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Experiências de construção de canais participativos institucionalizados no Brasil: o Caso do ConCidade em Caruaru Contextualizando indagações em torno da cooperação governo-sociedade A emergência de experiências de construção de espaços públicos, como conselhos, consórcios, fóruns, câmaras setoriais, grupos- tarefa, orçamentos participativos etc., tem sido alvo crescente de indagações (CÔRTES, 2005; MISOCZKY, 2002; DAGNINO, 2002) não apenas quanto aos impactos sobre a autonomia estatal e modelos de gestão pública, mas como parte de um amplo processo de mudança sociopolítica, ligado à percepção de que avanços anteriores em termos de cooperação governo-sociedade deveriam ser fortalecidos por uma maior participação popular. A ideia de uma sociedade policêntrica rompe com a concepção tradicional do Estado como centro de representação, planejamento e execução da ação pública, o que pressupõe a impossibilidade de sua atuação isolada frente a um cenário de diferenciação social mais complexo e problemático (TEIXEIRA, 2002). Diante de uma nova geografia do poder (SASSEN, 1996), uma nova constelação de governança urbana tem sido articulada por meio da proliferação de redes, arranjos institucionais, objetivos e prioridades políticas diversas (SWYNGEDOUW, 2010). A tendência à maior participação social estaria baseada na necessidade de ampliar a abrangência de ações do Estado frente às 1

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Experiências de construção de canais participativos institucionalizados no Brasil: o Caso do ConCidade em Caruaru

Contextualizando indagações em torno da cooperação governo-sociedade

A emergência de experiências de construção de espaços públicos, como conselhos,

consórcios, fóruns, câmaras setoriais, grupos-tarefa, orçamentos participativos etc., tem sido

alvo crescente de indagações (CÔRTES, 2005; MISOCZKY, 2002; DAGNINO, 2002) não

apenas quanto aos impactos sobre a autonomia estatal e modelos de gestão pública, mas

como parte de um amplo processo de mudança sociopolítica, ligado à percepção de que

avanços anteriores em termos de cooperação governo-sociedade deveriam ser fortalecidos

por uma maior participação popular.

A ideia de uma sociedade policêntrica rompe com a concepção tradicional do Estado

como centro de representação, planejamento e execução da ação pública, o que pressupõe

a impossibilidade de sua atuação isolada frente a um cenário de diferenciação social mais

complexo e problemático (TEIXEIRA, 2002). Diante de uma nova geografia do poder

(SASSEN, 1996), uma nova constelação de governança urbana tem sido articulada por meio

da proliferação de redes, arranjos institucionais, objetivos e prioridades políticas diversas

(SWYNGEDOUW, 2010).

A tendência à maior participação social estaria baseada na necessidade de ampliar a

abrangência de ações do Estado frente às complexidades e diversidade inerentes aos

assuntos públicos, viabilizando maneiras mais flexíveis e dinâmicas de lidar com as

demandas, numa lógica de descentralização e setorialização das políticas públicas

(TEIXEIRA, 2002). As estruturas de governo tradicionais seriam insuficientes ou incapazes

de incorporar as redes político-administrativas, informais e compostas pela multiplicidade de

atores que marca o ambiente político-administrativo nas sociedades complexas (FREY,

2012; CÔRTES, 2005).

No âmbito da governança urbana, nas novas formas e práticas de participação, a

interação governo-sociedade é permeada por conflitos não redutíveis às diferenças entre

lógicas de atuação ligadas a aspectos estruturais, mas a um confronto entre projetos

políticos no espaço público que merece ser explorado. Neste cenário, variados atores se

mobilizam a partir de conjuntos diferentes de significados e objetivos em um cenário

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dinâmico e fluido de interações políticas, sociais e econômicas que questionam o papel do

‘lugar’ nos processos políticos e sociais (BRINGEL, 2007).

Embora estilos concorrentes de governança urbana ainda ofereçam uma

diferenciação, a regeneração urbana tem sido cada vez mais enquadrada em uma

linguagem comum e consensual de criatividade competitiva, flexibilidade, eficiência,

empreendedorismo estatal, parcerias estratégicas e vantagens colaborativas

(SWYNGEDOUW, 2007). Destacam-se projetos empreendedores que modificam a

paisagem urbana numa tentativa de adequar o tecido urbano às aspirações de uma agenda

global de inserção competitiva nos moldes neoliberais (COMPANS, 2005) segundo uma

lógica de governança ‘glocal’ (SWYNGEDOUW, 2010).

De estádios e obras de reestruturação urbana ligados a megaeventos esportivos

(e.g., Copa das Confederações 2013, Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016), a projetos

locais, como o Projeto Novo Recife (no Cais José Estelita, em Recife-PE) encontramos

vários exemplos dessa tendência. Lemos (2004) aponta, ainda, a forte relação da cidade

atual com as redes telemáticas, como cidade ciborgue que reflete a dimensão local na

produção de um projeto de cultura global.

A experiência do Orçamento Participativo (OP), que surgiu em 1989 em Porto

Alegre-RS, tem sido referenciada como canal para reinvindicações sobre equipamentos

urbanos e políticas sociais, permitindo à população influenciar o orçamento municipal. Além

do Estatuto das Cidades (nº 10.257/2001) e Lei de Responsabilidade Fiscal (nº 101/2000),

os quais também contribuíram à institucionalização da participação na gestão pública, há o

Conselho das Cidades, criado em 2004 e vinculado ao Ministério das Cidades para elaborar,

implantar e fiscalizar a política de desenvolvimento urbano. A Política Nacional de

Participação Social (PNPS), instituída via Decreto nº 8.243 (23/05/14) para consolidar a

participação social como método de governo1, implementa o Sistema Nacional de

Participação Social (SNPS) para articular em rede as diferentes instâncias e mecanismos

participativos2.

