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Biblia e Política - 2013 Religião e política: duas dimensões inseparáveis da vida humana. Veremos que essas duas dimensões se encontram inextrincavelmente unidas na história do povo eleito. O fio condutor da disciplina que aqui iniciamos será o profetismo, sua presença no AT, na mensagem e atuação de Jesus de Nazaré, e, por fim, sua presença/ausência na pregação e atuação da Igreja. 1.Comentário ao DVD: a bíblia ontem e hoje 2.A atuação dos profetas na História de Israel O Êxodo (saída do povo hebreu do Egito) é o acontecimento fundante do povo eleito, todo ano celebrado até hoje pelos na páscoa. Moisés: líder político-religioso e profeta. Uma espécie de general e fundador de uma religião: o javismo. Sem ele, o bando de hebreus (hapiru) no Egito não teriam tido futuro. Moisés, o maior profeta do AT. Profeta como mediador da revelação e como intercessor. Inspirado por Deus, Moisés reconheceu na ânsia de libertação do povo escravizado a vontade de Deus, por isso ele põe na boca de Deus: “Eu vi a aflição de meu povo e desci para libertá-lo” (Ex 3,7). É bem esta a função do profeta: interpretar a história. Enquanto o historiador faz a fotografia da história, o profeta faz a biografia. Ele enxerga além dos fatos. Salvação= libertação, ato político. Segundo Moisés, a fuga do Egito deu certo, não por uma questão de 1

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Biblia e Política - 2013

Religião e política: duas dimensões inseparáveis da vida humana. Veremos que essas duas dimensões se encontram inextrincavelmente unidas na história do povo eleito. O fio condutor da disciplina que aqui iniciamos será o profetismo, sua presença no AT, na mensagem e atuação de Jesus de Nazaré, e, por fim, sua presença/ausência na pregação e atuação da Igreja.

1.Comentário ao DVD: a bíblia ontem e hoje

2.A atuação dos profetas na História de Israel

O Êxodo (saída do povo hebreu do Egito) é o acontecimento fundante do povo eleito, todo ano celebrado até hoje pelos na páscoa.

Moisés: líder político-religioso e profeta. Uma espécie de general e fundador de uma religião: o javismo. Sem ele, o bando de hebreus (hapiru) no Egito não teriam tido futuro. Moisés, o maior profeta do AT. Profeta como mediador da revelação e como intercessor. Inspirado por Deus, Moisés reconheceu na ânsia de libertação do povo escravizado a vontade de Deus, por isso ele põe na boca de Deus: “Eu vi a aflição de meu povo e desci para libertá-lo” (Ex 3,7).

É bem esta a função do profeta: interpretar a história. Enquanto o historiador faz a fotografia da história, o profeta faz a biografia. Ele enxerga além dos fatos.

Salvação= libertação, ato político. Segundo Moisés, a fuga do Egito deu certo, não por uma questão de sorte, mas porque Deus estava com ele. A tradição posterior forjará relatos de coisas maravilhosas que aconteceram durante a fuga. Uma verdadeira epopéia ( cf. o filme “Os dez Mandamentos” de Cecil B. de Mille). A intenção era mostrar que o Deus do povo eleito era mais forte do que o Deus de Faraó.

“Salvação, segundo a mentalidade semita como para nós, modernos, é salvação=bem-estar do homem todo. Os semitas não conheciam a distinção entre corpo e alma que nós herdamos dos gregos. No AT, salvação=liberdade, terra, descendência, segurança, vida longa.... segurança contra os inimigos de fora e contra a prepotência dos grandes de dentro do próprio país. No começo não se fala de perdão dos pecados; Mais tarde, sim, os profetas vão aprofundar a reflexão sobre as causas que perturbam a convivência humana e descobrem que a raiz de tudo é a infidelidade à Aliança Mas ao mesmo tempo se empenham em combater as conseqüências sociais do pecado. Para a Bíblia, a salvação consiste em estar de bem com o Criador e com a Aliança.Também para o homem moderno a salvação consiste em estar de bem com a vida, mas para tanto, o homem precisa primeiro estar de bem com o criador e depois com Jesus Cristo.

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A antropologia moderna tem também ela uma visão unitária do homem. O que é salvação para o homem de hoje? Não é só e nem antes de tudo o perdão dos pecados. Sejamos realistas: não é antes de tudo: casa, comida saúde,escola, transporte, direitos humanos, segurança e liberdade para se realizar como pessoa? E aqui entram as Igrejas com a função de ajudar as pessoas a serem livres: liberdade como ausência de qualquer coação interna ou externa para fazer aquilo que leva a pessoa à sua verdadeira identidade.

Liberdade: o grande desafio para o ser humano. Sartre: “Nascemos condenados a ser livres”.... O ser humano não nasce feito. Ele nasce projeto de pessoa. Qual é o caminho para a personalização e a realização humana? É preciso perguntar a Jesus de Nazaré (“Eu sou O Caminho, A Verdade e A Vida”).É bom lembrar, de passagem, que Jesus não veio para morrer, mas para mostrar um ideal de vida. Função da Igreja: ajudar o homem a ser livre e mostrar o caminho. Oportuno também é lembrar que no começo a religião cristã era designada como “O Caminho”.

Deus revela o seu nome a Moisés: Javé: eu sou aquele que estará contigo(cf. Ex 3,14): um Deus libertador. Tanto o AT como o NT ficarão marcados pela idéia de libertação. Jesus (“Javé salva”) também será um grande libertador, da opressão religiosa e política já que estas duas esferas estavam unidas. Mas para o sistema, ele era subversivo, “comunista”, e por isso será assassinado.

No Monte Sinai Deus fez uma Aliança com o grupo que saíra do Egito: “Eu vos adotarei como meu povo, e serei o vosso Deus” (Ex 6,7). O pacto consistia no seguinte: Javé protegeria o povo contra os inimigos, e o povo, por sua vez, veneraria somente a Javé. Era um monoteísmo prático ou “litúrgico”, ainda não teórico, pois o povo ainda não sabia que existia um só Deus. Por isso achavam que Javé era um Deus ciumento. Venerar só a Javé implicava em não fazer imagens de criaturas para adorar. Não se tratava de uma proibição absoluta de fazer imagens como querem entender os evangélicos, senão confiram-se certas passagens como Ex 25,18-20 : Deus manda Moisés fazer dois querubins de ouro e colocá-los em cima da Arca da Aliança; Nm 21,8-9 manda fazer uma serpente de bronze e colocá-la em cima de uma haste, para curar os mordidos pelas serpentes venenosas; 1Rs Deus manda Salomão enfeitar o templo de Jerusalém com imagens de querubins, palmas, flores, bois e leões. Para preservar a santidade de Deus o povo não deve pronunciar o nome de Deus em vão e santificar o dia do sábado, em memória do descanso de Deus no 7° dia da criação (cf.Ex 20,2-11). Já segundo o Deuteronômio 5,15 o sábado é dia de celebrar a libertação frente ao Egito.

Os 10 mandamentos, compromisso do povo em resposta à proteção de Deus, são os princípios fundamentais de uma sociedade livre, base da constituição do povo eleito (cf. Ex 21—24): Código da Aliança, Constituição do Povo Eleito.

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Os dez mandamentos têm força de libertação. Os três primeiros se referem à veneração de um Deus libertador. Um Deus que se alia a escravos. Nos países vizinhos, os deuses estavam sempre do lado dos vencedores. Javé, portanto era um Deus diferente, único. Um Deus que não exigia sacrifícios humanos. Mais tarde, nem de animais. Os povos vizinhos sacrificavam crianças. (os deuses do México sacrificavam jovens ao deus sol). Os falsos deuses, ou seja, os ídolos modernos: dinheiro, poder, prazer exigem milhares de vítimas humanas por dia......

Através dos mandamentos 4-10, Deus exercerá a sua providência para com seus filhos... Portanto, o homem como aliado de Deus precisa colaborar com Deus para que se instale uma sociedade justa e fraterna. Através do decálogo (10 mandamentos), Deus protege a autoridade dos pais sobre os filhos, protege e vida, o direito dos esposos, a propriedade, o bom nome das pessoas. Assim se manifesta a justiça de Javé. Ser justo é observar a Aliança; isto vale para Deus e para o povo. Portanto, a providência acontece através dos homens. Já em Gn 18,19 se diz que as promessas divinas para a descendência de Abraão dependem da manutenção do direito e da justiça na terra.

Antes de entrar na Terra Prometida, Josué substitui Moisés que só pode avistar a terra prometida, de longe, e morreu. Em Siquém (cf. Js 24), + ou – 1.200 a.C., numa grande assembléia, Josué constitui a confederação das 12 tribos, ou liga tribal, em torno de 2 dois pontos fundamentais: Adoração só a Javé e defesa mútua em caso de ataque de povos vizinhos. A Josué sucedem os Juízes, rismáticos que deveriam administrar a justiça de Deus (daí “juízes), ou seja, zelar pela Aliança: defender o povo contra ataques de povos vizinhos e defender os pobres (órfãos e viúvas..) contra a prepotência dos “grandes”. Era um Regime “democrático”: participação popular no poder.

3.Do sistema tribal à monarquia

Após uns 200 anos, a Confederação das tribos, ou sistema tribal se tornara arcaico. Chegara a hora da mudança. Samuel foi o último dos Juízes. Já idoso, nomeou seus filhos, Joel e Abdias, para Juízes. Segundo 1Sm 8,3 estes já não se comportavam como seu pai, cuidavam mais dos próprios interesses, aceitavam suborno e julgavam contra a justiça. Líderes populares foram então até Samuel dizendo: Olha, Samuel, o Sr. está idoso e seus filhos já não se comportam como o Sr.. É preciso mudar o sistema tradicional, queremos um rei, uma corte, uma boa organização burocrática, um ministro da guerra, um exército, com um corpo de profissionais e uma tropa de mercenários estrangeiros, um exército moderno, bem armado e equipado no estilo das grandes nações. A reação de Samuel é típica do profetismo bíblico: olhos no Alto e pés no chão. Analisou a proposta e após uma

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noite em oração, Deus lhe disse: “Atende o povo e nomeie um rei” (1Sm 8,21). Leia-se 1Sm 8,11ss...

