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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CÁTIA CRISTINA BOCAIUVA MARINGOLO PONCIÁ VICÊNCIO E BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO: CONSTRUINDO HISTÓRIAS POR MEIO DE RETALHOS DE MEMÓRIAS Araraquara S. P. 2014

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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Cincias e Letras Campus de Araraquara - SP CTIA CRISTINA BOCAIUVA MARINGOLO PONCI VICNCIO E BECOS DA MEMRIA DE CONCEIO EVARISTO: CONSTRUINDO HISTRIAS POR MEIO DE RETALHOS DE MEMRIAS Araraquara S. P. 2014 2 CTIA CRISTINA BOCAIUVA MARINGOLO PONCI VICNCIO E BECOS DA MEMRIA DE CONCEIO EVARISTO: CONSTRUINDO HISTRIAS POR MEIO DE RETALHOS DE MEMRIAS DissertaodemestradoapresentadaaoProgramadePs-Graduao em Estudos Literrios da Faculdade de Cincias eLetrasdaUniversidadeEstadualPaulistaJliode Mesquita Filho - UNESP, Campus de Araraquara, visando obteno do ttulo de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e Crtica da Narrativa Orientadora:Profa.Dra.ClaudiaFernandadeCampos Mauro Araraquara, S. P. 2014 3 CTIA CRISTINA BOCAIUVA MARINGOLO Ponci Vicncio e Becos da memria de Conceio Evaristo: construindo histrias por meio de retalhos de memria DissertaodemestradoapresentadaaoProgramadePs-Graduao em Estudos Literrios da Faculdade de Cincias eLetrasdaUniversidadeEstadualPaulistaJliode Mesquita Filho - UNESP, Campus de Araraquara, visando obteno do ttulo de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e Crtica da Narrativa Orientadora:Profa.Dra.ClaudiaFernandadeCampos Mauro Data da defesa: 17/07/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Profa. Dra. Claudia Fernanda de Campos Mauro Departamento de Letras Modernas FCL UNESP/Araraquara ___________________________________________________________________________ Membro titular: Prof. Dr. Aparecido Donizete Rossi Departamento de Letras Modernas FCL UNESP/Araraquara ___________________________________________________________________________ Membro titular: Profa. Dra. Claudia Ceneviva Nigro Departamento de Letras Modernas IBILCE UNESP/ So Jos do Rio Preto Local: Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho UNESP Faculdade de Cincias e Letras - Campus de Araraquara - SP 4 Agradecimentos Dedico esse trabalho a todas as pessoas que diretamente ou indiretamente contriburam paraarealizaodessajornada,quemeapoiaram,meouviram,mecriticarameestiveram comigo em mais de dois anos de trabalho. AgradeoaFCLAR/UNESP,campusdeAraraquara,pormeconcederumespaoparaa realizaodestemestrado.SeoTcnicadePs-Graduaopelacompreenso,ajudae prontido, em especial, a servidora Rita Torres. AoProgramadeEstudosLiterriospelacompreensoededicaocomquetemencaradoe suportado o meu trabalho. Certamente no teria conseguido finalizar meu projeto se no fosse pelo suporte do programa. AgradeotambmaoCNPqpormeconcederapoiofinanceiroduranteboapartedo desenvolvimento do meu projeto de mestrado. Agradeo as duas Claudias da minha vida: a Profa. Dra. Claudia Fernanda de Campos Mauro e aProfa.Dra.ClaudiaMariaCenevivaNigro.Duasorientadorasquemepossibilitarama realizao desse trabalho. Profa. Claudia Mauro por estar comigo mesmo me encontrando em um pas diferente, por me apoiar e me possibilitar a realizao de um grande sonho. Profa. Nigro, minha antiga orientadora e amiga, por sempre acreditar em mim e estar ao meu lado, mesmo longe. Aosmeusamigosdemestradopelaconversanacantinaregadasareflexesfilosficas. Obrigada por fazerem parte da minha vida acadmica e me receberam to bem em uma nova cidade, Vanessa Ventura, Joyce Gimenes, Eliane Silva e Thiago Santos. Agradeo presena da minha banca de defesa, e aos professores presentes na minha banca de qualificao. Um agradecimento especial Profa. Dra. Claudia Maria Cenevivo Nigro, Profa. 5 Dra.MariadasGraasGomesVilladaSilvaeaoProf.Dr.AparecidoDonizeteRossipelas contribuies e pela leitura atenciosa dos exemplares. Ummuitoobrigadosminhasamadascompanheirasdecasa,PriscilaMachado,Naraya Stockler e Helosa Baldo, por serem to atenciosas, dedicadas, amveis e gentis nos momentos em que mais precisei. AgradeoaFulbrightpormeconcederabolsadeProfessorAssistente,experinciaque certamente mudou e continuar a mudar minha vida para sempre. AosmeusprofessoresdeOberlinCollege,Oberlin,Ohio,pelaateno,carinhoededicao comquemetrataramnessesnovemesesdedescobertaseamadurecimento:Prof.Pamela Brooks, Prof. Charles Peterson e Prof. Afia-Ofori Mensa. minha nova-antiga amiga Carolina Teixeira por me acolher e me possibilitar momentos to preciosos, quando mais se senti sozinha e perdida, muito obrigada. UnespIBILCE,lugarondemeformeieencontreivriosamigosqueridos.Aosmeus amigos: Ariane, Arthur, Fellipe, Fbio Traduteiro, Bianca, Lvia e Juliana. minha eterna amiga-irm, Karina Ka Rodrigues, por tudo, por ser sempre to amiga, to presente e to atenciosa, mesmo to distante. Certamente,minhajornadanoteriasidotomaravilhosaesurpreendentesenofossepelo apoio incondicional dos meus pais, Joo e Edna e minha irm, Silvia, que sempre acreditaram em mim, em meu potencial e que so a razo para que eu continue em busca da realizao dos meus sonhos. Ao meu amigo, companheiro e futuro marido, Caio Csar, por estar comigo e confiar que no fim tudo vai sempre dar certo. Um muito obrigado! 6 Anossaescrevivncianopodeserlidacomo histrias para ninar os da casa grande e sim para incomod-losemseussonosinjustos.(EVARISTO, 2007, p.21) 7 RESUMO Pretende-se neste trabalho analisar a questo da memria em dois romances da escritora afro-brasileira Conceio Evaristo, Ponci Vicncio (2003) e Becos da memria (2006) como fatorconstitutivoparaaconstruodaidentidadedaspersonagensprotagonistasecomo materialconstitutivodosprpriosromances.Osromancesmnemnicos,tecidospelasmos habilidosas de narradores oniscientes, costuram retalhos de histrias por meio de uma constante revisitao ao passado. Ponci Vicncio, neta de negros escravizados, tenta emendar um tempo no outro: o tempo de V Vicncio com seu presente a fim de proporcionar significadoa sua existncia. Maria Nova, narradora e protagonista de Becos da memria (2006), tenta por meio da memria (des)construir a favela de sua infncia devastada pela ganncia humana. Do mesmo modo que Ponci e sua me produziam esculturas de barro, os narradores dos romances tambm tentam eliminar as sobras dando contorno a uma massa disforme de retalhos de memria. por meiodorecordarqueavidaeasexperinciasdaspersonagensprotagonistasganham significado, que a herana deixada por V Vicncio se presentifica em Ponci e que a favela, j no existente mais, reconstri-se nos becos da memria de Maria-Nova. Palavras-chave:LiteraturaAfro-Brasileira.Memria.Histria.Identidade.Conceio Evaristo. Escrevivncia. 8 ABSTRACT ThisstudyaimstoanalyzethequestionofmemoryintwonovelsbyAfro-Brazilian writerConceioEvaristo,PonciVicncio(2003)andBecosdamemria(2006)as constitutivefactorsfortheconstructionoftheprotagonistsidentityandasaconstitutive materialforthenovelsitself.Bothmnemonicnovels,manufacturedbyskillfulhandsof omniscient narrators, sew a patchwork of stories through a constant returning to the past. Ponci Vicncio,granddaughterofBlackenslavedpeople,triestoconnectatimewithanother:her GrandpaVicnciostimewithherpresentinordertogivemeaningtoherexistence.Maria-Nova, narrator and protagonist ofBecos da memria (2006), tries to use her memory to (de) construct the favela of her childhood ravaged by human greed. In the same way as Ponci and her mother handcrafted clay sculptures, the novels narrators also try to eliminate leftovers, to give contour to a shapeless mass of memory patchwork. It is through remembrance that life and theexperiencesofthesecharactersaremeaningful,thattheinheritanceleftbyGrandpa Vicncio fulfills in Ponci and that the favela, which no longer exists, reconstructs itself in the alleys of Maria-Novas memory. Keywords:Afro-BrazilianLiterature.Memory.History.Identity.ConceioEvaristo. Escrevivncia. 9 SUMRIO INTRODUO ........................................................................................................................ 9 Estrutura da dissertao......................................................................................................13 1. A ESCREVIVNCIA DE CONCEIO EVARISTO: UMA POTICA ................. 16 1.1. Tecendo os retalhos narrativos dos romances . 291.2. Quem disse que o homem no gostaria de ter razes que o prendessem terra?. 32 1.3.Naquele tempo, ela gostava de ser ela mesma ............................................... .... 42

