012- O Tronco - Bernardo Élis

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BERNARDO LS(da Academia Brasileira de Letras)O TRONCORomance8edioJOS OLYMPO EDTORARO DE JANERO/1988Bernardo lis, 1956Reservam-se os direitos desta edio LVRARA JOS OLYMPO EDTORA, S.A.Rua Marqus de Olinda, 12Rio de Janeiro Repblica Federativa do BrasilPrinted in Brazil / mpresso no BrasilSBN 85-03-00252-3CapaMontagemMAURCO DE OLVERAsobre desenho dePOTYDiagramaoANTNO HERRANZCP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJlis, Bernardo, 1915E42t O Tronco: romance. 8. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1988.Dados biobibliogrficos do autor. Bibliografia.1. Romance brasileiro . Ttulo.CDD 869.93 Rj-77-0419CDU 869.0(81)-31Ofereo este livro aosHUMLDES VAQUEROS,JAGUNOS, SOLDADOS,HOMENS, MULHERESeMENNOS SERTANEJOSmortos nas lutas dos coronise que no tiveram sequer uma sepultura.SUMRIODADOS BOGRFCOS DE BERNARDO LSviiBlBLOGRAFADEBERNARDOLSXNOTADAEDTORA XROMANCE DE PROTESTO(Francisco de Assis Barbosa) xiEXPLCAOxviiiO TRONCO. O inventrio 3. A comisso 59. . A priso111V. O assalto 209DADOS BIOGRFICOSDE BERNARDO ELISBERNARDO LS o nome literrio de Bernardo lis Fleury de Campos Curado, nascido em Corumb de Gois (GO), em 15 de novembro de 1915, filho do poeta rico Jos Curado e sua mulher Marieta Fleury Curado.As primeiras letras fez em casa com os pais, o curso ginasial no liceu de Gois, da antiga capital do Estado, o curso jurdico em Goinia, onde reside desde 1939. niciou-se na carreira pblica como Secretrio da Prefeitura Municipal de Goinia, quando por duas vezes exerceu as funes de prefeito da Capital; ingressou depois no magistrio como professor da Escola Tcnica Federal de Goinia, lecionando ainda nos colgios Estadual e Municipal e na rede de ensino gratuito, havendo antes desempenhado as funes de tcnico cooperativista do Departamento Estadual de Cooperativismo.Foi co-fundador, vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros, da Universidade Federal de Gois, da passando a professor de Literatura da Universidade Catlica e em vrios cursos preparatrios ao vestibular das universidades. fundador da Unio Brasileira de Escritores de Gois, cuja presidncia ocupou diversas vezes; membro da Academia Goiana de Letras, da Academia Brasiliense de Letras, do nstituto Histrico e Geogrfico de Gois e da Unio Nacional de Escritores de Braslia, da qual foi presidente. Tem participado ativamente dos acontecimentos literrios a partir de 1934, fundando e dirigindo rgos culturais aparecidos no Brasil Central, nos quais colabora. Participou dos Congressos Brasileiros de Escritores realizados em So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goinia, do Encontro das Academias de Letras em Gois (1972), do Congresso de Jornalistas e Escritores. Promoveu o Curso de Literatura em Gois (1953) e realizou palestras, conferncias e cursos literrios em oportunidades que ultrapassam uma centena.Como advogado, militou nos foros de Goinia, Anpolis, nhumas e outras cidades. Nos ltimos anos desempenhou a funo de assessor cultural junto aos Escritrios de Representao do Estado de Gois, no Rio de Janeiro e em Braslia, e reassumiu o cargo de professor da Universidade Federal de Gois, exercendo ainda a funo de diretor adjunto do nstituto Nacional do Livro (MEC), em Braslia. conselheiro do Conselho Federal de Cultura, do Minc e do Conselho Estadual de Cultura de Gois.Pertence Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a Cadeira n. 1, para a qual foi eleito em 23 de outubro de 1975, tendo sido ali recebido em 10 de novembro do mesmo ano pelo acadmico Aurlio Buarque de Holanda Ferreira. o primeiro goiano a ingressar na Casa de Machado de Assis.Foi agraciado pelo Presidente Sarney com a insgnia e o diploma da Ordem do Rio Branco, no grau de Grande Oficial. casado com a professora e pintora Mana Carmelita Fleury Curado.BIBLIOGRAFIA DEBERNARDO LISROMANCEOtronco. SoPaulo, Martins, 1956; 2. ed., refundida, RiodeJaneiro, Jos Olympio, 1967. Prmio Jabuti da Cmara Brasileira do Livro, 1968; 3. ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio (Coleo Literatura Contempornea), Civilizao Brasileira/Trs, 1974; 4. ed., So Paulo, Crculo do Livro/Abril, 1974; 5. ed., Rio deJaneiro/ Braslia, JosOlympio/NL, 1977; 6. ed., RiodeJaneiro, Jos Olympio, 1979. A terra e as carabinas. Em Obra Reunida de Bernardo lis. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1987. Coleo Alma de Gois. Chegou o governador. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1987. Brasileira do Livro, 1967; 2. ed., rev. e aum.Rio de Janeiro/ Braslia, Jos Olympio/NL, 1976; 3. ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1978; 4. ed., RiodeJaneiro, JosOlympio, 1979. NotadeHerman Lima.Caminhos dos Gerais. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975;2. ed., aum., Rio de Janeiro/ Goinia, Civilizao Brasileira/Universidade FederaldeGois, 1982. NotasdaProf?MoemaC. S. Olival.AndrLouco. Riode Janeiro, Jos Olympio, 1978. Apenas um violo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.Dez contos escolhidos. Braslia, Horizonte, 1985.POESAPrmeira chuva. Goinia, Escola Tcnica ndustrial 1955; 2. ed., Goinia, nstituto Rio Branco, 1971.CRNICAJeca Jica Jica Jeca. Goinia, Cultura Goiana, 1986.CONTOErmos e Gerais. So Paulo, Bolsa de Publicaes, Hugo de Carvalho Ramos, 1944; 2. ed., Goinia, OTO, 1955. Prmio Prefeitura Municipal de Goinia.Caminhos e descaminhos. Goinia, Brasil Central, 1965. Prmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras.Veranico de janeiro. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1966. Prmio Jos Lins do Rego da Jos Olympio, 1965. Prmio Jabuti da CmaraENSAIOMarechal Xavier Curado, criador do Exrcito nacional. Goinia, Grfica Oriente, 1973. Prmio Sesquicentenrio da ndependncia do Brasil, 1972. Vila-Boa de Gois. Aspectos turstico-histricos. Desenhos de tomMaia elegendas de Theresa R. C. Maia. SoPaulo/Rio, Nacional/Embratur,1979. Gois.Estudos Sociais (l? grau). Rio de Janeiro, Bloch, 1976. Coleo Nosso Brasil. Os enigmas de Bartolomeu Antnio Cordovil. Bibliografia seguida de IXantologia do primeiro poeta goiano do Brasil-Colnia. Goinia, Oriente, 1980.Vila-BoadeGois. lbumfotogrfico, textodeBernardoElis. Riode Janeiro, Berlendis & Vertechia Editores, 1978. Gois em sol maior. Estudos de histria, sociologia e literatura sobre Gois. Goinia, Poligrfica, 1985.OCentro-Oeste. lbumdepinturacomobrasinditasde A. Poteiro, Ornar Souto, A. Espndola e Siron Franco, comapresentao de Bernardo Elis, patrocinadopeloBancoFrancseBrasileiroS.A.. RiodeJaneiro, Colorama, 1986.DISCURSOCadeira um. Discursos da Academia Brasileira de Letras: Bernardo Elis (posse) e AurlioBuarquedeHolandaFerreira(recepo). RiodeJaneiro, Ctedra, 1983. Duo em si menor. Discursos na Academia Brasiliense de Letras, Fundao daCadeiran.3:HerbertoSales(posse)eBernardoElis(recepo).Braslia, Horizonte, 1983.ANTOLOGIASSeleta de Bernardo Elis. Organizao de Gilberto Mendona Teles; estudos e notas do Prof. Evanildo Bechara. Rio de Janeiro/Braslia, Jos Olympio/NL,1974; 2. ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1976. Presena literria de Bernardo Elis. Antologia. Organizao de Nelly Alves de Almeida. Goinia, UFG, 1970.A posse da terra: escritores brasileiros hoje. Perfis biobibliogrficos e fragmentos antolgicos de autores da atualidade. Co-edio mprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal e Secretaria de Cultura de So Paulo, Brasil. Lisboa, Sociedade ndustrial Grficajelles da Silva, 1985. Bernardo Elis. Seleo de textos, notas, estudos biogrfico, histrico e crtico e exerccios por Benjamim Abdala Jr,.So Paulo, Abril Educao, 1983.TRADUES NO EXTERORAntologia de contos brasileiros. Traduo para o alemo por Kurt Mayer Classon. Alemanha Ocidental, 1967. Short Story nternational. Traduo para o ingls do conto Ontem, como hoje, como amanh, como depois, por Silas Curado. nternational Cultural Exchange, New York, USA, 1979.CINEMA E TELEVISOErmos e Gerais o ttulo de um documentriocinematogrficoem curta metragem sobre a obra e a vida de Bernardo Elis feito pelo cineasta Carlos Del Pino (1977). Tambm com esse ttulo a vida e a obradeBernardoElisesto includas num curta-metragem cinematogrfico feito pelo MEC. Por ocasiodo cinqentenriode publicao de Ermos e Gerais, a organizao J. Cmara, por intermdio do Sr. Hamilton Carneiro e outros,elaborou timo documentrio para a televiso. A firma Filmes do Tringulo Ltda., ligada empresa Produes Cinematogrficas L.C. Barreto Ltda. do Rio de Janeiro, produziu e lanou no mercado brasileiro e mundial o filme ndia, a filha do sol,baseado em dois contos de Bernardo Elis. XNOTA DA EDTORA 2 EDONosso querido amigo, o escritor Francisco de Assis Barbosa, certo dia, em visita a estaCasa, viu sobre umadas mesas detrabalho os originaisde O tronco.Virou-se imediatamente e declarou: Fao questo de fazer a orelha deste livro. um livro importante, de primeira ordem. Da a semanas trazia-nos o trabalho.Excediaumtantoasdimensesrotineirasdeumaorelhada resolvermos aproveitar essas pginas com tanto gosto e entusiasmo escritas pelo autor de A vida de Lima Barreto como nota de apresentao nesta 2 edio refundida de O tronco. Vamos ler o que nos diz Francisco de Assis Barbosa:ROMANCE DE PROTESTOFRANCISCO DE ASSIS BARBOSADESDE o APARECMENTO de Ermos e Gerais, em 1944, Bernardo lis se tomou vanguardeiro de um novo ciclo da fico brasileira o do sertanismo goiano-mineiro. Cronologicamente, ele o primeiro. Vieram depois Guimares Rosa (Sagarana de 1946), Mrio Palmrio (com Vila dos Confins, em 1956) e Jos J. Veiga (Os Cavalinhos de Platiplanto, 1959). E a literatura do Oeste passou a competir em prestgio e significado nacional com a literatura do Nordeste, que se havia transformado numa literatura lder, a partir da fornada dos grandes romances de contedo social iniciada com A bagaceira, de Jos Amrico de Almeida. A literatura do Nordeste ficou ligada Revoluo de 1930. A literatura do Oeste ressurge j que no deve ser omitida a con-XItribuio pioneira de Bernardo Guimares, Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos na fase atual da nossa evoluo histrica, a da fundao de Braslia.Ermos e Gerais bem que pode ser considerado o marco oeste da nossa rosa-dos-ventosliterria, umaantecipao, tal como Abagaceiraparaociclo nordestino. Naquela coletnea de contos de um rapaz de Gois, completamente desconhecido, Monteiro Lobato sentiu, como numespanto, o impacto da revelao de um escritor acima da bitola comum. Um escritor, reconheceu ao mesmo tempo Mrio de Andrade, capaz de transmitir uma realidade mais real que a real, o que , afinal de contas, o segredo do ofcio, envolto no mistrio da prpria criao literria Assim defatoBernardo lis, sobretudoneste romance O tronco,por sinal extradodeumahistriareal, bementendido, deumfatohistricoou simplesmente policial, acontecido em Gois, nos idos de 1917 e 1918, o qual de to real que parece at coisa inventada. Publicado pela primeira vez em 1956,O tronco passou contudo despercebido do grande pblico e da crtica, se que ambosexistem, apesar dosucessoalcanadopor ErmoseGerais, hojeem segundaedio.TalvezagoraprestemmaisatenoemOtroncoepordois motivos. Primeiro, porque o nome do autor se federalizou, depois de conquistar prmios literrios seguidos, um da Livraria Jos Olympio Editora o Jos Lins