Era preciso, sim, uma mudança de estruturas, escolher um rei como condição de sobrevivência. Só que esta solução seria, ela mesma o germe da tragédia e da morte do povo. Samuel entendeu que reconhecer um poder sobre o povo, era abrir caminho para a opressão.

Depois de certificar-se bem do projeto na conversa com os chefes e líderes e após uma boa noite de oração, Samuel fez o diagnóstico da proposta. Embora contrariado, ele concordou com a proposta, porque Deus lhe houvera dito: “Atende o povo e nomeie um rei” (1Sm8,21). Interessante notar que aqui há uma mudança na imagem de Deus: Deus se adapta ao povo.

Samuel então falou assim, ( em termos de linguagem moderna): “vocês querem mudar de sistema. Estão loucos por tudo centralizar nas mãos de um rei, de uma corte, de uma equipe de conselheiros. Querem um exército e ministro de guerra. Vamos ser francos e honestos. Esse novo sistema, importado dos grandes países, do Egito e da Mesopotâmia, parece que funciona mesmo. E vai acumular muita riqueza. Porém, nas mãos do rei. Para sua corte, para os seus palácios e seus haréns. E uma boa parte do que vocês produzirem será para sustentar o luxo da capital. E outra parte ficará com a máquina administrativa e fiscal. Porque vocês terão de morrer nos impostos, meus caros”. Obs. Temos aqui uma amostra do estilo rude e duro do profeta Samuel: cf. 1Sm 8,11ss.

Em todo caso como a opção era feita pelo povo, foi homologada pelos profetas. Porém aqui é que está o maior interesse de nossa leitura bíblica. Para prevenir contra a “mundanização”, o novo sistema foi submetido a um confronto com a Aliança. Tudo bem que houvesse um rei, mas ele deveria estar a serviço da Aliança. Não seria um senhor absoluto, o verdadeiro rei seria Javé e o rei de Israel seria um vassalo de Javé: deveria administrar a justiça em nome de Javé. Dt 17: resumo da constituição que os profetas elaboraram para o rei. Sl 72: “Que ele (o rei) defenda a gente oprimida, salve as famílias pobres e esmague o opressor (v.4)... Porque ele livra o pobre que pede auxílio, o oprimido que não tem protetor. Que tenha piedade do pobre e desvalido, e salve a vida dos pobres (v. 12s). De fato, quando os reis deixaram de administrar a justiça, os profetas intervieram, despertando as consciências e lutando contra a concentração que leva à exclusão.

Os profetas aceitaram, portanto, o projeto de um novo sistema. E até guiaram os passos dos pioneiros nessa difícil caminhada. O profeta Natã apoiou a Saul, o primeiro rei. Mas depois o abandonou. Saul entrou em depressão e acabou se suicidando. Apoiou a Davi, o 2° rei, e também ajudou a Salomão subir no trono. Cf. 2Sm caps. 11 e 12: o pecado de Davi contra o mercenário de seu exército, Urias, o heteu. O pecado de Davi tinha alguns agravantes: Urias era um pobre emigrante, marido de uma mulher só (Davi tinha uma porção), mobilizado para expor a sua vida pelo monarca que dirigia a guerra no conforto de seu

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palácio e de seu harém. Urias veio a morrer no “front” da batalha. Davi toma a mulher de Urias. O profeta Natã intervém e conta uma parábola....2Sm 12).

Um episódio mostra mais uma vez a participação dos profetas na política. Quem deveria suceder a Davi era Adonias, o filho mais velho de Davi. Mas Betsabéia, a paixão de Davi, queria que fosse Salomão (o preferido dela)a suceder Davi. Na verdade houve então um “cambalacho” entre o profeta Natã e Betsabéia! Esta fez Davi jurar no leito de morte que o sucessor seria Salomão, filho ilegítimo. O povo resmungava...”como pode um filho ilegítimo ser o rei de Israel.?...”Então os escribas da corte de Salomão respondiam dizendo: se Salomão está sendo tão bem sucedido na sua administração é sinal de que Deus está com ele. E contaram a história dos patriarcas onde também houvera pecados e Deus fizera vista grossa (cf. Jacó e Esaú). Conclusão: quando Deus quer...nem o pecado pode contê-lo (ideologia política...).

Mas Salomão era muito gastador... o povo suava para sustentar a corte e o harém de Salomão (800 mulheres...) (cf. 1Rs 5,1-6). Salomão acabou tornando-se quase tão opressor quanto o faraó...Aos poucos, no reino de norte (10 tribos), a inconfidência ia crescendo.

4.O profeta assume a luta política

Só se entende bem o profeta a partir de sua inserção na política. Estamos por demais acostumados a uma visão religiosa de nossa fé, como se o cristianismo fosse simplesmente uma religião ao lado das outras. A força e a autoridade do profeta provinha da sua experiência de Deus, tão clara que ele falava na 1ª pessoa em nome de Javé.

Infelizmente se faz uma leitura espiritualista, individualista, intimista e alienante da bíblia. O AT passa a ser mero símbolo e figura da “verdadeira” salvação espiritual trazida por Jesus. Também este é definido como um homem exclusivamente rei religioso que veio cuidar da salvação das almas. Nada mais aberrante e contrária aos evangelhos sinóticos.

Acontece assim que os profetas são geralmente reduzidos a reformadores religiosos, esquecidos de que o tom mais forte de sua missão é de caráter político. Se Se perguntasse aos profetas se eles se consideravam primordialmente reformadores religiosos ou reformadores sociais, eles, com toda certeza protestariam violentamente contra tal diferenciação. É só quando nos situamos no horizonte político que temos chance de alcançá-los: o horizonte das lutas pela construção do povo. E a questão do poder está no centro mesmo dessa construção. Daí por diante a vida dos profetas, que gira em torno dos acontecimentos políticos do seu tempo e é tomada de posição no contexto das causas públicas, está marcada pelo conflito com o poder estabelecido, de reis e de sacerdotes. Os profetas são o contrapeso da monarquia e do sacerdócio do

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templo. São da oposição, lutam pelos direitos humanos e contra uma religião ritualista e formalista.

Uma primeira manifestação dessa atividade política é a denúncia da injustiça real no campo da propriedade imobiliária. Lemos em 1Rs 21 a história do rei Acab que se apodera da vinha do pobre Nabot, através da picaretagem da rainha Jezabel. Esta acusou Nabot de ter amaldiçoado a Deus e ao rei. Mentira. Dois canalhas se prontificaram para fazer o serviço para a rainha; acusaram Nabot diante do tribunal e Nabot foi apedrejado até morrer. Então o profeta Elias intervém em nome do Senhor. Condena veementemente os desvarios do poder, seus crimes contra a vida e a propriedade. O profeta mostra-se solidário da atitude de um pequeno proprietário que se o põe à concentração latifundiária, mesmo que seja para alargar os jardins do monarca.

Também Isaías se insurge contra a ganância dos latifundiários e açambarcadores da terra : “Ai dos que acrescentam casas a casas e juntam campos a campos, até não deixar lugar, e viver só eles no meio do país...” (Is 5,8; cf. 5,8-24).

Miquéias : “ Ai dos que cobiçam campos e os roubam, casas e as ocupam, oprimem o homem com sua casa, o homem com sua herança... Ai porque roubam e vendem minha propriedade familiar! Tomam e repartem nossas terras. Estamos perdidos”. (Mq 2, 1-5).

Mais. Ao reiniciar sua marcha missionária a partir do horeb, o monte de Moisés, Elias recebe de seu Deus uma tarefa de caráter nitidamente político: deverá intervir decisivamente na derrubada de dois reis (cf. 1Rs 19,15-17).

Eliseu, sucessor de Elias se comprometeu até os cabelos com o golpe de estado levado a efeito pelo general Jeú. Sua influência subiu até o reino da Síria ( cf. 2Rs 9; 8,7-15).

Amós enfrentou de cara a política, hoje diríamos, “desenvolvimentista”, “elitista” e “excludente” do rei Jeroboão II. Investiu contra a classe dominante da Samaria. Foi expulso do reino do norte como subversivo e agitador, denunciado por um clérigo de alta posição.

Isaías vive a grande crise da ascensão dos assírios e, em nome de Javé, ergue a voz para denunciar os erros das tomadas de posição do governo. Entra e sai do palácio do rei emitindo constantemente opiniões de “oposição”; denuncia as alianças e os tratados de antemão fracassados. E basta pensar na série de oráculos contra as várias nações, denúncia da opressão e da soberba política, anúncio da desgraça e da queda (cf. Is 13-23).

Jeremias com sua ingerência na política acaba ficando no olho do furacão que antecede a queda de Jerusalém em 598 a.C.. É consultado frequentemente por um monarca hesitante entre dois partidos opostos. Toma partido contra a ala dominante no gabinete do governo. Denuncia a política de resistência à Babilônia como equivocada. É ferozmente perseguido. Na luta desesperada dos judeus para impedirem a vitória babilônica, toma uma decisão extrema: aconselha os

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combatentes a desertar. É taxado de traidor da pátria e tido pelos babilônios, como colaborador (Jr 39). Finalmente foi uma das vítimas do golpe de estado que se tramou contra o poder babilônico (cf. Jr 41-43).

A força e a autoridade dos profetas está na sua profunda experiência pessoal de Deus. O fundamento dos seus discursos é a Aliança e essa fonte secreta que é a experiência de Deus, o Deus dos patriarcas, de Moisés, o Deus libertador, enfim, o Deus da história. Místicos e políticos. Políticos e profetas do amor ( Oséias, Isaías, Jeremias...)

5. Os profetas e a justiça social

Durante a monarquia os profetas não cessaram de denunciar as infidelidades à Aliança no domínio político, social e religioso.

Durante a realeza os profetas não cessaram de denunciar as infidelidades à aliança no domínio político, social e religioso.

Denunciam especialmente as desigualdades sociais gritantes que aumentavam sempre mais e estavam em flagrante contradição com a Aliança (Os 4,10s: “São os príncipes de Judá como os que deslocam os marcos, sobre eles derramarei minha cólera como água. Efraim oprime, viola o direito, obstina-se em seguir a idolatria..”.;

Am 3,15: “ derrubarei a casa de inverno e a casa de verão, as magníficas arcas(casas de coradas de marfim) se perderão, se desfarão os ricos palácios, oráculo do Senhor”.

Is 5,11: “Ai dos que madrugam em busca de bebidas, e até o crepúsculo o vinho os acende!”