2.COSTURANDOUMTEMPONOOUTRO:DAJANELAAOSBECOSDA MEMRIA ..........................................................................................................................53 2.1. Ela agora gostava passava o tempo todo a recordar ............................................ 59 2.2. A memria: da percepo memria social ....................................................... 65 2.3. Michael Pollak e as memrias subterrneas: a memria entra em disputa ......... 78 3. A MEMRIA, A HISTRIA E O ESQUECIMENTO ............................................... 89 3.1. A memria Evaristiana: escrevivendo (sobre) a vida ......................................... 96 3.2. O espao da memria: percorrendo os becos das narrativas ............................ 102 3.3. A Histria: a revisitao, a reescritura e o esquecimento ................................. 107 4. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 110 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 115 ANEXO 1 .......................................................................................................................... 122ANEXO 2 ........................................................................................................................... 127 10 INTRODUO Mamecontava,minhatiacontava,meutiovelhinhocontava,osvizinhose amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia, afirmo sempre. Entretanto, ainda asseguro que o mundo da leitura, o da palavra escrita, tambmmefoiapresentadonointeriordeminhafamliaque,embora constitudaporpessoasemsuamaioriaapenassemialfabetizadas,todaseram seduzidaspela leitura epelaescrita. Tnhamos sempreemcasalivrosvelhos, revistas, jornais. Lembro-me de nossos seres de leitura. Minha me ou minha tia a folhear conosco o material impresso e a traduzir as mensagens. E eu, na medida em que crescia e ganhava a competncia da leitura, invertia os papeis, passei a ler para todos. Ali pelos meus onze anos, ganhei uma biblioteca inteira, a pblica, quando uma das minhas tias se tornou servente daquela casa-tesouro, naPraadaLiberdade.Fizdaliaminhamorada,olugarondeeubuscava respostasparatudo.Escrevamostambm,bilhetes,anotaesfamiliares, oraes... (EVARISTO, 2009a, p.04) Conceio Evaristo em um depoimento realizado em 2009a afirma que nasceu rodeada da palavra e no de livros. Desde pequena ouve as histrias contadas porsua tia, por seu tio velhinho, por sua me e por seus vizinhos. Narrativas s vezes contadas menina com lgrimas nos olhos ou como um enorme sorriso estampado no rosto. Da situao de misria e pobreza, mastambmdealegriasebrincadeiras,Evaristoencontraomaterialnecessrioparaa construo de suas obras. A autora apoiando-se em sua memria vai Escrevivendo sobre, com e da vida. Utilizandocomoargamassacriativaasuaexperinciadevida,Evaristoescreve estabelecendo um constante dilogo entre o meio social, cultural, histrico e de gnero em que vivecomasobrasqueescreve.ApoticadaEscrevivnciasignificaescreversobreavida, abarcandoaexperinciamltiplaediversadosafrodescendentes;significatambmutilizar retalhosdememriasparaaconstruodasnarrativas.Apoiadaemsuavida,Conceio Evaristo confunde, inventa, cria e recria o material narrativo para a construo das narrativas. AautorafrisaqueaLiteraturaAfro-brasileiradeveservistacomoumespao quilombola por excelncia onde os sujeitos, criadores e narradores de seus discursos, libertam apalavrapoticainstaurandoumespaodelutas.Opassadovistocomocompostopor diversas vozes, experincias e discursos, contrapondo ao discurso homogeneizante e dominador dahistriaoficial.Arescritadopassadosednainclusodasmltiplas vozesdaquelesque foram continuamente silenciados.Atentando para as sobras, os narradores dos romances Ponci Vicncio (2003) e Becos damemria(2006)constroemumanarrativamnemnica,fragmentada,multifacetadae polifnica.Amemriacoletivaconstrudapossibilitandoacriaodenovosespaosde 11 discusso e a desestabilizao de esteretipos relacionados aos sujeitos negros. A experincia negraprimeiramenteconstrudanareivindicao,opondoanoesnormatizadase normalizadas com relao a uma identidade negra.Abuscaporumarepresentaoefetivaemeramentecrticadeumsujeitonegro, independente e crtico tem sido uma das tarefas empreendidas pela escritora negra Conceio Evaristo desde a publicao de seus primeiros contos e poesias. A escritora por meio de uma escritabaseadanasexperinciasdesujeitosafro-brasileiros,tendoprincipalmentecomo pressuposto inerente as suas mltiplas identidades, tem como um de seus objetivos literrios e polticos reescrever a Histria dita oficial fazendo emergir memrias subterrneas que desafiam discursos segregacionistas e preconceituosos baseados em uma alegada democracia racial.ConceioEvaristoquetempublicadodesdeosanos1990poemasecontosnos CadernosNegro1publicaoempreendidaefinanciadapelogrupoQuilombhojedeSo Paulo,criadoporvoltadoano1978equetemcomoobjetivoaumentaradivulgaode escritoresepoetasnegroscunhouumaterminologiatericaparadefinirsuaescrita: Escrevivncia. Para Evaristo, a literatura negra toma como corpus, como material bruto para a criao literria a Histria constituda na multiplicidade de vozes resignificando e redesenhando o discurso oficial tendo como arcabouo terico a experincia negra do sujeito na sociedade. Trata-se de uma proposta transgressora e questionadora da Histria oficial que objetiva fazer emergiratravsdasrasurasdodiscursooficialedamemrialegitimadaasmemrias subterrneas constantemente silenciadas e apagadas da Histria.A escrevivncia defendida por Evaristo consiste em escrever com vida, da vida e para a vida. Evaristo defende que, nestes ltimos anos, tem havido o surgimento de diversos escritores e escritoras preocupados com a temtica negra no Brasil, no somente preocupados em falar do afrodescendente como objeto mas tambm em deixa-lo falar de si, de sua vida e de seus desejos. Tendo sido o corpo negro, durante sculos, violado em sua integridade fsica, interditadoemseuespaoindividualesocialpelosistemaescravocratado passado e, hoje ainda por polticas segregacionistas existentes em todos, se no em quase todos, os pases em que a dispora africana se acha presente, coube aosdescendentesdeafricanos,espalhadospelomundo,inventarformasde resistncia.[...]Aidentidadevaiserafirmadaemcantosdelouvoreorgulho

1 A abertura poltica realizada no Brasil a partir de 1978 coincidiu com a retomada de diversos movimentos negros que haviam sido proibidos durante a ditadura militar. Esta relativa abertura propiciou a criao do coletivo literrio CadernosNegrosquedesdeentotmpublicadotodososanosalternadamenteumvolumedecontoseumde poesia.AproduototalmenteindependenteeosCadernosNegrostmsidoresponsveisnoBrasilpela divulgao de diversos escritores e escritoras negros que no encontram meios de publicar nas grandes editoras. A partir de 1980 o grupo Quilombhoje de So Paulo passa a administrar os Cadernos. 12 tnicos, chocando-se contra o olhar negativo e com a estereotipia lanados ao mundo e s coisas negras. (EVARISTO, 2009a, p.12) EstasformasderesistnciaafirmadasporEvaristoreferem-sea,porexemplo,uma tentativadeadequaodareligiododominadorcomastradiesreligiosastrazidaspelo dominado(asreligiesumbanda,candomblequimbandasoreflexosdetentativasde resistnciaencontradaspelosnegrosescravizadosdemanteralgumascaractersticasdasua religio africana camuflada com os ritos e crenas do dominador).Outra forma de resistncia persistentementeempreendidapelosnegrosescravizadosfoiaconservaoderetalhosde memriadopassadopormeiodenarraesorais.AnarradoraprotagonistadeBecosda memria,Maria-Novatentapormeiodanarraodehistriasdafavelaqueanteshabitava, conservar a memria daqueles que se perderam no caminho, que no conseguiram atravessar o rio e ficaram do outro lado. Para a construo destes romances Evaristo apoia-se na memria como capacidade de imortalizar o efmero. Em seus romances as personagens trazem as dores no somente suas, ou dos seus mas tambm daqueles que foram tirados de suas casas contra a sua vontade, separados desuasesposas,deseusmaridosefilhos,quetiveramqueaprenderumanovalngua,outra religioequetemvividoemmisriahmaisdequatrocentosanos.Osromancesbuscama memriadaquelesquenemconseguiramrealizaratravessia,quemorreramdefome,frioe saudade. A voz daqueles que estiveram durante tantos anos esquecidos faz-se ouvida por meio denarrativasduras,secas,singelaseimensamentepoticas.Asnarrativas,tecidaspormos hbeis de narradores-artesos, vo dando sentido a retalhos de memria que se transformam em magnficas colchas de histrias.Desse modo, a histria de Ponci presentifica-se e a memria-herana deixada por V Vicncio se realiza. Maria-Nova por meio da narrao dos becos de memria que compunham afavelaondemoravatornaaudvelodiscurso,olamento,amisriamastambmaluta,o trabalho, a dedicao e a esperana daqueles que foram mais uma vez retirados de casa, fora.PonciVicnciotentaatodoomomentoduranteanarrativaemendarumtempono outro: o tempo passado de seu av e antepassados, com seu tempo presente, insignificante eindizvel2.Seupassado,marcadopelapresenaconstantedoav,representaparaa personagemomomentodesuavidanoqualfoimaisfeliz;naquelapocaPonciVicncio gostava de ser menina. Gostava de ser ela prpria. (EVARISTO, 2003, p.9)

2Deumpassadodefalas,devozealegria, Poncipassaaterumpresentecadavezmaismudoeindizvel.A personagemesvai-sedeexperinciasnarrveissetornandototalmenteapartadadesiesozinha.Comooav,a personagem comea a pronunciar coisas ininteligveis e a perder, de certo modo, a noo de realidade. 13 A figura do av, homem problemtico, considerado por todos como louco, representa na vida de Ponci quando criana e agora adulta a sua ligao com o passado e com a heranaquelheforaguardada.AheranadeixadaporVVicncioserconstantemente buscada e evitada pela protagonista durante a narrativa: Ponci tem medo do vazio que se torna cada vez mais constante e presente. Maria-Nova,meninaforjadaaferroefogo,recriaosbecosdafavelaatravsdesuas recordaes reescrevendo a histria de vida das personagens que habitavam a antiga favela onde morava,apoiando-senasnarrativasoraiscontadasporBondade,TioToteMaria-Velha.A menina,quegostavadesentireouvirhistriastristes,passeiapelosbecosdasuamemria tentandoencontrarosantigosmoradores,osfamososeaguardadoscampeonatosdebola,a durezaeamisriadaquelesquenemdonosdesuacasaerameafelicidadeexistentenas pequenascoisas.Maria-Nova,personagemprotagonistaenarradoradeBecosdamemria, costura os retalhos de memria daqueles que ficaram esquecidos nos escombros da favela que no existe mais. Amemriaconstitui-se,dessemodo,comoofatormaisimportantedestasnarrativas sendoofiocondutorquecosturaosretalhosdehistriasdaspersonagens.pormeioda evocao memria que Ponci d contornos a massa disforme de sua vida; a herana deixada por V Vicncio se presentifica quando Ponci recorre a uma revisitao ao passado; Maria-Nova, evocando a memria dos que j se foram, procura reescrever uma histria que, durante muito tempo, ficou suprimida pelos discursos oficiais, dando voz e vez aos moradores da favela. Estrutura da dissertao Noprimeirocaptulorealizou-seumareflexoatentandoparaaconstruodos romances.AsobrassoanalisadascombasenapoticadaEscrevivncia.Apoticada escrevivncia,tomadanessetrabalhocomooprojetoliterriodeEvaristo,apresenta,desse modo, algumas caractersticas3, mas no somente, como: i. A tomada de conscincia de seus personagens, tanto racial, social, econmica, histrica, sexual, de gnero, etc.; ii. A assuno de que o privado tambm poltico, no sentido de que, toda produo literria empreende um

3Combasenaanlisedosromances,eapslongasreflexes,assumiu-seapoticadeEvaristocomosendoa potica da Escrevivncia no sentido explicitado anteriormente. Na anlise dos romances aqui apreendida, a potica de Evaristoganha outros contornos, no sentido de ser possvel realizar alguns paralelos entre sua produo e a realizaodesuapotica.Emborasuaproduonosejatoextensa,einfelizmente,muitomenosdivulgada, Evaristotemumprojetoliterrio,comoafirmadopelaautoraquantoasuaproduoartsticaeessesromances fazem parte desse projeto, de escrever sobre a vida. 14 ato poltico; iii. A retomada do passado, da histria, na maior parte das vezes, no-oficial; iv. A importncia dada a memria, como fenmeno de retomada do passado, de coisas ausentes e a suacontribuioparaa(des)construodopresente;v.Apresenadasmulherescomo produtorasemantenedorasdessamemriapresentificada;vi.E,necessariamente,a preocupaoemposicionaraspersonagens,identificadascomoafrodescendentes,como criadoras de seu discurso, no mais assumindo e aceitando discursos que criem hierarquias e excluso.Nosegundocaptulorealizou-seumadiscussosobrememriacombaseno pensamento de Maurice Halbwachs (2006) e Michael Pollak (1989, 1992). A memria tomada por esses tericos como construo social. Pollak, avanando os pensamentos de Halbwachs, enxerga um constante embate entre a memria oficial, a memria nacional e as denominadas memrias subterrneas.Nesse sentido a ideia de nao tomada com base nos pensamentos de Stuart Hall que afirma que a nao no apenas uma entidade poltica mas algo que produz sentidos um sistema de representao cultural. As pessoas no so apenas cidados/s legais de uma nao; elasparticipamdaideiadanao,talcomorepresentadaemsuaculturanacional.(HALL, 2006, p.49) Por isso, a capacidade de criar um sentimento de lealdade e pertencimento. Assim,osegundocaptuloconstadeumapanhadotericosobrealgumasquestes sobreamemria,otempoeahistriaeasimplicaesdestasteoriasparaaanlisedos romances de Evaristo. A memria, tema e categoria narrativa dos romances analisados, representa o ponto em consonnciadasduasobraseprincipalmentecomofatoressencialparaaconstruoda identidade das personagens protagonistas: Ponci Vicncio e Maria-Nova. A memria tambm est relacionada de forma inerente potica de Conceio Evaristo: por meio da evocao de umpassadocoletivo/individualesilenciadoqueaescritorarealizaasubversoda memriaoficial,legitimadaeautorizadapelosdiscursosdodominador.Orememorareo relembrar nos romances atestam a tentativa de escritura denominada escrevivncia pretendida pela escritora: escrever rasurando o que foi escrito sobre o negro.Noterceirocaptulorealiza-seumaanlisedasobrasapontandoparaasquestesde histria, memria e esquecimento. A histria e o discurso oficial tornam-se importantes para a realizao desta anlise uma vez que o contexto histrico interfere na produo literria. No se pretende tomar a literatura como reflexo da Histria, apenas apontar para o fato de que toda Literatura,tododiscursoliterrioestinseridoemdeterminadapoca,ecomotal,apresenta 15 caractersticasscias,culturais,histricase,sobretudo,ideolgicas.Talreflexosefaz necessriaumavezqueaescritoraConceioEvaristoapresentaumaposturapoltica extremamente marcada e crtica; faz-se necessrio, a fim de entender os seus romances, ter em mente a trajetria do negro no Brasil desde a dispora africana4. A assuno nas obras de Evaristo de um sujeito negro objeto mas principalmente sujeito de seu discurso ocasiona um contragolpe poltico e crtico nos discursos oficiais que tm como pressupostos a crena em uma democracia racial que ainda concebe o negro como o outro. A prpriaproduoliterriadeescritoraseescritoresnegrosquesequeremnegrosocasionao questionamento e a consequente reescritura de uma Histria que insiste em somente levar em considerao o discurso do vencedor. Oresgatedestashistrias/memriassubterradaspelaHistriaoficialrealizadopor meiodeumaconstanterevisitaoaopassado,umpassadopermanentementerevivido.A literatura de Evaristo torna-se, deste modo, o lugar por excelncia da memria onde narradores hbeis na produo do barro narrativo do forma a personagens que foram e so constantemente silenciados pelos discursos oficiais. Apropriar-sedasuahistriaedesuacultura,reescrev-lasegundoasua vivncia, numa linguagem que possa ser libertadora, o grande desafio para o escritorafro-brasileiro.Eleescreve,secomunicaatravsdeumsistema lingusticoqueveioaprision-lotambm,enquantocdigorepresentativode uma realizao lingustica da cultura hegemnica. (EVARISTO, s.a., p.05/06) Oltimocaptuloconstadeumaconclusoquetemcomoobjetivoteceralgumas consideraes finais acerca da anlise empreendida neste trabalho. Pretende-se com a manufatura deste trabalho possibilitar um alargamento do arcabouo crticoliterrioacercadaproduodaescritoraConceioEvaristo,umavezque,afortuna crtica da escritora compe-se de algumas produes no muito divulgadas. Por meio da anlise destesromancespretende-seadvogarafavordoquestionamentodosdiscursosoficiaisque pregam a chamada democracia racial baseados ainda em preceitos racistas e segregacionistas. por meio da literatura que estes discursos so problematizados e questionados; por meio da

