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DA ESCOLA RURAL À ESCOLA URBANA: A PASSAGEM DA ESCOLA MISTA PARA O GRUPO ESCOLAR NO CONTEXTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA PAULISTA (1920-60)

Eliana Nunes da SilvaFaculdade de Educação/UNICAMP

[email protected]: Profª. Drª. Vera Lúcia Sabongi De Rossi

Palavras-chave: história da educação pública paulista; escola mista; democratização do ensino na República.

Introdução

Esta pesquisa, em andamento desde 2008, tem como finalidade, pela via da história da Escola Estadual Prof. Luiz Gonzaga da Costa analisar algumas das transformações ocorridas na educação pública paulista sob o ponto de vista de sua democratização, ou seja, quando o projeto educacional republicano desencadeou uma política de instrução para as massas, tendo como inspiração principal os preceitos do ideário iluminista de modernidade.

Nesse sentido, este estudo põe-se a refletir sobre a história de uma escola pública campineira e sua interação com a história da educação paulista, no decorrer do processo de expansão do ensino na República, em compasso com o desenvolvimento industrial e urbano ao longo do século XX.

A educação pública no município de Campinas - SP no início do século XX é marcada pela diferença entre o rural e o urbano, o que irá determinar o delineamento de duas realidades: os Grupos Escolares bem equipados de um lado, com notável estrutura pedagógica, e as Escolas Mistas de outro, marcadas pela simplicidade, improviso, com parca e ínfima estrutura. Tal dualidade nos leva a entender que a política e o discurso modernizador lançados nos anos 30 no Brasil consolidam na verdade projetos diferenciados para os grupos sociais, mostrando uma cidade dividida, cuja população trabalhadora de periferia não tinha a opção de se instruir de modo pleno, a não ser aceitando o mínimo oferecido pelo Estado.

Esta pesquisa põe em evidência a história de uma instituição escolar na periferia da cidade que existe há noventa anos, sendo patrimônio da comunidade, tirando-a do anonimato.

O problema que emergiu da pesquisa de campo, através de visitas semanais à escola no período de dois anos e da interação com os sujeitos, formulou-se pelas seguintes indagações: através da história local, tomando como referência a materialidade e a oralidade como fontes da pesquisa, em que medida a categoria cultura escolar possibilita compreender os processos idealizados de democratização do ensino - na passagem pela escola mista – reconstituindo a identidade desconhecida dessa história da educação paulista? No caso estudado, de que modo a modesta escola mista contribuiu para a difusão da educação pública estatal e a quais sujeitos sociais atendeu e beneficiou? (entendendo a educação como um bem social).

No ensejo de responder a essas questões os objetivos se formulam em:1) narrar a história de uma comunidade de imigrantes italianos (e outros) no advento da expansão cafeeira em Campinas, e sua apropriação da instrução formal como um elemento de valor social, cultural e simbólico no projeto familiar de integração e

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ascensão social (cujo reconhecimento identitário – ser cidadão – passa pelo crivo da educação);2) tecer as características da escola mista contextualizada nos anos 1930-40 através da história local, pelos testemunhos de ex-alunos e ex-professora que ainda vivem para narrar os fatos da experiência escolar do passado, assim como pelas fontes documentais diversas as quais possibilitam uma análise da cultura escolar dessa escola pública popular; (haja visto que havia nesse período a escola pública “de elite”)3) problematizar a expansão do ensino paulista entre as décadas de 1930-40, através do projeto educacional republicano, apontando as diferenças entre os Grupos Escolares urbanos e as Escolas Mistas rurais que co-existiam no mesmo município, trazendo elementos tanto do agrário como do urbano numa sociedade em transição.

Espera-se que, as reflexões tecidas neste trabalho contribuam com o reconhecimento da trajetória de luta social conduzida por seguimentos de imigrantes na cidade, no sentido de:

- valorizar as memórias das famílias e da comunidade atendida pela instituição educacional ao longo do século XX, através dos conhecimentos revelados nos seus testemunhos que informam a respeito das inúmeras fases da escola pública estatal;

- dar voz aos sujeitos anônimos e visibilidade às suas histórias de luta pela inserção social numa sociedade complexa e estratificada – destacando nesse caso a via educacional como forma legítima de assegurar a cidadania (ter os filhos instruídos pelo modo oficial/estatal).

Os nexos entre família, trabalho, religião, cultura e escola, (tomando como base de compreensão as dinâmicas migratórias) perfazem as análises dessa pesquisa sobre a história da educação popular paulista na primeira metade do século XX, assim como os contrastes decorrentes das políticas públicas e os mecanismos de poder, por um lado, e por outro o acesso e as oportunidades de ascensão social e educacional das classes populares empreendedoras no projeto de melhoria de vida.