Amplia-se a articulação dos instrumentos de participação existentes com as novas

formas e linguagens, em especial a digital. Além da PNPS, que reconhece as formas de

participação em redes digitais, o Governo eletrônico (e-gov ou e-governo) usa as

tecnologias digitais em processos decisórios e de comunicação, implantação de políticas

governamentais e avaliação de resultados. O Gabinete Digital (GD), implantado em 2011 no

Rio Grande do Sul (e em Caruaru-PE, desde 2013), se apresenta como “canal de diálogo

entre a gestão e a sociedade vinculada (...)” (GABINETE DIGITAL, 2014). Entre as 1 Parlamentares apresentaram o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 1.491/2014, na Câmara, e o Projeto de Lei do Senado (PDS) nº 117/2014, com o objetivo de sustar o decreto da PNPS.2 Entre os espaços de participação na Administração Pública Federal, destacam-se: conselhos de política pública; conferências de políticas públicas; ouvidoria pública; audiências públicas; consultas públicas; grupos de trabalho; reuniões; mesas de negociação ou diálogo; PPA (Plano Plurianual) participativo.

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consultas públicas online, destaca-se o debate sobre o Marco Civil da Internet no Brasil

(2014), promovido pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. No

Orçamento Participativo Digital3 (OPD), a estratégia complementa o OP tradicional, para

reduzir custos da participação e ampliá-la de modo mais ágil (AGGIO; SAMPAIO, 2013).

Relevante ainda é o papel da dinâmica espontânea de participação por coletivos que

se mobilizam via tecnologias de função pós-massiva (LEMOS, 2004) para ocupar a cidade.

Observamos essa dinâmica nas recentes manifestações organizadas pela rede (e.g.,

Primavera Árabe, Outono Europeu, o movimento Occupy Wall Street, Jornadas de Junho no

Brasil em 2013). Essa tendência também se verifica em formas micropolíticas de ação,

como o Movimento Ocupe Estelita, ocupação desde 2011 pela negociação sobre o uso do

Cais José Estelita no Projeto Novo Recife, e a Massa Crítica, movimento pró-bicicleta onde

ciclistas reivindicam seu espaço nas ruas.

O direito à cidade (LEFEBVRE, 1974) como prática para reivindicar direitos e se

apropriar de espaços da cidade ecoa fortemente hoje. Os desafios da pobreza,

fragmentação urbana e segregação social, deterioração do meio ambiente, baixa mobilidade

urbana e ameaças à qualidade de vida, aumento da criminalidade, déficits habitacionais,

distribuição desigual da infraestrutura urbana, entre outros, ampliam a complexidade do

governo articular a ação pública. Gehl (2013) destaca a crescente demanda por qualidade

de vida urbana, exemplificada no aumento recente da preocupação com pedestres, ciclistas

e com a vida na cidade em geral, sendo que a visão de cidades vivas, seguras, sustentáveis

e saudáveis tem se tornado um desejo universal e urgente.

Os governos locais se veem, pois, confrontados com a necessidade de contemplar

também os riscos e oportunidades do macroambiente em acelerada transformação. Frey

(2007) aponta que o dilema do gestor urbano envolve criar condições para uma inserção

progressiva dos setores mais modernos e dinâmicos da cidade no mundo da economia

globalizada, bem como buscar meios e políticas capazes de reduzir os crescentes

problemas que afetam os setores sociais mais vulneráveis.

A novidade que representam espaços públicos mais flexíveis, interativos e

participativos estimula o exame do papel que desempenham diante de uma nova

urbanidade, sendo que neste trabalho assumimos como objetivo o de ampliar a

compreensão acerca das experiências de construção de canais participativos

institucionalizados no Brasil, ao descrevermos o arcabouço institucional que cria e

estabelece as regras básicas de funcionamento dos conselhos das cidades.

3 A Prefeitura de Caruaru/Secretaria de Participação Social lançou o OP Virtual em outubro de 2013.

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Atualizando problemáticas em torno da Urbanização e do Planejamento Urbano

A globalização tem representado grandes transformações tanto em termos de

organização territorial da atividade econômica, como do poder político-econômico,

contribuindo para uma nova geografia do poder (SASSEN, 1996). A ‘virada espacial’ que

tomou conta das Ciências Sociais tem lançado luz acerca das categorias ‘lugar’ e ‘espaço’

para além da Geografia, o que se deve em especial aos processos interligados de

urbanização e globalização (SCHMID, 2008).

Estudos urbanos ligados ao marxismo, em especial, têm problematizado o fenômeno

da urbanização a partir das interfaces entre urbanização e acumulação/ reprodução do

capital em formações históricas e geográficas concretas, apontando a reconstrução de uma

mudança epistemológica do ‘industrial’ para o ‘urbano’. O binômio taylorismo-fordismo,

expressão dominante do sistema produtivo e de seu processo de trabalho, vigorou na

grande indústria ao longo de praticamente todo o século XX. No decorrer do processo de

modernização, os princípios industriais de organização do tempo e do espaço no local de

trabalho extrapolam a “tríade industrial da fábrica/vila/cortiço dos trabalhadores” que

determina a cidade, para nivelar a estrutura de classe da cidade burguesa, dividida em

esferas urbanas e proletárias (PRIGGE, 2008, p. 55).