Am 5,7-12: (primeiro ai: justiça nos tribunais): “ Ai dos que convertem a justiça em veneno e arrastam pelo chão o direito, odeiam os fiscais do tribunal e detestam quem depõe com exatidão! Conheço bem vossos muitos crimes e inumeráveis pecados; espremeis o inocente, aceitais subornos, atropelais os pobres no tribunal...”

Am 5, 21-25 (segundo ai: culto e justiça): “ Detesto e rejeito vossas festas, não me aplacam vossas reuniões litúrgicas; por mais holocaustos e ofertas que me trouxerdes, não os aceitarei, nem olharei vossas vítimas gordas. Tirai de minha presença o barulho dos cantos, não quero ouvir a música da cítara; que o direito flua como a água, e a justiça como arroio perene...”

Am 6,1-14 (terceiro ai: luxo e riquezas): “...Vós vos deitais em leitos de marfim, estendidos em divãs: comeis carneiros do rebanho e bezerras do estábulo; cantarolais ao som da harpa, inventais, como Davi, instrumentos musicais; bebeis vinho em taças, vos ungis com perfumes exóticos e não vos lamentais do desastre de José pois encabeçareis a corda dos cativos e a orgia dos dissolutos se acabará”,16-24). Cf. também Is 3,16-24, contra o luxo feminino).

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Ainda mais que este luxo e esta prosperidade se baseavam sobre a prática da injustiça: ganância nos negócios: Am 2,6-8: “ Assim diz o Senhor: Por três delitos e pelo quarto, não perdoarei Israel: porque vendem o inocente por dinheiro e o pobre por um par de sandálias; esmagam no pó o desvalido e torcem o processo do indigente. Pai e filho vão juntos a uma mulher, profanando meu santo nome; deitam-se sobre roupas deixadas como penhor, junto a qualquer altar; bebem vinho de multas no templo do seu Deus....”

Am 8,4-6: “Escutai, vós que espremeis os pobres e eliminais os miseráveis; pensais: quando passará a lua nova para vender trigo, ou o sábado para oferecer grão e até o refugo do trigo? Para encolher a medida e aumentar o preço, para comprar o fraco por dinheiro e o pobre por um par de sandálias? O senhor jura pela glória de Jacó que não esquecerá jamais o que fizeram.” empréstimos usurários : Pr 28,8: “Quem aumenta suas riquezas emprestando com usura acumula para quem se compadece dos pobres”.

Ez 18,8: “Quem não empresta com usura nem cobra juros; que afasta da iniquidade a mão e julga imparcialmente os delitos,... esse homem é justo...” , expropriações por parte dos reis: 1Sm 8,14: “O rei tomará vossos campos, vinhas e os melhores olivais, ele os tirará de vós para dá-los a seus ministros”;

especulação, fraude ; Os 12,8: “Canaã (Efraim leva o nome infamante de Canaã, povo de mercadores falsos) maneja balança falsa, gosta de explorar. Am 8,5: “Pensais: quando passará a lua nova para vender trigo, ou o sábado para oferecer grão e até o refugo do trigo? Para encolher a medida e aumentar o preço, para comprar o fraco por dinheiro e o pobre por um par de sandálias?

Mq 7,2-3: “ desapareceram do país os homens leais, não resta um homem honrado; todos espreitam para matar, estendem redes uns aos outros; suas mão são boas para a maldade: o príncipe exige, o juiz é subornado, o poderoso declara suas ambições”

corrupção dos juízes: Is 1,21-23: “ Como a Cidade Fiel se tornou uma prostituta! Antes cheia de direito, morada de justiça; agora, de criminosos. Tua prata se tornou escória, teu vinho está aguado, teus chefes são bandidos, sócios de ladrões: são todos amigos de subornos, em busca de presentes. Não defendem o órfão, não assumem a causa da viúva”

Jr 5,26-28: “...porque há em meu povo criminosos que põe armadilhas como caçadores e cavam covas para caçar homens: suas casas estão cheias de fraudes como uma gaiola está cheia de pássaros; é assim que lucram e enriquecem, engordam e prosperam; transbordam de más palavras, nem julgam segundo o direito, não defendem a causa do órfão nem sentenciam a favor dos pobres....

Mq 3,11: “ Os chefes de Sião julgam por suborno, seus sacerdotes pregam por salário, seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se apóiam no Senhor, dizendo: Não está o Senhor no meio de nós? Nada de mau nos acontecerá.” Mq 7,3: “ suas mãos são boas para a maldade: o príncipe exige, o juiz é subornado, o poderoso declara suas ambições”. Os ricos proprietarios legitimavam a sua ganância por meio de leis injustas : Is 10,1-2: “ Ai dos que decretam decretos

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iníquos, dos notários que registram vexames, que deixam sem defesa o desvalido e negam seus direitos aos pobres do meu povo, que fazem das viúvas sua presa e saqueiam os órfãos”

Am 5,7: “Ai dos que convertem a justiça em veneno e arrastam pelo chão o direito, odeiam os fiscais do tribunal e detestam quem depõe com exatidão!” enquanto que os pobres eram marginalizados, condenados a viver uma opressão semelhante a que havia vivido o povo antigamente no Egito.

Os profetas denunciam este pecado coletivo de grupos bem caracterizados: “os anciãos de Israel e seus chefes (marajás): Is 3,14: “O Senhor vem para fazer um pleito com os chefes e príncipes do seu povo. Vós devastáveis as vinhas, e tendes em casa o que foi roubado do pobre.”

os que fazem leis iníquas : Is 10,1: “Ai dos que promulgam decretos iníquos, dos notários que registram vexames....”

os opressores do justo, os que subornam : Am 5,12: “ Conheço bem vossos crimes e inumeráveis pecados: espremeis o inocente, aceitais subornos, atropelais os pobres no tribunal”.

Am 4,1: “Escutai esta palavra, vacas de Basã(mulheres dos ricos), no monte de Samaria: oprimis os indigentes, maltratais os pobres, pedis aos vossos maridos :”traze de beber” (impressionante a coragem de Amós...)

6. A verdadeira religião se expressa na promoção do direito e da justiça

Este é um ponto fundamental da pregação profética, que será retomado e reforçado pelo profeta Jesus.

Desde que o mundo é mundo, existem tipos individualistas e pietistas de religião, encaracolada em si mesma, sem preocupações com os outros e acumpliciada ou acomodada com as injustiças sociais: religião alienante no sentido de Karl Marx. No tempo de Jesus havia dois tipos de religião ( o ateísmo ainda não existia): a do judeu que procurava afirmar-se perante Deus através da observância meticulosa da Lei, liturgias e sacrifícios no templo; e a religião do pagão que para captar a benevolência da divindade usava ritos e magias. Uma e outra forma de religião gerava medo e ates desespero. E,eram, afinal de contas, movidas pelo interesse ( cf. Albert Einstein: se somos religiosos ou por medo ou por interesse de recompensa, nós somos mesmo uns pobres coitados). Os ateus têm uma boa parte de razão. Jesus se opõe a uma e outra religião e propõe uma nova forma de se relacionar com Deus que ele chama de “Reino de Deus”. É a religião que vem do alto, a qual o homem deve acolher com ação de graças e estender aos outros em forma de amor, solidariedade e fraternidade ( cf. o episódio Zaqueu). Esta religião não é projeção humana. Ou seja, aqui as pessoas não projetam sobre Deus o que acontece entre elas.

Essa “nova religião” que seria melhor chamar simplesmente de fé, Reinado de Deus, foi preparada longamente pelos profetas do AT. Os profetas sabiam da

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importância do culto divino como exigência da Aliança, aquilo que é absolutamente primordial e indispensável, o profeta respondia nos termos do oráculo de Miquéias: “Quando se perguntava qual é o coração da Aliança, aquilo que é absolutamente primordial e indispensável, o profeta Miquéias respondia: “Já te foi revelado, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar o direito, amar a bondade e caminhar humildemente com teu Deus” (Mq 6,8).

Os 6,6 “Porque é amor que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus e não holocaustos”. Aqui “conhecimento de Deus” está em paralelo com “amor” e seu contrário é oferecer (meramente) sacrifícios e holocaustos. Portanto não se trata de um conhecimento intelectual (teologia), mas de fazer a vontade de Deus.

Jr 22,16 : “ (O rei Joaquim) fez justiça a pobres e indigentes e isso sim é conhecer-me”. Portanto, “conhecer” na bíblia não é um saber, mas um fazer. A pessoa simples do interior que tem temor de Deus e vive seus mandamentos que afinal de contas se resumem no amor ao próximo (Rm 13,9-10; Gl 5,14), pode ter maior conhecimento de Deus do que um teólogo de gabinete.

Segundo Oséias, se não houver na vida da nação lealdade e respeito pelo próximo, todo “conhecimento de Javé” será mentiroso. Os sacerdotes, além de se esquecerem da lei, assaltam e matam (6,1-9). Assim, o não-conhecimento de Deus supõe, não tanto a ignorância, quanto a culpa e o pecado no comportamento moral (cf. Jr 4,22; 8,7;Os 4,6; 11,3).

Is 1,7-10: Não adianta rezar sem buscar o direito, corrigir o opressor e fazer justiça ao órfão e à viúva. Cf. também Jr 7,5-7.

Jr 7,9-11: o templo não é um covil de ladrões. “Covil” não é onde os ladrões roubam os outros, mas onde eles se refugiam em busca de segurança depois de terem roubado os outros alhures.

Tal é o ensino constante dos profetas. Quando se discute o que é essencial na religião, eles respondem: não é freqüentar o templo, o culto. Isso é necessário, mas pode ser algo de ambíguo e ilusório. O teste decisivo, o único critério incontestável da verdadeira religião é praticar a justiça na vida pessoal, profissional e social.

Vejamos este texto audacioso, quase agressivo: “Eu odeio e desprezo vossas festas religiosas, desgostam-me essas vossas procissões, não me agradam vossas oferendas, sacrifícios, holocaustos.. Afasta de mim o ruído dos teus cantos, não quero ouvir o som de tuas harpas. Mas que o direito corra como água, e a justiça como rio caudaloso”(Am 5,21-24)

Esse refrão dos profetas antigos ressoa através dos séculos, marcando a originalidade da religião bíblica, ontem como hoje, ameaçada pelo pietismo individualista e interesseiro.