doRegoem1966, eoutroda AcademiaBrasileiradeLetraso Afonso Arinosem1967, comlivrosdecontosdeprimeiraqualidade: Veranicode janeiroeCaminhosedescaminhos. Segundo, porqueOtroncopossui fora bastante para atrair os caadores de assunto para o cinema novo brasileiro, que tantas obras importantes j produziu emsua rpida ecloso, emtermos artisticamentevlidos, adquirindopor issomesmoemtopoucotempouma dimenso internacional.O tronco daria um grande filme. E o roteirista no teria muito trabalho na adaptao para a linguagemcinematogrfica da histria rude e mscula, especialmentenascenasdoassaltoViladoDuro, alutaencarniadaque ento se travou entre contingentes da polcia e a horda de jagunos a servio do coroneldestitudoderepentedasgraasdogovernoestadual.Tudoparece escrito paraocinema, comimpressionante preciso namarcao das cenas,sublinhando o autor os momentos de suspense, como nos bons filmes de John Ford, at o ponto culminante com o sacrifcio das vtimas no tronco. O tronco descreve o romancista era constitudo de dois compridos esteios de madeira xivforte. De espao a espao, possuam esses esteios um corte em meia-lua. Justapostos, os cortes formavam buracos, nos quais se metia as canelas do cristo, que ali ficava jungido. De um lado, unindo os dois esteios, havia uma dobradia de ferro, grosseira, feita ali mesmo, e de outro, uma espcie de aldrava com cadeado''.Esse instrumento de tortura utilizado nos tempos da escravido continuava a servir, em 1918, nas cadeias do interior goiano, como arma dos sobas municipais para a punio de adversrios ou simples desafetos que ousassem contrari-los em seus domnios. No havia nem juiz de direito, nem delegado, nem ningum que pudesse torcer a sua vontade. A justia era (e ainda ) o coronel. O tronco aparece no massacre de So Jos do Duro, repetindo em ponto pequeno a srie de horrores que se verificou na sedio de Boa Vista dos Tocantins, no incio da Repblica, numa guerra civil de coronis desavindos, que se prolongou por trs anos, de 1892 e 1894, embora no registrada por nenhum compndio de histria, por nenhum livro de histria.A literatura de fico assim chamada como por ironia que nos revela o drama at ento desconhecido do serto belo e terrvel, com os seus vaqueiros, jagunos, soldados, sertanejos humildes, mortos nas lutas dos coronis. A literatura do Nordeste foi que alertou os homens de governo para o problema no s das secas, como da espoliao e da misria das populaes marginalizadas de uma vasta regio brasileira. Agora chegou a vez do Oeste. A literatura enche o vazio da histria. Pelo menos, os escritores do tipo de Bernardo lis mostram que so menos alienados v l a palavra da moda do que os historiadores, a grande maioria dos historiadores omissos. Refletindo a vida brasileira, a nossa literatura tem que ser tambm, forosamente, uma literatura de protesto.Rio de Jaei!o" #$%&o de '()*+XVVILA DO DURO (CLVJS DE MAGALHES)PLANTA DA VILA DO DURO1 Rancho do Coronel Pedro Melo. 2 Rancho do Coronel Pedro Melo. 3 Residncia de Artur Melo (sempre fechada). 4 Residncia de Dr. Herculano Lima. 5ResidnciadeBeneditaFernandes deMelo, depoisquartel de Vicente Lemes e os paisanos.6 Residncia de Joaquim Alves Leandro, quando vinha vila. 7 Residncia de Brasuca. 8 Residncia de Crispiniana. 9 Residncia de Coronel Pedro Melo. 10OficinadeFarinhadoCoronel PedroMelo. 11Residnciade Tozo. 12Paiol eranchariadoCoronel PedroMelo. 13Residnciade Vicente Lemes, depois residncia do Juiz Carvalho e por fim quartel do Alferes SeverodaVeiga. 14greja. 15ResidnciadavelhaJosefina. 16 ntendncia Municipal. 17 Residncia do Pedreiro. 18 Residncia de gente pobre. 19 Residncia de gente pobre. 20 Residncia de gente pobre. 21 ResidnciadeChicaBuena. 22ResidnciadeDamiodeBastos, depois quarteldo Alferes Xavier. 23 Residncia de Albininho. 24 Residncia da velha Chiquinha. 25 Agncia do Correio, Cartrio e casa de audincias do Juiz. 26 Tapera. 27 Residncia de Joo Francisco. 28 Residncia de Marianinha. 29 Residncia de Felipa. 30 Residncia de Argemiro Flix. 31 Residncia de Aleixo. 32 Residncia de Felisrnino. 33 Residncia de Alexandre de Melo, depois quartel do Tenente Mendes de Assis. 34 Residnciade Agenor Cavalcante. 35ResidnciadeMoissMelo. 36 Sobrado do Coronel Pedro Melo, servindo de mercado e cadeia, depois quarteldo Alferes Enias Peixoto, onde existia o velho tronco. 37 Cemitrio. 38 Residncia de Maria Coxa. 39 Residncia de Seu Antnio. 40 Residncia de Maria Pequena.XVIEXPLCAOTirantes os pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em Gois.Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que representam,sofictcios.Oautornoquisretratar ningum, nem copiou de nenhum modelo vivo ou j falecido.Qualquer semelhana com pessoa viva ou morta mera coincidncia. B.E. XVII

OTRONCOO ive,-!ioUMA NDGNAO, uma raiva cheia de desprezo crescia dentro do peito de Vicente Lemes proporo que ia lendo os autos. Um homem rico como Clemente Chapadense e sua viva apresentam no inventrio to-somente a casinha do povoado! Veja se tinhacabimento! E as duzentas e tantas cabeas de gado, gente? E os do stios no municpio onde ficaram, onde ficaram? Ora bolas! Todo mundo sabia da existncia desses trens que estavam sendo ocultados.Ainda se fossem bens de pequeno valor, v l, que inventno nunca arrola tudo. Tem muita coisa que fica por fora. Mas naquele caso, no. Eram dois stios, duzentas e tantas reses, cuja existncia andava no conhecimento dos habitantes da regio. A vila inteira, embora ningum nada dissesse claramente, estava de olhos abertos assuntando se tais bens entrariam ou no entrariam no inventrio.Lugar pequeno, ah, lugar pequeno, em que cada um vive vigiando o outro!Pela segunda vez Vicente Lemes lavrou o seu despacho, exigindo que o inventariante completasse o rol de bens, sob pena de a Coletoria Estadual o fazer.A, como quem tira um peso da conscincia, levantou-se do tamborete e chegou janela que dava para o Largo, lanando uma olhadela para a casa onde funcionava o Cartrio. Calma, a Vila cons- ..tituda pelo conjunto de casas do Largo. A manh de maio, fria e neblinosa, estendia-se por sobre o povoado de casinhas caiadas de branco, por trs das quais erguiam-se tufos verdes de laranjeiras, abacateiros, jenipapeiros, bananeiras e outras plantaes. Mido, o povoado minguava mais ainda naquela quadra do ano, com os habitantes pelas fazendas e as casas fechadas exalando tristeza e abandono.Do conjunto, destacava-se na esquina a casa do Coronel Pedro Melo, com a calada alta, o aspecto imponente; de um lado, o casaro acachapado sob o amplo telhado, o casaro da velha Benedita Fernandes de Melo, com o largo porto lateral. A modo que solto no meio do Largo, o sobrado do Coronel Pedro Melo, misto de priso e depsito de farinha.Sim. A casa do coronel, o sobrado do coronel, pensou Vicente, que se lembrou que tambm no inventrio havia a vontade do coronel.Na igrejazinha a casa de Vicente andorinhas voavam. Na grotinha que cortava o Largo, alguns sapos coaxavam e almas-de-gato piavam, metendo seus bicos de grandes guias por entre as folhas molhadas de orvalho. Ser que mexiam no cemitrio? Sempre que mexiam no cemitrio aqueles pssaros espantavam e saam piando seus pios entojados pelo Largo.Ser que o juiz chegou? perguntou Vicente a si mesmo, logo porm se convencendo do contrrio. Naquele dia o juiz vinha do seu stio, a duas lguas do povoado, para dar audincia, mas ainda no chegara. Estava tardando um tiquinho, decerto algum contratempo. Tambm Cludio Ribeiro, escrivo do Cartrio de rfos, por onde corria o inventrio de Clemente Chapadense, esperava impaciente o seu juiz. Dia de audincia ele costumava aportar no Cartrio s oito horas. Chegava, apeava, largava a mula roendo milho no cocho do quintal e vinha para o despacho. De tarde, findo o expediente, ia-se ele embora, para retomar na outra semana. O juiz hoje dormiu demais disse Martim num sorriso. De vera concordou Cludio Ribeiro que lanou um olharpela janela aberta. Dormiu devagar pilheriou Martim, enquanto separava as cartas, aprontando as malas do Correio. Ele era o agente do Correio. A agncia funcionava naquela casinha que para essa finali-/dade foi dividida ao meio: de c, o Cartrio, com sala para audincias; de l o Correio. Para que o povo no bulisse com os papeis o escrivo Cludio botou um gradil de madeira: para dentro do gradil somente ele, o juiz e os amigos passavam.Vindo do interior da casa, a velha Januria espichou a cabeapela porta e interrogou de mansinho: Uai, esse menino, a m que esse juiz nem num vem em hoje? Cludio contestou que viria e podia preparar o almoo. Para o juiz no vir, s se acontecesse alguma coisa sria, mas a ele mandava avisar. Ah que o juiz era homem de preceito, muito sistemtico com seus prometidos.Como Cludio e Martim fossem solteiros, Januria cozinhava para eles, lavava e passava a roupa e cuidava do asseio e arrumao da casa. Preferiam uma velha. Se botassem dentro de casa uma mulher nova, que que o povo do lugar no iria dizer! Pr juiz atrasar desse tanto continuava Cludio foi porque a mula fugiu do pasto.De sua casa, Vicente chegou janela porque, parece, ouviu um tropel de animal, e animal ferrado. E no se enganou, que agora o juiz chegava, entava por trs da casa do escrivo, como era seu hbito. Vicente s fez virar-se, apanhar o processo e sair ao encontro do juiz. Precisava conversar com ele antes do almoo, antes que pegasse a chegar gente para a audincia ou para conversar com a autoridade.Os dois homens trocaram bom dia e Vicente falou da demora, at tinha pensado que fosse alguma doena em casa... Diabo dessa mula. Agora, depois de velha, que deu pra fugir do pasto e d pana para a gente achar. Bem que eu disse gritou l de dentro Cludio, feliz pelo acerto do vaticnio. Martim tambm se riu, enquanto amarrava as cartas: Bem que Cludio tinha dito.Vicente foi logo abrindo o processo que trazia nas mos e com um ar de mofa mostrou ao juiz o que estava exigindo. O juiz leu e riu um riso malicioso. Os olhos de Vicente tambm brilharam e, guisa de fundamentao, esclareceu: Est vendo? A viva no arrolou nem o gado nem os dois stios! Absurdo disse o juiz. Absurdo e perigoso. Ns sabemos quem Artur Melo, que est por detrs dessa viva. Ele pode estar querendo negar estes bens, mas tambm pode estar arman-)do uma cilada. A gente aceita a descrio como est e a ele denuncia para Gois que o coletor Vicente Lemes no zela os interesses da Fazenda, que est recebendo propinas para sonegar bens de menores... Como fez no caso da boiada interferiu Cludio. De um jeito ou de outro, esse inventrio vai dar banze isse Vicente.Se a gente no aceitar o rol como est, Artur vai gritar que estamos perseguindo ele; se a gente aceitar, ele denuncia que estamos com roubalheira.Enquanto ouvia, o juiz se aproximava da mesa, onde pegando a caneta, escreveu seu despacho. Determinava que se desse conhecimento viva da exigcia do Sr. Coletor. Por trs dos ombros do juiz, lendo o despacho proporo que ia sendo lavrado, Cludio riu-se. Vai haver banze. Artur no vai aceitar essa exigncia de jeito nenhum pensou Cludio meio amolado, pois a ele que cabia intimar Artur daquele despacho do juiz.L por dentro batiam pratos e talheres. Januria estava pondo a mesa e Vicente foi-se retirando para sua casa, para almoar. Almoa aqui, Seu Vicente convidou Cludio, mas Vicente agradeceu. O juiz Ferreira tambm