadas no passado por J. vanRijckenborgh a um pequeno grupo dealunos colocados diante de uma tarefabem específica.

Na ocasião ele declarava: Duranteainda uma centena de anos, o curso dedesenvolvimento da humanidade dar-se-á ao ritmo de poderosas tônicas, deacordo com os ciclos do trabalho espiri-tual. Em 1924, a Escola Espiritual mo-derna apresentou-se no palco da histó-ria porque foi precisamente nesse mo-mento que ela recebeu o mandato paraefetuar um novo trabalho espiritual.

Neste ano de 2004, a Escola come-mora seus oitenta anos de existência.Voltaremos depois ao significado donúmero 8. Na mencionada alocução,J. van Rijckenborgh dizia: Uma vezrecebida a ordem para sua missão, onovo trabalho da Rosacruz modernateve início no ano de 1925. Até então,

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a Fraternidade da Rosacruz trabalha-ra na movimentação espiritual dessestempos de gestação inspirando iniciati-vas tomadas por indivíduos isolados oupor pequenos grupos. Pensamos aquinos muitos filósofos que marcaram asegunda metade do século XIX e o iní-cio do século XX, e dos quais muitostomaram conhecimento. A vanguardada literatura dessa época também dátestemunho de uma corrente de pensa-mento destinada a preparar o apareci-mento do ensinamento transfigurísticoque, de forma fragmentária, delinea-va-se no horizonte. Aqueles que ti-nham preparado o terreno do esoteris-mo cristão já não se encontravam maisneste mundo em 1925. Max Heindelfalecera em 6 de janeiro de 1919 e, emseguida, Rudolf Steiner, em 30 de mar-ço de 1925.

Pois bem, amigos, assim procedeu aFraternidade, e após esses numerosos elaboriosos preparativos chegou o tem-po para a Rosacruz moderna manifes-tar-se e instituir uma escola espiritual,unida a uma escola interior de misté-rios. Isso tomou impulso em 1925, comum trabalho de elaboração, de desen-volvimento e de ajuste, tendo em vistatrazer ao conhecimento do mundo to-do a existência da Rosacruz dos temposatuais, como Escola Espiritual da Jo-vem Fraternidade Gnóstica. A finali-zação dessa construção necessitará deum período de aproximadamente cemanos, o que nos leva ao ano de 2025. Eo autor denomina esse período de 100anos o período da nova era do EspíritoSanto, período esse durante o qual asradiações do Espírito sétuplo, do solespiritual, impor-se-ão poderosamenteao estrato terrestre onde vivemos.

A Era do Espírito Santo

Tudo isso será acompanhado demodificações atmosféricas e desordenssociais em escala mundial, de uma am-plitude tal que o trabalho deverá serinterrompido por um curto períodode tempo, o que felizmente não acon-teceu até agora. Esse tempo difícil dahistória espiritual mundial, essa era doEspírito Santo, já se apresentou nume-rosas vezes. Esse foi o caso no Ex-tremo Oriente, na Índia, no Egito, noOriente Médio e na Europa Oriental;mesmo a Europa Ocidental conheceusemelhante episódio. O período atualpresencia a edificação da EscolaEspiritual, sua extensão, e sobretudo otrabalho de aprofundamento intima-mente ligado à Escola de Mistérios.

J. van Rijckenborgh distingue duasetapas nesse intervalo de tempo: umaetapa de preparação, que dura quarentaanos e que vai de 1925 até 1965; a se-gunda etapa, a de desenvolvimento, emsessenta anos, que vai de 1966 até 2025.

Isto não quer dizer que após 2025 otrabalho deixará de se desenvolver.Com efeito, está previsto que a obrade libertação da Era de Aquário efe-tua-se em diversas colheitas e processosseletivos, tal como o assegura o autorem sua obra Dei gloria intacta, e essaobra prossegue até o ano de 2658.Evidentemente não é dito em que me-dida a Escola Espiritual participará,até lá, dessa realização. Daí a atualidadeda exortação bíblica: Trabalha enquan-to é tempo; trabalha enquanto é dia.

Nos anos passados, muitos dentrenós trouxeram uma grande contribui-ção ao esforço imenso de preparação ede desenvolvimento da Escola Espi-

ritual sétupla. Primeiramente foi neces-sário trabalhar o solo, seguindo as in-dicações inspiradas pela Fraternidade,depois semear, evitando as zonas pe-dregosas. Em seguida, foi necessáriovigiar a fim de proteger o jovem re-bento para que ele crescesse e o grãotomasse a cor dourada da maturação,antes que a primeira colheita pudesseser levada ao celeiro. Assim, formou-se um grupo de obreiros, de ceifeiros,que teve de resistir às tempestades eaos assaltos da traição. Essa foi a imen-sa tarefa da qual os grão-mestres assu-miram a responsabilidade como ini-ciadores da comunidade gnósticaatual. Do seio dessa comunidade sur-giu um grupo de obreiros que assumiua co-responsabilidade da direção espi-ritual, a fim de assegurar a dinâmica dagrande obra.

O trabalho da mocidade

Mencionamos também que, nessamesma alocução, J. van Rijckenborghinsistiu sobre a importância de formarum trabalho da mocidade, convocadoa conhecer um desenvolvimento inter-nacional dentro da perspectiva de ex-pansão da Escola Espiritual. Tendoem vista os obreiros devotados a essetrabalho, ele dirigiu um alerta contra operigo de uma orientação materialistae intelectual. Quando os obreiros damocidade conseguem manter o traba-lho livre desse perigo, muito se ganhacom relação ao desvelo e à precauçãopelas tenras almas dos jovens. So-mente assim se preservará com certezaa possibilidade de um desenvolvimen-to espiritual da nova personalidade deum jovem.

Mais adiante, J. van Rijckenborghdiz que a totalidade da literatura rosa-cruciana tornar-se-á pública. Do mes-mo modo ele prevê a construção detemplos e edifícios em numerosos paí-ses da Europa e até mesmo além. Apartir da Europa, a obra poderá, en-tão, estender-se pelo mundo inteiro.

A expansão do campo de Luz

De acordo com o Sr. J.van Rijcken-borgh, o primeiro período de desen-volvimento terminou em 31 de de-zembro de 1965. O segundo períodoteve início em 1º de janeiro de 1966 edeverá durar até o ano 2025. Durantetodos esses anos que nos foram conce-didos, o fundamento vivente foi esta-belecido, e a partir de agora a constru-ção eleva-se em sua plenitude sétupla,bem no meio do mundo. É certo que,no plano material, tudo isso foi reali-zado e não pára de se expandir. Po-rém, mais importante ainda é o signi-ficado espiritual dessa realização: odesdobramento de um poderoso cam-po de Luz, o fogo do Espírito. Os anosfuturos serão amplamente consagra-dos à finalização dessa obra grandiosa.Uma nova geração de amigos prepara-se para isso. Em 2004, o grande traba-lho não é tão-somente um plano, umprojeto ou uma construção sem con-teúdo. Ele se tornou um corpo vivoque envolve com seu campo astralmagnético todos os focos e seus alu-nos, que são penetrados pela luz doEspírito sétuplo, pela luz do sol espi-ritual. Tudo isso com a única finalida-de de conduzir cada aluno à ilumina-ção interior, para que a partir da almarenascida e das fontes da luz gnóstica a

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paz e o amor de Deus irradiem sobreo mundo e a humanidade. Trata-se deum trabalho urgente numa época emque as grandes tensões mundiais re-percutem no próprio homem. Não épreciso descrever como as nuvensavermelhadas do ódio, da violência eda cólera inundam o mundo, ancoran-do-se no coração dos seres humanos,provocando um desespero indescrití-vel e uma profunda aflição.

A torre do Olimpo

Neste ano de 2004, a Escola Es-piritual comemora seus 80 anos deexistência, porém ela não atingiu ainda

o apogeu de seu trabalho mundial,e, portanto, todo aluno é con-

vocado a um engajamentototal. Queremos, primeira-

mente, olhar adiante e verpara onde nos leva o rio

da vida gnóstica. Sa-bendo que fomosapanhados pela cor-renteza, queremossondar nosso desen-

volvimento e nossocrescimento interior.

No lar espiritual da Es-cola, onde habitamos e tra-

balhamos, todos nós trilha-mos o caminho que nos con-

duz à realização das núpciasalquímicas. Todo aluno, no lu-

gar em que se encontra e segun-do seu trabalho interior no edifí-

cio espiritual sétuplo, pode chegara um bom termo se seguir o grande

plano de salvação e libertação que seencontra selado no coração de cadamicrocosmo. A radiação monádica

projeta-se no aluno com a condição deque ele mantenha seu coração aberto eo santuário da cabeça preparado. Ecomo não poderia ser de outro modo,o plano se realiza, visto que o aluno,segundo o modelo da arca sétupla daEscola, erige em si mesmo a torre doOlimpo e abre, um a um, os sete pavi-mentos. Não busqueis essa torre forade vós mesmos, pois a encontrareisem vosso próprio sistema microcós-mico, em ligação com o Lar SanctiSpiritus, onde o Espírito Santo toca oser humano.

Há quatro séculos, precisamenteem 1604, Johann Valentin Andreæ re-digia as primeiras páginas de As núpciasalquímicas de Christian Rosenkreuzsob o impulso da Fraternidade da Ro-sacruz. Hoje, quatrocentos anos de-pois, o teor dessa obra que dá teste-munho dos Mistérios chegou à com-pleta manifestação na Escola Espiri-tual atual. Não no sentido de uma re-velação exterior do caminho seguido erealizado por Cristiano Rosacruz,porém no sentido de que é dada a to-do aluno dos tempos atuais a possibi-lidade de percorrer inteiramente essecaminho. O aluno pode adentrar oLar Sancti Spiritus que radia em luz, otopo da Escola Espiritual sétupla, ouainda como ele é chamado: o oitavopavimento da torre do Olimpo. A se-tuplicidade corresponde ao grandiosoprotótipo de Cristiano Rosacruz. AFama Fraternitatis sempre o represen-ta cercado de sete irmãos, ou seja, ossete aspectos do Lar Sancti Spiritus,sendo que Cristiano Rosacruz é o oi-tavo. Assim, revela-se para nós o mis-terioso número oito. Essa é a chave daabóbada do edifício espiritual, a aber-

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Vênus-Afrodite,

deusa do amor.

Atenas, século V a.C.

tura para o horizonte maravilhoso danova vida da alma, a grande porta aber-ta da eternidade. O aluno constrói suatorre interior, sobe os seus degraus echega ao oitavo pavimento, que eleainda desconhece, o pavimento ondeo fogo monádico é liberado.

O cântico do amor

Enquanto se consagra, assim, à rea-lização da grande obra alquímica emseu ser interior, o aluno se junta aosoutros alunos, em unidade de grupo eamor, e se coloca a serviço da Escolanos numerosos aspectos do trabalho.

O ano 2004 inscreve-se no grandetrabalho sob a divisa do cântico doamor. Esse cântico ressoa no quintodia das núpcias alquímicas de C.R.C.,o cântico da paz interior que J. vanRijckenborgh transmitiu aos buscado-res como fórmula-chave sétupla. É oamor de todos os seres que encontra-mos e com quem convivemos; o amordesta humanidade que tanto sofrenum mundo em vias de se tornar ain-da mais glacial e mais desumano. É oamor de todos aqueles que compõemo grupo da Escola Espiritual, grupoesse em que cada um, a seu modo,tudo oferece a fim de conduzir o seudiscipulado a bom termo. Um amor eum estado de paz voltados para o tra-balho de cada um dentro da Escola.Uma efusão de paz interior e harmo-nia, que parte da fonte de força daalma adquirida e que inunda de luz ocaminho do discipulado.