Um último texto, à guisa de síntese: “O jejum que eu aprecio, diz o Senhor, é este: solta as algemas da injustiça, dá liberdade aos oprimidos, reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres sem teto.”

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Conclusão: Adoração, ritual, culto e templo não são apenas a celebração do Deus da Aliança, mas a celebração desse Deus como libertador da opressão e do domínio, da escravidão e da morte no Egito, para uma terra de justiça, direito e liberdade. O culto judaico celebra esse Deus dessa justiça. Mas na ausência da justiça social, tal celebração é a mais pura hipocrisia

7. Jesus e a política

7.1 A atuação profética de Jesus

A política é um espaço privilegiado para a prática da fé. Através da política, a fé e, a caridade que a acompanha e a traduz, ganha eficácia. E ganha eficácia e enquanto usa a racionalidade política. É um espaço privilegiado, porém terrivelmente minado, exigindo da fé um difícil e constante discernimento em vista de promover o bem comum. Por isso é sempre delicado e polêmico falar de fé e política, Igreja e política.

Jesus fundou uma nova religião: uma religião que vem do alto que não é de modo algum projeção humana. Rompeu drasticamente com a religião tradicional e também com o paganismo. Uma religião que nasce do alto parece excluir uma relação com a política. É que a nossa leitura dos evangelhos está viciada por preconceitos alienantes.

Ser cristão é cultivar uma relação pessoal com Jesus, e sua causa.Jesus não pediu adoração, aclamação, choro, mas seguimento. E seguimento ou discipulado implica em comprometer-se com a causa ou projeto de Jesus. Separar pessoa e projeto de Jesus é traição.

Para justificar o empenho da fé na política recorremos aos profetas: místicos e políticos. Binômio este que libera uma energia enorme, revolucionária. Para nós é difícil imaginar uma pessoa. Para nós é difícil imaginar uma pessoa ao mesmo tempo mística e profético-política.

Quem foi Jesus? Em primeiro lugar: um profeta na linha dos profetas do AT. Jesus retoma a crítica dos profetas: Lc 11,52: “Ai de vós juristas, que ficastes com a chave do saber:vós não entrastes e fechastes a passagem aos que entravam”; Mt ”; Mt 15,7: contra a hipocrisia religiosa: “esse povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim(Is);Jo 8,39: não adianta dizer que são filhos de Abraão; purificação do templo (Mc 11,15ss) e anúncio de um culto perfeito após a destruição do santuário material ( Jo 2,16). Jesus percebe que sua mensagem é recusada (Mt 13,13ss), rejeitado por essa Jerusalém que matou os profetas (Mt 23,37ss). O povo: “Um grande profeta surgiu entre nós”(Lc 7,16). Jesus é considerado “O Profeta” (Jo 1,21; 6,14 etc.). Mc 8,28: “Quem dizem as pessoas....João Batista, Elias...; Lc 24,19: “ um profeta poderoso em obras e palavras...; Os sumos sacerdotes “tentaram prendê-lo mas tiveram medo da multidão, que o tinha como profeta” (Mt 21,46).

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Jesus veio trazer a salvação para o homem todo (cf. milagres de cura). O que entender por salvação? Acolher o dom de Deus que é fonte de vida e liberdade, com ação de graças, e partilhar esse dom com os outros em forma de fraternidade, solidariedade. Fundou uma nova religião (Reino de Deus) que nasce do alto como dom de vida e de liberdade para o homem e que deve ser acolhida com ação de graças e passada adiante em forma de justiça e direito.

Religião que Jesus fundou não é projeção humana. O Deus de Jesus não é um Deus à imagem e semelhança do homem, o homem, sim, que é projeção de Deus (imagem e semelhança). Na religião tradicional praticada e ensinada pela hierarquia e os mestres espirituais, as pessoas precisavam se fazer valer perante Deus pela observância da Lei, os sacrifícios e a liturgia no templo,o que sempre gerava e até desespero. A religião era uma cópia da relação entre o pequeno e o grande na sociedade humana. Era a religião ilusória, alienante, ópio do povo. A religião era projeção humana, como dizem os ateus.

No decurso da história houve e haverá sempre muitas e divergentes interpretações de Jesus, dependendo do preconceito como qual se abordam os evangelhos. Para não incorrer em desvios de fé é preciso voltar sempre à fonte de tudo: Jesus de Nazaré. Podemos também nos perguntar: qual é o aspecto da vida de Jesus que mais nos interessa aqui na América Latina? Isso é, precisamente, é fazer teologia, confrontar fé e vida. Partindo da nossa realidade nos perguntamos: qual é a luz que nos advém da vida e atuação de Jesus?

Um estudo crítico, científico dos sinóticos nos dá uma imagem muito interessante de Jesus e considerada pelos exegetas substancialmente fiel ao real. Aos exegetas procuram fazer um filme com vídeo e áudio no lugar daquele que não foi feito no tempo de Jesus, por falta de recursos....

Jesus é a encarnação de Deus. Como é Deus? Resposta: Jesus de Nazaré. Jesus revelou a face de Deus através de uma existência humana que as pessoas podiam ver, ouvir, tocar. Ele é a explicação viva de Deus, a melhor exegese (explicação) de Deus, teologia ao vivo, ambulante (“Quem me viu, viu o Pai”). Em momentos de crise, a Igreja se voltou sempre de novo para a história humana de Jesus para buscar firmeza. Foi o que fizeram Inácio de Antioquia, os monges no começo da era constantiniana, Francisco de Assis, Lutero, Inácio de Loyola, Tiago Alberiore, recentemente a teologia européia, e, entre nós, a teologia da libertação.

Jesus implantou uma nova atitude para com Deus ( uma nova “ religião”), que ele chamava de Reino de Deus. Este começa do alto como dom de Deus que gera vida e liberdade, com que a pessoa deve acolher com ação de graças e passar adiante em forma de serviço ao próximo e empenho pela justiça e o direito como diziam os profetas. Uma religião que gerava gratidão, alegria e descontração. A salvação já não dependia mais da observância da Lei, dos sacrifícios e da liturgia do templo.

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Este anúncio causou um grande reboliço e revolta na sociedade daquela época Era subversivo, “comunista”...boa notícia para os pobres, péssima notícia para as lideranças e ricos.

Sinais da nova religião: Caso Zaqueu; curas no sábado; comer com pecadores; faz exorcismos libertando para o seguimento, diz que o pai dele é que nem o pastor que procura a centésima ovelha, ou a mulher que procura a dracma perdida, ou ainda o pai do filho pródigo que faz festa quando o filho volta.. pai misericordioso. Já não é o homem que procura a Deus. É Deus que vai à procura do homem. Jesus se sentia melhor entre os pobres e marginalizados do que entre os “justos”

Subverteu as relações sociais. Relativizando o templo ele puxou o tapete dos sacerdotes e saduceus. Humilhou os fariseus: o fariseu e o publicano orando no templo; filho mais novo e o filho mais velho; a pecadora na casa de Simão;....O samaritano é modelo de homem. Não tem mais alimentos proibidos, nem impureza ritual,o jejum tem hora...Até as prostitutas não se saem tão mal na avaliação de Jesus: tem mais chance de salvação porque humildes e dispostas ao arrependimento. Uma verdadeira afronta para os fariseus. A Herodes Jesus chama de raposa...Um insulto.

Mais. Jesus estava do lado dos pobres. Dizia que o Reino de Deus era deles. Comia com eles. Evangeliza a partir deles. Os de cima que descessem. O ato de sentar-se à mesa com elementos normalmente excluídos da sociedade veiculava uma mensagem poderosa: contradizia dramaticamente as distinções “sagradas” e excludentes e profetizava assim uma sociedade igualitária. Isso causou muito ressentimento nos titulares do poder e da autoridade e foi uma das causas da execução de Jesus. Jesus era, realmente subversivo. “Comunista.

Jesus mexeu com o poder. Não ficaria impune. Os seus primeiros inimigos são os herodianos: partido político que se aliaram aos arqui-inimigos, os fariseus para confabular como matariam Jesus (cf. Mc 3,6). Os herodianos formavam um partido político conservador, davam sustentação ao Império Romano e à Herodes. Políticos matreiros, oportunistas e 100% pragmáticos ( o mal deve ser cortado pela raiz). Eram arqui-inimigos dos fariseus, mas frente a um inimigo comum se tornaram aliados. Vale anotar: os primeiros inimigos de Jesus foram os políticos. O incômodo para uns e outros era que o povo estava ficando do lado de Jesus; um perigo em potencial.

Para conhecer a pessoa e o pensamento de Jesus precisamos voltar ao Jesus histórico que existiu antes da Igreja e antes do NT.

A política divide as pessoas. Foi por isso que Jesus dividiu a sociedade. “Reino de Deus”: grandeza política e religiosa. “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer a paz e sim a espada(Segundo Lc, divisão:Lc 12,51; Mt 10,34).

Então, qual foi a posição de Jesus perante a política?

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O mundo da política como nós a conhecemos é sempre marcado por conflitos. Divide as pessoas. Talvez porque diz respeito às coisas vitais, coisas importantes para viver e conviver. Daí entusiasmo, militância, paixão, divisão, perseguição e até mortes. E quanto menor a cidade,tanto pior...

Jesus foi um homem profundamente envolvido com os conflitos sociais de seu tempo. Não passou por este mundo como um turista. Falava do Reino de Deus. Ora, o Reino de Deus é uma realidade política: tem a ver com a convivência das pessoas na sociedade. Por Reino de Deus Jesus entendia uma sociedade do jeito que Deus queria. Jesus entrou em conflito com as classes dirigentes. Numa sociedade conflitiva não se pode estar a favor de todos. Por exemplo, se assisto a uma briga onde o grande está batendo no pequeno e não faço nada, de que lado eu estou?

Jesus começou a interessar e apaixonar os seus contemporâneos porque gerou conflito. E gerou conflitos porque tomou atitudes polêmicas frente a grupos bem definidos, usava linguagem cortante, corajosa, que escandalizava os detentores do poder; “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz e sim a espada” (segundo Lc, divisão): Lc 12,51; Mt 10,34).

Jesus pregava a igualdade de todos, independente da condição social, independente também do ter, poder ou saber. E isto porque os homens são todos irmãos e não concorrentes. Esta é uma posição política fundamental, pois a política deve justamente administrar a convivência social.