Revisão bibliográfica

Cardoso e Jacomeli (2010), ao realizarem o “Estado da Arte acerca das escolas multisseriadas” perfazem a problematização a respeito da baixa produção científica referente às escolas multisseriadas (classes multisseriadas, classes unidocentes, escolas isoladas e escolas rurais). Ao fazerem um balanço de toda a produção acadêmica mais expressiva, as autoras apontam uma referência mínima do tema, cuja maioria dos trabalhos apenas citam casualmente a escola multisseriada.

Almeida (2005), no artigo “A Educação rural como processo civilizador” questiona: ‘Educação rural: uma história esquecida?’. Esta pesquisadora também problematiza que os estudos sobre a história da educação rural no Brasil constituem uma área de investigação que se situa na “marginalidade”. Citando o historiador português António Nóvoa, argumenta que a história da educação tende a legitimar alguns grupos e ignorar outros. As pesquisas educacionais deixam na sombra determinadas práticas e atores educativos, privilegiando as regiões urbanas e ignorando o meio rural. Também destaca-se o trabalho Silva (2004) “Ilhas de saber: prescrições e práticas das escolas isoladas do estado de São Paulo: 1933-1943”, através de sua Dissertação de Mestrado na PUC-SP.

De acordo com a autora, desde a implantação dos grupos escolares no final do século XIX, o projeto republicano de difusão da escola graduada encontrou um grande

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obstáculo, devido à “dispersão” geográfica, já que a população vivia em regiões afastadas dos centros urbanos, o que inviabilizava a instalação e manutenção de grupos escolares. No meio rural, portanto, as escolas isoladas constituíram realidade que destoava do modelo difundido no projeto republicano. Na década de 1930 os grupos escolares representavam a moderna educação paulista, no entanto, o número de escolas isoladas era muito grande.

A autora argumenta que o isolamento era a característica negativa que se formava nesta realidade, pela ausência do diretor escolar, de funcionários, pela distância geográfica e dificuldade de acesso e transporte, condenando muitos professores a atuarem de modo solitário, levando-os aos pedidos de licença. “Sem a presença do diretor e de outros professores com os quais pudesse trocar experiências, restava-lhes pedir remoção ou afastamento”.

Segundo a autora, na representação do governo essas escolas pareciam ser vistas como um “mal necessário”. Não possuíam prédio próprio (eram instaladas de improviso), recebiam menos material sendo que muitas vezes eram mobiliadas com objetos dispensados por outras escolas. “Não era raro chegar à localidade onde deveriam assumir a classe e encontrar uma sala com parco mobiliário e nenhum material, falta de higiene e das mínimas condições ao funcionamento de uma classe”.

Os professores geralmente eram recém-formados, sem experiência e recebiam salários inferiores aos dos professores dos grupos escolares (urbanos). A autora analisa que essas escolas não possuíam os recursos de que dispunham os grupos escolares, funcionavam em horário reduzido, e não seguiam um programa específico adaptado à realidade do meio rural. Diferente das escolas graduadas, as escolas isoladas continham em uma mesma classe, alunos de várias idades e de várias séries.

De acordo com a pesquisadora, as escolas isoladas eram representadas como “ilhas de saber” asseguradas pelas prescrições dos inspetores escolares, configuravam-se como faróis de civilização que iriam irradiar educação, modernidade, saúde e higiene, incutindo novos hábitos e costumes ao homem do campo, retirando-o do atraso e da ignorância a que era submetido. (Silva, 2004)

Rosa Fátima de Souza (2008), no artigo “Os Grupos Escolares e a História do Ensino Primário na Primeira República: questões para um debate” adverte que, na história da educação primária no Brasil, é preciso reconhecer a diversidade de modalidades escolares que conduziram a institucionalização da educação pública elementar no país, ou seja, pelos diferentes tipos de escolas, de programas e grupos sociais atendidos. Com este trabalho a autora tece uma análise que busca superar os antagonismos os quais podem conduzir a uma visão simplificada e maniqueísta da realidade.

A questão assinalada pela autora, sobre os diferentes tipos de escolas no processo de democratização do ensino no Brasil na República, chama a atenção para o fato de que, até meados do século XX, na verdade, a difusão da instrução primária irá ocorrer pela expansão das escolas isoladas e outras (por exemplo, as escolas reunidas i). Os imponentes grupos escolares urbanos, embora tenham sido responsáveis pela construção ideológica de um projeto modernizador da nação – via educação na formação do cidadão - ficou restrito a segmentos privilegiados da população.

Explica que, por volta dos anos 1930 a maior parte da população brasileira ainda residia na zona rural, mas mesmo nos núcleos urbanos a presença das escolas isoladas era marcante. Desse modo, diz a autora, é preciso considerar o papel preponderante e central desempenhado pelas escolas isoladas (e reunidas) na disseminação da instrução elementar no Brasil, na primeira metade do século XX. No entanto, tiveram privilégio

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as áreas urbanas do Estado de São Paulo (e demais estados), apesar da grande parte da população residir na zona rural.