reiterou o convite, embora se desculpasse por no ser o dono da casa. Vicente, porm, no aceitou. a comer em casa.No PRATO esmaltado, primeiro Vicente botou o feijo, depois a farinha de mandioca, misturou; a seguir botou arroz com carne seca, misturou novamente e levou uma garfada boca. Lina, sua esposa, que servia a mesa e estava de p a seu lado, indagou pela mulher de Ferreira. Deve de estar boa respondeu Vicente mastigando , no perguntei por ela. Lina quis fazer outras perguntas, mas pela maneira seca como o marido respondeu quela, percebeu que ele no queria conversa. Estava mergulhado nos seus problemas e s queria saber deles. Por isso, a mulher afastou-se para a cozinha, deixando-o s. ria fazer seu prato e comer sossegadamente com a filha, que quando Vicente estava com a v atrs do toco ningum no agentava ele.Mentalmente, Vicente examinava mais uma vez as conseqncias que poderiam advir de sua exigncia no inventrio. No esta-*ria fazendo besteira? Ser que no estava com implicncia com Artur Melo? Bem, mas o fato que todo mundo estava falando que a viva possua as tais duzentas e tantas reses e mais os dois stios e no entanto, por que que Artur Melo, seu advogado, no apresentou esses bens? No havia nenhum mal: como Coletor, sua obrigao era apont-los. Como muito bem dissera o juiz, era preciso denunciar o ocultamento das reses e dos stios. Quem sabe se o prprio Artur Melo no estava com segundas intenes, querendo lesar os rfos e a viva? Contudo, o certo que havia caroo naquele angu. A viva era casada com um capanga de Artur Melo e esse Artur e seu pai, o Coronel Pedro Melo, era gente poderosa. O prestgio deles era incontestado desde Pirenpolis at Boa Vista. Tinham tanto prestgio que logo depois da revoluo estadual de 1909 o nome de Artur Melo foi indicado para Presidente do Estado de Gois; seus correligionrios Eugnio Jardim e Tot Caiado, entretanto, discordaram da indicao e acabaram rompendo com ele. No pleito que seguiu revoluo, Artur Melo conseguiu eleger-se Deputado Federal tanto por Gois como pela Bahia, mas quem disse de ele tomar posse! No Rio, os Caiados conseguiam depur-lo, como ento se dizia.Foi a que Artur Melo instalou-se na Capital do Estado com seu jornal de oposio, disposto a atacar o caiadismo na sua prpria toca. Em represlia, os Caiados, senhores do Governo, davam apoio poltico aos opositores dos Melos, no Norte do Estado, criando as bases para uma firme e poderosa oposio a Artur Melo e seu pai. Sentindo fugir o prestgio, Artur Melo abandona a Capital, e regressa para sua regio, a fim de recuperar a antiga influncia, mas l chegando depara um quadro desanimador: os cargos pblicos esto em mos de adversrios, o bafejo poltico faz do humilde bajulador de ontem um rancoroso inimigo. Adeus os bons tempos em que a vontade de Artur ou seu pai era a suprema lei!Na prpria vila do Duro, residncia dos Melos, a mesmo o Governo contava com dois homens de valor: um era o Juiz Municipal, Valrio Ferreira; o outro, o Coletor Estadual, Vicente Lemes, pessoa de confiana de Eugnio Jardim. O regresso de Vicente era m coisa para Artur que ainda se lembrava de como nasceu a rixa com o primo. Artur era ento Juiz Municipal e um dia chamou0o primo: Olhe, Vicente, voc gente de casa, pobre, vou te nomear escrivo do Judicial e Notas.Antes, porm, nunca o houvesse feito. Era um ingrato o Vicente. O fato foi que Norato, vaqueiro de Tozo, abandonou a fazenda do patro e montou sua prpria fazenda, com perto de duzentas reses. Norato roubou de Tozo gritavam os Melos, para quem somente pelo roubo poderia um pobre vaqueiro erguer-se categoria de fazendeiro. E apesar das ameaas dos Melos, Norato veio a residir perto do Duro, onde se julgava seguro por trs das suas vacas e bois. Um dia Norato aparece morto e por uma s boca o povo dizia que o matador fora Calixto Chapadense. Artur Melo era juiz e em vez de procurar punir o criminoso, o que fez foi mandar arrecadar as quase duzentas reses do morto como bens vacantes; mas no as levou praa, como mandava a lei. Procurou Vicente e lhe props darem um sumio no processo. Argumentava ele: Voc sabe, Vicente, que esse gado mesmo de Tozo. Ento, vamos devolver ele a seu dono. No acha? sso no, meu primo. Sem provar que o gado no de Norato, eu no concordo. De jeito nenhum. Mas ningum fica sabendo, homem de Deus. Aqui tem l algum que entende dessas coisas! Vicente empacava. Parecia-lhe um absurdo o hbito que tinham os Melos de roubar o povo valendo-se dos cargos de juiz, coletor e outros. nventrio ali era meio para legalmente o pessoal do Foro apropriar-se de bens alheios. Como dinheiro era coisa escassssima, para pagamento das custas e demais despesas, que deveriam ser custeadas em dinheiro corrente, iam-se todos os bens do inventariado. As pessoas que possuam dinheiro adquiriam esses cabedais na bacia das almas. Se o de cujus era homem, a viva e os rfos eram esbulhados impiedosamente.A o Juiz Artur Melo veio com outra proposta: Eu compro a boiada independente de praa. Meu intuito poupar servio intil para o pessoal do Foro. Bem. Se era assim, quanto daria Artur pelas quase duzentas reses? O preo era to vil que nem se podia aceitar. Uma vergonha a proposta! e Vicente ainda dessa vez no pde concordar com o primo Artur Melo. Achava que havia leis, cdigos, posturas municipais. O caminho era fazer como preceituava a legislao.( Artur ficou danado: Vem c, voc pensa que te nomeei por teus belos olhos? Achei que ia ter um amigo e quando acaba o que tenho uma cascavel!Passaram a se ver de cara torcida. Por fim, um dia, quando Vicente acordou, qude o gado de Norato? Ningum sabia dizer. Chamou Tozo que era o depositrio e lhe disse que a responsabilidade era dele e que o iria processar. Ora, Vicente, deixe disso lhe aconselhou o primo Artur Melo que por estas alturas era o todo-poderoso rei do Norte. No faa nada. No v que Tozo cunhado da gente...Vicente sentiu-se desmoralizado. O povo pegou a comentar e ele pensou consigo que era intil querer acabar com as roubalheiras do Foro. O melhor era abandonar o cargo, sair daquele lugar infeliz. Vicente no gostava de quizlias e se arrependia de ter aceito o diabo do cargo. Que bom tempo aquele em que ignorava tais safadezas e podia viver em paz com o primo Artur Melo, com o parente Tozo, fazendo os bailes e as festas na casa da sogra Benedita e em outras casas. Como era bom. Agora, o que se ouvia era o fuxico, era o diz-que-diz, era a arrogncia de Artur e seu pai. Quer saber de uma coisa? Certa manh Vicente ajuntou seus cacarecos, botou tudo no lombo dos burros, tangeu adiante suas reses e fincou o p no mundo. Foi esbarrar em Conceio do Norte.Era dali que Eugnio Jardim, ex-aliado de Artur, agora trazia Vicente, para com ele fazer frente aos Melos, no Duro. Dia a dia os correligionrios dos Melos abandonavam suas fileiras, passando de armas e bagagens para as hostes de Vicente Lemes e Valrio Ferreira, onde vinham buscar as delcias do situacionismo, isto , vinham buscar dispensa de impostos, vinham obter impunidade para os crimes e saques.Embalado por tais pensamentos, Vicente nem percebeu que j havia engolido a comida e que estava bebendo gua no pote. Da foi para a sala, de onde deu nova olhadela para o Largo. Tudo ia calmo, o solo esparramado nos telhados. Avaliava bem a espcie de inimigo que tinha pela frente. Sabia que se aceitasse o rol de bens como Artur apresentava, o primo o denunciaria para a Capital como desidioso e desonesto; se exigisse os bens restantes Artur o denunciaria como perseguidor. O interesse era desmoralizar Vicente e for-lo a deixar novamente a vila, para colocar em seu lugar gente de confiana.'1 De onde estava, Vicente enxergava um trecho do Largo, prximo da calada alta da casa do Coronel Pedro Melo. At havia pouco, ali existia uma alavanca de ferro enfincada. Certa feita, vindo de Conceio, Vicente viu a alavanca e estranhou. Ah! voc no sabe! E com horror e medo do povo cochichava. Foi o Vigilato, esse menino. Sim, esse mesmo, sobrinho do velho Pedro. No que o coronel implicou com o coitadinho? Ento para enjeriz-lo e obrig-lo a deixar o lugar, o coronel ordenava aos cabras que fossem fazer suas precises no terreiro do Vigilato.Uma manh a mulher de Vigilato estava na porta da cozinha, quando seno quando olha ali uns homens obrando na sua frente, no maior dos desrespeitos para uma senhora direita. Chegando em casa, Vigilato achou a mulher num pranto de choro, que aquilo era uma coisa por demais, que ela no ficava mais naquele lugar desgraado.O rapaz no era nenhum patife no. Saiu e soube que os cabras eram camaradas de Joo Rocha e j ia tomar satisfao desse tal, quando o tio Pedro Melo atravessou no seu caminho: Vigia aqui, esse menino, quem deu ordens aos cabras foi o degas aqui e batia no peito entufado. velho cachorro! Agora eu estou l, manda de novo. Vamos ver se voc tem topete para isso, trem -toa. O velho no gostou da m-criao do sobrinho e avanou para ele que, mais esperto, passou-lhe uma rasteira, botou no cho, montou e mo na vasta barbaa branca do coronel: deu-lhe muitos safanes.A partir da, o coronel s falava do sobrinho para desfeitear e xingar. Deu de emagrecer, uma falta de apetite, boca cheia d'gua. Uma lcera lhe roa a pacuera, como afirmava o Dr. Rodrigues da Silva, de Barreiras. O velho, entretanto, no confiava no diagnstico do clnico. Aquilo no era doena nenhuma nada. Era raiva, era paixo. O dia que vingasse do sobrinho, nesse dia a doena ia embora. Uma noite,Vigilato vinha pelo Largo cambaleando de bbado. O velho estava na porta da casa, na caladona alta, sentado na cadeira. Pelo Largo deserto rolava a voz do bbado, cantarolando uma modinha, lutando contra a treva e a solido. Vigilato eraagente do Correio, vez por outra bebia sua cachaa e se enchia de lirismo, o qual ele derramava em cantorias pelos cantos''do Largo, at cansar e cair no sono. Todos j conheciam a mania do moo e achavam graa. Ele no fazia mal a ningum, s cantava e ria e contava casos. At que, nessas noites, modificava a pasmaceira estagnada do lugarejo de si to tristonho.A voz pastosa do bbado rolava nas trevas e de sua porta o velho tio saiu, chamou l dentro do quintal Tito e Resto-de-Ona. mandou em casa do genro e sobrinho Tozo buscar o capanga Aleixo, tudo em silncio, na ponta dos ps, cochicho nos ouvidos. Muito de sutil os trs homens esperaram o bbado; e quando ele encostou na caladona alta do tio para soltar a sua cantiga, foi um vup e ram; meteram-lhe o porrete no piolho.Alguma velha que estava rezando no escuro de uma casa, bem que notou que a voz de Vigilato esbarrou num baque, a mo que engasgada, deixando o breu da noite ainda mais escuro. Na ponta dos ps e com o dedo na boca, o Coronel Pedro Melo desceu e sua caladona, mandou buscar uma laterna furta-fogo; com ela alumiou a cara do bbado tombado no cho. Clareou e meteu fogo, arrebentando-lhe os miolos. Carregue o cachorro ciciou o velho olhando em tomo para ver se ningum no chegava. Um cabra pegou por baixo dos ombros, outro pegou as pernas e l se foram, com Aleixo na frente alumiando e o velho atrs de Mauser engatilhada; no Largo negro, uma mancha vermelha que se movia confusa e incerta.Chegando casa do sobrinho, ordenou que batessem. Aleixo bateu, a mulher abriu a porta e antes que os olhos dela pudessem habituar com claridade da