Essa é a inspiração que anima o tra-balho neste ano de 2004 e que irradia-rá do grupo de alunos. A verdadeirainspiração nasce no pensamento que

se eleva na Luz e se deixa penetrar to-talmente. O pensamento passa da per-cepção à compreensão, à Gnosis, e, as-sim, vê o plano se desenvolver, a partirdo núcleo irradiante no coração domicrocosmo. O pensamento que setorna Gnosis pode compreender tudoatravés desse novo entendimento eprever todas as conseqüências. O mis-tério já não é um segredo, porém umaporta que se abre para o conhecimen-to interior. Eis uma citação extraída doBhagavad Gita, o Cântico do Senhor:O Todo-poderoso não imputa ao ho-mem nem o bem nem o mal. É o obs-curecimento do entendimento pelonão-saber que lança as criaturas noextravio. Porém, aquele em quem oconhecimento mediante a alma repeleo não-saber, nele se ergue, como umsol, a mais elevada sabedoria.

Referimo-nos, aqui, ao sol espiri-tual, que é sabedoria e amor. Esse solradiante não pertence ao espaço nemao tempo, e, contudo, está mais próxi-mo que mãos e pés. Ele se revela emnós no mesmo instante em que os po-deres espirituais da alma entram ematividade. A luz do sol espiritual ema-na do Espírito, que a oferece à alma,assim como se oferece um fruto.A luz brilha nas trevas, a luz brilha para todos que estão no lar.

Ela é a verdadeira luz do mundo:verdade, sabedoria, amor, três em um.Ela não conhece qualquer escuridãonem se põe no horizonte do tempo.Ela brilha para todos os que estão reu-nidos sob a árvore da vida, da qual édito que recebe sua seiva do sol espiri-tual. Aos que se abrigam sob a abóba-da de sua dourada folhagem, é dito:Vós sois a luz do mundo.

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O canto de Amor

I

II

III

IV

V

VI

VII

Nada de melhor há na terraque o belo e nobre amor.Com ele nos igualamos a Deus,e ninguém aflige o outro.Cantemos ao rei,que todo o mar ressoe!Perguntamos – respondei!

O que nos trouxe à vida?O amor.O que nos devolveu a graça?O amor.De que nascemos?Do amor.Sem o que estaríamos perdidos?Sem o amor.

Quem nos gerou?O amor.Com que somos alimentados?Com o amor.O que devemos aos pais?Amor.Por que eles são tão pacientes?Por amor.

O que permite tudo vencer?O amor.Como se pode encontrar amor?Pelo amor.Como se revelam as boas obras?Em amor.Quem pode fazer a união de dois?O amor.

Cantai todos agoracom voz sonoraem honra ao amor!

Que ele cresçaem nosso rei e em nossa rainha.O corpo está aqui – a alma está lá.

Enquanto vivermosDeus proporcionará que –assim como o amor e grande benevolênciaoutrora os separou com grande força –possamos reuni-los novamentepelas flamas do amor.

Este canto –ainda que surjam milhares de gerações –em grande alegriase transformará eternamente.

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As núpcias alquímicas de Christian

Rosenkreuz O quinto dia: O canto das ninfas

o quinto dia das núpcias alquími-cas, Cristiano Rosacruz e seus compa-nheiros embarcam nos sete navios.Todos eles se dirigem para a ilha ondese eleva a Torre do Olimpo. Embar-cando no maior segredo, eles se en-contram a bordo, levando os esquifesque contêm os corpos decapitados dossete reis e das sete rainhas que simbo-lizam as antigas forças vitais da natu-reza, na esperança de que eles possamressuscitar na ilha, graças ao sacrifíciodos “fiéis companheiros”. Durante atravessia, as ninfas do mar oferecem aCristiano Rosacruz uma pérola e en-toam o hino ao amor.

A pérola simboliza a nova cons-ciência. J. van Rijckenborgh diz queCristiano Rosacruz, como candidato,recebe, no primeiro dia, um ferimentoda fronte. Como resultado de uma vi-

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da plena de aspiração, o antigo cristalde vida lhe é tirado, o que constitui amais elementar condição de um disci-pulado libertador. Seu ferimento lem-bra-lhe que o “cristal” da antiga cons-ciência lhe foi arrancado.

No quinto dia uma “nova pérola”é-lhe ofertada, pérola essa que é o pro-duto das sete forças do mar da pleni-tude de vida, Mare, a “mãe do mundo”.A nova consciência é inteiramente ani-mada pelas sete forças do amor.Assim, devemos ver as ninfas como aspuras novas forças naturais do novoestado de vida. O hino é composto desete cânticos:

1. Não há nada mais belo e elevado doque o amor divino.

2. A onimanifestação provém do amordivino.

3. O que devemos a Deus e a nossopróximo? A irradiação efetiva desseamor.

4. De que maneira o mundo e o malpodem ser vencidos? Unicamentepelo amor divino.

5. Quem entoa o excelso canto doamor? Todos os que ressuscitaramna realeza do Espírito.

6. Eis por que há apenas uma oraçãono coração dos que experimentaramesse amor: que todos os que estãoseparados de Deus possam entrarnessa torrente unificadora do amor, e,

7. assim, na eternidade, conhecer overdadeiro estado de vida humano-divino.

J. van Rijckenborgh, As núpcias alquímicas deChristian Rosenkreuz, t. II, São Paulo:Lectorium Rosicrucianum, 1996, capítulos 17/18.

Ninfa da água, em

pleno movimento.

Fragmento de um

baixo-relevo chinês.

Inconsciente, mergulhada na escuri-dão, dorme a argila, a terra. Ao mesmotempo, à luz do dia, aguardam-na ummestre, uma roda de oleiro, um lugarfresco, um forno, o espaço-tempo e umespaço de consciência. Não é qualquertipo de terra que serve para fazer umataça. É necessário argila. O que é argi-la? Podemos imaginar que ao longo deintermináveis processos, através deinumeráveis revoluções terrestres, ro-chas e minerais tenham se fendido, queapós eras e eras esses minerais tenhamsido levados para o mar, mergulhandonas profundezas oceânicas, onde jazemsubmetidos dia e noite à pressão do ele-mento aquático. Qual é a duração deuma noite e um dia cósmicos? Quantasmudanças climáticas, períodos glacia-res, formações de geleiras e transfor-mações geológicas foram necessáriospara trazer à superfície aquilo que portanto tempo foi elaborado nas profun-dezas marinhas? Foi assim, pois, quesurgiu a argila.

pós um tempo bastante longo, tudofica coberto pela erva que cresce.Quem sabe onde encontrar a argilaapropriada para a fabricação de potes?O mestre. Ele remove a camada dehúmus e extrai a argila. Ele transportaa preciosa substância para o seu ateliêe a limpa. Inerte, a argila experimentao contato, a mudança; faz-se luz à suavolta, porém ela nada sabe, nada com-preende.

Tudo o que ela sente é a mão do

oleiro que a segura e a amassa. Ela étriturada, deformada, transformada.Um frêmito perpassa a massa fértil,ainda inanimada, mas ela nada com-preende. Contudo, o processo teveinício.

O artesão concebeu uma rodamaravilhosa, contudo ele mesmo aaciona, pois a roda não pode girar porsi mesma. E por que? Porque tudodeve retornar ao lugar de onde veio. Aroda é fixada sobre um eixo vertical.Vertical, como o eixo das estrelas,orientado para o centro do Universo.Toda roda de oleiro possui um eixoorientado para o centro da terra. Oseixos dos carros obedecem ao mesmoprincípio, porém, giram na posiçãohorizontal.

Agora, o prodigioso prato rodo-piante do mestre oleiro é posto emmovimento, tendo sobre ele um frag-mento de argila informe retirada docaos, ligado com o centro da terra pormeio do eixo do prato.

O mestre toma em suas mãos expe-rientes a massa informe. Sem hesitar,ele dá uma forma àquilo que, surgidodo sem-forma, deverá receber umconteúdo, pois não existe conteúdosem forma, nem forma sem conteúdo.

Ele começa dividindo a massa emduas partes e sobre ela borrifa umpouco de água. Em seguida, introduzseus dedos na massa e dá-lhe umaforma. Então, como que por encanta-mento, tudo se transforma, e umanova forma aparece. Úmida e luzente,a argila rodopia sobre o prato. Ela

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Parábola do nascimento de uma taça

Narrativa sobre o processo do devir da consciência humana, do princípio até sua elevada destinação, passando pelas numerosas fases de transformação

A

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sorri e exclama:“Veja, esta sou eu!”

O mestre sabe oque faz; ele sente o quefaz; ele trabalha de acordocom as regras prescritas porsua profissão. E assim se faz segundo asua vontade: a argila transforma-senuma taça. Ela gira sobre o seu eixointerior. Portanto, ela não se desvia desua predestinação e abandona-se total-mente às mãos do oleiro que a guia àsua finalização. Ao redor do eixo, suaforma se desenha no espaço.

Lao Tsé diz: O vaso é feito de argi-la, mas é o vazio que o torna útil. Ataça é um objeto útil. O espaço nelacriado pode conter tudo. Prisioneiroda taça, o espaço deixa-se ocupar, en-cher, esvaziar e conter. Ele nada dese-ja; quer apenas ser útil, servir.

Mas não avancemos tão rápido. Nomomento, ela ainda se alegra, diverte-se com as rotações que começam adiminuir até parar por completo.Como uma criança, a taça quer gritar:“Ainda mais uma vez!” Mas o oleiro aretira do prato. Então, ela sente aque-la mesma dor indizível que experi-mentara quando o artesão a retirou daporção de terra que a gerou. Agora elea retira do prato giratório cuja rotaçãolhe deu uma segunda natureza. Ela serecorda, então, de sua origem, dasprofundezas desta terra, onde nada erapercebido da grande rotação.

Novamente ela experimenta o mo-vimento de um amplo arco e depoispermanece calma e tranqüila, aqueci-

da, mole e úmida,ao lado de tantas

outras que lá se en-contram. Ela olha ao re-

dor e as vê, alinhadas,perto de si: são irmãos e

irmãs das mais diversas medidas e for-mas, todos com um aspecto brilhante.Sim, ela percebe o parentesco queexiste entre todos. Mais adiante, nooutro lado do secadouro, estão enfilei-radas outras taças semelhantes. Estas,porém, têm um aspecto fosco e nãodão a impressão de serem viventes.Elas são rígidas, secas, enquanto quenós, do lado de cá, expostos à luz, bri-lhamos!

Todos os dias, novas taças nascemdas mãos do mestre. Ainda frescas emoles, ele as coloca para secar. Depois,à medida que mais espaço vai sendoliberado, ele as empurra mais para ofundo, cada vez mais longe da luz dodia, cada vez mais distante da doceumidade, para o frio. As recém-chega-das ocupam os primeiros lugares eolham à sua volta. Seu destino é torna-rem-se sempre mais secas e aguardarem silêncio.

De tempos em tempos, o mestrevem buscar um grupo de taças secas eresfriadas para pô-las no forno. Esta éuma fase delicada que requer grandecuidado, a fim de evitar que qualquerpeça se quebre ou trinque. Cautelosa-mente o mestre as enfileira, bem jun-tas, e quando o forno está cheio elefecha a porta. Então, reina uma atmos-fera de felicidade, pois agora elas sa-

Pequena xícara

de chá com uma

lua crescente e

nuvens sobre fundo

branco. Nonomura

Ninsei, ca. 1660.

Museu Nacional,

Tókio, Japão.

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bem que nenhuma peça será rejeitada,nenhuma delas voltará à jazida primi-tiva, nem ao giro do eixo, nem à umi-dade. Todas aguardam em silêncio,pois ouviram dizer que algo de ex-traordinário e incrível deveria aconte-cer, que haverá luz. É o que dizem –mas ninguém sabe ao certo. Então,calam-se e aguardam.