Levando-se em conta a aglomeração de crianças nas cidades, a visibilidade pública da ação do Estado e os interesses de modernização, a difusão da educação no meio rural compreendia um investimento oneroso, que o Poder Público paulista não ousou enfrentar. Entretanto, assinala a autora:

A despeito de todas essas precariedades, as escolas isoladas continuaram existindo no estado de São Paulo e desempenharam um papel importante na disseminação da cultura escrita na zona rural. No entanto, carecemos ainda de um conjunto expressivo de investigações sobre a escola primária no Estado e em todo o país.De todo modo, os pesquisadores devem estar atentos para a relevância da escola isolada na institucionalização da escola primária, especialmente em localidades onde os grupos escolares demoraram a se desenvolver. Em muitos Estados brasileiros, enquanto os grupos foram instalados como uma espécie de “vitrine” da modernização educacional, foi a escola isolada que se disseminou como escola genuinamente popular. (SOUZA, 2008, p. 282)

A trajetória da pesquisa empírica: o trabalho com os documentos

A metodologia da pesquisa compõe-se da seleção e análise de fontes documentais diversas, em especial do arquivo da instituição escolar e depoimentos, levando em conta a ampliação da noção de documento escolar conforme Le Goff (2003) e Diana Vidal (2007). Dentre os documentos (oficiais e não oficiais) encontram-se as observações diretas registradas em diário de campo, o diálogo com as pessoas envolvidas (gravados ou não), o levantamento de objetos selecionados para análise, a utilização do recurso fotográfico, a pesquisa em arquivo escolar, compondo uma diversidade de documentos coletados, sendo eles escritos, orais e imagéticos.

Seguindo a trilha aberta pelos historiadores que argumentaram em favor da ampliação da noção de documento como fonte de pesquisa histórica, destaco a visão da historiadora da educação Diana Vidal, ao afirmar que os documentos escolares preservados, revelam vestígios da ação histórica dos sujeitos, tendo, portanto, valor social.

Para Le Goff, o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Desse modo, o documento é o resultado de uma montagem da história, da época... é uma coisa que fica (porque durou), tendo o sentido de testemunho, portador de ensinamento aos que vivem no presente.

Segundo E. P. Thompson (1985), o historiador está empenhado em algum tipo de encontro com uma evidência para narrar os fatos. Para isso precisa interrogá-los através dos documentos.

Dei início às entrevistas na comunidade que se basearam em roteiro semi-estruturado, com base em algumas questões elaboradas previamente, mas o tom da entrevista consistiu em um diálogo aberto, muitas vezes contando com a participação de outros membros da família.

Ao todo foram entrevistados 08 ex-alunos com registro em gravador digital (com transcrição) e 03 relatos (depoimentos) sem o recurso do gravador, sendo 01 por

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telefone. As entrevistas foram individuais (à exceção de uma conjunta em família – genro/sogra), no entanto estavam quase sempre presentes os familiares do depoente. As entrevistas com os ex-alunos foram realizadas em suas residências, cujos depoentes me receberam de forma amistosa e com generosa atenção e colaboração, sendo que cada uma teve duração aproximada de uma hora. Posteriormente eu retornei em cada casa para entregar um CD-Rom com uma síntese da história da escola, ilustrada com as imagens (fotos, etc.) adquiridas com eles, e nesse caso aproveitava para tirar dúvidas das entrevistas já transcritas.

Em relação aos educadores, foram entrevistadas, em conjunto 02 ex-professoras (sendo 01 também ex-diretora) e, por telefone, 01 ex-professora de 96 anos. No total registrei o depoimento de 14 sujeitos, sendo 11 ex-alunos e 3 ex-professoras. Com exceção das ex-professoras Dona Mariza e profª. Sônia, todos os demais sujeitos vivenciaram a experiência na antiga Escola Mista e, para atender aos objetivos definidos dentro das finalidades desta pesquisa, foram selecionados os depoentes situados dentro da periodização estabelecida na problematização do trabalho – as décadas de 1930-1940, embora todos tenham contribuído para a construção da narrativa sobre a história da escola e do bairro.

História Oral, Cultura Escolar e Nova História Cultural

Tendo escolhido a “Escola do São João”- como é conhecida, como lócus da pesquisa para o trabalho empírico este estudo está embasado, principalmente, na perspectiva teórica da nova história cultural, a qual destaca a importância do olhar sobre o cotidiano escolar, sua dinâmica e ações dos sujeitos, assim como a materialidade da escola e a oralidade através dos testemunhos de quem viveu as experiências pretéritas como alunos e/ou como educadores.

Assim como Portelli (1997a) desejamos ouvir aqueles que não foram ouvidos – as pessoas comuns. Entendemos que a metodologia da história oral leva a um processo de conscientização e empoderamento dos sujeitos envolvidos, cujo movimento de interpretação dá legitimidade à memória coletiva.

Para Pollak (1989) valorizar as memórias subterrâneas reabilita a periferia. Nesse sentido a metodologia da história oral possibilita dar visibilidade aos sujeitos protagonistas de histórias ocultas, anônimas, pouco retratadas, mas nem por isso de menos valor. Ainda, segundo o autor, a memória, enquanto operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado pode reforçar sentimentos de pertencimento. A referência ao passado serve para manter a coesão de grupos/instituições, definir seu lugar, ou seja, fornece um quadro de referências.

