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CONTRA O (MAIOR) TABU DA FILOSOFIA: ENSINO DE FILOSOFIA E OS 10 ANOS DA LEI 10.639/03 Renato Noguera 1 Resumo O objetivo deste artigo é problematizar o clichê de que a filosofia nasceu na Grécia, apontando para um racismo epistêmico que tem desautorizado sistematicamente a produção filosófica que não seja ocidental, questionando especialmente a existência da filosofia africana. Com ênfase nas consequências das regras em consonância com a Lei 10.639 para a mudança de perspectiva do ensino de filosofia. Com efeito, para quebrar o maior tabu da filosofia e abrir novas perspectivas para o pensamento. Palavras-chave: Ensino de Filosofia; Tabu; Lei 10639. Abstract The purpose this article is to discuss the cliche that philosophy was born in Greece, to point epistemic racism that unauthorized philosophical production out Western, especially questioning the existence African philosophy. To emphasize the consequences of the rules according to the letter of Bylaw 10.639 for perspective’s change of 1 Professor Adjunto de Filosofia do Departamento de Educação e Sociedade (DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro), e, do Laboratório de análise e produção de recursos didáticos e paradidáticos para o ensino de Filosofia (Práxis Filosófica) da UFRRJ. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, dentre outros, Ensino de Filosofia e a Lei 10639, e, Era uma vez no Egito. Este último, voltado principalmente para crianças e adolescentes, apresenta filosofia do antigo Egito.

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CONTRA O (MAIOR) TABU DA FILOSOFIA:

ENSINO DE FILOSOFIA E OS 10 ANOS DA LEI 10.639/03

Renato Noguera[footnoteRef:1] [1: Professor Adjunto de Filosofia do Departamento de Educao e Sociedade (DES) e do Colegiado de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do Laboratrio de Estudos Afro-Brasileiros e Indgenas (Leafro), e, do Laboratrio de anlise e produo de recursos didticos e paradidticos para o ensino de Filosofia (Prxis Filosfica) da UFRRJ. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, dentre outros, Ensino de Filosofia e a Lei 10639, e, Era uma vez no Egito. Este ltimo, voltado principalmente para crianas e adolescentes, apresenta filosofia do antigo Egito.]

Resumo

O objetivo deste artigo problematizar o clich de que a filosofia nasceu na Grcia, apontando para um racismo epistmico que tem desautorizado sistematicamente a produo filosfica que no seja ocidental, questionando especialmente a existncia da filosofia africana. Com nfase nas consequncias das regras em consonncia com a Lei 10.639 para a mudana de perspectiva do ensino de filosofia. Com efeito, para quebrar o maior tabu da filosofia e abrir novas perspectivas para o pensamento.

Palavras-chave: Ensino de Filosofia; Tabu; Lei 10639.

Abstract

The purpose this article is to discuss the cliche that philosophy was born in Greece, to point epistemic racism that unauthorized philosophical production out Western, especially questioning the existence African philosophy. To emphasize the consequences of the rules according to the letter of Bylaw 10.639 for perspectives change of philosophy teaching. Indeed, to break the big taboo of philosophy and open new ways to thought.

Key-words: Philosophy Teaching; Taboo; Bylaw 10639.

Abertura

Toda estreia merece comemorao! Nossa participao neste festejo em favor de uma educao plural, intercultural, policntrica, ciente das multiparcialidades presentes numa sociedade democrtica e de maioria negra muito relevante, ainda mais quando se trata de filosofia. Porque historicamente a filosofia tem se mostrado uma rea de sotaques europeus. A estreia uma oportunidade para revisitarmos o que estava esquecido. Neste caso, a estreia sada 10 anos da Lei 10.639. Ora, contribuir com essa festa que contempla os anseios antirracistas para uma sociedade mais justa uma honra, sobretudo, se tratando de uma rea disciplinar que tem se mostrado refratria incluso de histria e cultura africana e afro-brasileira no currculo.