4OtermoDisporaAfricanasurgiunadcadade1950,sendoutilizadopordiversosestudiososparadiscutira questodosafrodescendentesnomundo.AnoodeDisporaAfricanaestrelacionadaaosmovimentos realizados pelos afrodescendentes ao redor do mundo, tendo como conceito-chave uma concepo globalizada de negritude,oublackness,queenxergaadisporanegracomocomunidadeeidentidade.Vide: http://www.virginia.edu/woodson/courses/aas102%20%28spring%2001%29/articles/pierre_lecture.pdf. importanteperceberqueanoodeDisporaAfricanapodeserenxergadacomoumaferramentatericapara entenderosprocessosdeopressoquecaracterizamaexperincianegranomundoetambmcomoumfator identitrio, apontando para a uma ideia de origem comum. 16 linguagem potica que preceitos e preconceitos so quebrados e que a busca por uma liberdade e tomada de conscincia tornam-se possveis. A literatura o espao no qual as memrias ditas subterrneas encontram livre caminho para sua expresso. Ave, palavra! 17 1.A ESCREVIVNCIA DE CONCEIO EVARISTO: UMA POTICA Talvez o primeiro sinal grfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha me. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a no ser dos seus, os mais antigos ainda? (EVARISTO, 2007, p.16) Durante os dias que havia muito chuva, as mulheres da favela-senzala de Maria-Nova, menina-narradora do romance Becos da memria (2006), costumavam desenhar a imagem de um imenso e ardente sol no cho em meio aos barracos a fim de espantar o aguaceiro. A chuva, longe de proporcionar dias mais amenos e midos para os moradores, significava mais trabalho, pois as roupas lavadas com tanto custo no secariam e o minguado salrio das lavadeiras via-se reduzido ou quase extinto. A misria, personagem constante na vida e na mesa dos moradores da favela, tornava-se mais carrasca e exigente: se durante os dias de sol a dificuldade de comprar o po e o leite para ascrianas era difcil, com achuva a fome ficava mais e mais audvel e destruidora. Alm da falta de alimento, a persistncia da chuva acabava por destruir os barracos mais frgeis e precrios. Um barraco minsculo, onde morava uma famlia com suas prprias dificuldades e problemas, tornava-se um abrigo para trs ou quatro outras famlias que viam o pouco ou nada que tinham escorrer pelos becos da favela. Tudo ia ficando mido, tudo mofo, tudo barro, tudo lama e frio. Os agasalhos eram poucos, muito poucos. As roupas das patroas no secavam. O trabalho custava tanto e pouco rendia. (EVARISTO, 2006, p.128). Aindamelembro,olpiseraumgraveto,quasesempreemformadeuma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente as suas pernas abertas. Me se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prend-la entreascoxas eoventre. Edeccoras, compartedocorpoquase alisando a umidade do cho, ela desenhava um grande sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura cmplice das filhas, eu e minhas irms, todas ns ainda meninas. Era um ritual deumaescritacompostademltiplosgestos,emquetodocorpodelase movimentava e no s os dedos. E os nossos corpos tambm, que se deslocavam no espao acompanhando os passos de me em direo pgina-cho em que o solseriaescrito.Aquelegestodemovimento-grafiaeraumasimpatiapara chamar o sol. Fazia-se a estrela no cho.(EVARISTO, 2007, p. 16) Aslavadeirasdafavela,mulheresqueencontramnotrabalhodomsticoummeiode certaindependnciaeconmica,aoinvsdedarem-seporvencidas,agarram-seaum conhecimentoancestralcomoummecanismodesobrevivnciafacesadversidades.A 18 grafia-desenho5deMeJoana,medaprotagonistadoromanceMaria-Nova,recuperauma crena que sobreviveu e sobrevive nos interstcios do discurso apagador da histria oficial.A simpatia para atrair o sol, performada por Me Joana nos momentos de muita chuva, retomanoromanceoprimeirosinalgrficoapresentadocomoescritaaqueEvaristotem conscinciainscrioancestralescritaporsuamequandoaautoraeraumacriana.A grafia-desenho da me de Evaristo performa uma noo de escrita que to cara a autora e que estatreladaaumaancestralidade,aumpassadoquenonecessariamentedefinido cronologicamente mas que existe e se faz presente.A grafia-desenho performada pelas diversas mulheres da favela um ato discursivo que ultrapassaumapassivaposiodeleitura.Mesmoemmeioatantasadversidades,essas mulheres, como Me Joana, ativa e criticamente optam por no somente lerem as mazelas de seuspresentesmasemescreverumoutroenovofuturo.Talvez,estasmulheres(comoeu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreenso do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepo da vida. Escrever pressupe um dinamismo prprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrio no interior do mundo. (EVARISTO, 2007, p. 21) Para Evaristo, a escrita, tida como um ato atrelado a ideia de ancestralidade, tambm uma maneira de apreender o mundo de modo crtico e poltico, em sua extenso e profundidade de modo a no somente contemplar a vida apenas na superfcie. preciso ler as escrituras de Conceio Evaristo como representaes de uma afirmao identitria construda por uma voz legtima que se fia narrativa, voz que se quer e que se afirma como verdadeira representante da dispora africana, tatuada nas experincias existenciais da autora. (PRATES, 2010, p.134). Ao resgatar no romance a grafia-desenho de sua me, a autora cria uma representao identitriadesujeitosafro-brasileirosparaalmdeesteretipospr-concebidoschamando atenoparaariquezaculturaldeorigemafricanaquesimpartedadenominadacultura brasileira.ComoPratescoloca,Evaristopormeiodesuaescritareivindicaascategorias identitrias de mulher, negra, brasileira, professora, viva, etc., afirmando uma voz que se quer representante da dispora africana. Entretanto, essa representao identitria deve ser assumida emsuamultiplicidade,aocontrriodeumanoohomognea.Evaristoposiciona-secomo

5 Em um texto intitulado Sobre a grafia-desenho de minha me um dos lugares de nascimento da minha escrita, por Conceio Evaristo a autora utiliza o termo grafia-desenho ao falar sobre o desenho de sol que sua me fazia no quintal em dias de muita chuva. A autora afirma, como citado acima que, esse desenho, que tambm escrita, fruto de um conhecimento ancestral, e que, por sua vez, foi o primeiro exemplo de escrita a que a autora tem conhecimento durante a infncia. 19 representantedadisporaafricanaresignificandoaprpriaideiadeidentidadenegracomo essncia, apontando para seu carter fludo, heterogneo e mltiplo.O mundo e as pessoas que o habitam so apreendidos pela escrita de Evaristo,dando ateno especial aos mais desvalidos e marginalizados que encontram em sua grafia-desenho, espao e suporte para narrarem suas experincias. A grafia-desenho do sol, tanto no romance quantocomoexperinciadevidadaautora,apontamparaocarterperformativodaescrita escrevivente de Evaristo, onde a palavra viva e vive, passado-presente-e-o-que-h-de-vir, erealizadoradaaoderecuperarumapresenaancestral.Nofelizneologismo escrevivncia, e na reorganizao de um lxico motivado pela subjetividade, que entrelaa osdoisverbosfundir/confundirnumaexperincianica,con(fundem)-sevidaeobra, passado e presente, molhados em guas de me, que lavam da memria o vermelho, agora azul, azul-anil (PRATES, 2010, p.137). A escrevivncia de Evaristo funde tempo presente e passado da autora com a realidade de suas personagens protagonistas, Maria Nova e Ponci Vicncio, culminandonacriaodeumanarrativamltiplaepolifnicaqueprimapeladiversidadee incluso.Debruar-se sobre a obra de Conceio Evaristo deparar-se com uma escrita que foi banhada nas guas da misria, mas que sobreviveram e no se derreteram: os sonhos expressos na narrativa de Evaristo presentificam-se6, tornam-se palavra viva, vivida e transformadora. Por meio de sua escrevivncia a autora pretende incomodar de seus sonos injustos os de l da casa-grande. A autora utiliza esse termo para definir um projeto literrio no qual posiciona-se crtica epoliticamentedentrodaliteraturabrasileira,emespecial,dadenominadaLiteraturaAfro-Brasileira ou Literatura Negra.Evaristoinauguraemsuaproduoliterria,compostadediversospoemasecontos, alm de trs romances7, a Potica da Escrevivncia na qual assume-se uma conscincia racial,

