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0 FACULDADE DE DIREITO MOISÉS DE OLIVEIRA MATUSIAK Tortura por agentes da lei e a postura do Poder Judiciário Porto Alegre 2013

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FACULDADE DE DIREITO

MOISÉS DE OLIVEIRA MATUSIAK

Tortura por agentes da lei e a

postura do Poder Judiciário

Porto Alegre

2013

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MOISÉS DE OLIVEIRA MATUSIAK

Tortura por agentes da lei e a

postura do Poder Judiciário

Monografia de conclusão de curso

apresentada à Faculdade de Direito

do Centro Universitário Ritter dos

Reis, como requisito obrigatório para

a obtenção do título de Especialista

em Direito Penal e Processo Penal,

sob a orientação da Professora

Simone Schroeder.

PORTO ALEGRE

2013

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RESUMO

Este trabalho trata da atual postura do Poder Judiciário em relação aos crimes

de tortura praticados por agentes da lei, principalmente policiais e agentes

penitenciários, contra presos e suspeitos, e os reflexos de suas decisões para

a recorrência e a impunidade desses delitos, além do aumento da cultura de

violência, indicando ainda que uma mudança de postura, sob a ótica do

irrestrito respeito aos Direitos Humanos, pode ser capaz de operar uma

significativa mudança no quadro atual, no sentido de menos impunidade e

ocorrências dos crimes em questão, bem como para uma nova cultura de não

violência.

Palavras-chave: Tortura. Agentes da lei. Poder Judiciário. Direitos Humanos.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................04

2 DA TORTURA................................................................................................10

2.1 Breve histórico.............................................................................................10

2.2 Conceito.......................................................................................................16

2.3 A Constituição Federal de 1988 e a tortura.................................................18

2.4 Os Tratados Internacionais e a tortura........................................................19

2.5 A legislação infraconstitucional brasileira sobre a tortura............................20

3 O CONTEXTO ATUAL DA TORTURA NO BRASIL.....................................24

3.1 A tortura como prática bastante recorrente na atualidade do Sistema Penal Brasileiro............................................................................................................24

3.2 A postura do Poder Judiciário em relação às denúncias de práticas de tortura por agentes do Estado...........................................................................29

3.3 A conivência da sociedade com as práticas de tortura contra presos e suspeitos.......................................................................................................................37

4 DAS POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA A MUDANÇA DO QUADRO ATUAL...............................................................................................................42

4.1 A mudança de postura do Poder Judiciário em relação ao enfrentamento da questão com os mecanismos legais disponíveis...............................................42

4.2 A aplicação do art. 1º, § 2º da Lei 9.455/97 e seus efeitos na prevenção e no combate à tortura..........................................................................................47

4.3 A maior observância dos Direitos Humanos nas decisões judiciais e seus reflexos no enfrentamento do problema............................................................50

4.4 O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura PL 24442/11......51

5 CONCLUSÃO.................................................................................................54

REFERÊNCIAS.................................................................................................58

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INTRODUÇÃO

A base para a sustentação do Estado Democrático de Direito está no

respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, conforme o previsto

na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Para a aplicação

de sanções penais, prisões e demais medidas penais ou cautelares, é preciso

que sejam respeitados todos os direitos e garantias fundamentais lá previstos,

além de outros elencados em Tratados Internacionais de Direitos Humanos,

dos quais o Brasil seja signatário.

Infelizmente, as altas taxas de violência e criminalidade são problemas

crônicos enfrentados pelo Brasil e fazem com que a maioria da nossa

população viva em constante estado de medo, clamando por sanções cada vez

mais severas contra os criminosos, bem como aceitando e até festejando

constantes violações dos Direitos Humanos desses indivíduos, por mais cruéis

que possam ser, pois acabam nutrindo no sentimento de vingança uma falsa

idéia de punibilidade ou justiça.

Nesse contexto, vivemos o problema das constantes e diversas

práticas de tortura por agentes da lei, especialmente policiais e agentes

penitenciários, contra presos e suspeitos de crimes em abordagens, ao arrepio

dos direitos e garantias fundamentais, bem como a postura omissa do Poder

Judiciário em relação ao problema, o que configura uma flagrante violação dos

Direitos Humanos e contribui para alimentar ainda mais nossa cultura de

violência.

O presente tema se faz válido pela necessidade urgente de mudança

no quadro atual da tortura praticada no Brasil por agentes da lei contra presos

e suspeitos de crimes. Esses indivíduos são tratados como não cidadãos, ou

seja, pessoas sem direitos, e acabam vítimas de abusos e tortura por policiais

e agentes penitenciários, tanto no momento da prisão, quanto no cumprimento

da pena, como até mesmo em simples abordagens policiais.

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De acordo com Benevides Soares (2010), a discussão sobre a tortura

sempre envolve aspectos históricos, filosóficos, morais, jurídicos, políticos,

psicológicos e sociais. No Brasil é questão crucial e mobilizadora na área dos

Direitos Humanos, porém, ainda negligenciada ou manipulada no debate

público. Destaca ainda que, se o tema provoca aversão e indignação militante

e propositiva por um lado, por outro também desvela certo silêncio, mesclado

de medo ou desconforto, quando não explícita tolerância, além da omissão

criminosa de certas autoridades.

Conforme Machado (2010), a tortura sempre esteve presente ao longo

da história brasileira. Desde o período colonial foi utilizada como expressão de

autoridade, de coerção, de punição, de controle e de demonstração de força do

poder político das elites dominantes. Passando pelos tempos da ditadura

militar, quando o uso da tortura contra pessoas contrárias ao regime teve maior

destaque, até os dias atuais, porque a tortura ainda faz inúmeras vítimas no

Brasil, principalmente entre os grupos sociais mais vulneráveis.

Na história recente do Brasil a tortura foi amplamente utilizada pelos

agentes da lei contra presos políticos no período da ditadura militar,

especialmente depois do advento da Lei de Segurança Nacional, que

estabeleceu a guerra permanente e a figura do inimigo interno. Passado o

período do regime militar, muitos policiais e agentes penitenciários continuam

utilizando a tortura como método de trabalho, agora contra criminosos ou

suspeitos comuns, embora no atual regime democrático tal conduta seja

considerada crime hediondo e contra a humanidade.

O mais recente Informe da Anistia Internacional (2012) dá conta de que

no Brasil a prática da tortura ainda predomina no momento da prisão, durante

os interrogatórios e no período de detenção, tanto em delegacias de polícia

quanto em penitenciárias de todo o país.

O Poder Judiciário, por sua vez, parece não querer enfrentar o

problema. Raros casos são denunciados e raras são as condenações dos

responsáveis. Normalmente surgem como óbice para condenações as

alegações de falta de provas, assim como, a “fé-pública” da versão dos

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torturadores que se limitam a negar as acusações, argumentando normalmente

que houve resistência à prisão ou à abordagem, e que o uso da força foi

“moderado”.

O Relatório da ONU sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de

Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes (2012) apontou a omissão do Poder Judiciário em relação aos

casos de tortura praticados por agentes da lei. Segundo o relatório, de acordo

com as informações coletadas, os juízes raramente faziam perguntas aos

detentos sobre o tratamento que recebiam durante a investigação.

Foi recomendado então aos juízes permanecerem vigilantes aos sinais

de tortura e de maus-tratos, bem como realizar os passos necessários para

corrigir e pôr termo a essas situações. Ainda, o SPT recomendou fortemente

que os juízes se recusem a aceitar confissões quando houver motivos

razoáveis para se acreditar que tenham sido obtidas por meio de tortura ou de

maus-tratos. Nesses casos, os juízes deverão notificar imediatamente a Polícia

e/ou o Ministério Público, de modo a que uma investigação possa ser iniciada.

Não se pode generalizar e afirmar que todos os Magistrados deixam de

enfrentar as denúncias de tortura contra agentes da lei, mas é fato que a

maioria das denúncias acaba por não prosperar, apesar de ser notória a

gravidade real do problema. Sobre essa intrigante contradição, Vidal (2001) faz

importante reflexão no sentido de que se é admitido que a tortura é usual no

sistema punitivo, e sabido que o sistema normativo repudia a sua prática, é

fácil concluir que há uma profunda contradição entre o que se passa e o que se

espera, entre o ser o dever-ser, entre o mundo das coisas e o mundo ideal.

Vidal (2001) explica tamanha contradição demonstrando o problema da

eficácia da lei de tortura a partir da estrutura e dos operadores do sistema

penal, concluindo que, independente de suas posições e funções específicas,

todos os órgãos do sistema penal apresentam ideologia estamental e

corporativa, mas sugere a idéia de integridade do sistema judicial como

estratégia de sensibilização de seus operadores.

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Thompson (2007) também aborda a questão. Refere que as confissões

obtidas mediante tortura são muito comuns nos processos penais e acabam

servindo como prova para condenações, já que, na maioria dos casos, os

juízes confirmam confissões evidentemente conseguidas mediante

constrangimento da vontade dos réus, pois confirmadas por outras

circunstâncias, mas, curiosamente, não cogitam processar os policiais que as

arrancaram. Tal contexto, segundo Thompson (2007), provoca a

institucionalização do emprego da tortura para extorquir confissões, prática

que, informal, mas reiterada e claramente, é endossada pelos tribunais.

E, ainda conforme Thompson (2007), institucionalizando-se, a prática

funciona com maior eficiência. Às vezes, nem é necessário à polícia bater, pois

a certeza de que a violência no interrogatório ocorre livremente e sem

perspectiva de gerar qualquer responsabilidade para seus autores, leva o

indiciado, mesmo antes de sofrer concretamente a aplicação de sevícias

(maus-tratos como gritos, ameaças e empurrões sempre ocorrem), a relatar

todos os pecados de sua vida.

Diante da enorme conivência da sociedade com tais práticas e das

distorções da mídia no que se refere aos Direitos Humanos dos presos e

suspeitos, a tendência é o problema continuar a ser cada vez mais agravado.

Uma pesquisa realizada em 2010 pelo Núcleo de Estudos da Violência

da Universidade de São Paulo (NEV/USP), em 11 (onze) capitais brasileiras,

apontou que 47,5% (quarenta e sete e meio por cento) das pessoas

entrevistadas disseram concordar com práticas de tortura por policiais para

obter provas. É realmente um percentual preocupante, quase metade das

pessoas entrevistadas, principalmente porque o estudo foi realizado em plena

vigência do Estado Democrático de Direito.

Freitas (2009) aborda a questão da conivência da sociedade com a

tortura sob a ótica do medo que é gerado pelos grandes índices de violência e

criminalidade, sendo que resta imposta a necessidade de manutenção da

ordem, a partir do controle dos grupos considerados “perigosos” e, para tanto,

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o uso da violência física constitui um meio considerado aceitável e mesmo

necessário, em especial na atuação da polícia.

Repita-se, no entanto, que tanto a conivência da sociedade, como a

omissão do Poder Judiciário em relação ao problema, não estão amparadas

pelo Ordenamento Jurídico vigente. E pior, contribuem para a proliferação da

tortura, gerando nefastos efeitos contra os torturados e torturáveis

(normalmente das classes sociais mais baixas), além de seus familiares e

amigos próximos, pois todos ficam traumatizados, sentem-se menosprezados

como pessoa, e com medo da polícia, fatores que somente fazem aumentar a

ocorrência da violência.

Resta claro, portanto, que esse quadro não pode persistir, sendo

urgente uma mudança ampla na maneira em que a questão está sendo

enfrentada por todos. E o Poder Judiciário tem um papel importantíssimo para

a efetivação dessa mudança, na medida em que pode ser mais eficiente para

punir os responsáveis pela prática de tortura e contribuir muito no sentido de

uma cultura de não violência, baseada no respeito aos Direitos Humanos, que,

nunca é demais lembrar, são de todos.

Para resguardar as garantias e liberdades individuais de todos os

cidadãos, e limitar o poder punitivo estatal de possíveis arbitrariedades, como a

tortura, o texto constitucional expõe vários princípios inerentes à cautela que

faz jus a aplicação da lei penal. Como se não bastasse, a tortura é amplamente

repudiada por diversos Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário,

sendo, inclusive, considerada crime contra a humanidade.

A Lei 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, em seu artigo

2º, equipara a crime hediondo a prática de tortura.