Novos métodos da arquitetura, gestão e planejamento urbano se combinam aos

modos de vida das massas metropolitanas, para quem estes métodos já se tornam um

hábito constante na sua vida profissional. No planejamento e controle da economia do

tempo que determina o funcionamento da vida cotidiana, a ‘empresa’ como ideia reguladora

do urbano encontra seu símbolo na máquina industrial, no motor e no automóvel (fordismo)

(PRIGGE, 2008). No Brasil, a institucionalização do planejamento urbano nas

administrações municipais se disseminou a partir da década de 70, assumindo como missão

a promoção do desenvolvimento integrado e equilíbrio das cidades em um contexto de

explosão do processo de urbanização (CIDADES, 2002).

A partir da década de 1970, a crise do padrão de acumulação taylorista-fordista

aflora como expressão de uma crise estrutural do capital que se estende até os dias atuais.

As mutações no mundo do trabalho, como flexibilidade de gerenciamento, individualização e

diversificação de relações de trabalho, descentralização de empresas e sua organização em

redes (CASTELLS, 1997), têm sido expressão da reorganização do capital, com vistas à

retomada do seu patamar de acumulação e dominação. Em sua fase avançada, o capital

deflagra transformações no processo produtivo, por meio das formas de acumulação flexível

(pós-fordista), novas tecnologias gerenciais, avanços tecnológicos, e modelos alternativos

ao binômio taylorismo-fordismo, a exemplo do toyotismo (ANTUNES, 2002).

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O pós-fordismo implica modos flexíveis e qualitativos de regular as relações sociais e

político-econômicas que são reestruturadas no arcabouço capitalista do espaço – cidades,

regiões e nações. No capitalismo avançado, o princípio ‘industrial’, que até então subjaz às

estruturas de poder e topologias sociais correspondentes, cede lugar à ‘urbanidade’ como

ideia reguladora do urbano (PRIGGE, 2008). Não mais o industrial e suas disciplinas com

foco em capital e trabalho, classes e reprodução constituem a episteme, mas o ‘urbano’ e

suas formas focadas em cotidiano e consumo, planejamento e espetáculo, assume

tendências relevantes de desenvolvimento social na segunda metade do século XX.

No século XXI, a cidade-ciborgue é preenchida e complementada por redes

telemáticas e suas tecnologias (internet fixa, wireless, celular, satélites etc.), somadas às

redes de transporte, energia, saneamento, iluminação e comunicação (LEMOS, 2004). Os

territórios informacionais, que se expandem e permitem mobilidade informacional acoplada a

uma mobilidade pelo espaço urbano, representam novas formas de controle e vigilância que

compreendem áreas de controle do fluxo informacional digital numa zona de intersecção

entre ciberespaço e espaço urbano (LEMOS, 2009). Os espaços tecnológicos de

robotização e informatização se sobrepõem a condições de trabalho e de vida; a engenharia

genética avança em suas conquistas da corporeidade biológica; os espaços de imagem

semiológicos impactam a cultura hermenêutica do mundo escrito; os aparatos de

inteligência artificial produzem hiperespaços de experiência (PRIGGE, 2008), em suma, uma

espacialidade imaterial que não pode ser simbolizada por representações convencionais.

Observamos como o domínio das práticas espaciais se transforma e torna

problemática qualquer definição fixa quanto ao ‘urbano’ como domínio espacial distintivo.

Ainda assim é possível compreender que o ‘urbano’ não se limita às fronteiras da cidade,

mas inclui o seu sistema social de produção (LEFEBVRE, 1974), sendo que o direito à

cidade seria uma demanda pelo reconhecimento do ‘urbano’ como (re)produtor das relações

sociais de poder, e o direito à participação no mesmo (GILBERT; DIKEÇ, 2008).

Refletindo acerca da interface Governança urbana e Participação O papel da cidade como comunidade política que reflete a sociedade urbana e suas

relações sociais de produção e poder (GILBERT; DIKEÇ, 2008), isto é, a condição política

da cidade, tem sido palco de importantes transformações. Em contraposição à concepção

tradicional da polis grega, de algo política e espacialmente isonômico, como modelo de

cidade política, Giorgio Agamben (EK, 2006) problematiza a evolução de um tecido urbano

carregado de heterogeneidade espacial e política; um traço evidente seria a passagem do

modelo da polis fundada sobre uma ágora, a uma nova espacialização metropolitana em

que ocorre um processo crescente de ‘des-politização’.

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As noções de direito à cidade e à cidadania urbana conotam um sentimento de

engajamento na esfera pública e urbana; assim, a cidadania seria adquirida por meio da

participação pública (GILBERT; DIKEÇ, 2008). O histórico da construção de canais

participativos em diversas áreas de políticas públicas no Brasil remonta à década de 1970

como período de referência na oposição ao Estado autoritário. O retorno da vigência de

instituições democráticas formais básicas, com seu marco na promulgação da Constituição

Federal (CF) de 1988, abriu caminho a uma crescente diversificação de atores e projetos

políticos em disputa, refletindo no aumento do associativismo e emergência dos movimentos

sociais (DAGNINO, 2002). Expõe-se a necessidade de participação da sociedade

(trabalhadores, aposentados, empregadores, comunidade, sociedade civil e usuários) na

gestão e controle de políticas sociais, em órgãos gestores e consultivos em diversas áreas

segundo a legislação que complementa as disposições constitucionais e a normatização

gerada por organismos federais responsáveis pela implementação de políticas públicas

(CÔRTES, 2005). A ideia de ‘compartilhamento’ de um projeto político participativo e

democratizante revelaria aí uma coincidência de propósitos entre Estado e sociedade civil

(DAGNINO, 2002).