6 Evaristo, em seu romancePonci Vicncio, faz uso do termo presentificar com relao a herana herdada por Ponci de seu av, V Vicncio. Na narrativa, a personagem protagonista em sua jornada de autoconhecimento depara-secomafatalidadedaspalavrasdonarrador,oqualafirmaqueaheranadeVVicncio,umdia,se presentificaria na neta. Faz-se uso do termo presentificar nesse trabalho como uma retomada do termo utilizado por Evaristo no sentido de tornar-se real, presente, vvido, realizar-se, tornar-se manifesto. 7 Evaristo publicou, at o presente momento, trs romances e uma antologia de poesias: Ponci Vicncio (2003), Becos da memria (2006), Insubmissas lgrimas de mulheres (2011) e Poemas de recordao e outros movimentos (2010), respectivamente, e encontrou diversos problemas para que suas obras fossem publicadas. Em um ensaio a autoraafirmaquetentouenviarseusromancesparaalgumaseditoras,sendosumariamentenegada,porisso, optouporpublicaremumapequenaeditorado BeloHorizonte,aMazzaEdieseas duasltimasobrasna editora Nandyala. Seu segundo romance, Becos, escrito em 1987, foi por duas vezes prometido de ser publicado, e,comoscancelamentosdesuapublicao,Evaristooptouporengavet-lo,sendoestepublicadosomenteem 2006.Entretanto,mesmocomasuapublicao,extremamentedifcilencontrarexemplaresdesseromance, devido pequena tiragem. Esses problemas enfrentados por Evaristo so sintomticos com relao dificuldade 20 degnero,socialeondeotextoliterrioutilizadocomoumaferramentaparaquetal conscinciasejaatingida.Aautorainiciasuaproduoliterriacomopartedaantologia Cadernos Negros financiada pelo Grupo Quilombhoje de So Paulo em 1990.O boom de produes literrias de escritores afro-brasileiros ocorrida a partir da dcada de 1970 relaciona-se a uma certa abertura poltica ocasionada pelo enfraquecimento do sistema poltico vigente no Brasil durante a Ditadura Militar e principalmente reflete a retomada poltica dosmovimentosnegros.OsCadernosNegros,umdosmaisimportantesespaospara publicao da literatura afro-brasileira, consistem em uma antologia anual que rene produes artsticas dos afro-brasileiros. De autoria variada, com escritores oriundos dos diversos estados brasileiros,essaantologiapotica,quesurgiuemSoPauloem1978,possuidiversas publicaes,sendoosnmerosmparesdedicadosaospoemaseosnmerospares,aos contos. (PEREIRA, 2009, p. 123). A antologia uma produo empreendida pelos escritores que tm interesse em ver suas obraspublicadasecontacomduaspublicaesanuais.Frisa-sequenosedeveesquecera importnciadessaantologiacomoCadernos,sendoimpossvelcompar-loanenhumaoutra produo literria existente no Brasil, principalmente devido ao alto custo relacionado a esse tipo de publicao. Portanto,Cadernos tem sido um importante e fundamental veculo para dar visibilidade literatura negra. (SALGADO, 2011, p.09) 8.A diversidade dos textos presentes nos Cadernos Negros funciona tambm como uma resistncialiterria,umavezque,osescritoresqueproduzemcontosepoesiasaserem publicadosnessasantologiasocupamumoutroespao,nooespaodosbestsellersedas produes literrias comerciais, mas um espao de liberdade criadora e revoluo literria. Os Cadernos tm possibilitado que autores que possivelmente no encontrariam espao em outros tipos de publicaes, sejam ouvidos, e inegavelmente, reivindicam tambm a desestabilizao de taxonomias acadmicas que continuam a estabelecer o que ou no literatura.

quemuitosescritoresconsideradosmenoresenfrentamparapublicarsuasobras.(EVARISTO,2005).Almde coletneasliterriasecrticasbrasileiras,seustextosaparecememantologiastaiscomo:Schwarzeprosa, Alemanha (1993); Moving beyond boundaries: international dimension of black womens writing (1995); Women rightingAfro-brazilianWomensShortFiction,Inglaterra(2005);FinallyUs:contemporaryblackbrazilian women writers (1995); Callaloo, vols. 18 e 30 (1995,2008); Fourteen female voices from Brazil (2002), Estados Unidos;ChimurengaPeople(2007),fricadoSul;Brasil-frica:comoseomarfossementira,Brasil/Angola (2006). Ademais, suas obras so traduzidas e pesquisadas dentro e fora do pas. (PALMEIRA, 2009, p. 125) 8 [] It should be mentioned that there exists no such other anthology with texts by Afro-Brazilian authors, mainly duetotheexpenseinvolvedinproducingpublicationsofthistype.Thus,Cadernoshasbeenimportantand fundamental vehicle to give visibility to black literature. (SALGADO, 2011, p.09) 21 As narrativas que passam a ganhar visibilidade por meio dos Cadernos rasuram noes de literatura ainda impregnadas de concepes imperialistas e segregacionistas sobre a palavra potica. Cadernos Negros proclama, de certo modo, a independncia da colonizada Literatura. Assim, Evaristo e outros escritores que tm publicado no Cadernos fazem parte de um grupo maior de escritores afro-brasileiros que por meio de suas produes literrias problematizam a prpria noo do que literatura. Em sua grande maioria, os textos publicados nos Cadernos so fruto de autores que no encontrariam espao em grandes editores e que encontram nessa antologiaummododetornaremaudveissuasprodues.Trazendoaomeioliterrionovas perspectivas,oscontosepoemasmostramoutrasrealidades,arealidadedaschamadas minorias. Almdeapresentarumavozatagorapoucoouvidaoumesmonoouvida, esses grupos procuram rediscutir o conceito de cnone literrio.Os grupos se (re)organizamnasociedade,eessepanoramaobviamenterefletidona produo cultural. A literatura se posiciona sob uma era com novos contornos. Grupos que antes tinham sido, at o momento, considerados como inexistentes naproduoliterriacomeamaaparecer,efundamentalmente,o conhecimento passa a ser levantado sobre trabalhos previamente desconhecidos ou trabalhos julgados inexistentes. (SALGADO, 2011, p.08/09)9 Evaristo faz parte de uma tradio de escritores como Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves, Geni Guimares, Cuti, Miriam Alves, denominados Afro-Brasileiros, ou Negros10 que possibilitamosurgimentodenovosdiscursosdentrodocampoliterrioprovocandoa conscientizao dos sujeitos afro-brasileiros em relao situao social, econmica e poltica que os mesmos se encontram e chamando a ateno da academia e das grandes editoras para a suaexistncia.Dessemodo,importantequeessatradiodeescritoressejalembrada, demonstrandoqueaLiteraturaAfro-Brasileiraconsolidadae,emboraencontrediversas dificuldades, fruto de um rduo trabalho de escritores que, apesar de tudo, tm publicado11.

9 Beyond presenting a voice until now little heard or even unheard, these groups seek to re-discuss the concept of the literary canon. Goups (re)organize themselves in society, and this panorama is obviously reflected by cultural production. Literature positions itself under the ages of a new profile. Groups that had until now been considered lacking in literary production begin to come forward, and, primarily, awareness has been raised about previous unknown work or work judged to be non-existent. (SALGADO, 2011, p.08/09). 10 Talvez um dos mais difceis e geralmente tendenciosos debates com relao Literatura Afro-Brasileira seja a classificao das obras produzidas por escritores inseridos nessa temtica. A discusso sobre a rotulao dessas produes no faz parte dos objetivos do trabalho aqui realizado, entretanto, embora no exista uma tradio de anlise de obras produzidas por afro-brasileiros dentro das universidades brasileiras, parte-se do pressuposto que esses escritores, como Evaristo produzem literatura. 11 Faz-se necessrio, talvez, pensar que o mercado editorial no Brasil caracterizado pela dificuldade do acesso. 22 A dificuldade para publicao torna-se maior com relao s escritoras afro-brasileiras, que como Adriana S. Souza esclarece em sua dissertao, (2011), alm da prpria dificuldade enfrentada por escritores afro-brasileiros em encontrar uma editora que publique seus trabalhos, existeadificuldadedamulhernegraemsubverteresteretipos.Souzaafirmaqueessa dificuldade, quando comparada ao homem negro, torna-se ainda maior. Evaristo corrobora essa ideia, afirmando que oprimeiroobstculoserumautornovo,senoestivernosholofotesda mdia;osegundosernegroemulher,poisasociedadenoest acostumada a ver uma mulher negra escritora, porque espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funes, como cozinhar muito bem, danar, cantar mas no escrever (2006). (apud SOUZA, 2011, p. 28-29) Sublinha-se na anlise de Souza (2011) a problemtica da questo de gnero e raa no tocanteproduoliterriadeescritoresafro-brasileiroseasexpectativassociaiseculturais com relao posio da mulher afro-brasileira, no somente como personagem, mas tambm como dona do discurso literrio. A intersecionalidade de categorias identitrias como gnero e de raa, e tambm de classe social, influenciam a maneira como o discurso sobre a mulher negra tem sido construdo e, tem sido, por outro lado, desestabilizado pela produo de Evaristo. As personagensprotagonistasdosromances,Maria-NovaePonci,desestruturamconcepes patriarcais, racistas e machistas sobre a mulher negra brasileira, possibilitando a emergncia de narrativas oprimidas pela Histria oficial.Aspersonagensfemininasafro-brasileirassoimportantespresenasnapoticade escrevivnciadeEvaristoesuasvozesfazem-seouvidasquandoasmesmasreivindicamo direito de existir e contradizem uma narrativa nacional baseada em uma poltica sexual negra aindaapoiadanaconcepodemulheresafro-brasileirascomoprimitivas,selvagenseao serviodoprazeredaexploraosexual,narrativasquecarregamaheranahistricada escravido.Pormeiodeumacrticasocial,Evaristoabreumnovodiscursonaliteratura brasileira de resistncia e abre caminhos dentro de uma nova relao dialgica. (SALGADO, 2011, p.19) Evaristopossibilitaaemergncianosromancesdasnarrativas,dashistriasdaqueles que foram obrigados a viver margem: dos desvalidos, das prostitutas e dos criminosos, e mais importantemente, onde o autor no se coloca na posio de juiz que deve decidir quem so os culpados e os que devem ser gratificados pela boa conduta.O narrador o ouvinte, uma espcie de leitor ideal, aquele que ouve, e que se posiciona como um ombro amigo. 23 A potica da escrevivncia, tomada nesse trabalho como o projeto literrio de Evaristo, apresenta,dessemodo,algumascaractersticas12,masnosomente,como:i.Atomadade conscincia de seus personagens, tanto racial, social, econmica, histrica, sexual, de gnero, etc.;ii.Aassunodequeoprivadotambmpoltico,nosentidodeque,todaproduo literria empreende um ato poltico; iii. A retomada do passado, da histria, na maior parte das vezes, no-oficial; iv. A importncia dada a memria, como fenmeno de retomada do passado, decoisasausentes,easuacontribuioparaaconstruodopresente;v.Apresenadas mulherescomoprodutorasemantenedorasdessamemriapresentificada;vi.E, necessariamente,apreocupaoemposicionaraspersonagens,identificadascomo afrodescendentes, como criadoras de seu discurso, no mais assumindo e aceitando discursos que criem hierarquias e excluso. Evaristo assume-se dentro da denominada Literatura Afro-brasileira e sublinha sua experincia e tambm sua produo literria que surge nas rasuras do discurso literrio brasileiro embranquecido e embebido no mito da democracia racial. E, nesse sentido, afirmo que, quando escrevo, sou eu, Conceio Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que no me desvencilho de minha condio de cidad brasileira, negra, mulher, viva, professora, oriunda das classes populares, me de uma especial menina, Ain, etc., condies essas que influenciam na criao depersonagens,enredos ouopesde linguagemapartir deumahistria,de uma experincia pessoal que intransfervel. (EVARISTO, 2011, p.115) Evaristoreivindicaaautoriadesuaproduoliterriaesuaposiocomosujeito constitudo por diversos discursos identitrios os quais no podem servir como apagamento de sua existncia mas como exemplos de sua singularidade. Aassuno dasdiversascategorias que a constituem como eu-sujeito sublinha a noo de identidade como construo que se d tanto no nvel histrico quanto social e cultural, sendo necessariamente construo discursiva. Colocando-se como uma potica construda na interseco de diversas categorias discursivas, comoodiscursoracialoudegnero,apoticadaescrevivnciatambmacentuaocarter multifacetado, polifnico, fragmentado dessas personagens afrodescendentes evocadas em sua produo literria.

