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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA HAGIOGRAFIA E PROCESSO DE CANONIZAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO TEMPO DA SANTIDADE DE TOMÁS DE AQUINO (1274-1323) Autor: Igor Salomão Teixeira Orientador: José Rivair Macedo Porto Alegre 2011

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A canonização de Tomás de Aquino ocorrida entre 1319 a 1323, pelo Papa João XXII

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA HAGIOGRAFIA E PROCESSO DE CANONIZAO: A CONSTRUO DO TEMPO DA SANTIDADE DE TOMS DE AQUINO (1274-1323) Autor: Igor Salomo Teixeira Orientador: Jos Rivair Macedo Porto Alegre 2011 IGOR SALOMO TEIXEIRA HAGIOGRAFIA E PROCESSO DE CANONIZAO: A CONSTRUO DO TEMPO DA SANTIDADE DE TOMS DE AQUINO (1274-1323) Teseapresentadaparaaobtenodottulode DoutoremHistria.UniversidadeFederaldo RioGrandedoSul.InstitutodeFilosofiae CinciasHumanas.ProgramadePs-Graduao em Histria. Orientador: Jos Rivair Macedo Porto Alegre 2011 AGRADECIMENTOS EstatesefoirealizadacomaconcessodeduasbolsasdepesquisadaComissode Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Na primeira ocasio, uma bolsa no Brasilcomduraode9meses.Nasegunda,umabolsanoexterior(PDEE)entre2009e 2010, para estgio na cole des hautes tudes en sciences sociales em Paris. Esta tese foi concluda com um sabor muito especial. Ela a porta de entrada para um sonho pessoal e profissional.Porisso que agradeo o prof. Jos RivairMacedo.Agradeo o suporte, o apoio e o incentivo. Agradeo ao prof. Sylvain Piron, que me tranquilizou sobre a burocracia na chegada Frana e foi decisivo nos encaminhamentos das leituras e anlises da documentao. O professor Alfredo Storck tambm foi pea essencial. Do incio ao fim.A profCybele Crossetti e o prof.Nilton Pereiraforam dois parceiros do I Encontro Estadual de Estudos Medievais. Empreitada que realizamos com a ajuda essencial de muitos. Foicomelesquedividiatensooramentriaepr-publicaodolivroReflexessobreo medievo. Aos colegas do GT Estudos Medievais, no nome da professora Carlinda Mattos. Em relaostraduesparaolatimconteicomoauxliodoCassianoMalacarne.Muito obrigado.AgradeoaoDEBASdaFACED/UFRGS.Agradeoovotodeconfianaqueme foi dado pelos profs. Atansio, Miliandre e Rodrigo na UFVJM, muito obrigado. Esta tesefoiconstrudaeapresentadaduranteoscongressososquaisfelizmentetive oportunidadedeparticipar.PorissonopossodeixardeagradeceraosprofsPauloSodr, Geraldo Fernandes eAri Sacramento. Sei queesto nalista dosmaisfelizes.Em especial, o prof.MrcioMuniz,quefoioprimeiroamedarumvotodeconfiananarea.O agradecimento tambmdirecionadosprofas.AndriaFrazoeLeilaRodrigues.Grandes incentivadoras. Parceiras com quem espero que os projetos comecem a sair do papel. SemCarolFortesa teseseriaoutra.Seriatese?Elameemprestalivros,documentos, apartamento...atafamlia:Anna,D.Marta,Sr.Juvenal,Mrcio,Tiago,Sofia.Muito obrigado, Carol! s a prova que uma tese no se faz sem amigos nem parceiros intelectuais.DaPaulaeutambmroubeiafamliaeencontreigrandeconforto:D.CereseSr. HaroldojseacostumaramcomminhapresenaIssoincluiosdiasemqueligoparalpor engano. Outra integrante da minha famlia carioca a Raquel, que est sempre por perto. Aosamigosgachosmeumuitoobrigado.Aaprovaonoconcursometrouxe mente uma cano dos anos 80: eu to voltando pra casa outra vez!. Voltar para Porto Alegre nas condies em que este retorno est acontecendo muito bom. E s me sinto voltando pra casaporqueumacasasefazcomafamliaqueagenteescolhe:Nina,Michele,Dbora, Viviane,Ricardo,Evandro,Eliete,oprimeiroconselhodaAedos,Blank,Clber,Leandro, Carla,Andr...oAndrgacho?Virou,n!Fomosadotadosporesta terra.Terraestaque tambmmeapresentouumasegundacasa:afamliaKoch.Fredy,vocliteralmenteesteve presentedesdeoprimeirodiadodoutorado.DeuoapoionaidaParisemostrou-se compreensvelnomomentodepassarjuntocomigopelasconsequnciasqueestaescolha representou.HafamliaparisiensedaviladoChaves:Flvia,Lgia,Gustavo,Paula,Ricardo, Mnica, Vernica, Fernanda, Marta, Marnes, Jean-Sbastien, Nacho, Fran, Gilberto, Rodrigo, Guilhermevivemosjuntostodososdramasprovocadospeloscomputadores.Ocaptulo2 foi escrito em computadores de 3 pessoas diferentes! Pessoas acidentalmente apaixonadas. Por fim, minha famlia mineira. Meus amigos Igor, Csar, Accio, Sid, Tina,Walker. Pessoas que me veem com uma irregularidade abusiva para quem quer ser chamado de amigo. s pessoas que me adotaram 10 anos depois: Rafaela, Theo, Igor Decnop...Agradeo tambm aos colegas e alunos da FENORD. Agradeo casa de tia Berna expandindo para vrias outras: do Roge, do tio Zilton, dotioCristvoedatiaNeusa,daMarcinha...TiaBernaeTioLussomaisdoquetios. SuasfilhassomaisqueprimaseClarissamaisqueirm.Sehteseesehouveuma aprovaonoconcursofoiporquehouveacasadetiaondeestudei,espalheilivrose descontra na medida exata. Agradeo ao meu cunhado Canto. Ele foi o primeiro a investir na tese ao financiar a compra dolivro que deu origem a tudo.Minhairm Roberta, torcedoraincondicional. Todo tipodeapoiotambmrecebodaminhairmCarolina.MeuirmoAndreminhacunhada Llianmetransformaram.Deirmocaulapasseiatioedindo.Doisttulosquemedeixam sorrindodeorelhaaorelha...ttulosvindosdedoistesouros,VivieMiguel.Asaudadedi quandopensoneles.Outrairmpreencheuaausnciacomtelefonemasecomafamliaque construiu. Aline, Fredson, Henrique e Heitor. Obrigado a vocs todos. Nabasedetudo,minhasavsDoraeNasaemeuspais.Nuncaquestionaramnada almdoissomesmoquevocquerfazer?Entofaa!.Venividivici.Me,Paiofilho cauladevocsnovaiemitirreceitamdica,nemdefenderalgum,nemconstruirum prdio, mas vai ser doutor e eu sei o quanto isso importante para vocs. E mais importante ainda: eu sei que vocs sabem que isso importante para mim. Amo vocs. Diamantina, agosto de 2011. Dedico aos meus pais, Clia e Roberto. Quem sabe, para compreender melhor os acontecimentos em que me achei envolvido, bom que eu recorde o que andava acontecendo naquele pedao desculo,domodocomoo compreendi ento,vivendo-o, edomodocomo rememoroagora,enriquecidodeoutrasnarrativasqueouvidepoisse que a minha memria estar em condies de reatar os fios de tantos e to confusos eventos. DesdeosprimeirosanosdaquelesculoopapaClementeVtransferiraa sede apostlica para Avignon deixando Roma s voltas com as ambies de senhoreslocais:egradualmenteacidadesantadacristandade transformara-se num circo, ou num lupanar, dilacerada pelas lutas entre os seus maiores [] Eispoisquenoanode1314cincoprncipesgermnicoselegeram,em Frankfurt, Ludovico da Baviera regente supremo do imprio. Mas no mesmo dia, na outra margem do Meno, o conde palatino do Reno e o arcebispo de ColoniatinhameleitomesmadignidadeFredericodaustria.Dois imperadores para uma nica sede e um nico papa para duas: situao que se tornou, na verdade, incentivo para grande desordem DoisanosdepoiseraeleitoemAvignononovopapa,JacquesdeCahors, velho de setenta e dois anos, justamente com o nome Joo XXII, e queira o cuquenuncamaisumpontficeassumaumnomeassim,jtomalquisto pelosbons.FrancsedevotadoaoreidaFrana(oshomensdessaterra corrompidaestosempreinclinadosafavorecerosinteressesdosseus,e so incapazes de olhar para o mundo inteiro como sua ptria espiritual), ele haviasustentadoFilipe,oBelo,contraoscavaleirostemplrios,queorei acusara(creioqueinjustamente)devergonhososcrimesparaapoderar-se de seus bens, cmplice aquele eclesistico renegado. [] Em1322Ludovico,oBvaro,batiaseurivalFrederico.Aindamais temeroso de um nico imperador, do que o fora de dois, Joo excomungou o vencedor,eeste,emcontrapartidadenunciouopapacomohertico. precisodizerque,justamentenaqueleano,tiveralugaremPergiao captulodosfradesfranciscanos,eogeraldeles,MicheledeCesena, acolhendo as instncias dos espirituaisproclamara como verdade de f apobrezadeCristo,que,setinhapossudoalgumacoisacomseus apstolos, Ele a tivera apenas como usus facti. Digna resoluo, que visava salvaguardaravirtudeeapurezadaordem;masquedesagradou sobremaneiraaopapa,portalvezentrevernissoumprincpioqueteria posto em risco as mesmas pretenses que ele, como chefe da igreja, tinha de contestaraoimprioodireitodeelegerbispos,encampandoparaosacro slioodeinvestiroimperador.Fossemessasououtrasasrazesqueo moviam,em1323Joocondenouasproposiesdosfranciscanoscoma decretal Cum inter nonnullos. (Umberto Eco. O Nome da Rosa, 1986. p.23) Procurarei dizer deles o que compreendera, ainda que no esteja certo de faz-lo bem (Umberto Eco. O Nome da Rosa, 1986. p.67) RESUMO Esta tese temcomo temaprincipalacanonizaodeTomsdeAquinoocorridaentre1319-1323.Apartirdosdoisinquritosquecompemoprocessodecanonizaoedaprimeira hagiografiasobreotelogo,asaber,aYstoriasanctiThomeAquino,escritapelotambm dominicanoGuilhermedeTocconocontextodacanonizaodefendemosqueoprincipal interessado no reconhecimento oficial da santidade de Toms era o papa Joo XXII. Para isso foirealizadoumprocessoinquisitorialcomcaractersticasespecficiasemrelaoaos processosrealizadosnomesmoperodo.Chegamosaessaconclusoapartirda instrumentalizaooperadapeloconceitodetempodasantidade.Trata-sedaconsiderao do perodo que compreende o momento da morte, da abertura do processo e a deciso para a canonizaodemodoretroativo,ouseja,adatainicialparaoconceitoadatada canonizao.NocasodeTomsdeAquino,otempodasantidadedurou49anos. Considerando os processos de santos de ordens religiosas a partir da canonizao de Francisco de Assis ao pontificado de Joo XXII, o inqurito sobre o telogo dominicano revela alguns indcios que extrapolam o mbito da santidade e da crena em milagres. Sendo assim, a partir da idia da santidade como uma construo social tambm defendemos o uso daquele tipo de documentao para estudos de histria social. Nos trs captulos de nosso estudo os princpios metodolgicosdahistriacomparadaedahistriaintelectualestruturamapropostaque tambm se insere no campo dos estudos de antropologia escolstica. Palavras-chave:TomsdeAquino,TempodaSantidade,JooXXII,Ordemdos Pregadores, Processos de Canonizao, Hagiografia. RSUM CettethseapoursujetprincipallacanonisationdeThomasdAquinintervenuede1319 1323. A partir des deux enqutes que comprend le procs de canonisation et du premier texte hagiographiquerelatifcethologien,savoir,la Ystoria sanctiThomeAquino,critepar Guillaume de Tocco, lui aussi dominicain, au cours de la canonisation, nous soutenons que le papeJeanXXIIfutleprincipalintressparlareconnaissanceofficielledelasaintetde ThomasdAquin.Eneffet,leprocsinquisitorialprsentedescaractristiquesspcifiques, comparauxprocsinstruitslammepoque.Nousaboutissonscetteconclusionau moyen de lapplication du concept detemps de saintet. Il sagit dun tableau de temporalit comprenantlemomentdelamort,celuidelouvertureduprocsetenfindeladcisionde canonisation.DanslecasdeThomasdAquin,le tempsdesaintet dura49ans. Considrantlesprocsdesaintsissusdordresreligieux,depuislacanonisationdeFranois dAssisejusquaupontificatdeJeanXII,lenquterelativeauthologiendominicainrvle quelquesindices qui dpassent les champs delasaintet et de la croyance auxmiracles. Ds lors, partir de lide de la saintet comme tant une construction sociale, nous promouvons aussilemploidecetypededocumentationdanslestudesdhistoiresociale.Danslestrois chapitres de notre tude, les principes mthodologiques de lhistoire compare et de lhistoire intellectuellestructurentlapropositionquesinscritaussidanslechampdestudes danthropologie scolastique. Mots-cls :ThomasdAquin,Tempsdesaintet,JeanXXII,OrdredesPrcheurs, Procs de canonisation, Hagiographie. ABSTRACT

ThisthesishasasprincipalsubjectthecanonisationofThomasofAquinowhichoccured from1319to1323.Takingintoaccountthetwoinquirieswhichcomprisesthetrialof canonisationandthefirsthagiographictextofthelifeofthetheologian,the Ystoriasancti ThomeAquino writtenduringthecanonisationbyWilliamofTocco,himselfalsoa Dominican,weaffirmthatthepopeJohnXXIIwasthepersonwiththemostinterestinthe officialrecognitionofthesanctityofThomasofAquino.Indeed,theinquisitorialprocess presentscertainspecificcharacteristicsincomparisonwithotherprocesses instructed during thesameperiod.Wearrivetothisconclusionbyapplyingtheconceptoftimeofsanctity, which is a timetable comprising the moment of death, the one of opening of the process, and finally the decision of canonisation. In the case of Thomas ofAquino, thetime of sanctity lasted 49 years. Considering the processes of saints originated from religious orders, from the canonisation ofFrancisofAssisionto thepontificate ofJohnXII, theinquiryregardingthe Dominicantheologianshowssome aspects which exceed thefieldsofsanctityandbeliefin miracles.Fromthenon,consideringtheideaofsanctityasasocialconstruction,we also promote theuseofsuchdocumentation inthestudyofsocialhistory.Inthethree chaptersofourstudy,themethodologicalprinciplesofcomparedhistoryandofintellectual history structure this proposition which also finds its place in the field of studies on scholastic anthropology.