laterna, os capangas balangavam o cadver para l, para c e zs atiravam ele aos ps da mulher e dos filhos, dentro da sala, no cho batido e mido. Um capado proc limpar roncou a voz do tio Pedro Melo, enquanto num sopro se apagava a lanterna e tudo caa na mais negra escurido e no chumbo do silncio. Nem ces latiam naquela hora medonha.Na casa to pequena e to frgil que um cavalo derrubaria caso se cocasse nalgum esteio, a ficou o espanto, o terror de chorar e esse choro despertar a ira do poderoso senhor. Nem luz acenderam, que em casa de bbado costuma faltar tudo. Gente houve que ouviu o tiro, mas teve medo de sair de casa e enfrentar o negrume da noite. Quando muito, algum acendeu uma candeia de azeite'2e chegou porta da rua, mas o vento zunindo apagou a dbil chama.Pelo meio-dia que o Juiz Valrio Ferreira foi ver o corpo de Vigilato. O juiz soube do acontecido l no seu stio, embora ignorasse quem fora o portador da notcia. Foi uma alma caridosa que soprou no ouvido de uma criada; soprou, mas quando a criada quis ver quem era, s viu um vulto envolto numa capa de chuva. Assim, ningum contaria ao Coronel Pedro Melo quem foi o portador da notcia para o juiz.Valrio foi procura do delegado de polcia para fazer o auto de corpo de delito, mas, receoso, o homem j estava longe. Era preciso, pelo menos, enterrar o defunto. Quem, entretanto, se arriscaria a isso, sabendo que o coronel estava de espreita?Na esquina da casa de Pedro Melo, perto da caladona soberba, no lugar onde Vigilato cara morto, Tito, Resto-de-Ona e Aleixo fincavam uma alavanca de ferro de mais de metro de comprimento. Aquilo era para publicar o feito. Os jagunos metiam a marreta no ferro que tinia tal qual um sino de defunto. Pra exemplar cabra maludo dizia o tio do alto de sua calada alta, na frente da casona mais principal da vila. pra ningum desrespeitar barba de velho!A alavanca retinia e Valrio Ferreira ali mesmo junto ao corpo de Vigilato escrevia uma representao ao Governo Estadual, a quem comunicava o fato e pedia Melos para punir o criminoso.Da casinha, to pequena, na qual para se entrar carecia de abaixar a cabea, na qual mal cabiam dez pessoas e pessoas sem esporas, da saa o defunto para o cemitrio, envolvido numa colcha, que nem o fazedor de caixo teve coragem de trabalhar para o inimigo do coronel. com muito custo o Juiz Valrio conseguiu dois homens pobres para conduzir o defunto at a cova. Os quais iriam se Valrio fosse tambm com eles, e publicasse que lhes deu intimao de autoridade.NA SALA das audincias, Valrio Ferreira tambm pensava. Aquele inventrio ia dar barulho. Os Melos andavam desesperados com o abalo em seu prestgio e no venderiam mais barato o seu defunto. Haveria outra soluo qualquer? Valrio no enxergava.'3Os Melos lhe pareciam invencveis, completamente invencveis] Quando, apesar de tudo, admitisse a derrota deles, achava queoi substituiriam outros homens do mesmo estofo.Valrio era tuberculoso e talvez da decorresse o seu pessiraisl mo. Alto, magro, embodocado, uma fraqueza o dominava constantemente. Qualquer esforo fsico ou mental logo o esgotaw| deixando o homem azedo e irritado. Contudo, to logo recuperava o nimo, voltava a retomar a luta. Reconhecia ser impossvel amarrar a gua com os Melos e no entregava a palha comi| rapadura.Num passo macio, sorrindo sempre discretamente, o escrivo Cludio trouxe os papis para o despacho. Ferreira leu-os atenta| mente e deu o despacho em alguns; noutros, mandou que se completassem tais formalidades. Cludio recebeu os papis com o mesmo riso nos lbios, mas por dentro remoa-se de raiva: homem ranzinza, meu Deus do cu! No confia em ningum, tudo tem q ler, reler e mandar corrigir. Mas riu, agradeceu, disse uma palavra de amizade.De sua mesa, o juiz ouvia a mula roendo o cocho e alguns sabis piando no verde das laranjeiras dos quintais. Novamente lhe veio a lembrana das exigncias do Coletor Vicente e um riso escasso arregaou seus beios. Era sempre um gostinho pisar o inimigo, dar-lhe uma estocada. Quando no tambm eles sofriam! irritavam-se, ficavam desesperados, tinham que providenciar alguma astcia. Artuzinho vai ficar danado disse a Cludio, que tambml riu. At Martim, no cmodo do Correio, deu seu palpite: sso vai feder a chifre queimado, gente!Valrio no gostou da pilhria de Martim. Martim no tinha direito de desgostar os Melos, que nenhum mal lhe fizeram. Parecia ao Juiz que Martim se opunha aos Melos por mero dever funcional. Fora nomeado agente do Correio em substituio a Vigilato, a pedido de Artur Melo; depois que o Governo Estadual se ps contra os Melos, Martim tambm bandeou. Explicava que era por amizade a Cludio e ao juiz, por discordar dos atos dos seusprotetores de ontem. Mas Valrio embirrava com aquilo. No dizia, que um aliado a mais ningum despreza, ainda mais sendo como era, o controlador da correspondncia. Mas que Martim era] desprezvel isso era. Artuzinho, Artuzinho Fazia muito que'.Valrio no gozava um gostinho como aquele de dar um tapa nos Melos. Com seu feito de no pactuar com a violncia, com seu escrpulo no fiel cumprimento das leis, vinha sempre perdendo para os adversrios.Fora, tudo calmo, sem vivalma pelo Largo. Nos assa-peixes da grotinha, as almas-de-gato voltaram a piar. Ser que mexiam no cemitrio? Os olhos do juiz pousavam no ngulo da caladona da casa do Coronel Pedro Melo. Ali em antes, havia a alavanca de ferro fincada pelo poderoso chefe. Vigilato com sua cachaada, com suas valentias de nada, Vigilato cantando suas cantigas desafinadas e sem prosseguimento. Talvez se no tivesse feito a tal representao ao governo de Gois, talvez tivesse evitado a jeriza dos Melos. Teria nada! A morte de Vigilato s agravou uma rixa antiga.mpedido de instaurar um inqurito, mas revoltado com a morte do inocente bbado, o Juiz Valrio enviou para Goisa representao, pedindo providncias. Esse pedido significou afronta sria para os Melos que passaram a benzer bicheira com o nome de Ferreira. O juiz riu seu riso fino. Gostava de atucanar o inimigo. Os Melos gritaram, berraram, mas da uns dias a notcia alarmava a vila: o Governo Estadual enviava uma Comisso para apurar o crime.O Juiz Valrio alegrava-se com a aproximao da comisso. Acreditava em justia, em lei, achava que o governo fosse dotado de uma clarividncia que o comum dos homens no possua, de uma reta inteno de punir o mal e premiar o bem. Daquele recanto to afastado, Governo era assim algo de sobre-humano e inatacvel. Antes porm que a Comisso chegasse ao Duro, aportaram ali notcias do que era ela. Era como o vento que precede a chuva braba. Quem vinha chefiando a comisso era um juiz togado, com assento em Porto Nacional, formado pela Faculdade do Recife, com militana no Foro de Salvador e Belm do Par, homem de estudo, homem de preparo, homem sabido e corrido.Comandando a fora policial vinha um tal Tenente Napoleo; vivia constantemente embriagado e um dia o encontraram cado na estrada, a boca entupida de excremento humano. Por certo, vingana de algum subalterno. Mas tais novas no arrefeciam o nimo dos Melos que aprontavam uma festana de arromba para receber a Comisso, fazendo crer assim que no temiam qualquer devassa em suas vidas.'/Com a Comisso no povoado, os dias passavam-se em danas e banquetes. Tenente Napoleo velho nem se erguia da rede nopileque, de cambulha com os soldados. Nos potes do quartel, em vez d'gua diz que s existia restilo e restilo forte. Dr. HermnioLobato, com sua imensa careca, era o chefe da Comisso e tudo ignorava. Os Melos o instalaram num stio fora do povoado, sob a desculpa de o eximir de solicitaes interesseiras de uma ou deoutra parte. Diariamente, de l vinha o Juiz Hermnio cercado de soldados embriagados realizar a audincia e voltava de tarde para seu tugrio.Era homem de grande bondade, alheio a tudo e a todos, Nas Comarca, falta de servios forenses, fundou um Colgio f meninos pobres, onde era professor, cozinheiro, mdico e diretor, ignorando as rusgas, os dios, as maquinaes que lavravam entre os jurisdicionados. Conhecedores de suas virtudes, em Porto Nacional todos confiavam nele, que no fazia inventrio, nem organizava processos escritos para solucionar litgios. Tudo ele resolvia amigavelmente, como um novo Salomo. Jri resolveu abol-los: no havia dinheiro para sustentar os presos e os juradosconfiavam em que Doutor Hermnio julgava melhor do que eles mesmos.Logo no banquete de recepo que o Coronel Pedro Melo lhe ofereceu, Valrio Ferreira o identificou. No discurso de saudao, Artur disse que o juiz se considerasse perfeitamente garantido,pois os Melos dispunham de cem homens armados e municiados para sustentar qualquer ato que emanasse da Comisso. Diante de tal afirmativa, o Dr. Hermnio ficou inquieto: com ele tinham vindo 30 praas, essas sim para garantir seus atos. Logo, os homens de Artur Melo eram uma ameaa Justia. O Meritssimo Juiz suava por baixo do terno de linho branco, sem atinar com uma resposta adequada, ele que no gostava de luta, cuja existncia e dedicada s coisas pacficas e sossegadas da vida; a vasta cara reluzia de suor que ele debalde enxugava no leno de cambraia fina.Por fim, chegou a hora do agradecimento. Dr. Hermnio tinha a careca rebrilhante, a cara cansada, o colarinho era uma sopa por entre as dobras da papada suarenta; os olhos empapuados rolavam para um e outro canto. Como um elefante, moveu o corpanzil, ergueu-se, mal equilibrou-se, arquejante no esforo mental, soltou um ofego to forte que o sopro apagou dois lampies na sua')proximidade. Na semi-escurido, com o pessoal cochichando e trocando idias em como reacender os lampies, gaguejou algumas palavras num tom mofino e bambo, dando por encerrada a festa.No outro dia, principiou a correr o inqurito. Mas quem o dirigia, na verdade, era o Dr. Leite Ribeiro, advogado dos Melos, que o Dr. Hermnio tinha at vergonha de confessar que j esquecera a maioria das praxes forenses. Escolhidas a dedo e industriadas com esmero, as testemunhas s falavam para dizer que o Coronel Pedro Melo era um pobre velho doente, a quem o sobrinho havia espancado cruelmente alguns meses antes e a quem tentara assassinar na noite que morreu. O cinismo da mentira era tamanho que o povo pegou a comentar e a debicar, enviando cartas annimas ao juiz e membros da Comisso. A, numa audincia, Dr. Hermnio resolveu endurecer a espinha e to logo se apresentoua. primeira testemunha, tomou do cdigo e leu o artigo que punia o falso testemunho, explicando a significao daquelas palavras.Artur achou aquilo um desaforo. Era uma indireta para ele e seu pai. O Dr. Leite Ribeiro tratasse de aparar a asa daquele juizinho que no agentava nem uma gata pelo rabo!A testemunha seguinte era Resto-de-Ona, capanga de Pedro Melo, um dos que participaram diretamente da morte de Vigilato e que deveria estar apontado como ru. Ao assentar-se no tamborete, em frente do juiz, alguma coisa tombou ruidosamente no cho. Dr. Hermnio vagarosamente moveu o vasto corpanzil, tirou os culos que s permitiam ver prximo, e arregalou os olhos. No cho estava a imensa garrucha de Resto-de-Ona que, sem pressa, repuxando a cara com suas caretas habituais de tarado, pegou a arma, soprou os ouvidos e meteu no largo correo que servia de cinta.Dr. Hermnio compreendeu a impossibilidade de apurar ali qualquer coisa. Os Melos eram os donos de tudo. O caminho