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00032 - Breve História da Realidade

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1 Capa Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5.988 de 14/12/1973. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida seja qual for a forma ou o meio – eletrônico, mecânico por fotocópia, gravação ou outro – sem a permissão dos proprietários de direitos autorais. B REVE H ISTÓRIA DA R EALIDADE C OPYRIGHT © 2000 BY I E DITORA 2 Giorgio Gasparro M OTIVO , P RINCÍPIO , D ESTINO 1ª edição 3 Sumário B REVE H ISTÓRIA DA R EALIDADE 4 M OTIVO , P RINCÍPIO , D ESTINO 5

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M O T I V O , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 1

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2 B R E V E H I S T Ó R I A D A R E A L I D A D E

COPYRIGHT © 2000 BY IEDITORA

CRÉDITOS

CAPA E PROJETO GRÁFICO: Simone MontoroDIAGRAMAÇÃO E REVISÃO: Mônica Hamada

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5.988 de 14/12/1973.Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida seja qual for a forma ou

o meio – eletrônico, mecânico por fotocópia, gravação ou outro – sem a permissãodos proprietários de direitos autorais.

iEditoraRua da Balsa, 601 – 2º andarTelefone: (11) 3933-2807Site: www.ieditora.com.br02910-000 São Paulo - SP - Brasil

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Breve

História

da

realidade

Motivo, Princípio, Destino

1ª edição

Giorgio Gasparro

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4 B R E V E H I S T Ó R I A D A R E A L I D A D E

Sumário

CAPÍTULO 1Perguntas 8

CAPÍTULO 2A historieta que propõe as explicações 10

CAPÍTULO 3A Mente começou a estudar um, dois... 11

CAPÍTULO 4Assim nasceu o conceito da pré-ciência... 13

CAPÍTULO 5Da Mente destacaram-se pontos luminoso... 14

CAPÍTULO 6O Pari anotava na sua memória... 16

CAPÍTULO 7Depois da grande explosão, os... 19

CAPÍTULO 8Splendor ficou impressionado. A idéia... 20

CAPÍTULO 9Antes e depois deste evento, a Mente... 23

CAPÍTULO 10À grande distância, a realidade... 25

CAPÍTULO 11É um núcleo de inteligência ativa... 26

CAPÍTULO 12Splendor seguia com cuidado a difusão... 28

CAPÍTULO 13A Mente costumava descer da sua... 30

CAPÍTULO 14Mas a Mente não tinha sossego; era do... 31

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CAPÍTULO 15Na floresta úmida e sombreada, viviam... 32

CAPÍTULO 16Seguiram-se dias estranhos: o ar... 34

CAPÍTULO 17Ele, como a mãe, tinha o hábito de... 36

CAPÍTULO 18Alguns pensadores, obstinados em... 37

CAPÍTULO 19Homo, após ter afugentado os pretende... 39

CAPÍTULO 20A luz da manhã mostrou pequenas poças... 41

CAPÍTULO 21Homo, favorecido pela benevolência... 42

CAPÍTULO 22Começou o pôr-do-sol, as sombras... 44

CAPÍTULO 23Depois que o horizonte tornou-se... 45

CAPÍTULO 24O homem não se manifestara ainda... 47

CAPÍTULO 25A história se repete (os autores são... 51

CAPÍTULO 26Mais adiante, Homo constatou que após... 53

CAPÍTULO 27Homo começou a observar: o sol não... 54

CAPÍTULO 28Por que a Mente dá atenção a um... 56

CAPÍTULO 29Usando o instinto enfraquecido, Homo... 58

CAPÍTULO 30O sol alto e o montículo de pedras... 59

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6 B R E V E H I S T Ó R I A D A R E A L I D A D E

CAPÍTULO 31O homem começa a desgarrar do... 63

CAPÍTULO 32No início do desgarramento, os... 65

CAPÍTULO 33Sob os efeitos dos novos estímulos... 66

CAPÍTULO 34É assim que a percepção capta a sua... 68

CAPÍTULO 35Como sempre acontece, a combinação... 69

CAPÍTULO 36No ambiente dos agrupamentos humanos... 71

CAPÍTULO 37Típico caso do profeta iletrado, que... 72

CAPÍTULO 38O raciocínio espontâneo e contínuo... 74

CAPÍTULO 39Não existem documentos e sinais... 76

CAPÍTULO 40Após a doação, o faraó descobre o... 77

CAPÍTULO 41Abraão tinha uma sagrada missão a... 79

CAPÍTULO 42Por volta do século XIV a.C. a... 81

CAPÍTULO 43– Tu és único Deus, ao Teu lado não... 82

CAPÍTULO 44Algumas mentes, entre os milhões de... 84

CAPÍTULO 45Só o Nada é inútil, o restante pode... 86

CAPÍTULO 46O Karma sobrevive à morte, acompanha... 87

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CAPÍTULO 47Para melhorar a pessoa é necessário... 90

CAPÍTULO 48Se a imaginação humana quisesse... 91

CAPÍTULO 49–Assim caminha a humanidade... 94

CAPÍTULO 50Vivia em uma região, entre o mar e a... 95

CAPÍTULO 51Depois, os ladrões, de passagem pela... 97

CAPÍTULO 52À noite, a fraqueza o venceu: Job... 99

CAPÍTULO 53– Mais uma vez somos limitados pelos... 102

CAPÍTULO 54O Pari, recebidas as virtudes e a... 103

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8 B R E V E H I S T Ó R I A D A R E A L I D A D E

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Perguntas

Após apreciar algumas leis naturais, umas precisas, outras menos, vêm à Mente estas perguntas:

1º) É lógico pensar que as leis não são casuais, mas ditadaspor um legislador?2º) Após o exame das leis, pode-se afirmar que o legisla-dor é pessoa serena, equilibrada e racional, que persegueum desenho pré-fixado?3º) Por que o Criador-legislador começou e continuacriando?4º) Por que Ele dá à obra dimensões compreensíveis so-mente ao pensamento, e não aos sentidos humanos?5º) Por que a obra está em contínua expansão?6º) Por que existem entidades astronômicas que transfor-mam a energia em luz, a luz em matéria e vice-versa, pro-jetando-a em todas as direções?7º) Por que existe somente vida em um, talvez em algunscorpos astrais?8º) Por que tem a natureza por lei abandonar as criaturasineptas a vencer as dificuldades da existência, e favorece asaptas, obrigando-as a superar provas sempre mais difíceis?9º) Por que o homem não usa a totalidade cerebral? Talvezreserve a parte inusitada para funções hoje insuspeitas?10º) A criação é o produto da Razão superior ou de umsentimento?

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11º) O conhecimento e a sua aplicação não são gratuitos, ohomem os adquire com sacrifício e dispêndio de energiaintelectual. É assim também para o Criador-legislador?12º) Afinal, qual é a função de um ser inteligente, criativo,volitivo, cujo espírito tem gradações infinitas de sensibili-dade numa realidade deserta, vasta, que limita com o Nadaabsoluto?

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A historieta que propõe as

explicações.

A Mente continuava única e solitária no Nada ena Eternidade. Existia, pois, sem um fim.

Nela fluíam pensamentos: eram novos, repensados,contrapostos, modificados, tecidos como fios de linho paraformar uma tela inútil.

Em um momento da seqüência reflexiva, suspeitouque a repetição de temas abstratos poderia causar-lhe mor-bidez. Então, dirigiu a atenção para fora de sua pessoa.Não achou nenhuma realidade, e experimentou dor in-tensa.

Consolou-se. Liberou a percepção aguda. Esta voltouafirmando que tinha constatado o Nada.

— O Nada é ilimitado: adianta-se ao nosso proceder.— O Nada é insensível: não reage a um ato.— O Nada é inexpressivo: não tem aspecto.— O Nada é onipresente: envolve-nos.— O Nada é nocivo: apaga nossos pensamentos e não

nos inspira novos.— Nós somos o centro do Nada.Assim, a Mente criou o Nada, caracterizando-o.Seguiu-se longo silêncio intelectual...Agora, o Nada tangia a Mente, penetrando-a, per-

meando-a, sufocando sentimentos e impulsos, alastrando-

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se na concepção mental da magnitude, estabelecendo-se,amiúde, o seu domínio no recesso da Mente, favorecendouma atmosfera que causa patogenia psíquica.

Em um instante a Mente tomou consciência do peri-go, e dele distinguiu as causas: a inércia da razão e a inope-rância das virtudes provocaram abulia e inatividade. Pro-vou dor em toda a sua pessoa, dor cáustica que queimava otoque do Nada, aliviando-o.

A Mente examinou-se; possuía a razão única, a fanta-sia ilimitada, a potência inesgotável, vontade determinante,sabedoria de tudo que pode ser e habilidade para qualquerempreendimento.

Tudo era nela, nada fora dela.

3

A Mente começou a estudar um, dois, muitos te-mas criativos. Com a evolução das idéias, cada

projeto tornava-se complexo: os nexos, os detalhes, asminúcias multiplicavam-se, pois a razão pedia harmonia elógica, sensos vivazes na consciência da Mente.

Depois, nela se manifestou a dúvida da escolha. Expe-rimentou fortemente a necessidade da comunicação dialo-gada com alguém além de sua intimidade.

O pensamento penetrou profundamente, como agu-lha na carne, e alcançou o âmago da pessoa. Na fantasia,

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apareceu um ponto que se aproximou sob o impulso deum sentimento até então ignorado. Quando próximo, ad-quiriu luminosidade palpitante. Nasceu o Conceito:

— Eu sou tu, tu és eu. Pessoas distintas, detentorasdas mesmas virtudes, embora variadamente combinadas,mas com um só intento.

A Mente encheu-se de entusiasmo, animou-se de pro-pósito. A vontade agiu: célula única, dilatou-se, a madeixadas virtudes desdobrou-se, o protoplasma espiritual pre-meu contra a membrana da individualidade, adensando-seaos pólos, provocando senos cada vez mais salientes até acisão: duas pessoas distintas, com a mesma dignidade, asmesmas virtudes em proporções diferentes, com vonta-des independentes, dirigidas ao mesmo escopo. A solidãoangustiosa no Nada e na Eternidade era vencida, substituí-da pelo sentimento de companhia próxima. A Mente, apartir de então, tem perto de si o Pari. Considerou-olongamente e comprazeu-se.

— O Nada nos assedia, parecemos perdidos na suaimensidão. É inadmissível. Faça a luz!

— O que você entende por luz?— Uma coisa qualquer que nos distingua do Nada.Então, o Pari avivou as virtudes das duas pessoas, tan-

to que o fulgor iluminou o ambiente. Duas luzes começa-ram a brilhar na imensidão, difundindo graça e clareza.Agora, onde não chegava a luz, o Nada se revelava tal qualera: trevas e vacuidade. Entre os dois nasceu um senso derecíproca satisfação.

Apesar de afastado pela luz, o Nada permanece imu-tável, não reage.

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Assim nasceu o conceito da pré-ciência: do exis-tir e do não-existir, ou seja, de valores existen-

tes e de nenhum valor.— Ele, embora nulo e distante, causa efeitos.Seguiu-se o silêncio da reflexão.— Conferimo-lhes características assim potentes, pois

somente algo perene poderá perturbá-lo.— O Nada é infinito, então eterno, e nunca será con-

quistado, mas se nós criássemos uma existência em pereneexpansão, Ele se transformaria em uma abstração junta-mente com os atributos que lhe concedemos.

— Precisamos de algo que o povoe. — Criaremos algo.A reflexão irradiou-se em todos os sentidos. Enfim a

Mente manifestou-se!Penso que seja bom criar seres semelhantes a nós, que

migrem em todas as direções, manifestem a nossa presen-ça e a nossa vontade.

Durante a ponderação, a Mente provou, no íntimo dapessoa, um sentimento anônimo, que por gravidade e in-sistência era semelhante ao da solidão. Muitos e muitoseventos depois, quando existir a realidade e nela o homem,este sentimento será gratificado aos artistas e neles se ma-nifestará como febre criativa.

Do sentimento, fez partícipe o Pari, o qual obser-vou:

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Somos duas pessoas porque a solidão escurece o espí-rito. O intelecto nos induz a criar conceitos; somos dinâ-micos, sociais, amamos o diálogo, gostamos do ato perfei-to, que afugenta a monotonia insuportável. É o sentimentoque nos impele à ação. Nada nos aborrece tanto quanto asolidão.

A Mente seguia o Pari; a sensibilidade aprovava.— Ele deve ser pessoa de muitas virtudes, de raciocí-

nio sutil, prova e troca sentimentos para corresponderconosco, livre pensador, valendo-se dos conceitos estabe-lecidos. Não poderá criar.

— ... Nem se levantar contra nós.— Eis definido o Minorita.— Quantos? Alguns, muitos?— Uma infinidade.

5

Da Mente destacaram-se pontos luminosos emtão grande quantidade que formaram um invó-

lucro esférico em volta das pessoas. Eram pontos de exis-tência luminosa que penetravam o Nada. Cada um possuíadireção e movimentos próprios, mas o invólucro tinha umúnico movimento expansivo. Do núcleo saíam rápidas e pre-cisas faíscas de pensamentos, da periferia respondiam outras,fracas e tímidas. Mas, rapidamente, a troca, num crescendo

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regular, foi tão intensa que estabeleceu uma nova luminosi-dade na luz. Algumas faixas do núcleo ultrapassaram o invó-lucro, penetraram as trevas e perderam-se no infinito.

Das duas pessoas irradiou-se satisfação.— Criamos uma vivaz companhia com a qual iniciamos

uma troca de novos sensos, que nos alegram e entretém.— Não é somente este o escopo; queremos estabele-

cer a existência no Nada.O invólucro esférico explodiu, como fogos de artifí-

cio, projetou pontos luminosos em todas as direções e umagrande luz.

Afastando-se, a luz esmoreceu, os cerrados grupos depontos luminosos rarearam, empalideceram como lanternacaindo no abismo. O Nada tinha vencido a primeira prova.

Como cientista à frente do malogro da primeira ex-periência, as pessoas silenciaram.

Enfim, a Mente ordenou:— Chama os Minoritas.Eles voltaram...— Não podemos lançar os Minoritas em todas as di-

reções. Embora estabeleçam conosco um relacionamentoideal, eles, diminuídos pela solidão, sem criatividade, per-dem-se na vastidão obscura. Não podemos criar continua-mente e somente Minoritas!

— Devemos repensar e criar!— O que podemos opor ao Nada infinito?A Mente dirigiu a ele a pertinaz atenção. O adversário

formava cortinas tufadas de trevas onde ainda brilhavamperdidos Minoritas retardatários: restos de um exército emretirada.

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— O Nada é um vazio infinito; o transformaremosem vazio definido, cabendo dentro da energia que emana-mos continuamente: será o espaço, e para contê-lo criare-mos algo: o seu nome será matéria... A matéria possuiránúmero infinito de aspectos e muitas condições, produzi-remos luz para se destacar, e se multiplicará sem fim, por-que somos incansáveis.

6

O Pari anotava na sua memória.

Como se fosse água viva, que jorra da rocha partida,um fluxo de energia luminosa saiu da Mente e, com grandese próximos espirais, envolviam as pessoas e os Minoritas,novamente reunidos em invólucro esférico. O fluxo fluiumais copioso, afastou-se da origem, tornou-se incandescen-te, como magma eruptivo, embora parecesse uma graciosavitória régia que ondeia sobre as águas do pântano. Então foipenetrando até o centro por um núcleo ideal que começoua vibrar intensamente, adensando os espirais. Quando as vi-brações chegaram ao acme, mudou gradualmente a nature-za da luz: da delicada que afaga o espírito, à cromática queviolenta a razão. Seguiram-se momentos de tremor do fetoda realidade, depois o que se tinha transformado em uma

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nuvem, explodiu no Nada. Como um grande crisântemo,cujas pétalas se alongam penetrando as trevas em todos ossentidos. Com a explosão, rompeu o primeiro e perpétuoboato. Foi neste momento que a Mente solevou-se do tra-balho, fixou a atenção num imaginário círculo que roda, dis-tinguiu um ponto da circunferência e o fez saliente.

— É criada a matéria, começa o princípio, inicia-se ofluir do tempo.-

Nem toda a energia adensada explodiu, e a outra setornou neblina, ambas começaram a vagar no nada.

— É o caos!— A matéria não tem ainda as leis que lhe regulam a

existência.— Então imprime-as nela imediatamente. Nós não po-

demos dar perpétua atenção ao caos. — E se manifestou aânsia criativa.

— Deste momento e para sempre, vige entre a maté-ria a união coesiva, a atração variável, o dinamismo de pe-quenos e grandes corpos, a fim de que se formem grupos esistemas; a expansão seja gradual e contínua, levando con-sigo os transformadores de tudo. A luz é vanguarda da nos-sa presença.

O Pari liberou uma onda volitiva, que se difundiu peloinfinito, assim como a alta maré oceânica alcança a remotapraia do continente.

A Mente diz serena:— Provamos grande satisfação por começar a obra,

maior ainda, se considerarmos que os muitos conceitos nelaprofusos nos permitirão gerar, sem esforço, muitas com-binações ideais, e com elas, pensamentos complexos.