O mestre, que organizou toda aoperação, sabe o que faz, pois essa ésua profissão. Ele conhece suas criatu-ras, suas criações. A criatura sabe queé una com o mestre. A alegria reinanaquele momento: alegria do calor doforno, alegria do nascimento de novastaças. No forno, elas perdem suas últi-mas partículas de água através da rup-tura das ligações químicas, e o fogopurificador propicia a maturação. Ho-ra após hora, elas permanecem juntasno forno. Nas trevas do inconscientesurge algo como a alvorada. Os con-tornos se desenham. O olho interiorabre-se e contempla. De onde vem es-sa claridade? Não se consegue ver na-da. Não existe nenhuma chama, ne-nhum sol brilha. E, contudo, cadauma delas começa a perceber as outrascom maior nitidez. É como a aurora,antes do nascer sol. Cada taça brilhadelicadamente com um brilho interior,em completa calma e na consciênciado eixo. A claridade vai aumentando,proveniente de uma reverberação inte-rior. Em conjunto, elas são penetradaspor um calor indescritível e pela luzirradiante, e permanecem nessa ilumi-nação. Agora, elas sabem e se lembramdo calor de onde surgiram: “Nãofomos tiradas da argila por nosso pró-prio esforço; não fomos nós que erigi-mos o eixo em nós; não fomos purifi-cadas no fogo mediante nosso próprioesforço.Sem dúvida, nós somos; mas não pornós mesmas.

Fomos formadas conforme nosso eixono Tao.

Nesse saber, tudo quanto é velhopassou. Ficamos completamente endu-recidas. Agora, tem início o resfria-mento. Chegou o momento em quedevemos aprender a ser pacientes, en-quanto esperamos pelo novo. A passa-gem pelo fogo é um antegozo de umarealidade, de uma realização na luzeterna.

Agora as taças, embora ainda frá-geis, têm uma utilidade, pois no decor-rer do processo de nascimento elasaprenderam a esperar, receber, dar eservir.

Uma porta abre-se para elas; umanova fase se inicia. Extraídas do espa-ço que, ainda há pouco era uma forna-lha, elas são introduzidas em ummundo que arde com um outro fogo,um fogo terrestre. Elas ainda se man-têm enfileiradas. Mas, eis que chegamos novos mestres, os novos proprietá-rios que as separam e selecionam.

A cada uma delas são atribuídos umlugar e uma função a cumprir. Com opassar do tempo, muitas delas enve-lheceram. Porém, não reclamam porconteúdo nem vacuidade, pois nadaesperam. Elas se conservam, dia enoite, em total disponibilidade. Algu-mas delas são bastante apreciadas emuito preciosas aos olhos dos ho-mens, enquanto que outras estão bas-tante danificadas. Que podem elasfazer além de existir? Não passaramelas também pela água e pelo fogo, enão foram formadas segundo o mes-mo eixo vertical?

E o mestre? Do alto, ele contemplaos eixos, e sorri. O eixo? Visto do alto,não passa de um ponto. Um pontocomo um grão de pó de argila, comouma bolha de ar numa gota de água,como uma ínfima semente que ardeno meu coração.

Guia do viajante

Seguir a verdadeira senda não é fácil.Mas quem conhece a metasegue alegremente.

Se a senda parece difícilpode ser devido ao pesode quem a percorre.

O eu é o fardo mais pesado.Quem dele se desligarcaminhará desimpedidamente.

Quem almeja a verdadenão caminha irrefletidamente;ele pratica a equanimidade.

Cada um carrega dentro de si sua medida,que lhe dá entendimento.

Onde o entendimento reina,a vontade prepotente e todos os métodosdesaparecem.

A sabedoria de hoje não é a sabedoriade amanhã, e, no entanto,a verdade é única.

Quem busca, alerta, a verdadetodos os dias e semprecom ela será gratificado.

Quem aspira à nova consciênciaagradece por ela à Luz e à Verdade.

As coisas que o homemsempre vivencia na sendaocorrem de modo que ele possaexaminar-se e colocar-se à prova.Isso confere significado às coisas!

Aquele que caça erros os atrai para sie logo cai no fossodo qual só queria examinar os peixes.

As fraquezas são o quinhãodo homem exterior.Delas o homem interior é livre.O homem interior conhecea força da alma vivente;somente ela lhe dá a salvação.

Quem quer vencer os obstáculossomente tem por alvo a meta: a Luz.

Abre tua alma à Luz,Na claridade não há treva.

Fraqueza e imperfeição pertencemao mundo passageiro.Elas se dissolvem no poder daEternidade.

O homem é um dente de engrenagemnum mundo imperfeito.Mas o poder da grande transformaçãoliberta-o dessa tarefa.

Ele se transforma,e o mundo todo se transforma com ele.

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A nova respiração segundo Freher.

“Volta-te para o Uno que possuis em ti mesmo para

resguardá-lo e tu te tornarás movimento perpétuo.”

Paradoxa emblemata, século XVIII.

Aos setenta anos, enfermo,o mestre aspirava à tranqüilidade,enquanto que, no país,o declínio do bem anunciava,mais uma vez, a chegada do mal.

Calçou os sapatose pôs na sacola apenas o necessário– pouca coisa, em verdade:o cachimbo que gostava de fumar à noite, seu livro de cabeceirae um pouco de pão branco para a jornada.

Pela última vez regozijou-seao olhar para o vale que abandonava,antes de encetar o caminho montanhoso.O búfalo ainda mastigavaum pouco de erva frescaenquanto caminhava,levando às costas o ancião.

No quarto dia da jornada,num desvio do caminho,foram parados por um coletor de impostos,que os esperava entre os rochedos.“Tendes algo de valor a declarar?”“Nada.”Porém, o rapaz que conduzia o búfaloacrescentou:

“Ele carrega um ensinamento.” Isso,com efeito, era um valor a declarar.E o homem, elevando o tom de voz,perguntou: “E o que ele diz?”“Que a brandura da água, como tempo, vence a pedra” – disse o rapaz.“Como vês, a dureza é vencida.”

Para não perder os últimos clarões do dia,o rapaz fustigou o búfalo,e os três logo desaparecerampor detrás dos escuros pinheiros.

Logo, porém, o homem se apressou,gritando: “Ei, esperem!Que água é essa, ó Venerável?”E o ancião lhe perguntou:“Isso te interessa?”“Sou apenas um cobrador de impostos,porém me interessa tambémsaber como ser vitorioso.Se sabes, dize-o para mim!Põe por escrito! Dita-o para o rapaz!Não guardes isso só para ti.Vem até minha casa;lá eu tenho papel e tinta, e tambémalgo para o jantar. Moro logo aliembaixo.Concordas?”

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A água branda, com o tempo,

vence a pedra dura

Lenda que relata a composição do Tao Te King por Lao Tsé na rota do exílio, por Bertold Brecht

O velho olhou-o por cima do ombro:veste remendada, pés descalços,uma só ruga na testa.Ah, não era um vencedorque aí se apresentava!E murmurou: “Tu também?”

Sábio demais para recusarum pedido educado, o Ancião disse:“Quem pergunta, merece uma resposta.”E o rapaz acrescentou:“Já começa a esfriar.Uma pausa nos faria bem.”

O Venerável apeou do búfalo.Durante sete dias eles se ocuparamem escrever. O empregado traziao que comer, e já não blasfemava,senão em voz baixa,contra os contrabandistas.

Na manhã do oitavo dia,o menino entregou ao homemoitenta e um aforismos e, agradecendopelo pequeno viático que receberam,os dois viajantes e o búfalodeixaram o local de abetose desapareceram por detrás dosrochedos.Que dizeis disto: existe maior polidez?

Portanto, não louvemos unicamenteo Venerável, cujo nome ornamenta o livro.Uma vez que ao sábio é precisoroubar a sabedoria, agradeçamostambém àquele que guardava o caminho,pois foi ele quem fez o pedido.

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Com doçura, a

água adormecida

durante séculos

acaba desgastando

as asperidades da

pedra.Turquia.

Foto Pentagrama.

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“Se o Tao pudesse ser definido, ele nãoseria o eterno Tao. O nome que podeser pronunciado não é o nome eterno.”Esse aforismo do Tao Te King deixaclaro que Lao Tsé não tinha qualquerintenção de escrever um tratado, poisa “verdade absoluta” não pode serfixada pela palavra falada nem pelaescrita.

homem comum não cessa de mi-nimizar o bem e de reforçar o mal.Lao Tsé se coloca além dessa dualida-de; ele se liga a um outro campo vi-bratório. Ele nos faz lembrar dos“Lohans”*, os sábios da antiga China,que conseguiam antecipar os confli-tos, dissipando-os antes mesmo quese manifestassem.

Lao Tsé, montado num búfalo con-duzido por um jovem rapaz, abando-na o domínio da instabilidade. Aqui,o búfalo se torna um servidor pacien-te e amigável. Ele simboliza os instin-tos naturais dominados, a força daalma domada e purificada. A juventu-de do rapaz é a imagem da manifesta-ção em um novo campo de vida e daeterna juventude do mui venerávelLao Tsé, cujo nome significa: o ancião.

Tendes algo a declarar?

As fronteiras separam os países, osdomínios, as esferas de influência, oscampos de vida, e determinam o raiode ação de seus respectivos habitan-tes. Elas são controladas e somentepodem ser cruzadas se respeitarmosas leis em vigor, antigas e recentes. As-sim também, simbolicamente falando,

a chave vibratória da alma deve ajus-tar-se à porta do novo país.

Os três desaparecem por trás dosescuros pinheiros

Não existe nenhuma descrição dopaís para onde Lao Tsé se dirige. Éapenas um “nada”. O território dosábio é ilimitado. Ele é tão-somenteum transeunte; se for preciso, ele pro-digaliza o auxílio enquanto caminhapara a plenitude infinita. Caminhan-do a seu gosto entre o limitado e o ili-mitado, ele persegue sua missão.Tendo escolhido o eixo vertical, LaoTsé, assim como o faz todo homem,forma a cruz do mundo.

Terá ele guardado algo para si?

O guarda da fronteira controla cadaviajante que deseja cruzar a zona limí-trofe, enquanto que ele mesmo não aatravessa. Para poder passá-la é preci-so ter-se tornado em um “habitante dolimite”. Em geral supõe-se que o guar-da se enriquece ao receber imposto, opedágio pela travessia. Neste mundo,sempre existe um tributo a ser pago.Tudo é medido, pesado, contado, ava-liado e taxado, o que prova que aquininguém vive em unidade. Certa-mente, o coletor de impostos deverárefletir longamente antes de ser capazde avaliar, por pouco que seja, aSabedoria e dela querer a sua parte.

Que dizes da água, Venerável?

É sem hesitação, mas sem entusias-mo, que Lao Tsé oferece sua sabedo-

O

Uma grande calma

sob a lua.Tu Chin,

ca. século XV.

ria e dispensa sua energia. Ele perma-nece sempre na neutralidade.

Seu tributo ao mundo é o Tao TeKing. Ninguém consegue passar afronteira sem pagar. Para isso, é ne-cessário pagar um “resgate” indispen-sável. A Bíblia fala de “resgatados daterra”. Certamente, os contrabandis-tas tentam passar a fronteira desaper-cebidos, para prejuízo do guardaalfandegário, e assim escapar ao paga-mento da taxa e tirar a sua parte dolucro. Contudo, eles terão de pagarpelas conseqüências de seus atos noplano cármico. Essa é uma lei impla-cável, porém justa. Lao Tsé não dáapenas o dízimo de seus bens eternos– ele dá tudo, pois a sabedoria univer-sal é indivisível, ela é a plenitude deuma outra ordem. O valor buscadopelo guardião manifesta-se nas se-guintes palavras: “A água branda ven-ce a pedra dura”.