Key-words:ThomasofAquino,Timeofsanctity,JohnXXII,OrderofPreachers, Processes of canonisation, Hagiography. RESUMEN LapresentetesistieneporobjetoelestudiodelacanonizacindeSantoTomsdeAquino que tuvo lugar entre los aos 1319-1323. Partiendo de las dos investigaciones que componen elprocesodecanonizacinydelaprimerahagiografasobreeltelogo,asaber,laYstoria sancti Thome Aquino, escrita por el tambin dominicano Guilherme de Tocco en el contexto de la canonizacin, defendemos que el principal interesado en el reconocimiento oficial de la santidad de Toms fue el papa Juan XXII. Para ello se llev a cabo un proceso inquisitorial de singularescaractersticasenrelacinaotrosprocesosrealizadosenelmismoperiodo. Conclusinalacualllegamosmediantelainstrumentalizacindelconceptodetiempode santidad,lapsotemporalquecomprendeelmomentodelamuerte,laaperturadel procedimiento yla decisin dela canonizacin. En el caso de Toms de Aquino, ese tiempo desantidadfuede49aos.Considerandolosprocesosdesantificacinenlasrdenes religiosas a partir de la canonizacin de Francisco de Ass hasta el pontificado de Juan XXII, lainvestigacin del telogo dominicano revela algunosindicios que sobrepasan el mbito de la santidad y de la creencia en milagros. En consecuencia, a partir de la idea de santidad como construccinsocialdefendemosademselusodeestetipodedocumentacinparalos estudios de historia social. En tres captulos sustentados enlos principios metodolgicos de la historiacomparadaylahistoriaintelectual,estructuramosunapropuestaquetambinse inserta en el campo de estudios de la antropologa escolstica. Palabrasclave:TomsdeAquino,Tiempodesantidad,JuanXXII,Ordendelos Predicadores, Procesos de Canonizacin, Hagiografa. NDICE DE TABELAS Tabela 1: Processos de Canonizao entre 1198-1431p.19 Tabela 2: O tempo da santidade entre 1209-1325p.21 Tabela 3: Processos de Canonizao durante o Papado de Avignonp.37 Tabela 4: Relao entre milagres narrados e itinerrio de Guilherme de Toccop.55 Tabela 5: Depoentes entre 23 de julho e 18 de setembro de 1319 no Palcio Episcopal de Npoles p.56 Tabela 6: Lugar de origem dos interrogados em 1319p.57 Tabela 7: Leigos e religiosos interrogados em 1319p.57 Tabela 8: Interrogados em 1321p.58 p.59 p.60 Tabela 9: Frades Pregadores Interrogados em 1319p.77 Tabela 10: Hagigrafos Dominicanosp.94 Tabela 11: Hagiografias Dominicanasp.96 Tabela12:NmerodeinterrogadosparaacanonizaodeTomsdeAquinoe Nicolas de Tolentino (1319-1325) p.111 Tabela 13: Nmero de interrogados nos processos de Toms deAquino e Nicolas de Tolentino divididos por gnero p.111 Tabela14:Ordensreligiosas/funoclericaleleigosinterrocadosentre1319-1321 sobre Toms de Aquino p.112 Tabela15:Ordensreligiosas/funoclericaleleigosinterrocadosem1325sobre Nicolas de Tolentino p.112 Tabela 16: Pro e Contra Toms de Aquino nos primeiros 10 anos ps-mortep.118 Tabela 17: Consultas feitas por Joo XXII (1318 e 1333)p.124 SUMRIO Introduop.15 Captulo 1: Como se constri um santo? Fontes para a Ystoria sancti Thome de Aquino p.35 Captulo 2: Toms de Aquino, um santo dominicano? p.67 Captulo 3: O tempo da santidade: Uma canonizao Teolgica de Toms de Aquino? p.107 Concluso p.130 Referncias bibliogrficas p.135 Anexo p.164 15 INTRODUO Nosdesantitatevit,acmiraculorumveritate,Confessorisejusdemnomsemel tantum,sedprimo,&secundo; nonfestim,sed matureinquirifecimus;&per nos etiam,&FratresnostrosSanctRomanEcclesiCardinales,inquisitionem hujusmodi,exactadiscussione,examinavimusdiligenter,uttantofirmius,quanto maturius, tanto certius, quanto disquisitius inquisitum & examinatum existeret, in sic arduodifficiliquenegotioprocederevaleremus.Difficilia nquestimamusquin terra sunt, & qu in prospectu sunt, invenimus cum labore, qu autem in Clis sunt, quisinvestigabit?Cumqueperhujusmodinostram&eorundemFratrumnostrum examinationemsollicitam,&sollicitudinemexaminatam,vitamejussanctam,& miraculaveraejusmeritisfacta,probataesseconstitit,&supplicantibusnobis idipsumhumiliter,&devotemultistuncPrlatisapudSedemApostolicam existentibus,dedictorumFratrumnostrorumconsilio&assensu,auctoritateDei omnipotentis,Patris,&Filli,&SpirituSancti,acBeatorumPedri&Pauli Apostolorumejusacnostra,eumSanctorumConfessorumCatalogoduximus ascribendum.1 Eis que no dia 18 de julho de 1323, uma solenidade reunia o Papa, cardeais, nobres e mendicantes para celebrar a memria do mais novo santo reconhecido pela Igreja. Homens e mulherescomoaRainhadaSicliaque,porvoltade1317,iniciaramumaempreitada solicitandoaopontficeJooXXIIumainvestigaosobreasantidadedoFreiTomsde Aquino,daOrdemdosDominicanos.Nalongacitaoqueantecedeaestetextotemoso desfechofavorvel paramais umafesta dedicadaa umsanto. O Papa nosinforma que, aps receber pedidosfeitos por nobres emuitos devotos para examinar avida santa e osmilagres queestavamsendoconsideradosmritosdaqueleFrei,umainquisiofoirealizada, examinada e que, a partir desua autoridade divina, sendo comprovadas as suspeitas, deveria ser inscrita no Catlogo dos Santos Confessores a santidade, bem como a festa do Frei Toms de Aquino. 1IOANNESEPISCOPVS.CanonizatioS.ThomaedeAquinoCivitateprovinciaeCampaniae,professoris OrdinisFratrumPraedicatorumS.Dominici,ejusquerelatioinnumerumSanctorumConfessorum,com institutione suae festivitatis pro die 7 Martii. Apud: BULLARIVM ROMANVM: B. Leone Magno, vsq; ad S.D.N. ClamentemX.Opusabsolutissimum,LaertiiCherubiniPraestantissimiI.C.RomanieD.AngeloMaria CherubinoMonacoCassinensiealiisillustratumeauctum. Editio novssima.Quinquetomisdistributa,vitis& IconibusaeneisomniumPontificumexornata.Lugduni:SumptPetriBordeIoannis&PetriArnaud, MDCLXXXXII,p.228.Traduolivre,realizadaporCassianoMalacarne,aquemagradeo:"Ns,sobrea santidadedavida,edaverdadedosmilagres,aosconfessoresdelenosomenteumavez,masduas;no precipitadamente, mas no tempo certo fizemos ser inquiridos; e por ns tambm, e pelos nossos Irmos Cardeais da Santa Igreja Romana, a investigao do mesmo modo, em cuidadosa discusso, examinamos diligentemente, tantofirmementequantoprudentemente,tantoseguramentequantoainvestigaoinquiridaeexaminadase tornasse, nessadessemodorduaedifcilcausadecidimos intentar.Ora,secomdificuldadeavaliamosquena terra exista, e que para a viso exista, descobrimos com trabalho, que porm sejam do cu, como investigar? Em qualquercasooucircunstnciaporessenossomodoedaquelesnossosIrmosoexameatento,eocuidado escrupuloso, a vida daquele santo, e os seus milagres verdadeiramente feitos com mrito, so provados existirem, suplicando a ns, conjuntamente em humildade, e em devoo com os muitos Prelados que ento so existentes naSApostlica,sobreasdeclaraesdenossosIrmos,comconclioeaprovaocomaautoridadedeDeus onipotente, do Pai, e do Filho, e do Esprito Santo, e dos Beatos Apstolos Pedro e Paulo daquele e nosso, aquele Catlogo dos Santos Confessores consideramos incorporado". 16 A Bula pode ser dividida em duas partes: a primeira trata da vida do Frei e a segunda apresenta os milagres reconhecidos e que atestam, portanto, sua santidade. Toms de Aquino apresentado como membro da Ordem dos Pregadores e doutor em Teologia. Sabemos que se dedicavaerudioeescritaequenoeraocioso.Humilde,casto,parcimonioso.Um telogoqueforaconvocadopeloPapaGregrioXparairaoseuencontroeque,durantea viagem,ficoudoentenadiocesedeTerracina,prximaaoMosteirodeFossanova.2Alm disso,oPaparelataqueapssetemesesdamorte,ocorpodoFreiToms,queestavana CapelaS.StefanodaqueleMosteiroseriatransladado.Porm,nodiadaexumao,in aperturaipsiussepulchri...tantafrangrantisodorissuavitasemanavit,quodtotamCapelam Claustrumque ipsius Monasterii, quod diffusum est, mira eadem suavitate replevit.3 Oannciodoodoroprimeiroindciodesantidade4.Nestecaso,marcaoincioda segundapartedaBulaque,almdorelato,apresentadezmilagresoperadospelosantoaps suamorte.Todostmemcomumoacontecimentoprximoousobreasepultura,ou,em algunscasos,apstocarasrelquiasdosanto. Emummilagre,TomsdeAquinocurouum homemqueteveumavisodeumfantasmaequeficoucomumproblemanosps.Aoser levado sepultura do santo, ficou curado. Tambm curou outra dor nos ps, que impedia um homemdeandar;curoudoresfortesnobraodireitodeumconversoedoresnagarganta. Eram homens, mulheres, crianas, religiosos e leigos.5 Esteoobjetodeestudodapresentetese:aCanonizaodeTomsdeAquino. Procuramosabordardiferentesaspectosque,emconjunto,permitemexplicaro funcionamento de um processo. Era necessria a autorizao papal e a mobilizao de pessoas interessadasnaoficializaodeumcultoprestadoaalgumporsuaexcepcionalidade,tanto em vida, quanto aps a morte. Os resultados: a inscrio do nome do santo no calendrio das festas da Igreja e a oficializao de uma narrativa biogrfica. Noprojetodeteseanunciamosque,apartirdaprimeirahagiografiasobreTomsde Aquino,ouaYstoriasanctiThomedeAquino,escritaporGuilhermedeTocco,earelao desse texto com outros escritos hagiogrficos elaborados e compilados no seio da Ordem dos Dominicanos, da qual fizeram parte tanto o santo quanto aquele que escreveu sobre sua vida, nossoprincipalobjetivoeracompreenderasrelaesentreaquelaOrdemeopapado,bem como colocar em perspectiva ahagiografia dominicana: os argumentos, ostopoi narrativos e 2 IDEM. Ibid. p. 226. 3IDEM.Ibid.p.227.Traduolivre:naaberturadesuasepultura[]tantafragrnciacomodorsuave emanava,quetodooclaustrodacapeladaquelemosteiro,quedifuso,estavarepletadaquelasuavidade.... Grifos meus. 4 ALBERT, J-P. Odeurs de Saintet: la mythologie chrtienne des aromates. Paris: EHESS, 1990. 5 IOANNES EPISCOPVS. Canonizatio S. Thomae de Aquino op. cit. pp. 227-228. 17 recursos retricos. Isto porque, para o perodo no qual a Ystoria foi elaborada, as concepes sobre santidade, milagre e a escrita hagiogrfica passavam por modificaes. UmadenossashiptesesadequeaconstruodasantidadedeTomsdeAquino deu-seapartirdautilizaodeaspectostradicionais,fazendodesteumsantotaumaturgo, principalmente. Porm, o objetivo era consolidar suas perspectivas teolgicas. Isto nos levou aoseguintegrupodequestes:seasuaatuaonombitointelectualedoutrinriocomo professor em Paris e autor de importantes tratados, como aSuma Teolgica revelam, como consolidado na historiografia, uma personagem inovadora (ou renovadora) para o sculo XIII qual a necessidade de um santo tradicional? Por que mestres em teologia e intelectuais no foraminterrogados?Porquenoumsantocomcaractersticascondizentescomomomento noqualsuamemriafoifabricada?Alis,ashagiografiaseasantidadenofinaldaIdade Mdia, passavam mesmo por uma transformao?ReproduzimosaquiumaperguntaqueAndrVauchezjfezsobreafunodas hagiografiasdofinaldaIdadeMdia:elasmudaram?6Procuramosresponderatalpergunta visandodefenderaaplicabilidadedoconceitodetempodasantidade.Trata-sedeuma ferramentaquecriamosapartirdaanlisedatrajetriadeTomsdeAquinodesuamorte canonizao.Entre1274e1323,otelogodaOrdemdosPregadoresfoialvodeinmeras crticas,ressalvasecorrectoria.Noentanto,apartirdasuacanonizaoe,principalmente aps,foialadocondiodepensadormaisinfluentedaIgrejaCatlicanoOcidente.Para elaboraroconceitoemquestoconsideramosdoisgruposdedocumentao:relatossobre vidas de santos e processos de canonizao. No que tange ao caso de especfico de Toms de Aquino, os inquritos realizados em 1319 e 1321 e aYstoria sancti Thome Aquino escrita no mesmo perodo.7 Alm disso, as bulas papais concernentes ao caso tambm foram imporantes peas na elaborao do termo.Em relao ao significado do conceito em si, a sua principal caracterstica est calcada naideiadequeasantidadeumfenmenosocialconstrudo, ouseja,trata-sedaeleiode umhomemoumulheraquemsoatribudascaractersticasespecficaseexcepcionaisem 6VAUCHEZ,A.Saintsadmirablesetsaintsimitables:lesfonctionsdelhagiographieont-elleschangaux derniers sicles du Moyen ge?. In: LES FONCTIONS DES SAINTS DANS LE MONDE OCCIDENTAL (IIIe-XIIIe SICLE). Rome: Palais Farnse, 1991. pp. 161-172. 