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Enquanto isto, o espaço grávido de matéria se expan-dia velozmente: aqui e acolá explodiam, como pipocas napanela preta, sistemas estelares e cometas repentinos dei-xavam traços como golpes de giz sobre o quadro negro,imanes galáxias viravam como girândolas na noite tropical.O que foi o Nada inútil agora mostrava-se um desmedidocanteiro de obra repleto de materiais, som e luzes agitadospelo dinamismo.

Os Minoritas observavam estupefatos o desenvolvi-mento da criação. Depois de saírem do estupor, começa-ram diálogos e apresentaram observações, cujos sensosenchiam o âmbito.

Também disto o Criador se comprazia, porque era si-nal de existência em torno de si.

Pouco a pouco os pensamentos dele se voltavam so-bre um só argumento: a emissão perene de energia. A in-teligência deles não conseguia propor uma explicação.

Splendor, que entre os Minoritas tinha recebido maiornúmero de virtudes, e em grau elevado, aplicou a inteli-gência à imaginação, de modo que lhe nasceu a intuição deentender o que não é exposto: a Mente ama a liberdade. Asleis, as regras, o destino imanente são determinaçõesirrevogáveis, porque a liberam da vigilância contínua, as obri-gações criativas jamais a empenharão totalmente. Por isto, aMente deve ter estabelecido que a energia emitida espon-taneamente seja aproveitada na expansão da obra criativa.

Neste momento, a Mente disse ao Pari:— O trabalho gerou, em torno de nós, o turbamento

da serenidade.Cochilamos a nossa atenção para uma merecida pausa.

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Sobre a criação amanheceu a jornada perpétua. O tem-po flui, o ponto saliente passa e repassa pela chegada conti-nuamente.

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Depois da grande explosão, os desmesurados sis-temas começaram a migrar, tomando direções

divergentes entre si.As galáxias levaram consigo o espaço que foi o Nada, as

miríades de estrelas, verdadeiras fornalhas de elementosquímicos, o pó e os meteoritos que estão, como carvão ematéria indistinta, perto das bocas dos altos fornos estelares,as nebulosas, verdadeiras maternidades, nas quais nasceramas estrelas que substituirão as decadentes próximas ao co-lapso. Separadamente, na negritude absoluta, a voragemengole os destroços vagantes dos mundos até a luz, ondevomitará matéria regenerada, quando a capacidade chegarao máximo. Pois na criação é lei: nada se aniquila, mas tudose transforma tantas vezes quanto necessário. Estes são oscomboios concebidos pela Mente para transportar a exis-tência no Nada a uma velocidade vertiginosa. É um simplesprojeto logístico autônomo, planificado pelo Pari.

— Podia ser somente obra de uma dezena de estrelas,de uma centena de satélites, recheados de pó cósmico...Eis explicada a contínua efusão de energia, a magnitude dosespaços, os bilhões de bilhões de unidades de matéria. Será

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o perpétuo começo da sucessiva obra... um trabalho semfim... é o triunfo da megalomania. — disse Splendor.

— Não é — o repreendeu Percept, um Minorita do-tado, mais do que os seus semelhantes, da virtude da per-cepção. — A criação é a necessária manifestação do intelec-to. A Mente, se não cria, não existe... Quem saberia dela?

— Como podes saber estas coisas, se ninguém as dizesa ti?

— A tua atenção tem que acompanhar a Mente, quenada esconde a quem quer saber. Mas se tu não podes, de-duze-as da natureza das suas obras, do escopo.

— Fábulas! A criação poderia ser definida e estática,assim o Criador gozaria o imobilismo reflexivo. Ao contrá-rio, imprimiu-lhe o dinamismo, e estabeleceu até um“Divenire”. Ele é irrequieto. Para nós a existência seria fá-cil e satisfatória, mas ao contrário, ela será também umcontínuo trabalho desassossegado.

Percept rebateu:— Assim seguramente nós não existiríamos, não terí-

amos o privilégio da consciência inteligente na singularida-de: seríamos nada no Nada.

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Splendor ficou impressionado. A idéia de emular aMente, ser também o princípio de algo, o solevou.

Emocionado se apresentou ao Criador.

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— Desejo participar da obra criativa! Confia-me astuas concepções e realizarei fielmente como o faz o Pari.

Seguiu-se um silêncio de reflexão.— Agrada-me a tua disposição, surpreende-me o teu

propósito. O procedimento estabelecido é irrevogável, oteu desejo o viola.

A interdição bloqueia os espíritos.— Tu não podes criar conceitos, mas somente gerar

idéias e elaborar pensamentos; tu não possuis energia rea-lizadora, que vem do intelecto, durante o trabalho criati-vo; tu não tens a inteligência poliédrica e harmoniosa paracorporificar a realidade em detalhes; tu não tens originali-dade, só imaginações. O Pari sabe, porque somos de am-bos... Agora vá, segue o “Divenire”; pede explicações queem ti suscitarão sentimentos e estímulos.

A interdição dissolveu-se, entre os Minoritas recome-çou a troca de pensamentos.

Splendor apequenou-se, no silêncio se apagou. Quan-do se deteve na mais absoluta solidão, procurou organizaros pensamentos.

— Afinal o que é criar? É formular um conceito, realizá-lo em todos os seus detalhes... Tenho virtude para isso.

Tentou repetidamente, e constatou que a mente dascriaturas empregava somente produtos intelectuais exis-tentes. O pensar consiste na mudança e combinação deles.

O ambiente mental é cheio desses produtos. Existesomente o que foi criado. Então o “Divenire” se realiza aose induzir a mente a usar alguns dos tais produtos a seutalento, porém, condicionado à consciência. Com tais prin-cípios, pode prever-se o destino.

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Depois da constatação, Splendor readquiriu a lumi-nosidade.

— Se eu não posso criar, eu posso mudar, até melho-rar o que existe. Se alguém me condenar, seguirei para oexílio nos limites da realidade ou além. — Mas a idéia dasolidão corrigiu-lhe o pensamento. — ...Mas com um sé-quito de súditos.

A Mente e o Pari examinaram os sensos manifestadospor Splendor.

— É inusitado o procedimento de Splendor.— A inteligência e a liberdade de pensamento pros-

pectaram-lhe uma nova situação.— No dizer, manifestou-se a audácia da ambição. Se-

ria melhor induzi-lo à humildade.— Nós amamos as criaturas, acima de tudo as racio-

nais, pois lhes demos singularidade personificada, liberda-de de pensamento e de ação, sensibilidade psíquica; um atocontrário feriria Splendor.

— Amor? Qual o significado originário?— Amar é reconhecimento, entretenimento e troca

gratificante de sublimes sentimentos, estímulo a realizar.— Prevemos: Splendor nos contrariará, fomentando

a subversão de muitos como ele.— Permaneceremos serenos. Agirá a lei universal

estabelecida: personalidade ou força que adquirem predo-mínio, levantam contra si outra de igual valor.

— Existe possibilidade de caos apocalíptico após a re-volta.

— Continuaremos serenos. Somos nós, e somentenós, os construtores do destino. Temos potência e inteli-

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gência infinita, superior àquela que concedemos aos Mino-ritas. Nunca chegaremos à insânia de um apocalipse.

— Então será uma luta sem fim!— Preferes permanecer em uma sonolência estática?

Introduzimos nos espíritos o sentido absoluto da eqüidadeque reaparece após o turbilhão das paixões. A contrição li-bera a razão. Assim o rebelde receberá o perdão do Criador.

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Antes e depois deste evento, a Mente, que secompraz de ser chamada “Princípio”, afagava no

seu íntimo, como a mãe o faz com a criança no seio, umsentimento que se acresceria sempre mais. Este era indefi-nido, possuía o impulso da animação, o desejo do inespera-do, e acariciava o espírito. Outra vez a insatisfação moveu oPrincípio:

— A criação se expande em todas as direções, adquiremaior luminosidade, a transformação cósmica procede. Émotivo de satisfação; mas além dos efeitos causados pelasleis naturais, sempre previsíveis, percebemos a ausência dealgo que a anime...

— De que mais sou o Princípio? O Pari propôs:— Na natureza podemos imprimir uma infinidade de

caráteres variáveis para causar o imprevisto.

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— Falta muito mais: o movimento, a difusão, o aspec-to, a distinção. Falta a vida.

— Qual é o conceito da vida?— A vida é a transferência da nossa existência à maté-

ria inanimada, que assume aspectos, funções e singularida-des perenes, mas é caduca por que não é eterna, se renovapara ser perpétua.

No silêncio seguinte, a Mente considerou o conceitocomo o pintor considera as últimas pinceladas sobre a tela.

— ... E entreterá a nossa atenção, excitando a nossafantasia.

— Como procederemos?— Espalha aqui e acolá os impulsos de nossa existên-

cia, assim que do único brote as miríades, do ínfimo o gigan-tesco, do simples o complexo, do exemplar a variedade.

O Pari imprimiu firmemente o conceito na inteligên-cia; assim sendo, a vontade, ao se manifestar, infunde nacriatura imaginada as características desejadas.

O realizador adentrou-se entre os corpos cósmicosvelozes e em convulsão. Distinguindo um, sereno e agra-dável, soprou-lhe o espírito de vida, ordenando:

— Vá e estabelece-te naquele sítio, toma forma e mul-tiplica-te.

Pari disse à Mente:— A vida é lançada, começará a gerar em um lugar

ameno, não tão quente como o coração de uma estrela, enem frio, como é fora da realidade; aí existem leis naturaisclementes. A vida será estimulada pela nossa atenção, a di-fusão, pela nossa graça.

Iniciava-se o segundo princípio.

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À grande distância, a realidade incomensurávelparece um aquário esférico e transparente, no

qual é suspenso como plâncton, grãos de matéria lumino-sa, que se movem de maneira imperceptível. Segura a esfe-ra um cinturão de galáxias, que impede a dispersão, masfavorece a expansão perpétua.

O Nada é agora absorvido progressivamente pelo vo-lume criativo, torna-se espaço mensurável repleto de pon-tos materiais.

Das muitas galáxias parecidas com girândolas, uma tembraços na forma de foice; na extremidade de um braçoexiste uma estrelinha; em volta dela, fazem roda sobre ór-bitas elípticas satélites que giram também sobre os pró-prios eixos como piões.

Sobre um destes satélites, chegou o espírito da vida. Ovetor tangenciou a esfera deixando a carga e ricocheteou. Acasualidade científica o encaminhou a uma nova direção.

A Terra, naquela era geológica, não era verdadeiramen-te um lugar ameno, dominado de leis físicas clementes; aocontrário.

As suas entranhas expeliam magmas fluidos, lapíli ar-dentes, cinzas quentíssimas; a atmosfera era nebulosa,saturada de gases letais; a superfície rochosa fendia-se emtodas as partes pelos tremores sísmicos, e o pó infiltrava-se em qualquer rachadura.

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Neste ambiente, o espírito de vida teria gerado seresestranhos, bem diferentes do gosto e da formosura ínsitosna Mente.

Há muito tempo tinham-se formado os mares, vastos,profundos, mornos. Nas profundezas não chegavam as ra-diações mortíferas, mas neste lugar dominavam a tranqüi-lidade e o silêncio absolutos. As diferentes temperaturasprovocavam a subida e a descida das águas que levavam con-sigo, na forma diluída, uma infinidade de partículas de ele-mentos. Próxima à superfície, a luz excitava-as de uma for-ma estranha, favorecendo a união íntima, simples,formando um aglomerado de tantas simplicidades.

O espírito de vida desceu no mar, foi o mar que lhedeu um corpo, foi o mar quem lhe ensinou o movimento, aexpansão, enfim, foi o mar que, no momento oportuno,empurrou-o junto com seu corpo sobre a praia úmida earenosa.

Mas, o que é este espírito de vida?

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É um núcleo de inteligência ativa, codificado emconceitos adaptáveis ao ambiente, munido de uma

grande quantidade de impulsos de desenvolvimento ma-terial. Um novelo, no qual o fio, quando estendido, revelatodas as suas características.

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No princípio, o espírito de vida assimilou elementosmateriais para compor um programa genético, depoiscindiu-se, multiplicando a individualidade e os aspectos. Ofenômeno é um simples ato de engenharia genética queprofetas nunca poderiam imaginar, apesar da inspiraçãosuperior, pois ignoravam um sem número de noções.

Então: glória nas alturas aos pensadores e cientistasque nos revelaram os conceitos da Mente, a tecnologiamaravilhosa do Pari.

Assim nasceram as primeiras espécies.A Mente tornava-se livre para conceber novos argu-

mentos...Não surpreende aos pensadores sagazes saber que a

Mente, livre de empenhos especulativos, persegue a for-mulação de conceitos em harmonia com as leis naturais paratransferir a vida em outros sítios, embora não existam se-res que superem os milhões de anos a serem percorridosna velocidade da luz. Isto sem violar o livre arbítrio huma-no, evitando a ingerência nos eventos terrenos.

Atualmente, somente o pensamento humano alcançainstantaneamente corpos astrais, afastados da Terra milhõesde anos-luz, mas ainda ele não sabe como, e com qual ma-téria recompor o seu corpo.

A terra começou a verdejar sob o sol mitigado pelaatmosfera e por uma benévola garoa. Os boatos das erup-ções, o estalido das lavas, juntos ao ondear e à queda daságuas, enchiam a paisagem. Às vezes, o vento e a chuva ge-ravam sons entre ervas e arbustos. Porém, quando tudoparava, a existência caía em uma estaticidade áfona.

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A Mente, atenta e crítica, notou, de súbito, a falta dealgo.

— A vida é movimento imprevisto, sons contrastantese harmoniosos, “Divenire” surpreendente. Mas este mun-do está longe do nosso desejo. Parece uma natureza morta.

— Nós a criamos enraizada na terra da qual suga ali-mento; sobre a terra se eleva e se alastra, nada mais.

— Faltam seres que se agitem na água, que andem so-bre a terra, que se liberem no ar, pequenos, grandes, colori-dos, que tenham muitas formas. Nós amamos a variedade!

O Pari procurou o espírito da vida nas águas, encon-trando-o, excitou-lhe ainda mais a virtude da mutação.Apareceu um ser independente, andante, com novas ca-racterísticas.

Mais uma vez, foi o mar quem favoreceu a vida: com asondas, imprimiu o respiro profundo e compassado à novacriatura. Foi o mar, com as correntezas a formar-lhe o siste-ma sangüíneo, com os vagalhões, a natureza nervosa. Foi omar a empurrar sobre a terra o anfíbio, que mais tarde pe-netrou a floresta. A terra foi materna, facilitou-lhe a repro-dução, o ambiente solicitou-lhe, súbito, a adaptabilidade.

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Splendor seguia com cuidado a difusão da vida.Causavam-lhe maravilhas os vegetais, mais ainda

os animais.

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— Como pode um ponto vivo absorver matéria,incorporá-la, crescer, mudar de aspecto — embora per-manecendo o mesmo –, reproduzir a si mesmo e, ao com-pletar o ciclo vital, dissolver-se?

Então convenceu-se de que a vida difere da existên-cia, é o produto de muitos conceitos, que sob o impériodas leis materiais dão origem a muitos complementos jun-tados para formar o exemplar, ou seja, o protótipo. Avida não surgiu do acaso, foi uma criatura longamenteidealizada e pensada. Se assim não fosse, seria um ato demagia ilusionista, arte obscura que o Criador desdenha,porque é pensador profundo, embora saiba usá-la. Amagia e a casualidade são argumentos didáticos de sábiosignorantes.

A observação revelou também a Splendor uma parti-cularidade maravilhosa: a chave da perpetuação. No reces-so mais íntimo da criatura existe um programa aparente-mente inativo, que quando excitado e condicionado dá umavontade produtiva, dando origem também a um novo eigual indivíduo da espécie.

Concluiu, ainda, que uma ninharia externa introduzidacasual ou voluntariamente no programa, alteraria a ordem,originando uma criatura diferente. A descoberta o encan-tou, e foi-lhe apresentada a possibilidade, na sua imagina-ção excitada, de combinar um indivíduo de singularidadesconfusas, ou seja, o ajuntamento de características contras-tantes em um ambiente adverso para formar um indivíduoanormal.

O espírito se dilatou pela incontida satisfação.

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— Não crio conceitos, não emano energia, mas tenhointeligência para elaborar uma originalidade. Posso trans-formar, pois sou um transformador.

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A Mente costumava descer da sua realidade emum vale para gozar a aura do entardecer na vaga

sombra vespertina e observar a obra em desenvolvimen-to. À frente de uns seres gigantescos e plantas esquisitas,surpreendeu-se e disse ao Pari:

— Não são verdadeiramente estas as criaturas pensa-das e desejadas.

— Alguém nos quer imitar, mas é desajeitado: violouo código genético. O resultado é um mostrengo do ser ori-ginal.

Realmente perambulava pela pradaria um sáurio comrabo e pescoço compridos que partiam de um corpo volu-moso e disforme, sustentado por duas enormes patas pos-teriores, contrastando com as duas anteriores atrofiadaspela inutilidade. Desfolhava com dificuldade os brotos doscumes das árvores. Por ter corpo pesado e tamanho desco-munal, era lento e temia o chão mole dos pântanos. Viviauma lenta agonia.