que lhe ditava a conscincia seria alegar isso e renunciar comisso. Mas como fazer tal coisa, se no conhecia ou no lembrava dos caminhos adequados? Depois, tinha j muitos anos de servio pblico, estava esperando aposentar-se em breve, essa atitude no iria talvez atrapalhar sua aposentadoria? Eram trinta e tantos anos de servio duro, de exlio no serto. O bondoso Juiz Hermnio consertou a garganta, limpou o suor da careca e nunca mais fez a menor pergunta. As testemunhas depunham o que bem entendiam,'*seguindo a orientao do advogado Leite Ribeiro, que se tomou o dono do processo.Nesse entretanto, a cachaa correndo na soldadesca. Valrio Frerreira e outros amigos remeteram um protesto ao Dr. Hermnio, mas nisso saiu a sentena da impronncia do Coronel Pedro Melo, o foguetrio enfumaou o povoado, as carabinas roncaram nos quartis e os signatrios do protesto tiveram que fugir e se esconder, ante o risco de serem baleados pelos soldados.Tais fatos serviram para ensinar a Valrio Ferreira o que era a Justia e a Lei. Por ela, Vigilato que era criminoso: Norato que passava por ladro. Ferreira tratou de unir-se aos coronis opositores dos Melos, contratou seu cabra de confiana, dando-lhe um rifle papo-amarelo, botou na cintura um punhal e uma garrucha! E j no foi sem tempo.SOL DESCAMBANDO, o Juiz Valrio encerrou os trabalhos, selou a mula, abotoou as esporas, montou e partiu. De passagem, abanou a mo para Vicente, que estava assentado na sala.A mula espantou um bando de rolinhas caldo-de-feijo que foi pousar num ruflar de asas na grotinha. Por trs da serra do Duro, o sol se afogava numa lagoa de sangue e fogo. A tarde esfriava e Ferreira riu seu riso escasso, tossiu. A luta aproximava-se.Na sala, Vicente sentiu uma coisa esquisita: receio? Ansiedade? mpeto mal sofreado? Vicente tinha conscincia de que era preciso levantar-se contra o tio e o primo, mas no fundo alguma coisa o tolhia: um respeito vindo do tempo de criana, o temor pelol homem que sempre mandou no lugar. Vicente pensava. Foi depois! do inqurito sobre a morte de Vigilato, ele chegou para o Duro com a carta de Eugnio Jardim na algibeira.Mal desapeou, o Coronel Pedro Melo o foi visitar. Entrou, cumprimentou, assentou-se no tamborete e ferrou no proso, campeando sempre um jeitinho mode saber o motivo da volta de Vicente. O velho sabia que oxsobrinho deixara o Duro anteriormente porque se indispusera com Artur, e que retomava agora com incumbncia poltica. Mas queria informao mais precisa, mais por menorizada. Com Vicente ali, a cantiga era outra. Ele era casadocom uma sobrinha do velho; era, por seu turno, sobrinho da ve-'0lha Aninha, mulher de Pedro Melo; por cima de tudo, Vicente e Artur eram casados com duas irms. Aqueles laos de sangue detinham a mo dos Melos e deles sabiam utilizar velhacamente os polticos da longnqua Capital. Sangue no briga com sangue diziam os Caiados. O Coronel Pedro Melo tambm sabia levar em conta o parentesco, e reconhecia que o sobrinho Vicente, como os demais, tinha um respeito plantado fundo, um temor biolgico para com o chefo da famlia. O velho percebia que Vicente algumas vezes at lhe tomava a bno.Do tamborete onde estava, o velho sondava Vicente, jogava seu verde, queria saber se o sobrinho viera com nimo de ficar de vez ou s veio a passeio. E tinha trazido o gado?O moo negava estribo, procurava desconversar: O senhor est forte, meu tio. Da derradeira vez que eu estive aqui, o senhor dava um ar que tava perrengado, abatido. Era uma lcera, parece?Ali estava um assunto que bulia com o homem. Pedro Melo gostava de parecer forte. observao do sobrinho, deu um pulo do tamborete e, no meio da sala, continuou saltando ora num p, ora noutro, mostrando que exerccio fsico no o cansava, apesar da idade. Pulava para l e para c, agachava-se, erguia-se, chacoalhando os badulaques das algibeiras, agitando a barbaa branca: Estou forte, menino. Mesmo, meu tio, admirava-se Vicente. Que foi que o senhor fez? Algum remdio do Dr. Rodrigues da Silva, alguma reza braba? Remdio? Que man remdio! Foi a morte do sem-vergonha do Vigilato. Desde que matei aquele tranca, olha, a doena exalou. Na salinha, entre cangalhas, bruacas e canastras, o velho continuava pulando feito um trem doido, agitando a barbaa branca, sacolejando os troos que trazia nos bolsos e na cintura: o artifcio, o canivete de corrente, o punhal aparelhado de prata e no sei o qu mais.Vicente tinha necessidade de no pisar em falso. Qualquer ato seu menos refletido podia trazer srias conseqncias, como foi o caso da boiada. Um boiadeiro tinha mil e quinhen-'(tos bois para tanger para a Bahia. At ento, os boiadeirosda hia passavam pelas barreira sem nada pagar de impostos a Gois,pois os Melos eram os chefes e a troco do imposto obtinham o u poltico e material desses boiadeiros. Agora, porm, o Governo estava exigente. Boiadeiro era a base do poder dos Melos, a quem forneciam eleitores e jagunos. Boiada no saa sem antes cortar o talo. A Artur Melo intercedeu: Olha, meu primo, voc est certssimo. Mas cobre impostos s sobre quinhentas reses. Nessas horas, Artur se lembrava que era primo de Vicente. No pode, Artur. Voc conhece a lei, voc como deputado ajudou a fazer ela. O nmero de reses conhecido de todos... Amanh iro denunciar para a Capital... Nada, meu primo, faa vistas grossas. Esse povo no est habituado a pagar nada e por isso voc tem que primeiro educai cobre menos agora, mais da outra vez, at que eles no estranhe: assim mesmo, homem!Vicente acedeu. Fazia a concesso para que Artur no dissej se que Vicente repelia acomodaes. Para que Artur no ficass] mal servido, ia cobrar imposto sobre a metade da boiada. Muito obrigado, Vicente. Gostei de ver seu esprito de conciliao dizia Artur apertando a mo do coletor, a quem m mais chamava de primo. disso que precisamos: compreenso mtua, cooperao. Sem isto esse fim de mundo aqui no me lhora, no vai pra frente.Artur se foi e ficou de c Vicente matutando. Est a. O diabo no to feio como se pinta. Quem sabe meu primo Artur Melo no est mesmo disposto a viver cordialmente com a gente? Artur ia pelo Larguinho e Vicente sentia ternura por ele. O homem tinha seus defeitos, mas tinha tambm suas qualidades. Podiam dizer dele o diabo, mas era inteligente, corajoso. Olhe que saiu daquele meio atrasado, chegou a deputado e estava na bica para Presidente, quando passou a ser perseguido. Botoujornal na Capital do Estado, topeando com homens formados, enfrentando Tot Caiado, Eugnio Jardim...Dois meses depois Vicente recebia um ofcio brabo da Secretaria da Fazenda de Gois. O Secretrio exigia maior severidac na represso ao contrabando de gado, pois recebera denncia de21que Vicente deixara de cobrar imposto sobre metade da boiada exportada para Barreiras por fulano de tal, no dia tal. Junto do ofcio, um bilhete confidencial: o autor da denncia tinha sido o Deputado Artur Melo.Alguns dias depois, nem por coincidncia, apareceu novamenteArtur: Meu primo, como vai? Quero lhe apresentar meu amigo Joo Rocha, boiadeiro da Bahia, fregus nosso aqui do Duro desde h muitos anos. Muito prazer respondeu Vicente embezerrado. Aqueleprimo era mau sinal. Pois , o nosso amigo a tem umas resinhas para passar a barreira e vem entender-se com o primo... Quem sabe possvel fazer como daquela outra vez, voc sabe, j tem o precedente.!. Quantas cabeas? perguntou Vicente atalhando a poetagem. Quinhentos boiequinhos magros, Seu Coletor.Vicente sabia de fonte segura que a boiada era de mais de mil cabeas; assim, enquanto ajeitava os tales, foi avisando que Joo Rocha desculpasse, mas tinha informaes seguras que a boiada era de mais de mil e duzentos bois.O boiadeiro fechou a cara, cochichando com Artur. Vicente prosseguiu: Por mim, eu cortava o talo para quinhentos bois, mas no posso porque h espies por aqui. Se eu fizer isso, logo denunciaro para Gois que estou recebendo propinas. Aqui tem gente interessada em me tirar do lugar.Novamente os dois homens confabularam e o boiadeiro atolou o chapu na cabea: Pois eu no pago nada, Seu Coletor. Eu me chamo Joo Rocha, assisto na fazenda Pedreira, distrito de Santa Rita do Rio Preto. Faa comigo o que entender! passou a perna na mula ali na porta, tiniu as esporas, deu dois tiros no batente da Coletoria e sumiu no mundo.Vicente lavrou o auto de contrabando, testemunhou-o, enviou para Gois. Levaria dois meses para chegar l, dois para ser informado, mais dois para retomar ao Duro. A Vicente ia requerer fora para garantir a execuo. Os soldados viriam de Gois a p, gastando cerca de trs meses na marcha.Uma besteira o diabo daquele auto pensava Vicente.2'AT QUE ENFM! disse num desafogo o escrivo Cludio, esfregando as mos e mostrando os dentes num riso largo. Esti satisfeito de ter dado desempenho tarefa de intimar a viva de Clemente Chapadense da exigncia do coletor. Era como arrancar um dente dolorido: Uf! Agora, eles que so brancos que se entendam completou com um gesto de quem afasta de si a guma coisa repelente. Que se desentendam, isso sim pilheriou o agente do Correio. Tozo j anda por a batendo caixa, espalhando a notcia de casa em casa.Assim praticavam Cludio e Martim, na salinha do Correio, enquanto faziam o quilo do jantar: E vamos ter barulho grosso.Fora, a tarde dissolvia-se em beleza, com pssaros-pretos e sanhaos trinando nas laranjeiras e abacateiros. Na sombra, uma rola gemia tristemente, num tom merencrio de amor abandonado! A gente podia mudar de casa observou Martim. O inesperado e estapafrdio da afirmativa, provocou o riso de Cludio, que exclamou: Ora, homem, que tem a casa com tudo isso? Em So Marcelo meteram fogo no Cartrio e mataram a tamlia inteirinha do escrivo, que estava dentro. Foi o velho, a mulher e parece que cinco filhos. Uma desgraa!Cludio ria: Aqui, lugar seguro o cemitrio e assim mesmo, olha l!Pelas rvores, os derradeiros sanhaos davam seus pulinhosl geis, gorjeando aquele gorjeio de uma beleza simples. Na grotinha do Largo, a saparia iniciava a orquestra. O cururu velho roncava no papo que dava gosto, secundado do sapo-cachorro. Martim se ergueu e saiu. a ver um conhecido e entreter as horas jogando um sete-e-meio! Vamos, Cludio. Mas Cludio rejeitou. Consigo, pensou que o melhor seria no sair naquelas noites. Perigoso uma tocaia! como aconteceu ao Vigilato: No. vou trabalhar, que tenho uma serviceira excomungada em atraso.Januria remexia no quintal, cuidando de seus ps de planta! molhando um craveiro e um p de alfavaca, queimando algum graveto. Cludio foi ao pote, bebeu uma cumbuca d'gua e voltou ao tamborete. Diacho. A comida da velha Januria estava salgada! A velha estava pegando a caducar. E o inventrio do Clemente?! a dar guas pelas barbas. Esse pessoal de Chapadense era nume-22roso, valente e perigoso como o diabo. Faa idia, quem haver de dizer que um pobre desejo de Clemente redundasse em tanto barulho?Clemente Chapadense tinha um cunhado que tinha uma mulherzinha que tinha olhos verdes, pernas grossas e umas belas ancas de viola. A diabinha da concunhada ia para l rebolando as cadeiras, no seu jeitinho de pomba-rola, e o sangue de Clemente fervia nas veias. Moravam todos em Misses, perto do Duro. Ora, no v que o homem um homem; o gato um bicho; o menino, um carrapicho e a mulher um precipcio? Vai daqui, vai dacol, Clemente pegou a fazer galanteies concunhada