7 Utilizamos nesta pesquisa, inicialmente, a compilao das fontes para a canonizao de Toms de Aquino, que consta no Tomo I do ms de Maro dos Acta Sanctorum, de 1668. Identificada nas notas pela sigla AA SS, Martii I,p.xx.Almdisso,otextodeGuilhermedeToccoconsultadofoiodaediopreparadaefrutodatesede doutorado de Claire Le Brun-Gouanvic. A referncia a este texto se dar pelo ttulo em itlico: Ystoria, p. xx. Em relaosdemaisfontes,comoBulaspapais,manuaisefontesrelacionadasInquisio,utilizamosa documentaodisponvelemcompndios,comopodeserverificadonasrefernciasbibliogrficas.Adotamos umprocedimentodecitarostextosnoapenasasfontesemseusidiomasoriginaise,emnotaderodap, alm da referncia, o leitor encontrar uma traduo livre do referido trecho. 18 relaoaosdemaishomensemulheres.Dentreessascaractersticasestoincludasa capacidadedeintercederafavor,depuniretambmservircomomodelodeconduta.Para operaressaconstruo,ento,defendemosqueelaocorredemodoretroativo,comeando, especificamente, com a deciso papal pelo reconhecimento oficial da santidade e terminando nomomentodamortedosanto.Sendoassim,tempodasantidadeotempotranscorrido entreacanonizaoeamorteexpressoemumatabeladetemporalidadequeficamelhor evidenciadaquandoentendidadeformacomparada.Nocasoespecficoqueanalisamos, optamospor trabalharcomumtempodequarentaenoveanosnapassagemdosculoXIII para o XIV. Oprocessodecanonizaofoiselecionadoparaestapesquisanamedidaemque pea chave para a compreenso do momento de fabricao da santidade de Toms de Aquino. InstitudonosculoXeamplamenteutilizadoapartirdosculoXIII,esserecursojurdico paraoreconhecimentooficialdasantidadecolocavafrenteafrenteosinteressadosna oficializao do culto a um homem ou uma mulher. Pelos processos temos nomes de nobres, religiosos,administradores,letrados,iletrados,assimcomotemosacessosperguntase respostas que contribuam para que o culto fosse reconhecido ou negado. Alm disso, a partir dodesenrolardosprocessos,podemosinferirsobrequesantidadeinteressavaaopapado reconhecer. Certamente, esse reconhecimento no foi o mesmo entre os sculos XI e XIV.8 ComoindicaabibliografiasobreasantidadenaIdadeMdia9,osprocessosde canonizao instituram uma certa racionalizao e a crtica sobre os milagres fez com que o nmero de santos reconhecidos pelo Papado diminusse em nmeros absolutos. 8Principalmente:VAUCHEZ,A.LaSaintetenOccidentauxdernierssiclesduMoyenAge:daprsles procs de canonisation et les documents hagiographiques. 2me d. Roma: cole franaise de Rome, 1981.9 Alm da obra de Vauchez, podemos destacar: BELL, R. e WEINSTEIN, D. Saints and society. The two words ofWesternChristendom,1000-1700.Chicago:UCP,1982GAJANO,S.B.Santidade.In:LEGOFF,J.& SCHMITT,J-C.(orgs.).DicionrioTemticodoOcidenteMedieval.SoPaulo:ImprensaOficialdoEstado; EDUSC,v.2,pp.449-462.DELOOZ,P.Sociologieetcanonisations.LigeDansHaag:s/ed,1969.LES FONCTIONSDES SAINTSDANSLEMONDEOCCIDENTAL(IIIE XIIIESIECLE).Roma:coleFranaise de Rome; Palais Farnse, 1991. LETT, D.Un procs de canonisation au Moyen ge. Essai dhistoire sociale : Nicolas de Tolentino, 1325. Paris : PUF, 2008. KLANICZAY, G. (dir.).Procs de canonization au moyen ge: aspectsjuridiquesetreligieux.Roma:coleFranaisedeRome,2004.KLEINBERG,A.HistoiresdeSaints: leur role dans la formation de lOccident. Trad. Par Mosh Mron. Paris: Gallimard, 2005. SILVA, A. C. L. F. da.Asantidadecomoconstruohistrica:ocasodeSantoDomingodeSilos.Anais:IVEncontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. ngela V. Leo e Vanda O. Bittencourt (orgs.). Belo Horizonte, MG: Puc-Minas, 2003. pp.640-648. 19 Tabela 1: Processos de canonizao ordenados e efetuados entre 1198 - 1431. PERODOS PROCESSOS ORDENADOS PELO PAPADO CANONIZAES EFETUADAS MDIAS 1198-1268472348,93% 1268-13042150% 1305-137812758,33% 1379-143110550% TOTAL7135 Fonte:VAUCHEZ,A.LaSaintetenOccident...opcit.p.71.Grifosmeus.Acolunacomasmdiasnoconstanaobrade Vauchez. Noentanto,seconsiderarmosamargempercentual,onmerodesantosmanteve-se, na verdade, numa mdia proporcional constante, ou seja, embora tenham diminudo o nmero de santos canonizados, do sculo XII ao XV, segundo os recortes temporais estabelecidos por Vauchez, o nmero oscilou entre 48,9 a 58,3% do total de demandas abertas. Sob tal aspecto, ento,ospapasdeAvignonnosedestacamnecessariamentedosdemaiseimportante ressaltar tambm que esse controle no acabou com a santidade no oficial, isto , com o culto a santos no canonizados.Essaaparente,pormrelativaracionalizaoprogressivateriaprovocadoe/ouseria acompanhada por uma modificao na escrita hagiogrfica. As hagiografias caminhariam para avalorizaodosaspectosvirtuososenodosmaravilhosos.Emoutraspalavras,umrelato sobresanto,comoamaioriadosrelatosdaLegendaurea,porexemplo,seriaarcaicosese tratasse de um mrtir, ou de santos que viveram e morreram antes do sculo XIII.10

Para o sculo XIII e, principalmente, para o sculo XIV temos um quadro diferente, no qualAndrVauchezdefendeuaidiadesantidaderecente,ouseja,santosquetmum tempodesantidadecommenosde60anos.SegundoVauchez,acategoriadesantosmuito antigosmaisde100anosdecorridosentreamorteeacanonizaoantesde1304 praticamente desapareceu.Alm disso, o autor aponta que papas como Gregrio IX optaram por canonizar seus contemporneos, como Francisco de Assis e Domingos de Gusmo, assim 10 A principal obra sobre aLegenda urea, at hoje, : BOUREAU, A. La Lgende dore: le systhme narratif de Jacques de Voragine (1298). Paris: Cerf, 1984. Esse mesmo autor coordenou um recente projeto de traduo paraofrancsdotextointegral.Cf.:JACQUESDEVORAGINE.LaLgendedore.Trad.AlainBoureau, MoniqueGoulletetLaurenceMouinier.Paris:Gallimard,2004.VAUCHEZ,A.JacquesdeVoragineetles saints du XIIIe s. dans la Lgende dore. In: DUNN-LARDEAU, B. Legenda Aurea:Sept sicles de diffusion. Montreal/Paris: Bellarmin/Vrin, 1986. pp. 27-56. Em nossa dissertao de mestrado defendemos que, em alguns aspectos,como,porexemplo,naformadeescreverenadivulgaodevaloresmoraisrelacionados prostituio, a Legenda urea no pode ser considerada como arcaica no sentido de no apresentar novidades paraosculoXIII.Nestetrabalho,porm,realizamosumacomparaodessaobracomaSumaTeolgica, escritapelotambmdominicanoTomsdeAquino.Portanto,ofocofoinasformasdeproduode conhecimento na Ordem dos Pregadores, e no sobre a santidade em si. Cf.: TEIXEIRA, I. S. A encruzilhada das idias:aproximaesentreaLegendaurea(IacopodaVarazze)eaSumaTeolgica(TomsdeAquino). Dissertao (Mestrado em Histria), UFRGS. Porto Alegre, 2007. 20 como Inocncio IV o fez em relao a Pedro Mrtir e Bonifcio VIII em relao a So Lus. Isso implicaria na diminuio do tempo de espera entre morte e canonizao. Logo,apartirdessasconsideraes,podemosafirmarquesantosoriundosdeordens mendicantesrepresentavam,almdadiminuionotempodasantidade,umanovaaposta pontifciaparaseusanseiosdecontroledacristandade.11Talfatosituaperfeitamentea canonizao de Toms de Aquino em seu tempo. Porm, considerando o tempo da santidade na tabela abaixo podemos realizar algumas reflexes iniciais. O caso de Toms o terceiro mais longo (49), ficando atrs de Margarida da Hungria (673) e Nicolas de Tolentino (141). Se considerarmos que o quarto tempo da santidade mais longo nesta tabela de 20 anos, a canonizao que analisamos est entre as que destoam das demais.Almdisso,comomembrodeumaordemreligiosaquejpossuadoissantos reconhecidos oficialmente e com tempo da santidade de 13 e 2 anos, (Domingos de Gusmo e Pedro de Verona, respectivamente), por que o intervalo de 49 anos? E, se considerarmos o tempo da santidade de santos franciscanos (canonizao de Clara de Assis em 1255 e morte deFranciscodeAssisem1226)teremostrssantosem29anos.Nocasodosfrades pregadores,seconsiderarmosacanonizaodeTomseamortedeDomingostemosum tempo da santidade de 102 anos para trs canonizados.Apartirdestatabelaacreditamossernecessrioproporalgumasanlisessobreo prprio conceito com o qual estamos operando. A expresso tempo de santidade pode levar a uma interpretao de que, por exemplo, o tempo no qual Toms de Aquino foi cultuado e/ou considerado como santo apenas o tempo compreendido entre a morte e a canonizao. No issooqueafirmamos.Consideramosotempodesantidadecomootemponoquala santidadefoiconstruda.Talvezamelhorexpressosejatempoparaasantidade,tempo paraacanonizaooumesmoaexpressoforjadaporVauchezcomosantidaderecente. Descartamos esta ltima, porque elaconsidera apenassantos com 60 anos deintervalo entre morteecanonizao.Acategoriaquepropomospodeseraplicadaaqualquersanto, independente se recente ou mais antigo, como fica demonstrado no caso de Margarida da HungriaeNicolasdeTolentino,porexemplo,natabelaacima.Emrelaoatempoparaa santidadeouparaacanonizao,noosutilizaremosporconsiderarmostempode santidade uma forma mais polida. 11UmadasbasesquesustentaaargumentaosobreoarcasmonaLegendaureavemexatamentedapouca ocorrncia de registros sobre santos do sculo XIII nessa compilao. Cf: VAUCHEZ, A. Jacques de Voragine et les saints du XIIIe Sicle dans la Lgende Dore op. cit. 21 Tabela 2: Tempo da Santidade de santos e candidatos a santos entre 1209 e 1334 SANTOS E CANDIDATOS A SANTOS DE ORDENS RELIGIOSAS ENTRE 1209-1334 Santo Tempo da Santidade Morte Inquritos Canonizao Tempo da Santidade Francisco de Assis 1226122812282 Antnio de Pdua 12311231/123212321 Domingos de Gusmo12211233123413 Benvenuto de Gubbio 12321236?4 Ambrsio de Massa12401240-41/ 1251-52 ? 12 Joo, o Bom, de Mntua 12491251/ 1253-54 ? 5 Simon de Collazzone 1250125212533 Pedro de Verona1252125212531 Clara de Assis1253125312552 Margarida da Hungria12701271/12761943673 Luis dAnjou12971308131720 Clara de Montefalco13081318/1319?11 Toms de Aquino12741319/1321132349 Nicolas de Tolentino13051325/13571446141 Outraobservaotambmnecessriaemrelaoaesteconceito.Consideramos como a data inicial para o mesmo a data da canonizao e/ou de um reconhecimento oficial da santidade.Cabeapergunta:oconceitospodeserutilizadoparasantoscanonizados?A princpio pensamos que sim,mas apenas a realizao de pesquisasmonogrficas sobre casos especficos poderia levar a uma resposta mais elaborada para estapergunta. Suponhamos que TomsdeAquinonotivessesidooficialmentecanonizado,porm,temosoregistro arqueolgico, documental da criao da primeira capela em seu nome. Poderamos considerar tais registros como registros precisos de um culto? Sim, e ainda assimpoderamos utilizar o conceitodetempodesantidadeparaocasodeToms.Contudo,importantequeoleitor e/ouopesquisadorqueporventuravenhaautilizaroconceitoleveemcontaquefoium 22 conceitocriadoparaaanlisedeumcasoespecfico,asaber,acanonizaodeTomsde Aquino, e que no se trata do tempo em que Tomsfoi considerado santo. Ao contrrio, o tempo transcorrido para que seu culto e reconhecimento oficial acontecesse.12