— Nessa criatura foram alteradas as proporções cor-porais, desprezando o bom senso existencial. Não se pode

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criar disparate para ser original, mas seguir o bom sensoem harmonia com o ambiente. A natureza extinguirá estae outras monstruosidades.

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Mas a Mente não tinha sossego; era dominadapela ânsia criativa e não conseguia tracejar o

objeto de sua vontade.— Esta realidade construída com um sem número de

conceitos, idéias, pensamentos, e uma enorme geração deenergia, embora se dilate e conquiste o Nada, parece-meinerte, desalmada e até inútil.

— São insatisfatórios os aspectos variados da matéria,os movimentos limitados dos vegetais, o comportamentoobtuso dos animais, comandados pelos astros e pelo am-biente para manifestar o instinto deles. Não corresponde ànossa, outra inteligência; ao nosso perceber, o ato da per-cepção alheia. Assim, não temos a troca de sensos, até osmenores, para animar as nossas pessoas, para alegrar-nosou entristecer-nos, e para mover-nos à ação. Ninguém sabede nós ou nos envia sentimentos vivos.

— Os Minoritas sabem de nós, andam pela realidadea testemunhar a nossa existência.

— Porque conhecem as nossas pessoas e virtudes. Mas,se assim não fosse, como eles se comportariam? Eis as dúvi-

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das da percepção: não existe uma criatura discente e volitivaem outra realidade que nos perceba, embora não tenha ple-na certeza com os próprios meios. Então a incerteza susci-taria nele, criatura duvidosa, monólogos apaixonados, fer-vorosas indagações, atos honrosos de humildade.

— Este já é um conceito.— Pode ser.— O sentimento nos induz a fantasiar um novo ser

dentro da matéria, espírito sensível à espiritualidade, comrazão equilibrada de percepção reveladora, livre, conscien-te, mas cego de nós.

— Quais outras virtudes receberá?— O inestinguível desejo de conhecer, a pluralidade

da pessoa, na sua singularidade; assim poderá disputar so-bre qualquer argumento, e disputando, raciocinar. Seráigual a nós, e pelo desejo de conhecer tornar-se-á senhorda realidade.

— Assim será.

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Na floresta úmida e sombreada, viviam gruposde quadrúmanos. Entre os integrantes, distin-

guia-se, pelo porte, uma jovem fêmea íntegra. Ela tinha ohábito de descer, todas as manhãs, dos ramos, adentrar-seentre as ervas da savana e subir sobre um baobá.

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A planta anosa, de mole colossal, dominava a planu-ra, agitava a fronde ao vento matutino como cabeleiradesordenada e, sobre as raízes retorcidas e salientes, pro-jetava uma sombra recortada. A fêmea assentava-se na jun-ção do tronco com o ramo. Parecia gostar da solidão e docontato com a árvore gigantesca. Do seu lugar, observavaao redor o horizonte. Durante a observação, os músculosdas sobrancelhas baixavam e levantavam, conforme a in-cidência dos raios solares, as pálpebras moviam-se delica-damente enquanto as pupilas se dilatavam, a mão acarici-ava a cortiça. Nada acontecia de excepcional durante aobservação panorâmica, que durava de manhã até o últi-mo sol, nunca interrompida pela fome ou sede. Aoentardecer, a fêmea reunia-se ao grupo.

Ela era atentamente observada.— Ela percebe algo, levanta o velo sobre a cerviz, abre

a boca para inspirar também, mas não distingue.— Nela, se manifesta uma sensibilidade natural e re-

finada, gravada indelevelmente na estrutura genética. A nos-sa atenção doa um senso indistinto ao ambiente, que elapercebe.

Chegaram os dias de calor e do impulso de copular.Um macho seguia a fêmea com um olhar dominador. Cer-to dia, após seguimento furtivo, alcançou-a sobre um ramode baobá. Entre gritos e movimentos agitados, a dominou.

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Seguiram-se dias estranhos: o ar se fez pesado, aluz opaca dominou o silêncio da espera; os

quadrúmanos temiam e se escondiam entre a folhagem maisespessa.

Uma noite liberou-se a violência dos elementos: ulu-lou o vento como mastim, arrancou folhas e ramos das ár-vores maiores, estouraram os raios, incendiando a secura.Enfim, a chuva chicoteou a floresta para apagar e molhar.

A fêmea, tremendo, espiou o céu, empurrou um ramoe folhas, mas logo cobriu os olhos com as mãos. Entre asconjunções dos dedos, viu o fulgor do relâmpago fixo so-bre si, provou o calor, que das extremidades dos pêlos che-gava à pele, penetrava os poros, as carnes, concentrando-se no abdômen, para depois sentir novamente o toque daatmosfera úmida e quente.

Naquele mesmo dia, ela foi fecundada pelo machodominante.

A criatura concebida em tais circunstâncias nasceu nasalturas, na cavidade de um tronco, à sombra da folhagem,numa manhã de sol, durante uma doce aragem.

O instinto foi mestre primoroso, mas a mãe o aban-donou durante o puerpério, morreu logo.

O neonato foi recebido no seio de uma velha fêmea,ainda lactante .

Cresceu rapidamente, revelou-se pequeno temporão,acima de tudo no uso dos membros superiores e dos de-

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dos; manifestou gestos insólitos até entre adultos. Era in-sistente na observação do mundo ao seu redor. Mais adi-ante na idade, manifestou momentos de imobilidade, naqual só as pupilas se moviam, seguiam o fluir das águas doregato, o vagar das altas nuvens nos claros da floresta, aagitação dos companheiros do bando. Havia luz, mas lheera difícil ver o sol por inteiro. Às vezes, erguia a corcova,o pescoço, as pernas e emitia sons modulados, os compa-nheiros se calavam, se sentiam dominados, o olhavam debaixo, o temporão retribuía lá de cima, contraindo os lá-bios em forma de arco. O instinto comandava as funçõesfisiológicas: comia quando o estômago se contraía, evacu-ava ao primeiro impulso, copulava quando o cheiro e osangue o estimulavam, eriçava os sentidos ao primeiro si-nal insólito.

Um dia teve um movimento contrário ao instinto: abs-teve-se de alimentos, embora frutas e brotos lhe estives-sem próximos. A languidez suscitou-lhe a imaginação. Re-viu à sua frente, muito do que tinha visto no tempo passado.E mais: conseguiu com um instintivo esforço mental ima-ginar: a nuvem fluía como água no regato, os ramos se agi-tavam como os companheiros durante a rixa, o sol zigueza-gueava tremendo como o relâmpago.

Provou um contentamento indefinido: havia vencidoo imobilismo e a preguiça mental.

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Ele, como a mãe, tinha o hábito de descer sobre aplanície e aproximar-se do baobá. À curta dis-

tância, parava para observá-lo com muito interesse. Atrásdas pupilas, agitavam-se imagens e sensos familiares, de umasimilaridade atávica.

Assim teve início no primogênito aquele fenômeno,não raro, de reviver experiências dos consangüíneos que jáse foram, na verdade exercícios de uma das tantas virtudesrecebidas. É provável que, com o avançar da evolução, ohomem tome consciência de outras virtudes até hojeinsuspeitadas.

Enfim subiu ao primeiro ramo, o mais forte, e o ex-plorou por todo o seu comprimento. Repetiu a explora-ção muitas vezes.

No dia seguinte subiu aos ramos superiores até al-cançar a cimeira. Aí, afugentou um urubu que o irritavacom sua negra presença. Olhou longe como costumavafazer a mãe. Distinguiu a linha ondulada do horizonte.Acima dela permanecia uma cor tênue de flores, que sedissolvia na luz, embaixo destacava-se uma zona de ervasaltas, flexíveis, manchada aqui e acolá de terra descober-ta. Gozava o calor insipiente do dia, mas deliciava-se como frescor da floresta de origem. Depois, levantou a cabe-ça e viu uma nuvem, atrás dela radiava o sol. Olhou-o pormuito tempo.

— Ele começa a nos perceber.

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— O espírito dele se manifesta e prevalece sobre abestialidade.

— Agora podemos chamá-lo de Homo.

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Alguns pensadores, obstinados em explicar o sur-gimento e a existência do homem na criação,

admitem que a alma, soprada uma só vez na besta, é vincu-lada perpetuamente ao gênero humano e se origina na pes-soa no ato da concepção. A alma tem virtudes primordiaisde absorver e reter sensações do seu ambiente, com os quaisforma uma coletânea, que a experiência enriquece e trans-forma em espírito ativo, sensível, culto e realizador. Mas énecessária a memória, húmus prodigioso que ajuda na ger-minação das idéias e pensamentos semeados pela mente.

Agora, Homo mirava com interesse o ambiente e guar-dava os detalhes. A observação insistente o obrigava a lon-gas paradas que lhe moderavam os impulsos naturais, e lhepermitiam apreciar casos insuspeitos e surpreendentes.Uma raiz que aflora distante da árvore, a passagem que seforma, afastando ramos de plantas próximas.

Estes são alguns dos efeitos causados pela atividademental; com a vivência, multiplicaram-se, e foram motivode imitação pela prole futura.

Então, para pensar algo era necessária a imobilidade ea observação, mas às vezes tal postura não produzia imedia-

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tamente o resultado. Homo permanecia sentado, em silên-cio, com os olhos arregalados, como um futuro asceta.

Quando dispunha a dar-se um descanso para afrouxaras contrações nervosas provocadas pela imobilidade cor-poral, punha as mãos sobre a região lombar e se estendiapor toda a estatura, fechando os olhos. A energia despendidaprovocava-lhe uma correspondência entre o centro ner-voso e as extremidades sensíveis. E se o centro nervosofosse presidido atentamente pela mente, estabelecia-se umatransmissão do espírito aos sentidos, dando aparências per-ceptíveis ao primitivo sobrenatural.

O sobrenatural do primeiro homem era pobre, por-que a imaginação humana tinha poucas imagens, sensaçõessem eventos importantes, e não dispunha de materiaismnemônicos atávicos, com os quais a inspiração, por inter-médio da mente, compõe o seu mundo.

Após uma certa idade, Homo revelou um comporta-mento surpreendente: provava uma atração irresistível portodas as fêmeas próximas. O uso da imaginação causava-lheexcitação sangüínea e uma efervescência efusiva. Não es-perava o período natural, o momento e o local apropria-dos, mas impunha a sua masculinidade ao seu querer. Tinhaelaborado até um ritual de sedução: chamava para si a aten-ção da fêmea com sons e movimentos, a interessava comcontrações dos lábios que só ele sabia fazer, paralisava-a comolhar incisivo e, quando a tinha perto, acariciava-lhe o ros-to, as partes glabras do corpo. Quando o tato comunicava-lhe um estremecimento da companheira, a dominava. Elase sujeitava porque o ato era prazeroso e prolongado, em-bora fosse extemporâneo.

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Os machos invejosos, alguns dos quais já revelavamdegeneração pela longa abstinência, o hostilizavam peloorgulhoso domínio, mas Homo punha-os a correr, amea-çando-os e golpeando-os com um grosso ramo. Assim, eletinha para si todas as fêmeas; nenhuma gota do preciososêmen gerador de espíritos e intelectos se perdia.

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Homo, após ter afugentado os pretendentes, vol-tava triunfante para suas fêmeas, como o rei

Salomão e suas mil esposas e concubinas, a procriar seresde inteligência superior para dominar espaços vazios e po-vos inferiores.

Naqueles tempos, ainda valia o preceito de amar e pro-lificar; hoje possível somente nos territórios desertos... ounos mundos vazios.

Passados os meses, nasceram os primeiros filhos deHomo. Semelhantes ao pai, revelaram-se logo temporãose sensíveis. Formavam uma família cada vez mais numero-sa, agora separada do bando de origem, pois as mães temi-am as hostilidades dos machos. A família adensava-se emvolta do patriarca, que assumia uma postura de protetor euma expressão ameaçadora contra os estranhos.

Formara-se o primeiro clã de criatura, com espíritogerado de matrizes animalescas.

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— As criaturas de espírito se multiplicam rapidamen-te, porém Homo é o único que nos procura.

— Convém dar tempo ao tempo.— Penso que confiamos a esta criatura uma tarefa di-

ficílima, embora lhe tenhamos dado algo de nossas virtu-des e personalidade. Nada conseguirá sem a nossa assistên-cia.

— Ainda não aconteceram o evento impressionante ea observação surpreendente que induzem as mentes à re-flexão insistente e profunda. Assim tudo acontecerá natu-ralmente no livre arbítrio.

Homo entrou na idade da reflexão aplicada. Desciacom prazer sobre a planície; entre as gramíneas de muitostamanhos, observava o baobá. Lembrou que dos ramos ele-vados, olhara estático o pôr-do-sol. A cena se repetiu in-cessantemente na imaginação, até quando Homo conseguiucompor uma segunda: a subida do sol de uma zona de coralaranjada sobre o horizonte para o turquesa do céu maisacima. Até então, Homo nunca vira uma alvorada, a densavegetação ocultava tal cena.

Uma manhã, ele reuniu as fêmeas e as proles. Comum raminho na mão, impeliu-os através da savana. Passan-do pelo baobá solitário, fitou-o longamente. Parecia umadespedida. O calor moderado estimulava a tropa a avançarsobre a planície desconhecida. Enfim, a canseira e a noiteimpuseram a parada. Uma nuvem única pairou sobre osmigrantes e liberou uma garoa refrescante.

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A luz da manhã mostrou pequenas poças d’água, eentre as ervas, vargens repletas de sementes ver-

des e esféricas. A tropa alimentou-se imediatamente destas,até fartar-se. Homo, durante a mastigação das tenras e do-ces leguminosas e o deglutir da água fresca, julgou o aconte-cimento esquisito. Apoiou a cabeça sobre o ombro esquer-do e aguardou.

Defronte dos seus olhos, subiu o sol imponente, pas-toso como magma incandescente, cujos contornos conti-nham a agitação do núcleo, liberando raios de esplendor.Quando emergiu por inteiro, as ervas e os sons pararampor momentos, depois a vida voltou a fluir. Homo perce-beu o dilatar das meninges pelo prazer de vivenciar umevento novo e sagrado. Tomou coragem, alongou o braçoem direção ao astro e, com a mão, como se sentisse arotundidade, o afagou com carinho.

No reino do espírito, difundiu-se o regozijo.— Nunca nos foi enviado semelhante sentimento com

um simples gesto. É gratificante, porque nos chega de umacriatura que nos percebe, mas nos ignora.

O louvor, como exalação de aroma, vagueou até che-gar ao entendimento de Splendor.

— Como um animal pode merecer louvor e receberum destino seguramente importante?

A sua inteligência caiu nas profundezas obscuras, re-pletas de pressentimentos indistintos.

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— ...A Mente nada esconde, mas somente a razãopura e universal a compreende. Não quero ser seu segui-dor, fanático raivoso, mas entendedor racional... Para issoo meu espírito deve estar sereno, convicto de possuir en-tendimento... Ter fé...

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Homo, favorecido pela benevolência superior, ani-mado pela companhia da grande família, alcan-

çou enfim as verdes colinas vistas de longe. Algumas eramsoberbas, a maioria, doces corcovas, todas manchadas dearbustos viçosos. Nos declives, escorriam águas claras e ta-garelas, entre margens cobertas de ervas aromáticas e fres-cas. O ar era calmo, a sombra prazerosa. Nas alturas, pai-rava a tranqüilidade que acariciava a mente. Às vezes,ouvia-se o zumbido das abelhas, o mugido da vaca que ama-mentava o vitelo no prado.

Aqui, o predador se fez temeroso, não procurou víti-mas. A morte guia o morituro como se fosse um velho ele-fante, o conduz no recesso de sombras e o deita em pazsobre a relva macia para expirar sem dor e lamento. Bemse pode afirmar que esta é a terra onde escorre o leite e omel, jamais o sangue e o fel.

Os influxos do ambiente bucólico foram tão dominan-tes que o clã aquietou-se pela admiração. Recuperado, co-

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meçou a colher os frutos pendentes e a experimentá-los.Homo, atento, saboreou um fruto pequeno, de casca te-naz e polpa enxuta, emitindo um som inusitado que cha-mou a atenção dos familiares; depois outro, carnoso, quena mordida espirrou suco e lançou um som bem diferentedo primeiro. Então todos provaram os mesmos frutos epronunciaram os mesmos sons.

As criaturas começaram a distinguir e a falar.Homo, saciada a fome, começou uma atenta observa-

ção. Encontrando-se sobre uma elevação, mirou além dosvales. Aí surgia uma montanha majestosa: o cimo subia agu-do, contornado de cúmulos coloridos, dos declives des-ciam saraivas de seixos como torrentes petrificadas; sobreos prados inclinados, raros arbustos frondosos pareciamesperar; no sopé, uma lagoa oblonga, que possuía nas mar-gens moitas de bambu, no meio dela, uma ilhota. Parecia oolho de um filho a mirar o céu. No vale profundo, pedras efendas.

A paisagem impressionava muito. Homo percebia umsentimento que não sabia explicar enquanto sugava a polpamole de um fruto e gotas de suco lhe escorriam pelo velo epela pele glabra.