A Lei 9.455, de 07 de abril de 1997, define os crimes de tortura e dá

outras providências. Em seu artigo 1º tipifica as condutas que configuram o

crime de tortura. E, no § 2º do mesmo artigo, tipifica como criminosa a omissão

em relação à tortura de quem tem o dever de evitá-la ou apurá-la.

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Em 12 de janeiro de 2007, o Estado Brasileiro ratificou o Protocolo

Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura. Na ocasião,

assumiu o compromisso de criar e manter um ou mais mecanismos preventivos

nacionais independentes para a prevenção da tortura em nível doméstico.

Desse compromisso surgiu o Projeto de Lei – PL 24442/2011, que

institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê

Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo de Prevenção e

Combate à Tortura, e dá outras providências. O citado PL ainda não foi

aprovado, mas está em fase final de tramitação no Congresso Nacional, e

prevê a criação de mecanismos eficientes e independentes de prevenção e

combate à tortura, que devem contribuir muito para o enfraquecimento dessa

odiosa prática.

Diante disso, temos que uma mudança de postura do Poder Judiciário

no enfrentamento dos crimes de tortura praticados por policiais e agentes

penitenciários, com base nos princípios constitucionais, na legislação federal

vigente, bem como nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dos

quais o Brasil é signatário, é fundamental para a urgente e necessária

mudança no quadro atual. É o que se pretende demonstrar ao longo do

presente trabalho.

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CAPÍTULO I – DA TORTURA

1.1. Breve histórico

A prática da tortura existe desde o início dos tempos e se verifica ao

longo da história de praticamente todos os povos. Não é possível precisar com

exatidão a origem da tortura, mas alguns autores trazem informações e

conceitos importantes.

Borges (2004) afirma que a tortura é contemporânea ao homem na face

da terra. Refere ainda que, na antiguidade, foi conhecida por todos os povos,

exceto os hebreus, que, por motivos religiosos (a lei repudiava o derramamento

de sangue de inocentes, o que poderia acontecer com a tortura contra um

acusado eventualmente inocente), abominaram-na.

Verri (1999) nos ensina que a história da tortura se confunde com a

tirania e a estupidez humanas, afirmando que a origem de uma invenção tão

feroz ultrapassa os limites da erudição, bem como que é provável que a tortura

seja tão antiga quanto o sentimento do homem de dominar despoticamente

outro homem. Também, segundo Verri (1999), porque tão antigo é o caso de

que nem sempre o poder veio acompanhado das luzes e da virtude, sendo,

portanto, também antigo o instituto no homem armado de força prepotente de

estender suas ações antes do poderio da razão.

Fernandes (1996) entende que a tortura parece ter se entranhado no

homem ao primeiro sinal de inteligência deste, pois só este seria capaz de

prolongar de tal forma o sofrimento alheio. Ressalta que, diferente dos outros

animais, das mais variadas espécies, que ferem ou matam somente sua caça,

o homem, em razão de seu impulso de destruição, é capaz de infligir dores

contra seu semelhante por puro prazer ou vingança, ou ainda para atender

objetivos outros.

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Praticada em larga escala em todos os tempos, a tortura muitas vezes

foi conduta considerada legal por diversas legislações, de diferentes nações.

Seja como uma forma duvidosa de apurar a verdade no processo penal, ou

como mero castigo, servindo de punição ao sujeito considerado criminoso.

Conforme Foucault (2008), na Europa dos séculos XVII e XVIII, período

da Inquisição, a tortura se dava de forma legal, com a prática dos suplícios.

Castigos corporais cruéis, tanto para fins de interrogatório, buscando a

confissão, quanto para os de punição.

Foucault (2008) nos ensina sobre a prática dos suplícios e o sistema

penal da época, onde a tortura clássica era o mecanismo regulamentado de

uma prova, sob a aparente pesquisa de uma verdade urgente, pois era desafio

físico capaz de decidir sobre a verdade. Explica que, pelo pensamento da

época, se o paciente fosse culpado, os sofrimentos impostos pela verdade não

seriam injustos, mas ela também seria uma prova de desculpa se ele fosse

inocente.

Prossegue Foucault (2008), dando conta de que a investigação da

verdade pelo suplício do interrogatório era uma maneira de fazer aparecer um

indício, que era o mais grave de todos, ou seja, a confissão do culpado. Porém,

era também a batalha, a vitória de um adversário sobre o outro, que acabava

produzindo ritualmente a verdade.

Conclui, então, que a tortura para fazer confessar tinha alguma coisa de

inquérito, mas também de duelo. Que se misturavam um ato de instrução e um

elemento de punição, o que é um paradoxo, até porque, também estava

classificada entre as penas, e uma pena tão grave que, na hierarquia das

punições, estava inserida logo depois da morte.

Beccaria (1999), falando sobre o mesmo momento histórico, também fez

ponderações sobre a tortura, tecendo duras críticas ao sistema penal cruel e

irracional da época. Suas críticas contribuíram inclusive para que a tortura

viesse a ser considerada prática ilegal num momento seguinte.

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Explica Beccaria (1999), que a tortura do réu durante a instrução do

processo foi consagrada pelo uso na maioria das nações, com diversos

objetivos. Para forçar a confissão ou, no mínimo, a contradição. Ainda, para

descobrir os cúmplices, ou por qual metafísica e incompreensível purgação da

infâmia, ou por outros delitos de que poderia ser réu, mas não acusado.

Critica, no entanto, tal crueldade ao defender que um homem não pode

ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e que a sociedade só lhe pode

retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio

dos quais ela lhe foi outorgada.

E arremata afirmando que não é novo o dilema, pois, ou o delito é certo

ou incerto. Se o delito é certo, inúteis são os tormentos, já que a confissão

também é inútil, considerando que, nesse caso, não lhe convém outra pena

senão a estabelecida pelas leis. E, se o delito é incerto, não se deveria

atormentar o inocente, pois, é considerado legalmente inocente o homem cujos

delitos não são provados.

As idéias iluministas, principalmente dos autores acima citados, Verri,

Foucalt e Beccaria, contribuíram muito para uma mudança no quadro, restando

enfraquecida a tortura, com sua prática proibida em diversos países durante

um determinado período. No entanto, apesar dessa visível evolução histórica

da humanidade, a tortura continuou sendo largamente praticada em boa parte

do mundo.

Com a chegada do século XX e a disputa pelo poderio econômico no

planeta, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial, a barbárie da

tortura voltou com força total, e foi inclusive legalizada novamente em vários

países. Não há dúvidas de que foi um período de enorme retrocesso no que se

refere ao respeito aos Direitos Humanos, sendo a tortura uma de suas marcas.

Desde a segunda metade do século XX, no período posterior à Segunda

Guerra Mundial, principalmente por iniciativa da ONU – Organização das

Nações Unidas, uma forte mobilização, a fim do efetivo combate à tortura veio

a surgir. A consolidação do reconhecimento internacional dos Direitos

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Humanos fez com que acordos internacionais fossem celebrados repudiando a

prática da tortura, bem como diversos países legislaram no sentido da

ilegalidade da tortura.

Entre os importantes instrumentos internacionais do século XX voltados

à proteção e promoção aos Direitos Humanos, com repúdio à tortura, estão a

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção

contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e a

Convenção Americana de Direitos Humanos. Já no início do século XXI, no ano

de 2002, foi adotado pela Assembléia Geral da ONU o Protocolo Facultativo à

Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

No entanto, mesmo sendo amplamente repudiada por vários

instrumentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos, e considerada

ilegal por muitos países, a prática da tortura ainda, em pleno século XXI, é

facilmente verificada em várias partes do mundo, por motivos diversos.

Nesse conjunto, não há dúvidas de que a tortura é realmente um tema

fascinante, em razão das diversas transformações que sua evolução sofreu.

Trata-se de conceito jurídico excepcional, que merece nossa especial atenção.

Sobre essa característica da história da tortura, nos ensina Fudoli (2003)

que se deve talvez ao fato de que sua evolução sofreu transformações

profundamente agudas, as quais dificilmente são sentidas em outros conceitos

jurídicos. Explica que, com o passar dos séculos, essa forma de violência

assumiu variados espectros, já que, existiram momentos em que se permitia a

prática dos tormentos, noutros a tortura foi minuciosamente regulada, como

integrante do interrogatório, e, atualmente, no entanto, é execrada, ao menos

de modo formal, em praticamente todo o mundo, tanto por Constituições, como

por Convenções Internacionais, e é inclusive punida como delito autônomo

num significativo número de Estados.

No Brasil não foi diferente do resto do mundo, pois a tortura sempre

existiu. Em certos momentos históricos foi prática legalizada, noutros contrária

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à lei e, atualmente, é conduta criminalizada, mas que, infelizmente, continua

sendo largamente praticada.

De acordo com Arantes (2010), a tortura é praticada em nosso país

desde a formação do Estado brasileiro, quando a colonização portuguesa, com

forte origem patrimonialista, implantou a prática da tortura e de tratamentos

desumanos, degradantes e cruéis, bem como as penas corporais eram o

principal instrumento de punição dos mais diversos tipos de delito. Naquela

época, a tortura era comumente praticada contra os escravos, índios e peões.

Exemplifica Arantes (2010), que no processo de colonização a origem

patrimonialista foi tão realçada, que chegou ao extremo com a concessão das

capitanias hereditárias, em que os donatários (empreendedores privados)

tinham direito de administrar a jurisdição cível e criminal, incluindo a alta

justiça, onde se decidia sobre as penas de morte e de talhamento de membro

contra os peões, índios e escravos.

Ensina ainda, que o Brasil manteve a tortura na Colônia e no Império e

até 1888 como um recurso de poder político para garantir o poder econômico e

a riqueza, uma vez que, os escravos, mesmo sendo considerados como

mercadorias, foram inequivocamente os principais produtores da riqueza do

país, responsáveis pela extração do ouro, a produção do tabaco e do açúcar.

E, que, embora a Proclamação da Independência do Brasil e a

elaboração da primeira Constituição de 1824 tenham abolido os açoites, a

tortura, a marca de ferro quente, e todas as penas cruéis, tais práticas

continuaram acontecendo, tanto que, o Código Criminal do Império de 1830

previa em seu artigo 60 tais penas, em se tratando de réu escravo.

Já num período mais recente, a partir de 1º de abril de 1964, quando a

ditadura militar se instalou, o Brasil viveu por duas décadas sob um regime

autoritário que violou brutalmente os Direitos Humanos do cidadão durante

toda sua vigência, a qual se deu até o advento da Constituição Federal de 1988

e a instituição do Estado Democrático de Direito. Tal contexto contribuiu ainda

mais para a prática em larga escala da tortura por agentes da lei.

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Naquele período, a tortura era praticada contra opositores políticos,

presos, condenados e suspeitos de crimes. Acabou enraizada nas instituições

e ainda persiste, mesmo atualmente, na vigência do Estado Democrático de

Direito.

Apesar do esforço do Brasil em adequar sua legislação aos instrumentos

internacionais de proteção aos Direitos Humanos, e de todos os direitos e

garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, a luta

contra a tortura parece estar longe de ser vencida. Agora são vítimas de tortura

os presos e suspeitos de crimes comuns, mas a nefasta prática continua

enraizada nas ações policiais e penitenciárias. Vale dizer, mudaram apenas os

supostos inimigos, mas a artilharia do Estado repressor continua a mesma.

Nesse sentido são os apontamentos de Salla e Alvarez (2006), segundo

os quais o esforço do Brasil no sentido de sintonizar sua estrutura legislativa e

institucional com a engenharia de proteção e promoção aos Direitos Humanos

continua apresentando consideráveis entraves. A barbárie da tortura que era

voltada para os opositores políticos ao regime autoritário foi estancada, mas,

mesmo com a vigência do Estado Democrático, a tortura a criminosos comuns

ainda não foi interrompida.

Alertam Salla e Alvarez (2006), que, mesmo após a entrada em vigor da

Lei 9.455/97, a qual tipifica o crime de tortura, esta continua a ser uma prática

incessantemente denunciada, porém, nem de longe, contida. E, de fato, o

alerta dos autores é facilmente verificado no cotidiano do sistema penal, pois,

em pleno século XXI, a história da tortura continua sendo escrita no Brasil, seja

no âmbito das penitenciárias, das delegacias de polícia, nas prisões de

suspeitos ou, até mesmo, em simples abordagens policiais.