Aelaboraodoconceitolevouaumredirecionamentodaproposiotericainicial pensadaparaatese.Seuttulooriginalera Etquodtotfeceratmiraculaquodscripserat articulos:santidade,hagiografiaehistrianacanonizaodeSoTomsdeAquino (1274-1323)ehavamossituadonossainvestigaonombitodosestudosdaantropologia histrica, especificamente sobre o imaginrio.13 Durante a pesquisa chegamos s seguintes questes que redirecionaram a anlise: 1) Qual o lugar dos processos de canonizao nas prticas inquisitoriais cada vez mais comuns no ocidente medieval (confisso obrigatria, investigaes contra heresias)? 2) Existiam manuais para canonizao, como os manuais de confisso e inquisio? 3) Na ausncia de manuais de canonizao era possvel que os interrogatrios sobre a santidade pudessem ter a estrutura dos processos inquisitoriais? 4) Se sim, em que se aproximam e em que se distanciam? 5)Havendopossibilidadedecompararessestiposdeprocessospossvelutilizaro processo de canonizao como fonte para histria social? 6) Como realizar umaanlisesocial a partir de documentos que tratam demilagres e homens e mulheres com poderes excepcionais? 12Agradeoimensamenteaosprofessoresmembrosdabancanasessodedefesadatese.Asconsideraese anlisesrelacionadasaoconceitocomoestavadefinidoinicialmentecontriburamparaque,nonosso entendimento,anoodetempodesantidadeassumisseumcartermaisabrangenteedepossvelaplicao para outros casos, alm do aqui analisado. 13 Entendamos que as anlises deveriam ser pautadas na procura por reflexes que consistissem em explorar as lgicasquedirigemoscomportamentoscoletivosmenosvoluntriosemenosconscientes.BURGUIRE,A. Antropologia Histrica. In: IDEM. (Org.). Dicionrio das Cincias Histricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 65. Cf: IDEM. A Antropologia Histrica.In: LE GOFF, J. (Org.). A Histria Nova. 4ed. So Paulo: Martins Fontes,1998.pp. 125-152.SegundoJean-ClaudeSchmitt, oimaginriouma realidadecoletivaqueconsiste emnarrativasmticas,fices,imagens,compartilhadaspelosatoressociaisqueconstituiacoesoeformaa identidade de um grupo. Cf: SCHMITT, J-C. A Imaginao eficaz. Signum, So Paulo, n3, 2001. p. 133-150. 23 A partir deste conjunto de questes, surgiram outras: Quem seriam os interessados na canonizao de Toms? Os frades pregadores? Os interrogados? O papa Joo XXII?14 Paraatenderaessasnovasexignciasdapesquisa,asreflexesapartirda Antropologia Escolstica continuam sendo fundamentais, porm, com outro foco. Em linhas gerais, trata-se de uma abordagem que nasceu com o objetivo de estudar uma nova concepo dacinciadohomemnaescolsticamedievalentre1200-1350.Umacaractersticado GroupedeAnthropologieScolastique(GAS)aanlisesobrearelaoentreteologia, direito, filosofia, cincias, poltica e economia no seio das universidades medievais. AsmiradasparaodireitonaIdadeMdia;aconstanteutilizaodehagiografiasnas investigaes; o recorte cronolgico-espacial, a ateno ao universo intelectual, produo e circulaodeconhecimentosoelementosquepermitemumacompanhamento metodolgicoprximodaspropostascontidasnatesequeapresentamos.Istoporqueos pesquisadoresenvolvidosnessasinvestigaesestoatentossmudanas:nasformasde entendimentodosmilagresedastransformaesnosrelatoshagiogrficos,nodireito positivo e a sistematizao do direito cannico e o interesse nos processos de canonizao , bem como na vida intelectual.15 14 Neste ponto destaco a importncia do curso de teoria ministrado pelo Prof. Benito B. Schmidt para a linha de pesquisaRelaessociaisdedominaoeresistnciaem2008edabibliografiadiscutidaeanalisadana ocasio,como:REVEL,J.Lhistoiresociale.In:IDEMeWACHTEL,N.(orgs.).Une colepour lessciences sociales.Paris: EHESS,1996.pp.49-72.IDEM.A histriaaors-do-cho. In:LEVI,G. Aheranaimaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. pp. 07-37. LEVI,G.AHeranaImaterial:TrajetriadeumexorcistanoPiemontedosculoXVII.RiodeJaneiro: CivilizaoBrasileira,2000.IDEM.Sobreamicro-histria.In:BURKE,P.(Org.).Aescritadahistria: novasperspectivas.SoPaulo:UNESP,1992.pp.133-161.IDEM.OsPerigosdoGeertzismo.Histria Social,Campinas,n6,pp.137-146,1999.LIMA,H.E.Amicro-historiaitaliana:escalas,indciose singularidades.RiodeJaneiro:CivilizaoBrasileira,2006.HOBSBAWM,E.Da histriasocialhistriada sociedade. In: Sobre histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 83-115.GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio. So Paulo: Cia das Letras, 1987. IDEM.OInquisidorcomoantroplogo:umaanalogiaesuasimplicaes.In:AMiscro-Histriaeoutros ensaios.Lisboa:Difel,1989.DAVIS,N.Z..Lasformasdelahistoriasocial.Historiasocial,10:177-182, primavera/vero1991.pp.177-182.BOURDIEU,P.;CHARTIER,R.;DARNTON,R.Dialogueproposde lHistoire Culturelle. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n 59, sept/1985, pp. 86-93. 15Cf.BOUREAU,A.Miracle,volontetimagination:lamutationscolastique(1270-1320). In: MIRACLES, PRODIGESETMERVEILLESAUMOYENGE.Paris:Sorbonne,1995.pp.159-172;IDEM.Droitnaturelet abstratcion judiciaire: hypothses sur la nature du droit medieval. Annales HSS, Nov-dc, 2002, n 6, pp. 1463-1488. Ambos os textos sero retomados no captulo 1. COCCIA, E. e PIRON, S. Poesia, cincia e poltica: uma gerao de intelectuais italianos (1290-1330). In: PEREIRA, N. M. ; ALMEIDA, C. C. de e TEIXEIRA, I. S. (Orgs).Reflexessobreomedievo.SoLeopoldo :Oikos,2009.pp.60-99.(Textooriginalmentepublicado como :Posie,ScienceetPolitique:unegnrationdIntellectuelsitaliens(1290-1330).RevuedeSynthse, vol.129, n 4, dec. 2008, pp. 549-586. Todo o nmero 4 deste peridico foi sobreo tema le travail intellectuel auMoyenge.Cf.tambmPIRON,S.Uneanthropologiehistoriquedelascolastique.AnnalesHSS,v.64, n.1,jan-fv/2009,pp.207-215;IDEM.Demonologieetanthropologiescolastique.CahiersduCentrede rechercheshistorique,n.37,avr/2006,pp.173-179.ParamaisinformaessobreoGAS: http://gas.ehess.fr/document.php?id=221. Consultado em maro de 2009. 24 ConsideramosacanonizaodeTomsdeAquinocomoobjetodaAntropologia EscolsticanamedidaemqueGuilhermedeToccovaleu-sedeoutrascompilaes dominicanasinserindo-asnaYstoria.Aparentemente,umaoperaohagiogrficaqueno destoa muito das demais. No entanto e por isso a considerao do tempo da santidade , as relaes entre Toms de Aquino, a Ordem dos Dominicanos, as polmicas na Universidade de Paris (1277), o papa Joo XXII e a polmica com os espirituais Franciscanos no sculo XIV, podemrevelaraspectosquevoalmdoestabelecimentodocultoaumsanto.Revelam aspectosdedebatesintelectuais,deposicionamentosmaissistemticossobreessesdebates (caso da Ordem dos Dominicanos em relao a Toms) e das relaes de poder necessrias e atuantes para o reconhecimento oficial da santidade. Destaforma,imprescindvelqueconsideremosascaractersticasdaproduodo textodaYstoriaesuasimultaneidadeemrelaoaosinquritosde1319e1321.Nosculo XIII,estariasedesenvolvendotambmumanovaformadeescritasobrevidasdesantos,as chamadasBiografiasespirituais,relacionadassBeguinas.SegundoAnaPaulaLopes Pereira, Jacques de Vitry e Thomas de Cantimpr transformaram o discurso hagiogrfico tradicional [] no somente pela escolha dos temas tratados, onde o acento colocado sobre a ascese interior e sobre os fenmenos msticos, mas sobretudo no envolvimento pessoal dos bigrafos com seu sujeito de anlise e objeto de devoo.16 Paraestaautora,ofatodessesdoishagigrafosexplicitaremosseusobjetivosnos prlogos de narrativas dedicadas s Beguinas marcou o mtodo hagiogrfico e as biografias espirituaissedistinguiriamdashagiografiastradicionaisporseremfrutodeumarealidade vivida em uma rede de espiritualidade fundamentada nas relaes interpessoais.17 Cabe uma ressalva, que delimita, inclusive, a anlise da autora: o pblico visado por Jacques de Vitry e Thomas de Cantimpr era mais restrito, circunscrito a uma rede de amigos que acreditava no poder e no saber destas mulheres. Diferente do pblico esperado por Guilherme de Tocco e ordenado pelo papa no ato da canonizao: universas ecclesia. NosculoXIV,principalmenteentre1305-1378,quandodoPapadodeAvignon,a santidade e a escritahagiogrficaestariam descritas, representadas eapresentadas a partir de 16 PEREIRA, A.L. O MtodoHagiogrfico de Jacques de Vitry (1240) e de Thomas de Cantimpr (1262). XII ENCONTRO REGIONAL DE HISTRIA: Usos do Passado. Niteri, ANPUH/RJ, 2006. p. 02. Disponvel em:http://www.rj.anpuh.org/Anais/2006/conferencias/Ana%20Paula%20Lopes%20Pereira.pdf.Consultadoem maro de 2009. 17 IDEM. Ibid. p. 04. 25 novos elementos e, na expresso deWeinsteineBell, seriamsofisticadasbiografias.18 Em sntese,GuyPhillipart,propsumconceitoparaoentendimentodessastransformaes,a saber,ahagiografiahistoriogrficaqueconsistenaquestoliterriadefinida,tantopelo heri ou pelo santo, quanto pela pretenso de verdade.19 Oleitorjdeveterseperguntado:quantostermosaparecemnestaspoucaspginas para se referir fonte estudada? Hagiografia, biografia, legenda, Ystoria. So sinnimos?AoanalisaratradiomanuscritadotextodeGuilhermedeTocco,ClaireLeBrun-Gouanviclevantoucercadevinteecincoversesentretextoscompletos,incompletose resumos dosmilagres.20 Considerando os dezenovemanuscritos completos, constatamos que no h distino. Ystoria (ou historia) e legenda so utilizados como sinnimos.21 O Ms F22, datado da primeirametade do sculo XIV tem o ttulo:Prohemium inystoria sancti Thome de Aquino et de necessitate institutionis ord. Predicatorum et eius commendatione. Ou o Ms L23,dofimdosculoXIV,comottulo:ProhemiumdehystoriabeatiThomedeAquino ordinisfratrumpredicatorum.Etprimodenecessitateinstitucioniseiusdemordiniseteius commendatio,comasubscrio:ExplicitlegendasanctiThomedeAquino.Ou,ainda,o MsV24,tambmdofimdosculoXIV,possuiainscrio:Prohemiuminystoriasancti ThomedeAquino.Denecessitateinstitutionisordinispredicatorumeteiuscommendatione. PrimumCapitulum.Dentre osdosculoXV,umexemplo:oMs.B25levao ttulo:Incipt prohemiuminLegendamsanctiThomedeAquino.Etprimonecessitateinstitutionisordinis predicatorum et eius commendacione sic incipit feliciter.26 18BELL,R.M;WEINSTEIN,D.Saints&Society:ThetwowordsofwesternChristendom(1100-1700). Chicago: UCP, 1982. 19PHILLIPART,G.Lhagiographiecommelittrature:conceptrecentet nouveauxprogrammes?.Revuedes SciencesHumaines:Lhagiographie,n.251,jui-sept/1998,pp.11-39.TextesrunisparElisabethGaucheret Jean Dufournet.20 LE BRUN-GOUANVIC, C. La tradition du texte. In: GUILLAUME DE TOCCO. Ystoria Sancti Thome de Aquino de Guillaume de Tocco (1323). Toronto: PIMS, 1996. pp. 61-67. 21 IDEM. Ibid. pp. 61-65.22 Firenze, Bibliotheca Nazionale, Conv. Soppr.J. VII. 27, ff. 96ra-132va; pergaminho, 215 x 145mm. Origem: convento de Santa Maria de Florena. 23 Londres, British Museum, Burney 349, ff. 76v-126v; pergaminho, 260 x 190mm. 24 Vaticano, Biblioteca Apostlica, Vat. Lat. 10153, ff. 1vb-28vb. pergaminho, 290 x 208mm. Origem: convento dominicano de Orviedo. 25Berlim,StaatsbibliothekPreussischerKulturbesitz,Lat.qu.707,ff.145r-183r,XVes.