Ficou assim até quando o sol do zênite começou a de-clinar. Então, um bando de pássaros saiu de uma zona obs-cura e voou por algum tempo, festivo e estridente, em di-reção ao astro, depois desapareceu assim como tinhachegado.

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Começou o pôr-do-sol, as sombras alongaram-se,o sol cansado hesitou junto ao cume, depois dei-

tou-se atrás da montanha. Esta iluminou-se ainda mais detintas vermelhas, pareciam chegar de lá vozes alegres.Homo as ouvia com os olhos arregalados, imóvel...

“A montanha é a morada do sol!”No dia seguinte, reuniu os seus e os encaminhou à

montanha. Desceram o vale, caminharam muito. Chega-dos à lagoa, a bordejaram por algum tempo, depois ataca-ram a subida pelo lado oposto, aquele mesmo observadoontem. Homo ficou contente: a caminhada revelou-se fácilentre as sombras e o primeiro frescor da tarde. Com o tem-po, o afogo enxugou a boca dos migrantes. Estes, chama-dos pelo reflexo solar, se dirigiram desordenadamente auma poça d’água. Somente Homo, absorto no propósito,continuou a subida acompanhado do batimento cardíaco,amplificado no pavilhão dos ouvidos. Quando não podemais, parou e agachou-se. Ainda ofegava quando ouviu atrásde si um deslizamento de terra e pedras. Voltou-se e viuum dos seus seguidores; este, quando próximo, parou etambém agachou-se. Homo olhou o cume, seu companheirofez o mesmo. Homo respirou profundamente e foi pron-tamente imitado; o líder contraiu os lábios num sorriso efoi retribuído. A sede, o cansaço e as feridas nos pés não osdesanimaram, os dois intuíram que no alto encontrariamconforto. Quando, das últimas luzes, chegaram a uma es-

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treita esplanada: encontraram uma poça d’água cristalina eum ninho com ovos de pássaros numa sombra de musgofofo. O seguidor sorveu água e ovos; quando satisfeito, co-lheu maços de musgo para mastigar. Homo, por sua vez,permanecia imóvel e perplexo, enfim concluiu:

— O sol é grande, fica distante, livre de ir onde quei-ra, mas sempre me acompanha.

Olhou o companheiro e o imitou. Ambos satisfeitos,arrotaram.

O pôr-do-sol se completava, dele só se via um peque-no segmento do qual se projetavam nítidos raios, mais pa-recendo dedos de fogo. Daí a pouco, a última parte da mãoluminosa desapareceu juntamente com um bando de aves,depois de uma revoada espiral. Homo olhou atentamente,seu rosto ficou rubro, seus olhos reverberaram, as pálpe-bras pararam. O companheiro, que o observava, emitiu umgrito de terror.

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Depois que o horizonte tornou-se obscuro, os doisprocuraram um lugar para descansar. Logo o en-

contraram: uma cova rasa forrada de musgo. O seguidordeitou-se nela, enquanto Homo procurava ainda entendero significado de tudo que havia visto. Não conseguiu, masprovou o prazer de aspirar o ar fresco, o odor das flores

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noturnas, mesclado a aromas de ervas, que dilata as narinase desce até os pulmões, como se fosse um sopro de outroser. Mas no ar, captou um cheiro que não era o de vegetais.Então, virou-se: o companheiro o olhava com insistênciadebaixo das pálpebras caídas, a boca entreaberta, da qualsaía um som débil, parecendo uma chamada. Homo farejourepetidamente, e só então viu no acompanhante uma fêmeapronta. Como se fosse um banhista quase enxuto, que danuca cabeluda lhe desce uma gota d’água que molha as vér-tebras, insinua-se entre os glúteos, e provoca frêmito, assima excitação chegou-lhe ao escroto, sentiu um formigamentoquente. Homo aproximou-se, abriu-lhe os membros, pe-netrou-a com doçura até o desvelo e além, depois começoua rodar as ancas. Era gostoso assim; nunca mais como os com-panheiros da floresta que dominavam a companheira, cain-do sobre as costas dela.

A lua mostrava-se a um quarto do céu, fria, indiferen-te, mas os seus eflúvios estimulavam o prazer.

— Não é mais o impulso animal que comanda o indi-víduo, mas a razão movida pela natureza para auxiliar o des-tino.

— Havendo criaturas com espírito e razão, recebidosde ambos os pais, começam as combinações genéticas.

— Os perdidos durante a subida da montanha tambémsão filhos de Homo: tem espírito, razão e sensibilidade.

— Estes, mudando de aspecto, darão origem à diver-sidade.

Naqueles tempos, ressoavam no ar bramidos ferozes,boatos eruptivos e sísmicos, estouros de ondas sobre os re-

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cifes. A terra era povoada por animais de muitas espécies ecoberta de infinito número de vegetais. A adaptação ao am-biente solicitava mudanças nos organismos dos seres vivos.Difundia-se a variedade tão desejada pela Mente criativa.

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O homem não se manifestara ainda. A sua menteera criança infante, a consciência muda, pois dis-

punha de poucas idéias e situações contrastantes. Aanimalidade hereditária e latente o guiava no sustentamentocotidiano do corpo e na perpetuação da espécie. Com cer-teza, a Mente usou tal expediente a fim de que o primeiroancestral e os seus descendentes não se extinguissem entreas mandíbulas dos predadores ou nas dificuldades naturais.E, de vez em quando, os favorecia na obscuridade da caver-na. Quando solitários, eles afugentavam a impotência como imaginar de uma cena de sobrevivência, lançando mági-cas azagaias, matando, a golpes de tacapes, os mastodontescarnívoros. Oh espeluncas paleolíticas! De quantas cenasde caça, projetadas pela imaginação humana fostes teatro!Hoje, restam somente algumas pinturas rupestres e res-quícios de fuligem de fogos antigos.

Não se pode explicar diversamente como o homempodia enfrentar e vencer um mamute com muitas tonela-das de peso, sobreviver em um ambiente glacial, despido

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de um velo compacto, desprovido de uma proteção adiposa.Nestas condições, a mente tinha dificuldade para construir.A memória é inata, mas latente; somente o exercíciorepetitivo revela a sua grande potencialidade. E, se no exer-cício repetitivo, o improviso introduz uma variante que sejatambém pequena, inicia o raciocínio, começa a girar a rodado progresso. Mas, naquele tempo, a bagagem mnemônicadisponível era mínima, eram dificílimas as imitações esimilitudes. Nestas condições, não se podem atribuir cul-pas e castigos a uma mente que ainda não possui a capacida-de de querer e de compreender. O primeiro movimentoda evolução humana passa a ser o trabalho constante daemotividade virtuosa, a mesma que o Criador sancionou epromulgou no espírito humano depois de constatar quefoi o sentimento natural que moveu a sua inteligência.

Semelhantes aos Quarks, os sentimentos são de múl-tiplos sabores e de intensidade variável. Nascem nosubstrato do espírito, suscitados pelas imagens, situaçõesguardadas na memória, juntamente com as lembranças. Ohomem que lembra, experimenta novamente o sentimen-to, não com a mesma intensidade, mas com o sabor primi-tivo. Talvez até sinta as sensações visual, auditiva, degusta-tiva, olfativa e tátil que acompanharam a manifestação dosentimento. A memória guarda tudo isso no arquivo até amorte, depois se dissolve, pois tudo foi imprimido na ma-téria que se decompõe.

Ao contrário, o espírito se comporta como dono, poisdomina a memória: avoca a si e sublima as lembranças comtodos os seus corolários e as conserva de forma indelévelna sua biblioteca até após a morte, juntamente com os pa-

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piros herdados por via genética dos ancestrais. Os papiros,escritos em idiomas antigos ou ignorados, dizem de even-tos longínquos no tempo, de sentimentos agora inexisten-tes. Entender o todo é difícil. Os papiros atávicos, se exu-mados momentaneamente das profundezas do ser, em umaatmosfera dramática, causam impressões fortes.

Como foi dito, a memória existe até a morte, postnon liquet. Porém: ante liquet, pode provocar situaçõessingulares.

Admitindo uma causa qualquer, seja esta fisiológica,psíquica, material ou ato volitivo, a memória abre o arqui-vo, e dela saem acontecimentos seguidos de sensações. Ar-tistas aproveitam destas aberturas, mas profissionais, cien-tistas, mediante a concentração, se servem dela para aplicaros conhecimentos no trabalho cotidiano.

Quando, porém, o espírito abre a sua biblioteca porum sopro de inspiração superior, se revela o sobrenatural:a ilusão, a visão, a incorporação de traspassados et similis.Tudo construído com elementos mnemônicos da própriaexperiência, e daqueles nebulosos papiros recebidos porvia genética. Se, depois, o conteúdo da biblioteca age so-bre o corpo material, pode-se suspeitar de um caso comsugestão desejada pela insistência da vontade imaginativa.

Caso digno de nota universal é aquele das profecias.Como foi dito, na biblioteca são conservados sentimentos,sensações e imagens, mas não todos os elementos para com-pletar uma profecia clara e completa. Quando faltam — equase sempre faltam — elementos, há uma profecia “apro-ximativa”, “alegórica”, que dá origem a muitas interpreta-ções. O pior é o insuspeitável, acontece quando a imagina-

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ção exuma com os elementos mnemônicos os sentimentosácidos, detestáveis e malignos do profeta, que provavel-mente foi também pecador e pervertido. Não deve sur-preender que as produções proféticas sejam apocalipsescruéis, massacres ignominiosos e epidemias continentais.

Parece que os profetas sofrem de uma mórbida ne-cessidade de prever as desgraças do próximo. Quantos equais profetas anunciaram amor sublime, a união de na-ções, as melhorias do gênero humano, o triunfo da igual-dade entre todas as gentes, o evento glorioso de imprimira pisada humana em solo lunar, a difusão da vida no cosmo?Talvez nunca tenham existido tais argumentos na bibliote-ca do profeta, mas provavelmente obscenidades que se tor-naram sacras no entender dos infalíveis.

Admitir um futuro apocalíptico significaria, para a ra-zão, não intuir a missão do gênero humano de propagar avida nos mundos e, para o Todo Poderoso, o abandono deum projeto inviável.

— Então convém perguntar: Somos todos alterados?Talvez a resposta certa seja: na consciência foi intro-

duzido malignamente o senso de culpa e de derrota paraque o homem permaneça numa realidade imensa, vazia,inútil.

Compete aos cientistas atentos, aos pensadores hones-tos, individualizar o ponto de contato entre os vértices con-trapostos dos triângulos que encerram as áreas dos camposespiritual e material, como e quando há troca de energia, oque há de anômalo que dificulta a compreensão geral. Valeua pena lembrar que a criação está sendo feita com bom sen-so, em harmonia com as leis anteriormente promulgadas.

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A história se repete (os autores são semelhantesentre si).

O par que se destacou, deu origem a uma família, des-ta família, um clã de poucos pais, de muitas proles. Na de-sordem natural da primitiva sociedade era praticada a poli-gamia, como hoje em algumas regiões do globo. O incesto,no Éden, não era considerado culpa tão grave quanto o furtoda fruta de uma árvore proibida.

Assim aconteceu ao velho Lot, bêbado, induzido aoconúbio pelas duas filhas solteiras e necessitadas; a BórgiaAlexandre VI (aquele que nunca dorme sozinho), que libouas primícias da filha Lucrécia. Hoje, em alguns casos, o in-cesto fraterno é legalizado em poucos países nórdicos daEuropa, apesar das proibições da eugenia. Ao contrário, apoliandria, que existe ainda na região do Himalaia, pareceoriginada pela falta de fêmeas; ou porque as mulheres des-prezavam a maternidade para satisfazer seu calor natural,assim, promíscuo, como nos tempos modernos, nas ruasdas cidades.

Provavelmente vigorava nos primitivos clãs o jusprimae noctis, com o escopo de multiplicar proles de che-fes virtuosos, direito este aceito posteriormente por mi-nistros religiosos inescrupulosos e oportunistas. Vicissitu-des da moral “plástica” que se adapta aos novos tempos!

Então, nada de novo sob o sol, porque tudo procedenaturalmente.

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Não foi fácil à Mente induzir o selvagem, sem nuncaimpor, a formar uma pequena sociedade familiar na qualnascem os nobres sentimentos, as grandes aspirações, a tro-ca amorosa de sentimentos, de gestos e pensamentos. As-sim, surgiu a cooperação, útil à ordem necessária, à propa-gação de pensamentos, tudo ao redor do fogo da união.

Somente a Mente pode dizer quantas e quais inspira-ções e casualidades destinou ao primitivo. Foi um trabalhode paciência, de bordado, que observado de perto, pareceum emaranhado, de longe, depois de milênios, revela oescopo e o significado do desenho.

É indiscutível: o primitivo que não se sensibilizar comas inspirações, deixando a mente inoperante, jamais se afas-tará da floresta equatorial ou da caverna para penetrar osespaços siderais.

Homo continuava a procriar, o instinto lhe impunha atarefa, mas não mais com o vigor juvenil. Comportava-secomo o ancião Jacó, que se atarefava sobre a estéril Ra-quel, e depois, sobre a irmã dela, Lia, e para variar, prolife-rava com Bala e Zelfa, ótimas matrizes. Já eram distantesos anos de intensa atividade, que lhe exaltavam a masculi-nidade. Provavelmente superara o seu remoto descenden-te, rei Salomão, que dominava mil mulheres, contava to-neladas de ouro e outras copiosas riquezas, reinava,guerreava, poetava e achava tempo para os exercícios espi-rituais. Admirável exemplo de homem privilegiado, sobrecujos talentos, soprava o quentíssimo hálito da imaginação.

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Mais adiante, Homo constatou que após aexaustão das múltiplas cópulas, durante o re-

laxamento dos nervos, era dominado por uma inércia re-flexiva, na qual os sentidos se calavam de modo que a ima-ginação ondeava longe de sua vontade.

Mas isto não acontecia com todas as fêmeas que aca-bava de penetrar, afastando-as depois de si, o fato se repe-tia com Ea, a primeira fêmea do segundo ciclo reprodutivo.Chamava-a Ea, voz onomatopéica, pois assim a pedia per-to de si. Ela se rendia carinhosamente e durante a cópulaemitia sussurros sob o bufar rítmico do seu único macho.Após o desafogo, na imobilidade, fixava intensamenteHomo; agradecia-lhe lambendo seu rosto e lábios. O ma-cho deixava-a lambê-lo. No abandono, sentia-se embaladoentre imagens vaporosas que queria para si, por isso fun-gava Ea, autora das visões. A fêmea Ea tornara-se a mulherde Homo.

Este constatara que, após o sono reparador, o toquefrio da água viva e do ar matinal, o sangue corria com vigor,a atividade mental se revelava vivaz e precisa, fácil a imagi-nação e a união de idéias e pensamentos. Começava a cons-truir mentalmente. Porém, a atividade mental minguavaao entardecer, quando surgiam as dúvidas e os temores e,no sono, os pesadelos. Para vencer o medo, precisava docontato carnal da companheira, suscitando a tépida concu-piscência.

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A percepção cada vez mais aguçada, e a melhor sensi-bilidade, o convenceram de que a alternância devia-se aosol. Homo experimentou gratidão, e julgou o astro in-dispensável, pois quando ele montava no céu, nasciam-lhe pensamentos, facilitava a colheita de frutos e semen-tes. Precisava então pedir-lhe algo mais. Nasceu-lhe umaidéia.

Durante dias, catou sobre as encostas da montanha pe-dras de peso e proporções que ele poderia carregar na su-bida, amontoou-as na forma de cone sobre o plano próxi-mo ao bosque, a oriente. Após a construção da pequenaStonehenge, ao primeiro clarear matutino, sentou-se comas pernas cruzadas, em frente ao montículo, em posiçãoestudada previamente. Daí a pouco, surgiu o sol pôr trásdas pedras: apareceu pelota fusa em cadinho azul,iluminador do céu e da terra, assim radioso de desbotar asestrelas. Pareceu ao observador que o astro, por graça ecomplacência, parasse diante da sumidade do montículo.

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Homo começou a observar: o sol não tem corpoe nem pernas, é redondo e possui braços e mãos

tantos quantos são os raios que iluminam o todo que estáabaixo dele; na luz cada coisa se distingue. Quando dominano céu, ninguém lhe é par; quando se vai, as trevas se fa-

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zem patroas... Oh sol! por que não permaneces para sem-pre a dominar o céu e a terra?

Suspeitou de um motivo incompreensível, um mis-tério. Lembrou quando ele e os seus saíram da floresta e anoite chegou quando todos estavam na planície sob a ga-roa. Depois da escuridão, a luz mostrou leguminosas eágua.

— A mudança é necessária: tem-se que suportar astrevas, que causam tremores e medos, para gozar o con-tentamento.