No mesmo sentido leciona Piedade Júnior (2003), o qual comenta sobre

o Relatório da ONU sobre as prisões no Brasil de 2001, onde se constata que a

tortura é praticada no Brasil de maneira sistemática e está disseminada por

todas as fases da detenção, desde o momento da prisão em flagrante, nas

delegacias, nos atos da investigação policial, até a execução da pena. Diz

ainda, que existe uma cultura de brutalidade no cotidiano dos agentes da lei,

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bem como de corrupção, mas que as autoridades brasileiras adotam o discurso

que afirma princípios de respeito aos Direitos Humanos e que existem leis que

os asseguram, porém, tudo isso é ignorado, na maioria das vezes, pela maioria

dos juízes e promotores.

1.2. Conceito

No passado, manifestou-se Ulpiano (Digesto, 47.10.15.41) no sentido de

que se deve entender por tortura o tormento, a dor e o sofrimento corpóreos

empregados com a finalidade de se extrair a verdade.

De acordo com De Plácido e Silva (1986), “a tortura é a dor provocada

por maus-tratos físicos ou morais”.

Segundo Caldas Aulete (1974), na linguagem corrente, a tortura tem

diversas acepções possíveis: sofrimento, angústia, dor; tormentos que afligem

a prisioneiros, escravos, etc., para os obrigar a falar ou por simples requinte de

crueldade; lance difícil, apertos; simples transtorno ou incômodo.

Já o Conselho de Redação da Enciclopédia Saraiva do Direito (1977)

definiu a tortura como “meio de que se usa para a obtenção de confissões”.

Verri (1999) nos explica que as primeiras definições de tortura

relacionavam somente a idéia de tormentos à investigação.

Trabalho da Arquidiocese de São Paulo intitulado Brasil: Nunca Mais

(1985) define a tortura como tudo aquilo que deliberadamente uma pessoa

possa fazer a outra, produzindo dor, pânico, desgaste moral ou desequilíbrio

psíquico, provocando lesão, contusão, funcionamento anormal do corpo ou das

faculdades mentais, bem como prejuízo à moral.

Comparato (2010) nos ensina que, embora seja prática contínua desde

os tempos mais remotos da história, e explicitamente condenada pelo artigo V

da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a tortura só veio a ser

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definida juridicamente no final do século XX, quando foi aprovada pelas Nações

Unidas, em 1984, a Convenção contra Tortura e outros Tratamento ou Penas

Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A Convenção definiu, que foi ratificada e

promulgada pelo Brasil em 1991, definiu o que é tortura em seu artigo 1º,

alínea 1:

Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

Conforme Comparato (2010), tal definição indica três objetivos

determinados para o ato de tortura: a obtenções de informações ou confissões,

o castigo e a intimidação ou coação de certas pessoas.

No ano seguinte, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a

Tortura, de 1985, também definiu um conceito de tortura, em seu artigo 2, o

qual é bastante semelhante ao conceito anterior. Veja-se:

Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo.

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No Brasil, a Lei 9.455/97 não definiu o vocábulo tortura, apenas disse o

que constitui o crime, tipificando as condutas em seu artigo 1º, incisos I e II, e

§§ 1º e 2º.

Na doutrina nacional, Nucci (2008) entende como tortura “qualquer

método de submissão de uma pessoa a sofrimento atroz, físico ou mental,

contínuo e ilícito, para a obtenção de qualquer coisa ou para servir de castigo

por qualquer razão”.

Franco (1997), por sua vez, nos ensina que, de acordo com a Lei

9.455/97, a tortura está centrada nas condutas humanas representadas pelos

verbos “constranger”, “submeter” e “omitir”.

O citado autor nos explica que as duas primeiras modalidades de

expressão do delito de tortura apresentam uma estrutura gramatical comum,

onde verbos transitivos exigem, com dados essenciais da própria ação,

complementos verbais, objeto direto e objeto indireto e, ainda, um adjunto

adverbial de modo. Já a última exibe uma estrutura gramatical mais simples,

com verbo transitivo direto e um complemento adverbial de tempo.

E, ao cuidar dos verbos “constranger” e “submeter”, adverte que eles

necessitam ser complementados, já que a vítima deve ser constrangida ou

submetida a alguma coisa. Sendo assim, “sofrimento físico ou mental” constitui

o elemento necessário de complementação das ações enunciadas.

1.3. A Constituição Federal de 1988 e a Tortura

Conforme o ensinamento de Joseff (2003), a primeira vítima da violência

é, sem dúvida, a dignidade humana, cujas feridas são menos aparentes, mas

não menos profundas.

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De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de

1998, a dignidade da pessoa humana é um de seus fundamentos, artigo 1º, III.

Ensina Mello (2000) que a dignidade da pessoa humana, estampada nos

direitos sociais, constitui patrimônio de suprema valia e faz parte, tanto ou mais

que algum outro, do acervo histórico, moral, jurídico e cultural de um povo.

Segundo o autor, o Estado enquanto seu guardião, não pode amesquinhá-lo,

corroê-lo, dilapidá-lo oi dissipá-lo.

No artigo 5º, III, da Carta Magna, está garantido que ninguém será

submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Já no inciso

XLIII do mesmo artigo 5º, está previsto que a lei considerará a tortura crime

inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Verifica-se, portanto, sem sombra de dúvidas, que a Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988 repudia veementemente a prática de

tortura.

1.4. Os Tratados Internacionais e a Tortura

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece em

seu artigo V que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou

castigo cruel, desumano ou degradante.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, em seu

artigo 7, proíbe a tortura e os maus-tratos, vinculando os Estados Partes a

respeitar tal proibição e assegurar a todas as pessoas o direito de não ser

torturado, nem submetido à pena ou tratamento cruel ou degradante.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, também

chamada de Pacto de São José da Costa Rica, dispõe de forma semelhante,

assegurando em seu artigo 5, alínea 2, que ninguém deve ser submetido a

torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Também,

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que toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à

dignidade inerente ao ser humano.

A Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, obriga os Estados Membros a

adoção de medidas próprias para prevenir e investigar a tortura, estabelecendo

uma jurisdição universal nos processos contra acusados da prática de tortura.

A Convenção prevê a criação de um Comitê Contra a Tortura, a fim de

fiscalizar a efetiva implementação das disposições nela previstas.

Já a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura da OEA

(Organização dos Estados Americanos), de 1985, prevê um sistema de

jurisdição universal nas Américas.

O Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,

adotado pela Assembléia Geral da ONU de 18/12/2002, cria um Subcomitê de

Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes, no âmbito da própria ONU, destinado a monitorar, por meio de

visitas regulares, os locais de detenção dos Estados-membros. Ainda, propõe a

criação de mecanismos de prevenção nacionais para os mesmos fins do

Subcomitê.

1.5. A legislação infraconstitucional brasileira sobre a Tortura

No âmbito infraconstitucional a Lei 8.072/90 equipara a prática de tortura

a crime hediondo, determinando em seu artigo 2º, I e II, ser crime insuscetível

de graça, anistia, indulto e fiança. Ainda, por ser crime equiparado a hediondo,

a prática de tortura recebe tratamento legal mais severo no que se refere ao

regime inicial de cumprimento da pena (art. 2º, § 1º), progressão de regime (art.

2º, § 2º), direito de apelar em liberdade (art. 2º, § 3º) e prisão temporária (art.

2º, § 4º).

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Como se não bastasse, em seu artigo 8º, a Lei 8.072/90 prevê uma pena

de 3 (três) a 6 (seis) anos de reclusão para o crime de quadrilha ou bando,

maior do que a original de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, prevista no artigo

288 do Código Penal, quando se tratar da prática de tortura.

A Lei 9.455/97 tipifica as condutas que configuram o delito de tortura e

dá outras providências. Apesar de bastante tardia, tendo surgido apenas após

o lamentável episódio de Diadema, da Favela Naval, onde todo o Brasil pode

assistir a cenas de tortura perpetradas por policiais militares contra civis, a Lei

de Tortura trouxe importantes definições.

A referida lei tipificou as condutas consideradas crimes de tortura em

seu artigo 1º, I e II, e §1º, estabelecendo uma pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos

de reclusão, bem como tipificou a conduta da omissão de quem tem o dever de

evitar ou apurar a tortura, cominando uma pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos de

detenção para essa hipótese.

Dispõe sobre as figuras qualificadas no § 3º, com penas maiores, e as

hipóteses de aumento de pena no § 4º. Prevê a perda do cargo, função ou

emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena

aplicada no § 5º, e repete a Lei dos Crimes Hediondos no § 6º, dispondo que o

crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, além de

prever no § 7º o cumprimento da pena em regime inicial fechado, exceto para a

hipótese do § 2º.

No artigo 1º, inciso I, o legislador utilizou o verbo “constranger” para

definir as condutas que constituem o crime de tortura. Pela letra da lei, constitui

o crime de tortura constranger alguém, com emprego de violência ou grave

ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter

informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para

provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de

discriminação racial ou religiosa.

Já no inciso II aparece o verbo “submeter”. Segundo o referido

dispositivo legal, submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com

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emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental,

como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo,

constitui o crime de tortura.

O § 1º, por sua vez, traz novamente o verbo “submeter”, mas num outro

contexto. Dispõe que na mesma pena incorre, ou seja, também comete o crime

de tortura, quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a

sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei

ou não resultante de medida legal.

Para as hipóteses do artigo 1º, incisos I e II, e § 1º, todos da Lei

9.455/97, a pena prevista é de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão.

Já o § 2º do mesmo artigo de lei traz a tipificação de outra conduta

criminosa, a da omissão em relação à tortura. Estabelece que quem se omite

em face das condutas de tortura, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-

las, incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

No § 3º estão às hipóteses em que o crime de tortura é qualificado pelo

resultado. Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é

de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos; se resulta a morte, a reclusão é de 8

(oito) a 16 (dezesseis) anos.

E o § 4º traz as causas de aumento de pena de 1/6 (um sexto) até 1/3

(um terço): I – se o crime é cometido por agente público; II – se o crime é

cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou

maior de 60 (sessenta) anos; III – se o crime é cometido mediante seqüestro.

Repita-se, porque oportuno, que o § 5º dispõe que a condenação

acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para

seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Ainda, que o § 6º repete a

Lei dos Crimes Hediondos, estabelecendo ser o crime de tortura inafiançável e

insuscetível de graça ou anistia. E, que o § 7º prevê o cumprimento de pena

em regime inicial fechado para os condenados por crime previsto na Lei

9.455/97, salvo a hipótese do § 2º.

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Merece referência também, pela importância, embora ainda não tenha

sido aprovado pelo Congresso Nacional, o Projeto de Lei – PL 24442/2011, que

institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê

Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo de Prevenção e

Combate à Tortura, e dá outras providências, representa uma grande

esperança para o enfrentamento do problema. O citado PL ainda não foi

aprovado, mas está em fase final de tramitação no Congresso Nacional, e

prevê a criação de mecanismos eficientes e independentes de prevenção e

combate à tortura, que devem contribuir muito para o enfraquecimento dessa

odiosa prática.

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CAPÍTULO II – O CONTEXTO ATUAL DA TORTURA NO BRASIL

2.1. A tortura como prática bastante recorrente na atualidade do Sistema

Penal Brasileiro

No Brasil vigora o Estado Democrático de Direito, desde o advento da

Constituição da República de 1988. No entanto, os direitos e garantias

fundamentais dos cidadãos continuam sendo desrespeitados em muitas

ocasiões.

A pesquisa Brasil: Nunca Mais (1985) afirma a continuidade das práticas

de tortura em diversos países. Conforme a pesquisa, em mais de um terço dos

países signatários da Carta Magna dos Direitos Humanos, a tortura é parte

substancial dos métodos interrogatórios da polícia e das forças militares, sendo

praticada para se obter informações, humilhar, intimidar, aterrorizar, punir ou

assassinar prisioneiros políticos e comuns.

No mesmo sentido nos ensina Almeida (2004), afirmando que mesmo

que a Inquisição seja uma página virada na história da humanidade, a tortura

persiste como uma prática covarde, não mais por motivos políticos ou

religiosos na maioria dos países, mas como um método de obtenção de prova

nas delegacias policiais. Ressalta que o governo brasileiro reconheceu essa

realidade e admitiu no Primeiro Relatório Relativo à Implementação da

Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

desumanas ou degradantes no Brasil, apresentado à ONU em agosto de 2000.