pelas beiras de cerca e de ribeiro. Ela no gostou, contou ao marido, que tomou satisfao de Clemente. A, quem no gostou foi Clemente, que de homem no se tira satisfao, e sacou a garrucha 380 fogo-central, mas os parentes entraram no meio e deitaram gua fervura. Saindo da, Clemente ajustou um jaguno; Tico, que assim era chamado o marido dabelezinha, ajustou tambm o seu, e comearam os tiroteios.Cludio se lembrava como se fosse hoje. Clemente Chapadense entrou no Cartrio procura do Juiz Valrio. Cludio ouviu tudo. Clemente se queixava do Coronel Artur: O Dr. Artur Melo diz que entrou na pendenga mode fazer harmonia, mas a harmonia dele esquisita. Pra mim, ele fala que no devo de andar armado e devo ter prudncia. Para meu cunhado ele fala que no deve de andar desarmado e que eu sou perigoso.Na frente do juiz, Clemente Chapadense pedia garantia de vida. Minha vida no anda segura, Seu Juiz. Estou muito cismado com esse Artur. At nem num sei cuma que meu irmo Calixto tem confiana nesse trem -toa. O sol estava por aqui assim, obra de uma braa por cima do morro. Clemente Chapadense montou sua mula e saiu para o stio. A mula batia o gorgulho e Ferreira trocava idias com Cludio: O diabo que entendesse essa gente. Ali estava Clemente no ponto de ser comido pelo cunhado, Clemente que era carne com unha com Artur Melo! Sabe do que andam falando? interrogou maliciosamente o escrivo, no rosto mulato o mais neutro dos sorrisos, numa discrio de velho alcoviteiro.Ferreira balanou a cabea negativamente.23 Artur anda favorecendo Tico, para que ele mate /Clemente. Os Chapadenses so muito fortes, Seu Juiz; para adonde eles penderem, esse lado ter a vitria, na certa. Podem pender pro lado de Vicente Lemes... completava Cludio cheio de reticncias. Sim senhor!Na tarde, a mula de Clemente comia estrada, que era ana leal, e o pobre com medo de Artur. Na tarde, a mula de Clemente trotava, e no peito o corao de Clemente tambm trotava, relembrando as ancas rolias da concunhada, os olhos verdolengos assustadios de veadinha. Por onde andaria Calixto Chapadera irmo de Clemente, Calixto que tinha morto Norato e era to valente quanto Joo Dias de Boa Vista? Por adonde andaria ele que no vinha acudir o irmo das manhas de Artur Melo? O diabo era que Calixto tinha um lote de mortes na cacunda, tinha processo fechado no Cartrio, podia ser pego por Artur e metido no tronco, caso se indispusesse com os Melos. A mula comedeira comia estrada, e a cabea de Clemente pensava na concunhada. E Cludio teve muita pena de Clemente. De que valia toda aquela valentia de Calixto, meu bo Jesus da Lapa!No outro dia, nove horas, um grupo de 15 cavaleiros entrou pela vila, quebrando a pasmaceira com o matraquear das ferraduras e retinir dos ferros. testa estava Artur Melo. Viera de sua fazei da Grota, onde morava. Chegou porta do Cartrio, sofreou a mulona e gritou para o escrivo Cludio num tom de alta solenil dade: Onde esto as autoridades desta terra, Seu Escrivo? Por que pergunta, Seu Coronel? respondeu solcito o funcionrio. Porque mataram um homem, o meu amigo Clemente Chapadense, e nenhuma autoridade compareceu ao local para o auto de corpo de delito. Onde esto as autoridades? Artur bradava] em altas vozes, ele prprio alado nos estribos, a carabina erguida na mo direita, os arreios ringindo, as rodelas do freio tinindo.Cludio chegou at a porta da casa e levou susto ao ver tanta gente. Por isso, adoou mais ainda o sorriso e o semblante: Seul Coronel, vamos apear, vamos entrar. Aqui dentro a gente conversa melhor. E, entre mesuras, explicava que no povoado era surpresa 2.essa morte. Ali ningum estava sabendo do desastre, mas que as autoridades iam agir, por sem dvida. Artur, dramtico, agitando no ar a carabina, clamava do alto da mulona: Voc h de provar um dia que entrei na Vila do Duro com meus rapazes em busca de justia e no encontrei justia. Voc, Seu Escrivo, voc h de provar! Sim senhor, sim senhor balbuciava Cludio entre gestos de subservincia, impressionado com a grandiloqncia do tom do Coronel Artur, emocionado com a repetio da invocao de sua pessoa: Mas eu no tenho nada com isso no, Seu Coronel. Eu nem no sei de nada e a gente to-somente um pau-mandado, o senhor sabe.Os ferros tiniram, os arreios ringiram, os casos tropearam e atrs da mulona de Artur saram os demais cavaleiros. Parece que disse algum que iam para a casa de Clemente Chapadense?Quando, mais tarde, sabedor do ocorrido, para l acorreu o Juiz Valrio, a casa estava cheia: mais de trinta homens armados para, segundo dizia Artur, prestar as derradeiras homenagens ao defunto. Ali estavam os grandes amigos de Artur: Tozo, Damio de Bastos, Joaquim Alves Leandro, Albininho. Num catre, estendia-se o corpo de Clemente; noutro encourado de couro de boi, amontoavam-se balas. A cama do morto estava cercada de rifles, a coronha no cho, o fuste escorado na cama. Perto, um bobo de pira na mo enxotava os cachorros e porcos que se metiam debaixo do mvel para beber o sangue que gotejava dos ferimentos do cadver. Como foi que pegaram o coitadinho? Ah, s mesmo de tocaia, que esses Chapadenses so gente dura. No viam Calixto? gual a Joo Dias de Boa Vista. Mas como foi o sobrosso, de vera? De vera, home no sabia, que ningum no viu, mas parece que no atravessar o crrego Corrente, Clemente recebeu dois balzios. A mula espantou, arrancou, deu com Clemente fora da sela e saiu arrastando ele. Quer dizer que o p engarranchou no estribo, no ? sso mesmo. Engarranchou e ele foi de arrasto at o lugar Rua Nova; a a m lher mandou pegar o defunto. Perito? T precisando de perito para o auto de corpo de delito anunciava Cludio. Ningum porm queria aceitar a incum-2/bncia. Aquilo era perigoso, podia depois trazer complicao para quem fizesse declaraes. Perito. Quem quer servir de perito?Artur tomou a palavra. Era preciso que os peritos examinassem os ferimentos e mandassem o escrivo escrever o que era verdade: Voc a, Tozo. Tambm voc, Albininho. Compadre!) mio, voc tambm homem desenvolvido para essas coisas!A rede com o defunto saa para o terreiro, seguida da jagunada de rifle alceado no ombro. A, parou o prstito para Artur Melo deitar falao: Esta terra no possui justia, nem segurana. A justia tem que ser essa! Artur batia na carabina de papo amarelo. As palavras enfticas e grandiloqentes retumbaram pelo chapado ermo e desolado. Dentro do casebre minsculo, a viva e os filhos choravam, enquanto o grupo se afastava carregando a rede e retinindo as esporas e as fivelas das armas.Na salinha de cho batido, Cludio Ribeiro tinha medo. Cartrio era sempre perigoso, mas com os poderes do Divino Pai Eterno nada havia de suceder de grave. Era briga de brancos. A noite caiu por completo sobre o povoado e sobre os campos que a seca principiava a esturricar. A janela aberta recortava um retngulo de cu, onde a Via-Lctea era uma poeira de ouro. Voavam morcegos cambaleantes e estridentes; corujinhas gaguejava Na grota, o sapo-cachorro latia esganiadamente, seguido do cururu. To calmo tudo! Nem se podia acreditar que sob esta pai germinasse tanto dio, tanta ambio, tanta soberba.Parece que andavam no silncio. Podia ser Martim, de volta mas tambm podia ser...? Num timo Cludio se lembrou de Calixto. Que coisa? Por que Calixto no brigou com Artur por causa da morte do irmo? Cludio se lembrou que tambm tinha um irmo que era gente dos Melos. Seu irmo Abadia fora visto na casa de Clemente, de rifle alceado, alparcata no p e chapu de couro tombado sobre os olhos.Um zunzum de vozes veio da treva do Largo. Cludio se apro-2)ximou da janela. No Largo movia-se uma mancha luminosa muito vermelha: na frente, um homem de lanterna furta-fogo; atrs uma mulher com criana. Devia ser Vicente Lemes que ia para a casa da sogra Benedita, como fazia todas as noites. a com mulher e filha, para comentar os fatos do dia.TOZO parecia uma coruja de mato virgem, com o caro comprido, bochechas cadas, duas grandes orelhas flcidas, os braos muito compridos dependurados dos ombros arcados. At para chupar os dentes cariados emitia um chiado igual ao das corujas: siu, siu. Naquela noite, ali estava conversando com o Coronel Pedro Melo.Pedro Melo Albuquerque possua uma boa casa, construda por ele prprio, atijolada, cercada de altos muros crivados de cacos de vidro no topo. Melhor do que a do Coronel Pedro Melo, s mesmo a casa de sua cunhada Benedita Fernandes de Melo. Aquela segurana toda dos muros da casa do Coronel Pedro tinha por escopo prender a criadagem, descendente de antigos escravos, mantida ali no regime de escravido. Viviam as criadas maltratadas, mal vestidas, metidas de seco e verde no trabalho duro de rachar lenha, cozinhar, fazer queijo, requeijo, manteiga e sabo, refinar acar, fazer farinha, pilar arroz, desleitar as curraleiras, cuidar da casa, fiar e tecer algodo, lavar e passar roupa, fazer de tudo, no final das contas.Novinhas ainda, as crias da casa, como eram chamadas as filhas desses criados, prostituam-se com os patres, com os parentes dos patres, com os camaradas. O produto da prostituio, entretanto, raramente vingava. A serviceira era tanta que no dava tempo s mes de cuidar dos filhos.Esse pessoal no recebia qualquer pagamento: trabalhava a troco da comida, da cama e da roupa. Para comandar esse batalho de escravos, estava ali a velha Aninha, a mulher do Coronel Pedro Melo Albuquerque, atroando a casa e o povoado com seu vozeiro. No povoado, a derradeira coisa que se ouvia de noite eram os berros de Aninha e eram tambm eles os primeiros sons que se ouviam mal o dia clareava.Aninha era gordssima. Vivia deitada na larga cama do quar-2*to de dormir, de onde comandava a casa, as fazendas e o povoado. Mandona e exigente, a velha Aninha era uma rainha, sen tirar nem pr.Naquela noite, Tozo corujava na sua voz de corujo, narrando as notcias do dia: Num de ver que Vicente Lemes estava exigindo que a viuva de Clemente Chapadense completasse o rol de bens dados a inventrio... Siu, siu. Chupou os dentes podres. Ouvindo aquilo o velho coronel deu o desespero: Aquele Vicente Lemes e aquele Valrio Ferreira eram unscascas de ferida braba! O que eles querem viver na preguia e atrapalhar os homens trabalhadores como ns. gente -toa!Dando novos chupes nos dentes, Tozo voltou a crocitar: Pois , oficial de justia j foi intimar a viva... sso no fica deste tamanho esbravejou Pedro, agitando os badulaques e arrepiando a barbaa branca. Amanh cednho vou participar meu filho Artur. Vou l na Grota inteirar ele de tudo. Tozo, Tozo! do fundo da varanda, que era coma chamava a sala de jantar, onde conversavam os dois homens, veio a voz tomitruante de Aninha. rmo de Aninha e casado com na filha dela, a Anastcia, Tozo se ergueu do tamborete, chupou| dentes e saiu com os braos descomunais bamboleantes. L contra irm e sogra as novidades. Esses preguiosos, esses fuxiqueiros! continuava o velho esbravejando na vasta varanda. um povo que no faz nada, que no tem coragem de trabalhar para enriquecer e s quer estar atucanando os que trabalham.A luz do lampio de querosene alumiava o cho de tijolos, as portas, as janelas abertas para o quintal, os escassos mveis: a grande mesa de jacarand, os grandes bancos postos ao longo das paredes, tambores de couro, algumas cadeiras de fechar. Tudo obra das mos do velho Pedro Melo.Pedro Melo