O sol, lento e seguro, levantou vôo de condor andino.— Ele é ave soberana, domina os montes e os vales

próximos.Ea, a mulher preferida, sempre ocupada em uma ges-

tação, adivinhando o pensamento de seu homem disse:— Ele é aquele que me dá a vida nas entranhas com o

calor do dia, e me fortifica com o frio da noite.No reino do espírito, difundiu-se expectativa. Na ima-

ginação da nova criatura, a Mente era o sol radioso, avemagnífica, fluxo quente que vem de cima, atributos quecomeçavam a determinar-lhe a majestade, sem Homo tertido mais contato, usando somente a percepção. No futu-ro, a razão, quando treinada à especulação, alimentada comconhecimentos e experiências, pintará um retrato mais de-talhado. Podia-se afirmar que ao homem fora atribuída mis-são dificílima, provavelmente superior àquela dos Minori-tas, que pode ser resumida: do conhecimento zero àsabedoria absoluta.

Splendor, observador poliédrico, raciocinador insis-tente, deduziu:

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— A Mente é sóbria, não impõe para si louvores adu-latórios, orações refinadas, honrarias destiladas, liturgiasfantasmagóricas, hinos ecoantes, reverências nadegadas,coisas e atos que satisfazem somente os inventores eacólitos. Ela é axiomática; é sensível, racional, dinâmica,fantástica. A solidão horrenda na nulidade obscura foi o es-tímulo que movera a Mente a criar. Ela ama a troca de sen-sos elevados, que lhe suscitam nobres sentimentos, e quefaz fluir sobre o gume da razão na medida precisa. Somosnós os únicos a prestar-lhe este tributo, somos nós, quelhe somos próximos, a saber de sua natureza.

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Por que a Mente dá atenção a um animal, sopra-lhe o espírito, o coroa com virtudes, concede-

lhe liberdade ilimitada e inviolável, quando é a senhoriados lugares onde a ventura o conduz e ainda chama Homode si. Qual é o escopo?... Se nós não conseguimos satisfa-zer o desejo da Mente, esta criatura conseguirá levantar-lhe emotividade se nada sabe do Criador?

Na mente de Splendor dilatou-se um grande silêncio.Enfim a inteligência ergueu-se e argumentou.

— Para esta criatura híbrida, a percepção incerta é oúnico meio de conhecimento da realidade superior. Paracomunicá-la aos seus semelhantes, tem que traduzi-la em

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palavras, atos e imagens. Eu poderia ser preceptor e guiada ignorante criatura. Serei soberano para elas se noensinamento incluir características da minha personalida-de. Exultou: — A Mente tem personalidade única e imu-tável, mas o homem terá dela tantas personalidades quantaseu determinar. Saboreou longamente o prazer de uma so-lução genial.

Mas, enfim, chegou o amargo adstringente da refle-xão.

— A majestade me seria atribuída pela ignorância ecredulidade do homem...Não é honesto — disse. A cons-ciência estremeceu. — Não posso impor a minha vontadeao homem, ele goza do livre arbítrio, tão sagrado que aprópria Mente respeita e faz respeitar, nem obter a sua be-nevolência, pois tudo lhe vem da Mente.

Lembrou-se do desejo manifestado de participar dacriação e a resposta à sua pretensão: “Tu não podes criarconceitos, mas somente gerar idéias, elaborar pensamen-tos, tu não possuis energia realizadora...”

— Porém, posso propor argumentos deduzidos dosconceitos existentes, posso iludir com visões de magia.

As conclusões lhe clarearam a inteligência, e afastou-lhe a insatisfação.

— É melhor ser primeiro e único no Nada insignifi-cante do que segundo entre os raciocinadores e críticos.

O último impulso contraditório foi aquele da cons-ciência, que propôs um diálogo clarificador com a Mente,logo vencido pela inteligência, que avançou argumentosenganadores e mirabolantes para converter o homem àsvontades de Splendor.

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Usando o instinto enfraquecido, Homo seguia asmudanças climáticas: quando notava um formi-

gamento nas narinas enxutas, temia a estiagem prolonga-da; uma frieza nos pulsos e tornozelos previa o frio notur-no iminente, umidade excessiva nos olhos, chegando aescorrer lágrimas, esperava tempo chuvoso. Agora as rea-ções condicionadas eram conectadas à observação mais queatenta: procurava de onde chegavam as neblinas, farejava ovento, degustando-o, examinava o horizonte e dizia:

— Tudo vem de cima, a terra reage.Quando chegou o tempo da seca, céu desbotado, lon-

gos períodos de luminosidade, manteve-se calmo, mas vi-giava uma faixa opaca que contornava as longínquas ondu-lações.

Uma tarde, escureceu antes do tempo. No céu, avança-ram nimbos ameaçadores, a luz solar esmorecera. Homo,então, reuniu os seus na caverna do pequeno promontóriojunto à selva. Mas ele, juntamente com sua companheira,pouco permaneceu na entrada, ambos estendidos na relvaficaram olhando. Entre as brechas da ramagem, observava asrepentinas fissuras luminosas produzidas pelos relâmpagos,e esperava encolhido o estouro do trovão. Entre os clarõesda tempestade, notou, entre tantos, dois velhos ramos queempinavam dois pequeninos, já secos, os quais se esfregavamentre si, ocasionado por um sopro de vento intermitente,efeito do balanço de uma ramagem próxima. Caídas as cor-

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tiças, os lenhos crepitaram, a pequena brasa, sob o sopro dovento, tornou-se grande e viva, caiu juntamente com algunsraminhos, próxima ao observador. Enfim, o fogo tinha a suachama. Homo, apavorado, chamou a atenção da companhei-ra com o toque da mão. Ea, vencida a estupefação, pediu aocompanheiro para pegá-la. Ele se aproximou com cautelasobre os quatro membros e, quando próximo, agarrou a cha-ma. Com a dor da queimadura, emitiu um grito animalesco.Enfim, o vento e os relâmpagos terminaram, o fogo se apa-gou, as trevas se recompuseram. Homo não dormiu, reviacontinuamente na imaginação o nascimento do fogo em to-dos os seus detalhes. A noite foi longa e monótona.

Na luz do novo dia, começou a procurar perto de si,viu os carvões e as cinzas no meio das folhas chamuscadas.Catou dois gravetos e, repetindo as imagens da noite pas-sada, os esfregou entre si, soprando-os como o vento. Nas-ceu a chama e, com ela, a luz. Com gritos de alegria acor-dou o clã e repetiu a magia. Todos ficaram estarrecidos, etambém queimaram as mãos.

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O sol alto e o montículo de pedras foram esque-cidos.

Quando Homo lembrou deles, provou ansiedadeculposa. A mulher que segurava com os braços o abdômenquase maduro e tudo sabia de seu homem, o exortou:

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— Nada de culpa, agora tu podes ter a luz, o calor etudo o que queres. Tu não me tomastes, embora contrária,sobre a relva?

O homem manifestou a primeira escolha. A vida sua ede seus filhos o obrigará sempre a uma escolha, após umaprendizado para cumprir o porvir!

Após alguns dias de manhãs luminosas seguiu uma queparecia noite. Levantou-se um vento raivoso que arranca-va as folhas novas e raminhos tenros das velhas plantas, ou-viram-se grandes explosões, caíram raios semelhantes adardos dos Ciclopes, formaram-se incêndios na selva se-denta. Das nuvens inchadas, precipitou-se chuva gélida, quepungia a pele, depois granizo que fustigava como flagelosàs costas dos despidos. Assim foi por horas: depois os fogosse apagaram. Entre a fumaça, o lugar se mostrou desolado,descia ar frio de cima das árvores, a fauna permanecia mudae escondida, o sol do fim do dia desapareceu entre cirrospúrpuros. Os homens temiam; experimentavam uma fitaaguda que, da cerviz, descia pelas vértebras e difundia-sepelos ossos. Nunca o clã tinha vivido um acontecimentosemelhante. Era a primeira e violenta mudança metereo-lógica vivida por ele. No reino do espírito comentou-se:

— O inevitável aconteceu; o homem decidiu a pri-meira escolha. Não nos indispõe a sua decisão. São trans-corridos alguns simples eventos, que pouco lhe ensinarama construir pensamentos lógicos. Não exigimos comporta-mento melhor, até quando não adquirir a plena capacidadede entender e querer. Por enquanto, e por gerações, assuas reações serão temperamentais e instintivas.

— A humanidade vive a sua infância.

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— Será iniciado no uso da razão quando conhecer osprimeiros conceitos: o estar, o avançar, o dar, o receber, oser, o morrer. Serão necessários milênios para saber do beme do mal, relacionados somente ao uso correto das virtu-des recebidas. Porém, já tributa respeito, pois admite aautoridade. Agora nós somos considerados doadores debens e de castigos, mas serão necessárias catervas de pen-samentos para aprender que o estado de espírito induz oindivíduo a uma escolha, que quando racional, o aproximade nós e lhe revela o conhecimento de tudo, quando insen-sata, o conduz à desordem e à solidão.

— Alguém deve proclamar com autoridade: “ ...Oshomens não nasceram para viver como brutos, mas paraseguir a virtude e a inteligência”, pois criamo-los à nossaimagem e semelhança.

Por lei natural, o intento da Mente se amalgama à suaobra, de modo que o indagador teimoso, após examinar osaspectos da realidade, acaba conhecendo-o embora de for-ma imperfeita.

Foi assim que a mente de Splendor, após muitas ob-servações reflexivas, concluiu:

— Após milhões de combinações genéticas, por efei-to da evolução impressa no seu ser, que elimina paulatina-mente os resquícios animalescos e fixa as qualidades dointelecto, este híbrido se tornará senhor da realidade, emverdade, uma permissão irreflexiva. Não posso aceitar orebaixamento a mensageiro entre rei e súdito, nem a pro-tetor de uma ínfima criatura. Estas decisões violam o sen-so de justiça, ínsito no estado de existência, humilhando apessoa. A correspondência de nobres sentimentos, entre

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criador e criatura, se tornaria áspera, quando não inexis-tente.

O sentimento misto de desdém e revolta alcançou aincandescência, depois apagou-se, mas o íntimo eraquentíssimo.

— Seria necessário um apocalipse da realidade. Eu nãotenho poder de realizar tal empreendimento, mas poderiapropô-lo ao Onipotente. Lembro: na perspectiva das pos-sibilidades, o conceito surgiu após a Mente constatar asaberrações nas criaturas, provocadas na calada, por mim.Para motivar uma destruição total, deveria difundir o ar-gumento entre os homens, os quais já revelam ressenti-mento entre eles, propagar mitos e lendas, estabelecer“Pathos”, que se aceito e comentado, tornar-se-ia herançaatávica e até psicogenética, sacralizada por um profetaalucinado ou por uma eminência autoritária. Deveria in-troduzir, na imaginação humana, elementos figurativos eidiomáticos que, se adequadamente usados, poderão com-por um apocalipse e alcançar a importância de artigo de féirracional... O homem é um ótimo e estúpido auxiliar... Oapocalipse é de minha única conveniência... Mas ninguémtem que saber... A humanidade deveria causar uma grandedesilusão à Mente, a qual, tomada de tremenda emoção,perderia o equilíbrio emotivo e, de uma só vez, aniquilariaa realidade. ... O projeto Homo sidereus, se transformariaem um grande “fiasco cósmico”. Eu, e somente eu, seria aúnica criatura, com os meus seguidores a oferecer compa-nhia e diálogo à Mente e ainda levantar-lhe sentimentoscriativos.

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O homem começa a desgarrar do comportamen-to natural. Conta o escriba profeta o primeiro

fratricídio. Como o autor chegou ao conhecimento do fatonão é dado saber, porém, vale a suposição de que “Um ve-lho contou o que ouviu de um ancestral...”, ou seja, semnenhum indício arqueológico, pura mitologia. Mas, se ainspiração superior me permite, o fato pode ser assim con-tado:

O Onipotente aprecia e prefere o cheiro das gordascarnes de uma ovelha imolada pelo pastor à fragrância defrutas oferecidas com extrema rudeza pelo agricultor sim-plório. Este, por inveja, mata o irmão pastor. A autoridadecondena o assassino ao ostracismo, mas não lhe aplica a leido Talião. À parte o prazer olfativo, sempre discutível, porque o Onipotente “olha” com insistência a oferenda do pas-tor? Quer provocar inveja e briga familiar?

O escriba, talvez por limitações intelectuais, não intuique o pastor foi provavelmente o primeiro homem que,aplicando a inteligência, inventou a oferenda sobre o bra-seiro para oferecer não uma simples ovelha abatida, mas oespiral sutil de fumaça; a essência ascendente, o ato comalgo de pessoal, de inusitado. É assim que se pode explicaro “olhar” ostensivo, a ignorância do escriba, desprovido deintuição e meios descritivos. Se assim não fosse, o leitormoderno seria induzido a duvidar da imutabilidade supe-rior: ontem, autoridade castigadora implacável, hoje, pai

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misericordioso e compulsivo. E amanhã? Provavelmenteabade corpulento e alegre. Mas, se o Onipotente não setivesse manifestado, respeitando o livre arbítrio humano,como sempre prometeu e cumpriu, poder-se-ia explicaro fratricídio com a aversão congênita existente entre con-sangüíneos, vivíssima entre os povos levantinos, mas tam-bém difundida entre as nações européias. Então se confir-maria a lei natural: energias de mesmo sinal se repelem,de sinal contrário se atraem. Efeitos diversos da mesmalei universal.

A limitação intelectual e moral nota-se mais avante. Oescriba narra as maldades de personagens, formando umelenco dos arquétipos de todos os pecados possíveis: latro-cínio, onanismo, prostituição, incesto, perversão, abigeato,falsidade ideológica e outros farelos. Este é o abecedáriosobre o qual a humanidade formou cultura e conhecimen-to, quando ainda o espírito terreno era ignaro de morali-dade. A difusão foi um ato discutível, porque, como diz ofilósofo, “O homem nasce bom...” e continuaria tal se al-guém não o desvirtuasse. O que mais impressiona nestaincerta história é o personagem do Onipotente, apresen-tado não como pensador genial da lei, organizador de sis-temas, criador de uma ou talvez mais realidades, mas comosimples coadjuvante grosseiro e emotivo de algumas deze-nas de suas criaturas. É difícil imaginar o desalento dos ex-cluídos, os tormentos dos reflexivos.

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No início do desgarramento, os componentes doclã eram caçadores, pescadores, colhedores de

frutas pendentes. Quando as reservas de sustentamentoda estância se exauriam, eles procuravam outros lugaresem que havia sementes, frutas, caça, água e resguardo dasintempéries e dos perigos.

Eles eram nômades.Durante as andanças, nas mudanças de temperatura,

quota, ambiente, o aspecto humano suportava impercep-tíveis mudanças que, repetindo-se nas sucessivas gerações,tornavam-se genéticas. Pode-se dizer, com superficialida-de, que o homem é um produto do ambiente, mas pode-seinsinuar que este seja o procedimento escolhido pelo Cria-dor para modelar continuamente o seu barro vivente.

O clã, quando numeroso, por motivos circunstanciais,dividia-se em dois ou mais grupos, que migravam para lu-gares diversos e longínquos. Assim, cada grupo adquirianovas mutações, diferentes daquelas dos consangüíneos, jáperdidos no tempo e no espaço. Mas que, às vezes, casual-mente, reuniam-se após séculos. O cruzamento de indiví-duos cria a diversidade tão desejada pelo Criador. A diver-sidade no programa criativo é indispensável para originarnovos indivíduos com destacadas qualidades físicas e acen-tuar as virtudes intelectuais oriundas dos ancestrais: assimnascem novos pensamentos, concepções de vida. Além dis-so, multiplica as combinações genéticas que podem pro-

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duzir uma ou mais mentes competitivas entre si, que al-cançam a abstração complexa e intuem as leis universaisescondidas na natureza.

Esta parece ser a estratégia do Artífice para transfor-mar um selvagem antropófago em um Einstein racional ededutivo que abraça com um único pensamento toda a re-alidade material.

A casualidade genética parece mais um produto de ummanipulador farmacêutico. Este agiria oportunamente,com a máxima calma, sem alarde milagroso, sem interven-ção pessoal, porque prometeu respeitar o livre arbítrioalheio. Afinal, qual a utilidade de um Galileu, no décimoquinto século na África equatorial?

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Sob os efeitos dos novos estímulos interiores, ohomem melhorava o seu aspecto somático. A cada

geração, a fronte se fazia imperceptivelmente espaçosa,polida, glabra, ereta, porque raciocinava com persistênciaao invés de fantasiar casualmente. Porque a razão, paratrabalhar, precisa de matéria para novas unidades de me-mória, interligações múltiplas; é assim que se guarda a ex-periência, se centuplicam os pensamentos. Também osolhos se transformavam em grandes claros sob o influxocomovente da espiritualidade, ou pequenos escuros pela

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vontade de indagar detalhes, o nariz pronunciava-se maisafilado, às vezes pontudo, aquilino, porque ele se tornavaperspicaz, insistente, dominador, os lábios tornaram-secoloridos, bem desenhados, sorridentes, porque expres-sava cordialidade, ria, gostava de dizer, enfim, se tornoucantor por ter imitado o eco, modulando a voz, ao pontode cavar uma curta melodia.