Este artigo pretende contribuir com o dossi 10 anos da Lei n 10.639/2003: culturas, linguagens e pesquisa em educao, tanto pela via de uma srie de enunciados propositivos quanto por meio de um diagnstico ligeiro sobre o estgio de implementao da Lei 10.639/03 realizado pela disciplina Filosofia na Educao Bsica brasileira. Porm, menos uma fotografia exata de instituies de ensino, apresentaremos croquis, as bases para um desenho, ou ainda, possveis estratgias para cumprirmos a exigncia legal.

Panorama sobre a legislao

A obrigatoriedade da disciplina Filosofia no Ensino Mdio posterior promulgao da Lei 10.639/03. Apenas com a publicao da Lei 11.684/ 08 em 03 de junho de 2008 que o Artigo 36 da Lei 9.394/1996 passou a vigorar com um novo inciso, preconizando a obrigatoriedade de Filosofia e Sociologia durante todo o Ensino Mdio. As duas disciplinas tiveram um prazo de trs anos a contar da data de vigor da Lei para que estivesse em todos os anos do Nvel Mdio. Antes disso, a Filosofia ocupou o currculo da Educao Bsica de modo variado; ora como curso livre, ora como matria optativa, entre outras denominaes legais. Durante a segunda metade do sculo XX regulamentou o Ensino de Filosofia atravs da Lei no 4.024/61, passando pelas Leis 5.692/71 e 7.044/82. Seja como optativa ou curso livre, a Filosofia uma disciplina sugerida; mas, sem obrigao de ocupar um lugar permanente na matriz curricular do Ensino Mdio. A Lei no 11.684/08 foi promulgada na esteira da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) assinada em dezembro de 1996, quando a disciplina podia fazer parte do currculo diversificado do Ensino Mdio conforme deliberao dos Conselhos Estaduais de Educao.

No dia 10 de maro de 2004, a fim de regulamentar a Lei 10.639/03, o Conselho Nacional de Educao (CNE) aprovou o Parecer 003/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No mesmo ano, a Resoluo no 1 de 17 de junho, complementou a documentao legal, atualizando os dispositivos da Lei 10.639 a serem observadas pelas Instituies de ensino, que atuam nos nveis e modalidades da Educao Brasileira e, em especial, por Instituies que desenvolvem programas de formao inicial e continuada de professores (BRASIL, 2004, p.31).

Depois dos pareceres que regulamentavam as responsabilidades dos entes federados frente implementao da Lei 10639 (BRASIL, 2008, p.8), no ano de 2008 o Plano Nacional de Implementao das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana amplificou e detalhou os encaminhamentos especficos e indispensveis para que todos os nveis e modalidades da educao em territrio nacional tornem efetiva as Leis 10.639/03 e a 11.645/08, esta que d a mesma orientao quanto temtica indgena (BRASIL, 2008, p.2).

Diante desse quadro legal, vale a pena ressaltar que um duplo desafio foi institudo a partir do ano de 2008, uma injuno bifacial circunscrita pela presena da Filosofia no Ensino Mdio e dos contedos obrigatrios de Histria e Culturas Afro-Brasileira, Africana e Indgena[footnoteRef:2]. Os marcos legais que so alvos de pesquisa deste artigo esto na encruzilhada de duas Leis que alteraram a LDB, a 10.639/03 e a 11.684/08. O que trouxe uma indagao nova para docentes (de filosofia), como ensinar filosofia contemplando contedos de histria e cultura afro-brasileira e africana? [2: Este artigo no vai tratar da cultura indgena; mas, importante frisar que temos trabalhado com essa perspectiva no Leafro e no Laboratrio Prxis Filosfica. ]