A dureza desaparece

A água não consegue amolecer apedra. Ela não luta contra o mineral.Mas, por força de seu incessante des-lizar sobre a pedra, como se fosse umacarícia de amor, ela acaba por desgas-tá-la. A sabedoria de Lao Tsé fluisobre a humanidade à semelhança daágua sobre a pedra, e faz o seu traba-lho. Como prova disso temos asincessantes reedições do Tao Te Kinge o interesse que ele sempre desperta.

Como finas gotículas de água mui-to pura, a Água Viva derrama-se so-bre o mundo. A pedra é o símbolo damatéria bruta, cristalizada, onde o ho-mem decaído encontra-se aprisiona-do. Porém, as forças espirituais daverdadeira vida desagregam a mate-rialidade grosseira de sua natureza,penetrando-o e liberando, pouco apouco, o espírito nele encerrado.

Não glorifiquemos apenas o sábio

É preciso que a sabedoria seja dese-jada. Lao Tsé diz: “Quem perguntamerece uma resposta”. Isso é uma lei.Se não houver pergunta, não haveráresposta. Uma pergunta que não sejade ordem puramente intelectual, e sefeita com sinceridade, sempre atraiuma resposta de acordo com a qualida-de do pedido. “Batei e abrir-se-vos-á.”O ensinamento universal não é sim-plesmente lançado ao mundo exterior.

Quando um morador do limitedeseja a sabedoria, ele não recebe ape-nas uma parte da verdade, mas a ver-dade toda. Uma pergunta essencialrecebe uma resposta integral. Porcausa de sua função e vocação, o guar-dião da fronteira deve conhecer ovalor dos objetos a declarar, determi-nando-o rigorosamente antes dereclamar a sua parte. O morador dolimite tem necessidade de ajuda, e porisso ele se dirige àquele que está alémdo limite, àquele que foi libertado; elepede auxílio ao sábio, porém a con-quista da verdade é sua incumbência.

Portanto, agradeçamos tambémàquele que guardava o caminho, poisfoi ele quem fez o pedido.

* Os Lohans, primeiros discípulos de Buda,tornaram-se Bodhisattvas, os salvadores dahumanidade. Inicialmente em número de doze,depois dezesseis, e dezoito, eles chegaram porfim a quinhentos, representando, com isso, umagrande radiação. São representados montandoum búfalo ou como vigilantes silenciosos.

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A vitória sobre o eu

Às vezes acontece de sermos tocadospela Luz de modo inesperado. Umpoema de infância que surge por acasoe faz vibrar uma corda sensível denosso ser, ou talvez um ensinamentoque desperta uma súbita compreensãoe lança sobre nossa vida e comporta-mento uma nova luz.

m buscador que conhece algo doensinamento do Lectorium Rosicru-cianum sabe que a noção da coexistên-cia de dois campos de vida ocupa neleum lugar central. No primeiro campo,a maior parte de nossa atividade é vol-tada para a construção e a consolida-ção de nossa existência humana natu-ral. O segundo campo de vida, muitasvezes discutido e aprofundado na lite-ratura da Escola da Rosacruz Áurea, édesconhecido, confuso e vago paragrande parte da humanidade. Essanoção de duas ordens de naturezachoca-se com uma recusa categóricadaqueles que negam a existência deDeus e do princípio espiritual existen-te no homem. Aqueles que têm umavaga suspeita disso não sabem comoorientar sua busca.

Muitos aspiram a um tipo de felici-dade não terrena e a perseguem de to-das as maneiras possíveis.

Por fim, há a pequena minoria dosque são subitamente apanhados pelaimagem de um princípio vivente quereconhecem em si mesmos e em seussemelhantes. Eles são tocados pelopesado sofrimento individual e coleti-

vo, e perguntam-se: Por que não pos-so fazer nada? Eles procuram, então,respostas junto a mestres ou na litera-tura mundial. J. van Rijckenborgh eCatharose de Petri falam em seus li-vros de uma centelha do espírito, deum princípio espiritual, de um princí-pio de luz de essência divina, presenteno interior do homem. Esse princípioimanente, em ligação direta com osegundo campo de vida, engloba, porsua vez, o homem e nele se encontracomo uma promessa, como o plano deum novo devir.

É algo excepcional quando o busca-dor reconhece a presença do homem-espírito em si, mesmo que ele com-preenda que não é esse ser espiritual,mesmo sabendo que há um caminhoinfinitamente longo que leva ao novocampo de vida. Os rosacruzes clássi-cos diziam: “Algumas plumas de águiaainda se encontram no caminho”.

Fundamentalmente ele pertence aoprimeiro campo de vida, que requertoda sua atenção e talentos. Estes últi-mos, embora indispensáveis à existênciacomum, nada têm a ver com os atribu-tos do novo homem latente. Este é umponto de partida fundamental: nenhu-ma das qualidades do “eu” serve debase ao surgimento do novo homem.

Todos os movimentos espirituaisque existiram no passado mostraram,e todas as futuras tentativas mostra-rão, que o ser-eu pertence ao primeirocampo de vida. Somente o homem-alma pertence à segunda esfera de vi-da, também chamada Reino por Jesus

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U

Um guarda monta

em Alta Escola.

Nobuzame, por

volta de 1200

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Cristo, Nirvana por Gautama, o Bu-da, ou o novo campo de vida peloLectorium Rosicrucianum.

Portanto, não é estranho que na his-tória existam traços de movimentosque se esforçaram para neutralizar o“eu”, já que esta é a condição sine quanon para o renascimento do homemespiritual interior. O “eu” vive na ig-norância, diziam os antigos gnósticos.

É a Gnosis, o “conhecimento do cora-ção” que dá o verdadeiro “saber” inte-rior e liga o homem à Sophia, o ser-luzoriginal. Na Idade Média, o velho ho-mem, o velho Adão, foi declarado to-talmente inapto, e sobretudo um ins-trumento do diabo. Um novo “Cris-to” devia vir para salvar a alma huma-na e conduzi-la ao seu Reino. Grandesmovimentos espirituais como o dos

bogomilos, dos paulicianos, dos cáta-ros, ao norte da bacia mediterrânea,ensinavam a endura, que tinha porfinalidade fazer morrer o “velho ho-mem” – de forma simbólica, mas nãomenos real – para sua natureza terres-tre, a fim de que ele renascesse segun-do um tríplice processo. Tendo venci-do o mundo, a nova alma, plena dealegria, dá o primeiro passo no cami-nho das estrelas.

À margem oriental do mar Medi-terrâneo desenvolveu-se a sabedoriaárabe. Com o declínio do Império ro-mano, o Ocidente, despopulado e in-culto, fez as primeiras tentativas de es-tabelecer uma vida social. Em toda apenínsula árabe e na Pérsia, irradiou-se uma civilização rica em conheci-mento, inovadora em matéria de físicae química, e que levou ao apogeu a es-tética oriental. No início, o islã elevoubem alto a bandeira da tolerância e dahospitalidade, mas logo os últimosdetentores da gnosis egípcia viram-seforçados a entrar na clandestinidade.

Isso não aconteceu somente com oislã ou com o cristianismo, mas comtoda religião dogmática e autoritáriaque impõe regras que entravam ocaminho para um encontro livre como Espírito do campo de vida original.Foi assim que, em reação à ortodoxiado islã oficial emergiu uma “via inte-rior”, a busca do caminho para Deus.

O sufismo clássico

Assim como a supressão de um li-vre desenvolvimento interior, suscita-da pela ignorância, faz parte do serhumano, assim também faz parte desua natureza a propensão à busca poruma via de acesso ao divino, e issojamais pode ser suprimido por muitotempo. Uma compreensão interiori-zada do Corão e de outras escrituras

sagradas fez surgir uma nova práticade vida, libertando seus adeptos dosentraves sociais, do dogma imposto edos valores da época. Aqueles queseguiram esse caminho foram chama-dos “sufis”, devido ao nome que sedava à veste de lã que usavam. Inú-meros escritos do século IX ao séculoXIII trazem à luz o caminho sob ân-gulos diferentes.

O interesse que as explicações e asreflexões referentes ao período do“sufismo clássico” apresentam é, ain-da hoje, fundamental para os pratican-tes. As descrições relativas às expe-riências que demarcam a aprendiza-gem, bem como as numerosas parábo-las, testemunham da profundidade al-cançada pelo homem que, tendo setornado uno com a Gnosis, renascepara uma nova aurora.

Felizmente, foram conservados nu-merosos vestígios dos trabalhos sufisque tratam da vitória sobre o “eu”graças a uma orientação que encontrao seu ponto central em Deus. Essasobras descrevem aquilo que os cátaroschamavam endura, a via na qual o eucapitula diante da alma divina interiorque desabrocha.

Considerações detalhadas alternamcom uma abundância de sentençascurtas que levam à reflexão. Elas mos-tram que os esquemas de pensamentosconvencionais, que servem de guia aosdesgarrados, são totalmente impró-prios para o caminho de libertação daAlma. Esses escritos revelam que vive-seo caminho “no presente”, em nossa vidacotidiana, e que cada passo é dado naLuz disponível a cada instante.

A viagem e o oásis

Atravessar o deserto é um empreen-dimento suicida para aquele que pre-viamente não avaliou as distâncias

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entre as etapas, não localizou os oásis,as zonas de sombra, os poços, e nãoadministrou previdentemente os re-cursos alimentares e a manutenção damontaria. Por analogia, os sufis distin-guem diferentes “estados” (hal) e di-versas “etapas” (magam) pelos quais operegrino deve necessariamente passar.

Daí a comparação entre a viagematravés do deserto e a caminhada dobuscador da verdade. Cada passo im-plica num esforço conscientementeorientado. Para um, trata-se de encon-trar sombra, um poço, um oásis; parao outro, uma faceta do ensinamento,uma fonte de aprofundamento para aconsciência. Ambos buscam um meiode avançar e não sucumbir. O oásis é osímbolo do templo iniciático, a aquisi-ção interior, o tecer do novo manto daalma.

A viagem segue o seu curso. As eta-pas se sucedem, mas as aquisições per-manecem. É dito: Cada mudança deestado de consciência é um dom.

A viagem, o percurso mesmo, éuma graça. Essa progressão ao longodos sucessivos estados de consciênciaé o fruto de pura magnanimidade, em-bora um esforço extremo, da parte docandidato, seja necessário. Mas a cadaetapa sua aquisição é uma posse firme-mente estabelecida que lhe permitepassar à etapa seguinte.

Al-Ghazzali, um teólogo árabe, li-gou-se ao sufismo após anos de pes-quisa e tentou conciliar a ortodoxiaislâmica e o sufismo; mas semelhantetentativa era, por definição, fadada aofracasso.

Espírito sistemático, esse autor dis-tingue três aspectos para cada estágio:o ensinamento, o estado de consciênciae o comportamento. Ele diz: A com-preensão é o cepo da árvore. Ela geraos estados de consciência que corres-pondem aos ramos, que por sua vez

geram um comportamento que corres-ponde ao fruto. Isso se aplica a todos osestágios do caminho que conduz aDeus.

Na prática, as experiências da vidanão se desenvolvem de modo tãoregrado assim, a não ser na literatura.Na realidade, as diferentes fases e esta-dos de consciência se interpenetram ese influenciam mutuamente. Nissonão há nada de surpreendente, poispodemos constatar numerosas varian-tes sobre esse tema.

Arrependimento (TAUBA)

A primeira etapa a vencer no cami-nho, segundo o sufismo, é o arrepen-dimento ou conversão (tauba). Quãojusto e irrefutável é isso! Especialmen-te se considerarmos a noção taubacomo sendo a consciência torturantede se estar separado da vida original.Essa é a primeira força requerida paranos desviarmos do caminho largo dareligiosidade inconsciente, a da massa,sharia. Isso só é possível graças a umaconsciente inversão no caminho devida (freqüentemente devida a fatoresexteriores) e encetar um novo com-portamento, tariqa.