Consolidado ao longo da década de 1990, o processo de descentralização política é

marcado pela redistribuição das responsabilidades formais do Estado, ampliando as

condições de atuação e participação, sobretudo para a esfera local (i.e., município). Dagnino

(2002) alerta que esse movimento, no contexto de Reforma do Estado brasileiro, representa

uma ‘complementaridade instrumental’ dos propósitos entre Estado e sociedade civil,

traçada como meio para o Estado implementar o ajuste neoliberal que encolhe suas

responsabilidades sociais, em especial seu papel de garantidor de direitos (DAGNINO,

2002).

A literatura sobre gestão pública vem destacando o tema da governança

(governance) salientando as “novas tendências de administração pública e de gestão de

políticas públicas, sobretudo a necessidade de mobilizar todo o conhecimento disponível na

sociedade em benefício da melhoria da performance administrativa e da democratização

dos processos decisórios locais” (FREY, 2007, p. 138), numa gestão compartilhada e

interinstitucional envolvendo setor público, setor produtivo e organizações da sociedade civil.

Para Frey (2007), no Brasil o debate acerca da gestão urbana havia sido caracterizado,

desde início dos anos 90, pela contraposição entre os modelos gerencial e democrático-

participativo, mas atualmente os conceitos de governança urbana e gestão em rede revelam

maior potencial à compreensão da gestão urbana na sociedade em rede.

Para Swyngedouw (2007), por sua vez, a nova agenda urbana reflete um foco de

política direcionada à promoção do crescimento econômico e competitividade,

empreendedorismo e criatividade. O autor problematiza que, quanto à participação social, a

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dimensão política tende a ser bloqueada por abordagens e procedimentos gerenciais,

tecnocráticos, dirigido por especialistas e voltados ao consenso. Enquanto o

desentendimento ou desacordo é permitido, ele ocorreria quanto a questões tais como

escolha de tecnologias, mix de aspectos organizacionais, detalhes quanto a questões

gerenciais, prazos e implementação, mas não propriamente quanto ao (re)enquadramento

sociopolítico para possibilidades urbanas futuras (SWYNGEDOUW, 2007; 2010).

De acordo com Dagnino (2002), no Brasil pós-1990, constrói-se um campo marcado

por uma “confluência perversa” (p. 280) entre um projeto participativo, construído desde a

década de 1980 em torno da extensão da cidadania e aprofundamento da democracia, e o

projeto de um Estado mínimo que se isenta de seu papel garantidor de direitos. A

perversidade residiria em que, apontando para direções opostas, ambos os projetos

requerem uma sociedade ativa e propositiva.

Apesar de controverso, a perspectiva de fortalecimento de novos espaços governo-

sociedade segundo uma gestão participativa é respaldada pela consolidação do Estado

Democrático de Direito no Brasil, sendo que novos desenhos institucionais se formaram a

partir dos princípios normativo-legais prescritos na CF. Os conselhos, objeto de estudo

deste trabalho, institucionalizaram-se como mecanismos para legitimar a participação de

cidadãos para o controle social nas diversas esferas da ação do Estado. A seguir,

destacamos os procedimentos metodológicos adotados em nosso trabalho.

Explorando experiências de construção de canais participativos institucionalizados

Realizamos um estudo exploratório de caráter qualitativo (MERRIAM, 1992) que

apontou, na tendência a processos de descentralização administrativa, para construção de

espaços participativos em diferentes níveis da Administração Pública, em especial o

municipal, que tem participado mais de decisões sobre políticas públicas. Consideramos os

conselhos municipais, disseminados pelo país e pelas diversas áreas de políticas públicas;

eles são fóruns institucionalizados, em que a organização dos atores se dá em torno de

temas de interesse comum, com controle social sobre a gestão, oportunidade para debate e

decisões (CÔRTES, 2005).

Para o estudo de caso (STAKE, 1994), consideramos o potencial do objeto de estudo

de ampliar nossa compreensão acerca da participação social como método de governo, em

especial via conselhos. Nosso caso de estudo foi o Conselho Municipal da Cidade ou

ConCidade em Caruaru. Destacamos a demanda por reestruturação urbana, em especial a

exigência legal pela revisão do Plano Diretor do município. Dados foram coletados via

levantamento documental, realização de entrevista com o Secretário de Participação Social

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de Caruaru (em 2014) e observação participante (Reunião Ordinária do ConCidade), para

construção de um corpus linguístico (SINCLAIR, 1991), reunindo 34 documentos:

entrevistas (com conselheiros) postadas em sites (02); reportagens (05); postagens em

blogs amplamente acessados (10); site da Prefeitura de Caruaru e Gabinete Digital (08);

atas de Reuniões Ordinárias do ConCidade (05); Regimento Interno (01); estatutos, leis e

decretos (03).

Técnicas de análise de conteúdo (BARDIN, 1977) foram usadas como

procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo voltados à inferência de

conhecimentos acerca das dimensões: conselho como modelo de gestão; desenho e

características institucionais; normas de participação; planejamento estratégico; demandas

sociais.

Observando o Caso do Concidade em Caruaru O Conselho como modelo de gestão do interesse público: contextualização

Os atuais desafios de se conceber, no âmbito da gestão pública, cidades com

vitalidade, segurança, sustentabilidade e saúde (GEHL, 2013) estão diretamente associados

à dimensão da política urbana. A tendência autoritária da Administração Pública vem sendo

suplantada por novos modelos de gestão do interesse público, em que o papel do cidadão é

valorizado como colaborador, co-gestor, prestador e fiscalizador das atividades do governo

(CIDADES, 2002).