(1479),papier,210x 144mm. 26NoDicionrioDuCange,temosaseguintedefinioparaLegenda:livrosobreosatosdossantoseh a indicaodostermosMartyrum(martrio),Passionariis(passionrio,nosentidodePaixodeCristo), Leggendarius (legendrio) e vita (vida). Alm disso, para o termo Histori, temos: livros de lies divinas que sorecitadosnaIgrejatodososdias.DUCANGE,CharlesduFresne.Glossariumadscriptoresmediaeet infimaeLatinitatis.T.II(D-H),p.842;T.III(I-N),p.273.NaedioconsultadanohverbeteparaYstoria isponvelem:http://www.uni-mannheim.de/mateo/camenaref/ducange/bd3/jpg/s0273.html.Consultadoem fevereiro de 2009. 26 ParaBernardGuene,aHistrianaIdadeMdiasequerfoiconsideradacomoum primeiroofcio.Osquesededicaramatividadedeescreversobreopassadoeaconstruir narrativasmemorveissobrepersonagens,comoReis,PrncipeseSantos,porexemplo,no faziamapenasisso,massempredesempenhavamoutrasfunes.27Entretanto,oautor defendeuqueexistirammuitoshistoriadoresnaIdadeMdia.28SegundoGuene,existiam vrias acepes e usos para a histria naquele perodo. Por exemplo, a histria podia ser uma narrativasimplessobreoquesepassou,oumesmoseroquesepassou;olivronoquala narrativaseencontra;e,apartirdosculoIX,umusolitrgicomaispreciso:historia [comme]unrcitquisattacheessentiellementdirelaviedunsaintetsertdebasela composition derepons qui seront dits loffice de ce saint.29 Portanto, importava que fosse umdiscursoverdadeiroediferentedafbula.SegundoGuene,aconcepocristlinearde tempo restringiu o terreno do historiador aos eventos e fenmenos com datas asseguradas, do comeo do mundo ao tempo daquele que escreve. As coisas do porvir, das quais no se sabia quando aconteceriam, estavam relacionadas s profecias.30 Aprincpio,seriaocasosimplesdedoistermossinnimos:ystoriaelegenda. Entretanto, Guenenos oferece elementos para aprofundara anlise ao diferenciarhistriae hagiografia. Uma das diferenas consiste na atemporalidade do relato sobre vida de santo, ou seja,aausnciadedatasporexemplo,pois,oqueinteressanessetipodetextoinstruir.31 Almdisso,seguindoaqueladefinio,seriaconvenienteexcluirasvidasdesantosda categoriadehistria,poisLhistoriographiemdivalesesituamaldanslespacemaisvit dans le temps son essence mme. Sur elle pesa la tyrannie de la chronologie.32 Sendo assim, a histria deveria tratar basicamente dos Prncipes.33 UmaargumentaoprximafoidesenvolvidaporFranoisDossenaobraLePari Biographique, na qual considerou que o que ensina a hagiografia uma verdade diferente da factual,mas tambm observa que o termolegenda pode ser traduzido como o que deve ser lido sobre".34 Para Dominique Boutet, textos que aparentemente seriam hagiogrficos tendem 27GUENE.B.Histria.In:LEGOFF,J.eSCHMITT,J-C.(orgs.).DicionrioTemticodoOcidente Medieval.Coord.deTrad.HilrioFrancoJnior.SoPaulo:EDUSC;ImprensaOficialdoEstado,v1.2006, p.523 e passim. 28 IDEM. Histoire et Culture historique dans lOccident mdival. Paris: Aubier Montaigne, 1980. 29 IDEM. Ibid. p.18. Traduo livre: historia [como] uma narrativa que se associa essencialmente vida de um santo e serve de base para a composio do responsrio dito no ofcio desse santo. Grifos do autor. 30 IDEM. Ibid. p. 19. 31 IDEM. Ibid. pp. 53-54. 32 IDEM. Ibid. p. 22. Traduo livre: A historiografia medieval se situa mal no espao, mas vive no tempo a sua essncia. Sobre ela pesa a tirania da cronologia. 33 IDEM. Ibid. p. 23. 34 DOSSE, F. Le pari biographique: crire une vie. Paris: La Dcouverte, 2005. p. 149 e 153. 27 autilizarmtodoshistoriogrficos,principalmentenoquetangeinseroerefernciasa documentos diplomticos nos textos.35 MicheldeCerteauindicouqueotermohagiografiatrata-sedeumainvenodo sculo XVII, com os termos hagiologia e hagiologique e que, desde ento, so utilizados para definir os relatos sobre vidas de santos. Assim como Guene, defendeu que a hagiografia o oposto da historiografia, ou mesmo, sua traio, pois no est interessada no que se passou, esim,noqueexemplar.36Almdisso,oespaomaisimportantequeotempo,oque configura o relato hagiogrfico distinto da biografia.37 Outra caracterstica, segundo Michel de Certeau,queahagiografiaestariaforadodogmaedanorma,poiseraumaleiturafestiva, que, ao invs de tratar das coisas proibidas, trata do que permissvel.38

Faz-senecessrio deixar claro que, diferentemente, entendemos que ahagiografiafaz parte do dogma e da norma por ser um tipo de texto e de narrativa utilizada em sermes, por exemplo,comoobjetivodedivulgar(ouvulgarizar)adoutrina.Portanto,paraserviraesse objetivo,orelatosobrevidadesantodevepossuirelementosquepermitamaopregador transmitir uma lio aos seus ouvintes. Tais elementos podem ser os recursos retricos como os exempla.39

O prprio Michel de Certeau apontou que a estrutura do discurso hagiogrfico fornece umasriedepersonagenscomcaractersticassemelhantes,mudandoapenasosnomes prprios,eoqueinteressasoosmodelosqueresultamdacombinaoentreelas.Essas caractersticasforamapontadaspeloautorcomoaconstruodafiguradosantoemtermos semnticos(porexemplo,osanguesignificandoagraaeasgenealogiasehierarquias significandoasacralizaodeumaordemestabelecida);umaescatologiaprpria,quepode transformarpobresemreis,bemcomoumaescatologiacircularqueremetesempres mesmas coisas.40 A partir das hagiografias os historiadores podem analisar os sistemas de representao deumasociedadeemumdeterminadoperodo.Trata-se,portanto,deumtipodetextoque remetecoletividade,namedidaemquepodeindicarasrelaes,conflituosasouno,que 35BOUTET,D.Hagiographieethistoriographie:laViedesaintThomasBecketdeGuernesdePont-Sainte-MaxenceetlaViedesaintLouisdeJoinville.LeMoyen Age: RevuedHistoireetdePhilologie,TomeCVI, n2, 2000. pp. 277-293. 36 CERTEAU, M. de. Lcriture de lhistoire. Paris: Gallimard, 2002. pp. 316-317. 37 IDEM. Ibid. p. 331. 38 IDEM. Ibid. p. 322. 39 conto breve dado como verdico (= histrico) e destinado a ser inserido num discurso (em geral, um sermo) afimdeconvencerumauditriopormeiodeumaliosalutar.LEGOFF,J.OImaginrioMedieval.Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1994. p. 123. 40 CERTEAU, M. de. Lcriture de lhistoire...op. cit. p. 326. 28 umgrupomantmcomoutrosgrupos,bemcomoidentidade,ouseja,osentimentode pertencimentoeaconscinciaqueumgrupotemdesimesmo.41Istoporqueumtexto perpassadoporsmbolos,osquaisCerteauchamoudetpicoshagiogrficos.Ostpicos hagiogrficos,segundoesteautor,so:1)odemonacoouagnico,noqualpercebemosos combatescelestes,asfigurasdodiaboesuasmetamorfoses;2)histricoouescriturrio,no qualosantorepete,desenvolveeilustraoAntigooudoNovoTestamento;3)ascticoe moral,apartir,porexemplo,demetforasentresadeedoenas,purezaeculpabilidade.42 Estas caractersticas, portanto, permitiram que aquele autor utilizasse a definio de Hypolite Delehaye, do incio do sculo XX, para hagiografia. Segundo Delehaye,a hagiografia uma narrativa de carter religioso, inspirada no culto dos santos e com o objetivo de promov-lo.43 Podemos,ento,entenderaYstoriacomohagiografia?Provavelmente.Porm, necessriofrisarquenaanlisefeitaporDelehayeparachegaraestadefiniohaviaoutra concepo sobre documento e, at mesmo, sobre histria. Por exemplo, a anlise que o autor faz sobre a srie excepcionnellement complte de documentsrelacionadosaSoProcpio,comorelatosdecontemporneos,menesnos catlogosdemrtires,preuveshistoriquesdelexistenceduncultelocal.44Oautor procurounodossideSoProcpioindciosdaantiguidadedocultoeestabeleceuuma hierarquiaentrefontesmaisoumenosconfiveis.45Porserummrtirdoinciodo cristianismo, Procpio no passou pelo crivo dos processos de canonizao (mesmo porque o prprio processo no existia). Contudo, Delehaye, a exemplo do que fazemos, trabalhou com um conjunto de documentos sobre um santo e seu procedimento metodolgico pertinente: a classificaodaspease,apartirdetalclassificao,opotencialexplicativoquecadauma delas pode fornecer. No nosso objetivo dizer, sob hiptese alguma, que aYstoria seja mais confivel do que a Bula de Canonizao. Entendemos o potencial explicativo de cada pea de nossadocumentaocomootipodeinformaoquenosfornecemeassuascaractersticas comodiscursosdistintosafinal,pormaisqueaBulaeaYstoriapossamserdivididasem partes idnticas vita e miracula o contedo, a sequncia dos temas, os objetivos e funes inerentes s suas elaboraes e seus autores so diferentes. 41 IDEM. Ibid. pp. 320-321. 42 IDEM. Ibid. pp. 330-331. 43 DELEHAYE, H. Les Lgndes Hagiographiques. 3d. Bruxelles: Socit des Bollandistes, 1927. p. 02. 44 IDEM. Ibid. p. 119. 45Delehayechegaaironizaracrenaeaingenuidadedospesquisadoresinteressadosnasvidasdesantosque desconsideramaparceladeinvenodohagigrafosobresuapersonagem.Etdirequeleslgendesquenous venonsdanalyserdriventdunesourcehistoriquedepremierordre!Voilcequeleshagiographessont capables de produire quand ils travaillent sur de bons documents. IDEM. Ibid. p. 138. 29 RenAigrain tambmenumerou uma srie de documentos que servem ao estudo das vidas de santos, como inscries em epgrafes, cartas, memrias ou autobiografias, biografias, panegricos,osatosdosmrtiresesuaspaixes.46interessantenotarqueapresenado termo processo de canonizao muito discreta nesta obra e aparece mais como umrcueil de miracles do que como um processo jurdico que tinha como objetivo julgar, reconhecer ou negarumdosprincipaiselementosparaaconstruodasantidade:omilagre.Assimcomo Delehaye,porexemplo,Aigrainpensaemfonteshierrquicasdeacordocomumcritriode veraciedade e afirma que a literatura dos milagres pode ser considerada como desmedida e um tipo de documento que no seria dos melhores para o entendimento das vidas de santos.47 Hierarquizardocumentosedefinirqueunssomaisconfiveisqueosoutrosno umaposturaadequadaparaanossaproposta,apartirdeumanarrativaquenosepretende biogrfica, e sim, um catlogo de suasvirtudes.Alm disso, trata-se de um texto escrito por um Frade encarregado de realizar pesquisas sobre seu objeto, ou seja, Guilherme de Tocco em relao a Toms deAquino, encarregado este que participou ativamente em todo o processo paraaverificaodasantidadeemquestotantocomotestemunha(queouviutodosos depoimentos),quantocomointerrogadoaYstoriaSanctiThomeAquinotemmaisanos dizersobreasociedadequeconstriasantidade.Pretendemosanalisarcomoseconstria santidade e a como a sua construo textual lida em conjunto com os inquritos e documentos papaisautorizandoereconhecendooxitodosmesmos.E,tambm,comoessaconstruo operanombitodanarrativaqueconsolidaros poderesdosanto.Entretantoprocuraremos, principalmente, traar os grupos que atuaram nesse processo. Dopontodevistametodolgico,paraaplicaroconceitodetempodasantidade demoscontinuidadesperspectivasadotadasnadissertaodemestradosobreahistria intelectualeahistriacomparada.Issosignificaque,porexemplo,aotentarmostraara produo da Ystoria, consideramos sua insero num conjunto de narrativas hagiogrficas que jsefaziatradicionalnointeriordaordemdospregadores.Tambmrealizamosalgumas reflexes sobre a formao intelectual de Guilherme de Tocco e de sua personagem. Levamos emconsiderao,portanto,umaobrainseridaemseutempoapartirdacomparaocom outras obras da mesma natureza produzidas no interior de uma mesma ordem religiosa.48