No caso pesquisado, a narrativa sobre a história da escola passa a ser interpretada à luz da categoria cultura escolar - mediadora dos valores e costumes criados, apreendidos, aprendidos e ensinados no interior da escola.

O historiador espanhol Antonio Viñao Frago (2003) assim sintetiza o conceito:

A cultura escolar seria, em síntese, algo que permanece e que dura; algo que as sucessivas reformas não alcançam senão superficialmente, que sobrevive a elas, e que constitui um sedimento formado ao longo do tempo. Um sedimento configurado por camadas superpostas que, ao modo arqueológico, é possível desenterrar e separar. Esta seria a tarefa do historiador: fazer a arqueologia da escola. [tradução minha]

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Segundo Rogério Fernandes (2005), a fotografia enquanto documento contém um enorme poder de evocação. Há a fotografia das crianças na escola junto do professor ou da professora à entrada do edifício, “falando sobre o estabelecimento na sua mudez”.

FOTO 3

Professora Marina com turma de alunos da Escola Mista do bairro Filipão – 1949[Reprodução de foto cedida pelo Sr. José de Lima, ex-aluno em 1952. O aluno negro na segunda fileira de baixo para cima, Waldomiro é hoje um senhor de mais de 70 anos, que vende garapa na Avenida das Amoreiras no bairro São Bernardo em Campinas-SP].

Nesta região da cidade de Campinas é possível identificar traços do rural e do urbano coexistindo, nesse cenário ocupado por famílias de trabalhadores e empreendedores sendo na maioria migrantes (em diferentes fases), no qual as instituições basilares da sociedade estão também representadas pela igreja, pela escola e pela fábrica, simbolizando os valores de uma época. Segundo o historiador inglês:

(...) mesmo as colônias mais inovadoras são povoadas por pessoas oriundas de alguma sociedade que já conta com uma longa história. Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é (...) uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse ‘sentido do passado’ na sociedade e localizar suas mudanças e transformações. (HOBSBAWN, 1998, p. 22)

Aqui o que mais nos interessa é conhecer o passado da Escola Mista, descoberta nesse lugar da cidade.

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História da escola e da comunidade do bairro São João

A escola pesquisada situa-se na periferia de Campinas - SP, num bairro pacato fundado por imigrantes italianos e que até os anos 60 era considerado rural. O bairro São João é de pequena extensão geográfica, com bastante área verde e vestígios do mundo rural conservado em plena metrópole: pastos, cavalos, vacas, chácaras, hortas, etc. e sua força cultural concentra-se nas duas instituições quase centenárias: a igreja e a escola. Ambas nascidas de forma simbiótica, pelo pioneirismo de uma professora estimada pela comunidade, a professora Balbina Cesarino Silva se instalou numa casa e começou a lecionar para as crianças das famílias de imigrantes italianos e outros moradores da região (imigrantes portugueses e outros), geralmente nascidas ali mesmo, em casa, algumas nas quais vivem até hoje, mas que na época existiam como chácaras.

Esta mestra, católica devota conquistou a comunidade em processo de formação e junto com os irmãos Afonso, José e Rafael Míssio e Vitório Lovato fundaram a capela em 1920. A escola passou a funcionar neste modesto edifício, que fora reconstruído e reformado mais que uma vez, sem sair do lugar. A professora faleceu jovem e desde então a escola nunca parou de funcionar.

Tanto escola quanto igreja (duas referências no bairro) passaram por reformas, mudanças e continuidades ao longo do século XX, acompanhando as transformações da cidade, influenciadas pelas políticas públicas, pelo delineamento social e pela força da comunidade. A religiosidade, os laços familiares e o trabalho compõem a base identitária dos moradores. Segmentos das famílias fundadoras se constituíram na elite do bairro e alguns foram proprietários de olarias/cerâmicas. Estudavam na mesma escola, até a 3ª série (grau máximo) os filhos do patrão e as crianças ou adolescentes empregados nas olarias nas décadas de 30-40.

A escola funcionou nas instalações da igreja católica por 50 anos, existindo como Escola Mista por 40 anos, quando se converte em Grupo Escolar em 1963. Incrustada na mesma localidade, sempre atendeu crianças dos bairros vizinhos também, pois havia poucas na região, realidade que foi modificada nos anos 70 com a expansão do ensino instituída com a reforma e Lei 5692/71. O bairro, chamado Filipão na sua origem mudou de nome, passando a São João na passagem das décadas de 50-60, refletindo a religiosidade de seu povo.