A palavra de Jesus era cortante: “felizes de vocês, pobres..... ai de vocês ricos...”. O Jesus dos sinóticos é combativo, provocador, irônico, nada diplomático....Jesus era profeta e morreu porque não retirou uma palavra sequer e levou o seu profetismo até o fim. Gerou conflito, aumentou o conflito e exasperou o conflito até ser assassinado. Um mártir: mesmo jurado de morte não se calou. Chamou Herodes de raposa..., um verdadeiro insulto.

Deixando de lado, por questão de honestidade, a imagem pré-fabricada (pós-fabricada, depois da páscoa), do doce e dolorido Jesus, nos encontramos a cada passo com um Jesus combativo, que provoca mantém e aumenta um conflito até levá-lo ao assassinato jurídico, isto é, um assassinato político disfarçado de legitimidade.

Associar Jesus à política, para nós, parece algo de forjado ou ideológico. Isso se deve a dois motivos: 1. Desconhecimento do Jesus histórico (em vez de um Jesus “domesticado”) e, 2. Uma idéia errada de política (idéia maquiavélica: luta pelo poder e manipulação do poder). Mas no tempo de Jesus, religião e política eram uma coisa só, administrada pelas mesmas pessoas> O Templo era como se fosse o Vaticano, o palácio do planalto, o Supremo Tribunal Federal, o senado, o banco central...O chefe supremo era o Sumo-sacerdote (Caifás no tempo de Jesus, 18 anos no poder. Assim sendo, a política era religiosa e a religião era política. Sem levar em conta esse contexto, não vamos entender nunca a atuação e o impacto de Jesus na sociedade de seu tempo.

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É preciso cuidar com o anacronismo: julgar o ontem a partir do hoje. Infelizmente é um erro comum. Daí os mal-entendidos: 1. Jesus foi o fundador de uma religião, logo falou de religião e não de política (somos nós hoje, após a república, que separamos Igreja e Estado, religião e política).

A Teologia da Libertação que recebeu luz verde na Assembléia do Celam em Medellín e Puebla, destacou uma nova imagem de Jesus, como o libertador. Não deveria ser nova... Porque lemos em Lc 4,18, no discurso inaugural e programático de Jesus em Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção para anunciar a boa nova aos pobres, proclamar aos cativos a libertação e aos cegos, a recuperação da vista, para despedir os oprimidos em liberdade...”

Mas a pregação tradicional, apoiada numa leitura espiritualista da bíblia e na religiosidade popular cultivam imagens distorcidas e mesmo alienantes de Jesus: O Jesus da 6ª feira Santa: o Cristo-amor; O Cristo-poder; o Cristo reconciliador...

O Jesus da 6ª feira Santa: sofrido, injustiçado e morto: os índios, aniquilados e vencidos, os negros escravos eram levados a se reconhecer neste Cristo sofredor e aprender paciência e resignação para sobreviver com um mínimo de sentido. E os pregadores: Se Jesus que era inocente sofreu tanto com uma paciência maior do que a de Jó..., imaginem então vocês que são pecadores.Na TdL o crucificado começou a gerar revolta: como puderam fazer uma coisa dessas... e pior que hoje continua... Então se não se fizer nada pelos crucificados de hoje então o crucifixo é mero símbolo cultural.

O Cristo-amorCom a imagem de Cristo-amor se diz algo de muito verdadeiro, mas é

preciso dizer em que consiste este amor, quais são as suas forma esuas prioridades. Enquanto amor abstrato ele pode encobrir a injustiça e a parcialidade amorosa em favor dos pobres. Jesus amava a todos, mas não de maneira igual. O Cristo “caritativo”ou puramente assistencial fez ignorar durante séculos o Jesus profeta da justiça.

O Crisato –poderÉ compreensível que o povo oprimido e espoliado busque algum poder em

Cristo, também porque a imagem de Deus como poder está entranhada nos mais primitivos estratos da consciência religiosa da humanidade. Os poderosos sempre gostaram dessa imagem do Cristo-poder. De alguma forma, Cristo sacralizava o poder e o domínio deles. “Todo poder vem de Deus”... O Cristo “poderoso” e o Senhor “onipotente” que está em cima, fizeram ignorar e contradizer o Jesus cujo poder é serviço e cujo lugar é embaixo, na força da verdade e do amor. Achavam que Cristo estava lá em cima, mas na verdade, para surpresa geral ele estava ali embaixo lavando os pés dos apóstolos.

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Cristo reconciliadorClaro está que Cristo quer reconciliar os homens com Deus e os homens

entre si. Mas isto não acontece sem conflitos. Não se pode falar de um Jesus pacificador, ou príncipe da paz, sem mencionar a denúncia profética, falar do Jesus das bem-aventuranças sem falar do Jesus das mal-aventuranças ( “ ai de vós...), do Jesus que ama os pobres de um jeito e os opressores de outro...

Enquanto se cultivam estas imagens alienantes, o anúncio de Jesus não causa impacto, não mexe com ninguém... e a nossa sociedade cristã é o que é: o evangelho não penetrou nas consciências. A pregação é espiritualista, intimista, adocicada, que serve para todos e para ninguém. A salvação consiste, segundo a pregação tradicional, no perdão dos pecados e na vida depois da morte.

Jon Sobrino: “... O nosso continente cristão viveu séculos de opressão deshumana anti-cristã sem que a cristologia tomasse conhecimento e sem levar consigo uma denúncia profética em nome de Jesus Cristo”. Era uma cristologia que não levava a seguir Jesus. Para ser cristão não era preciso converter-se. Bastava não ser contra, como ainda hoje.

João Paulo II: a maioria dos católicos ainda são catecúmenos....isto é, pessoas que ainda precisam ser evangelizadas para então serem batizadas.

Leonardo Boff: “O Cristo monarca celestial (dogmática oficial) e o Cristo vencido da piedade popular constituíram peças de apoio ao projeto colonizador. Os cristos agonizantes e moribundos da tradição latino-americana são Cristos da impotência interiorizada dos oprimidos. A virgem dolorosa, com seu coração transpassado personifica a submissão e a dominação da mulher. Suas lágrimas exprimem a dor pelos filhos massacrados pela ganância do poder e do ouro do colonizador”.

O Templo e a Lei eram os dois pilares sobre os quais estava construída a sociedade judaica. Eram usados para oprimir o povo. Segundo os líderes espirituais e políticos a salvação vinha do templo (sacrifícios) e da Lei. Lei complicada: 637 prescrições e proibições. Pobreza e doenças: castigos pelos pecados. Os pobres e marginalizados haviam introjetado esta opressão: cf. o fariseu e o publicano rezando no templo.Jesus relativizou uma e outro. O sábado representava o cerne da Lei. Jesus disse que o sábado era para o homem e não o homem para o sábado. “Se estiveres para fazer a tua oferta....” ou seja, o Templo pode esperar, também porque o culto sem empenho pela justiça e o direito é hipócrita e alienante.

A festa da páscoa que deveria ser a festa da libertação frente ao Egito, tornara-se ocasião de exploração dos pobres peregrinos que vinham de longe para oferecer sacrifícios, pagar promessas, levar lembranças...etc. Havia ágio na compra de animais para o sacrifício e no câmbio... A intervenção de Jesus era um gesto eminentemente político e perante a Lei, uma blasfêmia. Coisa de profeta. Jesus estava mesmo no olho do furacão. Anunciando a destruição do templo Jesus decretava o fim daquela liturgia formalista e ritualista e anunciava uma nova liturgia: uma adoração em espírito e verdade.

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O poder é sempre uma tentação para os que o exercem: tentação de absolutizá-lo em benefício próprio. Lord Arcton: “todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Pior ainda quando o poder está aliado à religião porque então se pode invocar a caução absoluta do Todo-poderoso (Poder sagrado...). Cf. Barão de Itararé...)Por isso mesmo é bom trocar os detentores do poder.

O recado para nós hoje: para implantar o direito e a justiça de maneira eficaz é preciso usar a racionalidade política. Então, sim, a política é o espaço privilegiado para exercer a caridade.

Os imperadores romanos se faziam passar por deuses, justamente para sacralizar o seu poder e aumentar assim a opressão sobre o povo. Aí a religião se tornava ideologia ; “ pax romana”. As pessoas eram reféns dessa ideologia e do medo que ela causava

Jesus era um profeta da não-violência. Havia escolhido um messianismo humano, sem violência, sem poder sem glória.

“O meu reino não é deste mundo”: O evangelho, o Reino de Jesus, a comunidade da salvação não podem ser identificados com nenhum sistema, regime ou projeto temporal, social, econômico ou político, mas exigem a busca de justiça e de solidariedade em todos os sistemas, regimes ou projetos socioeconômicos, políticos e culturais. O amor não pode ser abstrato, mas concreto. Daí, mais uma vez, a importância da racionalidade política.

No tempo de Jesus havia movimentos de resistência como, por exemplo, os zelotas (zelotas porque zelosos pela Lei, Templo e Terra Santa. Os zelotas formavam um movimento camponês da Galiléia e reuniam o povo espoliado de todos os bens. O braço armado dos zelotas no ambiente urbano eram os sicários. Seu programa para Israel era abolir as dívidas, acabar com os latifúndios e libertar os escravos. E principalmente, expulsar os romanos que estavam profanando a nação. Teria sido fácil para Jesus assumir a liderança desse movimento, ainda mais que todo mundo esperava um Messias tipo Davi, ou Moisés...

Será que Jesus foi um agitador político? De modo algum. O agitador costuma servir-se dos conflitos e os exacerba levando a uma luta de classes. Jesus era subversivo, sim, porque queria a mudança do status-quo, mas sem luta de classes, sem violência. Profeta da não-violência. Jesus, resistindo às tentações havia escolhido um messianismo humano, sem violência, sem poder, sem glória.

7.2 O fundo político da morte de Jesus

Mas,afinal, porque Jesus foi condenado à morte? Segundo os sinóticos o motivo da condenação foi a messianidade. Ao

menos foi o que convenceu Pilatos. Crucificado entre dois bandidos :léstai (cf. Mc 14,48 (tratava-se de bandidos sociais, tipo Lampião...). “Ele subleva o povo”.