46AIGRAIN,R.LHagiographie:sessources,sesmthodes,sonhistoire.Poitiers:BLOUD&GAY,1953.p. 105. 47IDEM.Ibid.pp.179-185.Tratamosmaisdetalhadamentesobreofuncionamento,composioe potencialidadesdosprocessosdecanonizaoemgeraledodeTomsdeAquinoemespecficonocaptulo1 desta tese. 48 TEIXEIRA, I. S. A encruzilhada das idiasop. cit. pp. 30-34. 30 Ateseestdivididaemtrscaptulos:noprimeiroabordamosascaractersticasdos processosdecanonizaoemrelaosprticasinquisitoriaisquesedesenvolviam simultaneamente.O objetivofoiresponderquestoComoseconstriumsanto?apartir doapontamentometodolgicoqueosprocessosdecanonizaotmparaaaplicaodo conceitodetempodasantidade.Nosegundocaptulo,deformacomparativa,construmos uma anlise que considerou os trs primeiros santos dominicanos canonizados: Domingos de Gusmo,PedroMrtireTomsdeAquino.OobjetivofoiresponderquestoTomsde Aquino:umsantodominicano?.Almdisso,nessecaptulo,analisamosoutraspossveis fontesdisponveisparaGuilhermedeToccoparaaescritadaYstoria.Acomparao,como item inerente ao prprio conceito que defendemos, no terceiro captulo, aparece na anlise que realizamos sobre Toms de Aquino e Nicolas de Tolentino. Nesse captulo defendemos que, a partir do conceito de tempo da santidade, a canonizao de Toms de Aquino teve um cunho teolgico erigido sob bases tradicionais. Isso implica em considerar que no necessariamente havia mudanas na escrita hagiogrfica e no tipo de santos reconhecidos oficialmente. Sendo assim,estaafirmaossesustentaquandodeslocamosoeixodeanlisedeelementos culturaisparaquestessociaisepolticase,principalmente,considerandoasimultaneidade entre a Ystoria e os inquritos. Porexemplo,aoprocurarpeloverdadeiroSoLus,JacquesLeGoffanalisoua produo hagiogrfica sobre o mesmo. So Lus, para ns, importante exatamente pelo fato deasuasantidadetersidoconstrudapormembrosdeOrdensMendicantes,principalmente dominicanosefranciscanos.LeGoffanalisoutrsrelatos:aVitaetsanctaconversatiopi memoriLudoviciquondamregisFrancorum,dodominicanoGeoffreydeBeaulieu (confessordoRei,querecebeudiretamentedoPapaGregrioX,em1272,umaencomenda para informar sobre a maneira pela qual o rei Lus se comportava em todos e em cada um de seusatosesobresuaprticadascoisasdareligio49);oLibellus,escritoporGuillaumede Chartres (tambm dominicano; capelo do Rei durante a primeira cruzada e com quem esteve nocativeiro)apsotextodeGeoffreydeBeaulieu;eaVitdeSoLus,escritapelo franciscanoGuillaumedeSaint-Pathus,porvoltade1303portanto,apsacanonizao (1279) , que teve acesso aos depoimentos das testemunhas do processo de canonizao (do qual s se conhece fragmentos atualmente). Ao trabalhar com esses textos, a concluso de Le Goff sobre o estilo dos mesmos foi que: 49 LE GOFF, J. So Lus: biografia. 3ed. Rio de Janeiro/So Paulo: RECORD, 2002. p.297. 31 AmaiorpartedadocumentaodamemorizaodeSoLusporseus contemporneosformaumconjuntoestruturadodetextosqueseremetemunsaos outrosporquesoprodutosdosmesmosfabricantesdememrias:clrigosnos mesmos centros de produo (abadias, conventos), segundo gneros que fazem eco: vidas, espelhos, sermes, etc.50

SeconsiderarmosasinformaesexpostasporLeGoffemrelaosduasprimeiras obras,asaber,asescritaspordominicanos(contemporneosdeGuilhermedeTocco, inclusive),notaremosquealgumassemelhanasapareceroemrelaoYstoriasancti ThomedeAquino.Ainspiraodivina,necessriaparaaescritahagiogrfica;aausnciade datasquenoimplicananeglignciacronolgicadevidaemortedopersonagemsobreo qualseescreve;acomparaodesuasantidadecomelementosepassagensdoAntigo Testamento; e a diminuio da funo poltica (no caso de So Lus, o Rei)e/ou profissional (nocasodeSoToms,omagister)parafavorecerasvirtudescrists,bemcomo,noque tange aos milagres, o predomnio da taumaturgia post-mortem.51 Almdisso,aquestodoretornodosantocasadafamliamesmoque enclausurado,comonocasodeTomsdeAquinoremeteaoqueAlainBoureaudefiniu, para algumas narrativas da Legenda urea, como une errance giratoire, selon deux moments de dpart et de retour, ou seja, o fato do (candidato a) santo deixar o mundo, seus bens e seus parentes (Toms de Aquino segue o Mestre da Ordem no caminho a Paris), depois retorna ao pontodepartidaparaseconduzirperfeio(aprisonocastelofamiliar,adedicaoaos estudos leitura da Bblia e das Sentenas e a luta contra as tentaes, ou contra o insulto mais grave, que foi a mulher enviada sua cela naquele perodo).52 Por fim, ao trabalhar com o terceiro texto hagiogrfico sobre So Lus, a saber, aVit, dofrademenorGuillaumedeSaint-Pathus,escritaporvoltade1303,JacquesLeGoffnos ofereceumapossibilidadedeleituradarelaohagiografia-processodecanonizao.So Lus foi canonizado em 1297, por Bonifcio VIII. Segundo Le Goff, participaram do processo cerca de trezentas e trinta testemunhas e na verso mais prxima do que sobrou dos registros desses inquritos, a Vit de 1303, so apresentados sessenta e cinco milagres post-mortem.53 importante ressaltar que aquele historiador francs analisou os relatos hagiogrficos sobre So Lus com os seguintes questionamentos: 50 IDEM. Ibid. p.306. 51 IDEM. Ibid. p.297-307 e p.747-759 (sobre os milagres). 52 BOUREAU, A. La Lgende dore: le systhme narratif de Jacques de Voragine (1298). Paris: CERF, 1984, p.185. 53 LE GOFF, J. So Lus: biografia...op. cit. p.301. 32 mesmocomSoLusque nosdeparamosnofimdesseexame,ouapenasvamos informarcomoaquelesque,tendorazeserecursosmateriaiseintelectuaispara leg-lo nossa memria, no tinham nem o desejo nem a possibilidade da [sic] nos dar a conhecer o indivduo So Lus que hoje temos a vontade legtima de encontrar, de compreender? o modelo de um rei, um tipo de santo que se construiu, ou esse rei, esse santo, algum que existiu? [] O So Lus de nossos documentos existiu? E como esse o nico So Lus que se nos oferece, So Lus existiu?54 AprocurapelaexistnciaounodoverdadeiroSoLusporJacquesLeGoff,alm dessasquestes,inevitavelmenteperpassadaporoutras,comoasquetratamdanaturezae dasespecificidadesdadocumentaodisponvelsobresuapersonagem.Nocasoquenos interessa, a memria de So Lus construda pela rede de tradio das Ordens Mendicantes transmite um santo que um frade mendicante que teria sido rei.55

Aobradivididaemduaspartes:aprimeira,sobreavidae,asegunda,sobreos milagres.AVitcompostapor21captulos:trsdecarterbiogrficoedezoito relacionadossvirtudesteologais(f,esperanaecaridade),devoo,mendicnciaes virtudesderei(justia,honestidadeeclemncia).56Noquetangeaosmilagres,trata-seda apresentaodossessentaecincoatribudosaSoLus.Porora,interessa-nosaprimeira parte, construda a partir da citao de trinta e oito testemunhas que participaram do processo de canonizao. Diante dessa caracterstica, Le Goff afirmou que a imagem que Guilherme de Saint-PathustransmitedeSoLusacriaocoletivadastestemunhasdoprocessoe, portanto, mais sua do que se tivesse apenas lido ou ouvido alguns depoimentos.57 Aquelas questes apresentadas por Le Goff como problema de pesquisa para entender e explicar So Lus a um leitor do final do sculo XX no so as mesmas que fizemos a partir da documentao em torno da canonizao de Toms de Aquino. No nosso interesse saber seSoTomsexistiu,massiminteressa-nosexatamentenacriaocoletiva,tantodas testemunhas do processo, quanto de seu primeiro hagigrafo, Guilherme de Tocco. Por isso, a forma como Le Goff analisa o trabalhofeito por Guilherme de Saint-Pathus com oprocesso de canonizao daquele rei francs o que nos interessa. GuilhermedeSaint-PathusnoconheceuSoLus.ElefoiconfessordaRainha Margaridaentre1277-1297eseutextode1303,portanto,posterior(ebemprximo) canonizao.Essefranciscanocitaastestemunhasdoprocesso,notexto,deforma hierrquica:comeapelosreisprximosaosanto,comoFilipeIIIfilhoesucessordeSo Lus e o irmo de So Lus, Carlos dAnjou, rei da Siclia. Posteriormente, bispos, abades, 54 IDEM. Ibid. p.281. 55 IDEM. Ibid. p.297. 56 IDEM. Ibid. p.303 (Cf. a nota 23, na qual Jacques Le Goff apresenta os ttulos dos 21 captulos da Vit escrita por Guilherme de Saint-Pathus). 57 IDEM. Ibid. p.301. 33 nobres,cincofreisdominicanos,domsticosdosanto, trsmonjaseocirurgiodorei.Esse grupodetestemunhas,segundoLeGoff,formaoseguinteconjunto:vinteequatroleigose quatorzeclrigos.Trsmulheres,religiosassendoquenenhumadelaseraparentedosanto. Assim,ento,essehistoriadorconcluiu:SoLusumsantoleigoerei.Noentanto,sua espiritualidade e suas prticas devocionais aproximavam-no dos clrigos principalmente os dominicanos que o cercavam. Alm disso, considerando as origens das testemunhas, Lus um santo de le-de-France e regies vizinhas e da cruzada.58 O que h de interessante nessa leitura para a nossa proposta? Le Goff no negligenciou adimensoespacialnaqualaconjunturadoprocessodecanonizaodeSoLusse desenvolveu.Foiaoolharparaquantidadee,maisainda,paraaespecificidade,aformao intelectual,acondiopolticaesocialeparaogneroqueaquelehistoriadorchegou construo coletiva das testemunhas do santo apresentado por Guilherme de Saint-Pathus. Destaforma, ento, que propomos aleitura da documentao sobre a canonizao de Toms de Aquino. Entendendo a santidade como um processo coletivo de construo de uma memriasobreumindivduoquefoireconhecidocomoexcepcionalpelavidavirtuosae pelosmilagresnobuscamosoverdadeiroSoToms,comojdissemos.Interessa-nos saber por que as testemunhas e seu hagigrafo nos ofereceram o So Toms que aparece nos depoimentosenahagiografiaenooutrotipodesanto?Alis,asantidadetomalevel assim, que pode se constituir de diferentes formas? Perguntamos: qual Toms era possvel? Pararespondereexplicaressa(s)possibilidade(s)defendemosumapostura metodolgica: diante das condies de produo da Ystoria Sancti Thome de Aquino, ou seja, seuautorfoitestemunha(eouviuosinterrogatriosdasoutras testemunhas)noprocessode canonizao,nopossvelfazerumaleituradessafontesemcruz-lacomoprprio processo.E,maisainda,paramelhorentenderoprocessoeahagiografiaimprescindvel analisarcomocadaumsedesenrolava:oselementos,oaparatojurdico,astestemunhas,as questes, osinquisidoresdeumladoe,do outro,aescritadeumanarrativaespecfica,com objetivopreciso,feitaporumhomemquepertenciaaumarededetradiolonganoque tange quela atividade. Em outras palavras: o que um processo de canonizao? Quais so suas especificidades? Como se desenvolveu o processo e os inquritos relacionados a Toms deAquino?ComofoiaparticipaodeGuilhermedeToccocomotestemunha?Ecomo autor?Como,apartirdoqueouviuedoqueconheciasobreaquelecandidatoasanto,em 58 IDEM. Ibid. p.302. 34 especfico, e sobre a santidade, em geral, ele construiu a Ystoria Sancti Thome? E, mais alm: em que esse So Toms ajuda a entender sobre a santidade no perodo final da Idade Mdia? *** Notas sobre uma ausncia: A Ystoria nas biografias dominicanas de Toms de Aquino AYstoriafoiutilizadaporbigrafosdeTomsdeAquinocomofonte.Entretanto,a finalidadedessasbiografiasnoseinserenaquiloqueJacquesLeGoffcaracterizoucomo biografiahistrica, ou, comono deve ser uma biografiahistrica:no s a coleo de tudooquesepodeedetudooquesedevesabersobreumapersonagem.59Emgeral,as obrasexpressamumexcessodesentidoedecoerncia,oquePierreBourdieudefiniria como iluso biogrfica.60 Alm disso, so obras cujo ponto de partida no um problema de pesquisa, e sim, tendem a tratar a personagem biografada e as informaes sobre ela como verdadeiras. Portanto, o Toms de Aquino desses textos o Toms de Aquino que foi. Obras quepoderiamsercertamentefontesparanumainvestigaosobreessetelogoemsuas biografiascontemporneas.61Noentanto,noesteTomsdeAquinoqueprocuramos analisar. 59 LE GOFF, J. So Lus: Biografia op. cit. p. 21. 