Como meio de gestão do interesse público, os ‘conselhos’ seriam, na visão de

Hannah Arendt, o único meio possível de um governo horizontal, pautado na participação e

na cidadania (GOHN, 2002). No Brasil, essa lógica de participação social na gestão da coisa

pública tem sido evidenciada, desde a década de 1970, nos conselhos comunitários atuando

junto à administração municipal, nos conselhos populares e nos conselhos gestores

institucionalizados. Nos anos 1990, em especial, os conselhos gestores, de caráter

interinstitucional (órgãos administrativos colegiados, com representantes da sociedade e do

Poder Público), ganham respaldo (GOHN, 2002) à medida que a CF de 1988 cria a base

institucional-legal dos conselhos em seu formato atual.

A CF incluiu um capítulo específico para a política urbana, que previa uma série de

instrumentos para garantia, em cada município, do direito à cidade, da defesa da função

social da cidade e da propriedade e da democratização da gestão urbana (Arts. 182 e 183).

O Projeto de Lei (PL) complementar a esse capítulo (PL 5.788/90), que ficou conhecido

como o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10/07/2001), junto com a Medida Provisória nº

2.220/01, oferecem as diretrizes para a política urbana do país (CIDADES, 2002). Ainda, o

Ministério das Cidades foi criado em 2003 para articular sociedade e poder público,

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acompanhando debates que voltados à transformação das cidades em ambientes saudáveis

e produtivos para os cidadãos. A gestão democrática via participação da população e de

associações representativas dos vários segmentos da comunidade é prevista no Estatuto da

Cidade para formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de

desenvolvimento urbano (Art. 2º).

Os tipos dos conselhos no Brasil variam de acordo com sua vinculação a programas

do governo ou a elaboração e implantação de controle de políticas públicas. Existem, ainda,

os Conselhos temáticos (e.g., direitos humanos, violência, meio ambiente etc.), cujo formato

pode variar (SUMIYA; CAMPOS, 2004), bem como sua frequência. Em 2012, por exemplo,

apenas 6,4% das cidades possuíam Conselho Municipal de Transporte (O GLOBO, 2014).

Além de outros instrumentos (debates, audiências, consultas públicas, conferências,

iniciativa popular), os conselhos estão previstos no Estatuto da Cidade para garantir a

gestão democrática da cidade. Em Caruaru, a criação do Conselho Municipal da Cidade,

doravante ConCidade, foi pauta da Conferência Municipal das Cidades, realizada em maio

de 2013 em Caruaru com o tema ‘Quem muda a cidade somos nós: Reforma urbana já’.

Caruaru é um dos municípios mais populosos de Pernambuco, localizado na região do

Agreste. Tem 337.416 habitantes, que vivem numa área de 921 km2; sua taxa de

urbanização já era de 88,78% em 2010, com PIB (Produto Interno Bruto) de 3.407.458 (em

mil reais) no ano de 2011, 10.662 reais de PIB per capita e 3,26% de participação do

município no PIB do Estado (CONDEPE/FIDEM, 2013).

Desenho e características institucionais do ConCidade – CaruaruO Regimento Interno do ConCidade foi oficializado em 11 de março de 2014 (via

Decreto nº 49, 23/05/2013), que é a representação da sociedade civil e do poder público

para debater o desenvolvimento do município, com caráter consultivo, normativo,

deliberativo e fiscalizador, vinculado a Empresa de Urbanização e Planejamento de Caruaru

(URB). Pelo Artigo 2º de seu Regimento, a finalidade do ConCidade consiste em formular,

estudar e propor diretrizes para implementar políticas municipais de desenvolvimento

urbano, com participação social para integração das políticas de planejamento,

ordenamento territorial e gestão do solo urbano, de habitação, saneamento ambiental,

mobilidade e transporte urbano, em consonância com os artigos nºs 182 e 183 da CF, do da

Lei nº 10.257 (de 10/07/2001 - Estatuto da Cidade) e com a Lei Complementar 005/2004

(Lei do Plano Diretor de Desenvolvimento Territorial de Caruaru).

As reuniões ordinárias do conselho (mensais, e extraordinariamente quando

necessário) devem dar visibilidade às ações do governo e permitir maior controle social e

acesso a informação para a população (JCENEWS/ PMC, 2014). A composição do

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conselho, com periodicidade de 02 anos, é de: 03 representantes do Poder Executivo, 02

do Legislativo, 03 de movimentos sociais, 01 de entidades sindicais, 01 de entidades

empresariais, 01 de entidade acadêmica, e 02 representantes de organizações não

governamentais (Arts. 6º e 8º, Dec. nº 49, 23/05/2013).

Nas duas últimas décadas, o caráter da expansão de mecanismos participativos dá

relevância ao papel de múltiplos atores no trato e resolução de problemas urbanos. O

governo do espaço urbano opera hoje por uma gama de escalas geográficas, mobilizando

atores desde agentes privados, designers, arquitetos, e planejadores, organizações não

governamentais, comunidades e atores da sociedade civil, corporações, até as formas

tradicionais de governo local, regional ou nacional (SWYNGEDOUW, 2010). A instituição

dos Conselhos tem o potencial institucional de inserir limitações ao poder do Executivo municipal na gestão da política local e ampliar o número de atores na tomada de decisão

(SUMIYA; CAMPOS, 2004). Para os autores, as características dos Conselhos que diluem o

Poder do Executivo incluem: ser uma instância colegiada interna, ter caráter deliberativo,

caráter paritário, ser uma entidade com representação garantida em lei, a possibilidade de

fiscalizar recursos, a impossibilidade do Executivo se negar a nomear os escolhidos pela

sociedade civil, caráter autônomo, e colaboração do Ministério Público.