12Combasenaanlisedosromances,eapslongasreflexes,assumiu-seapoticade Evaristocomosendoa potica da Escrevivncia, no sentido explicitado anteriormente. Na anlise dos romances aqui apreendida, a potica de Evaristoganha outros contornos, no sentido de ser possvel realizar alguns paralelos entre sua produo e a realizaodesuapotica.Emborasuaproduonosejatoextensa,einfelizmente,muitomenosdivulgada, Evaristo tem um projeto literrio, como afirmado pela autora quanto a sua produo artstica, e esses romances fazem parte desse projeto, de escrever sobre a vida. 24 Alm desse carter pluri da potica de escrevivncia, tambm faz-se necessrio notar a particularidade de tal produo literria. Tendo em mente a condio identitria defendida pela autora, a mesma assegura que devido a sua natureza tnica e de gnero, acrescida de outras marcas identitrias que a permite uma experincia diferenciada do homem branco, da mulher brancaemesmodohomemnegro.Aminhaexperinciapessoalinfluenciaaminhaescrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita em meu texto. (EVARISTO, 2011, p.115) Constituindo-se na fragmentao, a potica da escrevivncia singulariza a experincia daspersonagensafro-brasileirasdosromancesdeEvaristo,emespecial,nosromances analisados nesse trabalho, Ponci Vicncio (2003) e Becos da memria (2006). As personagens soconstrudasatentandoparaaintersecodevriascategoriasidentitrias,demodoa possibilitar um discurso que pluri- por excelncia, sem necessariamente cair na propagao de esteretipos. A diversidade no deve ser vista como um modo de apagamento da unicidade das experincias dentro da narrativa.A experincia de Ponci e de Maria-Nova dentro das narrativas problematiza discursos que tentam apagar ou nivelar a experincia dos afrodescendentes dentro de uma estrutura social hierarquizante e excludente. As personagens, em ltima instncia, problematizam a assuno de uma construo identitria afro-brasileira homognea e unvoca: as personagens sublinham adiversidadedessessujeitos,apontandoparaquestesderaa,gnero,econmicaesocial. Contrapondoumaideiadeidentidadecomoessncia,podesefalarmuitomelhorem identificao,comopropostoporStuartHall(2006),comoumprocessoemconstruo.Diferentemente de assumir um sujeito negro como essncia, as personagens de Evaristo sointerseccionadaspordiversosdiscursossociais,histricos,degnero,declasse,etc.A riquezadosromancesencontra-senapluralidadedeexperinciassociais,marcadassimpelo denominadorcomumdaraa,pormquenoseprendemaumaideiaessencialistae normalizadora.A pluralidade dos discursos presentes nas narrativas aqui analisadas problematiza at a tentativa de criao de um termo para rotular a produo literria dos intitulados escritores afro-brasileirosounegros13.Essapluralidadedeexperinciasverificadanosromancesindicaa necessidade de se tomar essas personagens oprimidas e excludas da sociedade no mais como

13 Embora no se configure como um dos objetivos deste trabalho, a discusso sobre a utilizao de termos como LiteraturaAfro-Brasileira ouLiteratura Negrafaz-se importante demodo amelhor compreender a produo de Conceio Evaristo. 25 mazelassociais,semdireitosnemopes.Asexperinciastodiversaspossibilitamum entendimento mais abrangente e mais humano da situao social destes invisveis sociais: os pobres que na sua grande maioria so negros.Alm disso, apontar a natureza multifacetada desses discursos problematiza as tentativas de construir um termo analtico que abarque a produo literria da prpria escritora. Ou seja, aclassificao,ouatentativadecriaodeumaterminologiapararotularaproduode escritorescomoEvaristo,quepassamaproduzirtextosprincipalmenteapartirdadcadade 1970,exemplificaaproblemticadautilizaodosprpriostermoscomoafro-brasileiros, negros ou afrodescendentes.Paraalgunsestudiosos,comoZilBernd14,denominaraproduoliterriadesses autores como Literatura Negra sublinha, no possveis ou assumidas caractersticas fenotpicas dosautoresdessasobras,masprimordialmente,atemticaassumidapeloautorpresentena obra.Bernd(1987)apontaparaaconstruoprpriadomaterialnarrativooupoticocomo indicaodeumcomprometimentomaiorounodoautorcomrelaoaquestesderaae etnia. Neste sentido preciso sublinhar que o conceito de literatura negra no se atrela nem cor da pele do autor nem apenas temtica por ele utilizada, mas emerge daprpriaevidnciatextualcujaconsistnciadadapelosurgimentodoeu enunciador que se quer negro. Assumir a condio negra e enunciar o discurso emprimeirapessoapareceseroaportemaiortrazidoporestaliteratura, constituindo-se em um de seus marcadores estilsticos. (BERND, 1987, p.22) Para Bernd (1987), a denominao literatura negra funciona como uma categoria com pressupostosmaisconscientesepolticos,mesmoestandomaisexplicitamenteatreladaao materialliterrioenoaoautor.EmboraadenominaodefendidaporBerndfoque necessariamente no material literrio, o termo negro parece estabelecer uma correlaoentre caractersticas fsicas dos autores, como cor de pele, com a produo artstica.

14Nestetrabalhofez-seprefernciapelautilizaodotermoafro-brasileiro,afrodescendentee/ounegropara categorizar:a.aautodefiniotnica,cultural,socialehistricadaautoradessesromances,etambmdas personagens dos romances, mas sublinha-se que, enquanto afro-brasileiro retoma a ancestralidade, to importante e focalizada na produo literria de escritores como Conceio Evaristo, onde nota-se a constante retomada ao passado; o termo negro parece necessariamente caracterizar fatores fenotpicos, como cor da pele. b. a literatura produzida por escritores como Evaristo. Desse modo, nos parece que a concepo de uma afro-brasilidade aponta tambm para a natureza construda da identidade de sujeitos que se assumem como tal, o permanente estado de in-between, intermedirio, entre duas coisas ao mesmo tempo. Esse termo desestabiliza uma noo essencialista que a palavra negro possa carregar. Entretanto, nota-se que afro-brasileiro pode ser extremamente amplo e ambguo, mas talvez, esse seja o objetivo de romances como Ponci Vicncio e Becos da memria, ou seja, a no pretenso de preencher as lacunas, mas frisar as suas rasuras, os seus buracos. 26 Evaristo (2008), em alguns de seus ensaios opta por utilizar o termo literatura negra15 afirmando que este projeto literrio somente passa a existir quando o negro deixa de ser objeto deumaliteraturaquenolherepresentaparaumaquelheprpria,umavezqueafirmae confirmaa sua existncia. So histrias que sasmos negras podemrecuperar, pois nada mais justo do que escrever de si e dos seus. Escavando com as suas prprias mos, revirando a terra,vasculhado,palmoapalmo,asuahistria.(SOUZA,2011,p.11).ParaEvaristo,a literatura negra apresenta, neste sentido, um forte teor ideolgico, pelo fato de lidar como pano de fundo e de eleger como sua temtica16 a histria do negro, a sua insero e ou relaes tnicas da sociedade brasileira. (2004, p. 04) Aproduoliterriadessesescritoresobjetivaumareterritorializaosimblica, construindo,assim,umnovodiscursosobreosefeitosdocolonialismo,daspolticas segregacionistas e das concepes normativas e padronizadas que atestam uma inferioridade do afro-brasileiro. Por meio da memria alicerada em narrativas orais, este contradiscurso emerge nasrasurasexistentesnotecidodaHistriaoficialbaseadoemfalsasnoeshomognease compulsrias sobre a identidade nacional e memria coletiva, possibilitando o surgimento de polticasmaisigualitriasejustasmas,acimadetudo,fazendoemergirvozesqueforam silenciadaseignoradas.SeguindoEvaristoqueafirmaqueconsideracomoelementos constitutivos de um discurso literrio afro-brasileiro

15Emumtextoanterior,datadode2004,EvaristoutilizaotermoLiteraturaNegra,eposteriormente,emuma entrevistaconcedidaaoProf.Dr.EduardodeAssisDuarteem2011aautoraoptaporutilizarLiteraturaAfro-Brasileira.AaparentecontradiorelativaaousodostermosempreendidaporEvaristoexemplifica,decerto modo, que, embora essa seja uma discusso presente dentro dos estudos Afro-brasileiros, no se pode, e nem se deve, negar o fato de que, Evaristo, bem como outros autores, tem publicado obras, contos, narrativas e poemas, que visam, principalmente, dar voz aos sujeitos afrodescendentes do Brasil. 16 O que aqui denominado um projeto literrio no visa, de modo algum, a uma diminuio no que concerne produo artstica de autores como MariaFirminadosReis,CarolinaMariadeJesus,Cuti,EsmeraldaRibeiro, GeniGuimares,etc.,umavezqueessasproduesexistem,emesmodentrodaprecariedadequelhe, infelizmente,sintomtica,estconsolidada.Aproblemtica,levantadapelaprefernciapelousodeuma terminologiaououtra,LiteraturaNegraouLiteraturaBrasileira,nopodeobscurecerofatodeque, independentemente dos termos, escritores como Evaristo tm produzido e tem questionado, principalmente, um discursoqueaindacaracterizaossujeitosafro-brasileiroscombaseempreceitosracistas,colonialistas, imperialistas e sexistas. Retomando Bernd, importante apontar para o fato de que o que considerado literatura negranocompreendeessencialmentetextoscujatemticasejaoafrodescendenteeque continuemaperpetuar concepes racistas e preconceituosas sobre o mesmo. A escrava Isaura de Bernardo Guimares (1875) de modo algum poderia figurar dentro das produes denominadas de literatura negra, uma vez que, perpetua concepes preconceituosas e embranquecidas sobre onegro (a protagonista, Isaura, valorizadaeadmirada,pois, embora sangue negro corra emsuasveias, o tom claro de suapeleafastaqualquersuspeitaea tornasuperior).O fator preponderante,emqualquerterminologiasobreessaliteratura,develevaremconsideraotambmoprprio materialtextual,umavezqueessaescritaocasionaumcontragolpepolticoequestionadorcomrelaoaos discursos normativos acerca de uma superioridade racial. 27 aafirmaodeumpertencimentotnico;abuscaeavalorizaodeuma ancestralidade africana, que pode ser revelada na prpria linguagem do texto, na esttica do texto, a inteno de construir um contradiscurso literrio a uma literatura que estereotipiza o negro; a cobrana da reescrita da Histria brasileira noquetangesagadosafricanoseseusdescendentesnoBrasil;aenftica denncia contra o racismo e as injustias sociais que pesam sobre o negro na sociedade brasileira. (EVARISTO, 2011, p. 114) Almdessascaractersticas,aautoraafirmaquesumarizandooqueconsideracomo fatores constitutivos de uma Literatura Afro-Brasileira o elemento vital a autoria, apontando para a sua posio como escritora que se auto define afro-brasileira. Reivindicar a autoria da obra literria reflete a importncia dada auto-definio dos autores, que no precisam mais se apoiar em discursos exteriores, construindo uma literatura que tem como premissa o ponto de vista dos que viveram e continuam a viver margem da sociedade. Alm disso, posicionando-se como proprietria deseus prprios discursos,a escritora Conceio Evaristo desestabiliza concepeselitistaseclassicistasqueacreditamqueaquelequepermaneceutantotempo silenciado no tem nada a dizer. Os ladres, as prostitutas, os desempregados, as crianas malnutridas, os alcolatras, os trabalhadores rurais, as empregadas domsticas, os loucos e os enfermos, personagens urbanas eruraispresentesnosromancesdeEvaristo,PonciVicncio(2003)eBecosdamemria (2006),fazempartedegrupossociaisesquecidos,subterradosealienadospelodiscurso sanitrioeembranquecidodeumBrasilimaginrio.Entretanto,nessesromances,eles reivindicam o direito de se expressarem pelas prprias palavras e de, por um ato solidrio de seusnarradores,noseremjulgadas,nemrepreendidas,apenasouvidas.Eoouvirtorna-se, desse modo o meio pelo qual os narradores, nos dois romances, descortinam uma narrativa que permanece,aindahoje,escondidanosescombrosdodiscursooficialdedemocracia,no somente racial mas poltica, econmica e social. Assim, pode-se ler as produes literrias de escritoras que se auto-definem afro-brasileiras, ou negras, como resultadodeumexercciointelectual,pois,emsuasobras,divulgam-se discursosquesecontrapemaojestabelecidosobreelaseressignificamas suasvivnciasehistrias.Atemticadamemriasobaperspectivaafro-brasileiraumexemplodisso.AsescritoraseosescritoresdosCadernos Negrosbuscam,entreoutrosobjetivos,revigoraramemriadasvrias tradies afrodescendentes que circularam e se reconfiguraram [...] e continuam sendorefeitasportodosculoXIXeXX.(Souza,2008,p.49). Compreendendoamemriacomofatorimportanteparaaconstruoda identidade dos afro-brasileiros, as escritoras e os escritores da literatura negra tematizam a memria dos afrodescendentes em suas produes, trazendo tona umamemriacoletivainvisibilizada,negadaeapagadapelahistriaoficial brasileira.Pormeiodareinvenopotica,essasescritoraseescritores 28 imortalizam a experincia vivenciada e transmitida de pai para filho e de me para filha num processo constante de reconfigurao/preservao simultnea de tradies seculares transmitidas pela oralidade. (PALMEIRA, 2009, p.126) ApoticadeescrevivnciadeEvaristotambmconstitudanasconversasdosmais desvalidos,dosmaispobresedosmaishumilhados.Asnarrativassocosturadaspelas conversasqueaautoraouviaescondida,atrsdaporta,enquantoosadultosconversavam conversadegentegrande.Quandoquestionadasobreoporqudeter-setornadouma escritora,Evaristoafirmaquenasceucomapalavraedesdequandoeramuitopequena costumava ouvir as histrias dos mais velhos, as histrias contadas por sua me, suas tias e tios, e, primordialmente, as histrias que no eram contadas, mas sussurradas ao p do ouvido, onde o interlocutor com lgrimas nos olhos ou um sorriso estampado no rosto abria-se inteiro para a ento menina Conceio Evaristo. Gosto de contar e ouvir casos. Muito da minha escrita nasce dashistriasouvidas,dasimagensassistidasnocotidianoedeminhacondiodemulhere negranasociedadebrasileira,aspectosessesquesesomamaoencantamentoquetenhopela palavra. (EVARISTO, 2011, p.108)Suas narrativas, em particular os romances Ponci Vicncio (2003) e Becos da memria (2006), representam, de certo modo, as narrativas, as histrias, os causos guardados na memria da autora e que remontam a um tempo majoritariamente de misria, de precariedade, de falta de perspectiva e a um passado que no somente dela, mas de seus pais, dos moradores daquela favela que ainda habitam os becos da sua memria. O narrador em Evaristo simboliza o griot presente em antigas tradies africanas, sendo o membro mais experiente e mais velho da comunidade, aquele responsvel por transmitir as histrias do passado e por guardar a memria coletiva em um tempo no qual no se utilizavam arquivos, no sentido fsico, quando o arquivo da memria era a lembrana dos mais novos. Os griots so importantes porque representam uma das nicas chances de sobrevivncia da cultura, da histria e primordialmente, da identidade da comunidade. Era por meio deles que a memria comosobrevivnciadaidentidadededeterminadogrupoeratransmitidadegeraesem geraes17.Maria-Nova, a menina-narradora de Becos da memria (2006), a depositria de todos osgriotsdafavela,deVRita,Bondade,Maria-VelhaeTioTot.Elafuncionacomoum