Na sua origem como escola mista, funcionava com duas turmas de 80 alunos aproximadamente, tendo duas classes multisseriadas: uma turma de primeira série e outra turma de segunda e terceira agrupadas. Somente na década de 1960 que a quarta série foi implantada funcionando junto com a terceira, conduzidas pela mesma professora. Quando se converte em Grupo Escolar permaneceu instalada na capela com registro de fundação apontando que o bairro era rural. Nos anos 70 “novos migrantes” vieram morar no bairro, de outras regiões do Brasil, trabalhadores atraídos pelas indústrias da região, o que obrigou a construção de um novo edifício para atender à constante procura por vaga/matrícula. Pela força da demanda impulsionada pelo desenvolvimento da cidade, a escola ganhou edifício próprio e moderno depois de meio século imbricada com a igreja.

Em setembro de 1974 deu-se a inauguração do prédio novo - Grupo Escolar Prof. Luiz Gonzaga da Costa – nome que homenageia o inspetor de ensino que atuou na antiga escola mista na década de 1930.

Com a extinção dos grupos escolares no final da década de 1970, decorrente da reforma educacional naquele contexto, converte-se em Escola Estadual de Primeiro

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Grau no ano de 1976, passando a assumir proporção numérica expressiva, fato que atesta a massificação do ensino no Brasil: em 1979 já havia oito classes de 1ª série.

Desde 1998 é denominada Escola Estadual Prof. Luiz Gonzaga da Costa, cujas alterações evidenciam as sucessivas reformas educacionais que protagonizou. Nos dias atuais mais de 1.000 alunos estão matriculados no ensino fundamental, médio e EJA e desde 1982 a rua na qual se situa a escola leva o nome da fundadora, professora Balbina Cesarino Silva (1885-1928).

Nos dias atuais, muitos professores e alunos não tinham conhecimento dessa história. Ex-alunos ainda vivos foram capazes de guardar lembranças tão remotas, e objetos como o caderno de lições trazendo as marcas de tinta da caneta tinteiro e o timbre do Governo do Estado de São Paulo, conhecimentos estes informados pelo testemunho do Sr. Ângelo Pitton Filho, 85 anos, ex-aluno da Escola Mista de 1935 à 1938 (tendo repetido o 1º ano).

Segundo ele, a tinta era confeccionada pela professora, que trazia as pastilhas e diluía num frasco e despejava no tinteiro de cada carteira. Descreveu a sala de aula, tendo uma janelinha que dava para a Avenida das Amoreiras, que era uma estrada de terra e nem tinha esse nome. As crianças ficavam olhando da janela vendo a boiada passar - até hoje o gado circula livremente pelo bairro em plena “Amoreiras”, uma avenida gigante que liga o centro de Campinas a dezenas de bairros periféricos. Ele disse que a professora colocou uma cortina na janela para impedir que as crianças olhassem – “era uma verdadeira prisão!”, nas palavras do Sr. Ângelo. Pelo fato de ser escola mista, perguntei como se sentavam. Ele disse que menino com menino, menina com menina, em dupla. Indaguei se no recreio brincavam - meninos e meninas - ele disse que nessa época as crianças não brincavam. Ele também trabalhava quando criança com os irmãos na lavoura. Quando perguntei se o inspetor é quem vinha aplicar as provas, o filho o ajudou a lembrar-se o nome do inspetor: “Luiz Gonzaga da Costa”, que é o nome da escola desde 1974, quando se instala no prédio novo, informação até então desconhecida pelos sujeitos que atuam na escola hoje.

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CRONOLOGIA

1920-1962: Escola Mista do Bairro Filipão/São João; (no espaço da

Capela)

1963-1974: Grupo Escolar do Bairro São João (funcionando na

Capela "Sagrado Coração"; transformada em Igreja São

João Batista em 1975)

1974-1976: Grupo Escolar Prof. Luiz Gonzaga da Costa (Prédio

Novo)

1976- 1998: EEPG Prof. Luiz Gonzaga da Costa

1998 - : EE Prof. Luiz Gonzaga da Costa

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O método etnográfico referente à pesquisa qualitativa (Marradi, Archenti e Piovani, 2007), quando o pesquisador põe-se a campo em contato direto com as pessoas que vivem naquele lugar, interagindo numa rede de relações, conversas por telefone, visitas às suas casas e entrevistas gravadas ocasionou na evidência de uma comunidade local formada por migrantes, constituída em duas fases: a primeira, na passagem do século XIX para o século XX representada pelas famílias de imigrantes europeus que vieram para São Paulo substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras, principalmente do café, e a segunda fase, a partir das décadas de 1960-70 conduzida pelas famílias de brasileiros vindos de outras regiões do Brasil (estados do nordeste, Paraná, etc.) atraídos pela oferta de trabalho lançada pela industrialização paulista.

Na Primeira República a região de Campinas configurava-se como um pólo de desenvolvimento importante no interior de São Paulo, projetando os fazendeiros da região na composição da elite política nacional. (Nascimento et. al., 1999)

Olga Von Simson (2008), em seu artigo “As múltiplas faces das migrações para a região de Campinas” analisa a dinâmica desse processo migratório desde a formação da cidade até os tempos presentes. A autora argumenta que Campinas sempre recebeu migrantes em diferentes épocas, com diferentes origens e identidades, por variadas razões históricas.