era um crila quando veio do Piau com seu pai, que se dizia descendente dos Albuquerques de Penambuco. Estabeleceram-se numa fazenda de Santa Maria de Taguatinga, mas comerciavam em Duro, aldeia dos ndios Acro e Chacriab, a que chamavam de comrcio. Era homem inteligente, sagaz, audacioso, de ambio sem limites, duro feito uma aroeira, dotado de20normas de conduta que o tomavam muito superior aos naturais da regio. Escolheu para esposa Ana Divina da Rocha, da mais rica, mais numerosa e mais importante famlia do Norte de Gois, o que lhe trouxe prestgio social. Dispondo de algumas letras, passou a exercer funes de Juiz, Coletor de Rendas, Delegado, canais que o elevaram ao posto natural de Chefe Poltico: era o poder incontestvel.Pedro Melo amava o trabalho, a pontualidade, a energia e a fora. Amava a vida rude e simples. Para o trabalho dirio na lida de gado, usava a veste de vaqueiro piauiense: cala de couro, gibo e chapu de couro. A cala terminava em botina. Nas grossas e pesadas mos, a luva de couro.Suas vestes eram branquinhas, do melhor couro de catingueiro curtido na decoada, com casca de angico. Para outros momentos era a roupa de algodo tecida em casa, pelas negras, no tear que ele mesmo fizera. Detestava o luxo. Ria-se das roupas de casimira e linho, chamando de boneco quem as vestia. Que que o coronel no sabia fazer e fazer melhor do que todo mundo? bom pedreiro, ali estava a casa que ergueu, os tijolos do piso to bem ajustados que mal se discerniam as junturas. Era mestre em trabalho de couro: uma cala ou chapu ou gibo de couro feitos por ele eram conhecidos pela elegncia do talhe e finura da trana. Como carapina de mo cheia ali estavam a mesa, os bancos, os tamboretes, as cadeiras de fechar feitas por suas mos.Numa extenso de muitas lguas, quem no falava com admirao do parafuso de madeira que fizera para uma prensa de farinha! Obra-prima de pacincia e engenho. E o bicame da fazenda Grota? De coqueiro macaba fez ele um extenso bicame, colhendo gua de um brejo. Como o lugar era montanhoso e a gua devesse ir no nvel, nos vales as bicas eram assentadas em cima de postes de aroeira, cujo topo fora adrede preparado.Em certos lugares essas bicas passavam a uma altura de mais de oito metros do cho, por sobre precipcios e perambeiras. Trabalho duro! Requeria coragem. Foi o velho sozinho, com a ajuda apenas de Tito, que tudo fizera. Coisa dura era ficar l naquelas grimpas, andando sobre as vigas que ligavam um poste ao outro e sustentando nos braos a pesada bica de macaba que deveria descansar no cabeote do poste. O velho enchia-se de orgulho:2( Coragem quem tinha era s eu e Tito.As bicas no eram pregadas nos postes, pois macabaiiu prego, racha-se. As bicas eram soltas: A gente tinha que andar equilibrando. Se triscasse na bica, ela caa em riba da gente.Uma ocasio, teria Vicente uns dezoito anos, estava passeando perto do bicame na companhia de Lina, sua noiva, e do tio PedroMelo. Chegados a esse lugar em que o bicame passava l nasgrimpas, o velho pegou a exaltar seus feitos. Para no ficar por debaixo, Vicente disse que o trabalho era importante, mas no era essa coisa do outro mundo assim como pintava o tio: ele estava exagerando. Homem, no foi voc que fez... retrucou o velho num muxoxo. Ele no gostava de se sentir diminudo. E logo aquele menino fazendo pouco de sua coragem, de sua capacidade de traballho! Ainda hoje no tem macho para andar l por cima, naquela viga posta por baixo da bica... falou ele para o vento, os olhos fitos no alto: Nem para andar l em cima, veja s! Que colocar a bica foi muito mais perigoso...Vicente olhou para onde se dirigiam os olhos do velho. L no alto, o bicame se recortava contra o cu azul de janeiro. De fato a altura era grande, muito grande mesmo, Vicente jamais atingir a altura to elevada em sua vida. Pra subir ali, s o preto Tito que cabra desacismado,- continuava a voz do velho insistente, tenaz, desafiadora. Apontava para cima, fixando a bica desenhada contra o cu muito azul, iluminado por um sol clarssimo de janeiro. Veja l dizia ele. A gente tem que andar na viga, com a bica na altura do peito, mas a gente no pode nem pender pra trs, nem pender pra frente. A bica solta no poste. Se a gente de| sequilibra, cai mesmo. Na bica ningum num pode pegar.No cu, o sol tremia. C embaixo, riscavam-se a sombra da viga e sombra da bica. Como dois traos negros, paralelos, as sombras galopavam pelo valo, passando por cima das folhas viosas do milharal que ali crescia. O milharal embandeirado tremia ao vento, tatalando suas belas folhas verdes, que reverberavam ao sol.Um bafo quente subia da terra mida e do milharal verde. Ao la-31do, os olhos da sobrinha tinham um lampejo indecifrvel. Seria terror? Seria interrogao? Seria ironia? Menino, botar a bica l em riba foi muito dificultoso voltava a insistir o coronel de maneira a irritar. magina s: eu ia na frente, equilibrando na viga, carregando a bica na altura dos peitos. Devagar, devagar! Atrs o Tito, negro bo de confiana. Bastava um isso e a gente esborrachava c embaixo.Vicente compreendia o ardido velho. Toda aquela descrio pattica tinha como objetivo encher o sobrinho de terror. Vicente j tinha certeza que o tio o desafiaria para andar l em cima do bicame. Era por isso que os olhos de sua namorada brilhavam de um brilho to estranho: ela alcanou o intuito do tio antes de Vicente. Voc tem coragem de andar l em cima? Embora esperasse, essa pergunta do velho provocou um estremeo no jovem. O corao perdeu o compasso. Num momento ele temeu que o sangue lhe fugisse das faces e denunciasse seu receio.Forou o sorriso, aceitou o desafio, e para ocultar sua provvel emoo, saiu correndo por entre o milharal: Vamos, meu tio, vamos l para cima. Mas olha l que o senhor no nenhum mocinho. O senhor fez esse bicame faz muito tempo, meu tio! Vicente dizia aquilo da boca para fora, para no dar o brao a torcer, pois o velho Melo, como um demnio, conhecedor de todos os pormenores da regio, numa agilidade de bicho, galgava facilmente o aclive, tomava a dianteira de Vicente e j se equilibrava sobre a tal viga, num ponto onde ela era menos alta. Como lhe permitiam as foras, Vicente tambm fez a mesma coisa. Entretanto, do alto da viga, ele pode perceber que o tio no exagerara. Pedro Melo, prtico em transitar por ali, no encontrava dificuldade. a avanando, dirigindo-se para o ponto onde o bicame atingia sua maior altitude, justamente por sobre a roa de milho.Com grande custo Vicente conseguia equilibrar-se. A viga, por baixo, estava no mesmo plano vertical da bica: dessa forma era preciso que a pessoa se mantivesse na ponta dos ps e projetasse a barriga para a frente, fazendo recuar o peito, contra o qual roava a bica, ao mesmo tempo que esticava a cabea por sobre a bica. Nessa posio, todo contorcido, ia-se afastando uma perna3'para a direita e depois a outra no mesmo sentido, para caminh ao longo da viga. Uf! .At que Vicente se apossasse da tcnica, j o velho Coronel Pedro Melo ia longe. Vicente apressava-se para alcan-lo, mas o esforo era em vo. Estavam ento no ponto de maior altura. Vendo que o rapaz no desistia, quis desesper-lo: Espia l embaixo. Vigia como bonito! Vicente olhou, mas nada viu de bonito. Muito embaixo, no vale, o milharal on deava aoitado do vento. Um precipcio, uma vertigem, sensao nunca antes experimentada. Do vale subia um bafo quente, mido, feito uma boca de febrento. Tremia o sol, tremia o folhame o cho faltava. Entre o verdor do milharal talvez um vulto acenando. Seria a namorada? Nem podia responder. O suor corria empapando as costas, sentia-se desamparado e perdido, o milharal rodava, ondeava, tudo fugia ao seu apoio. O corao batia com fora tamanha que lhe parecia estar sendo ouvido pelo velho: o baticum retumbava nas cartidas, sapateava nos ouvidos, latejav nos olhos. No podia agentar mais. Foi levando as mos para agarrar a bica. No pega, no pega! Era a voz do velho reboando pelo vale.O grito, como que retemperou Vicente, deu-lhe serenidade. Parado no meio da viga estava o velho; e o rapaz lhe disse que seguisse. Queria sair saquele suplcio, atingir, alcanar o outro lado, pisar a terra firme: Vamos, meu tio. Pra frente! No! Pra a. Agora voltar, respondeu friamente Coronel Pedro Melo. Voltar?E em seguida o velho passou a explicar: Fique fixe a. Eu vou passar por trs de voc, para voltar. No h perigo; no toco nem num cabelinho seu. Vicente percebeu a extenso do perigo. Para passar por trs, o velho tinha imensa probabilidade de desequilibrar-se e rolar no abismo. Se se desequilibrasse, tentaria apoiar-se em Vicente, que procuraria apoio na viga, e a tudo ia para o fundo do vale, por riba das pontas de pedras, pontas de toco das rvores que tinham sido derrubadas para feitio da roa. No preciso, meu tio. Agora eu vou na frente e o senhor 32vem atrs. Melo porm no deu ouvidos, j comeou a passar por trs de Vicente a sua perna, que tateou, tateou e afirmou-se adiante, depois passou um brao, tocou com a mo muito de leve a bica e a mudou a outra perna. Sem dizer palavra, prosseguiu andando na viga, at chegar ao ponto onde havia iniciado a proeza. Num pulo alcanava o cho e gritava para a sobrinha: Pode casar, menina. Seu noivo no patife no.AH, A CASA! Eis um dos padres de glria da viva Benedita Fernandes de Melo. Nenhuma sequer havia do mesmo tamanho no povoado. Nem a do cunhado Pedro Melo. Quando o finado marido Antnio Melo Albuquerque adquiriu a residncia, tinha trs lances. proporo, porm, que os filhos foram se casando, Antnio Melo foi acrescentando novos lances e reunindo filhos e genros debaixo do mesmo teto, debaixo do seu teto.No corpo da casa havia uma varanda de quase duas dezenas de metros de comprimento, para onde davam portas e janelas dos cmodos internos. Vastas janelas corredias abriam-se da varanda para um ptio lajeado, onde cresciam roseiras, gernios, amores-perfeitos, verbenas, monsenhores, resedse jasmineiros. A estava o segundo orgulho de Dona Benedita: suas flores.Para alm, ficavam o quintal com a horta, os currais e os pastos.Ao tempo das moas solteiras e do velho vivo, nesse varando sempre havia bailes e brincadeiras, que deram mais fama grandeza da casa e beleza do jardim. Casa alegre era aquela com a moada tocando violo, bandolim, cantando, recitando, atraindo os melhores cortes de noivo de toda a regio. com as filhas de Antnio Melo casaram-se Arthur Melo, deputado estadual, Vicente Lemes, coletor estadual, um famoso poeta de Gois, ento juiz de Direito da comarca; Moiss Melo, comerciante no Duro. E at hoje, embora o velho estivesse enterrado, embora rapazes e moas houvessem casado, a casa de Dona Benedita era um formigueiro.Naquela noite, por exemplo, ali na varanda estava um povo danado. No canto, em frente porta da capela, a estava a velha Benedita assentada na rede, os ps metidos nos chinelos, aos ombros um xale preto. Em derredor, pelos tamboretes e frasqueiras,33espalhavam-se Vicente Lemes, Argemiro Flix, Moiss Melo e asesposas.O proso animado versava sobre o inventrio de Clemente Chpadense. Nisso, porm, a conversa pegou a mancar, a baixar de tom. De sua rede Dona Benedita falava sua fala mansa e macia, mas cheia de dio. Ela no entendia desse negcio de inventrio, mas entendia do corao dos homens. Dona Benedita conhecia o genro Vicente Lemes e conhecia