17 Le Goff afirma que em sociedades sem escrita h especialistas da memria, homem-memria, genealogistas [...]dizquesoamemriadasociedade,simultaneamentedepositriosdahistriaobjetivaedahistria ideolgica. [...] mas tambm chefes de famlia e idosos, bardos, sacerdotes (LEGOFF, 2012, p. 411) 29 grande depsito de memrias, das memrias dos moradores, que como frisa Evaristo, j foi e j foi. A narradora, que presencia as mudanas dessa comunidade ainda criana, toma como ltimo objetivo de sua vida, agora adulta, recontar a histria dessas personagens tocomuns em um sistema que cria hierarquias e excluses: Maria-Nova narra a histria dos pobres, dos desvalidos, dos desempregados, dos loucos e de todos aqueles que vivem margem, dando-lhes voz. Em Ponci Vicncio, a depositria da narrativa, a herdeira da memria daqueles que j se foram, Ponci, menina que sai em busca de autoconhecimento e que percebe que no adianta fugir, pois a herana de V Vicncio se presentificaria, mais cedo ou mais tarde. 1.1.TECENDO OS RETALHOS NARRATIVOS DOS ROMANCES [...]A nossa escrita existe: na afiada contestao da situao histrica dapopulaoescrava;naindignaoenadennciadenossa marginalizao,eextermniomaisoumenosoficialnestessculos; numalutaconstantedeafirmaodoserhumanoemsuasinfinitas formas. (ALVES, 1995, p.06) Aliteraturaafro-brasileira,ouliteraturanegra,independentementedanomenclatura utilizada para sua classificao, existe e composta por uma grande variedade de escritores e escritoras que optam por inserir em suas obras a temtica do afro-brasileiro, trazendo tona um novodiscurso,dandonovoscontornosaocampodaliteratura,demonstrandoque,mesmo aqueles que permaneceram durante tanto tempo silenciados, tem algo a falar.Empunhando o lpis como ferramenta revolucionria para a mudanas, esses escritores e escritoras no se contentam somente em ler, mas optam por tambm escrever, conscientes de que,comoafirmaEvaristo,oatodeescrever,paraalmdaleitura,pressupeumoutro dinamismo, um dinamismo prprio do sujeito da escrita, possibilitando uma auto-inscrio do sujeito no mundo. (EVARISTO, 2007, p.21). Longe de ser assumido como um ato passivo, o ato de escrever deve ser lido como uma ferramenta para incomodar de seus sonos injustos os de l da casa-grande. (EVARISTO, 2011, p.21) Osurgimentodeescritorasafro-brasileiras,comoEsmeraldaRiberio,MiriamAlves, ConceioEvaristo,AlziraRufino,CarolinaMariadeJesus,reflete,necessariamente,uma maior conscientizao poltica com relao a questes de raa e de gnero, onde autoras como Evaristo encontram um espao para tornarem audveis suas vozes. Conceio Evaristo busca delinear uma outra representao da figura feminina negra,rasurandooditoe,aomesmotempo,inscrevendoonodito.Com 30 maestria, Evaristo procura revisar a leitura do passado escravista por meio da releitura crtica, ao emendar um tempo no outro, desvelando outros caminhos percorridos, fazendo, assim, uma reviso da histria da escravido do povo de origem africana. Evidencia-se, portanto, nos romances Ponci Vicncio e Becos da memria, enredos cuidadosamente elaborados, tecendo o tempo presente das personagens-protagonistasimbricadascomopassadodeescravizaodos ancestraiscomooVVicncioeTioTot,queconfirmamessapresena remanescenteescravista.Sopersonagensemblemticasquemarcamtodaa trajetriadevidadaspersonagensPonciVicncioeMaria-Nova.(SOUZA, 2011, p. 45) Outrosfatoresquepoderiamexplicaraconstruodeumacomunidadedeescritoras afro-brasileiras um aumento em uma conscincia dita feminista que percebe que a luta contra o racismo deve, necessariamente, encabear e enderear uma luta contra posturas sexistas18 e patriarcais. Miriam Alves aponta que essas escritoras, como ela mesma, surgem aps darem-se contadequeasvivncias,objetivos,easpiraesdamulhernegradiferenciamdasoutras mulheres e tambm dos homens negros; e por isso necessrio que tenham suas prprias vozes (ALVES, 1995, p.01).Tanto o racismo quanto o discurso sexista so fatores interconectados e interligados que afetamsmulheresnegrascotidianamenteediferentementedoquepode-sepreverquando levantam-se bandeiras que pregam que o fim do racismo culminaria com o fim do sexismo. As personagensdeEvaristososintomticasnessesentidoaotrazertonaquestesligadosao espaodomsticofeminino,dandovozsmulheresnegras,assuascontradies,dilemase dificuldades. dentro do espao ditodomstico, privado, quegrande parte das narrativas tecida. Ponci Vicncio, diferentemente do irmo, passa a maior parte da infncia dentro de casa, com sua me, cuidando das tarefas domsticas. Quando se muda para a cidade em busca de novas e melhoresoportunidades,Poncivaitrabalharcomoempregadadomstica,eapscasar-se, permanece cada vez mais e mais tempo dentro de casa a olhar pela janela, relembrando fatos passados.AsnarrativasouvidasporMaria-Novatambmsotecidasdentrodoespao domstico, pois, mesmo tendo mais mobilidade fsica do que Ponci quando era criana, uma vezquepodiasimplesmentesaircaminhandopelafavelaeirparaondequisesse,amenina-narradora no est no espao pblico, no espao da casa onde mora com Maria-Velha, Tio Tot e Me Joana que as histrias so narradas.

18Faz-seusodotermosexista,doinglssexism,comoumtermomaisabrangentedoquemachismo,encarado como um conjunto de aes, ideias, concepes que privilegiam um determinado gnero em relao a outro, sendo, na maior parte das vezes a ao empreendida por sujeitos que privilegiam o gnero masculino em detrimento do feminino. Gnero tomado como uma repetio de atos normativos caracterizados comoa priori existncia do sujeito, um construto social, e no necessariamente relacionado a fatores biolgicos. (BUTLER, 1990) 31 Faz-se importante notaro modo como a memria passadade geraesem geraes dentrodoespaodacasa,ondeosmembrosfamiliarespassamamaiorpartedotempo,em especial os idosos e as crianas. O acmulo de memrias em ambos os romances parte sim de personagens femininas e masculinas, sendo que em um primeiro momento ela narrada pela vozdoshomens:VVicncio,Bondade,TioTot.Entretanto,Evaristosublinhaopapelda mulher como a tecedeira dessas memrias, aquela que vai manter a herana do passado como matriaviva.Osnarradoresdosromances,emltimainstncia,demonstramquemantera memriadessaspersonagensvivastambmmanterahistriaquenofoicontadapelas pginas amareladas da Histria audvel.Asnarrativassocosturadasdentrodoambienteprivado,ondeosnarradores,ou narradorascoletamosretalhosdememriacomcuidadoeateno.Nosdoisromancesde Conceio Evaristo, Ponci Vicncio (2003) e Becos da memria (2006), os narradores so os arteses que costuram os retalhos de memrias de suas personagens, sendo a memria o fio que liga uma histria a outra, dando origem a uma grande colcha de histrias. Em Becos, romance que narra a vida de personagens que habitam uma favela quase extinta, Maria-Nova d voz e ouvido aos lamentos, s tristezas, s misrias e tambm alegria e aos sorrisos dessa gente to sofrida. [...]Becosdamemriasurgeapartirdeconversascomminhafamlia. Estvamosrelembrandocertosfatoseminhamedisseumafrase.Uma determinadapalavrausadaporelaequeconferiasentidoeforaaumaque recupervamosdopassado,caiudentrodemimdesencadeandoumestadode emoo e acordando outras lembranas. Da para a escrita s precisou do papel e do lpis, mais nada. A frase inicial do romance repete a fala que minha me pronunciou naquele dia. (EVARISTO, 2011, p.108-209) Becos foi escrito em 1987 e devido falta de apoio financeiro permaneceu engavetado at2006,quandoaautorafinalmenteresolveupublic-lo.PonciVicncio,romanceescrito praticamentenamesmapoca,masumpoucomaistarde,tambmpermaneceuduranteum tempo engavetado, porm nunca esquecido19. Evaristo, quando questionada sobre a escrita de Ponci diz que no sabe explicar o que a levou a escrev-lo, que talvez tenha sido um acmulo de memrias e situaes (EVARISTO, 2011, p.110). A autora comea a escrev-lo em janeiro de 1988 e termina no mesmo ano. Ambos os romances nascem do desejo de escrever sobre as