A Diretoria do ConCidade é composta por Presidente, Vice-Presidente, Plenário,

Secretaria Executiva e Comitês Técnicos (Art. 8º). No âmbito do planejamento urbano,

verifica-se o destaque ao papel dos comitês técnicos, compostos por conselheiros

titulares e/ou suplentes, para subsidiar o debate em plenário (Art. 30º, idem), mas

estudiosos e colaboradores podem ser convidados às reuniões (Art. 32º); a frequência de

arquitetos e urbanistas às reuniões ilustra esse apoio.

Há um Termo de Referência, apresentado por arquitetos e urbanistas, técnicos da

Empresa de Urbanização e Planejamento de Caruaru (URB) e profissionais da cidade,

apreciado e revisado pelos conselheiros, com a finalidade de nortear os trabalhos de uma

Consultoria privada a ser contratada para realizar o diagnóstico e levantamentos

necessários à revisão do Plano Diretor e Plano de Mobilidade da cidade (ver seção 4.4).

Contudo, pode-se observar potenciais obstáculos à participação popular, e a necessidade de capacitação e compreensão da linguagem técnica de planejamento urbano (e.g., Leis

de Outorga, Códigos de obra e Meio Ambiente, Lei de Mobilidade Urbana, base cartográfica,

Estatutos etc.), para evitar um tecnicismo excludente:

“Ainda na reunião, foi solicitada a possibilidade de uma

apresentação técnica para tirar dúvidas sobre a política urbana

da cidade e sobre a contratação da consultoria responsável

pela elaboração do plano. Além disso, foi pedido que a atual

legislação urbana seja apresentada aos vereadores, antes do

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início das plenárias públicas” (Site Prefeitura de Caruaru,

21/08/14).

“... foi proposto (...) que seja iniciado o debate do grupo de

trabalho para capacitação de política urbana de Caruaru,

incluindo um aprofundamento sobre as legislações urbanísticas

que envolvem o Plano Diretor. Inicialmente, esse trabalho será

voltado para os conselheiros, mas o ConCidade também

planeja ampliar essa agenda para associações de bairro e

delegados do Orçamento Participativo” (Site Prefeitura

Caruaru, 11/09/14).

“S.[conselheiro] considera importante que os textos produzidos

pelas câmaras [técnicas] sejam disponibilizados à população. A

propósito, P. teria visto no blog do M.R. que este estaria

criticando a iniciativa do Plano Diretor que estaria acontecendo

sem participação” (Ata reunião Julho 2014)

Alguns aspectos dos Conselhos tendem a concentrar o Poder do Executivo, como a

necessidade de homologação das deliberações pelo Chefe do Executivo, a livre indicação

dos integrantes do governo, o controle de recursos para despesas administrativas do

Conselho, e sua lei de criação é de iniciativa do Chefe do Executivo (SUMIYA; CAMPOS,

2004). No caso do ConCidade, destaca-se a necessidade do Poder público ampliar a

divulgação das ações do conselho e de seu papel junto à população.

Lógica de participação no ConCidade: aspectos-chaveO ConCidade se destaca como mecanismo de valorização da participação pública

enquanto estratégia gerencial, e suas reuniões são abertas à população. No debate acerca

da lógica democrática participativa versus representativa, quanto à expansão dos potenciais

participantes nas decisões, a ampliação da participação popular continua a ser o aumento

da parcela da população que representará os interesses dos que estão sendo

representados, expandindo-se o número de cidadãos aptos a participar do processo

(SUMIYA; CAMPOS, 2004). Decorre daí a preocupação de conselheiros quanto à ampliação

da base representativa via engajamento popular:

“Nosso objetivo é dialogar com a população a partir de

propostas construtivas e, no que se refere à discussão da

revisão do Plano Diretor, definir um calendário de plenárias em

que a população possa participar ativamente desse processo”

(Presidente ConCidade, Outubro, 2014).

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Discute-se que, “seja pela necessidade de maximizar recursos financeiros [por

exemplo, via repasse do Governo Federal] e sociais, seja pela necessidade de apresentar

respostas às crescentes demandas do setor produtivo e dos setores sociais mais

empobrecidos, estratégias de articulação das potencialidades e dos atores locais, de forma

partilhada em rede” têm se ampliado muito (FREY, 2007, p.139). Ainda, a realização de

plenárias pelos conselhos das cidades junto à população é pré-condição para a validação do Plano Diretor junto ao Ministério das Cidades (CIDADES, 2002).

Além de ser, em Caruaru, a primeira vez que o Poder Executivo busca discutir junto

à população seu Plano Diretor, e a cidade poder contar com uma Secretaria de Participação

Social desde 2012, que tem assumido papel importante no diálogo com a população, ainda

há desafios associados à cultura política da localidade, conforme observamos a partir

dos trechos a seguir:

“Desde a criação do ConCidade e da aprovação de seu

Regimento Interno, as tentativas são de se fazerem observadas

a natureza e a eficácia das suas atribuições, cumprindo-se as

disposições dos Decretos nºs 49/2013 e 28/2014. E não está

fácil em função de algumas ausências, tanto dos

representantes do Poder Público, como da sociedade civil, que

não está organizada, infelizmente. (...) dependerá da

participação e mobilização da sociedade caruaruense se será

dada a transparência ativa e a publicidade para esse novo

processo de elaboração de um plano diretor com um plano de

mobilidade” (Conselheiro ConCidade, Agosto, 2014).