Uma lenda conta que uma noite osufi Ibrahim Ibn Adham ouviu umruído no telhado de seu palácio emBalkh. Os servidores encontraram láum homem que, levado diante deIbrahim, fingia procurar no telhado ocamelo que tinha perdido. O príncipe,em vista do absurdo da empresa,repreendeu-o acerbamente. O homemdisse a Ibrahim que suas tentativas deencontrar a paz celeste e uma autênticavida espiritual em meio a todo aqueleluxo era igualmente tão absurdaquanto procurar um camelo no telha-do. A essas palavras, Ibrahim experi-mentou um profundo arrependimento

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e se afastou de suas riquezas.Uma mudança, uma reviravolta

repentina pode acontecer por ocasiãode circunstâncias fortuitas, dando iní-cio a uma nova fase de desenvolvi-mento da consciência. Segundo os tex-tos, trata-se de um momento decisivoem que, pela primeira vez, a pessoa sevolta conscientemente para o campode vida original, para Deus. Um golpede sorte, uma decepção ou um encon-tro particular podem servir comodesencadeadores desse processo.

Elevado por um instante acima desua consciência comum, o buscador“contempla” o ideal a ser alcançado.O importante é que, quando o coraçãodesperte de seu sono indolente, ohomem veja sua condição lastimável,pelo menos em relação a esse ideal.Tudo isso ele recebe porque a graçalhe é concedida e a divina admoesta-ção se faz ouvir no mais profundo doser, com o ouvido do coração.

A prática de tauba, contudo, levouum grande número de sufis a uma talaversão pelo mundo que eles caíramno outro extremo: ascese e pobrezatomaram a amplitude de um fenôme-no cultural, em vez de permanecerapenas um contingente.

Desprendimento e pobreza (FAQR)

O pobre é tão monopolizado por suapobreza quanto o rico o é por sua ri-queza.

Para os observadores, a rejeição domundo é o aspecto mais surpreenden-te do sufismo. Os tratados abundamem exemplos de vida de pobreza(faqr) e de afastamento do mundo.Essas interpretações tipicamente exte-riores de uma condição interior exer-cem uma influência daninha sobre oscandidatos, especialmente os princi-piantes. Por meio de uma redução de

sua dieta alimentar e longos períodosde jejum, o candidato espera chegar aodesprendimento do mundo e dessemodo ser agradável a Deus. Riqueza epreocupação com bens materiais,como em outras religiões, podem serconsideradas obstáculos ao caminhoespiritual, o que resulta que a ascese ea total negação do mundo materialtornam-se, não raro, o orgulho dosofrimento. Um sábio instrutor obser-va que um excesso de ascese e de nega-ção nada mais é que uma “expressãode ansiedade e medo”. Essa manifesta-ção de ansiedade diante da ordem denatureza na qual vivemos é tão perni-ciosa quanto um excesso de riqueza ede opulência. Trata-se tão-somente deconhecer suas possibilidades e limitesinerentes a cada circunstância.

A aversão pelo mundo consiste emconsiderar as coisas em seu aspecto efê-mero, de modo que elas percam, aosnossos olhos, toda importância, facili-tando-nos a tarefa de nos afastarmosdelas.

Numerosos sufis consideram apobreza e a ascese como a indicaçãode sua vitória sobre o mundo, segurosde que sua vida exterior reflete seuestado interior. Mas, para aqueles quebuscam uma vida interior, não é omundo que constitui o principal obs-táculo, e sim o eu.

Trata o teu eu como algo sem impor-tância, embora inevitável. Aquele queé mestre de seu eu é poderoso, aqueleque se deixa governar por ele é fraco.

Os desejos e as tendências que le-vam o homem à ação são associadospelos sufis aos impulsos instintivos e àalma-sangue, nafs. O nafs é um sedu-tor, pelo qual não se pode deixar levar.

A alma (terrestre) é como um cava-lo diabólico. Quando soltamos as ré-deas, podemos ter certeza de que sere-mos derrubados.

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Algumas biografias mostram queuma mudança intervém na vida dosufi quando ele vê os verdadeiros obs-táculos e seu caminho não é mais ca-racterizado pelos extremos, por priva-ções, tanto no plano externo quantono interno. O desprendimento inte-rior é fruto da compreensão. Enquan-to a pobreza exterior está ligada à apa-rência, a pobreza interior está estreita-mente relacionada com o “diminuir”(literalmente: desfazer-se), com a“rendição” – um estado ulterior.

Não me devolvas aquilo que me re-tirastes e não me deixes ver o meu eu,após teres dele me protegido.

Confiança em Deus e auto-rendição (TAWAKKUL)

A confiança em Deus é um estadode despreocupação interna e externa,resguardado pela solicitude plena doamor de Deus.

Ela representa o próximo estágioimportante no caminho do sufi. É umestado de consciência extremamenterico e inspirador, como testemunhamestas duas citações:

Encontra o repouso aquele que im-pele o amor aos confins do seu coração.Quando o coração está vazio, a renún-cia ao mundo aí penetra, prodigalizan-do a confiança em Deus.

Mas o contrário também é correto:Quando a confiança em Deus flores-

ce de maneira sadia, a renúncia tam-bém vigora, pois a justa confiança emDeus possibilita a renúncia correta.

Essa fase da renúncia e do despren-dimento é de grande importância etambém cheia de nuanças, pois se rela-ciona à libertação das forças do eu quedirigem a personalidade, e isso nãopode ser feito às pressas. Uma novaconsciência nascente e responsável de-ve servir de fundamento ao processo.

Grande vigilância e compreensão sãonecessárias ao candidato que tambémtem de dispor de uma boa estabilidadeinterior, de um equilíbrio de alma.Somente então ele pode confiar intei-ramente seu destino ao próprio Deusinterno.

Possuir total certeza, denomina-sefé, tawakkul.

Paciência (SABR)

A paciência é para a fé o que a cabe-ça é para o corpo. Ela consiste em per-manecer em harmonia tanto na prova-ção como no bem-estar. A longanimi-dade perfeita (sabr) diante dos golpesdo destino e do pesar representa, noOriente Médio, um dos pilares da sen-da. Distinguem-se três níveis de reali-zação:1. esforçar-se por ser paciente,2. suportar pacientemente as tentações,3. mostrar-se paciente em todas as

circunstâncias.Essa sutil distinção é um exemplo

da extrema precisão com que os sufisdefinem as fases e os estados internosdo caminho. Inúmeros relatos atestamda necessidade da perseverança e dapaciência. Aqui, a figura clássica quedescreve a vitória sobre o eu, a traves-sia do deserto, é bastante utilizada. Éuma força especial que faculta o exer-cício da paciência, uma força graças àqual, no final de um longo treinamen-to, o candidato chega à impassibilidadeinterior. De um lado há a orientaçãoindefectível para Deus – a perseveran-ça com Deus – e de outro lado, a aber-tura constante para a força divina nahora da tentação – a perseverança semDeus. São tantas as pedras que se acu-mulam no caminho! Para alcançar oobjetivo é preciso superar inúmerosobstáculos, o que é ilustrado pela cur-ta história que segue:

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Um dia, um homem chegou à casade Ash-Shibli e perguntou-lhe: Qual éa prova mais difícil de suportar paraaquele que se exercita na paciência?Ash-Shibli respondeu: A paciência emDeus. Não, disse o homem. Ash-Shibli:A paciência para Deus. Não, disse ohomem. Ash-Shibli: A paciência comDeus. Não, disse o homem. Ash-Shibli:Então, o que é? E o homem respondeu:A paciência (de tudo suportar) semDeus. A essas palavras, Ash-Shibli gri-tou tão forte que quase rendeu a alma.

Amor (MAHABBA) e diminuição (FANA)

O amor é o fruto da compreensão.Se por um lado o amor terrestre nosliga a uma outra pessoa, a um objetoou a um interesse qualquer, por outrolado o amor divino possui uma total-mente outra definição: é a força queconduz de etapa em etapa, ao longo deum caminho de evolução, até se tornarum estado de consciência. Assim, oconceito Arif, aquele que possui o en-tendimento, aplica-se freqüentementeaos sufis avançados.

Al-Ghazzali escreveu: O amor sema compreensão é impossível, pois não sepode amar o que não se conhece.

Na literatura sufi, a noção “bem-amado” representa um papel impor-tante, pois a pessoa amada é o símbo-lo da ligação com o divino. O amor –é dito – é um fogo no coração, que quei-ma tudo o que o amado não deseja. Oamor, nascido do conhecimento inte-rior, representa o último estágio docaminho. No início, é a obediênciaabsoluta a um mestre (shaikh) que éexigida do candidato. O estágio final émarifa, o conhecimento interior divi-no. Somente o candidato avançadoconhece a força e o potencial do ver-dadeiro amor servidor, que é a única

via de reintegração com Deus. Paraum simples fiel da religião muçulmana(islã significa submissão [à vontade deDeus]), é quase impossível ultrapassaro estágio de obediência a um mestre.Por isso, coloca-se o amor no mesmonível que a diminuição do eu.

O amor devotado a Deus, que nãoexclui nenhuma parte da criação, ali-menta-se da aspiração à revelaçãodivina e se consolida pelo rasgar dosvéus que impedem a contemplação datranscendência interior.

Após o esquecimento temporário,há a asnai, o conhecimento reencon-trado da origem. O estágio de dimi-nuição do eu é indispensável paraencontrar o conhecimento do inícioabsoluto e do esplendor da eternidade.Este último degrau no caminho da ini-ciação sufi não é, em realidade, umfim. Poder-se-ia dizer que aqui seperde o rastro daquilo que nossa cons-ciência natural pode conceber.

A partir daí, o sufi caminha para overdadeiro objetivo da existência hu-mana, o advento do homem-espírito,a realização final do plano divino.Embora seja impossível comunicar al-go sobre esse nível de elevação do pro-cesso, pode-se, contudo, decodificaros escritos redigidos pelos mestres aseus alunos.

FONTES:Traduções do árabe para o alemão por RichardGramlich:Muhammad al-Ghazzalis Lehre von den Stufenzur Gottesliebe. Steiner Verlag, 1984.Islamische Mystik. Sufische Texte aus zehnJahrhunderten. Kohlhammer Verlag, 1992.Das Sendschreiben al-Qushairis über dasSufitum. Steiner Verlag, 1989.Weltverzicht. Harrassowitz Verlag, 1997.Reinert B., Die Lehre vom Tawakkul in derklassischen Sufik. De Gruyter Verlag, 1968.Wehr H., Al-Ghazzalis Buch vomGottvertrauen. Niemeyer Verlag, 1940.

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Na aurora dos tempos, o som era opoder de manifestação do Universo esua força de coesão. Na Bíblia lemosque o Verbo ressoou no princípio ecriou os mundos. Nos textos hindus,lemos que Vishnu, o cantor supremo,despertou os mundos à existência. Ena Estância III de A Doutrina Secre-ta, H.P. Blavatsky escreve: “A vibra-ção se propaga, e suas velozes asastocam o Universo inteiro e o germeque mora nas trevas; as trevas quesopram sobre as adormecidas águas davida”.

uitos textos fundamentais evo-cam, de modo um tanto velado, a ori-gem do tempo e dizem que o som éuma emanação do Incognoscível, quesuscita e mantém a existência de todasas coisas.