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A inscrição no alto da cruz: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”. Crime de lesa-majestade. Hoje diríamos que foi condenado em nome da Lei da segurança nacional... Juridicamente, perante Roma, Jesus cometeu um crime contra o Império, crime de lesa-majestade. Hoje diríamos que foi condenado em nome da Lei da Segurança Nacional. Embora na sua vida pública Jesus não causara qualquer problema para Roma. Tanto isto é verdade que Pilatos não achava crime nenhum em Jesus. Mas, afinal de contas, foi ele que pronunciou a sentença: “íbis ad crucem” você vai para a cruz. Pilatos era um homem cruel e sanguinário.

Na verdade, foram motivos de política interna: a posição crítica de Jesus frente às lideranças judaicas e sua proximidade ao povo. Jesus tomara o partido dos pobres.

Jesus tomara o partido dos pobres. Embora não excluísse ninguém do projeto salvífico de Deus, ele mesmo, no discurso inaugural de Nazaré disse que fora enviado para anunciar a Boa Nova aos pobres( para os ricos não era “boa nova”). Lucas diz claramente que a vinda do Reino de Deus é má notícia para os ricos (cf.Lc 6,24ss). Os pobres de Lucas são os pobres econômicos e os pobres sociológicos. E essa Boa Nova era tão política quanto religiosa. A interpretação da obra de Jesus como perdão dos pecados é pós-pascal e parcial. Não diz tudo.

Em qualquer sociedade, a maioria pobre quando conscientizada pode ser um perigo para a minoria detentora do poder. Esta usará de todos os meios para silenciar a maioria: a força ou a ideologia de que a situação deles corresponde a um decreto divino. Na sociedade judaica do tempo de Jesus, os pobres e doentes eram chamados de pecadores e acabavam se convencendo que de fato o eram. E enquanto esta maioria baixa a cabeça, bate no peito e acredita que estão na desgraça de Deus, a minoria não tem nada a temer. Mas quando alguém lhes diz que não são desgraçados e mais, que Deus está do lado deles, eles se tornam perigosos.

E numa teocracia, aqueles que destrem sistematicamente a autoridade real do grupo dominante, ainda que o faça, ou precisamente porque o faz por motivos religiosos, se torna temível adversário político.

Jesus tinha consciência de ser o Messias (libertador) do qual o povo esperava a libertação de Israel frente aos romanos. Mas Jesus seria um Messias diferente que só seria compreendido depois da páscoa. Todavia foi justamente por causa dessa messianidade diferente que Jesus entrou para a história.

Ao entrar em Jerusalém, Jesus foi saudado como rei e sucessor de Davi. “Alguns fariseus da multidão lhe disseram: Mestre, repreende teus discípulos. Jesus replicou: Digo-vos que, se eles se calarem, as pedras gritarão” (Lc 24,21)

Parece que os próprios discípulos esperavam que Jesus instaurasse um reino como o de Davi. A mãe de Tiago e João pediu os dois primeiros lugares para seus filhos (cf.Mt 20,20s). Os dois discípulos de Emaús disseram : “ E nós que esperávamos fosse ele a libertar Israel” (Lc 24,21. Cf. também At 1,6, quando da ascensão: “É agora que vais restaurar a soberania de Israel?” Então será que 3

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anos de vida pública não foram suficientes para desfazer o equívoco, ou não houve mesmo equívoco.

Conclusão: Se a condenação de Jesus à morte por motivos políticos foi uma mentira ou um engano então, a morte dele foi um destino estúpido (Bultmann). Significa que Jesus não morreu por uma causa nobre mas por causa de uma interpretação equivocada de sua atuação. Ora, nós estamos convencidos de que Jesus morreu pela causa do Reinado de Deus que estava por vir e que iria substituir o status-quo religioso-político. Era uma causa tão importante que valia a pena morrer por ela. Jesus morreu porque levou o seu profetismo até o fim. Essa fidelidade era vontade de Deus e não a morte.

8. Presença/ausência do profetismo na América Latina

8.1 Introdução : Profetismo na aurora da América Latina

A relação entre Igreja e política, ou Igreja x Estado, no Brasil como também nos demais países da A.L. se configurou dentro da união entre trono e o altar. Esta parceria vai marcar profundamente a história do Brasil-colônia e Brasil-império até a república. A conquista e a colonização da América por mercenários da cristandade deveria ter colocado a questão crucial da relação entre a fé e a política. Mas não, porque a parceria entre o trono e o altar que convinha tanto ao Estado como à Igreja, dificilmente poderia fazer vingar algum tipo de profetismo. E, no entanto, houve algumas notáveis vozes proféticas, mas que, infelizmente, não passaram de andorinhas que não fizeram verão...

Esclarecimento: Cristandade:É a idéia central do período histórico-aclesiástico que vai de Gregório VII a Bonifácio VIII. Por força dela o papado sobe ao posto de guia do mundo ocidental e se eleva acima do próprio imperador.Durante os três primeiros séculos de colonização vigorou no Brasil o modelo Igreja-cristandade. Trata-se de uma revivescência de uma concepção de Igreja que perdurou durante a Idade Média na Europa ocidental. A idéia básica do modelo é o conceito de sociedade sacral. Nesse conceito de sociedade sacral ou cristandade se identificam os conceitos de fé e nacionalidade, e o catolicismo passa a ser a religião oficial do Estado. Os interesses da Igreja são os interesses do Estado e vice-versa. Esta unidade entre fé e nacionalidade é mantida através de dois mecanismos principais de ação: por meio da inquisição, não se permite nenhuma divergência religiosa que venha a romper a unidade nacional: e por meio da guerra santa se combatem os inimigos externos da pátria e da religião. Foi na península ibérica que o espírito de Cristandade permaneceu mais

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arraigado, entre outras causas pela prolongada luta contra os árabes…Na concepção da cristandade, os monarcas passam a ser efetivamente os chefes religiosos do povo, tornando-se representantes da autoridade divina mediante o rito sagrado da coroação.

8.2 Maquiavel ou Las Casas?

É interessante registrar no início do séc. XVI um curioso sincronismo entre Maquiavel e alguns missionários dominicanos que começaram a atuar na recém-descoberta América.

Em seu livro O Príncipe (1515), Maquiavel dava aos políticos uma espécie de “discurso sobre o método, para bem servir-se do poder. Enquanto isso, na América, o evangelismo renovador e libertador começava a inspirar o que seria uma ética de justiça e solidariedade, as bases, portanto, de uma política voltada para uma “civilização do amor”. À frente desta estavam os dominicanos Bartolomeu de las Casas, Antonio de Montesinos e Pedro de Córdoba.

Maquiavel retomava e atualizava a doutrina e, sobretudo, a prática dos césares antigos e modernos. Ele concentra a política na conquista, na manutenção, no uso, nas condições de êxito ou de fracasso do poder, que é compreendido como dominação soberana, como força que decorre da virtù, da virtude, não da virtude moral, menos ainda cristã. Virtù é energia lúcida e matreira, vontade eficaz e determinada quanto aos objetivos da dominação. virtude maquiavélica é, sobretudo, persistência e habilidade para discernir nos bons momentos os meios adequados para garantir o triunfo sobre a adversidade e os adversários.

Em oposição direta à semelhante concepção do poder, definido como bem absoluto, levanta-se na aurora da América Latina, a pregação evangélica dos grandes missionários dominicanos: Pedro de Córdoba, Antonio Montesinos e Bartolomeu de las Casas. Esses pioneiros de uma nova e autêntica visão política afirmam o primado do direito sobre o poder. Proclamam a manutenção e a promoção do direito de todos, especialmente dos mais pobres e desprotegidos, como objetivo e critério de legitimidade do poder. Lá estavam os índios da América e os negros da África tristemente escravizados nas colônias ibéricas, sobretudo portuguesas.

Os conquistadores, em virtude de uma falsa visão da fé e da cultura, viam nesses índios e nesses negros o tipo perfeito de bárbaros, dos desprovidos de leis, de direitos, de poder político. Em uma palavra, eram miseráveis “infiéis”, destinados a servir os fiéis de Cristo e os súditos dos reis católicos. De forma alternativa, segundo a sucessão de seus interesses políticos e econômicos, inauguraram esse desastroso processo de conquista

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e de colonização pelas Ilhas Canárias, passando depois para o Novo Mundo das Índias Ocidentais, a América. A Politização da religião, a sacralização do poder absoluto, eclesiástico e civil, atingia a cristandade da cabeça aos pés e a levava a uma atitude de imperialismo camuflado pelo apelo à evangelização. Confundia-se colonização e evangelização.

Em 1511, Frei Antonio Montesinos, no 4º Domingo do Advento, começou a pregar: “ Eu sou a voz que clama no deserto..…” Com autoridade e firmeza, denunciou o pecado da escravidão indígena e se confrontou energicamente com os encomendeiros. Protesto dos espanhóis e das autoridades... No domingo seguinte, Montesinos repetiu e confirmou tudo o que havia dito. A denúncia profética de Montesinos e sua comunidade religiosa de dominicanos teve profundo impacto na sociedade colonial de São Domingos e na Espanha.

Como pregadores da primeira comunidade dominicana no Caribe, foram profetas e testemunhas do Reino de Deus e de sua justiça. Distinguiram-se como homens de visão e talento, que elaboraram e puseram em prática um projeto de evangelização, partindo da concreta situação em que viviam os índios.

Para estes primeiros missionários, os índios e os negros eram seres humanos, portanto, tinham todos os direitos, embora não tivessem o nosso sistema jurídico, político, econômico, a nossa cultura, a nossa civilização, eles tinham a cultura deles com todos esses elementos de uma autêntica sociedade. Não tinham a nossa fé cristã, mas tinham e praticavam uma religião que brotava da sinceridade do coração deles. Viviam uma moral diferente da nossa em alguns pontos, mas que, em seu conjunto, mostrava-se, por vezes, superior ao modo de viver dos colonizadores cristãos. Os missionários iam mais longe. Declaravam que homens e mulheres, desqualificados pelos conquistadores como pagãos ou infiéis eram efetivamente amados por Cristo. Antes de entrarem em contato com os cristãos, os índios receberam de Cristo o influxo benéfico de sua graça salvadora. É uma ética política de inspiração evangélica fundando o respeito absoluto da dignidade de cada pessoa humana e assegurando a promoção de todos os direitos para todos os indivíduos, famílias, categorias, para as etnias e povos, para a comunidade mundial.