E a prole se alindava sob o afago materno.Naquele tempo, a intuição começou a manifestar

idéias.A idéia é um produto mental que tem como núcleo

um conceito encontrado na natureza, completado de ele-mentos mnemônicos em aparente harmonia. A idéia surgede repente, aparentemente injustificada, encanta o inte-lecto, instiga a vontade sopita. É axioma: alguma coisa nãonasce do nada! Então suspeita-se no homem, de uma men-te gêmea, que tenha elaborado inconscientemente a idéia.Próprio como um sapateiro na sua obscura oficina, que usabarbante, couro, pelica, sovela e outras miudezas para apre-sentar seu trabalho ao cliente que, às vezes, passa e olhacurioso além dos vidros opacos da vitrine. Então, na condi-ção humana, existiria uma dualidade ignorada que impeleo dramaturgo a afirmar: existem razões que a própria ra-zão desconhece.

Também neste tempo, a percepção emerge dasprofundezas do ser e sobe à nebulosa do desconhecido. Tan-ge qualquer argumento, comove o intelecto pela viagemaudaciosa, mas anda sem rumo e método, pois lhe faltam ofio da lógica que conecta e os termos adequados para des-crever.

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É assim que a percepção capta a profecia. Esta,para ser verdadeiramente útil ao vulgo, deveria

ser manifestada em termos precisos e convencionais, nosopro da consciência moralmente correta. Todos os com-ponentes deveriam ser dosados com precisão farmacêuti-ca, em ambiente asséptico; mas, no mundo da percepção,domina o princípio da incerteza, o profeta utiliza do poucode que dispõe. Por isso é temerário sagrar o produto dapercepção e impô-lo a outras mentes mediante sugestãoobsessiva, oratória ardorosa, chantagem emotiva. Estesprocedimentos configuram violação de liberdade, de cons-ciência, lavagem cerebral. Nenhum profeta manifestoucontrição por cometer tais pecados sutis. Existe maior con-fusão no conhecimento do sobrenatural do que nas fusõesdas galáxias.

Fazia tempo que o homem se empenhava na indústrialítica e óssea. A casualidade o tinha premiado com achadosde ossos e pedras, que por forma e resistência podiam serusados em alguma função imaginada após observação. Odesbastar, o afiar, o polir são atos repetitivos que solicitama atenção e a perseverança do operador. Durante o uso, oscompanheiros, após a admiração espontânea, propunhamao artífice mudança no utensílio, no manejo, e até no pro-cedimento do trabalho. Para tanto, era necessária a palavraonomatopéica, o gesto descritivo, a similitude natural, o

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sinal do que foi imaginado, traçado no chão e na pedra. Erampropostas que impunham às mentes a aproximação, asobreposição de imagens e movimentos pensados: uma gi-nástica mental (começava a cooperação). Quando o utensí-lio construído satisfazia as necessidades, o artífice abando-nava-se contente ao descanso e dizia: para ter uma boaferramenta, precisa-se de habilidade e constância. O traba-lho racional não é um castigo, mas um meio para desenvol-ver a mente.

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Como sempre acontece, a combinação genéticagera personalidades e inteligências singulares,

até semelhantes, jamais iguais como duas gotas d’água. Élei: a cada homem a sua personalidade, a própria inteligên-cia, a única visão da realidade. Também no caso dos gêniosunivitelinos: a igualdade acaba, ao comparar as inclinaçõesdivergentes. Provavelmente o astrólogo confirme.

Desta diversidade, a natureza consegue estímuloevolutivo.

Os trogloditas, após refeições abundantes, se abando-navam ao sono profundo do roncador. Mas não surpreen-de se acaso um, perto do fogo, permanece acordado, go-zando o calor vermelho das brasas, talvez lembrando o frio

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externo, que encrespa a pele descoberta, na solidão negrada noite. Sentado sobre um seixo ciclópico observa: a fu-maça sobe ao teto e desce tranqüila quando fria, envolve acaça abatida e dependurada, para defumar; a brasa doraminho, que se apaga num pio silêncio e se transforma emcarvão útil ao desenho; além do braseiro, as chamas irre-quietas projetam, sobre as paredes da caverna, as formassedutoras das mulheres dormentes e provocam no despertoa concupiscência; a chama já preguiçosa queima uma gotade resina, dispara uma faísca sobre a pele de quem descan-sa. Tudo isso torna-se patrimônio da memória descritiva,com a qual a inspiração de qualquer procedência compõecenas novas e até sobrenaturais. A alucinação não é estra-nha, pois é favorecida pela escassez do oxigênio e incons-tante pressão sangüínea, pelo batimento cardíaco acelera-do. Se depois o estouro é mais forte do que o anterior e alabareda cega por um instante, o observador a fixa na me-mória, como se fosse uma fotografia instantânea. Quandorelembrada, tornar-se-á uma visão.

Por uma singular associação de imagens, ao já sono-lento troglodita vem à memória o cervo que pasce a gramanova e, ao ver os homens cobertos de peliça, foge junto aobisão e ao tarpan.

Assim, no antro asfíxico, de sombras incertas, de pro-fundidade indeterminada, parece ao alucinado distinguiros animais entre os meandros. Por que não estampá-lossobre a superfície lisa entre anfratuosidades, para deixar asimagens, assim como deixou a marca da mão molhada deágua colorida?

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No ambiente dos agrupamentos humanos, tinha-se estabelecido o escambo de coisas e ajudas,

presentes ou futuras, com gestos convencionados e pala-vras formais. Mas as intenções eram esquecidas ou modifi-cadas segundo a conveniência, especialmente quando esta-beleciam obrigações. Era inevitável: as modificações e osesquecimentos causavam litígio entre as tribos.

Assim como permaneciam as imagens daqueles animais,já mortos e devorados, o primitivo teve a idéia original defixar sobre a pedra e outras superfícies portáteis o estabele-cido com sinais convencionais. É a mesma idéia que mais tar-de os latinos condensarão: verba volant, scripta manent.

O homem conseguiu expressar com sinais a abstraçãopensada. O autor pictográfico obrigou-se, com insistên-cia, à cópia, à similitude, à síntese dos elementos naturais edos ideais; o leitor é obrigado à interpretação dos quadrospictográficos, a traduzi-los em palavras convencionais e pro-vavelmente em estados da alma. O grande valor da picto-grafia, do hieróglifo, da escrita, enfim, é a conservação, apropagação do conhecimento universal, que pode sempreser aperfeiçoado, aumentado pelos vindouros. Onde nãoexiste a obrigação de documentar, a história se dissolve, aconsciência se perde, a espiral evolutiva do espírito nãoexiste.

É impossível confiar as lembranças aos aedos de boamemória, que a morte emudece, e a vida não substitui.

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O povo sem passado não terá futuro. A escrita e a lei-tura são, ainda hoje, o mais precioso legado dos ancestrais,muito mais do que a roda e a pederneira.

Com as rosas chegam os espinhos.O homem movido pelo espírito de contradição, segu-

ramente irracional, mas não necessariamente maléfico, ge-rou os contra-valores. Estabelecida na comunidade uma re-gra, uma verdade, uma hierarquia valendo-se da liberdadeoutorgada, proclamou a confusão, a verossimilhança, a in-dependência...

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Acreditando-se que a inspiração seja uma atmos-fera carregada de fermentos intelectuais, que

chega a todas as mentes, deduz-se que, ao homem, semdistinção, sejam lícitas manifestações sobrenaturais.

Típico caso do profeta iletrado, que recebidas re-velações superiores, usando a sua modesta cultura, as par-ticipa ao escriba, o qual, interpretando-as segundo o seuentendimento e sabedoria, as transmite à posteridade. As-sim, a verdade revelada, como se fosse vinho, recebe nomínimo duas baldeações: da autoridade superior ao odreprofético; deste ao odre do escriba, para depois ser distri-buído nos copos dos crentes. É de se desejar que os recipi-entes sejam limpos, que a bebida não perca o buquê, nemseja derramada no piso.

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É lícito supor que, em todos os tempos, nasceram pro-fetas, muitos dos quais só desejaram o triunfo das própriasprofecias para obter honrarias e recompensas.

O homem continua a desconhecer a Mente, uma per-sonagem nunca vista e tocada, com a qual não possui umarelação próxima. Às vezes, ajuda-lhe a percepção e a suges-tão, ambas valendo-se de elementos materiais guardadosna memória do indivíduo ou da coletividade.

Seria fácil ao Desconhecido descer do Empíreo e sur-gir entre os povos trajando aparência humana e proclamar:

— Eis-me, sou o Criador, senhor de tudo que vóspodeis imaginar e muito mais. Deixo-vos a lei autógrafa,indelével, do comportamento com todas as exceções eminúcias, sem contradições. Conservai o todo na memóriabiológica. Não quero repetir-me a cada geração.

Todas as incertezas seriam vencidas! Porém, seriam vio-ladas as leis do livre arbítrio, da não intromissão dos assun-tos humanos, nasceria uma subespécie de lactantes adultos,sem deveres, mas com todos os direitos. A vida seria monó-tona, privada dos machos volitivos e fêmeas heróicas.

A “humanimole” não teria pensamentos e audácia paracomeçar a conquista de novos mundos e a difusão da vida;conceder-lhe a perenidade espiritual seria a decretação daaposentadoria por tempo decorrido.

O homem evolui paulatinamente. Naquele tempo, jáse expressava fluentemente, pintava figuras e sinais, usavao fogo a seu prazer, trabalhava os metais e a terra, plantan-do; tinha percepções que narrava em contos mitológicos,amava uma só mulher, mas queria dominar as outras, ven-

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cia facilmente a preguiça mental, começava a raciocinarprofundamente e com precisão.

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O raciocínio espontâneo e contínuo não é umamanifestação coletiva. Quando há, entre tan-

tos, um homem com tal inclinação, ele se torna chefe dogrupo, condutor, autoridade inquestionável e se a nature-za dos subalternos o permite, rei, tirano, semideus. As suaspalavras se transformam em regras, leis, dogmas que ospreguiçosos mentais seguem religiosamente. Mas, se sur-ge um segundo raciocinador, é inevitável o debate, a con-frontação de pensamento, a briga, a revolta.

A Mente, sensível observadora, nesta conjuntura,concluiu que se tinham cumprido os tempos prelimina-res e que podia dar andamento à fase sucessiva. Então,decidiu difundir indícios das suas personalidades e deter-minações.

Em harmonia com a virtude eqüitativa, que deseja to-das as criaturas conscientes e pensantes, iguais perante a leido Criador, difundiu com maior intensidade sobre o globoterrestre a inspiração superior. Isto porque previa a inspi-ração maligna das autoridades religiosas: a presunção da pre-ferência divina para si e os seus, causadora das bárbaras car-nificinas.

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Como foi dito, a inspiração superior é como uma at-mosfera que desce entre as mentes humanas e as inspira, érica de fermentos intelectuais e suscita pensamentos. Nãoé uma representação cinematográfica, uma declamação doespírito paterno ao filho Hamlet, muito menos um con-certo de música wagneriana, todas imaginações artísticasque podem sugestionar. A inspiração superior não exige no-ções culturais elevadas, embora utilíssima no vaticínio, masinduz o espírito a usar noções e termos sublimados na bi-blioteca intrínseca. Então, ela não impõe e não obriga se-não, o profeta seria reduzido à condição de camisa lavada,que a dona de casa passa a ferro e dobra. Isto explica por-que há profecias sublimes, vulgares, tolas. Todos os homenspodem ignorar a inspiração profética usando o fermentointelectual para outras atividades. A inspiração se abrandaquanto mais a pessoa se torna sábia, pois a razão impõe umpensamento lógico e uma terminologia adequada, foi in-sistente nos tempos da infantilidade humana, quando nin-guém explicava um fenômeno natural e liberava a fantasia.Foi neste período que surgiram, como neblina das terrasbaixas, profetas, profetizas, sacerdotes carismáticos,esotéricos, xamãs, feiticeiros, mágicos e magos (famososos três reis magos ou astrólogos), fanáticos convincentes,ilusionistas desonestos, farsantes esotéricos.

Ainda hoje, eles continuam enganando os simplórios,cobrando-lhes gordos honorários. Porém, a multidão con-sulta o processador de dados e tem respostas de precisãomatemática.

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Não existem documentos e sinais históricos, masprovavelmente por volta do século XIX a.C. a

inspiração superior foi recebida também pelo caldeu Abraão,esposo da linda e estéril Sarai — aliás Sara –, filho do oleiroTare. É de se supor que Abraão provasse aversão pela terranatal e um desejo nato de emigrar, ver novos horizontes. Tudoseria conservado no profundo do ser, como a mulher queguarda os apetrechos de costura que lhe serão úteis. Assim,não surpreende quando uma voz lhe pede a saída da Caldéia,juntamente com a mulher, pai e outros familiares para se es-tabelecer na terra estrangeira de Canaan. Desta voz não setem nenhuma descrição, mas para ser sobrenatural deveriater uma característica única, talvez fosse afônica, completa-mente mental, servindo-se naturalmente de termos idiomá-ticos caldeus, compreensível ao entendimento do inspirado.A pobreza descritiva é notável se confrontada com a riquezade detalhes das modernas aparições sobrenaturais. Sem dú-vida, de lá para cá, a mente humana enriqueceu muitíssimo.

Abraão obedece. Durante a permanência em Harã, opai Tare morre. A região indicada, onde deveria surgir umanumerosa nação, é improdutiva e nos períodos de carestia,não alimentava uma pequena família. Se for esta a terra ondeescorre o leite e o mel, sem dúvida há mal entendido. Nosemigrantes começa o desânimo. É necessário emigrar no-vamente, agora para o fértil Egito, onde abundam os ali-mentos.

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Os predicados físicos de Sara são aqueles desejados pe-los machos exuberantes e seduzem mais, se velados portransparências. Morto o marido, o mais forte pode gozardeste “capolavoro” feminino. Abraão sabe disso, impõe àmulher e a todos os familiares que o tratem como irmãode Sara. O faraó fogoso se apropria da jóia natural. O “ir-mão”, até que não chega o castigo do sobrenatural, recebedo “cunhado” satisfeito: caprinos, bovinos, eqüinos, came-lídeos, servos, escravos e, talvez, algum dinheiro. Para for-mar uma nova nação e organizar uma congregação religio-sa são necessários recursos, não importa de onde cheguem,afinal, “o fim justifica os meios”.

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Após a doação, o faraó descobre o engano e o vín-culo matrimonial entre Sara e o “irmão”, com-

preendendo o motivo do castigo tardio. Subitamente libe-ra Sara sem exigir a devolução dos presentes e despacha osimigrantes para fora do Egito.

Abraão, rico, e a sua gente, voltam à terra de Canaan.É provável que o marido, apesar de tudo, provasse ressen-timento contra a mulher, a qual, para demovê-lo, teria ditoao amado:

— Embaixo do faraó fiz de tudo, mas sempre me ne-guei ao prazer pensando em ti. — Assim seria restabelecidaa paz conjugal.

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Após sacrifícios, concluiu-se uma aliança entre Jeová eAbraão, cujo sinal é a circuncisão, talvez a ser mostrada aosignorantes em algumas ocasiões secretas. A circuncisão, semmotivo aparente, a não ser o higiênico, deve ser explicadapor psicanalistas, pois continua servindo de estímulo paraamputações genitais entre povos de duvidosa evolução.Jeová promete a posse da terra, entre o rio do Egito e doEufrate, e a sujeição dos povos aí radicados, também cria-turas de Deus. Tal promessa seria uma arbitrariedade, atétalvez um eufemismo, que demonstraria a magnitude daconsideração divina por Abraão e sua gente.

De qualquer forma, a promessa ainda não é cumpridaapós quatro mil anos. Ao contrário, tudo se torna duvido-so: os romanos fazem “tabula rasa” da chamada cidade san-ta; piora quando Alá (novo nome de Deus, único e verda-deiro) inspira Maomé, outro dos tantos profetas que ouvevozes sobrenaturais, provavelmente áfonas, naturais, quesobrepuja com seu Islã o jovem Cristianismo, que dominada Pérsia ao estreito de Gibraltar, das costas africanas aosPirineus e ao Danúbio; surpreende o posterior domíniodo império Otomano. Mas, afinal, qual é o jogo da Men-te?... Ela é inconstante?... Ou o sabido Abraão (ou Maomé)pratica prevaricação, atribuindo a si, e aos seus, o que Jeovánunca prometeu?

Provavelmente, trata-se de uma ignorância profética-ética-geográfica. Vale a pena lembrar que Abraão, chama “seuDeus” único de “El Sadday” (deus da montanha), talvez paradistingui-lo do outro, o da planície, o do rio. “Elohims” (plu-ral do substantivo deus*). Enfim, há uma visão no vale do

* CHOUROQUI, André. In Princípio. Imago, Brasil, s/d.

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Mambre, de três viajantes (por que três?) que descansamem sua tenda, comem, bebem, e um deles profetiza o nasci-mento do filho. Mas Abraão não nota que o fausto prenún-cio de um é a expressão volitiva de três pessoas distintas.

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Abraão tinha uma sagrada missão a cumprir: esta-belecer e difundir no mundo o monoteísmo. O

prêmio para si e seu povo lhe seria concedido posterior-mente. Ao contrário, o patriarca procura tirar vantagemdogmatizando direitos e privilégios, para transmiti-los aosseus descendentes. De fato, próximo à morte, impõe aoservo, também caldeu, colocar a mão embaixo da sua coxae lhe faz jurar que o filho Isaac não casaria com uma mulherdo lugar, uma cananéia, mas sim de sua cepa, uma caldéia.Isaac desposa a prima Rebeca. A pureza do sangue tribal épreservada, outro precedente para justificar uma seleçãoracial... E a Mente que tanto ama a diversidade!