Almeida (2004) destaca o seguinte trecho do referido relatório: “A tortura

nos distritos policiais cometida contra indivíduos suspeitos da prática de crimes,

continua matéria problemática no Brasil, apesar dos avanços legais recentes e

da rejeição da sociedade brasileira aos métodos violentos de investigação”.

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Piovesan e Salla (2001) ressaltam que, apesar de todas as interdições

legais, no plano nacional e internacional, são diversas as circunstâncias em

que se pode constatar a prática da tortura e dos maus-tratos no cenário

brasileiro. Citam as operações de policiamento nas ruas e espaços públicos em

geral, como as chamadas “batidas policiais”, nas quais ocorre frequentemente

o uso de tortura e maus-tratos. Afirmam, porém, que o maior número de

práticas de tortura se dá quando cidadãos estão sob a custódia do Estado, em

delegacias, cadeias e presídios.

Nesse contexto, conforme os citados autores, a tortura é um recurso

constantemente usado por policiais para obter informações sobre crimes. Logo,

com frequência, pessoas detidas, em flagrante ou não, são torturadas para dar

informações sobre como ocorreu ou foi planejado o crime, para apurar

esconderijos ou denuncias outras pessoas envolvidas e etc. Nessa mesma

lógica sem o trabalho policial e pericial adequados, ao torturar um suspeito

busca-se logo provocar sua confissão, como prova que dispensa a

continuidade da investigação.

Referem ainda que, espancamentos e maus-tratos são frequentemente

aplicados nos presos quando eles provocam, individual ou coletivamente, atos

de indisciplina. Os castigos ilegais vão desde o espancamento, a humilhação,

até o confinamento em celas totalmente inadequadas para tal, muitas vezes

sem iluminação, ventilação e qualquer condição de higiene.

Lemgruber, Musumeci e Cano (2003) ensinam que a tortura, mazela

histórica das polícias do Brasil, tem sido periódica e insistentemente

denunciada nos relatórios dos grupos de Direitos Humanos. Ressaltam os

autores, no entanto, que, por sua própria natureza, os casos relatados

representam ínfima parcela do que de fato ocorre no cotidiano das nossas

delegacias e prisões. Frisam, porém, que o relator das Nações Unidas para a

tortura, em visita ao país em 2001, constatou que a prática é endêmica no

sistema de justiça criminal brasileiro.

Semelhante é a observação de Mariano (2002) ao analisar a

continuidade das práticas de tortura, mesmo após o advento da Lei 9.455/97. O

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autor afirma que, ao contrário do que se esperava, a tipificação do crime de

tortura não atuou como fator inibitório de sua prática. A tortura continua, ainda

que de forma e com motivações diversas, sendo recorrentemente utilizada por

diversos policiais.

Também é nesse sentido a lição de Freitas (2009), afirmando que a

entrada em vigor da Lei de Tortura não bastou para que esta infame prática

fosse extirpada da realidade brasileira. Pelo contrário, não raro nos deparamos

com casos que parecem ter se dado no auge de governos ditatoriais: pessoas

torturadas por meio de instrumentos próprios e cruéis, como pau-de-arara,

choques elétricos, afogamentos, asfixia, alem de espancamentos e agressões

físicas de todos os tipos.

Salienta, contudo, a autora, que as práticas de tortura são, normalmente,

cometidas veladamente, sem testemunhas e sem holofotes: um crime às

escondidas e, por isso, de difícil apuração.

Prossegue dizendo que a prática da violência, sobretudo da tortura, não

é estranha à sociedade brasileira. Basta questionar, por exemplo, acerca do

sistema carcerário: os recorrentes casos de maus-tratos, tortura e humilhações

de modo geral constituem fatos notoriamente conhecidos. No entanto, quase

nada se ouve falar acerca de medidas para solucionar a situação.

Veja-se então que a tortura também é largamente praticada por agentes

penitenciários, de diversas casas prisionais do país, e que isso não é novidade

para ninguém, já que seguidamente os casos são noticiados pela imprensa. A

situação carcerária é precária em todo o Brasil e não há qualquer perspectiva

de melhora, o que também é fato público e notório.

No Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, a precariedade da

situação carcerária foi abordada por Fernandes (2011), o qual apontou que os

direitos fundamentais dos presos não estão sendo nem de longe respeitados.

Refere que os detentos estão amontoados em masmorras fétidas, são

submetidos à tortura, à toda sorte de humilhações e maus-tratos,

transformando-se em reféns do crime organizado.

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Parece que os anos estão passando e o problema da tortura está longe

de ter solução. Pelo contrário, a tortura está cada vez mais presente na

realidade das ações policiais e penitenciárias no Brasil.

A imprensa continua noticiando constantemente casos de tortura contra

presos e suspeitos, embora sem dar a mesma ênfase com que noticia os

crimes dos quais muitos dos torturados são acusados. Os familiares, os amigos

e as próprias vítimas de tortura continuam denunciando reiteradamente tais

práticas, mas sem êxito.

O discurso oficial das autoridades, no entanto, é quase sempre no

sentido de que as reclamações são improcedentes, salvo algum caso isolado, e

de que prepondera nas ações das forças policiais o mais completo respeito aos

Direitos Humanos. A contradição entre a realidade e o discurso oficial é tanta

que, ao mesmo tempo em que as autoridades negam a maioria das práticas de

tortura por agentes da lei, elas estão acontecendo e sendo reveladas, e,

inclusive, são consideradas corretas por grande parte da população.

Um grande exemplo disso foi uma recente produção cinematográfica

nacional, o filme Tropa de Elite. A obra de ficção, que ainda é um dos maiores

sucessos do cinema brasileiro, foi baseada na realidade das ações do BOPE –

Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de

Janeiro.

No referido longa-metragem, ficou escancarado que a tortura é um dos

métodos de trabalho mais usados, mesmo nos dias atuais, pela Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro, em especial pelo BOPE. A origem verdadeira do

que foi mostrado no cinema não foi contestada por ninguém, pelo contrário, o

Capitão Nascimento, personagem principal do filme, fez tanto sucesso que

virou uma espécie de herói nacional.

Se no Brasil enfrentar efetivamente a tortura parece não ser prioridade,

no plano internacional, no âmbito das Nações Unidas, essa preocupação

existe. Tanto é verdade, que em 2011 o Brasil recebeu mais uma visita de

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representantes da ONU, que vistoriaram locais de privação de liberdade e

elaboraram um relatório a respeito dos problemas encontrados.

Trata-se do mais recente relatório do Subcomitê de Prevenção à Tortura

– SPT (2012), referente à visita realizada ao Brasil entre os dias 19 e 30 de

setembro de 2011, ocasião em que foram vistoriados locais de privação da

liberdade em quatro Estados da Federação (Espírito Santo, Goiás, Rio de

Janeiro e São Paulo), o qual denuncia que a tortura continua sendo praticada

em larga escala no Brasil. No citado relatório o SPT refere que recebeu

denúncias de tortura em diversas ocasiões e das mais variadas formas,

conforme os itens a seguir transcritos:

[...].

79. O SPT recebeu diversas e consistentes alegações dos entrevistados acerca de tortura e de maus-tratos, cometidos, particularmente, pela polícia civil e militar. As alegações incluem ameaças, chutes e socos na cabeça e no corpo, além de golpes com cassetetes. Esses espancamentos aconteceram sob a custódia policial, mas também em ruas, dentro de casas, ou em locais ermos, no momento da prisão. A tortura e os maus-tratos foram descritos como violência gratuita, como forma de punição, para extrair confissões e também como meio de extorsão.

80. O SPT também recebeu relatos consistentes de crianças e adolescentes, sobre tortura e maus-tratos sofridos no momento da prisão e durante a custódia policial. As crianças e adolescentes alegaram que a tortura e os maus-tratos cometidos pela polícia militar ocorreram por ocasião da prisão e que os métodos incluíam tapas, chutes e socos em todas as partes do corpo. Uma prisioneira relatou que tinha sido estuprada por dois policiais no período em que esteve sob custódia policial.

81. No tocante ao tratamento recebido durante a custódia policial, um prisioneiro relatou que os métodos de tortura utilizados em seu interrogatório incluíram asfixia, ao receber um saco plástico em sua cabeça, choques elétricos, ameaças psicológicas e banhos frios, ao longo de seis dias. O SPT também recebeu alegações de maus-tratos durante a custódia policial, tais como a obrigação de os detentos dormirem no chão em uma cela suja, sem o devido acesso a condições sanitárias, alimentação e água, incluindo a privação dos serviços de saúde. Crianças e adolescentes haveriam sido, segundo alegações, feridos pela polícia.

82. O SPT recebeu ainda alegações de espancamentos e maus-tratos como forma de punição. Por exemplo, um detento alegou que, durante sua custódia pela polícia civil, em um período de dois dias, foi mantido em uma cela suja de aproximadamente 8m² com 20 homens, e privado de alimentação e água. Quando os detentos reclamavam e pediam comida e água, eram espancados. Os prisioneiros também relataram terem sido mantidos em posições desconfortáveis (por

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exemplo, em uma postura em que o corpo era sustentado pelos joelhos dobrados) por períodos prolongados de tempo durante a custódia policial.

83. Em relação ao transporte, o SPT recebeu relatos consistentes de tortura e maus-tratos em viaturas policiais, incluindo superlotação de veículos e detenção prolongada nas viaturas, além de espancamentos durante a transferência.

[...].

Tais denúncias, que são extremamente graves, costumam ficar

encobertas pelo discurso oficial das autoridades, sempre no sentido contrário

da realidade, reconhecendo, quando muito, a ocorrência de alguns poucos e

isolados casos de tortura. O relatório do SPT também criticou o quadro atual e

cobrou soluções para o problema, com algumas recomendações, inclusive:

[...].

86. O SPT considera que as alegações acima são casos de tortura física e mental ou de maus-tratos. O SPT condena todos os atos de tortura e de maus-tratos e relembra que a tortura não pode ser justificada sob nenhuma circunstância. O SPT reitera seu chamado às autoridades brasileiras para que condenem firme e publicamente qualquer ato de tortura e que tomem todas as medidas necessárias para prevenir tortura e maus-tratos. As medidas preventivas incluem, dentre outras, a condução de investigações céleres, imparciais e independentes; o estabelecimento de um sistema eficiente de queixas e o processo e punição dos supostos perpetradores.

[...].

Resta saber, se as autoridades brasileiras vão efetivamente atender ao

chamado do SPT, buscando soluções adequadas para o problema, ou vão

simplesmente manter a postura atual, sabidamente ineficaz.

2.2. A postura do Poder Judiciário em relação às denúncias de práticas de

tortura por agentes do Estado

Infelizmente muitos casos de tortura não são denunciados, por motivos

diversos, principalmente o medo de represálias e a falta de meios de prova

suficientes para embasar uma denúncia, até porque, como já vimos, uma das

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principais características desse crime é ser cometido clandestinamente, o que

dificulta e muito sua apuração. Obviamente então, que todos esses casos que

não são denunciados também não são enfrentados pelo Poder Judiciário, o

que é uma situação preocupante.

Importante é a informação trazida por Almeida (2004), segundo o qual o

Brasil pouco tem feito para abolir a tortura, não tanto por falta de boa vontade

da parte do governo federal, mas, sobretudo pelo fato de que esse tipo de

crime é muito difícil de ser constatado, tendo em vista que aqueles que o

praticam procuram fazê-lo às escondidas e de maneira que não deixe

vestígios. O referido autor ilustra seu argumento com o informe do Jornal do

Brasil de 21 de agosto de 2000, segundo o qual, dois anos após a promulgação

da lei que incrimina a tortura, havia apenas cerca de 200 inquéritos instaurados

em 22 estados do país referentes a esse crime, sendo que apenas a metade

havia chegado ao Poder Judiciário.

Situação que preocupa ainda mais, no entanto, é que dos poucos casos

que são denunciados, muitos acabam sem punição. É comum ainda que as

decisões de absolvição ou de arquivamento sejam por falta de provas e com

base na “fé-pública” do agente do Estado, sem uma análise mais profunda da

situação denunciada.

Cabe aqui então mais uma observação feita por Mariano (2002),

segundo o qual, infelizmente, talvez não tenhamos, em todo o território

nacional, mais de dez casos em que agentes do Estado tenham sido

indiciados, denunciados e julgados pela prática de tortura. Sustenta ainda o

autor que é exatamente a falta de aplicação da Lei n. 9.455/97 a maior razão

dela não estar atuando como fator inibitório da prática do crime.