19 Devido a data de criao dos romances, neste trabalho analisa-se as obras assumindo Becos da memria como a primeira produo literria de Evaristo. 32 narrativas que fazem parte da vida de Evaristo e em cristalizar no papel as palavras que sempre estiveram presentes na vida da autora desde muito pequena.Os romances, os quais apresentam estruturas narrativas relativamente diferentes, fazem partedoprojetoliterrioaquiintituladodeEscrevivncia,noqualconstamainda:contose poesiaspublicadospelogrupodeSoPaulo,Quilombhoje,nosCadernosNegros;uma antologia de poemas, e um romance, publicado em 2011, intitulado Insubmissas lgrimas de mulheres.Os romances mesclam as memrias das personagens protagonistas, Ponci Vicncio e Maria-Nova, com as memrias dos seus pais, amigos e parentes. Essa mescla de memrias d cor e tom s narrativas que so verdadeiros catlogos sinestsicos, onde o leitor choca-se contra oacmulodesentimentosdosnarradoresedaspersonagens.Oresultadoumacolchade retalhos costurados pelas mos hbeis de narradores que, escrevivendo sobre a vida, escrevem e vivem. Nos dois sub-captulos que se seguem objetiva-se analisar os romances atentando para osprocedimentosnarrativosutilizadospelonarradore,essencialmente,conduzirauma discusso de memria como construo da identidade das personagens protagonistas, Ponci Vicncio e Maria-Nova. Nesse primeiro momento, nos caro atentar para a maneira como os dois romances so construdos, os procedimentos formais empregados pela autora, o ponto de vista,asestruturaslingusticas,etc,eprincipalmente,aposiodonarradoremambas narrativas.Retomandooquefoiestabelecidocomoascaractersticasdapoticade Escrevivncia,parte-sedoprincpiodequeaescolhadenarradorempreendidaporEvaristo corrobora o projeto literrio da autora que se refere a reescrever, ou desestabilizar, concepes pr-estabelecidas sobre o sujeito afro-brasileiro, em especial, s mulheres negras. 1.2. QUEM DISSE QUE O HOMEM NO GOSTARIA DE TER RAZES QUE O PRENDESSEM TERRA? Homens,mulheres,crianasqueseamontoaramdentrode mim, como amontoados eram os barracos da minhafavela. (EVARISTO, 2006, p.21) As personagens presentes no romance Becos da memria (2006) vivem amontoadas na memriadanarradora,Maria-Nova,que,aindacrianapercebequedeveriaserpormeioda palavra que as histrias daquela favela que j no existe mais, continuariam vivas, e portanto, 33 no cairiam no esquecimento. O romance mnemnico navega pelos diversos becos da favela em busca da melhor histria, da mais sofrida, da mais feliz, da mais triste. Maria-Nova, menina forjada a ferro e fogo busca no olhar desesperado dos habitantes da favela a narrativa mas triste, mais aguda e mais dilacerante com a pretenso de sug-la toda e acalmar seu corao jovem e cheio de pedras de sofrimento e misria. A menina, um dia, no se sabia como, ela haveria de contartudoaquiloali.Contarashistriasdelaeadosoutros.Porissoelaouviatudo atentamente. No perdia nada. (EVARISTO, 2006, p. 34-35) AnarrativaganhacontornospelasmosinfantisehabilidosasdameninaMaria, moradora de uma favela prestes a ser extinta, filha de me Joana, e amiga de Bondade, um dos moradores mais especiais da comunidade. A narradora, que posiciona-se no passado para contar a histria dos seus, faz uso das suas percepesconcernentes favela para costurara colcha narrativa. A memria, como recurso de conservar situaes, percepes e narrativas passadas o suporteutilizadoporMaria-Novaparaaconstruodoromance.Anarradorabuscanasua memria a argamassa para a edificao do romance, e como tal, a narrativa escrita de dentro para fora, de dentro das lembranas de Maria-Nova para o mundo exterior.Oromance,escritodedentrodamemriadonarrador,porexcelnciaumromance sinestsico e tambm um acmulo de memria(s). por meio das percepes da narradora, do seu olhar, do seu ponto de vista que a favela volta a existir diante dos olhos do leitor, que os moradores, esquecidos e injustiados, ganham vida dentro da narrativa. Atorneira, agua,aslavadeiras, osbarracesdezinco,papeles,madeirase lixos. Roupas das patroas que quaravam ao sol. Molambos nossos lavados com o sabo restante. (EVARISTO, 2006, p.20.) OsolhosdeMaria-Novasoosguiasdoleitoratravsdosbecos,dosbarraces,das roupas a quarar, dos homens indo para o trabalho e das lavadeiras comeando mais um dia de trabalho.Maia-Novacolocatudoemseulugareafavelanovamenteconstruda,sendo possvel ouvir os sons das torneiras de baixo e de cima, o som das crianas correndo para escola, oshomens,jcedinho,tomandoumabebidanosarmaznsemesmoosominaudvelda pobreza. Ainda no incio do romance focalizado na construo da favela a imagem da misria, osmolambos,asujeiraeafaltadeopodosmoradores.Osbarracos,feitosdezinco, papelo,madeira,ouoqueestivessedisponvel,eramcaracterizadospelaprecariedade,pela pobreza.Entretanto,independentementedasituaoeconmicadosmoradores,afavela 34 desenhada por Maria-Nova como um espao de trabalho, de resistncia, e essencialmente, de luta.Afavelatorna-se,paraonarrador,umespaodeexperinciascoletivas,comoa constante ameaa do despejo, do desfavelamento, da pobreza e da injustia, como um espao encontrado por muitos como a ltima parada, a ltima opo, porm tambm como um espao de mltiplas experincias e narrativas. O romance, como afirma Evaristo, dedicado s pessoas quehabitavamessafavela,quejfoiejfoi,aessaspersonagensqueforamtambm desfaveladas,desterritorializadasdeseuespaoconquistadopormeiodemuitaslutase conquistas.Aonarrarahistriadessasdiversaspersonagens,anarradorapriorizaodiscurso fragmentado e multifacetado apontando para a diversidade dos que habitam esse lugar, que se tornaumambientedeconflunciadememrias,deexperinciasedeumavariedadede discursos.O romance inicia-se com uma pequena introduo feita pelo narrador, onde mesclam-seasvozesdeEvaristo,tambmmoradoradeumafavelaemBeloHorizonte,equem, posteriormentefoidesfavelada,eavozdeMaria-Nova,amenina-adultanarradoraque reivindicaaautoriadotextonessasprimeiraspalavrasdanarrativa.Sabe-sedeantemoque uma das intenes da escrita do texto fazer uma homenagem aos reais moradores da favela habitada por Evaristo e a favela fictcia de Maria-Nova, que tambm real e representa outras tantas favelas que existiram. Nessa pequena introduo, o narrador visvel e quer-se visvel, fatoquenoacontecenorestantedanarrativa,ondeavoznarrativadeMaria-Novadilui-se juntocomasoutraspersonagensetambmnarradaporumnarradoremterceirapessoa, onisciente e que tambm a focaliza, como se ela tambm se posicionasse como personagem de sua prpria narrativa, a qual tambm narrada por seus olhos e suas percepes. Maria-Nova tambm uma contadora de histrias e est contando suas experincias de vida, uma narrativa que tambm foi-lhe contada por outros, como sua me, seu Tio Tot e Bondade. Escrevo como uma homenagem pstuma V Rita, que dormia embolada com ela,aelaquenuncaconseguiverplenamente,aosbbados,sputas,aos malandros,scrianasvadiasquehabitavamosbecosdeminhamemria. Homenagem pstuma s lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol.spernascansadas,suadas,negras,aloiradasdepoeiradocampoaberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. (EVARISTO, 2006, p.) Focaliza-se, nessa espcie de reivindicao autoral da narrativa, V Rita, personagem que aparece no incio da narrativa e tambm no final, em um sonho utpico de Maria-Nova e que dormia embolada com ela, a outra. A outra, personagem que (in)visvel durante toda a 35 narrativaumamulherquesofredeHansenaseequeabandonadapelomaridoe posteriormentepelofilhoporcausadesuadoena.VRitaapessoaqueaacolheelhe possibilita uma vida pelo menos um pouco mais digna.Ahomenagemfeitaaoshabitantesdafavelarefleteatentativadecristalizaodas histriasdessaspersonagensdemodoaevitaroesquecimento,ou,emltimainstncia, possibilitar a imortalidade da favela que, embora no exista fisicamente, foi consolidada com a escrita do romance. Trata-se de uma homenagem pstuma pois, mais uma vez, Evaristo refora que este ambiente to caro a ela e a menina Maria-Nova so parte do passado, de uma situao que no existe mais. Aindaquenoseouaavozdaautoraenemdepersonagens,avozdo narradorquesefazeixodoromance,poisafiguradeConceioEvaristo apareceporcimadosombrosdosnarradores.Assim,escoradanosombros dos narradores, a autora trabalha a sua sensibilidade, ao escolher e experimentar ossonsdaspalavrasparacomporasnarrativas,fazendocomqueasuavoz autoral negra seja ouvida, do comeo ao final dos romances, atravs da escrita profundamentemarcadaporsuasprpriasexperinciasevivnciana comunidadenegra,deondetiraoselementosda[sua]fico-verdade (ARAJO apud SOARES, 2011, p.50) NessemanifestodeautoriaMaria-Novainformaaoleitorasuanecessidade,em alguns dias, de ouvir histrias tristes, enquanto em outros a sede se fazia por histrias felizes, Quando eu estava para brincadeira, preferia a torneira de baixo. Era mais perto de casa. L estavam sempre a crianada amiga, os ps de amora, o botequim do Cema, em que eu ganhava sempre restos de doces. Quando eu estava para o sofrer; para o mistrio, buscava a torneira de cima. (EVARISTO, 2006, p.20). Maria-menina busca os lugares da favela no qual pudesse ouvir as histrias que no eram contadas, mas percebidas, adivinhadas e narradas ao som das mulheres lavando as roupas das patroas, usando o sabo restante para lavar as roupas da prpria famlia. Entre o ir e vir nas torneiras de cima ou nas torneiras de baixo, Maria-Nova vai se inteirando da vida da maioria dos moradores desse espao-ambiente. Passa a conhecerasmazelas,amisriadecadaum,odesesperodeunslutandopara sobreviver e de outros no desespero para morrer, pedindo terra. nesse meio que a menina vai crescer, pois o nico espao que julgavam serem os donos, revelandoserconscientesdadurarealidadequeafligiaasdocesfiguras tenebrosas, da qual Maria-Nova era testemunha no dia a dia da favela. atravs dessapersonagemqueConceioEvaristodenunciae,aomesmotempo, questionaosproblemassociaisqueatingemosmoradoresdevriasfavelas. (SOUZA, 2011, p.43) 36 A constante imagem das torneiras na favela demonstra, primeiramente,aimportncia dotrabalhodomsticoparaasmulheres,emespecialsmulheresnegras,que,embora continuem a performar tarefas domsticas herdeiras de um passado de escravido, encontram na lavagem das roupas sujas das patroas uma certa independncia econmica e a possibilidade de dar uma vida melhor a seus filhos e familiares. Alm disso, essa tarefa era to importante para as moradoras que at as crianas, como Maria-Nova, encontram no ofcio de encher bacias de gua um modo de ganhar umas moedas e talvez, at ajudar em casa com os gastos familiares.O espao das torneiras tambm o lugar onde narrativas so tecidas pelas mos geis e cansadasdasmulhereslavadeiras.Nessemomentodetrabalho,essasmulheresnarramsuas experincias de vida umas para as outras, encontram amparo eajuda nassbias palavras das mais velhas e durantes algumas horas, apoiam-se em um sentimento de sisterhood, onde todas se ajudam mutuamente face s adversidades da vida, face explorao e precariedade.Maria-Nova,aindanoestatutodeautoriafocalizaaslavadeiras,asmulheresafro-brasileiras cuja nica possibilidade de manter seus filhos e muitas vezes