Primeira fase de imigração no bairro: os italianos e outros

Von Simson (2008) nos informa que o século XIX trouxe para a região de Campinas a experiência de convívio com outras culturas, através dos grupos imigrantes que os fazendeiros trouxeram para a propriedade cafeicultora, com o trabalho de famílias européias.

Na primeira fase de migração no bairro pesquisado, as famílias de imigrantes vindos da Europa eram constituídas principalmente de italianos instalados naquela localidade – eram lavradores, na maioria. Famílias de origem portuguesa, suíça e outras nacionalidades também são expressivas nessa região de Campinas (Estrada Velha de Indaiatuba; Fazenda Bradesco; Aeroporto de Viracopos) que era rural, constituída de fazendas, chácaras e sítios, cuja atividade econômica era agricultura e pecuária. Nas primeiras décadas do século XX surgiram as olarias na produção manual de tijolos, e alguns chefes de família mais abastados tinham negócio com transporte de caminhão. Expressivas do desenvolvimento do município configuraram-se várias modalidades de ocupações exercidas por trabalhadores, como operários, pedreiros, motoristas, etc. conforme as ramificações da economia e do trabalho decorrentes de realidades que paulatinamente iam se tornando mais complexas ou urbanas.

A comunidade foi se formando tendo como base o perfil das famílias trabalhadoras e empreendedoras naquele universo constituído socialmente, norteando-se por valores e tradições. No início, as famílias geralmente eram numerosas e os filhos ajudavam os pais no trabalho da roça, no trato dos animais, etc., posteriormente nas olarias e no transporte com caminhão.

Com o surgimento da escola em 1920 as crianças conciliavam as obrigações do trabalho com as atividades escolares. Em grupos pequenos atravessavam sítios, cercas e córregos, percorriam pastos ocupados por animais para chegarem à escola mista. Por volta da década de 1930, no negócio de olarias (geralmente familiar), as crianças dessas famílias trabalhavam na fabricação manual de tijolos junto com outras crianças empregadas, e freqüentavam a mesma escola.

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Entrevistados das décadas de 1940 e 50 e que trabalhavam nas cerâmicas narraram que, ao ouvir o apito do trem trazendo a professora, corriam lavar as mãos para buscar a mestra na parada da linha Sorocabana que funcionou de 1914 à década de 70, cuja estação próxima era a Sete Quedas, na fazenda do mesmo nome ii·. No entanto, desde os anos 1930 as crianças já tinham o hábito de buscarem a professora... cena comum na memória de ex-alunos de quase todas as décadas retratadas.

Essas crianças eram brancas, na maioria, e a escola estatal era mista (meninos e meninas) funcionando da 1ª a 3ª série com duas classes multisseriadas. A turma da primeira série era maior, e a classe de 2ª e 3ª funcionava com menos alunos, o que denota que algumas crianças desistiam de estudar ao concluir a primeira série, além do fato de repetirem o ano e da evasão escolar. Não havia merenda e as crianças passaram a usar uniforme a partir de 1940, sendo que muitas iam descalças. Escreviam com caneta-tinteiro nos anos 30 e 40 e desde os anos 20 usavam cartilha para serem letradas.

Especialmente os italianos vieram a partir de 1870 e formaram o maior contingente de imigrantes, sobretudo no Estado de São Paulo. Em Campinas, de 1882 a 1900 entraram 10.631 imigrantes estrangeiros, sendo que aproximadamente 75% deles eram italianos (Pessoa et. al., 2004). Historiadores explicam que, nesse contexto, caracterizou-se entre os países a busca pela formação da nacionalidade, que no ocidente foi se constituindo a partir do final do século XVIII, pressupondo uma universalização do conceito de povo e de nação. O nacionalismo buscou consolidar a afirmação de uma unidade simbólica, considerada necessária para a modernização econômica. Desse modo, apoiou-se na expansão de um sistema escolar para as massas com a função de difundir uma cultura uniforme.

De acordo com Kreutz (2003), o Estado colocou-se no centro do processo de formação da identidade nacional. No período de maior entrada dos imigrantes, na década de 1890, o Brasil tinha um sistema escolar altamente deficitário, com uma população de mais de 80% de analfabetos. Esse quadro levou alguns grupos de imigrantes a pressionarem o Estado em favor de escolas públicas. As colônias empreenderam uma ampla estrutura comunitária de apoio ao processo escolar, religioso e sociocultural, buscando a integração entre os moradores.

No caso da formação do bairro pesquisado, sua constituição deu-se pelas seguintes características: ocupam lugar de prestígio as famílias mais tradicionais, cuja origem remete aos imigrantes europeus, católicos e proprietários de pequenos negócios familiares (sítios ou olarias/cerâmicas; transporte) e que despontaram como a elite do bairro. “Os outros” representam os novos moradores que migraram do nordeste, Paraná, etc. na segunda metade do século XX na condição de pobres, embora tenham também prosperado como operários. Na chegada desses novos moradores povoando o bairro, freqüentando a igreja e a escola, seu lugar, no entanto, era secundário e sua integração deu-se de modo ambíguo.