Lembra-se também de outra lição de Lemgruber, Musumeci e Cano

(2003), no sentido de que, dos poucos casos denunciados, a proporção de

condenações é absolutamente irrisória. Os citados autores referem um

levantamento feito pelo Conselho Nacional de Procuradores de Justiça e

divulgado por um jornal carioca (O Globo, 4 de maio de 2003, p. 18), segundo o

qual, em cinco anos (1997 a 2002), 524 casos foram levados à Justiça em todo

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o país e, dessas denúncias, apenas 15 (2,9%) teriam ido a julgamento e

somente 9 (1,7%) teriam resultado em condenações, nenhuma ainda em

instância definitiva até maio de 2003.

A situação é realmente peculiar, pois até mesmo uma pesquisa

jurisprudencial acerca do tema é difícil de ser feita, porque poucos são os

resultados encontrados, tendo em vista a raridade das decisões, condenações

então, são mais raras ainda. O que se questiona é o motivo, ou os motivos, de

o Poder Judiciário atuar de maneira tão limitada, e até mesmo omissa, em

relação aos crimes de tortura quando os acusados são agentes do Estado.

Isso porque, é comum vermos uma atuação mais enérgica do Poder

Judiciário em relação a outros crimes, praticados por outros réus, como crimes

contra o patrimônio, crimes contra a vida, tráfico de drogas e etc. Nesses

casos, não é nada incomum percebermos uma atuação rígida do Poder

Judiciário, até mesmo implacável muitas vezes, passando por cima dos direitos

e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, culminando em

severas condenações.

Não se pode generalizar, é claro, e afirmar que todo o Poder Judiciário

age de forma limitada, ou omissa, em relação ao problema. Existem juízes que

de fato enfrentam o problema, mas são raras exceções.

Um exemplo dessas exceções é a juíza Tania Cristina Dresch Buttinger,

que atua na Vara Judicial da Comarca de Flores da Cunha, no Estado do Rio

Grande do Sul. Recentemente, em 24 de setembro de 2012, a mesma proferiu

sentença condenatória numa ação penal por crimes de tortura (processo n.

097/2.08.0000167-0) onde condenou nove policiais militares a penas de

reclusão, mais a perda do cargo, função ou emprego público pelo dobro do

prazo da pena aplicada.

A citada decisão refere-se a um caso de grande repercussão na época

em que ocorreu, sendo os policiais envolvidos apelidados de a “Tropa de Elite

da Serra Gaúcha”, devido à semelhança dos métodos utilizados com aqueles

mostrados no filme. A sentença condenatória ainda não transitou em julgado,

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pois pendente de julgamento de apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul.

Outro exemplo de exceção à regra também vem do Poder Judiciário do

Estado do Rio Grande do Sul, mas em outro contexto, através da Associação

dos Juízes do Rio Grande do Sul - AJURIS. Trata-se da representação, com

pedido de medidas cautelares, encaminhada ao Secretário Executivo da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 10 de janeiro de

2013, denunciando graves violações de Direitos Humanos, inclusive a tortura,

ocorridas no Presídio Central de Porto Alegre - PCPA, e solicitando

providências.

Porém, apesar de algumas louváveis exceções, como as que foram

acima citadas, a regra que presenciamos é a da falta de um enfrentamento

adequado do problema pelo Poder Judiciário. Isso foi o que apontou o mais

recente estudo das Nações Unidas sobre o problema da tortura no Brasil.

Almeida (2004) faz outra observação interessante a respeito da

impunidade e falta de aplicação da Lei de Tortura. O autor nos traz um trecho

do que foi dito pelo Professor Paulo Sérgio Pinheiro na Folha de São Paulo de

30 de outubro de 2000, segundo o qual também contribui para a impunidade o

fato de que “as elites se lixam para a tortura pela simples razão que, na

democracia, estão a salvo dos torturadores”, reconhecendo ainda que “juízes e

promotores, por sua vez, dependendo estreitamente da polícia nos seus

inquéritos, evitam fazer marola e não reprimem a tortura.”

De acordo com Piovesan e Salla (2001), a tortura persiste porque o

Executivo, o Judiciário e o Ministério Público não se empenham o suficiente

para reverter essa prática, respeitadas algumas exceções. Segundo os

referidos autores, juízes e promotores aquietam-se diante de inquéritos

policiais de baixa qualidade técnica, baseados muitas vezes em informações

extorquidas dos suspeitos mediante tortura.

Prosseguem afirmando que, ao mesmo tempo, nem sempre os juízes e

promotores cumprem suas atribuições de apurar a fundo as irregularidades que

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as prisões apresentam. Se os executivos estaduais, que têm a

responsabilidade pela manutenção dos aparelhos policiais e prisionais,

submetem cidadãos a condições de encarceramento aviltantes (tortura,

superlotação, ausência de assistência médica, péssimas condições de higiene,

ventilação, alimentação de má qualidade, etc.), o Judiciário e o Ministério

Público, por sua vez, fiscalizam e controlam o funcionamento do sistema

carcerário e da polícia muito timidamente.

O antes citado Relatório da ONU sobre a visita ao Brasil do Subcomitê

de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes (2012) apontou a omissão do Poder Judiciário em relação aos

casos de tortura praticados por agentes da lei. Segundo o relatório, de acordo

com as informações coletadas, os juízes raramente faziam perguntas aos

detentos sobre o tratamento que recebiam durante a investigação.

Foi recomendado aos juízes permanecerem vigilantes aos sinais de

tortura e de maus-tratos, bem como realizar os passos necessários para

corrigir e pôr termo a essas situações. Ainda, o SPT recomendou fortemente

que os juízes se recusem a aceitar confissões quando houver motivos

razoáveis para se acreditar que tenham sido obtidas por meio de tortura ou de

maus-tratos. Nesses casos, os juízes deverão notificar imediatamente a Polícia

e/ou o Ministério Público, de modo a que uma investigação possa ser iniciada.

Um dos autores que tem a coragem de enfrentar esse problema e tenta

desvendar o mistério é Vidal (2001), que faz algumas considerações sobre as

condutas dos agentes do Estado e a eficácia da Lei de Tortura. As

observações do autor explicam a postura omissa do Poder Judiciário em

relação ao tema com uma crítica ao funcionamento do sistema penal.

Explica que o sistema penal é composto por policias, Ministério Público,

Poder Judiciário e administração prisional. Cada qual destes órgãos organiza-

se de maneira distinta e recebe do sistema funções distintas, com maior ou

menor grau de autonomia, o que lhe confere um perfil particular e define

interesses particulares.

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Porém, todos são órgãos pertencentes a um único sistema de gestão do

crime e da pena, e assim é lícito dizer que a despeito das especificidades e

particularidades de cada qual, polícias, Ministério Público, Judiciário e

administração prisional têm interesses comuns acima de suas pautas

particulares. Desse modo, todos os órgãos trabalham unidos pela tarefa de

aplicar a lei penal, ou seja, de realizar o sistema penal.

Entende o autor, que o juiz e os demais integrantes do sistema penal

possuem uma identidade corporativa sendo parte do estamento dirigente de

nossa sociedade de traços marcadamente patrimonialistas. Ao estamento não

interessa nada, senão ele próprio, sua sobrevivência e mantença de sua

posição e benefícios econômicos e sociais.

Pode-se concluir então que, independente de suas posições e funções

específicas, todos os órgãos do sistema penal estão unidos pela tarefa de

realizar o sistema penal e apresentam uma ideologia de caráter estamental e

corporativo. Assim, seus agentes se vinculam ao sistema e praticam a

estratégia de sobrevivência de suas posições.

Prossegue Vidal (2011) referindo que a tortura acontece por excelência

onde o sistema de administração penal atua e, ao mesmo tempo, é sabido que

o sistema normativo repudia a sua prática. Portanto, é fácil concluir que há uma

profunda contradição entre o que se passa e o que se espera. Entre o ser e o

dever ser, entre o mundo das coisas e o mundo ideal.

O sistema penal precisa então solucionar tal contradição: ao mesmo

tempo em que o sistema normativo caracteriza a tortura como anormalidade do

sistema, a prática a erige à verdadeira instituição deste sistema. As soluções

possíveis seriam a luta pelo direito, a luta pela eficácia da norma jurídica, ou a

legalização pura e simples da tortura, o que é inadmissível.

Leciona então o autor que o sistema penal soluciona esta contradição de

modo diferente, com a manutenção da prática sem a negação do princípio, de

modo que a tortura continua a existir a despeito de expressar-se consenso nela

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como aberração. Trata-se da adoção do que se chama de ilegalidades

toleradas.

Pela ideologia estamental, antes referida, acima de qualquer coisa,

interessa ao sistema a sua preservação, a manutenção das posições de cada

qual de seus órgãos e agentes. Policiais, promotores de justiça e juízes cuidam

primeiro dos interesses do sistema, e este sistema não sobrevive se de um

lado decidir-se pelo reconhecimento da legitimidade da tortura, o que

juridicamente é inadmissível, e, de outro, se houver a opção pela eficácia da lei

e consequentemente pela prevenção e punição, pois esta alternativa emperra a

operacionalização do sistema de investigação e punição.

A solução, então, é a adoção das ilegalidades toleradas.

Esclarece o autor como o sistema penal adota na prática as ilegalidades

toleradas, o que se dá de um modo muito complexo e sutil. Explica que

polícias, Ministério Público e Judiciário atuam de forma ordenada de modo a

reconstruir no processo uma realidade que permite o ato decisório segundo as

necessidades deste sistema, que se justifica eventualmente à luz da legalidade

e de valores sociais.

Vidal (2011) finaliza seu argumento dizendo ser fácil perceber por

hipótese que o juiz define em princípio o que fazer em determinado caso

concreto que lhe foi apresentado pela polícia e Ministério Público, e assim

orienta a atividade instrutória, captando da forma que convém à sua opção os

elementos probatórios e, ao final, exterioriza sua decisão de acordo com

critérios axiológicos e de legalidade.

Exemplificando conforme o citado autor, o juiz pode em princípio ter

decidido que determinada brutalidade denunciada não é tortura, mas um

simples e necessário corretivo para a manutenção da ordem no interior de um

presídio. Colherá as provas sob tal ótica, de modo a colorir o processo com a

demanda por disciplina e, por fim, vazará uma decisão absolutória justificada

na falta de provas e no valor ordem e disciplina.

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Veja-se que a tese apresentada acima, apesar de ousada, é bastante

plausível, principalmente porque as contradições do sistema penal apontadas

por Vidal (2011) são facilmente verificadas na realidade da Justiça Criminal.

Outro autor que critica essa forma ordenada de atuação do sistema

penal é Thompson (2007). Porém, aborda a questão com outro exemplo.

Ele refere que as confissões obtidas mediante tortura são muito

comuns nos processos penais e acabam servindo como prova para

condenações, já que, na maioria dos casos, os juízes confirmam confissões

evidentemente conseguidas mediante constrangimento da vontade dos réus,

pois confirmadas por outras circunstâncias, mas, curiosamente, não cogitam

processar os policiais que a arrancaram. Tal contexto, segundo o autor,

provoca a institucionalização do emprego da tortura para extorquir confissões,

prática que, informal, mas reiterada e claramente, é endossada pelos tribunais.

Ainda, segundo Thompson (2007), institucionalizando-se, a prática

funciona com maior eficiência. Tanto, que por vezes nem é necessário à polícia

bater, pois a certeza de que a violência no interrogatório ocorre livremente e

sem perspectiva de gerar qualquer responsabilidade para seus autores, leva o

indiciado, mesmo antes de sofrer concretamente a aplicação de sevícias

(maus-tratos como gritos, ameaças e empurrões sempre ocorrem), a relatar

todos os pecados de sua vida.

Independente do motivo, a postura do Poder Judiciário em relação aos

crimes de tortura praticados por agentes do Estado precisa mudar

urgentemente. A atuação limitada ou omissa do Poder Judiciário a respeito do

problema contribui para a proliferação da tortura, gerando nefastos efeitos para

toda a sociedade, principalmente os torturados e torturáveis (normalmente das

classes sociais mais baixas), além de seus familiares e amigos próximos, pois

todos ficam traumatizados, sentem-se menosprezados como pessoa, e com

medo da polícia, fatores que somente fazem aumentar a ocorrência da

violência.