“Participação social e popular não se dá por Decreto (...) O fato

de você formalizar uma Secretaria não significaria que a partir

daí a realidade da cidade tenha mudado. Exercitar a

participação e exercitar relações coletivas, seja no governo seja

na sociedade, demandam tempo e mudança de postura e de

cultura. Nossa cultura ainda é muito ligada ao individualismo”

(Secretário de Participação Social, Dezembro, 2014).

Observa-se, ainda, que diversas propostas são encaminhadas ao ConCidade por

meio das demandas do Orçamento Participativo (OP), desenvolvido pela Secretaria de

Participação Social, numa tendência à integração entre conselhos (como o OP,

ConCidade, Comut, Condema etc.) para conceber o planejamento urbano, conforme trechos

destacados a seguir.

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“As diversas discussões do OP são importantes também no

ConCidade, como é o caso da proposta de revitalização das

áreas verdes de Caruaru, que teve como prioridade o Bairro

Luiz Gonzaga, mas que foi entendida pelo Conselho do OP

como fator importante pra todo o município” (Secretário de

Participação Social, Agosto, 2014).

“Estamos acompanhando atentamente as discussões sobre a

política urbana do município e, desde já, nos colocamos à

disposição de exercitar a experiência na realização de

plenárias públicas, pois fizemos isso nas plenárias do

Orçamento Participativo ano passado" (Secretário de

Participação Social, Setembro, 2014).

Membros do ConCidade sugerem a integração da proposta do ConCidade contida no

Termo de Referência com o modelo adotado pela Secretaria de Participação Social, a qual

subdivide a zona urbana em cinco regiões e a zona rural em quatro regiões, compondo um

número mínimo de nove plenárias participativas (Ata Reunião, setembro de 2014).

Planejamento Estratégico no ConCidadeA articulação da política urbana municipal é feita a partir do Plano Diretor, sendo

que a CF de 1988 define como obrigatórios os Planos Diretores para cidades com

população acima de 20.000 habitantes. O Estatuto da Cidade reafirma essa diretriz,

estabelecendo o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento e

expansão urbana (Arts. 39 e 40), e obrigatório para a aplicação dos instrumentos previstos

no capítulo de Reforma Urbana da Constituição de 1988, inclusive pelo repasse de recursos.

O Plano Diretor organiza políticas de ordenação do território, controle do uso do solo,

transporte, mobilidade, participação comunitária, contribuição social e regularização

fundiária, possibilitando a implantação de políticas fiscais, econômicas e administrativas

voltadas para o desenvolvimento urbano (CIDADES, 2002).

A criação do ConCidade esteve fortemente vinculada à demanda pela revisão do Plano Diretor de Caruaru (Lei Complementar 005/2004), a qual deve ser feita a cada dez

anos:

“Esse processo não será impositivo, vamos estudar propostas

a fim de contratar uma empresa que revise tecnicamente o

plano e chegar a um modelo que seja consenso para a

população. O principal motivo disso é nortear o

desenvolvimento municipal para os próximos 10, até 15 anos.

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Mas tudo isso terá participação, através do conselho,

representando a sociedade” (Secretário de Planejamento e

Gestão, Abril, 2014).

O Plano Diretor em geral é visto como instrumento central de (re)ordenamento

urbanístico, sendo que a sua baixa adoção no Brasil pode explicar a falta de planejamento

de muitas cidades. Dados de 5.570 prefeituras do Brasil para a Pesquisa de Informações

Básicas Municipais (Munic) de 2013, do IBGE, mostram que 47,8% das cidades tinham

Plano Diretor em 2013; em 2005, eram 14,5% (O GLOBO, 2014). Dos municípios que são

obrigados a ter Plano Diretor, 76,6% tinham. Dos 47,8% de cidades, apenas 13,7% tinham

aplicado o plano; nos demais 34,1%, ele não havia saído do papel (ANTP, 2014). Essa

preocupação também aparece entre cidadãos de Caruaru:

“Vejamos as calçadas da cidade, as ruas, as praças. Será que

estes espaços públicos precisam de um plano para servirem à

população? Precisa mais é vontade mesmo do poder público

agir, ao invés de pensar e empurrar pro futuro um documento

de alegorias que deverá custar uma fortuna” (Internauta,

Agosto, 2014).

O Plano de Mobilidade Urbana integra o Plano Diretor e deve ser atender as

diretrizes previstas na Lei nº 12.587/2012, que trata de trânsito, transporte, acessibilidade,

locomoção da população e da logística de circulação de bens e serviços na cidade. Como

se trata de instrumento estratégico, o ConCidade demonstra preocupação em se preparar

para construção do plano:

“Torcemos para que não se chegue à ‘verdade inconveniente’

de que não era nada disso o que se queria para o futuro de

Caruaru, como fora no plano de 2004. E não dá para esperar

mais dez anos para corrigir os erros. E não se devem errar os

mesmos erros. Podemos até aprender errando erros diferentes,

mas com cada vez mais vontade de acertar!” (Conselheiro,

ConCidade, Agosto, 2014)

No âmbito das reuniões, é possível observar a preocupação com a capacitação – via

comitês técnicos - para que se possa evitar a mera submissão à Consultoria (empresa

especializada) a ser contratada para elaborar o plano. Conselheiros destacam a importância

de “entrar no ritmo deles, ter condições de discutir com eles”, “ para que a Consultoria não

venha nos vender um produto que a gente não quer” (Reunião Ordinária, Dezembro 2014),

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e o cuidado para gerar um instrumento atual, conforme aparece na fala da Presidência: “tem

que acontecer pra valer, sem Ctrl C Ctrl V” (idem).