seus pais, se fazia na funo de empregadas domsticas. A menina entende tambm o quanto exploratrio e injusto essa funo se podia fazer, como quando Cidinha, uma empregada domstica, toma conscincia de que sua patroa jogava restos de comida melhores do que a comida que ela, me solteira de trs filhos e com um pai paraplgico, no tinha condies de prover. Entretanto, Maria-Nova tambmdemonstraqueessaumaformadeluta,ummododelutarcontraumasituaode misria e inanio. O trabalho utilizado como uma ferramenta de conscientizao, no sentido de que, era por meio dessa tarefa que essas mes, avs, irms e tias garantem um futuro mais seguro e ameno a seus filhos e filhas.somentenessemomentoqueMaria-Nova/ConceioEvaristo,noqueaqui denominou-se um estatuto de autoria, tornam-se visveis e audveis. Quando se sublinha que a voz da autora presente e quer-se presente nessa introduo ao romance, teve-se em mente: i. a afirmao dada por Evaristo (2012) em uma palestra na qual clarifica que de fato algumas personagens do romance realmente existiram, como Tio Tot, Maria-Velha e Me Joana, sua me;ii.Ofatodequeela,bemcomoseusfamiliaresmoravamemumafavelaemBelo Horizonte e tambm foram obrigados a sair de suas casas em busca de uma nova moradia; iii. Alm disso, o fato de que a capa do livro feita com fotos pessoais da autora, realizada a pedido dela a um irmo. Entretanto,mesmoassumindoquesejapossveldepreenderavozdanarradora,uma mescla de Maria-Nova e autora nesse primeiro momento no romance, Evaristo no afirma que 37 omesmosetratedeumromancebiogrfico,ecomotal,noseassumeaquiemnenhum momentoquesetratemesmodocaso.Evaristodeixamuitoclaroqueo romancesimuma necessidadequeteveemcontarsuahistriaedeoutrosmoradoresdafavela,entretanto,a narrativa uma fico na qual Maria-Nova, uma espcie de alter-ego da autora, narradora e narrada, sujeito e objeto de sua narrativa.Apsaafirmaodesuasinteneseareivindicaodeautoriadaobra,onarrador torna-se invisvel, mistura-se com as outras personagens e o restante do romance narrado em terceira pessoa. O narrador onisciente focaliza as outras personagens da favela como Fuinha, Catita,NegaTuna,MeJoana,VRita,aOutra,FilGazognea,dentreoutros.Cada personagemganhaumespaonanarrativaondesuahistriarelembrada,ouvidaeno esquecida.Dessemodo,ofluxonarrativoentrecortadoefragmentado;ashistriasso narradas no seguindo uma linha lgico-temporal, mas as narrativas se sobrepem e o discurso do narrador ganha caractersticas polifnicas, como o prprio espao da favela, que pertence a todos os moradores e, ao mesmo tempo, pertence a cada um. Talvez o objetivo de Maria-Nova seja o de no deixar esquecer, de no deixar que as personagens caiam no esquecimento e talvez seja tambm o de fazer reviver por meio da palavra queles que no se encontram mais presentes. O que no a memria seno uma maneira de manter vivas aqueles que nos so to caros e amados? Esquecer para Maria-Nova perder os laos que a ligam ao passado, favela e aos moradores que ainda habitam sua memria. Hoje, arecordaodaquelemundometrazlgrimasaosolhos.Comoramospobres!Miserveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e complicado! (EVARISTO, 2006, p.20), afirma a narradora agora adulta diante de sua infncia.GuiadospelosolhosdeMaria-Novavemosasexperinciasdosmoradoresdafavela habitadapelamenina.Osretalhosdememriasocosturadospelanarradorademodono sequencial, nem linear. A narrativa construda utilizando fragmentos de memria, de histrias que so primeiramente contados Maria-Nova por Bondade, Tio Tot e Maria-Velha, tia de Maria-Nova.atravsdosretalhosdevidacontados,principalmente,poressastrs personagensqueMaria-Novaconstrisuanarrativasobreafavelaeomodocomoo desfavelamento afetou a todos os moradores. O crescimento da menina est atrelado ao ouvir histrias contadas pelos outros, pelos mais velhos, a ficar sentada em casa contando as pedras pontiagudas colecionadas por Tio Tot e Maria-Velha. Maria-Velha e Tio Tot ficavam trocando histrias, permutando as pedras da coleo. Maria-Nova, ali quietinha, sentada no caixotinho, vinha crescendo escutando tudo. As 38 pedraspontiagudasqueosdoiscolecionavameramexpostasMaria-Nova,queescolhiaas mais dilacerantes e as guardava no fundo do corao. (EVARISTO, 2003, p.30).As pedras simbolizam as perdas, as tristezas e as misrias to presentes na vida dessas personagens, pois, como afirma Maria-Velha, a vida uma perdedeira s, tamanho o perder. (EVARISTO, 2006, p.32). Maria-Velha marcada pelas constantes perdas sofridas em sua vida, desde a infncia, como a presena-ausncia de um pai considerado por todos como um louco,atoacmulodetristezascomaperdadafavela,tidaportodoscomooseunico,e conquistado, bem.O desfavelamento e o efeito devastador que tal fato passa a ocasionar nos moradores, principalmente nos mais velhos, como Tio Tot, so o tema central da narrativa: Maria-Nova narra os ltimos momentos dos moradores ainda nesse ambiente e a consequente mudana de todos para outros lugares, muitas vezes, em situaes piores do que estavam. A narrativa dos meses que seguem at a total destruio da favela permeada pelas narrativas, os causos dos moradores. O desfavelamento o motivo que incita a narradora a relembrar as personagens que habitam os becos da favela, e a recordar histrias que lhe foram contadas, principalmente por Tio Tot e Bondade.A retomada de um passado que permaneceu at tanto tempo silenciado de nada se deve ao esquecimento ou falta de memria. Pollack chama ateno para o fato de que um passado que permaneceu mudo muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gesto da memria segundo as possibilidades de comunicao. (1989, p.13). A narrativa do passadodosmoradoresporMaria-Novaadultarelaciona-seasuamaiorpossibilidadede comunicao em comparao com o restante dos moradores da favela. Em ambos os romances, Evaristorecontanarrativasumpassadoquepermaneceunoesquecido,massilenciado, demonstrandoquediferentementedesuaspersonagens,aautoraencontranosinterstciosdo discurso oficial um espao para vocalizar suas experincias e as experincias daqueles que lhe so to caros.Anarrativadodesfavelamento,ouafavelaemsioenquadramentonarrativodo romance. Todos os moradores fazem parte desse espao geogrfico carregado de lembranas, onde cada um, a seu modo, tenta encontrar uma maneira de sobreviver mais um dia. As outras narrativas, as histrias dos diversos moradores, preenchem a moldura narrativa da favela e do cores, sensaes e movimentos tristeza do desfavelamento.Dessemodo,aestruturanarrativafragmentada,entrecortada,cheiadeespaosede rasurasrefletindoofluxodepensamentoempreendidopeloprprionarrador,ondeas 39 lembranaschegammuitasvezesdemodonocronolgico.Ano-linearidadetemporal ocasiona diversas rupturas no fluxo narrativo, assim o narrador recorda acontecimentos que no seguem uma ordem. O tempo da narrativa fragmentado, desestruturado e mnemnico no qual onarradorlembraatodoomomento.Orelembrarento,jnomaissomenteaode retomada do passado, porm torna-se presente narrativo descortinado diante do leitor, a favela de Maria-Nova, de Bondade e de Tio Tot presentifica-se. O romance passa a ser construdo no somente pelas mos da menina, mas dos idosos, dosantigosmoradoreseconstri-secomoumromanceavriasmos,ondecadapedaode histria,cadamigalhadelembrana,cadaretalhodememriatratadocomamesma importnciaerespeitoeondeosmoradores,independentementedesuandoleoucarter, ganham o direito a falar e a ser escutado. Oouvireonarrarsoosverbosdeaoqueguiamoprojetoliterriodanarradora Maria-Nova. ouvindo Tio Tot ao lembrar que chegou so, salvo e sozinho na outra banda do rio. Chegou nu das pessoas e das poucas coisas que havia adquirido (EVARISTO, 2006, p. 31) que a menina entende no somente a histriade perdas sofridos por Tio Tot, contudo a repetio das histrias de constantes perdas sofridas por diversos membros da comunidade, e que essa histria se repetiria mais uma vez com o desfavelamento. As perdas tambm so uma das constantes no romance, uma repetio de perdas ad infinitum, culminando com o vazio. A favela e as memrias que ali foram construdas tambm desapareciam se no fosse pela escrita doromance.Decertomodo,paradiversaspersonagens,opassadoconfigura-secomoum espao vazio, no qual a vida parece uma sequncia sem fim de perdas: perda da vida, perda de bens materiais, perda de dignidade, perda da vontade de viver.A frase que d incio ao romance, quem disse que o homem no gostaria de razes que o prendessem terra? , sintetiza, primeiro, a necessidade de Maria-Nova em tentar reparar os danos causados por essa constante repetio de perdas sofridas por aqueles que ama, escrever o romance uma dedicao pstuma aos personagens da sua favela; segundo, recuperar uma outra ideia, a de acreditar que a mobilidade para o homem um de seus bens mais preciosos sem atentar para o fato de que, como no caso do desfavelamento, a noo de mudana mudar-se de um lugar para outro no necessariamente significa que aqueles que mudam esto de acordo,aindamaisseselevaremcontaqueparaosmoradoresdafavelaanecessidadede mudana no partia deles.E mais do que isso, a ideia de ter razes retoma a noo de origem, de ancestralidade, de passado. Para muitas personagens, como Maria-Velha, ou Negro Alrio que era um fervoroso 40 defensor dos direitos dos mais desvalidos a ideia de que foram arrancados de suas terras, quetiveramsuasrazescortadas,implicapensarqueseupassadotambmlhesfoinegadoe apagado. A emoo que Evaristo sente ao relembrar dessa frase dita por sua me relaciona-se, de certo modo, a sua luta por tornar visvel e audvel a Histria dos negros, demonstrando que o conhecimento do passado implica libertar-se das amarras do preconceito e do racismo. As razes simbolizam o carter temporal da prpria ideia de identidade, razes essas que socortadaspelodiscursooficialapagadoreopressor.Aquelequedissequeohomemno gostaria de ter razes que o prendessem terra ignora o resultado avassalador que a noo de no ter uma histria ocasiona. E mais do que isso, esquece que a histria um importante fator temporal para a construo da identidade dos sujeitos, uma vez que sem ela perde-se a noo de pertencimento, de belonging.A obrigao dos moradores em abandonar suas casas mais uma vez simboliza tambm osmaisdetrssculosdetrficodeescravos,empreendidopelaCoroaPortuguesa,ondeos africanosescravizadosviam-seobrigadosaabandonarsuascasas,suasfamliaseentes queridos. Neste sentido, a histria se repete, como se repetem as narrativas presentes no prprio romance.A travessia de Tot, onde ele perde sua primeira esposa e filha, por exemplo, remete a uma outra travessiaempreendida por diversos africanos retirados forade suas casas pelos europeus. Onde eles, assim como Tio Tot, encontram-se do outro lado da banda, do outro lado doimensoOceanoAtlntico,semoquetinhamdemaisvalioso:odireitoaumaexistncia digna e humana. O rio, a cheia, o vazio da barca improvisada, o turbilho, a vida, a morte, tudo indo de roldo. Tot alcanou s a outra banda do rio. Uma banda de sua vida havia ficado do lado de l. (EVARISTO, 2006, p.25).As perdas de Tio Tot tambm se repetem, uma atrs da outra, como quando ele perde a segun