Há mais: adiante no tempo, quando Abraão já é faleci-do, há séculos o seu povo é escravo no Egito (não há regis-tro dos fatos e dos motivos), sofre opressão, padecimento,mortes prematuras durante o trabalho extenuante. Poreste motivo, e para libertar os infelizes, Jeová castiga o faraóe sua gente com as dez pragas. Se o sagrado respeito à di-vindade permite, usando da razão concedida pela seme-

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lhança recebida, para que tantas pragas, se apenas duas se-riam necessárias, prolongando a segunda até o cumprimen-to?... Mas o escriba não pensou nisso. Surpreende o com-portamento contraditório da divindade, a qual, no primeiromomento, induz o faraó a libertar os escravos e depois lheendurece o coração, só assim se justifica o extermínio dosprimogênitos egípcios, sejam eles neonatos, crianças ino-centes ou bichinhos mansos. Impressionante e horrendoprecedente, corrigido e melhorado por fanáticos da “solu-ção final”, nos guetos europeus. Quais sentimentos e ima-ginações povoaram a mente do escriba no ato da redação?Surpreende também o espetáculo de magia obscura, du-rante a qual bastões se tornam serpentes e vice-versa. Acena lembra fatos semelhantes aos que ocorrem nos ter-reiros baianos de Umbanda, a qual todas as religiões con-denam com desdém. A gravidade inteira aparece quando ohomem consegue distinguir magia do ato criativo. Mas, namente do escriba profeta, tudo isto é moral, cultura coti-diana, sabedoria confusionista. Fantástico é o ato de atra-vessar, sobre um fundo mole e arenoso, o mar Vermelho,com um povo de adultos, velhos, crianças e bichos com car-gas pesadas fugindo dos perseguidores. Usando a sagradarazão, por que sustentar com paredes que seguram milhõesde litros de água, quando melhor seria esticar uma passa-deira flutuante de praia a praia, a ser recolhida depois dapassagem do último judeu, sem afogar os egípcios, tam-bém criaturas de Jeová?

Milagre por milagre, o segundo é menos dispendiosode força. Mas o cronista conhecia a passadeira? Os árabes,fantasiosos, inventaram o tapete voador.

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De qualquer forma, a historieta parece não ter agra-dado à divindade: o mestre Jesus, seguramente não exibi-cionista, caminhou sobre as águas e fez caminhar o receosoPedro.

Na cimeira comentou-se:— A inspiração produziu tão poucos e pobres resulta-

dos: historietas desagradáveis e mal entendidos!— Por enquanto não existe nada de melhor no espíri-

to do homem: imaginações impressionantes, permeadas devanglória e egoísmo. Serão necessárias maiores experiên-cias e reflexões para melhorar-lhe os pensamentos.

— Não obstante o monoteísmo se difunde com dificul-dade entre as gentes em volta dos oriundos caldeus, semprecombatido pelo recidivo politeísmo. Conforta saber que, apósmilênio, ele alcança a mente de toda a humanidade. Avançaentre homens duvidosos, de pouca cultura, alguns seduzi-dos por visões hieráticas, apelando à fé, único argumento atéque não surjam a razão e o bom senso para fortificá-la.

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Por volta do século XIV a.C. a inspiração superiorsolicita a mente de um egípcio, Amenoteb IV, fi-

lho do faraó Amenoteb III e esposo da rainha Tiy, a interes-sar-se intensamente pela teologia desde a adolescência. Épessoa de grande cultura, de rara inteligência, esposomonógamo, pai amoroso de duas filhas, íntegro, sóbrio de

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honrarias, que despreza riquezas oferecidas em abundân-cia pelos seus submissos, abandona os negócios de Estadopara dedicar-se à teologia.

A comparação com o rei Salomão é estridente. Nestascondições de retidão moral, a inspiração se manifesta emtoda a sua integridade, penetra a mente, seleciona entre ostantos elementos culturais os mais apropriados para umaexpressão superior, sob a guia da razão equilibrada numanatureza meticulosa. A inspiração não precisa de fantasma-gorias, necessárias para os espíritos primitivos, de maldi-ções, para incutir temor aos futuros crentes sem culpas.Amenoteb não esconde a verdade.

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— T

u és único Deus, ao Teu lado não há outro.

— Tu és Aquele que cria a semente do homem, que dáa vida no corpo da mãe.

— Muitas são as Tuas obras, algumas nos são ocultas.— Temos um Nilo no mundo, outro, no céu para der-

ramar a chuva sobre a Terra.— Tu criaste a Síria, a Núbia, as terras do Egito, e do-

aste a todos os homens o seu lugar, providenciaste para aten-der às suas necessidades.

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— Tu és pai e mãe de tudo o que criaste.Percebe-se o profundo aflato da universalidade, o con-

ceito de “Deus para todos”, a igualdade da condição huma-na, o intento da mente para entender a obra criativa.

Amenoteb IV resta em todos os tempos, o arquétipodo profeta honesto e desinteressado. Se fosse pela sua men-te, nunca existiria uma divindade provinciana, temperamen-tal, castigadora, que ainda hoje causa angústias espirituais ejá despachou para a perdição quem sabe quantas almas. Elenão é beato, santo, mártir; é herói ignorado, pois não per-tence a nenhuma religião e a intelectualidade universal coma sua aguda percepção não consegue encontrar nele virtu-des e valores morais.

A sua convicção o transforma: troca o próprio nomeem Aquenatom “Aquele que vive na verdade”, deixa a capi-tal Teba, para construir uma nova: Aquetatom, “Horizontede Atom”; Atom é um dos nomes atribuídos ao único Deus,cujo aspecto é solar.

Monoteísta, superior a Salomão predileto de Deus,no entender dos biblicistas, destrói os templos edificadosem honra dos deuses, afasta os sacerdotes privilegiados doseu tempo, dispersa as grandes riquezas deles. Infelizmen-te, isto é um erro capital: todas as religiões se perpetuamgerando mitos, historietas, exterioridades litúrgicas queemocionam, jamais com atos lógicos e severos. As religiõesque não recebem da Providência um Saulo raciocinante edisciplinador para auxiliar um santo ignorante mas cheiode fé como um Pedro, acabam nas páginas de uns arquivos,nos porões de um museu.

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Aquenatom, morto, é execrado, mas a sua múmiadourada é depositada no túmulo da rainha Tiy, pelo genropiedoso. Os seus ensinamentos vencem os milênios.

O episódio histórico, e não místico, induz a refletirsobre a inspiração divina, de como ela se propaga, apesarda inveja, da presumida infalibilidade humana e da igno-rância geral.

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Algumas mentes, entre os milhões de pensadores, observarão porque o monoteísmo vingou

e se difundiu entre o povo primitivo de Abraão e não entreos Nilóticos, também povo religioso, divulgador entre asgentes da vida além-morte, criador das artes para retratare adornar os seus deuses e faraós.

Neste, e em outros argumentos, é sábio não afirmar,mas é permitido opinar.

No exame deste caso, percebe-se um indistinto fluxoda vontade superior, mitigado pelo respeito da livre esco-lha humana, mas não se pode descartar um fluxo contrário.

Todos os futuros ministros das novas religiões têm emsi um ideal congênito. Tal pode ser julgado um produtogenético procedente de inclinações mentais atávicas. Umsimples fermento sobrenatural o ativa, o enriquece compensamentos e experiências. É bem provável que “Deus

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não jogue dados”, mas demonstra uma ilimitada paciência.A vocação dos futuros ministros forma um princípio dadoutrina, apresentada aos prosélitos de forma simples, comconteúdo acessível. Pois os primeiros crentes são homensde pouca cultura, de limitada experiência, predispostos acrer por não saber, opor contraditório aos argumentos, sãoseduzidos pelo ministério, levados facilmente à comoção.Somente mais tarde, serão divulgadas as proibições e oscastigos aos infratores.

A nova religião é confirmada quando transmitida àsgerações futuras que a aceitam como tradição e a praticam.

Mas, afinal, por que a Mente suscita tantas religiões,por vanglória ou inconstância?

Respeito à livre escolha da mente humana.Respeito às leis já sancionadas.Respeito à moral limitativa que ela se impôs.Disto se deduz que esta realidade não é “a casa do caos

e da loucura”, mas o produto de uma Mente racional emoral que ama e defende a liberdade das suas criaturas. Aimagem de uma Mente temperamental, vingativa até acrueldade, é trabalho de escribas irreflexivos e malvados.Mas, afinal, por que pensamentos retos, como os deAmenoteb, não frutificariam religiões?

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Só o Nada é inútil, o restante pode ser aproveitadoa tempo oportuno. Os judeus perspicazes, sem-

pre errantes por terras estrangeiras, enfim chegaram aí,onde se falava do monoteísmo em termos precisos, ouvi-ram, melhoraram a própria religião, esquecendo com curao “El Sadday” e os “Elohims”, além de outras bobagens quehoje os seguidores julgam sagradas. A fé domina, porémdeve ser corrigida pela razão.

Nos tempos hodiernos, o procedimento deveria serigual ou melhor: sem obstinação dogmática, orgulho dos sa-pientes conservadores e reconhecendo a liberdade de cons-ciência e de expressão dos pensadores emudecidos pela cen-sura e confinados ao Índex. No passado, quantos deles foramcondenados ao ostracismo, ao rogo, à perdição perpétua!

Por isso, não surpreende que hoje o sumo Sacerdoteda cidadela convide os pensadores a conciliar a fé com arazão, em uma carta que precisou de nada menos que dozeanos para ser redigida. Del poi son pien le fosse! Hoje, sabe-se dos erros humanos cometidos no passado. Mas no futu-ro, em quantas alucinações mentais cairão os filhos de Evae qual o comportamento dos julgadores perante as dúvi-das? Parece ótima a fórmula:

No debate, no ensejo, na pesquisa, mantenho a fé emque um dia a razão tudo explicará.

Assim, anda pelo mundo a inspiração superior, cujosefeitos são sempre surpreendentes.

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Na Índia, na região próxima ao contraforte da cadeiado Himalaia, por volta do século V a.C., ou seja, posteriora Abraão e a Aquenatom, vivia um príncipe de nome SidartaGautama, mais tarde chamado de Buda (O iluminado). Vi-via no conforto faustoso das propriedades paternas, ama-do por todos os próximos. Um dia, saiu pelo mundo emcompanhia de um servo. Não foi longe de seu ambiente,pela rua encontrou um velho, um doente, um cadáver aban-donado. Foi um lampejo sucessivo e iluminador. A paz e aalegria se foram, começou a reflexão emotiva, insistente,penetrante, atacando o problema da existência. Após pro-longada ascese (penitência severíssima, que obrigava o po-bre corpo inocente a uma refeição de um grão de arrozpor dia), concluiu que a vida é sofrimento, e que o sofri-mento é causado pelo desejo, que é a causa do “Karma”,total conseqüência ética das ações individuais.

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O Karma sobrevive à morte, acompanha as pes-soas nas sucessivas reencarnações e é purgado

com a vida virtuosa; assim a pessoa merece entrar nonirvana.

“Este seria a integração do ser individual ao ser uni-versal ou ao seio da divindade suprema1”. “Melhor no bem-

1. Enciclopédia Larousse Cultural, p. 4218.

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aventurado estado de vazio total, no qual há a libertaçãocompleta do desejo2”, bonito exemplo da precisão cultu-ral. Considerando que o Buda não rezava a nenhum sersuperior, conclui-se que a versão do aniquilamento (sernada, para não sofrer) da pessoa no vazio total é a mais pro-vável das interpretações. Mas, querendo seguir os trilhosdivergentes das possibilidades, o primeiro caso lembra ode Cronos helênico, que fagocita os filhos para afastar odestino, outra autoridade indiscutível que domina a divin-dade. No segundo caso, é irrefutável que qualquer coisaou ente inquina o vazio, descaracterizando-o (talvez sejamelhor usar o termo “Nada”, que inclui além da ausênciada matéria, o imaterial). Esta filosofia transcendental caitambém no mesmo buraco do inexplicável: falta tracejar,até de forma aproximativa, a personalidade do Divino, quemuito ajuda a intuir a realidade, falta a tomada de cons-ciência da Divindade, de existir no Nada, que é motivoposterior da criação em perene expansão; é ausente umtoque descritivo das virtudes criativas, que facilita muito oentendimento da natureza da realidade. É compreensívelque no século V a.C. não se podia exigir tanto de tão poucoconhecimento, mas é claro que hoje todas as religiões têmque se atualizar.

Cada coisa tem um escopo, se não o tem não há moti-vo de existir. Às vezes, a inspiração ubíqua parece insistirnuma determinada região, num continente. Contemporâ-neo, ou quase, de Buda, Kung Fu Tzu (Confúcio, entre osocidentais), na China, é solicitado a se manifestar pelos far-rapos de inspiração superior. Ele tem uma mente ordena-

2. Enciclopédia Barsa , p. 396.

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da, honesta, serena, mas que não se inclina ao misticismo eàs visões. Dá a entender que a divindade é imperscrutável,por isso não adianta saber algo dela, basta reverenciar osantepassados e acatar as experiências e os ensinamentosdeles, o importante é viver virtuosamente.

Para melhorar a pessoa é necessário, em princípio, apurificação alcançada com severos exercícios físicos; na se-gunda etapa, anulam-se as inclinações naturais e da perso-nalidade mediante exercícios cruéis, originados de certaslutas marciais, deste modo, a pessoa entra na terceira eta-pa, na qual adquire os poderes para entrar na Via, onde nãohá limitação de tempo e de espaço: a perfeição. Somenteassim a pessoa se torna tolerante, amorosa, cumpridora dosseus deveres, também social, honesta até na ninharia, aten-ta às necessidades dos semelhantes. Enfim, um cidadão sé-rio, diligente numa sociedade de funcionários públicos.

Pode-se admitir que a Mente aprove tais manifesta-ções virtuosas, mas somente como efeitos de um espíritoque almeja uma beatitude definida. É suficiente uma ob-servação. A Mente se compara a um viajante parado naborda da estrada, que espera e depois se une a outros via-jantes que sobrevêm, escuta em silêncio as conversas de-les, se faz interlocutor, aceita o convite a uma parca refei-ção. Neste episódio é revelada a personalidade da Mente.Ela pretende uma troca de sentimentos puros e elevados,detesta a solidão e a monotonia, e oferece a sua perenepresença.

O convívio levanta sentimentos, os sentimentos esti-mulam os pensamentos criativos. Não há melhor explica-ção da difusão da vida na vasta realidade.

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A inspiração manifestou entre os helenos uma sin-gularidade tão surpreendente quanto útil: es-

tes, navegantes de cabotagem de longo curso, mercantesávidos e hábeis, dispunham sempre o ânimo ao útil. Pode-se supor que o fermento inspirativo os induziu a um sim-ples raciocínio:

— Se a razão nos ajuda nos escambos e na pirataria,por que não a usar para conhecer a realidade que nos cir-cunda?

No imaginário código dos conhecimentos humanos, ouso da razão é a primeira lei.

A inspiração causa, às vezes, efeitos inusitados. Alcan-ça mentes vácuas, assim como um fulgor repentino pene-tra o templo vazio mas ainda adornado com vestígios davelha tradição. É o suficiente: nasce uma nova religião, areligião é uma imitação à dos vizinhos. O novo profeta aadapta à própria natureza do seu povo e satisfaz o orgulhoda sua gente. Parece proclamar:

— É a nós que a Mente escolheu como seus predile-tos! — É o triunfo do pobre intelecto empurrado pelodestino geral que o escriba enriquece e adorna de frases àsjá pronunciadas.

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Se a imaginação humana quisesse quantificar o fe-nômeno inspirativo — admitindo que fosse pos-

sível –, diria: dois milhões de metros cúbicos de atmosferacarregada de fermentos liberada pela Mente foram apro-veitados pelos intelectos terrenos, centenas de decímetroscúbicos para estimular o conhecimento geral, pouquíssimosmilímetros para inventar e codificar religiões grosseiras eirracionais.

Na eternidade, passado, presente e futuro formamuma espiral composta de cenas semelhantes a fotogramasde um filme sem princípio e fim. Os fotogramas parecemrepetir-se com imperceptíveis variações, mas se compara-dos aos anteriores, do passado remoto, são completamen-te diferentes. É imprecisa a afirmação: “A história se repe-te”. Vale sim, captar os sentimentos que saturam a cena, osverdadeiros autores que animam os personagens. É assimque nasce o futuro.

Se uma consciência crítica coloca-se no meio da espi-ral dos fotogramas, acaba conhecendo o caminho da exis-tência.

— A observação não mostra ainda sinais do destinotraçado.