Segunda fase de migração no bairro: nordestinos, paranaenses e outros brasileiros

Já a segunda fase de migração é marcada pela dinâmica das famílias das classes populares que se deslocaram de estados do nordeste e de outras regiões do Brasil nas décadas de 1960-70, muitos vindos do Paraná e que se fixaram naquele ponto geográfico da cidade. Uma depoente descreve as limitações materiais sentidas pela família, pois viveram em casa modesta com problema de goteira nos dias de chuva, tinham escassez de roupas e calçados, falta de dinheiro para participarem da quermesse da igreja, e posição inferior nos rituais católicos, cuja vida social a igreja era o centro.

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Ângelo Pessoa, organizador do livro “Conhecer Campinas numa perspectiva histórica” lançado pela Secretaria Municipal de Educação em 2004, avalia os contextos em que ocorreram os importantes fluxos migratórios na cidade a partir dos anos 1950.

Destaca os anos 1960 como um momento decisivo no capitalismo brasileiro e que ocasionou o êxodo rural com os volumosos fluxos rural-urbanos no país. Em Campinas, desde os anos 1940, a emigração rural já se fazia significativa, mas nos anos 1960-70 o crescimento da população urbana toma proporções decisivas que irão formar a região metropolitana. Esse crescimento populacional traduz uma migração necessária para o desenvolvimento econômico da cidade. A imigração de paulistas do restante do Estado, mineiros, paranaenses e nordestinos (os maiores fluxos) favoreceu seu desenvolvimento econômico no setor secundário, no comércio e no setor de serviços. (Pessoa et. al., 2004)

Nos anos 1960 uma fábrica de ração animal de grande porte é instalada na divisa com o bairro São João, compondo um cenário urbano com expressivo simbolismo no qual triangulam igreja, escola e fábrica (a poucos metros uma da outra). Essas instituições regidas pela disciplina, pelo rigor das normatizações, pelas crenças e repetição dos costumes, abarcam tradições seguidas por gerações as quais em algum momento imprimem nelas mudanças e reinventam suas práticas. Aglutinadores de cultura das famílias norteiam seus valores sendo ao mesmo tempo (re) significados por elas.

De acordo com Gonçalves e Faria Filho (2005):

os estudos sobre cultura escolar têm permitido desnaturalizar a escola e empreender estudos sobre o processo mesmo de emergência dessa como instituição de socialização nos tempos modernos. Articulada aos estudos do processo de escolarização, tal perspectiva coloca, desde logo, a necessidade de pensar a relação da escola com outras instituições responsáveis pela socialização da infância e da juventude, principalmente com a família, a Igreja e o mundo do trabalho. É aqui, penso, que se encontra um dos grandes limites à realização de nossas investigações: são poucos os estudos historiográficos sobre a família, a Igreja e o mundo do trabalho que nos oferecem subsídios para pensarmos a relação desses com a cultura escolar”. (p. 52)

Considerações Finais

No caso da escola pesquisada as raízes da imigração (italiana principalmente) podem explicar seu surgimento em área rural do município de Campinas, atendendo a aspectos básicos do ensino com a finalidade de instruir as crianças das famílias de trabalhadores e empreendedores daquele universo rural no início do século XX. Resistiu ao tempo se metamorfoseando (de escola mista para grupo escolar, EEPG, etc.) e superando a simbiose Igreja-Escola em contexto de industrialização/urbanização paulista, quando adquire prédio próprio com instalações adequadas para o funcionamento de uma escola de massas.

O sentido da fundação dessa escola remete à localização de uma pequena comunidade que se formou em torno de sua identidade, sua cultura, o que atraiu a iniciativa estatal - idealizadora de um projeto nacionalista - na instalação de uma modesta instituição, conduzida com simplicidade por uma ou duas professoras na sua origem. Com características bem distintas dos importantes grupos escolares da cidade, a pequena escola mista recebia meninos e meninas descalços, impedidos algumas vezes

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de assistirem aula quando chovia forte ou quando o trem não passava – trazendo a professora, em reduzido tempo e horário de aula, sem merenda.

Por décadas a escola mista atendeu famílias naquela localidade do município, contribuindo na composição de um cenário importante no desenvolvimento urbano da cidade (migração, trabalho e cultura).

Ao longo de quase um século de história é possível observar, através da pesquisa empírica, as seguintes tendências:

Na 2ª metade do século consolida-se a urbanização e a industrialização como traço determinante na sociedade, ocupando a escola um lugar importante nesse processo modernizador, moldando corpos e instruindo mentalidades com sua pedagogia;

Os fluxos migratórios foram preponderantes no desenvolvimento de Campinas, deixando marcas bem localizadas em alguns pontos geográficos da cidade;

A escolinha rural mista sobreviveu no tempo, foi se ampliando e se transformando até se tornar uma escola pública de massas na periferia da cidade;

A comunidade sempre interagiu positivamente com a escola oferecendo apoio, suporte, auxiliando no seu cotidiano (geralmente suprindo falhas das obrigações do Estado);

No ensino primário prevalece, historicamente, o perfil e a figura da professora, e não do professor, na instrução de crianças;

Nas escolas isoladas as professoras primárias estavam de “passagem”, ou seja, ficavam por pouco tempo, geralmente em início de carreira, até conseguirem colocação melhor.