Demandas sociais no âmbito do ConCidadePor meio da análise das atas das reuniões ordinárias do ConCidade em 2014

(Reuniões realizadas no período de junho a novembro de 2014), mapeamos os principais

problemas e demandas sociais apresentados ao conselho.

Os principais problemas destacados incluíram: Ocupações irregulares; Riscos da

implantação do Porto Digital em edifício público da antiga sede da Fábrica Caruá; Não

conclusão de sistemas de esgotamento de loteamentos e conjuntos de casas populares;

Riscos de implantação de postos de combustíveis em áreas residenciais; Poluição sonora;

Invasão de áreas verdes; Instalação irregular de indústrias em bairros residenciais; Despejo

de resíduos sólidos e metralhas; Problemas decorrentes de eventos naturais (enchente do

Rio Ipojuca); Crescimento imobiliário desordenado; Demanda para água maior que o

previsto (para os grandes empreendimentos imobiliários); Prejuízos a empresas e usuários

do transporte público decorrentes do modelo de habitação; Ausência de informações quanto

aos impactos previstos pela transferência da Feira da Sulanca; Problemas ligados à

implantação de 2.400 habitações pelo Programa Minha Casa Minha Vida no Alto do Moura

(iniciada recentemente); Não conclusão de obras de pavimentação e saneamento no Alto do

Moura; Problemas decorrentes da ampliação do Parque das Baraúnas;

Quanto às diversas demandas sociais apresentadas, tem-se: Engajamento da

população na revisão do Plano Diretor; Transparência e divulgação das ações do

ConCidade e esclarecimento de seu papel; Capacitação técnica para rediscussão do

planejamento urbano local; Delimitação de áreas no âmbito de Lei de Urbanização

Específica; Mobilidade e acessibilidade a bairros (sobretudo calçadas e pavimentação);

Proximidade casa-trabalho e qualidade de vida das pessoas; Ciclofaixa e Rua de Lazer em

Caruaru; Áreas verdes da cidade; Construção de equipamentos comunitários (creches,

escolas, postos de saúde, etc.) próximos aos conjuntos habitacionais; PLIS (Plano de

Habitação de Interesse Social); Preservação do patrimônio histórico da cidade; Inclusão da

zona rural no debate do processo de revisão do Plano Diretor; e Agricultura orgânica.

Tecendo considerações críticasNeste artigo contemplamos, entre os mecanismos de valorização da participação

pública como estratégia gerencial, a lógica de fortalecimento do controle social e

democratização do planejamento urbano via conselhos das cidades, no contexto dos

desafios ligados à política urbana e cultura política das localidades. Observamos a

crescente ênfase dada à necessidade de interação entre diversos atores sociais na gestão

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do interesse público. Como discutimos, destacam-se demandas por maior qualidade de vida

urbana, sendo que a expansão de novas formas de governança urbana interativa sugere

uma tendência de adaptação das administrações municipais aos desafios e dinâmica da

sociedade atual.

No âmbito do planejamento estratégico, à medida que se reforça a importância e

necessidade dos comitês técnicos como meio para se evitar a submissão do interesse

público à lógica do mercado, observam-se potenciais obstáculos à participação popular, na

necessidade de capacitação e compreensão da linguagem técnica de planejamento urbano,

para se evitar um tecnicismo excludente. Já se apontam tendências voltadas a repensar

noções tecnocráticas, progressistas e puramente racionais de planejamento urbano face a

uma economia política globalizada. Tem-se alimentado um certo descrédito quanto a

ferramentas tradicionais de planejamento urbano moderno com viés puramente tecnicista.

Por um lado, a demanda pela revisão do Plano Diretor nos municípios reforça a

participação popular como pré-condição para sua aprovação. Por outro lado, na prática dos

Conselhos, tem-se o desafio de corrigir desequilíbrios entre as ofertas (pela via institucional-

legal) de canais de participação e aquelas relacionadas à formação, transparência e

provimento de informações aos cidadãos. Os desafios se ampliam quando consideramos

que durante muito tempo a participação de mulheres, grupos étnicos minoritários, pessoas

com deficiência, idosos e crianças foi mínima na esfera do planejamento urbano.

A noção de progresso se tornou, desde o século XIX, fortemente ligada às

racionalidades modernas do planejamento urbano, sendo que a importância deste como

caminho para realização do progresso tecnológico foi significativamente ampliada. Mas no

plano teórico há que se demandar uma sensibilidade crítica quanto à espacialidade da vida

social, sendo que uma crítica da modernidade pode emergir como caminho promissor a uma

reorientação crítica no âmbito da governança e planejamento urbanos.

Entendemos que esse esforço deve avançar numa revisão dos pressupostos de

sistemas técnico-racionais que legitimam sua atuação pela eficácia técnica. A crítica à lógica

hegemônica de planejamento e da governança urbana tende a suscitar, assim, uma

politização do espaço urbano. Consideramos que futuras esforços investigativos críticos são

válidos e urgentes nesse aprofundamento da relação entre inovação da interação entre

administração municipal e sociedade, e inovação na governança urbana.

Referências

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