Infelizmente não era esta a posição oficial da Igreja e dos colonizadores. O cristianismo hispano-lusitano chegou determinado por longa história de Cristandade, permitindo que o processo de evangelização fosse a um só tempo e equivocadamente civilizatório, ou seja: processo de aniquilação cultural e política dos povos ameríndios. O evangelho veio junto com a espada opressora, violenta e conquistadora. A América teve

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que suportar então uma Igreja identificada com o Estado. O americano conheceu o cristianismo dentro de um “modelo” de Cristandade latina e ibérica.

Com ou sem consciência, a Igreja se articulava, em suas estruturas hierárquicas hegemônicas, com o poder conquistador. A classe conquistadora, encomendeira e comerciante apresentava-se ao indígena entremesclada com o missionário e o clérigo. Houve louváveis exceções.

8.3 Um exemplo de profetismo no Brasil

Em 1549 Manoel da Nóbrega com mais sete missionários desembarcou em Salvador da Bahia. Demonstraram excelente sensibilidade cristã e detectaram logo o problema fundamental da sociedade: a relação senhor x escravo.

Entre 1550 e 1580 houve muita discussão entre os jesuítas e os senhores dos engenhos o que levou à chamada greve dos confessionários: quem declarasse ter escravos não recebia a absolvição. Essa greve fora organizada em oposição ao clero secular (diocesano) e ao bispo que ficaram do lado dos proprietários de terra e senhores de escravos. Com isso estava armado o 1º conflito ético da história do Brasil; seria possível ser cristãos e ao mesmo tempo ter escravos? A situação tornou-se insuportável. A atuação dos jesuítas questionava a legitimidade do projeto Brasil: “ Sem escravo não há Brasil”. Estima-se que 3.600.000 escravos tenham sido importados da África. Isso trouxe a África para dentro da compreensão da realidade brasileira, como bem o expressou o Padre Vieira: “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”.

O 1º visitador da Companhia de Jesus veio ao Brasil e mandou de volta para a Europa os padres Gonçalo Leite e Miguel Garcia.

Mas a postura dos jesuítas a favor dos indígenas continuava a mesma. Com o tempo,os missionários jesuítas foram percebendo que sua opção pela vida dos indígenas implicava na militarização dos mesmos para poderem sobreviver aos ataques dos bandeirantes e outros emissários do poder colonial. Foi esta postura prática dos jesuítas que levou o Marquês de Pombal, ministro de Dom José, rei de Portugal,em 1759 a expulsar os jesuítas do Brasil.

8.4 A Cristandade colonial

Objetivo dos colonizadores espanhóis e portugueses: obtenção de riquezas e evangelização do novo mundo.

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Durante o Brasil-colônia e o Império vigorava o sistema do Padroado: o governo de Portugal “apadrinhava” a Igreja e o catolicismo era a religião oficial e a única permitida. A Igreja, por sua vez, conferia, através do papa Adriano, em 1527, ao rei português Dom João III a dignidade de grão-mestre da Ordem de Cristo.

No sistema de padroado, os poderes do Rei de Portugal sobre a Igreja eram quase totais, pois era de sua responsabilidade a construção de igrejas, de mosteiros; provê-las de padres e religiosos; nomear bispos, apoiar a Igreja, e fazer tudo isso mediante administração do Dízimo. Toda e qualquer bula ou documento papal passava pela censura do Rei português. Padres e missionários que quisessem vir ao Brasil precisavam antes jurar fidelidade ao Rei de Portugal.

Igreja Católica e Poder político caminhavam juntos. Até a República a Igreja nunca gozou de independência e autonomia. Segundo comentaristas, esta situação vivida pela Igreja teria influenciado decisivamente a cultura brasileira, inculcando uma visão paternalista de Deus.

Até 1822 havia no Brasil apenas 7 bispados. A imensidão do território e a escassez do clero fizeram com que o povo passasse a viver sua religiosidade do seu jeito: capelas, irmandades, confrarias, devoções aos santos. Daí uma religião popular à margem da Igreja oficial.

8.5 A romanização da Igreja do Brasil.

Com o Concílio Vaticano I começou um movimento de centralização da Igreja na e pela Cúria Romana. Muitos padres brasileiros começaram a estudar em Roma. Começou-se a contestar as prerrogativas do Império sobre a Igreja. Daí a Questão religiosa em 1874.

1889: proclamação da República. Separação entre Igreja e Estado. O clero perde os privilégios que tinha, não gozava mais de imunidade política. A educação foi laicizada, a religião eliminada do currículo e os governos ficavam proibidos de subvencionar escolas religiosas.

A Igreja tenta reaproximar-se do Estado. Processo longo e difícil.Instauração do capitalismo agrário provoca movimentos de

contestação: Os movimentos de Canudos na Bahia (1893-1897), do Contestado, entre a divisa dos Estados de Santa Catarina e Paraná (1912-1916) e o Pe Cícero, em Juazeiro no Ceará, foram movimentos religiosos de protesto social. A Igreja Oficial colocou-se contra os três movimentos.

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Uma voz isolada no meio do clero, o Pe Júlio Maria, posicionou-se do lado do povo.

Cortada do aparelho do Estado e do pequeno círculo das oligarquias liberais, a Igreja continuava profundamente ancorada em sua aliança de classe com as oligarquias conservadoras (exceto nas zonas de colonização alemã e italiana no Rio Grande do Sul e Santa Catarina onde se estabelecem laços profundos entre a Igreja e os pequenos proprietário de terra.

Marco importante foi a nomeação de D. Sebastião Leme da Silveira Cintra como arcebispo do Rio de Janeiro (1921). O processo de restauração católica começa a ganhar corpo. Quer ampliar a influência da Igreja. Em 1922 cria o Centro Dom Vital para formar uma intelligentsia católica.

Em 1931, já no governo Vargas, duas manifestações religiosas de massa: uma em homenagem a N. Sra. Aparecida e outra na inauguração da estátua do Cristo Redentor no Rio fortalecem o projeto de Dom Leme de aproximar a Igreja do Estado.

Constituinte 1934. Dom Leme recusou a idéia de se formar um Partido Católico. Adotou a tática de formar grupos de pressão para atuar junto aos candidatos constituintes. Assim nasceu a LEC: liga eleitoral católica, com dupla finalidade: 1. instruir, congregar, alistar o eleitorado católico; 2. assegurar aos candidatos dos diferentes partidos a sua aprovação pela Igreja, e portanto, o voto dos fiéis, mediante a aceitação por parte dos mesmos candidatos dos princípios sociais católicos e do compromisso de defendê-los na Assembléia Constituinte. Sucesso. A maioria destes candidatos se elegeu, e a Constituição saiu conforme a Igreja queria.

Constituição de 1946: mais uma vitória da Igreja graças à LEC

A partir de 1935: a ACB (Ação Católica Brasileira)consagrava “ a participação do laicato organizado no apostolado da Igreja, acima e Pra além dos partidos, para o estabelecimento do Reino Universal de Jesus Cristo” (Pio XI).

A ACB tinha a missão de transformar as estruturas sociopolítico-econômicas a partir de valores cristãos conforme definidos pela Igreja. Tratava-se de uma nova cristandade. Mas isto não foi possível ao menos até 1945 (fim do Estado Novo), porque em 1935 fora criada a Lei de Segurança Nacional que permitia a Getúlio Vargas reprimir os movimentos populares.

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8.6 A gênese da Igreja popular

As mudanças ocorridas na sociedade brasileira a partir da década de 1950, a industrialização (Kubitschek: “cincoenta anos em cinco”!), o aprofundamento da dependência ao capital estrangeiro, o acelerado processo de urbanização colocaram para a Igreja novos problemas e desafios em nível mundial, sobretudo as ligadas ao Concílio Vat II, resultaram, no Brasil, num novo perfil da Igreja católica.

A Ação Católica volta-se mais para a dimensão social e política.Em 1952 foi fundada a CNBB, corolário dos encontros regionais de

bispos ligados à Ação Católica, graças ao esforço pessoal de D.Hélder Câmara.

Novas experiências pastorais são iniciadas, como a Movimento de Natal tendo como finalidade a educação de base, a transformação das estruturas socioeconômicas e políticas, e a educação religiosa da população carente. A Igreja do Nordeste se achava no dever de criar sindicatos rurais o que a aproximava da população camponesa e a fazia concorrer com as Ligas Camponesas de Francisco Julião.

A Ação Católica, principalmente a JUC, a JOC e a JEC, descobriu que a evangelização do meio específico compreendia muito mais do que uma simples assistência religiosa.

A partir de 1960, a JUC se politiza, disputa cargos de direção na UNE.

Em 1961 foi criado o MEB, sucedâneo das escolas radiofônicas do Movimento de Natal, com o apoio do Estado( o Estado arcaria com os recursos materiais e a CNBB com a organização e o recrutamento de pessoal), atingiu as regiões mais pobres do país cuidando da alfabetização e da conscientização das classes populares.

Em 1962 os bispos declaravam. “ saudamos , com alegria as reformas de : Reforma agrária, Reforma tributária, Reforma Bancária, Reforma Universitária, Reforma administrativa, que passaram a ser o anseio de todos os responsáveis – Poderes da República, Partidos, Classes dirigentes.

Mas enquanto setores da Igreja e pastorais se envolviam com problemas sociais e políticos, a cúpula da CNBB era mais conservadora. O jucista, Aldo Arantes, eleito presidente da UNE em 1962 teve que escolher entre a JUC e a UNE. JUC, na verdade, tinha um discurso fortemente socialista e anti-imperialista. É que nos anos 60 o espectro do comunismo

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assolava o país. Viam-se comunistas (era a retórica da guerra fria) por trás de todos os movimentos sociais.

A renúncia de Jânio Quadros, abriu espaço para João Goulart. Os militares eram contrários a Jango, porque em 1º de maio de 1954, ele havia concedido aumento salarial de 100% o que deram em crise e terminara na exoneração do ministro. Além disso, Jango era sindicalista. Só tomou posse por causa do movimento pela legalidade iniciado por Brizola no Rio Grande do Sul. Os movimentos sociais estavam em polvorosa. O clima era de revolução. Jango queria fazer as reformas de base, por ele prometidas. Os setores reformistas da CNBB, majoritários então, incentivavam as reformas. Um setor integrista, porém, recusava as reformas e denunciava a esquerdização da Ação Católica.