No Conceito Rosacruz do Cosmo,Max Heindel fala a respeito da propa-gação das ondas sonoras ou vibrató-rias, da seguinte forma: Quando faze-mos vibrar um de dois diapasões afi-nados exatamente no mesmo tom, osom induzirá a mesma vibração nooutro. Fracamente a princípio, mas, se

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O som do Universo

M

Tocadores de flauta

e de lira.Tumba de

Leopardi,Tarquinia,

Itália, Ca. 500 a.C.

continuarmos a golpear o primeiro, osegundo diapasão emitirá um somcada vez mais alto, até atingir umvolume de som igual ao primeiro. Issoocorrerá mesmo com diapasões avários metros de distância. Ainda queum deles esteja encerrado num vidro,o som do golpeado penetrará o vidro ea nota-resposta será emitida pelo ins-trumento (páginas 328/329). Para quedois diapasões produzam a mesmavibração, é necessário que ambosestejam afinados no mesmo tom. Asvibrações exercem uma influênciasobre a matéria. Elas podem tantoconstruir como destruir. Todosconhecem a experiência que consisteem espalhar um pouco de pó bemfino sobre uma placa metálica ou devidro e em seguida passar um arco deviolino pela borda da placa. As vibra-ções produzidas farão o pó assumirdiversas formas geométricas. A vozhumana também é capaz de produzirtais figuras; sempre a mesma figurapara o mesmo som.

Disso conclui-se que nenhumcorpo pode entrar em ressonância, apartir de um som inicial, se não pos-suir uma “tônica” correspondente.Conhecemos a ligação existente entreos sons e as cores. Ambos são fenô-menos vibratórios. A cada som cor-responde uma cor específica. Chega-se mesmo a falar de cor sonora. Deacordo com sua intensidade tonal, ummesmo som pode comportar nuançasclaras ou sombrias. As cores tornamas formas visíveis; assim, podemoscompreender que os sons produzemformas.

Os sons governam a vida

O raio de ação das vibrações não seestende somente ao domínio da ex-pressão oral, mas também ao do plano

emocional, pois a palavra pode tantoreconfortar como destruir. Podemosver-nos afetados pelas vibrações deestados emocionais, tais como a cóle-ra, a maldade e o pesar. Sabemos quea música exerce uma influência, porvezes de elevação e até mesmo cura-dora, mas também de deslocação psí-quica, nivelando as massas por baixo;basta pensar no uso repetitivo de sonstonitruantes nas produções musicaiscontemporâneas. Imerso nesse caossonoro, o ser humano, sempre embusca de equilíbrio, de felicidade e debases firmes, esforça-se para perma-necer de pé e progredir da melhorforma possível.

Na vida, encontrar um parceiro trazuma certa plenitude. Duas pessoasque se encontram em consonânciamútua têm a sensação de conhecer aharmonia. Essa experiência, contudo,não acalma por muito tempo a sensa-ção de incompletude proveniente daruptura com o som primordial denossa origem, com o som que perma-nece ligado ao nosso ser. A harmoniaencontrada com o parceiro não con-segue fazer-nos esquecer da rupturafundamental com a origem.

O sofrimento e a dor que experi-mentamos por ocasião da perda deum ser querido são igualmente osofrimento e a dor da perda daquelaressonância, daquela unissonância danota fundamental comum ao casal.Sentimo-nos, então, mais desampara-dos, talvez porque a harmonia de umcasal crie um sentimento de seguran-ça. Estamos, então, sozinhos diantede nós mesmos, sem ao menos que-rermos atenuar, por pouco que seja, osofrimento e o vazio deixados pelodesaparecimento do amado ou daamada. É sempre por meio de umacontecimento trágico e violento emnossa vida que somos levados a um

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ponto de ruptura interior e confron-tados com o “por que?” Uma pessoaconsciente não evitará a perguntasobre o sentido da vida.

E se o desejo por uma resposta forum autêntico grito do coração, avibração emitida despertará o somprimordial. A pessoa em questão seráatravessada como que por um relâm-pago e impulsionada sem qualquerequívoco a uma busca interior. Aque-le que se deixa guiar por esse impulsocategórico acabará entrando em con-tato com o som primordial em seuíntimo. Esse som é Espírito, conheci-mento e vida.

O Verbo do princípio

O Verbo que ressoa no princípio é osom criador, a vibração que se propa-ga sobre as trevas e as toca, e não deveser confundido com os sons percebi-dos por nossos ouvidos. Os sons queouvimos são apenas sons externos. OVerbo é a ressonância interior doEspírito; ele é luz, força, alegria e vidana energia original. Ele ressoa inces-santemente, criador e glorioso, livredo espaço e do tempo. Carregado pelacorrente descendente, o homem ori-ginal mergulhou no mundo da maté-ria, e o som primordial que nele res-soava enfraqueceu. Tendo se tornadouma criatura voltada para o exterior,ele agora dificilmente percebe a vozdo Verbo. Quem dá o tom agora é apersonalidade-eu. O som primordialfoi recoberto por uma multidão deruídos, tanto externos como internos.É com muito custo que as pessoasouvem umas às outras, e mais difícilainda é ouvir o seu próprio som, seupróprio silêncio interior. O homem,que a princípio foi concebido para serum instrumento destinado a fazer res-soar as harmonias da alma, para servir

de caixa de ressonância para o somdivino, desapareceu. Ele se voltoucada vez mais para o exterior, fascina-do pela matéria, e acabou cristalizan-do-se. Agora, o homem e a matériasão uma só coisa. A lei do subir, bri-lhar e declinar, a lei do equilíbrio dosopostos, tornou-se a sua lei. Conce-bido para se tornar um homem-espí-rito participante da realização doplano divino, ele acabou se tornandoapenas um homem terrestre.

Não obstante, o som primordialpermaneceu latente em sua alma. Elejá não o ouve, mas cada momento de“abertura” pode se tornar uma opor-tunidade para seu ressurgimento. Navibração original o homem encontra alembrança da direção a ser tomadapara alcançar a harmonia, para ocuparo seu lugar no plano do Logos, doVerbo. O campo de vida que o cerca eque é gerado por seu corpo etérico,seu corpo astral e seu corpo mental,não mais conhece a harmonia, poisesses corpos retiram suas forças ape-nas do campo do mundo circundanteque não já não responde ao som pri-mordial. O comportamento dos sereshumanos, em todos os domínios davida, acabou transformando com otempo as vibrações da atmosfera emalgo bastante pesado para que pudes-se entrar em ressonância com o purosom original. Assim, no mundo comono homem, a voz primordial, a vozdo silêncio, está morta.

Tal como um planeta repelido paraum outro sistema solar após ter aban-donado sua órbita, a onda de vidahumana abandonou, em tempos ime-moriais, sua espiral original e, dessemodo, perdeu sua natureza inicial,seu rumo primitivo. Agora, devido aoafastamento da espiral original, avibração planetária encontra-se bas-tante distanciada daquela do princí-

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pio, e o som original está como quesufocado em nós.

Apesar disso, o som primordial nãoparou de ressoar no Universo. Emrazão de sua essência, ele tende areenviar à órbita original o que se des-viou e se perdeu, tanto em escala cós-mica como em escala microcósmica.O grande som vem ao encontro davibração inferior do microcosmo quelhe é aparentado com o objetivo depermitir uma nova harmonização.Isso explica porque duas vozes falamem nós: a voz da natureza terrestre e avoz do som primordial. Essas vozessão duas vibrações totalmente dife-rentes. Aprender a reconhecê-las jános permite fazer a escolha. O desgar-rado pode reintegrar a corrente origi-nal tão logo esteja em condição dereagir harmoniosamente à vibraçãoirradiante e chamadora do som pri-mordial.

A purificação do som e da cor

Como pode o ser humano encon-trar o som puro? Isso é possívelmediante a elevação da vibração dosom que nele ressoa. Para tanto, eledeve vigiar a qualidade de seus pen-samentos, de seus sentimentos e desuas ações e colocá-los em harmoniacom as intenções do plano original.Ele deve, por todos os meios, esfor-çar-se para se harmonizar com o somdo princípio espiritual nele deposita-do. Conseqüentemente, a personali-dade se torna mais transparente, e osom e a cor se tornam mais puros. Apersonalidade “manifesta a cor” e seajusta ao diapasão de uma vibraçãomais elevada. Ela adquire uma novaradiação que se explica por um pro-cessual retorno à via do Original. NoTao Te King, Lao Tsé testemunhadisso:

“A senda” é a causa primeva compreendida em si mesma.Ela era, é e será por toda a eternidade.Sua onipotência está limitada peloespaço e tempo.De seu “Logos” nasceu a alma domundo.O reto caminho é “vibrar em seuritmo”,reconhecer em cada respiração a universalidade.Fundir-se em sua radiante luz,de modo que somente subsista a vontade que tudo anima.

É-nos concedido o poder de esco-lher seguir o caminho do som origi-nal e despertar nosso ser interior parauma vida nova. O ritmo do somlibertador embala-nos como um docecântico, como um segredar melodio-so – o sussurro do rio divino. Nesseestado, a sonoridade inferior dohomem purificado reencontra suafreqüência primordial, sua “terranutriz”. A pessoa que se torna cons-ciente do que se passa em sua almasubtrair-se-á cada vez mais aos cla-mores deste mundo, a fim de melhorperceber, de ouvir o silêncio, a eleva-da vibração que nela ressoa. E, poucoa pouco, o novo som que ela emite,que transmite, entrará em ressonân-cia e despertará essa mesma sonorida-de em outras pessoas, na luz de coresardentes. Para tanto, não são necessá-rias muitas palavras. O ressurgimen-to da “tônica original” na alma des-perta-a e incita a um comportamentopurificado. Assim como dois diapa-sões entram em ressonância namesma tônica, assim também aqueleou aquela que libertou interiormentea vibração do princípio pode desper-tar o seu eco em seu próximo. A vozdo silêncio é ouvida, a alma vibra. Óplenitude!

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Como principia o discipulado?

A literatura mundial é a depositáriade inumeráveis evocações relativas àessência divina e ao domínio de vidaoriginal da humanidade. A quantida-de de mestres e de mensageiros quenos precederam no caminho do Reinode Deus tem sido incalculável. Elespercorreram esse caminho, e seu ensi-namento sempre foi simples, claro ecoerente para aqueles que, com eles,conseguiam suportar esse “alimentosólido”, segundo as palavras de Paulo.

e quantas maneiras já não terãoapresentado a seus ouvintes a verdadedivina sob a forma de contos, poesiasmísticas, cartas, evangelhos e tradi-ções orais? Cada uma dessas formasde expressão é capaz de propiciaruma experiência maravilhosa. Umúnico “toque”, e o profano interessa-do se converte em discípulo. Pode-mos considerar isso como sendo umcomeço, que freqüentemente é com-parado a um “renascimento”, pois ra-ramente estamos prontos, no mo-mento desse toque, quando ressoa ochamado da luz, e reagimos de mododesarmonioso. Tão logo ocorra umareação, tem início um curioso proces-so comparável a um nascimento, queé marcado por uma série de transfor-mações radicais.

No início, trata-se de uma profun-da perturbação, que J. van Rijcken-borgh denomina “mudança funda-mental” ou “grande revolução”. Nãose trata de uma mudança de condições

externas ou sociais, mas de uma trans-formação interior do coração e docérebro. A mudança do coração refe-re-se aos desejos. O buscador desco-bre a vaidade de tudo o que o mundotem a oferecer, bem como a existênciade uma esfera de luz e de paz e de pu-ra dignidade humana. Ele descobre osprimeiros indícios do campo de vidados homens-alma originais. Mas, per-cebe também que não pode ter acessoa esse domínio do mesmo modo co-mo tem acesso às coisas comuns quedeseja.

Para ingressar nesse domínio é pre-ciso possuir qualidades particulares, asaber: a pureza de coração, a compai-xão e a paz que emanam do Cristo nohomem, pois, é dito: Fonte de umaautêntica atração, Cristo satisfaz ple-namente o coração puro que se tor-nou silencioso1.