A questo epistemolgica e o nascimento da filosofia

s vezes parece que a pergunta feita acima parece sem resposta. Afinal, a Filosofia a mais branca dentre todas as reas no campo das Humanidades (MILLS, 1999, p.13). O filsofo africano-americano Charles W. Mills (1916-1962) colocou ideias contundentes em seu texto intitulado A poltica racial[footnoteRef:3] que compe o livro Racismo e Filosofia[footnoteRef:4] organizado por Susan Babbitt e Sue Campbell. Ns estamos de acordo com Mills, a Filosofia mais avessa aos debates sobre relaes tnico-raciais e tem se conservado nas universidades como um saber eminentemente europeu. Ora, se considerarmos os critrios do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Cientfico (CNPq), a grande rea de Cincias Humanas rene 12 reas: Filosofia; Sociologia; Antropologia; Arqueologia; Histria; Histria do Conhecimento; Geografia; Psicologia; Educao; Cincia Poltica; Relaes Internacionais; Teologia. Uma investigao superficial[footnoteRef:5], ainda em curso, tem mostrado num estudo comparativo que monografias, dissertaes e teses na rea de Filosofia, ao lado da Teologia[footnoteRef:6], no reconhecem filosofia africana como horizonte de pesquisa. [3: O livro ainda no estava traduzido em 2013, o ttulo original Racial Polity. O autor fez uma traduo para seu uso pessoal. ] [4: O captulo, assim como o livro, ainda no estava traduzido em 2013, o ttulo original . O autor fez uma traduo para seu uso pessoal.] [5: Nosso Grupo de Pesquisa est pesquisando os assuntos tratados por estudantes de filosofia em nvel de graduao e ps-graduao na USP, UFRJ, Unicamp desde 2012 avaliando os trabalhos realizados a partir de 2003, a pesquisa ainda no foi concluda; mas, a nossa viso parcial s encontrou uma monografia sobre filosofia africana na UFRJ no 2 semestre de 2012. ] [6: Ns no colocamos os cursos de Teologia na nossa agenda de pesquisa, considerando suas especifidades. ]

Os manuais de Histria da Filosofia, em sua maioria, concordam quando se trata de fazer o registro do nascimento do pensamento filosfico, a hiptese mais aceita da certido grega. Ou seja, mesmo que filsofas e filsofos vivam imersos em disputas e debates sobre conceitos, mtodos e argumentos consistentes para teses distintas e sejam capazes de problematizar um vasto campo de questes, quando se trata do surgimento da filosofia parece que existe um forte consenso. O cadastro ou certido de nascimento da filosofia se situaria por volta do sculo VI. a.C. na Grcia antiga, com um registro que certifica de Tales de Mileto como o primeiro filsofo. E, ainda que existam algumas divergncias entre os historiadores da filosofia, ela no deixaria de ser grega, porque se no atribuem o posto de primeiro filsofo a Tales de Mileto, o ttulo dado a Scrates ou a Plato. Ns no queremos adentrar esse debate, porque no frtil e desvirtua de questes mais importantes. A pergunta que queremos compartilhar simples: por que no possvel falar da filosofia fora de um desenho geopoltico europeu? Ns voltaremos a essa questo adiante.