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2.3. A conivência da sociedade com as práticas de tortura contra presos e

suspeitos

A postura do Poder Judiciário, muitas vezes tolerante com a prática de

tortura por agentes da lei contra presos e suspeitos de crimes, tratada no tópico

anterior, não é isolada. Grande parte da nossa sociedade também tolera e,

inclusive, muitos até apóiam tais condutas criminosas.

É provável que o desconhecimento acerca dos Direitos Humanos,

principalmente no que se refere a sua universalidade e inalienabilidade, aliados

à cultura do medo que a sociedade vive hoje, motivada pelos altos índices de

violência, faça com que muitas pessoas pensem dessa maneira. Talvez

enxerguem na vingança, na punição e nos castigos, puros e simples, a falsa

sensação de Justiça.

Uma pesquisa realizada em 2010 pelo Núcleo de Estudos da Violência

da Universidade de São Paulo (NEV/USP), em 11 (onze) capitais brasileiras,

apontou que 47,5% (quarenta e sete e meio por cento) das pessoas

entrevistadas disseram concordar com práticas de tortura por policiais para

obter provas. É realmente um percentual realmente preocupante, pois

representa quase metade das pessoas entrevistadas. E é ainda mais

preocupante, principalmente porque o estudo foi realizado em plena vigência

do Estado Democrático de Direito, ou do Estado que se diz Democrático de

Direito.

Freitas (2009) aborda a questão da conivência da sociedade com a

tortura sob a ótica do medo que é gerado pelos grandes índices de violência e

criminalidade, sendo que resta imposta a necessidade de manutenção da

ordem, a partir do controle dos grupos considerados “perigosos” e, para tanto,

o uso da violência física constitui um meio considerado aceitável e mesmo

necessário, em especial na atuação da polícia.

Explica a autora que mais preocupante do que as deficiências estruturais

que podem propiciar a prática da tortura é a sua justificação ideológica. Isso

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porque, embora a sociedade indigne-se diante dos casos de brutalidades

cometidas contra cidadãos, tal indignação não se dá em relação a todos os

casos de tortura. Afirma a autora que existem torturas “não-aceitáveis” e outras

“aceitáveis” ou mesmo necessárias.

Ressalta ainda que, normalmente, os excessos policiais são apoiados

pela população, desde que dirigidos contra os “marginais”. Tem-se que, pelo

convívio com a violência endêmica e a ineficiência de um policiamento efetivo,

“as medidas violentas, da polícia ou de grupo de extermínio, são concebidas

como um meio de proteção contra a insegurança.”

E arremata dizendo que, embora lamentável, é forçoso concluir que as

garantias fundamentais, em especial a tão aclamada dignidade da pessoa

humana, parecem não ser para todos. Eis que a subsistência da tortura, como

uma prática denegatória da condição humana do ser vitimado, nos conduz a

essa idéia de que não são todos iguais. Pelo contrário, distinguem-se os

cidadãos merecedores de respeito aos seus direitos dos bandidos, a quem

deve ser dirigido um tratamento rigoroso, lastreado antes por uma ideologia de

segurança pública do que pelos preceitos jurídicos.

Piovesan e Salla (2001) também abordam a questão, declarando que

em uma sociedade como a nossa, marcada muito mais pela hierarquia entre os

cidadãos do que pelos valores da igualdade entre eles, há uma indisfarçável

tolerância da parte de muitos grupos sociais (elites e classe média) com

relação à tortura, uma vez que, ela atinge pobres, moradores de áreas urbanas

degradadas, negros, criminosos e etc. Enfim, afeta os que não chegam a ser

vistos por aqueles grupos como cidadãos portadores de direitos.

De acordo com os referidos autores, o desdobramento dessa tolerância

é uma acomodação política. Assim, os partidos e as plataformas de governo,

em sua maioria, repudiam oficialmente a tortura e os maus-tratos, mas não

concentram de fato muitos esforços para reverter a situação, especialmente os

governos estaduais, responsáveis diretos pela manutenção das polícias e do

sistema prisional.

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Como exemplo de conivência de grande parte da sociedade com a

tortura praticada contra presos, criminosos e suspeitos, refere-se novamente o

enorme sucesso que fez o filme Tropa de Elite. Repita-se que na referida

produção cinematográfica, em várias cenas, os policiais do BOPE apareceram

praticando atos de tortura contra presos, criminosos e suspeitos, e tais cenas

fizeram tanto sucesso que o Capitão Nascimento, personagem principal do

filme, acabou virando, para muitos, um herói nacional.

Sobre essa questão quem escreveu um pequeno artigo, porém

extremamente interessante, foi o Professor Paulo Queiroz. O artigo chama-se

Tropa de elite e o poder das metáforas e está disponível no blog do autor,

URL: http://pauloqueiroz.net/tropa-de-elite-e-o-poder-das-metaforas/, cujos

principais trechos seguem abaixo transcritos:

[...].

A reação de boa parte das pessoas e autoridades aplaudindo a ação do capitão Nascimento (principal personagem do filme “tropa de elite”) ao torturar e matar supostos criminosos, parece mostrar claramente que palavras quase sagradas como lei, direito, estado de direito e justiça são apenas metáforas que nada referem concretamente, pois ora servem para legitimar, ora para deslegitimar atos de violência; são enfim palavras carregadas de sentimento cujo sentido e conteúdo são social e arbitrariamente construídos, mesmo porque a rigor não existem fenômenos jurídicos, éticos ou estéticos, mas só uma interpretação jurídica, ética e estética dos fenômenos (Nietzsche).

Neste trecho, Paulo Queiroz trabalha com a conivência da maioria da

sociedade com as práticas de tortura nas ações policiais.

Com efeito, em nome do direito, da justiça e da ética, é possível tanto proibir quanto autorizar a morte, por exemplo: quando queremos proibir, designamos o ato como injusto, ilegal, criminoso etc; inversamente, se queremos autorizá-la, dizemos que houve legítima defesa, estado de necessidade ou algo parecido. Assim, se um policial inglês confunde um brasileiro com um terrorista e dispara diversas vezes contra ele, matando-o, dirão os ingleses que houve legítima defesa putativa ou similar, e a morte estará assim legitimada; se uma tribo pratica infanticídio de crianças por nascerem com algum tipo de deformidade física ou mental, dirá a Funai que é preciso respeitar a tradição e cultura dos índios; se o Estado decide fundar

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uma capital no cerrado e destruir o meio ambiente, chamaremos isso de um grande empreendimento em favor do progresso etc.

Mais claramente: se, em nome da liberdade, por exemplo, é proibido o estupro violento, também em nome dela é considerado delito a relação sexual havida com menores (catorze anos, no caso brasileiro) por mais livre o ato e por mais madura a “vítima” em questão. Enfim, a pretexto de afirmar a liberdade sexual, a lei acaba por negá-la, legitimando uma dupla violência: contra a suposta vítima, a quem se nega o direito de decidir por conta própria, e contra seu parceiro, que é rotulado de criminoso, ficando sujeito à pena, de sorte que a lei que proíbe o estupro é a mesma que tem como tal o que não o é.

Prossegue o citado autor, com o seu bem articulado argumento, no

sentido da hipocrisia humana em relação a seus próprios interesses quanto à

legalidade ou ilegalidade de seus atos.

Até certo ponto compreende-se que assim seja, afinal não existe lei, direito, justiça, liberdade para além do tempo e do espaço; mais: a distinção entre justiça e vingança, entre legalidade e ilegalidade etc. não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. O mesmo se poderia dizer também sobre a igualdade etc.: a igualdade que permitiu que brancos escravizassem negros é a mesma que tolera que pardos excluam negros e que estes preferiram a ambos; subjacente a tudo isso estão sempre relações de poder.

E se não tivermos argumentos estritamente técnicos (se é que existem) para justificar a tortura e a execução por grupos policiais, recorreremos a outros rótulos ou metáforas poderosas e então chamaremos suas vítimas de bandidos, criminosos, traficantes, e não só agradeceremos seus atos, como veremos seus algozes como heróis e diremos que seus atos são necessários, justos ou inevitáveis, ao menos enquanto não somos as vítimas dessa violência; o que se passa, conscientemente ou não, é que, quando nos identificamos com os autores da violência, nós os absolvemos ou buscamos de algum modo atenuar-lhes a culpa; quando nos identificamos com as suas vítimas, os condenamos. O direito tem a forma e o tamanho da hipocrisia humana.

E conclui, de forma brilhante, relacionando Direito, Estado de Direito e

Justiça a meras metáforas associadas às sensações que nos causam algum

prazer. Nesse ponto, pode ser feita uma relação com interesses meramente

privados, por mais mesquinhos e egoístas que possam ser, como uma simples

vingança, por exemplo.

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Parece certo assim que, no fundo, direito, estado de direito, justiça etc. são apenas metáforas que associamos às sensações que nos causam algum prazer, conforto, segurança ou sentimento análogo; quando as nossas emoções são em sentido oposto, então diremos que se trata de algo injusto ou cruel. A lei é uma espada que tanto pode proteger como ameaçar: tudo depende de quem a manuseia e como o faz, afinal o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia (Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio: Bertrand Brasil, 1998, p.15).

De todo modo, se entendermos, como querem alguns, que à polícia é dado torturar ou matar, apesar de a lei (de crimes hediondos inclusive), a Constituição em especial, o proibir terminantemente, já não haverá diferença alguma entre policiais e criminosos; e talvez seja mais barato e eficiente simplesmente extinguir as polícias (e com ela todo o aparato repressivo estatal) e contratar mercenários para promoverem tais execuções e torturas e assumir, aberta e oficialmente, que o estado de democrático de direito é apenas uma farsa, uma conveniente e cruel farsa a serviço de uma política, mais ou menos velada, de extermínio dos indesejados.

[...].

Veja-se que a tolerância de boa parte da sociedade com as práticas de

tortura por policiais e agentes penitenciários contra suspeitos está motivada por

duas diferentes razões. É verdade que decorre da sensação de insegurança

vivida por todos atualmente, a qual faz com que muitos nutram um desejo de

vingança, vendo na punição e no castigo uma idéia, mesmo que equivocada,

de Justiça. Também é verdade, no entanto, conforme se depreende do texto de

Paulo Queiroz, bem como dos ensinamentos de Freitas (2009), que a dita

tolerância decorre igualmente de uma idéia burguesa de divisão social por

classes, pela qual os integrantes das camadas mais baixas da população, os

cidadãos considerados perigosos, não teriam os mesmos direitos que os

cidadãos das classes dominantes.

Resta claro que tal postura, além de mesquinha, egoísta e multiplicadora

de violência, está em completo desacordo com os postulados do Estado

Democrático de Direito, o qual vigora, ou deveria vigorar, no nosso país, de

acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil. Portanto, uma

urgente mudança faz-se necessária, a fim da mudança do quadro atual,

buscando a efetiva transição para uma nova cultura, de igualdade de direitos e

não violência.

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CAPÍTULO III – DAS POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA A MUDANÇA DO

QUADRO ATUAL

3.1. A mudança de postura do Poder Judiciário em relação ao

enfrentamento da questão com os mecanismos legais disponíveis

De acordo com o que foi até aqui abordado, um dos motivos da

impunidade dos torturadores, bem como da enorme reiteração dessa conduta

criminosa, que praticamente institucionalizou a tortura entre os métodos de

trabalho dos policiais e agentes penitenciários, é a postura tolerante, ou

omissa, que o Poder Judiciário vem adotando em relação ao problema. Sendo

assim, entende-se que uma das hipóteses de solução para o problema pode

partir dos próprios integrantes do Poder Judiciário, qual seja, uma mudança de

postura quando do enfrentamento do problema.

Pensa-se que, de início, não é preciso nenhuma mudança legislativa

profunda acerca da matéria, mas apenas que a legislação vigente seja melhor

aplicada, o que já representaria um grande avanço. Porque, a legislação atual,

embora não seja nenhum primor, tem mecanismos importantes de prevenção e

combate à tortura.

Exemplificando, a Lei de Tortura traz em seu artigo 1º, § 5º a previsão de

que a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Trata-se

de previsão legal de grande valia, principalmente para evitar a reincidência da

conduta, pois provoca o afastamento do torturador de suas atividades,

normalmente onde o mesmo comete os atos de tortura, situação que vai

perdurar por longo período, mesmo após o término do cumprimento da pena.