O Evangelho de Aquário nos rela-ta de forma muito bela um momentocomo esse:

E quando chegaram à praia, Jesus oCristo chamou Pedro, André, Tiago eJoão e disse: “Pescadores da Galiléia,vede vossas redes! De agora em dian-te não pescareis mais peixes. A Frater-nidade nos reservou uma missãomaior; lançai a rede de Cristo a fim deenredar uma multidão de seres à san-tidade, à beatitude e à paz. Eu mevou, e se quiserdes podeis seguir-me”.E eles abandonaram tudo e o segui-ram. E Jesus, caminhando à beira-mar, viu Filipe e Natanael andandopela praia, e disse-lhes: “Mestres de

Bodhisattva

da compaixão.

Yung-Kang,

China.

Ca. 490 d.C.

31

D

Betsaida, que por muito tempo ensi-nastes a filosofia grega ao povo, a Fra-ternidade tem uma missão mais eleva-da para nós; eu me vou, podeis seguir-me”. E eles o seguiram. Um poucomais adiante havia uma casa romanade tributos, e Jesus viu o oficial encar-regado; seu nome era Mateus, quecerta vez morara em Jericó. Certaocasião, ele entrara correndo emJerusalém à frente do Senhor e dissera:“Vede, os cristãos estão chegando!”Mateus era um homem rico e ilustra-do na sabedoria dos judeus, dos sírios edos gregos. E Jesus disse-lhe: “Salve,Mateus, servo fiel dos Césares, salve!A Fraternidade nos chama à casa detributos das almas; eu me vou; podesseguir-me”. E Mateus o seguiu.

Iscariotes e seu filho, cujo nome eraJudas, trabalhavam para Mateus eestavam na casa de tributos. E Jesusdisse a Judas: “Deixa teu trabalho; aFraternidade nos chama para umdever no banco de poupança dasalmas; eu me vou; podes seguir-me”.E Judas o seguiu.

Em seguida, Jesus encontrou-se comum legislador que tinha ouvido falardo mestre Cristo e viera de Antioquiapara estudar na escola de Cristo. Estehomem era Tomé, homem cético, masgrande filósofo grego, dono de sabe-doria e poder. Mas Jesus viu nele ossinais da fé, e disse-lhe: “A Fraterni-dade precisa de homens que saibaminterpretar a lei; eu me vou; se quise-res podes seguir-me”. E Tomé oseguiu.

E quando caiu a tarde e Jesus esta-va em casa, eis que chegaram seusparentes, Tiago e Judas, filhos deAlfeu e Miriam. E esses eram homensde fé, e eram carpinteiros de Nazaré.E Jesus disse-lhes: “Trabalhastes comi-go e com meu pai José, construindocasas para os homens. A Fraternidade

agora nos chama para ajudá-la a cons-truir casas para as almas, casas cons-truídas sem o ruído de martelo,machado ou serra; eu me vou, e podeisseguir-me”. E Tiago e Judas exclama-ram : “Senhor, nós te seguiremos”. E,na manhã seguinte, Jesus enviou umamensagem a Simão, chefe dos zelotes,escrupuloso expoente da lei judaica. Ena mensagem Jesus dizia: “A Fra-ternidade busca homens que demons-trem a fé de Abraão; eu me vou, e sequiseres podes me seguir”. E Simão oseguiu.2

Foi assim que, de acordo com OEvangelho de Aquário, foram cha-mados os doze discípulos que segui-ram Jesus em suas peregrinações atra-vés da Judéia. Esse relato pode serlido a partir de diferentes níveis. Suabeleza evoca uma atmosfera de pure-za imaculada que interpela o leitor. Oque ele tem de simples e de direto, vaiaté o mais fundo do coração. Não éde admirar que tenha tocado tantaspessoas que nele perceberam um cha-mado, incitando-as à reflexão e àtranqüilidade. O coração espiritual, o“lótus do coração” da mitologiaindiana, foi tocado e estimulado areagir.

O lótus, freqüentemente chamadode “pedra preciosa”, é um princípioproveniente da esfera da eternidade,esfera de paz e de silêncio, e que vibracom uma força evolutiva dinâmica.Nós, que temos de viver no mundodo espaço-tempo, sabemos que, como tempo, o carma se acumula emtorno do lótus que, embora permane-cendo intocado, é impedido de desa-brochar. E à medida que nosso carmase torna mais pesado devido às nossasações, nossa consciência se afasta daconsciência do lótus. É o esquecimen-to! Para o budismo, o esquecimento é

a causa dos sofrimentos no mundo: o“lótus do coração”, assim como a per-sonalidade, começa então a fazer suasmúltiplas experiências, sempre maisdolorosas.

Porém, existem sempre mensagei-ros que falam do “lótus do coração”.Na Índia existem os Játakas, que sãoum conjunto de contos relativos ao“nascimento” de Buda e às suas en-carnações precedentes. Ao Therava-da pertence uma coleção de quinhen-tos e cinqüenta histórias que são trans-mitidas ainda hoje pelos narradores.No Sri Lanka, as verdades e experiên-cias relatadas nos Játakas, sempreatraem e despertam o interesse emtodos os meios sociais. É assim que osdiscípulos de Buda se esforçam parapropagar seu ensinamento entre aspessoas simples. E, de fato, algunsversículos permaneceram inalteradospor longo tempo. As histórias exte-riores, normalmente transmitidas emforma de prosa, são elaboradas a par-tir de alguns versículos de referência eadaptadas ao tempo e às condições donarrador. Em cada nova versão, essesversículos aparecem como pedraspreciosas, talhadas, polidas e reluzen-tes como espelhos.

É fascinante ver como os seres hu-manos reconhecem a si mesmos nes-ses velhos contos de milhares deanos. Acaso não possuem tambémeles uma pedra preciosa no centro deseu ser, aguardando a oportunidadede brilhar? A história de vida dessaspessoas se desenrola de modo corri-queiro em torno dessa pedra. Comtoda certeza, a pedra brilha, porémelas não atentam para isso, e do nasci-mento à morte mantêm-na encerradana sombra. Mas a compreensão e apurificação oferecem-se para engastaressa pedra preciosa e realçar o seubrilho.

Bambu. Pintura

sobre seda de

Goshun (1752-

1811),Tókio.

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Os Játakas refletem as experiências humanas

Os Játakas começam assim: “Erauma vez, quando o rei Brahmadattaestava em Benares...” Eles remetem oleitor a tempos míticos, sem localiza-ção precisa. As estórias reproduzemsituações típicas da vida. Aquele queas ouve identifica-se com elas, pois asimagens ancestrais evocadas podematuar em cada um. Essas imagens des-pertam lembranças da origem.

O personagem central dos Játakas éo sábio e virtuoso futuro Buda (tam-bém chamado Bodhisattva)3, que apa-rece como ator, mas na maior partedas vezes como espectador. O Bodhi-sattva, assim como o “lótus” no ho-mem, está presente, mas, à primeiravista, parece não representar nenhumpapel. O lótus, quando desperto de

seu sono e estimulado a agir, gera oautoconhecimento que faz o ser hu-mano regressar a sua origem divina.

O contador de histórias

Nas cidades e vilarejos da Índiapode-se ver com freqüência um gran-de número de pessoas chegando paraouvir um contador de histórias. Umbom narrador somente começa umaestória quando tem à sua volta umnúmero razoável de ouvintes. Ele temde cativar seus ouvintes, ser capaz defazê-los viver experiências, apresen-tar-lhes símbolos profundos e desper-tar neles a lembrança no tocante à suaorigem.

Os Játakas só revelam todo seu raiode ação quando tocam a consciênciade quem os ouve, que então se identi-fica com situações ou personagens doconto, chegando a ver a vida como sefosse pelos olhos do Bodhisattva.

O nível em que essa abertura se dádepende da consciência do narrador eda receptividade da assistência. Se onarrador for mestre em sua arte, asvibrações da eternidade far-se-ão sen-tir no coração dos ouvintes, desper-tando neles o desejo de reencontrarsua origem divina.

Conto relativo à tristeza causada pela morte

Sob o reinado de Brahmadatta, nas-ceu em Benares o Bodhisattva, nafamília de um rico mercador. Seuspais morreram quando ele era aindaadolescente; seu irmão mais velhoassumiu o cuidado da família, porémuma terrível doença também logo olevou. Toda a família, amigos e conhe-cidos reunidos levantavam as mãospara os céus, lamentando-se e choran-do. Apenas o Bodhisattva não expres-

34

O movimento

eterno é eterna

mudança. Escultura

do Centro de

Conferências

Renova. Bilthoven,

Holanda.

35

sava nenhuma tristeza. Os membrosda família o recriminavam, dizendoentre si: Vede! O irmão está morto eseu rosto permanece insensível! Ocoração dele deve ser de pedra! Semdúvida ele pensa herdar os poderes doirmão. Talvez tenha até mesmo dese-jado sua morte.

E eles lhe perguntaram: Não estástriste? Tendo-os ouvido falar entre si,o Bodhisattva respondeu-lhes: Vósvos lamentais porque meu irmão estámorto. Em vossa cegueira ignorais asoito propriedades da existência. Acasoeu não morrerei, assim como tambémvós? Por que não vos entristeceis portambém terdes de morrer? Tudo o quenasce, morre. Nada do que é criadopermanece vivo. Devo, pois, chorarporque vós, cegos estúpidos, não com-preendeis as oito propriedades da exis-tência neste mundo? Em seguida, elerecita os versos seguintes:

Gemeis e chorais um morto,mas não quem vai morrer.Todos os que se encontram na mortalha do corpodeixam esta vida, um após o outro.Deuses, homens e animais de quatro patas,bandos de pássaros e serpentes perigosas -todos possuem um corpo perecívele devem, um dia, deixar esta vida.Quando pensamos na efemeridadedas alegrias e das dores,não vale a pena nos lamentarmos.Por que estais acabrunhados pelo pesar?É teimoso e estúpido aquele que se entrega ao pecadoe, acreditando ser um grande herói,toma um sábio por tolodevido à sua incapacidade de reconhecer a verdade.

Com essas palavras, o Bodhisattvaexprime a verdade e liberta os aflitosde seu pesar.4

A vida superior da alma

Nesses relatos universais, a grandeluz sempre vem em busca da pequenaluz, o sol espiritual tenta aquecer olótus em seu exílio no coração huma-no. Profissão, status e meio socialnada representam. Um objetivo euma alma superiores são o quinhão detodos. As duas âncoras do barco daalma são o coração e a cabeça. Se olótus em botão um dia se abre, amudança fundamental age profunda-mente no santuário da cabeça, in-fluenciando o pensar e a consciência.

A pessoa que, em conseqüência damudança fundamental, conseguemanter com firmeza seu coração e suacabeça na luz, sabe que o seu ser intei-ro passará por um processo constituí-do de sete etapas.

FONTES:

1 Rijckenborgh, J.v. e Petri, C.d., Réveille! 2.e.,

São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 1983.

2 Levi, The Aquarian Gospel of Jesus Christ,

12 e., DeVross & Co, 1988.

3 Bodhisattva: aquele cuja essência (sattva) é

luz (bodhi).

4 Oldenberg, H. Die Reden des Buddha,

Freiburg: Herder Verlag, 2000.