Ns encontramos afirmaes tratadas como axiomas autoevidentes em manuais de histria da filosofia e livros de introduo para estudantes do ensino mdio, tais como: os gregos eram humanos a pontos de serem os mais humanos entre os povos antigos, dada a sofisticao de sua cultura intelectual e artstica (MOS, 2011, p. 85). Sem dvida, a meno de que os gregos seriam mais humanos do que outros povos muito preocupante porque sanciona um discurso de inconfundvel textura etnocntrica camuflado das especificidades de um povo. Ora, quais as consequncias dessas afirmaes? Ns entendemos como um exemplo da coloniadade, isto , padro de poder que elaborou a modernidade em moldes eurocntricos, definindo um sistema classificatrio racial e de bases geopolticas. Na esteira do pensador peruano Anbal Quijano (1993a, 1993b), colonialidade diz respeito ao enredamento entre diversas modalidades de dominao, subalternizao nas sociedades modernas atravs de um sistema de classificao mundial marcadamente tnico-racial, de gnero, sexual que disputa e controla: a) o trabalho, os seus meios e seus produtos; b) o sexo e a reproduo da espcie; c) a subjetividade e os seus produtos, principalmente os saberes que circulam na sociedade; d) a autoridade e os seus meios para regular e reproduzir o padro estabelecido das relaes sociais (QUIJANO, 2010, p.88). O tem c desperta interesse especial porque diz respeito a produo de conhecimento e os sistemas que autorizam a definir o que ou no um conhecimento vlido. Em outros termos, o fundamento da questo est na autoridade de definir o que filosofia. O exerccio dessa autoridade situa a questo no contexto das relaes de poder. O filsofo colombiano Santiago Castro-Gomez (2005) desenvolve uma consistente objeo universalidade da filosofia ocidental, diz que o conhecimento um elemento-chave na disputa e manuteno da hegemonia, isto , a injustia social e a dominao poltica so indissociveis da injustia cognitiva ou racismo epistmico. O filsofo sul-africano Mogobe Ramose tem uma argumentao que merece destaque e segue no mesmo sentido.

Os conquistadores da frica durante as injustas guerras de colonizao se arrogaram a autoridade de definir filosofia. Eles fizeram isto cometendo epistemicdio, ou seja, o assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados. O epistemicdio no nivelou e nem eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu, entretanto, - e numa dimenso muito sustentada atravs de meios ilcitos e justos - a tenso subsequente na relao entre as filosofias africana e ocidental na frica. Um dos pontos fundamentais da argumentao neste ensaio investigar a fonte de autoridade que supostamente pertence ao Ocidente para definir e descrever, em ltima instncia, o significado de experincia, conhecimento e verdade em nome dos povos africanos (RAMOSE, 2011, p.9).

Trocando em midos, a recusa da capacidade de um povo produzir filosofia est ligada a compreenso do que deve ser a 1 classe da humanidade. O que passa por nveis de zoomorfizao sistemtica de alguns povos, colocando os povos africanos na base desse sistema racista[footnoteRef:7]. O que est assentado numa formulao racialista do sculo XIX que foi a sistematizao de um racismo antinegro que j perdurava por alguns sculos (MOORE, 2007). A inveno do ser negro: um percurso das ideias que naturalizam a inferioridade dos negros, a filsofa Gislene dos Santos elucida: O tratamento dos europeus para com os africanos diferencia-se do oferecido aos ndios da Amrica que, apesar de serem vistos como primitivos, eram dotados de pureza, algo que no se aplicava aos negros (SANTOS, 2002, p.54). O mdico alemo Carl Gustav Carus (1789-1869) popularizou o seguinte quadro: os povos do dia (caucasiano-europeus e seus descendentes), os povos do crepsculo oriental (povos da Europa oriental, asiticos, rabes e seus descendentes), os povos do crepsculo ocidental (amerndios e seus descendentes) e os povos da noite (nativos australianos, africanos e seus descendentes). [7: ]

Assim, a dvida sobre a existncia da Filosofia Africana , fundamentalmente, um questionamento acerca do estatuto ontolgico de seres humanos dos africanos. Uma vez que os africanos no so propriamente seres humanos, como firmava o raciocnio, havia uma medida prpria e condizente com o tratamento subumano empreendido em relao a eles. De acordo com isto, a escravizao dos africanos foi tanto uma necessidade lgica quanto um imperativo prtico para satisfazer as necessidades psicolgicas e materiais do colonizador. O comrcio escravo transatlntico nasceu dessa lgica (RAMOSE, 2011, p.8).

A historiografia oficial da filosofia tem se mostrado bastante refratria s ideias que postulam a existncia de uma produo filosfica anterior grega em solo africano, a filosofia do antigo Egito. Diante de um cenrio, em certa medida, hostil ao que poderia soar dissonante ao status quo e dogma da filosofia entendida como um esplio grego que, por razes histricas determinadas, se desenvolveu, apenas, no ocidente.