Frisa-se, porque oportuno, que, diferente dos efeitos secundários da

condenação, previstos no artigo 92 do Código Penal, o citado efeito da

sentença condenatória previsto na Lei de Tortura é automático. Logo, é efeito

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de todas as sentenças condenatórias e, portanto, bastante rigoroso para os

torturadores.

Sobre o efeito automático da condenação na Lei de Tortura, nos ensina

Silva (1999), para quem, em se tratando de crime de tortura, a condenação

acarreta a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu

exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada, ou seja, o efeito da

condenação é automático, não ficando condicionado à declaração motivada na

sentença.

No mesmo sentido é o ensinamento de Franco (1997), ao nos dizer que

se trata de efeito automático da condenação, não dependente de motivação, ou

do tempo de duração da condenação. Além disso, continua o autor, o legislador

penal, em discrepância com o que foi estabelecido na Reforma Penal de 1984,

ressuscitou a pena acessória de interdição para o exercício de cargo, função

ou emprego público.

Prossegue o autor, repetindo a lei, ao afirmar que dita interdição deverá

ter a duração do dobro do prazo da pena aplicada. Ressalta, no entanto, que,

mesmo reabilitado, o condenado por tortura não poderá concorrer a nenhum

cargo, função ou emprego público pelo prazo já mencionado.

Para ilustrar refere-se, ainda, o ensinamento de Almeida (2004), o qual

afirma ser regra que os efeitos secundários da condenação são automáticos,

salvo quando a lei dispuser de modo contrário, como ocorre nas hipóteses

contempladas pelo artigo 92 do Código Penal, tendo em vista o disposto no seu

parágrafo único. Esclarece ainda o autor que, em se tratando de agente

público, incidem os dois efeitos da condenação: perda do cargo etc., e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Portanto, um torturador condenado, quando agente do Estado, que é o

torturador abordado no presente trabalho, será automaticamente afastado de

suas atividades pelo dobro do tempo da pena a ser cumprida, sendo-lhe

vedado inclusive seu ingresso em outras atividades públicas no mesmo

período, além de sofrer uma pena de reclusão variável de acordo com a

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conduta praticada. Vale dizer, que é uma punição severa e, se bem aplicada,

representa uma importante ferramenta, não só de punição, mas de prevenção

e combate à tortura.

É claro que não se pode exigir dos juízes a condenação todos os

agentes do Estado denunciados por tortura, até porque, sabe-se que sempre

um denunciado pode ser inocente, assim como, em muitos casos, realmente

não existem provas suficientes para a condenação. Não é por outro motivo,

que na vigência do Estado Democrático de Direito existem, entre outras, as

garantias da presunção de inocência e do benefício da dúvida em favor do réu.

O que se pretende é que, nos casos em que existam elementos para a

condenação, como prova de lesões, depoimentos coerentes das vítimas de

tortura e, algumas vezes, testemunhas, os juízes efetivamente decidam pela

condenação dos denunciados culpados. É o que se espera do Poder Judiciário,

ao invés de menosprezar a versão dos torturados e desconsiderar o conjunto

probatório, supervalorizando o depoimento dos agentes do Estado acusados

de tortura que, normalmente são tratados como se fossem cidadãos acima de

qualquer suspeita, advindo daí absolvições com base apenas na desvirtuada

“fé-pública” dos denunciados.

Sabe-se também que, em muitos casos, o Poder Judiciário não recebe

denúncias de tortura envolvendo policiais e agentes penitenciários, mas de

crimes mais brandos, como lesões corporais leves, porque o Ministério Público,

com base em inquéritos policiais pobres (normalmente tendenciosos, em razão

do corporativismo institucional), acaba oferecendo denúncias por esses crimes

mais brandos e não por tortura. Mesmo nessas hipóteses, havendo boa

vontade dos juízes, é possível denunciar os casos de tortura, com base na

legislação em vigor, sempre que eles forem identificados durante a instrução

processual.

Basta que, nessas hipóteses, os juízes utilizem-se dos recursos

previstos no Código de Processo Penal, mais precisamente nos artigos 383 e

384, que tratam da emendatio libelli e mutatio libelli, respectivamente.

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De acordo com o artigo 383: “O juiz, sem modificar a descrição do fato

contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa,

ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.”

Já o artigo 384, dispõe que:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

No § 1º está disposto que: “Não procedendo o órgão do Ministério

Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código.”

E o artigo 28 do Código de Processo Penal, por sua vez, prevê que:

Art. 28. Se órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

A fim de exemplificar a possibilidade de o juiz discordar da capitulação

atribuída ao delito pelo Ministério Público, em caso de denúncia oferecida

contra os agentes do Estado por delito menor, mas não por tortura, é

interessante a referência do que ocorreu nos autos do Inquérito Policial nº

3.213/99 da 16ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, em que o Juiz, Dr.

Marcelo Semer submeteu os autos ao Procurador-Geral de Justiça, Dr. José

Geraldo Brito Filomeno, e este, concordando com o Juiz, designou outro

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promotor para aditar a denúncia. Alguns trechos interessantes da manifestação

do Procurador-Geral, extraídos do Boletim IBCCRIM nº 97, seguem transcritos:

[...].

M.A.S. e U.M.O., policiais civis, foram denunciados como incursos nas penas do art. 3º, parágrafo único, letra “i”, da Lei nº 4.898/65, c/c o art. 29, caput, do Código Penal, por fato ocorrido no dia 28 de setembro de 1999, na comarca de São Paulo, figurando como vítima G.N.T.

O meritíssimo juiz de Direito da 16ª Vara Criminal da Capital, discordando da capitulação jurídica dada na denúncia, entendendo que o crime praticado em apreço é de tortura, previsto no art. 1º, inc. I, alínea “a”, e II, e § 1º, da Lei nº 9.455/97, determinou a remessa dos autos ao membro do Ministério Público oficiante para fins de aditamento (fls. 140).

A digna 72ª promotora de Justiça Criminal insistiu na definição jurídica constante na denúncia (fls. 141/142).

Discordando desse entendimento, o ilustre magistrado remeteu os autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, aplicando, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP (fls. 145/146).

É o resumo necessário.

Como já tive a oportunidade de me manifestar em um caso semelhante, o tipo penal exige que a vítima seja submetida a um sofrimento físico ou mental. Trata-se de um resultado que se acresce ao uso da violência ou grave ameaça pelo agente. Em outras palavras, a violência física ou moral é insuficiente para a caracterização do delito. Se fosse suficiente esta violência, o crime não exigiria a causação do sofrimento. O tipo penal teria outra descrição, bastaria para a caracterização de tortura: “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça ... com o fim de obter informação”.

[...].

Desta forma, o sofrimento físico ou mental, que o agente submete o ofendido e que é exigido no tipo penal, figura como um elemento normativo que precisa ser preenchido pelo intérprete, que ainda deverá observar no caso concreto a sua efetiva ocorrência.

[...].

No caso em apreço, diversamente do entendimento da ilustre promotora de Justiça oficiante, entendo presente a imposição do sofrimento físico e mental ao ofendido, caracterizador do crime de tortura.

[...].

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De resto, sem prova cabal e estreme de dúvidas afastando o crime de tortura, e nem outra justificativa aceitável para a conduta é prematura a classificação pelo mero crime de abuso de autoridade e equivocado limitar a acusação, que deve ser abrangente nesse estágio, e não o contrário. Em outros termos, nessa fase de mera admissibilidade da acusação, na qual sequer haverá aplicação da sanctio júris, não é conveniente que se limite o âmbito da imputação.

No caso em apreço, a denúncia deve ser aditada não só para constar a imposição do sofrimento físico e mental como também a sua finalidade, isto é, a obtenção de informações sobre a localização do instrumento do crime e a confissão de sua autoria, bem como forma de aplicar um castigo pessoal.

Diante do exposto, vislumbrando suficientes indícios de autoria e prova da materialidade, designo outro promotor de Justiça para aditar a denúncia e prosseguir nos ulteriores termos do feito. Expeça-se Portaria.

[...].

Demonstra-se, então, que os juízes, em muitos casos, podem de fato

fazer a diferença em relação à falta de aplicação da Lei de Tortura e a

consequente impunidade dos torturadores. Mesmo quando as denúncias

oferecidas pelo Ministério Público não forem adequadas, pois existem

mecanismos legais que permitem uma efetiva participação do Poder Judiciário,

como os que foram antes citados.

3.2. A aplicação do art. 1º, § 2º da Lei 9.455/97 e seus efeitos na prevenção

e no combate à tortura

Outro dispositivo legal que pode contribuir para a prevenção, combate

e punição da tortura, e está perfeitamente ao alcance do Poder Judiciário,

consta na própria Lei 9.455/97, em seu artigo 1º, § 2º, que tipifica como

criminosa a omissão em relação à tortura de quem tem o dever de evitá-la ou

apurá-la. Trata-se de crime próprio, ou seja, somente pode ser praticado por

determinadas pessoas, no caso, quem tem o dever de evitar ou apurar a

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tortura, cuja sua tipificação busca exatamente diminuir a impunidade em

relação aos crimes de tortura praticados por agentes da lei.

De acordo com Almeida (2004), será autor desse crime o superior

hierárquico do agente estatal que pratica tortura e, sabendo da conduta

criminosa de seu subordinado, nada faz para evitá-la. Também será sujeito

ativo do delito aquele superior hierárquico do agente da lei que, tendo o dever

legal de apurar a prática de tortura, não o faz, mesmo ciente da conduta

criminosa.

Podem responder por esse crime, entre outros, o Oficial da Polícia

Militar, o Delegado de Polícia, o Diretor da Penitenciária e, até mesmo o

Promotor de Justiça e o Juiz de Direito, de acordo com o contexto.

Sobre o citado tipo penal, Almeida (2004) traz como exemplo de sua

aplicação a hipótese do Delegado de Polícia que percebe que na sala ao lado

da sua um detetive está torturando um preso e nada faz para evitar que isso

ocorra. E justifica a sua incidência explicando que Constituição Federal prevê

responsabilidade penal da pessoa que se omitir diante da prática de crimes

hediondos, tráfico de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e tortura, desde

que possa evitá-los (art. 5º, XLIII).

Silva (1999), por sua vez, diz ser um crime próprio, uma vez que o

mesmo somente poderá ser cometido por uma determinada categoria de

pessoas. O tipo, segundo o autor, descreve o dever legal, o que implica na

existência vínculo hierárquico entre o executor imediato da prática da tortura e

a autoridade que se tornou omissa na obrigação de impedir ou apurar o ato

delituoso.

O referido doutrinador traz o exemplo do Sargento que presencia o

espancamento de um preso, por parte de subordinado, sem tomar quaisquer

providências. Também cita a hipótese de um Delegado de Polícia que flagra

um policial civil seviciando alguém para a obtenção de confissão, mas

permanece alheio ao fato.

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Insiste-se, porém, que o tipo penal ora estudado também pode ser

perfeitamente aplicável ao Juiz e ao Promotor de Justiça, dependendo do

contexto fático. Isso porque, ambos têm o dever de apurar os fatos que lhes

são denunciados e, se assim não fizerem, podem e devem ser

responsabilizados por omissão.

Imagine-se a situação da realização de uma audiência criminal de

instrução e julgamento na qual o réu, denunciado por um delito qualquer, em

seu depoimento, alega que foi vítima de tortura quando de sua prisão. Cabe ao

Promotor e ao Juiz, principalmente, a apuração do fato denunciado em

audiência, independente do desenrolar da ação penal relativa ao crime de que

o preso supostamente torturado tenha sido acusado.

Não pode a prática de um crime, ainda mais um crime grave como a

tortura, ser justificada pela prática de outra conduta delituosa anterior pela

vítima.

Ocorre que, muitas vezes situações semelhantes ocorrem no dia a dia

da Justiça Criminal, mas a apuração dos fatos nem sempre se verifica. Não

seria então o caso de omissão punível, conforme o artigo 1º, § 2º da Lei de

Tortura?

Defende-se que sim.