60BOURDIEU,P.Ailusobiogrfica.In:AMADO,J.eFERREIRA,M.deM.(Coords.).UsoseAbusosda Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. pp. 183-191. 61Umbrevelevantamento:AMEAL,J.SoTomazdeAquino:Introduoaoestudodasuafiguraedasua obra.3ed.Porto:LivrariaTavaresMartins,1947.CHABAS,Y.PrudentissimefrreThomasdAquin(1225-1274).SaVie.Sonvre.Paris:LaColombe,1959.CHENU,M-D.IntrodutionaltudedeSainThomas dAquin.2d.Montral;Paris:InstitutdtudesMdivales;J.Vrin,1954.GRABMANN,M.SaintThomas dAquin: Introduction ltude de sa Personnalit et de sa Pense. Trad. E. Vansteenberghe. Paris: BLOUD & GAY,1920.MARITAIN,J.LeDocteurAnglique.RiodeJaneiro:Atlantica,1945.NASCIMENTO, C.A.R. Santo Toms de Aquino: o Boi Mudo da Siclia. So Paulo:Educ, 1992. PESCH, O. H. Toms de Aquino: Lmite ygrandezadeunateologamedieval.Trad.XavierMollyClaudioGancho.Barcelona:Herder,1992. THONNARD,F.J.SantoTomsdeAquino.BuenosAires:Difusion,1943.TORREL,J.-P.O.P.Iniciaoa Santo Toms de Aquino: sua pessoa e sua obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. So Paulo: Loyola, 1999. WALZ, A. O.P.SaintThomasdAquin.Trad.PaulNovarina.Louvain;Paris:PublicationsUniversitaires;Batrice-Nauwelaerts, 1962. E WEBER, P.J. Santo Tomas de Aquino: el genio del orden. Buenos Aires: Poblet, 1949. 35 CAPTULO 1: COMO SE CONSTRI UM SANTO? FONTES PARA A YSTORIA SANCTI THOME DE AQUINO Sbado, 21 de julho de 1319, sede do Palcio Episcopal de Npoles: reuniram-se neste diaoFr.GuilhermedeTocco,oArcebispodeNpolesUmberto,oBispodeViterbo ngelo , o venerabili viro Pandulfo de Sabelo, notrio do Papa, e os deputados,presentibus adtotumProcessumInquisitionis,osnobres,PedroJoodeRocca-Tarani,dadiocese sabinense, eFrancisco de Laureto, da diocese penense. Omotivo: aleitura dabula expedida pelo Papa Joo XXII, que ordenava um inqurito sobre a memria do Fr. Toms de Aquino da Ordem dos Pregadores e Doutor em Teologia. Isto porque cartas de nobres e de professores da UniversidadedeNpolesanunciavamqueessesnobrespresenciaramaemissodeodorde santidade,ocorpoconservadoequemuitosmilagresoreferidofreihaviaoperadoapssua morte.62 Em1224-5?,quandonasceuTomsdeAquino,aOrdemdosPregadoresfora recentementefundada(1216),oprimeiroCaptuloGeralhpoucoacontecera(1220)eseu fundador, Domingos de Gusmo, falecera (1221). Alm disso, a prerrogativa pontifcia para o reconhecimentooficialdasantidadesefirmavacadavezmaisnalegitimidadejurdicados processosdecanonizao,osquaisprogressivamenteforamutilizadosdesdeossculosXI-XII.Prerrogativasdevigilnciaecontrolequetambmseexpandiramparaoutrossetores, como a obrigatoriedade da confisso auricular (1215) e o Tribunal do Santo Ofcio, que tinha oobjetivodeinvestigarsuspeitasdeheresia.Quandomorreuem1274,TomsdeAquino pertenciaquelaOrdemeeraumdeseusmembrosmaisilustres.Adoeceuduranteviagem paraoConcliodeLyon,paraoqualsedirigiasobconvitedoPapaGregrioX.Isto aconteceu prximo a um mosteiro cisterciense, Fossanova. Em 1323, poca da canonizao, o OcidenteCristoviviaumperodoconturbado:oPapadodeAvignon(1305-1378),cujoo pontficenoestavaemRoma.EraotempodeJooXXII,opapaquecondenoualguns franciscanosporcausadadefesadapobrezaradicaldeCristo;aumentouasdivisasdos 62PROCESSVSINQUISITIONISfactsupervit,conversatone,&miraculisrecol.Mem.Fr.THOMDE AQUINO,OrdinisFratrumPredicatorum,SacrTheologiDoctoris,AnnosalutisMCCCXIX,IoannisXXII, PontificisMax.PontificatusIII,perVmbertumArchiepiscopumNeapolitanum&AngelumViterbiensem& TuscanensemEpiscopum,InquisitoresvncumD.PandulfodeSabelloDominiPapNotario,superhoc Pontificedeputatos.Apud:ActaSanctorum.Martii.TomusI.AIoanneBollandS.I.colligifelicitcptaA Godefrido Henschenio et Danielle Paperbrocchio eiusdem societatis Iessu aucta digesta & illustrata. Antuperpi, apudIacobumMeursium.AnnoMDCLXVIII.p.686-687.AsprximascitaesseroreferenciadascomoAA SS, Martii I, e as pginas correspondentes (quando se tratar da verso publicada nos Acta Sanctorum). 36 estadospontifcioseseenvolveuemconflitoscomreisdeestadosvizinhos.Omesmopapa que, em 1319, ordenou a abertura do processo sobre a santidade de Toms de Aquino. Naquela bula de 1319, percebemos algumas caractersticas necessrias para a abertura do processo, bem como as orientaes para a investigao. O papa escreveu: QudrecolendmemoriFr.ThomasdeAquino,OrdinisFratrumPrdicatorum, sacrTheologiDoctor,dumviveret,odoresanctitatisemicvit,conversatione resplendvit,&multismaguiseamante,qumpostsuumobitummiraculis coruscavit, quare pro parte ipsorum nobis fuit humiliter supplicatum, vt de eiusdem Fr. Thom vit & miraculis, Inquisitione prmiss, si reperiremus prmissa veritate fulciri, ipsum adscriberemus Sanctorum catalogo, ipsumque faceremus per vniversas Ecclesias honre cgruo solenniter venerari.63 Estetrechoinforma-nosqueapsainvestigaochegandoconclusosobrea veracidade das suspeitas o nome de Toms de Aquino seria inscrito no catlogo dos Santos e seu culto autorizado e venerado per vniversas Ecclesias. Como inqurito, o processo possua normas jurdicas e eclesisticas e parte delas so apresentadas no relato de Pedro, notrio do Papa, o qual registrou a leitura da bula citada e acrescentou informaes sobre a forma da conduo dos interrogatrios: testes legitimos, quos super vit, conversatione & miraculis dicti Fr. Thom debetis recipere...prstitoiuramento...interrogetiseos,quomodsciant,quotempore,quo mense, qu die, quibus presentibus, quo loco, ad cuius vocationem, & quibus verbis interpositis,&denominibusillorum,circaquosmiraculafactadicuntur,&sieos antcognoscebant,&quotdiebusantviderunteosinfirmos,&quantotempore fure infirmi, quanto tempore visi sunt sanit, de quo loco sunt...64 Arecomendao,portanto,eradeumainvestigaominuciosabasicamentesobreos seguintesaspectos: se osinterrogados sabiamsobre avida deToms deAquino e osmodos pelos quais souberam disso; se presenciaram milagres de cura e as circunstncias desses fatos (ms,dia,testemunhas,locaisdereferncia,palavraspronunciadas);eseconheceramas testemunhas e/ou os atendidos com graas atribudas ao investigado. Apartirdasinformaesdasduascitaesinferimosqueosrequisitosnecessrios paraasantidadeeramaboafamaeosmilagresdecura.Entretanto,outranecessidade 63 AA SS, Martii I, p.687. Traduo livre: que se recolham memrias sobre Fr. Toms de Aquino da Ordem dos IrmosPregadores,DoutoremTeologia,oqualviveu,emitiuodordesantidade,[estem]esplndida[sic] conversao [fama?], e muitos magnos milagres, tanto antes quanto aps seu bito [sic], pelos quais suplicam os nobres,edelessefaaumaInquisiosobreavidaeosmilagresdeFr.Toms.Severdadeiraessapremissa, inscreveremos seu nome no catlogo dos Santos e faremos que ele seja venerado universalmente na Igreja.64AASS,MartiiI,p.687.Traduolivre:testeslegtimos,sobreavida,conversaoemilagresdoditoFr. Toms deveis receberdes...prestem juramento...interrogue-os sobre o que sabem, qual o tempo, qual o ms, qual dia, quem estava presente, em que lugar, o que fazem, o que foi dito, o nome deles, sobre quais milagres dizem, eseelesconheceramantesequantosdiasantesviramosenfermosequantotempoforamenfermos,quanto tempo viram eles sos, de que lugar so.37 antecede:amobilizaodeumgrupo(ouvrios)emtornodabuscapeloreconhecimento oficial da santidade de um indivduo.importanteteremmentequeoreconhecimentooficialdasantidadeduranteo Papado de Avignon foi distribudo, em geral, de forma proporcionalmente igual aos perodos identificados na tabela 1. Pela tabela 3, temos: Tabela 3: Canonizaes Ordenadas/Efetuadas pelos Papas de Avignon (1305-1378). PAPAS DE AVIGNON (Ordenaes/Canonizaes) Clemente V 1305-1314 JOO XXII 1316-1334 Bento XII 1334-1342 Clemente VI 1342-1352 Inocncio VI 1352-1362 Urbano V 1362-1370 Gregrio XI 1370-1378 3/15/3-1/1-2/2- Fonte: VAUCHEZ,A.LaSainttop.cit.pp.295-300. Oautornoapresenta tabela especfica parao papadodeAvignon. Esta tabela foi elaborada a partir da Tabela IX da referida obra. importanteconsiderarqueClementeVautorizouecanonizouPedrodeMorrone (1296; P 1306; C 1313)65; autorizou, tambm, os processos de Toms de Cantiloupe ( 1282; P 1307), que foi canonizado por Joo XXII em 1320. Aquele Papa autorizou outro processo, a saber,odeLuisdAnjou(1297,P1308),quetambmfoicanonizadoporJooXXII,em 1317. Quanto aos processos ordenados por este Joo XXXII, apenas os de Toms de Aquino (1274;P1319/1321;C1323)edeGregrioX(1272;P?;C1325?)66sedesenrolaram duranteseupontificado.OsoutrosautorizadosforamosdeClaradeMontefalco(1308;P 1318/1319),NicolasdeTolentino(1305;P1325/1327)eYvesHlory(1303;P1330). Estes trs santos foram canonizados, respectivamente, por Leo XIII (C 1881), Eugnio IV (C 1446)eClementeVI(1347).Aparece,ainda,nosprocessosmencionadosporBoureauo referenteaRaimundodePeafort,queteveumademandapelaaberturadoprocesso comandadapeloReideAragoepelacidadedeBarcelonaem1317-1318,quenofoi autorizadopeloPapaJooXXII.67Taisdadospermitemumaconstataoreferenteao conceitodesantosrecentescomoqualAndrVauchezestabeleceuumparmetroparaa santidade moderna no final da Idade Mdia, ou seja, o tempo transcorrido entre a morte do indivduoeaaberturadoprocessodecanonizaonosupera60anos. Estaconstatao,no entanto,sealteraquandosepensanoanodacanonizao,porcausadoscasosdeClarade 65 Leia-se: , para a data de morte; P, para o incio do processo e C, para o ano da canonizao. 66EsteprocessonomencionadoporAlainBoureau.Umaobservao:natabelaapresentadaporAndr Vaucheznoconstamasinformaessobreasdatasdoinqurito,nemadatadacanonizao.Onicodado cronolgicoqueaprimeiraBulareferenteaoprocessode1325equeJooXXIIfoioPapaqueefetuoua canonizao,portanto,issoaconteceuentre1325e1334.AtabelaelaboradaporAndrVauchezcitadaa mesma que serviu de fonte para a Tabela 2 desta tese.67 VAUCHEZ, A. La Saintet en Occident aux derniers sicles du Moyen Ageop cit. pp.82-83. 38 Montefalco e Nicolas de Tolentino e acreditamos, dentre os motivos j apresentados, a melhor aplicabilidade do conceito de tempo de santidade. De posse desses dados Alain Boureau trabalhou com um total de oito processos: Pedro deMorrone(PapaCelestinoV),LuisdAnjou,TomsdeCantiloupe,TomsdeAquino, ClaradeMontefalco,YvesHlory,NicolaudeTolentinoeRaimundodePeafort.Seu objetivoufoianalisararelaoentresantosedemniosnosprocessosdecanonizaoentre 1305-1334.O autor menciona o processo de canonizao de Toms de Aquino realizado em Npoles.OtextoseiniciacomarefernciaaodepoimentodeJeanBlasio,juizdeNpoles, realizadoem06deagostode1319.Nessedepoimento,Boureaudestacouumahistria narrada pela testemunha na qual Toms de Aquino expulsa um demnio sob a forma de um homemnegro,vestidodepreto,queapareceunoterraodoconventodominicanodaquela cidade.68Ahistriafoialvodeinterrogaes.Osinquisidoresqueriamsabercomoa testemunhasoubereconhecernaquelehomemnegroodiabo.Aresposta:JeanBlasioviuo homem num cristal durante uma conjurao de demnios para encontrar um livro roubado.69 Aprticadaconjuraodosespritoscomaajudadeumcristaleopapeldo postulador do processo, no caso, Guilherme de Tocco, em relao apresentao das atas ao papaJooXXIIsoosobjetosdeestudodeAlainBoureau.Esteautortrabalhou,comoj dito, com outros processos, como o de Yves Hlory, que aconteceu em 1330. Neste processo, o autor destacou um depoimento que coloca em evidncia o direito e a importncia da palavra de doao numa histria em que a me amaldioa o filho e que, levado ao tmulo do santo foi curado.70Apartirdessesdoisexemplosoautorlevantouahiptesedeumavolta demonolgica no incio do sculo XIV e que os processos de canonizao seriam importantes registrosparaentenderessefenmeno.Almdisso,elescolocariamemcontatoacultura dominanteteolgicaejurdicaeasculturascomuns71,mostrandoqueoobjetodos processos,ouseja,osmilagres,abremcaminhoparaoentendimentodasrelaesentreo naturaleosobrenatural.72AconclusodeAlainBoureauqueentreformastradicionaisde apariododiabo,formasnovas,queassociamSataosfantasmas,heregesemortossem confissoassociavamapersonnalitsouffrantedusaintperscutetcelledespossds.73 Concordamos com este autor em relao riqueza e potencial dos processos de canonizao 68 BOUREAU, A. Saints et Dmons dans les procs de canonization du dbut du XIVe sicleop cit. p.199. 