o outro genro Artur Melo. Se Vicente estava exigindo alguma coisa, o direito estava com Vicente, que j lhe havia contado, por diversas vezes, as implicncias de Artur. Vicente, meu filho, no baixa a crista. Derrota o malvado,s, disse a velhinha, a cujo corao subiu o dio ao genro Artur, Odiava-o como odiava o pai dele, o velho Pedro Melo, irmo de seu defunto marido: Piauienses de uma figa. preciso dar uma lio nesses ladres! No, Dona Benedita, no diz assim entrou conciliador o genro Moiss. Afinal de contas, so nossos parentes. Ladres, ladres repetia a velha. Ento o refrigrio nofoi furtado?Todos conheciam de sobra a histria do refrigrio, mas ningum ousou impedir que a velha a repetisse, ouvindo tintim por tintim no mais respeitoso silncio.No caminho de Barreiras, perto do povoado do Duro, no alto da Serra, havia um terreno de excelentes pastagens durante a seca. Cheio de taquaral, furnas frescas e cambabas. Para a subia o gado no ardor da seca, onde permanecia comendo capim verdinho at que c embaixo se queimassem os pastos e o capim brotasse, quando ento as reses desciam para comer o verde.Era uma praxe antiqssima. O pai e o av de Dona Benedita assim procediam e o marido dela continuou nesse sistema. O gado era to empastado que logo que o tempo demudava e entrav a seca, ele dava f e pegava a berrar uns berros intermitentes. Depois, reunidos em ternadas, aspirando o vento e berrando intei mitentemente, os curraleiros comeavam a galgar a serra embusca do refrigrio, donde s voltariam com a outra mudana da estao, quando o vento geral anunciasse chuva, revirando de rumo.Aquilo era uma riqueza. Quem tivesse o refrigrio, quem pos-3.susse a serra, teria reserva de pasto, reserva fresca e boa. Por isso, mal o sogro de Vicente fechou os olhos, o irmo Pedro Melo trouxe de Barreiras vrios rolos de arame farpado e os estendeu por ali, cercando o refrigrio. Absurdo! gritou a viva. Que o refrigrio meu. Cad os documentos? perguntou o cunhado Pedro Melo, assim muito inocentezinho. Que documento? Ali ningum possua ttulo de domnio de terras. Dono do cho era quem possusse gado nele empastado. At onde andasse o gado com a marca, at a ia a propriedade do dono desta marca. Era uma lei que vinha num d'hoje, se transmitindo de pais a filhos, sem contestao. O prprio Pedro, que era dono de mais de vinte fazendas, perguntassem a ele se possua documento, para ver!De nada valeram, porm, os protestos da velha. Naquela seca, quando o vento geral soprou, o gado de Dona Benedita aspirou profundamente o ar, soltou os berros finos e curtos de curraleiro e marchou pelas veredas que levavam ao refrigrio. Debalde caminhavam pelas veredas. Tudo estava vedado pelas cercas de cinco fios, apoiados em grossos postes de vinhtico e perobinha. A viva procurou o cunhado e lhe mostrou que aquilo no podia ser: O refrigrio sempre foi de minha gente. Eu herdei ele de meu pai, que o herdou do pai dele. Tem dvida no, minha cunhada. s mostrar os documentos.Benedita foi atrs dos parentes, mas aquilo era briga de cunhados e contrariar o Coronel Pedro Melo era coisa muito perigosa. Pelas veredas, o gado ia e vinha, rondando a cerca, tentando transp-la, ferindo-se nas farpas do aramado.A cerca do Coronel Pedro Melo ganhou fama, sua notcia correu mundo. De longe, vinha gente para ver a estrovenga. Ento, os valos cavados no cho, as cercas e pau, os muros e pera no tinham mais serventia?Ao longo da cerca formou-se um aceiro largo de tanto o gado de Benedita ir e vir em busca de acesso ao refrigrio. Benedita reclamou de novo e o cunhado fez uma pergunta que pareceu viva sem p nem cabea. Perguntou ele: Minha cunhada, que mal pregunte, para que a senhora est querendo o refrigrio?3/ E voc pergunta muito mal mesmo, respondeu a velha. Quero o refrigrio para o meu gado, ora essa boa! Que vontade que teve ela de lhe dizer que talvez no Piau refrigrio tivesse outra serventia! Mas qual! Melhor tolerar.Pedro Melo riu: Ora, Benedita, a senhora no tem mais gado no. Seu gadinho mal vai dar para pagar as custas do inventrio de meu irmo.Dona Benedita chorou trs dias e trs noites sem cessar, diante de seus santos, no dia que o oficial de justia levou seu rebanho o melhor gado do Duro. D graas a Deus, minha cunhada. A sua valena foi meu filho Artur. Se no fosse ele, sua casa tinha ido a leilo para pagar as custas. Seu marido no deixou dinheiro! Dona Benedita ficou pobre. Tinha a casa que os filhos e os genros sustentavam. Para pequenos gastos vendia um objeto de oura ou uma afaia de prata, velha afaia que herdou do pai e que entregava como quem corta fora um dedo da mo. Os poucos candeeiros de azeite mal clareavam os cmodos casaro, por onde os netos e sobrinhos brincavam de pegar ou brincavam de pique, numa algazarra dos trezentos. Psiu, psiu, aqui no, meninos. Vo brincar no ptio. Ai, ai, ai! No ptio no, que vo quebrar as minhas roseiras, protestava a velha Benedita. Na cozinha, luz das brasas da fornalha, tambm conersavam os aderentes da velha Benedita. Do tamanho de uma menina de oito anos, as sobrancelhas grossas, o arde nanica, MariaPequena falava. Januria ouvia, balanando a cabea, onde o pixain meio branco se escondia por baixo do xale de franja, chupitamdo com a boca murcha de velha o pito sarrento, de barro. Januria era velha moradeira do Duro. J vira e ouvira muita coisa. Dava notcia do tempo que os mineradores andavam revolvendo as catas que ainda hoje abriam suas bocas pelos arredores da cidade falava dos ndios Acro e Chacriab que foram aldeados ali. A gente no sabia se era contempornea desses fatos, ou se misturava suas recordaes com o relato dos antepassados.Naquela noite, como sempre, estava de visita a Maria Pequena, que era irm de leite da velha Benedita e com ela residia. Tanto Januria como Maria Pequena sabiam que os grados eram maus e por isso o que falavam, falavam debaixo do maior segre-3)do. Vez por outra, uma se erguia do pilo onde estava assentada, e ia porta espiar se no havia ningum ouvindo: Parede tem ouvido, comadre. Seguro morreu de velho, respondia Maria Pequena com sua voz de an, juntando as sobrancelhas no alto da testa, aquelas sombrancelhas que eram que nem duas taturanas. As mulheres no entendiam desse rolo de inventrio, mas quem ignorava que inventrio era feito para os grados roubar? Coitada da viva! Trem de viva, a senhora sabe como . Mesmo que carnia, cada bicho quer um taco... Mataram o pobre do Quelemente e agora to quereno ficar com os term do coitadinho... At a mulher, que Deus me perdoe, falou a Pequena dando tapas na boca. De vera! Diz que essa foi a primeira que o coronel passou a mo... Pequena se ergueu, foi espiar na porta, e voltou: Mas quem ser que t comendo os term da viva, comadre? Seu Vicente ou ser o Coronel Artur? Essa menina, pra mim, tudo os dois to engulindo os term da viva. A diferena que Seu Vicente quer comer um taquinho menos avultado e o coronel quer comer o defunto inteirinhozinho, sem deixar nem um isso para os outros. Ambas riram e a outra completou que no punha a mo no fogo por Artur: Esses Melos tm parte com o Co, comadre. At Flix Bundo eles meteram no chinelo!O caso era muito conhecido. Flix Bundo era um chefe de bando dos Gerais; um dia entrou na vila para vingar a honra de duas filhas de um amigo que foram defloradas por gente grada e que no foram vlidas da justia. Flix Bundo entrou disparando rifles, cercou a casa do deflorador, deu-lhe vrios tiros, matou-o, depois ficou debaixo dos mulungus, conversando com conhecidos.Flix no fez nenhum mal esposa e filhos do deflorador, dizendo-lhes que podiam enterrar o defunto em paz. Mais tarde, deixou a vila. No tocou numa casa, no buliu numa gaveta, no fez mal nem a uma galinha, no quebrou nem um raminho de planta. S entrou na casa da vtima e dali meteu os ps na estrada, de volta. Pois no lhe conto nada. Foi Flix virar as costas, olhe ali o boato correndo: Flix Bundo limpou a gaveta da Coletoria Es-3*tadual. O coletor Pedro Melo dizia para quem quisesse ouvir queFlix levara a renda de seis meses da Coletoria!A, Januria arrematou: T vendo a astcia do coronel? Tudo mentira. Foi ele quem limpou a gaveta e botou a culpa em riba da cacunda do Bundo. Cruz credo! fez Pequena, benzendo-se. o Coisa-Rui que o Coronel Pedro tem na garrafa que ensina tanta astcia para eles, meu Divino.Embora conhecesse essa histria, Januria teve medo. Encolheu-se, como se defendesse de uma agresso e murmurou: Tesconjuro, Bicho. esse Sujo que ajuda os Melos. No dia que o Bicho exallar ou no dia que aparecer algum com uma capetinha fmea, adeus sorte dos Melos. Ns ainda vamos ver. Mas voc acredita que esse Bicho d conta de fugir?Ento o coronel deixa? Olha aqui Januria com o indicador direto puxava para baixo a plpebra inferior do olho direito, num gesto de quem diz que os Melos estavam de olho aberto. Psiu! Januria ergueu-se e foi espiar fora, voltando a seguir para seu lugar no pilo. Ah, o velho no deixa o Coisaescapulir. O capetinha escravo deles desde os tempos do pai do Coronel Pedro, o velho Felipe, que deve de estar nas profundas dos infernos, com o perdo da m palavra. Maria, Maria, chamavam de dentro da casa. A m que S Dona Benedita t te chamando voc, essa menina? perguntou Januria, que se envolveu no xale para sair.Sim, de fato, era Benedita que chamava.Agora o silncio caa sobre o casaro. Os parentes, tomando a bno velha, tinham sado ou para suas casas, ou para seus aposentos. Como uma sombra, Benedita tomou o rolo de cera,acendeu-o e chamou Maria Pequena: Vamos rezar. Pequena nemrespondeu, abriu a porta da capela, as duas entraram, ajoelharam-se diante do oratrio de cedro talhado. A luz fumarenta do rolo fazia bulir a imagem grosseira de So Miguel. . Ajude meu genro Vicente, meu poderoso So Miguel pedia Benedita. Ave Maria, cheia de graa... resmungava Maria Pequena, pensando no capeta do Coronel Pedro Melo. O senhor convosco, bendita sois vs prosseguia Dona Benedita, mas da em30diante vieram as lembranas do genro Artur Melo. Desgraado! pensou a velha. Fez a infelicidade de minha filha, de minha pobre Zefa!Pela sua memria passou o casamento de Zefa com Artur, Zefa to novinha, quase menina. Depois o diabo do Artur metido na sua poltica sem fim, permanecendo na Capital do Estado anos a fio, largando Zefa abandonada na vila. Entrava ano, saa ano e Artur mal escrevia uma ou outra cartinha. Na solido, no abandono, a pobre Zefa ardia de desejos; ela cujas carnes moas tinham provado do amor. Nas noites longas e tediosas, a pobrezinha rolava na cama larga e vazia, at que a madrugada pintasse o telhado, a imaginao torturando os sentidos exaltados pelas recordaes amorosas.Quando afinal Benedita desconfiou, o mal ia grande.Por Porto Nacional e Natividade j corria a notcia dos amores de Zefa com uns e com outros. A, Artur surgiu alegando sua honra maculada. Enxotou a esposa de sua casa, tomou-lhe a filha e a enviou para um amigo Joo Alves de Castro educar em Gois.Pobre Zefa, por muitos anos rolou de deu em deu, at que a filha voltou para o Duro, casou com o Doutor Herculano Lima e recolheu para sua casa a pobre Zefa doente e miservel.Diante dos santos, a velha at se esqueceu de pedir por Vicente, para somente descarregar seu dios contra Artur: Piauiense maldito!A se lembrou que estava frente a frente com S. Miguel. Afastou o pensamento