E mais, defende-se também que uma maior aplicação da punição

prevista no dispositivo legal em comento, em relação a todos os responsáveis

possíveis, Oficiais da Polícia Militar, Delegados de Polícia, Diretores de

Penitenciárias, Promotores de Justiça, Juízes de Direito, dentre outros, é uma

grande arma na prevenção e combate à tortura. Já que, forçaria melhores

fiscalizações, investigações e apurações em relação aos crimes de tortura.

Deve-se lembrar, entretanto, que, se as condenações por condutas

comissivas de tortura já são bastante raras, mais raras ainda são as

condenações pelas condutas omissivas previstas no § 2º. Talvez porque,

nesses casos, os criminosos são os poderosos, situação com a qual o Sistema

Penal não foi preparado para trabalhar, como já foi dito antes.

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3.3. A maior observância dos Direitos Humanos nas decisões judiciais e

seus reflexos no enfrentamento do problema

Viu-se ao longo do trabalho que um dos fatores que mais contribuem

para a ocorrência e a continuidade do problema da tortura praticada por

agentes do Estado contra suspeitos, presos e criminosos é a tolerância de

grande parte da sociedade, em relação a tais práticas. Verificou-se, também,

que muito dessa tolerância decorre da ignorância, ou má-vontade, das pessoas

em relação à observância dos Direitos Humanos, especialmente no que se

refere à universalidade dos mesmos, pois muitas dessas pessoas entendem

que os criminosos, presos e suspeitos, por serem considerados perigosos para

a sociedade, não devem ter os mesmos direitos que elas, as autodenominadas

“pessoas de bem”.

Sabe-se que a educação em Direitos Humanos é o grande desafio para

uma mudança dessa mentalidade mesquinha e egoísta de grande parte da

nossa sociedade. É sabido também, que se trata de um desafio longo e árduo

a ser vencido, bem como que a efetiva participação das instituições é de

fundamental importância para o êxito da mudança.

Nesse contexto, o papel do Poder Judiciário é de extrema importância.

Uma mudança efetiva de postura em relação ao problema, com base

num maior respeito aos Direitos Humanos, considerando-se, inclusive, as

hipóteses levantadas nesse trabalho, além de representar um significativo

avanço do Poder Judiciário em relação a ele próprio, pois deve contribuir de

fato para uma maior e mais eficaz aplicação da Lei de Tortura, com a menor

impunidade dos torturadores, pode colaborar também para a necessária

mudança cultural em relação ao tema. Especialmente, porque, apesar de

algumas falhas, o Poder Judiciário ainda é uma das instituições de maior

respeito junto à sociedade.

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Cabe então ao Poder Judiciário mudar sua postura, deixar de ser omisso

na punição dos agentes do Estado que cometem crimes de tortura contra

presos, suspeitos, criminosos, ou quem quer que seja. Ainda, observar e

respeitar cada vez mais em suas decisões os Direitos Humanos, colaborando

para sua divulgação e desmistificação, esclarecendo, principalmente, que os

Direitos Humanos são universais.

Quanto mais as pessoas conhecerem os Direitos Humanos previstos na

Constituição Federal, no Pacto de São José da Costa Rica, na Declaração

Universal dos Direitos Humanos, dentre outros documentos, mais estarão

aptas a reconhecerem sua importância e sua abrangência, o que certamente

trará efeitos reflexos positivos. O Poder Judiciário tem uma função muito maior

do que decidir, buscando Justiça para os casos concretos que lhes são

apresentados, mas sim a de colaborar para a construção da Justiça Social.

3.4. O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – PL

24442/2011

Em 12 de janeiro de 2007, o Estado Brasileiro ratificou o Protocolo

Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura. Na ocasião,

assumiu o compromisso de criar e manter um ou mais mecanismos preventivos

nacionais independentes para a prevenção da tortura em nível doméstico.

Desse compromisso surgiu o Projeto de Lei – PL 24442/2011, que

institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê

Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo de Prevenção e

Combate à Tortura, e dá outras providências. O citado PL ainda não foi

aprovado, mas está em fase final de tramitação no Congresso Nacional, e

prevê a criação de mecanismos eficientes e independentes de prevenção e

combate à tortura, que devem contribuir muito para o enfraquecimento dessa

odiosa prática.

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Espera-se que o citado PL seja aprovado o mais breve possível, e que

logo entre em vigor, porque o mesmo prevê importantes ferramentas para

auxiliar o Ministério Público e o Poder Judiciário nas investigações de crimes

de tortura atribuídos aos agentes do Estado. Principalmente, porque estabelece

uma apuração independente das denúncias.

De acordo com o PL 24442/2011, será instituído o Sistema Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura, bem como criados o Comitê Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e

Combate à Tortura. Todos com funções importantes, mas deve-se atentar mais

para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – MNPCT, em

razão de seus aspectos inovadores.

Sobre esses aspectos inovadores, citam-se alguns que foram

destacados na Exposição de Motivos Interministerial nº 00179/2011, de 29 de

setembro de 2011, que encaminhou o texto à Presidência da República.

O MNPCT será composto de 11 (onze) peritos especialistas e

independentes que atuarão nos locais de privação de liberdade de todo o país.

O trabalho desses peritos será sempre objetivando a prevenção e o combate à

tortura nos locais de detenção, que são justamente onde acontece a maioria

das ocorrências de tortura.

A fim de melhores resultados, o MNPCT estabelece um sistema de

visitas regulares aos locais de privação de liberdade, independente de

comunicação prévia, cujo objetivo é o de prevenir a tortura, ao invés de

simplesmente reagir à sua ocorrência, bem como exercer o monitoramento

regular e periódico das unidades de custódia de pessoas.

Além disso, dentre outras medidas importantes, o PL trabalha com um

conceito abrangente de centros de privação de liberdade, incluindo qualquer

que seja a forma de detenção, aprisionamento, contenção ou colocação em

estabelecimento público ou privado de controle ou vigilância, bem como

unidades públicas ou privadas de internação, abrigo ou tratamento, o que

certamente ajudará na prevenção e combate à tortura em todo o Brasil.

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Não há dúvidas, portanto, que se trata de um instrumento inovador e,

provavelmente, de grande eficácia. Espera-se que, assim que estiver em vigor,

venha a colaborar com as autoridades competentes, principalmente o Poder

Judiciário, na prevenção e no combate da tortura, e mais, que essas

autoridades façam um bom uso desse instrumento.

Tudo isso porque se entende que já passou da hora de a tortura ser

extirpada da nossa realidade e, para tanto, todos os instrumentos e esforços

são bem vindos.

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CONCLUSÃO

O trabalho trata de uma questão delicada, mas que precisa ser

urgentemente enfrentada, pois cada vez mais presente no dia a dia da Justiça

Criminal no Brasil, e que produz nefastos efeitos. É a omissão adotada pelo

Poder Judiciário (a maioria de seus integrantes, para não generalizar) em

relação às denúncias de tortura contra agentes do Estado (policiais e agentes

penitenciários, na maioria das vezes), especialmente quando as vítimas são

indivíduos presos, suspeitos ou criminosos.

É abordado um pequeno histórico da tortura, onde se verifica, além da

origem do instituto, que ele já esteve presente no mundo inteiro, e hoje ainda

ocorre, com freqüência, em várias partes do globo. Também, que se trata de

instituto jurídico peculiar, que hoje é conduta proibida e criminalizada por

muitos países, mas já foi prática legalizada, seja como castigo, seja como meio

de investigação.

No Brasil, a tortura acontece desde o período da colonização e,

infelizmente, é facilmente verificada até os dias de hoje. No começo era

praticada contra os negros, índios e escravos, depois foi muito praticada em

detrimento de presos e inimigos políticos, no Regime da Ditadura Militar, e

hoje, em plena vigência do Estado Democrático de Direito, continua sendo

praticada, tendo normalmente como alvo os indivíduos considerados perigosos

pela sociedade, criminosos, presos e suspeitos, normalmente das camadas

mais pobres da população.

Apesar da vigência do Estado Democrático de Direito, com todos os

direitos e garantias fundamentais assegurados aos cidadãos na Constituição

da República de 1988, assim como, o Brasil ser signatário de diversos Tratados

Internacionais de Direitos Humanos que abominam a tortura, ela continua a ser

praticada. Esta mazela insiste em manchar nossa dignidade e parece estar

institucionalizada nos métodos de trabalho policiais, penitenciários e de outros

atores da área da segurança pública.

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A tortura não foi abolida ainda da nossa realidade por causa da

tolerância em relação à sua prática. Pode-se falar da tolerância do Poder

Judiciário, em muitos casos, mas também da tolerância de grande parte da

sociedade.

Essa tolerância de muitos com a prática de um crime equiparado a

hediondo é inquietante e preocupante, pois, repita-se, vivemos num Estado

Democrático de Direito. Portanto, o presente trabalho se presta também para

tentar entender esse fenômeno.

Talvez essa tolerância se explique em razão dos autores e das vítimas

dos crimes de tortura em questão. Os autores são quem deveriam ser os

“mocinhos” da história, já as vítimas são aqueles que normalmente são os

“bandidos”.

Fala-se da tortura praticada por agentes do Estado (policiais e agentes

penitenciários, na maioria dos casos), sendo vítimas os cidadãos presos,

suspeitos ou criminosos, em regra, oriundos das classes mais pobres da

sociedade, e, portanto, considerados indivíduos perigosos. Destas simples

premissas surge o sentimento mesquinho e egoísta daqueles que toleram a

reiterada prática desse crime odioso e contribuem para a impunidade de seus

agentes.

Conforme o demonstrado no trabalho, a tolerância do Poder Judiciário

(a maioria de seus integrantes, não todos, é sempre conveniente lembrar) em

relação aos crimes de tortura no contexto apresentado decorre, principalmente,

da forma estamental e corporativista em que funciona o Sistema Penal

(polícias, Ministério Público, Poder Judiciário e administração penitenciária).

Resumidamente, como em exemplo do que se explica: os juízes dependem da

investigação e das provas obtidas pela polícia, muitas vezes mediante tortura,

para dar regular andamento no sistema e condenar quem “deve ser

condenado”.

Nesse conjunto, enfrentar combativamente todas as denúncias de

tortura que lhes são apresentadas pode emperrar o sistema. E isso, como já foi

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dito antes, não interessa a maioria dos juízes, nem aos demais integrantes do

Sistema Penal.

Já a tolerância da sociedade com os crimes em questão tem origem,

pelo menos, em duas diferentes razões. Decorre da sensação de insegurança

vivida por todos atualmente, a qual faz com que muitos nutram um desejo de

vingança, vendo na punição e no castigo uma idéia, mesmo que equivocada,

de Justiça. Mas, também decorre de uma idéia burguesa de divisão social por

classes, pela qual os integrantes das camadas mais baixas da população, os

cidadãos considerados perigosos, não teriam os mesmos direitos que os

cidadãos das classes dominantes.

Sugere-se então, uma mudança de postura do Poder Judiciário em

relação ao problema apresentado, utilizando-se dos mecanismos já existentes

na legislação, como demonstrado no trabalho, bem como na expectativa de

novos mecanismos que estão prestes a serem adotados, a fim de deixar de ser

omisso na punição dos agentes do Estado que cometem crimes de tortura

contra presos, suspeitos, criminosos, ou quem quer que seja, e dar de fato uma

aplicação mais eficaz à Lei de Tortura. Sugere-se também ao Poder Judiciário,

observar e respeitar cada vez mais em suas decisões os Direitos Humanos,

colaborando para sua divulgação e desmistificação, esclarecendo,

principalmente, que os Direitos Humanos são universais.

Isso porque, se entende que o Poder Judiciário, por ser uma das

instituições mais respeitadas pela sociedade em geral, tem uma função muito

maior do que simplesmente decidir os casos concretos que lhes são

apresentados, mas sim a responsável e honrosa missão de ajudar

efetivamente na construção da Justiça Social.

Nesse sentido, quanto maior o número de pessoas a conhecerem os

Direitos Humanos previstos na Constituição Federal, no Pacto de São José da

Costa Rica, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, dentre outros

documentos, maior o número de pessoas que estarão aptas a reconhecerem a

importância e a abrangência dos Direitos Humanos, o que certamente trará

efeitos reflexos positivos.

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E uma mudança de postura do Poder Judiciário em relação ao problema

apresentado pode ser capaz de promover uma maior e melhor aplicação da Lei

de Tortura, reduzindo a impunidade e coibindo sua prática, bem como

contribuir para uma mudança cultural no sentido da busca da paz social.

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