69 IDEM. Ibid. p.199-200. 70 IDEM. Ibid. p.201-202. 71 Concluso muito prxima da orientao metodolgica para uma eficaz leitura dos processos de canonizao, apresentadaporVauchezemsuatese.Cf.VAUCHEZ,A.LaSaintetenOccidentauxdernierssiclesdu Moyen Ageop cit. p.04.72 BOUREAU, A. Saints et Dmons dans les procs de canonisation du dbut du XIVe sicle op. cit. p.203. 73 IDEM. Ibid. p.220.Traduo livre: personalidade sofredora do santo perseguido e aquela dos possudos. 39 paraoentendimentodequestesteolgicasnoperodoquenosinteressa.Paratal,antes, consideramosnecessriasalgumasreflexessobreahistoriografiadasantidadenaidade mdiapara,posteriormente,evidenciarmosanaturezadadocumentao,principalmenteo processo descrito que analisamos no primeiro captulo. OsantofoicaracterizadoporAviadKleinbergcomoumserdeexceoeaomesmo tempoemqueidentificadoporaspiraescoletivas,separadodessacoletividadeporsua singularidade.74Segundoesteautor,asantidadeparaoreconhecimentooficialdiferente daquela cultuada fora do mbito institucional da Igreja. Para isso props a seguinte distino: a santidade oficial como autoridade e, por isso, reconhecida em forma cerimonial caso em queentrariaTomsdeAquinoeasantidadedascomunidadesseriaumasantidade carismtica.75 Este autor entende o carisma como une nergie attribue certaines personnes pardautres,ouseja,trata-sedeumadenominaoexterioraoindivduocarismtico,mas que, ao mesmo tempo, ele representa. Segundo o texto, isto se d por vrias formas: coragem, segurana que se amplia a outras pessoas e o sentimento que o carismtico tem em relao ao lugar. Isso depende da repercusso social para que acontea.76 EssaperspectivadeA.Kleinbergpodesercomplementadapelanoodesantidade comoumelementoconstrudosocialecoletivamente.Noinciodocristianismo,como analisadoporPeterBrownedefinidoporAnnekeMulder-Bakker,asantidadeeraatribuda maisaolugardemorteetmulodoqueaoindivduosepultado.77Paraossculosfinaisda IdadeMdiaasantidadedeixoudeserconferidaapenasaoslugaresdeculto:houveum deslocamento,oumelhor,umamultiplicaodopoderdosantonamedidaemque,por exemplo, as imagens passaram a ser utilizadas a partir da crena que um santo fazia milagres fora de seu lugar de sepultamento. Isto implicou numa modificao do olhar sobre a santidade do lugar para a santidade da pessoa. Segundo Mulder-Bakker, esta a segunda caracterstica da concepo de santidade, que tambm cristalizou o santo comointercessor.78 Uma terceira caracterstica a do santo como imitador de Cristo.79 74KLEINBERG,A.HistoiredesSaints:LeurrledanslaformationdelOccident.Trad.parMoshMron. Paris: Gallimard, 2005. p. 14. 75 IDEM. pp. 15-19. 76 IDEM. p. 17. 77 BROWN, P. The cult of the saints...op. cit. e MULDER-BAKKER, A. The invention of saintliness. Texts and contexts. In: IDEM (ed.). The Invention of Sainliness. Routledge: London, 2002. pp. 3-23. 78 MULDER-BAKKER, A. op. cit. p. 9. 79 IDEM. p. 10. 40 AlexanderMurray,refletindosobreocartersocialdasantidade,considerouqueo santoumserambguoesemclassesocial.80Estedadoparadoxal,pois,emgeral,os hagigrafos medievais escreveram sobre santos nobres, reis e rainhas. Para Murray, a funo deintercessoreaatuaodosantoparaalmdeseusepulcrocontriburamparaumamaior eficciadacomunicaoentreosfiiseosagrado.81MichaelGoodichrelacionou,ento,as cartaseossantosleigoscanonizadoseconcluiuque,emgeral,eramsantosdinsticose nacionaisquedavamsuporteatodasasclassessociais.Seriaumtipodesantidademais comumAltaIdadeMdiaeemreasfronteirias.Almdisso,Goodichapontaque, enquanto os depoimentos sobre a vida, por exemplo, de Elizabete da Turngia (1232 P 1233-1235C1235)06,nototaleramprestadosporpessoasprximas,osmilagresforam testemunhadosporcercade600pessoas.82Masnoapenasaossantosleigosessasmissivas eramnecessrias. No caso de Toms deAquino, por exemplo, como citado anteriormente, o Papa autoriza a abertura do inqurito aps receber cartas de nobres da regio, da Universidade de Npoles e da Rainha Maria, da Siclia.83 DuranteoreinadodosPapasInocncioIII(1198-1216),GregrioIX(1227-1241)e InocncioIV(1243-1254),segundoGoodich,asinvestidasparaascanonizaesestavam relacionadassCruzadas,aosHohenstaufeneaosmovimentosherticos.Ossantosseriam oriundos de casas aliadas de Roma nos conflitos polticos e tambm transmitiriam os ideais teolgico-litrgicosqueinteressavamnaqueleperodo,oquejustificariaascanonizaesde leigosdecasasdinsticasemendicantes,especificamentedominicanos,comoDomingosde Gusmo, Pedro Mrtir e Toms de Aquino.84 Mas por que Goodichinseriu Toms deAquino em sua anlise, se seu recorte inicial no chega ao ano de 1260? A anlise deste autor fica confusa, pois, se no incio do texto h o anncio dos pontificados de Inocncio III, Gregrio IX e Inocncio IV importante ressaltar queoautornoanunciaoPapaHonrioIII (1216-1227) osnmeros totaisdesuaanlise corresponderiamaoperodode1198-1334,finalizandocomopontificadodeJooXXII. Almdisso,defendeuqueapartirde1260,ossantosmendicantescederamlugaraossantos eremitas agostinianos na preferncia para as canonizaes, principalmente na Itlia, por causa da vida contemplativa e davia teolgica ortodoxa (mais tradicional? o que deixa entender 80MURRAY,A.ReasonandSocietyin theMiddleAges.NewYork:OxfordUniversityPress,2002. pp. 383-404. 81 IDEM. p. 402. 82GOODICH,M.Thepoliticsofcanonizationinthethirteenthcentury:LayandMendicantsaints.In: WILSON,S.SaintsandTheirCults.London:CambridgeUniversityPress,1985.p.172.Otextooriginalfoi publicado em Church History, n 44, 1975, pp. 294-307. 83 IDEM. Ibid. p. 179. 84 IDEM. Ibid. pp. 178-179. 41 Goodich), como Joo, o Bom, de Mantua (1249 P 1251-1254), o Papa Celestino V e Nicolau de Tolentino. Perguntamos: se os eremitas agostinianos ganharam espao aps 1260, como explicar acanonizaodeTomsdeAquinoem1323?Secruzarmosessaafirmaocomosdados apresentados por Andr Vauchez e pegarmos desde a canonizao de Francisco de Assis o primeiromendicante canonizado, que aconteceu em 1228, at o pontificado de Joo XXII, que acabou em 1334, temos o seguinte panorama: 37 processose 19 canonizaes efetuadas. Dos37,14somendicantes(franciscanos/dominicanos,7foramcanonizados).Dos23 processosrestantes,11Bispos(6canonizados);2Papas(os2canonizados);1Padre, canonizadoposteriormente;2mongesquenoforamcanonizadose7leigos(4 canonizados).85 Alm disso, importante frisar: Joo, o Bom no foi canonizado e Nicolau de Tolentino o foi em 1446, por Eugnio IV. Ao contrrio do que afirmou Goodich, acreditamos que a santidade mendicante no perdia espao no final do sculo XIII. Noentanto,importanteressaltarque,comainstituiodosprocessosde canonizao, a crtica sobre os milagres se intensificou, tornando-se cada vez mais raras essas ocorrncias.Emgeral,abibliografiadeixaaentenderqueessefoiumdosfatoresque proporcionou a modificao na escrita hagiogrfica e no tipo de santo reconhecido. Por mais que os milagres sejam at hoje requisito imprescindvel para a canonizao, exceto para os mrtires. Segundo Murray,isto marcaria umamudananaforma de relacionamento entre os santos e os fiis, pois as pessoas no viam milagres acontecendo a todo instante.86 Outroaspectorelacionadosmudanasnasconcepessobreasantidade,segundo Emore Paoli, foi a divulgao da santidade de mulheres laicas, como Margarida da cidade de Castelo.87Nestecaso,oautoracompanhaAndrVauchez,oqualdefendeuque,nofinaldo sculoXIII,asordensmendicantespassaramasepreocuparcomasantidadelocalpour imposer, travers eux, leurs propres modeles de saintet.88 Comointuitodeentenderomomentodecisivodetransformaonasrepresentaes dasantidade,outrosautoressededicaramtemtica,comoAlainBoureau.Segundoeste autor,aescolsticaeasconcepesdenaturezacontriburamparaamodificaodo entendimentodosfatosextraordinrios.Oprimeiroaspectodestamodificaofoiacrtica racionalista(processosdecanonizao)sobreacredulidadeatribudaintervenodivina 85 VAUCHEZ, A. La Saintet em Occident aux derniers sicles du Moyen ge...op. cit. Cf. Tableau IX e XVI, pp. 295-300 e 308, respectivamente. 86 MURRAY, A. M. Reason and Societyop. cit. p. 9. 87 PAOLI, E. Agiografia e Strategie Politico-Religiose: alcuni esempi da Gregorio Magno al Concilio di Trento. Spoleto: Centro Italiano di Studi SullAlto Medioevo, 1997. pp.157-174. 88 VAUCHEZ, A. La Saintet en Occident aux derniers sicles du Moyen Ageop cit. pp.243-256. 42 para fatos inexplicveis.89 O autor defendeu a importncia que a imaginao assumiu nesse perodo e como ela tinha poderes de provocar efeitos visveis, como no caso dos estigmas de SoFranciscodeAssis.ParaaIgreja,anaturezahumanadessesantocooperariacoma causalidade sobrenatural. Tendncia definida como naturalista, escolstica-mstica, baseada na veemncia da imaginao, que a habilitaria como instrumento de cooperao entre o divino e o humano e que contribuiu para uma definio de milagre-transformao.90 Outro tipodemilagreanalisadoporAlainBoureaufoiodeexpulso(ouexorcismo) dedemniospelossantosapartirdosprocessosdecanonizaoinstauradosnosdois primeirospontificadosdeAvignon,asaber,ClementeV(1305-1314)eJooXXII(1316-1334). O problema pesquisado pelo autor se ocorreu, ou no, um tournant demonolgico no incio do sculo XIV. 91 Processos de Canonizao no sculo XIV: controle do Papado e modelo de santidade? Canoniserconsistedciderentoutergularitetdefaon canoniquequunsaintsoithonor commetel, cest--dire que luisoitrenduduncultesolennelcommeonlefaitpourles saintsdelammecatgorie;silsagitdunconfesseur,que lonclbrepourluilofficedunconfesseur;silsagitdun martyr, loffice des martyrs et ainsi de sute. (Fonte:InocncioIV.InquinquelibrosDecretalium commentaria. d de Venise, 1578, p.188)92 SegundoVauchez,aSantaSdemorouaelaborarumalegislaoespecficasobreo cultoaossantos.Oautortambmrevelaqueentreclrigosebispospassouaexistira convicoqueumcultosemaprovaodopapaeracontestvel.Diantedisso,houvea demandacadavezmaisconstanteparaodesenvolvimentodeumadisciplinadoscultosa partir dos procedimentos jurdicos para a canonizao.93 Ao trabalharmos com um Processus 89BOUREAU,A.Miracle,Volontetimagination:lamutationscolastique(1270-1320).In:MIRACLES, PRODIGES ET MERVEILLES AU MOYEN AGE. Paris: Sorbonne, 1995. pp. 159-172. 90 IDEM. pp. 163-172. A teoria da imitatio est baseada em trs nveis de viso:visio corporalis (a viso como sentidohumano),visiointellectualis(contemplaoracional)e,entreelas,avisiospiritualis(porondese formam asimagensquesoconservadas na memriaeaparecem nossonhosevises).Cf.SCHMITT,J-C.O Cor