Enquanto setores da Igreja ligados à Ação Católica encampavam a tese das reformas de base, outros setores como o Movimento Familiar Cristão, Liga Cristã Contra o Comunismo, Cruzada do Rosário em Família, Círculos Operários chegavam a receber orientação política e financiamento de órgãos antigovernistas e anticomunistas como o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), estes por sua vez, financiados por empresários brasileiros e pelos Estados Unidos). cf. “Brasil nunca mais”, p.58.

13 de maio 1964: a classe média católica e setores expressivos da burguesia paulistana promoveram em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela liberdade. Foi o clímax da campanha anti-reformista. No dia 31 de março, o golpe militar.

A Igreja Católica, que na história do Brasil poucas vezes se distanciara da órbita do Estado, se apressou para abençoar o golpe que libertara o Brasil do comunismo.... O arrependimento, porém, não tardaria. (Vinte anos mais tarde surgia em S.Paulo, por conta da Arquidiocese, o livro “Brasil nunca mais”.

8.7 Crescimento da Igreja popular

Em dezembro de 1968, com o AI 5 a repressão militar sobre o conjunto da sociedade brasileira recrudesceu.

Nos primeiros anos após o golpe as relações Igreja/Estado nadavam na ambigüidade.

Em 1969, Pe. Antonio Pereira Neto, assessor da pastoral da juventude de Olinda e Recife, foi barbaramente assassinado por um grupo para-militar.

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Maio 1970 : a Assembléia Geral da CNBB, sob a presidência de D. Aloísio Lorscheiter denuncia os casos de tortura e outras violações dos direitos humanos.

Em 1973, os bispos e superiores religiosos do Nordeste lançam um documento intitulado Eu ouvi os Clamores do meu povo, onde condenavam o modelo econômico, o regime militar e apontavam para a construção de uma sociedade socialista. Os bispos do Amazonas lançam o documento A Marginalização de um povo.

A comemoração do 25º aniversário da Proclamação dos Direitos humanos serviu como marco que consagrou a Arquidiocese paulistana na defesa dos perseguidos políticos.

1974: toma posse Ernesto Geisel. Tentativa de distensão. Mas o assassinato de Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em 1975 e 1976 reavivaram a tensão. Ainda em 1976 os padres Rodolfo Lunkenbein e João Bosco Burnier são assassinados no Mato Grosso. Em Nova Iguaçu é seqüestrado Dom Adriano Hipólito. A CNBB analisa os acontecimentos acima referidos num Comunicado Pastoral ao Povo de Deus.

1977, a XVª Assembléia Geral da CNBB emite o documento Exigências Cristãs de Uma Ordem Política, que questiona a legitimidade das ações do Estado.

Igualmente importante senão mais, foi a pressão exercida pelas CEBs que ganharam corpo nos anos 70 (80 mil em 1979). Ao mesmo tempo que evangelizavam, educavam o povo para a participação e a resistência.

Em 1972 foi criado o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) para a defesa dos índios.

Em 1975 foi criada a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que denunciou as injustiças que ocorriam no campo, incentivou os camponeses a criarem sindicatos rurais, patrocinou cursos de conscientização política e por isso mesmo tornou-se junto com o CIMI um dos alvos prediletos das ações repressoras do regime militar. Muitos padres e agentes de pastoral, lideranças rurais e indígenas assassinados nesta década tinham envolvimento direto com essas duas organizações da Igreja.

Nestas circunstâncias nasceu também a Pastoral Operária (PO), outro instrumento de resistência. Foi através da PO que os operários católicos começaram a aprofundar seus conhecimentos sobre leis trabalhistas, sobre sindicatos e estrutura sindical, a se organizarem para exigir seus direitos, a lutarem para livrar os sindicatos de trabalhadores dos chamados pelegos sindicais, através da criação das oposições sindicais.

CEBs, CPT, CIMI, PO são todas organizações da Igreja Popular, apoiadas pela CNBB que têm como preocupação evangelizar e modificar

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as estruturas socioeconômicas injustas, que marginalizam e oprimem as classes populares.

A partir de 1968 e com o aval da Conferência de Medellin a Teologia da Libertação passava a ser a referência teórica para a luta por uma sociedade melhor. Além de denunciar os vícios da teologia européia, recuperou para a teologia valores fundamentais da fé cristã, tais como o caráter social e histórico da salvação, do Reino de Deus, da graça e de pecado, a importância da ortopráxis ao lado da ortodoxia, o amor parcial de Deus e de Jesus pelos pobres, o Jesus histórico, o martírio e outros temas. O Reino de Deus , por exemplo, deixou de ser simples referencial trans-histórico para assumir conotações que implicam transformações na materialidade da vida humana.

Em 1979 assumia a presidência João Batista Figueiredo prometendo abertura política. Neste mesmo ano foi revogado o AI5. Em breve viria a anistia política.

Em 1980, na 18ª Assembléia Geral da CNBB, os bispos elaboraram um novo documento intitulado Igreja e Problemas da Terra, onde fazendo distinção entre terra de exploração e terra de trabalho, os bispos defendiam a reforma agrária e novamente condenavam o sistema capitalista.

A linha dura do regime não aceitava a abertura política. Em 1980 começaram a perpetrar várias ações terroristas, como atear fogo a bancas que vendiam jornais da chamada imprensa alternativa, atentado à sede da OAB no Rio de Janeiro, onde uma carta-bomba explodiu e matou a secretária Lyda Monteiro da Silva, e, finalmente o episódio Riocentro, onde a 30 de abril de 1981, explodiu uma bomba matando um sargento e ferindo um capitão de exército. João Figueiredo recusou-se a investigar estes casos o que provocou a demissão do General Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil da Presidência da república e estrategista da abertura política. O regime estava em crise. E para piorar ainda mais, uma recessão assolava o país entre 81 e 84.

Em 1984 ganha corpo o Movimento pelas diretas, apoiado pela Igreja e toda a sociedade civil que acabou na vitória de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf no colégio eleitoral em 15 de janeiro de 1985. Fim do regime militar.

Conclusão: Com o desmantelamento da sociedade civil em 1964, a única instituição não atingida como tal pela repressão foi a Igreja católica, ainda que, como vimos, tivesse muitos de seus quadros perseguidos. Essa relativa autonomia da Igreja, somada à presença das classes populares em

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seu seio arrastando consigo um número considerável de bispos, para que as defendessem em seus interesses, deram a ela um lugar hegemônico na resistência contra o regime militar.

Com a redemocratização do país, essa atitude da Igreja perdeu em importância, como era de se esperar. Outras associações e organismos puderam voltar a participar do processo político. Mas o período da ditadura obrigou a Igreja, tradicionalmente aliada do Estado, a assumir uma nova posição diante do Estado, como voz profética e crítica.

Vemos, pois, que foram circunstâncias históricas, externas que fizeram com que a Igreja descobrisse a sua verdadeira vocação diante do Estado. Oxalá conserve esta atitude, porque assim estará se conformando ao seu fundador, Jesus de Nazaré. Enquanto houver idolatria, opressão, injustiça social e empobrecidos, terá que haver Teologia da Libertação e a Igreja deverá fazer eco à voz profética de Jesus. Para tanto não precisará filiar-se oficialmente a nenhum partido, mas formar grupos ou associações de pressão, como vimos acontecer durante a história que brevemente abordamos. Mas deverá participar do processo político onde se decide sobre a vida ou a morte, a salvação ou a desgraça do povo. Se a Igreja não participar de alguma forma do processo político, estará traindo o seu fundador e o povo também. E não estará sendo um sacramento histórico de salvação.

9. Porque a ação da Igreja no plano sócio-político?

1. A dimensão social é essencial à consciência cristã. O cristianismo em suas origens bíblicas e em sua história é ao mesmo tempo um movimento religioso de procura de Deus e uma sede de justiça. A caridade cristã que outrora suscitou hospitais, leprosários, orfanatos, mil e uma modalidades de obras de misericórdia , deve hoje ter a lucidez e a coragem de descer até a principal raiz dos males e misérias: as injustiças generalizadas, as estruturas sociais viciadas... Em uma sociedade complexa como a de hoje, vozes isoladas não têm força. A aceitação passiva da injustiça vem a ser cooperação na injustiça (cf. Mater et Magistra de João XXIII).

2. Para os profetas do AT conhecimento de Deus e justiça social vão juntas. Além de influenciar os comportamentos pessoais plasmaram as instituições, modificando ou aperfeiçoando a ordem jurídica e o funcionamento da justiça.

3. Em oposição ao elã profético, verifica-se a tendência conservadora dos santuários e das camadas privilegiadas. Não basta só

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falar: é preciso agir (cf. Igreja e Política nº 31). A ação pela justiça e a participação na transformação da sociedade fazem parte da pregação do evangelho (ib. 32). Não pode haver separação entre evangelização e promoção humana.

4. A pregação do Jesus histórico teve um impacto social e político tanto quanto religioso.

5. O Cristianismo aparece na história como um movimento religioso, sim, e não como luta social; mas propondo uma mensagem de amor realista e eficaz que inclui, em cada época e em cada conjuntura histórica, em empenho real pela criação de uma sociedade justa. Não basta só criticar, o cristão deve agir... e difundir com real solicitude de serviço e eficácia, as energias do evangelho” cf. Igreja e Política,28. É preciso, pois, usar os meios da racionalidade política.

6. Há para a comunidade cristã de todos os tempos uma distinção entre a tarefa evangelizadora e a promoção humana mas não separação.

7. Uma lei da história: Quando uma Igreja é autenticamente fiel a Jesus Cristo e ao Evangelho, é igualmente aberta à renovação social. Uma comunidade dada a sentimentalismos, a devocionismos, sem qualidade intelectual e que vive a sua relação com Jesus Cristo apenas no culto, permanece alheia aos verdadeiros problemas sociais e acaba sendo infiel a Jesus Cristo e ao seu evangelho

8. Enfim, a autoridade da Igreja para falar de política é uma autoridade moral, própria, profética.. Ela fala em nome do homem e de seus direitos, dos quais ela tem uma visão mais completa do que a da política e da economia. Ela fala em nome de seu interesse pelo bem comum, em nome da justiça, fraternidade,igualdade, dignidade, fraternidade que são valores universais. Fale em nome da democracia, da liberdade de expressão, desinteresse por dinheiro e Poder. Quer o bem do povo. Por isso mesmo sua palavra tem força moral e precisa ser proclamada.

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