Com muita freqüência, no ambientede trabalho, as pessoas estão sempreprontas a criticar os erros e fraquezasde seus colegas, de seus chefes ou deseus subordinados. Na esfera familiar,as crianças opõem suas convicções às deseu pais, que por sua vez criticam rispi-damente a juventude. A despeito dosofrimento gerado incessantementepela crítica, com freqüência as pessoasconsideram-na positiva. No Sermãodo Monte é dito: “Não julgueis, paranão serdes julgados”. Como podemosconciliar tudo isso?

s disputas, no decorrer das quais osindivíduos e os grupos se confrontamcom argumentos mentais, com pala-vras e controvérsia, repercutem nocampo astral e mental da humanidade.Poluidoras, carregadas de emoção, elasdificultam muito a atividade da forçalibertadora em nosso campo de vida.Em primeiro lugar, existem os siste-mas políticos, religiosos e filosóficos,em nome dos quais os homens secombatem acerbamente. E quando aarma da crítica não é suficiente, recor-re-se às armas materiais com a finali-dade de varrer o outro da face da terra.A mesma coisa acontece nas relaçõesinterpessoais. Não são os modos depensar e o comportamento de umapessoa insuportáveis para uma outra?E isso não se limita apenas aos adver-sários. As pessoas com quem vivemose que dizemos amar sofrem o mesmotratamento. Um amigo ou um próxi-

mo qualquer desperta em nós as maisimpertinentes reações. O ser humanomal tolera que alguém se comporte demodo diferente de seus próprios crité-rios. Tão logo isso aconteça, ele emitepensamentos malévolos, sarcásticos,até mesmo rancorosos, cuja nocivida-de não é atenuada mesmo se, eventual-mente, consegue refrear sua língua.

O erro está no outro

Em geral, a crítica é vista como ummeio de fazer reconhecer o bem. Acrítica negativa é rejeitada, enquantoque a assim chamada crítica positiva econstrutiva é aplaudida, aceitando-se aopinião de que a crítica é indispensávele garante o progresso. Certamente amotivação à crítica sempre parte deuma aspiração à justiça e à perfeição.Porém, podemos nos perguntar se acrítica é de fato um método apropriadopara uma melhora do comportamen-to, pois, com efeito, ela acaba semprepondo em destaque o ponto fraco dasoutras pessoas. Raramente refletimospara saber se, na situação em que nosencontramos, estamos realmente emcondição de julgar com toda imparcia-lidade e objetividade. Após um exame,verificamos que vemos os outros etudo o que nos rodeia como que atra-vés de lentes coloridas por nosso pró-prio campo aural, no qual se manifes-tam nosso caráter, nosso estado desangue e nossa consciência. Essas len-tes não são nem cor-de-rosa nemtransparentes, porque: “Eu” acho que

O erro está nos outros, não é?

36

A

sempre estou com a razão, pois mecomporto de acordo com meu pró-prio estado de ser e valores. Se “você”vê as coisas de modo diferente, isso éuma ofensa para mim, porque “eu”observo as coisas e ajo da maneira cor-reta, e isso merece reconhecimento eaté mesmo admiração. “Eu” me com-porto como se fosse rei em meu pró-prio reino. Por isso sou atacado, poiso “fazer de conta” pertence à ordemda irrealidade. O resultado de tudoisso é a “autoconservação”.

A primeira condição é a calma

Cada indivíduo, cada grupo, possuium sistema próprio que difere dos de-mais sistemas. Tudo é avaliado deacordo com as próprias normas, o quefaz que muito pouco seja aprovado.As normas de outras pessoas são vistascomo uma ameaça. Ataque e defesa: oconflito com as armas da crítica émundial. Ora um leva a melhor, oraoutro. Que progresso podemos espe-rar disso? Enquanto prevalecerem osreflexos de agressão, de defesa, a von-tade de poder, a autoconservação e acobiça, o advento de uma nova ordemem harmonia com as leis divinas con-tinuará sendo uma ilusão.

O “caminho de retorno” para a uni-dade com as leis da vida original é in-compatível com a propensão ao julga-mento. A “harmonia com Deus, como mundo e com tudo o que nele vive”parte de uma ligação vivente, de umafusão em um outro nível, onde a críti-ca está excluída. Uma tal união nãopode surgir à sombra da opinião, dojulgamento e da crítica, pois é precisa-mente isso que gera divisão entre“meu” e “teu”, em “aqui, certo” e “lá,errado”. Jamais podemos ter uma com-preensão total da realidade comum, emuito menos da Ordem eterna, pois

os preconceitos e as viseiras que elesimpõem sempre a impedem.

Uma das primeiras condições para areceptividade e a compreensão é a cal-ma. Porém, a calma é combatida pelofluxo ininterrupto de ataque e defesaque minam a razão e o sentimento eacabam forçando o indivíduo a umaatitude crispada de autoconservação.A chama da crítica consome o corpo ea alma, inibindo todo impulso de bon-dade, mansidão e indulgência. Aqueleque julga raramente exerce uma in-fluência benéfica em seu meio am-biente. As pessoas vítimas da críticasempre ocultam aquilo que possuemde gentileza e afabilidade e acabampor mostrar-se agressivas, dando, des-se modo, àquele que as critica, umajustificativa para suas censuras. Quemiséria e tristeza resultam de seme-lhante comportamento! Aquele que ocultiva denigre a realidade impondo-lhe o reflexo de sua própria pequenez.Desse modo, a multiplicidade ilimita-da da existência, a riqueza incomensu-rável do mundo e sobretudo a luz docampo criador original permanecerãodesconhecidos para ele. Se lhe fossepossível pôr um fim a esse conflito, eleficaria livre. Ele já não seria coagidopela pressão da crítica e ver-se-ia livredos preconceitos encapsulantes. A crí-tica não só impede a receptividade anovo entendimento, como tambémsufoca todo germe de compreensãoem outras pessoas. Qual criatura é to-talmente livre para levar uma vidaisenta de crítica quando é atacada detodos os lados? Aquele que critica dáalimento à situação que o desagrada.A crítica tudo paralisa. Quando alguémaceita uma crítica “positiva” e tenta setransformar, isso não passa, muitasvezes, de uma transformação que seajusta ao ponto de vista do crítico.Raramente a crítica visa a liberação do

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potencial de novas possibilidades devida que estão latentes na outra pes-soa. Assim, inúmeras são as pessoasque vivem segundo os valores alheios,por medo da crítica, e que, dessemodo, bloqueiam o próprio desenvol-vimento.

Ausência de crítica é uma obrigação?

Quem quer que encete o caminhoda libertação da alma assume a res-ponsabilidade por si mesmo e pelomundo. Trata-se aqui da responsabili-dade pelo nascimento do Original emsi e nos outros. Para assumir essa res-ponsabilidade é preciso estar livre dacrítica. Mas, como desfazer-se dospróprios preconceitos, como renun-ciar a todos os critérios usuais da vidacotidiana sem cair no excesso de liber-dade, na negligência dos deveres e nabusca dos próprios interesses? Comoa ausência de crítica influencia o traba-lho de uma escola espiritual? Não nosarriscamos com isso a criar ilusões?Muitas perguntas surgem pelo fato dese considerar a abstenção de crítica co-mo uma obrigação, como uma regra.A ausência de crítica forçada não leva

a nada de novo e, desse modo, tam-bém não é evocada a influência salutare suave da verdadeira ausência de crí-tica. É apenas na calma interior quepodemos reconhecer os efeitos devas-tadores da crítica, tanto nos outroscomo em nós mesmos. A serenidade,um certo estado interior de neutrali-dade, bem como uma certa lucidez,tornam uma pessoa simples e modes-ta: “eu também estou cheio de defeitose impurezas; o outro também está seesforçando”. O amor e a compaixãoque surgem dessa atitude favorececada vez mais o surgimento da ausên-cia de crítica. Aquele que aspira a umnovo estado de consciência e trabalhapara isso conhece cada vez mais aliberdade, a unidade e a verdade, emdetrimento da tendência para a auto-conservação. Ele não pode agir deoutro modo. Sendo o amor semprebrando e generoso, ele o experimentacomo benéfico para si mesmo e paraos outros. Ele já não deseja viver semesse amor. É por isso que suporta ascríticas, justificadas ou não. Porém, seele reagir, se houver uma rejeição, oamor se retira imediatamente. E nãopoderia ser diferente. Neste mundo,nesta ordem de emergência em que

Eu não fiz

nada. Foto

Pentagrama.

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nos encontramos, a justiça perfeita éuma impossibilidade. Entre o juiz e oacusado existem tão-somente diferen-ças de responsabilidade. O homemque aspira à libertação sabe que nonovo campo de vida não existem faltasnem críticas, uma vez que seu funda-mento é o Amor, da mesma forma co-mo aqui embaixo prevalece a alternân-cia dos contrários, tal como o dia e anoite. Para ele, os critérios dos outrosnão são determinantes. Não por umaquestão de arrogância, mas sim por-que ele se entrega ao Amor, que é ovalor fundamental do campo divinooriginal, onde a personalidade auto-conservadora é dissolvida.

O novo campo de vida não julga

Dentro do quadro de regras em vi-gor na sociedade, o homem sempre seperguntará se uma eventual crítica quelhe seja feita é justificada.

Contudo, ele sabe que quando seabre para a vida original, seguramentenão será julgado por esse campo supe-rior, pois, quem poderá subsistir? (Apo-calipse, 6:17). Ele é livre porque aceitatudo o que se apresenta, pois percebesua verdadeira essência. Caso veja quealgo de errado ameaça acontecer, ele,ao contrário, se abstém de toda atitu-de crítica, trata imediatamente deprestar uma ajuda construtiva, umsocorro, quando as circunstâncias seapresentam, esforçando-se para man-ter a ligação com o campo original.

Ao entrar em contato com pessoasque não seguem o caminho da almaindicado pela Escola, é tentador pen-sar que toda a vida se baseia na auto-conservação e que, portanto, a práticada crítica é algo normal. Contudo, po-demos deparar-nos também com pes-soas que seguem o caminho e, nãoobstante, colocam-se como “críticos”.

Porém, dos alunos que se sentem liga-dos a esse caminho, espera-se umcomportamento diferente. Ao vermoscertos alunos adotarem uma atitudecrítica, podemos assustar-nos com aidéia de que o trabalho da Escola Es-piritual venha a ser ameaçado por se-melhante prática. Essa idéia é insupor-tável, pois não representa a Escolanosso mais elevado ideal?

Mas, por experiência própria, sabe-mos que não se pode remediar as im-perfeições combatendo-as. Temos deinstaurar algo novo.

Muitos dirão: Confiar é muito bom,mas a advertência e o controle às vezessão indispensáveis. O trabalho da Es-cola é uma coisa muito importante pa-ra ser confiado a qualquer um que nãoesteja à altura. Quando necessário,deve-se intervir. Certamente, nemsempre é compensador depositar nos-sa confiança em pessoas imperfeitas;certamente, a advertência e o controleparecem mais eficazes. Mas, quandoconfiamos nas novas possibilidadesofertadas pela Gnosis, surpreendemo-nos com o poder que nos é outorgado:descobrimos a força construtiva doAmor. Não somos nós que amamos,pois como seria isso possível? É oAmor que atua através de nós, atravésde cada um de nós, de acordo comnossa aspiração, e que chama cada umde nós para a sua tarefa e a sua respon-sabilidade. É uma nova energia queeclode em cada um como paciência,amor e compreensão. Ela purifica, en-coraja e retifica o comportamento,pois o despertar do átomo-centelha doespírito em cada um aumenta a sensi-bilidade e expande o campo da cons-ciência. Em uma Escola Espiritual co-mo a do Lectorium Rosicrucianum, oimportante não é a confiança em umapersonalidade imperfeita, mas a con-fiança na energia perfeita da Gnosis.

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O Todo-poderoso não imputa ao homem nem o bem

nem o mal. É o obscurecimento do entendimento pelo não

saber que lança as criaturas no extravio. Porém, aquele em

quem o conhecimento mediante a alma repele o não-saber,

nele se ergue, como um sol, a mais elevada sabedoria.

(O Bhagavad Gita, O Cântico do Senhor. Em: A glória do amor, p.7)