— A evolução é incipiente. A natureza precisa de mui-tas gerações para produzir uma mente humana que acumu-le e transmita um sem número de noções e experiências

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aos seus descendentes. Então, germinarão mentes críticasvanguardeiras e especulativas que introduzirão mudanças.Poderíamos ajudar o predileto com a nossa presença sensí-vel, com a palavra reveladora daquele que lhe é mistério,mas somos limitados pela moral que a nós impusemos: ne-nhuma intervenção, respeito à vontade alheia. Proceder aocontrário seria atribuir virtude à incoerência. Por enquan-to, usamos a inspiração aplicada à cultura humana.

— A evolução é sempre incipiente comparada às me-tas futuras; pois estabelecemos que a conclusão de um em-preendimento dá início a uma nova gênese.

— Mas Splendor aproveita dos intervalos e do respei-to aos limites traçados para desabafar o seu ressentimento.

— Exatamente.— Ele não cria, e nem pode, mas contraria os nossos

propósitos. Sabe o quanto é importante para nós o ho-mem, dele percebe a função no Cosmo, que nós lhe reser-vamos. Splendor aplica sobre ele as suas artes, não maissobre a natureza que tanto deturpou. Procede sempre damesma maneira: distingue na índole humana as inclinações,as satisfaz, destacando elementos culturais, exalta o orgu-lho com comparações absurdas, seduz o intelecto com fan-tasias impossíveis. O homem, assim enredado, não temoutro desejo que a satisfação da vontade. Assim, um dese-jo natural se torna vício, uma novidade se transforma emdepravação. Mas o capolavoro de Splendor consiste na po-luição do bom senso, com o exercício excessivo ou caren-te das mesmas virtudes. O homem continua ainda a julgara sua conduta em bem ou mal, desconhece ainda a justamedida das virtudes. É assim que nasce a fábula agradável,

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o mito glorioso. A difamação da divindade é sacralizada ese transmite às gerações como exemplo admirável. Con-ta-se que, no Egito, somos exterminadores vingativos eimpiedosos de crianças inocentes e de animais dóceis. So-mos suspeitos de favorecer poucos predestinados, em de-trimento dos muitos órfãos deserdados. Também somosconsiderados enganadores, por convencer o faraó a liber-tar os escravos sofridos, para depois endurecer-lhe o cora-ção e fazê-lo merecedor de um terrível castigo. Somos sus-peitos de sadismo por ajudar, durante a batalha, algumascriaturas a matar inimigos, também nossas criaturas. Sus-peita-se que temos inteligência curta e inconstante, por-que infringimos, a qualquer momento, as leis que impri-mimos na natureza, cometemos bobagens e negligências.Estas são as idéias propagadas, que a humanidade tem denós, a fim de que uma pequena facção dela constitua privi-légios. Assim, como reação, o extermínio de gente torna-se precedente valioso na consciência humana; a facciosidadeoculta nos ensinamentos é sintetizada na convicção de Gottmit uns, manifestada por todos os exércitos, justifica umaguerra por uma presumida justa causa, a eliminação de ino-centes solicita a purificação racial; a ira e a inconstância,atribuídas a nós, justificam as dos humanos. As ofensas nãonos tocam tanto quanto a sacralidade que o homem atri-bui aos defeitos.

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–A

ssim caminha a humanidade, desordenadamen-te, em direção à meta pré-fixada. A casualida-

de biológica gera mentes eleitas, que despertam o interes-se dos esquecidos e dos ingênuos. Pois não é com essa edu-cação mental que o homem pode entrar nos espaços evivificar os mundos. Se o fizer, leva consigo os germes dadestruição e da morte, e o Cosmo se transformará em umimane campo de batalha.

— As religiões são imperfeitas. Nelas, são sedimentadastradições populares, filosofias de duvidosa veracidade, in-teresses inomináveis, antigas vaidades, além dos sinais danossa inspiração. Une as religiões a fé, que não é igual paratodos, varia segundo a natureza dos indivíduos, quandodeveria ser a razão sadia e comprovada. Onde a razão nãochega, santa liberdade para todas as mentes, a fim de quealguém, com precisa dialética, demonstre a verdade. Aocontrário, as mentes dissidentes levantam contra si, moti-vando a inquisição e a fatwa. A aproximação de duas religi-ões desencadeia cruzadas e guerras santas; três ou mais reli-giões originam um sincretismo confuso e, às vezes, estúpido,ou a superstição infantil. Quantas religiões existem é dificí-limo dizer: a cada dogma, ordem incorreta ou vaidade doschefes, fragmentam-se, justificando seitas, congregaçõescismáticas, duplicidade de mando, variações teológicas, sus-citando santos, santões, xamãs, mártires, beatos, teólogosdoutores, livros sagrados, inspirações transcendentais, mi-

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lagres, visões coletivas, êxtases, prodígios et similia. E tudoisto não é capaz de estabelecer a unicidade da religiãomonoteísta, pois a razão nunca é consultada. Ao contrário,os ministros religiosos, vangloriando-se de serem infalíveise únicos possuidores da “verdade verdadeira”, impõem re-gras severas e obediência indiscutível aos fiéis. Assim, a féalcança o grau de fanatismo. Então, é como o passarinhoque fica preso na gaiola: quando é solto não consegue ga-nhar as alturas e acaba vítima dos predadores.

O homem atento aos problemas da vida, convencidode que a diabólica paranóia domina alguns dos semelhan-tes, observa, sorri, e passa adiante.

— A racionalidade deveria, há muito tempo, ter defi-nido a religião monoteísta: cósmica, universal, missionária,pacífica, tolerante, amorosa, compreensível para que to-das as mentes a compreendessem sem alegorias e sem ape-los emotivos sugestionáveis.

Seguiu-se o silêncio da reflexão, na qual o sentimentose transforma em conceitos, posteriormente em idéias epensamentos. Dominava o imperativo: Pensar para resolver.

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Vivia em uma região, entre o mar e a montanha,um homem de nome Job. Ele era equilibrado,

de muita experiência e de grande inteligência, gozava óti-

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ma saúde, tinha filhas e filhos amorosos e ativos que o aju-davam proficuamente na administração das suas riquezas,pois possuía grandes casas, terras férteis, armentos demuitas espécies, cuidados por uma multidão de servos fi-éis. Era de boa índole. Brincava, ria. Havia muitos amigosque disputavam a sua companhia para obter um conselho,um sinal de sua generosidade, uma opinião; formava-se umvozerio alegre. No anoitecer, em solidão silenciosa, agra-decia a Deus por cada dia, e pelos bens recebidos, mas, aci-ma de tudo, por possuir a sabedoria de entender o raciocí-nio divino. A Mente se comprazia louvando-o.

Os louvores chegaram ao conhecimento de Splendor,provocando-lhe amarga inveja.

— Job adquire méritos, porque a inteligência o guiacorretamente. Aumenta seus bens e goza de bons senti-mentos que lhe são dirigidos pelos filhos, amigos, mulhe-res e servos. Percebe a mão carinhosa do Criador a afagar-lhe a cabeça. Tudo é fácil, e lhe sorriem sempre magníficospensamentos. Mas, se ele fosse mortificado, posto de ladocomo aconteceu comigo, perderia a sua leveza de ser e blas-femaria o dia inteiro. — O pensamento o conduziu sobreum outro argumento. — Este é um caso de destino deter-minado da conjuntura de muitas qualidades em uma únicapessoa, favorecida pelas contingências; caso raro, mas pos-sível. Nenhuma força pode tirar ou arruinar o que foi dadoa Job. Esta é uma lei indiscutível. — Silenciou longamenteporque lhe nascia uma nova idéia. — Nesta realidade, exis-tem casos pendentes de várias naturezas, que favorecemtodas as possibilidades. — E a sua intuição começou a dis-tinguir alguns casos, aqui e acolá.

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Então, Splendor começou a soprar contra Job. Pri-meira coisa, empurrou os agentes do morbo contra a so-gra. A velha era fraca e morreu rapidamente. Job lamen-tou a perda e agradeceu a Deus tê-lo livrado das lamúriasda mulher.

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Depois, os ladrões, de passagem pela redonde-za, praticaram abigeato contra o seu gado; Job

não se perturbou. Mais tarde, nômades lhe invadiram ca-sas e terrenos. Job tolerou. A seguir, a casualidade malig-na levantou-se contra os filhos, que se afastaram do pai.Enfim, a sua saúde começou a declinar. Entre úlceras eentumecimentos, a doença se revelou ser lupus: sentia-se fraco, emagrecia rapidamente e assumia um aspecto de-formado e repugnante. Os amigos e vizinhos fugiam delepor causa do seu estado. Job, humilhado, sem força e autoestima, refugiou-se na Geenna, uma vala fora da cidade,onde o fogo perene queima a imundície. Aí, cobriu o cor-po de cinza e, chorando como criança abandonada, lar-gou-se sobre o lixo. Invocou Deus, pediu o fim da prova,e concluiu:

— Qualquer que seja a Tua decisão, venha rapidamen-te, porque a carne é podre, e o espírito vacila.

Mas Deus não lhe respondeu.

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Chegaram a ele três velhos amigos, fiéis também nadesventura. O primeiro, que ficou a boa distância, pelomedo do contágio, pediu-lhe:

— Peço que me digas, quais pecados cometeste longedos olhos do mundo, para merecer semelhante castigo?

Job dilacerou as faces e deformou as pálpebras:— Até isto!O segundo curvou-se sobre ele, e o exortou com voz

amiga:— Todos nós sabemos da tua retidão e polidez. Le-

vanta-te, invoca Deus para que explique o motivo destadesgraça.

O terceiro, de cócoras, pôs a mão direita sobre a ca-beça coberta de crostas para transferir-lhe, com o calor, asua convicção:

— Tem fé! Nenhuma dor, nenhuma desventura sãoperenes. Deus tem razões que a razão humana ignora. Crêno que te digo, a tua situação não é um ato cruel ou umdivertimento de Deus misericordioso, mas um mistério quenão sabemos entender.

Depois do adeus dos amigos, Job levantou a cabeça eencontrou forças para rezar:

— Agradeço a ti, Deus, que tem mente imperscrutá-vel, para o conforto que me dás! — e precipitou o rostonos excrementos.

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À noite, a fraqueza o venceu: Job afundou nosabismos do sono. Sonhou muitíssimo. Sendo que

ele conservava na consciência e na memória, palavras, sen-timentos puros e uma vida justa, com os quais a imaginaçãoinspirada podia compor qualquer seqüência. Todos os seussonhos eram lógicos, permeados de visões doces e amoro-sas. Das neblinas do passado, saíram lembranças remotasde quando menino, no pasto com as ovelhas. Supino sobrea grama, com as mãos cruzadas embaixo da nuca, observa-va uma nuvem branca e brilhante como a neve iluminadapelo sol. Ela se inflava, se alongava, mudando de forma con-tinuamente. A Job era fácil ver imagens: primeiro, uma pal-meira descabelada, mais tarde, um boi com corcova e lon-gas babas. Provou aquele sentimento risonho, de quando opai, serenamente, lhe despenteava os cabelos com a mãoleve. Da nuvem se destacaram fragmentos, que se disper-saram em todas as direções, como pombas temerosas; atrás,era o sol que radiava passante. Enfim, a nuvem adquiriu oaspecto do progenitor, quando se apoiava em ânforas devinho e em rolos de lã tecida, com olhar compreensivo,barba fluente, que se movia pelo respiro profundo, o ar-mazém obscuro parecia iluminado em volta dele.

Mas não era ele.— Filho herói, que seja restabelecido o curso natural

dos eventos. Tudo o que tu sofreste é uma dolorosa magiado impotente invejoso. No meio dos sofrimentos, amaldi-

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çoaste o dia do teu concebimento, mas tu não imaginas quantoas futuras gerações te serão agradecidas. Tu pensaste que eufosse sádico ou omisso, em nenhum momento pensaste queeu sou mente racional e prática, que prova e reprova as suasfórmulas. Filho paciente, com a tua fé, ignorante e obstina-da, tens demonstrado que o homem, na solidão obscura, nosilêncio gélido, sobrevive porque o anima a esperança de umavida melhor. Agora Job, levanta-te dessa condição miserá-vel, purifica-te nas águas do riacho, restabelece as coisas,como eram antes da magia nefasta, toma posse de novos síti-os desertos, e aí estabelece a vida. Depois vem comigo par-ticipar das minhas intenções: a ciência do futuro, junto a no-vos sentimentos, são motivo de perpétuo gozo dos espíritos.

— Job acordou repentinamente. O ar frio da madru-gada lhe encheu os pulmões, dilatando-os; percebeu a ener-gia a irromper dos músculos peitorais e das quentes pal-mas das mãos. Ergueu-se, saiu da Geenna, e se limpourepetidamente do lupus, da sarna e das pragas nas águasclaras e saneadoras. Todos os vestígios das doenças sumi-ram. Um pastor vendo-o de longe, assim animado, lhe foiao encontro, contente:

— Patrão, tu lembras de mim? Salvei da peste e doabigeato o gado, o melhor e o mais forte.

— Dá-me uma túnica, um cinto, umas sandálias, e vemcomigo. — Pelo caminho, ordenou — Depois, chama ser-vos e amigos!

Eles vieram e receberam outra ordem:— Preparai argumentos válidos e longos bordões, para

reaver terras e casas. Contra o abuso e a opressão prevale-ce sempre a razão.

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Depois, encontrou as mulheres abandonadas peloshomens:

— Levai-nos convosco: As jovens são mães prolíficas,para povoar sítios desertos, as anciãs, boas parteiras e cozi-nheiras.

Job aceitou:— Vinde conosco, mas deixai as mães, pois é dever de

todos nós preservar a paz doméstica!Enfim, encontrou os três amigos da desventura:— Dos acontecimentos, muitas vezes desconhecemos

o motivo, mas não devemos desanimar, porque a Menteraciocina sobre o fio sutil da lógica. Agora todos comigo:preparai ovelhas, pombas, assai-os sobre a ara dos sacrifí-cios, reparti-os entre nós juntamente com os pães, eleve-mos copos com vinho para celebrar com alegria que agradaa Mente este dia de ressurreição.

— Agora, é necessário que o homem saiba e cumpra oescopo da realidade, pois a sua fibra resiste à prova maisdifícil.

— Porém, tem que melhorar. Ele é ainda grosseiro,de juízo incerto, nem sabe aplicar corretamente virtudes esabedoria.

— Devemos ensinar-lhe uma nova filosofia de vida,educá-lo com o exemplo. O exemplo é mais eficaz do quea palavra.

— Talvez alguns profetas de vasta cultura e de dizerclaro.

— Oh os profetas deslumbrados! O que sabem dosnossos desejos e vontades. Eles descreveriam prodígios e

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castigos mirabolantes, argumentos para novos dogmas e mis-térios extravagantes, multiplicando assim as interpretações,e adensando o obscurantismo. Não existe material mne-mônico no espírito do homem que possa descrever os nos-sos anseios. Nenhum homem saberá, a não ser junto de nós.

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— M

ais uma vez somos limitados pelos nossosprincípios. Portanto:

participar sem ser presente;propor sem impor;convencer sem vencer;ser exemplar, sem ser enigmático.

— Temos definido o conceito.— As idéias seguintes devem conciliar-lhe termos e atos.Como se fossem serpentinhos num emaranhado, se

liberaram algumas cabeças, que tendiam em todas as dire-ções; depois se uniram, entrelaçando-se ordenadamente.

— Se nós quiséssemos, mas não queremos infringir osprecedentes propósitos, uma pessoa como nós poderia tra-zer aos homens a palavra e o exemplo.

— Para ser como eu, pessoa distinta, ele também co-meteria violação dos nossos propósitos.

— ... Verdadeiramente... Mas ele, nascido e arraiga-do na carne, entre os homens, desconhecendo a sua natu-

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reza por um tempo, seria também homem. Na idade ma-dura, vencidas as seduções naturais, a percepção sensibilís-sima lhe revelaria a sua verdadeira natureza.

— Mas o homem vive no seu estado, do qual dificil-mente se eleva: satisfazer gordas necessidades, controlarimpulsos carnais abomináveis, afastar vicissitudes imundas...E para ser homem, deve superar a agonia, tremendos mo-mentos de aniquilamento da realidade e do seu corpo, pe-rante a sua consciência perene, de solidão absoluta, na qualo espírito se gela e se fende. É o apocalipse que deve serafrontado sozinho, ninguém pode ajudar.

— Será uma prova dificílima, a última, mas não pode-remos ajudar.

Seguiu-se o silêncio das decisões. Depois, a Mente dis-se ao Pari:

— Propaga, entre as gentes, inspirações e sinais donovo princípio, pois não há possibilidade de uma combina-ção genética gerar a pessoa distinta desejada. Toma a essên-cia com as virtudes que são a minha pessoa e distingue-asde como o filho procede do pai. A mulher casta escolhida ainspirará, dando corpo e início ao evento.

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O Pari, recebidas as virtudes e a essência, as se-meou com cuidadoso amor sobre a escolhida,

numa aldeia do país das religiões.

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A Mente observava os fotogramas seguramente possí-veis do destino.

— A incerteza é jogada: agora a grande utopia da vidainteligente no Nada pode começar a se realizar.

E resumiu:— Hominideus... Homo... erectus, abilis, sapiens,

Homo sidereus, Homo propagator vitae...

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Breve História da Realidade continua emVôos, obra que complementará os conceitosaqui expostos.

GioGa