Também nas escolas isoladas não havia o diretor – as professoras eram responsáveis pela escola e interagiam diretamente com as famílias – quase tudo se reduzia às aulas e lições diárias e o inspetor (supervisor) controlava os resultados através de contatos ocasionais; este representava uma autoridade a ser respeitada e temida;

Dos anos 1920 aos anos 1960 crianças dessa localidade trabalhavam nos negócios da família ou como empregadas;

A normatização (com o uso do uniforme escolar), o higienismo (lavar a escola; usar o uniforme limpo) e o nacionalismo (permeado nas lições), a partir dos anos 1930-1940 são expressivos da nova concepção de civilidade, de acordo com o parâmetro urbano/moderno.

A escola mista manteve-se à sombra da expansão dos grupos escolares que ocorreu progressivamente no Estado de São Paulo a partir dos anos 30 e que acompanhou o desenvolvimento urbano atendendo crianças de vários setores sociais:

(...) a escola primária registra a história da democratização da cultura. Trata-se de uma história que se conecta com as experiências e lutas das camadas populares, com as expectativas e os anseios por elas depositados na escola como possibilidade de melhoria de vida, de ascensão social. (...) recuperar essa história significa valorizar a escola pública reconhecendo o direito que a sociedade tem à memória e ao passado histórico de uma instituição por ela estimada... (SOUZA E FARIA FILHO, 2006)

Para Almerindo Afonso (2001) as políticas sociais são ambivalentes, pois, se por um lado expressam instrumentos de controle social como formas de legitimação da ação

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do Estado e dos interesses das classes dominantes, por outro, expressam estratégias de concretização e expansão de direitos sociais, econômicos e culturais (cidadania), repercutindo na melhoria das condições de vida dos grupos sociais menos privilegiados.

Na história moderna o movimento revolucionário iluminista fundou o debate político em torno da necessidade, extensão e qualidade de uma instituição escolar financiada e regulamentada pelo Estado, que pudesse atingir sistematicamente amplos setores da população nos territórios nacionais. No entanto, na realidade o que se configurou foi a definição dos limites do acesso às classes populares por meio dos quais se evidenciam os pontos de vista dos que defendem, para o povo, “uma educação mais rápida e fácil, uma espécie de treino ao trabalho e à obediência”. (Manacorda apud Piozzi, 2007) Entre utopias revolucionárias e direitos sociais adquiridos, o direito à educação pública pode possibilitar o contato com o universo da ciência e da cultura, reafirmando a democracia como modelo social.

Souza (1999) argumenta que as escolas refletem as divisões e segregações sociais e espaciais que marcam o desenvolvimento das cidades nas sociedades capitalistas, com base nas diferenciações entre urbano/rural, centro/bairro.

A esse respeito esclarece a historiadora da educação:Em torno do estudo, criou-se um universo simbólico de múltiplas significações. Passar pela escola, ainda que por poucos anos era muito importante. Aprender a ler, escrever e contar tornava as pessoas possuidoras de um capital cultural escasso para o conjunto da população, por isso, revestia-se de um bem de extremo valor social. (Souza, 1998b, p. 86)

A descrição desta realidade reflete a consolidação de uma política estadual de expansão do ensino primário que priorizou a instalação de grupos escolares nos centros urbanos e as escolas isoladas nas áreas rurais. Tal política gerou o contraste entre os grupos escolares da cidade, nas suas instalações majestosas, e as modestas escolas isoladas instaladas de improviso na zona rural, em tempo reduzido, currículo simplificado, classes unidocentes e multisseriadas com o propósito de alfabetizar os filhos dos trabalhadores nos aspectos mínimos da aquisição do conhecimento formal.

O conteúdo da educação ministrada nos grupos escolares de Campinas revela as características do que foi o processo de difusão de uma cultura escolar para o povo, o acesso seletivo à escrita mediante a aquisição de habilidades básicas de ler e escrever, a aprendizagem da aritmética e das noções das ciências físicas naturais e sociais, mas, sobretudo, a educação moral e cívica, a difusão de valores e normas, códigos e práticas simbólicas, que fizeram da escola primária, durante décadas, o baluarte dos valores republicanos e dos valores morais e cívicos que contribuíram para a construção da nação brasileira. (Souza, 1999, p. 140)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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i “Reunião” (junção) de escolas isoladas num mesmo prédio, com maior número de professores e alunos, mas sem a estrutura dos grupos escolares.ii A antiga fazenda existiu onde hoje está instalado o Aeroporto Internacional de Viracopos.