Vale a pena se debruar sobre argumentos que sugerem que a negao da existncia da Filosofia fora das cercanias europias no uma objeo aos pensamentos africano, amerndio, oriental, etc. Porm, as(os) historiadoras(es) e professoras(es) de filosofia estariam dizendo, to somente, que se deve reconhecer que no adequado enquadrar formas distintas de pensamentos, tal como o africano, num modelo ocidental. Esta tese advogada por muitas filsofas e filsofos ocidentais, segundo a qual, a Filosofia uma forma de pensamento de origem grega e que se assenta nas bases culturais da Europa, constituindo uma tradio Ocidental permitiria que expresses ricas e diversas do pensamento humano no fossem subsumidas e reduzidas Filosofia. Pois bem, quero sugerir outro ponto de vista. A saber: estaramos diante de uma modalidade de monoplio ou oligoplio intelectual e epistmico, um dos campos com maior status dentro da grande rea de Humanidades seria explorado exclusivamente pela tradio Ocidental. Dentro desta tradio, filsofas e filsofos pragmatistas, continentais e analticas(os) disputariam visibilidade e representatividade. O raciocnio sugere que a Filosofia seria objeto de patente e o esplio grego foi dividido entre os fiis representantes do que se convencionou chamar de tradio ocidental. Ainda dentro de uma leitura geopoltica, podemos identificar Alemanha e Frana (Filosofia Continental), Gr-Bretanha (Filosofia Analtica) e Estados Unidos da Amrica (Pragmatismo) num embate pela capital da Filosofia. O que denomino aqui como o mais contumaz oligoplio intelectual do Ocidente remete, to somente, a ideia obviamente sujeita a objees de que a Filosofia seria comparvel a recursos naturais que, por meio de um contrato vitalcio e irrevogvel, s podem ser explorados por trs companhias (Filosofia Continental, Filosofia Analtica e Pragmatismo) que disputam o mercado; mas, se asseguram e se apiam mutuamente para que corporaes intrusas no possam ter acesso ao seu valioso bem: a Filosofia. (NOGUERA, 2011, p.28-29).

Ora, o status implcito no fazer filosfico classifica as pessoas que fazem filosofia como pensadoras de um quilate especial. Ou seja, circunscrever a atividade filosfica dentro de uma geografia ocidental tem consequncias geopolticas que no podem ser desconsideradas.

O essencial aqui o locus da enunciao, ou seja, o lugar geopoltico e corpo-poltico do sujeito que fala. Na filosofia e nas cincias ocidentais, aquele que fala est sempre escondido, oculto, apagado da anlise. A ego-poltica do conhecimento da filosofia ocidental sempre privilegiou o mito de Ego no situado (GROSFOGUEL, 2010, p. 459).

A filsofa estadunidense Sandra Harding (1986) entende que todo sistema universal no deixa de ser um discurso particular. As filsofas da cincia Helen Verran e Carrey-Francis Onyango (2001) apresentam um belo trabalho sobre o papel das culturas nos processos de constituio de racionalidades. O filsofo ugandense Dismas Masolo segue numa linha similar, argumentando que os modelos ocidentais tm sido indevidamente privilegiados em relao aos outros, ao serem tratados como a essncia da racionalidade (MASOLO, 2010, p.316). Masolo descreve dois tipos de pessoas no mbito da produo de conhecimento, pessoas polirracionais e gente que opera de modo monorracional. Estas ficam, ao contrrio daquelas, desconfortveis diante de mtodos, repertrios e estratgias pouco familiares, tendendo a recus-las ou desqualific-las. Por outro lado, as pessoas polirracionais, principalmente as que tm uma tradio cultural subalternizada e foram educadas dentro de padres ocidentais, no encontram problemas ou entraves em utilizar mltiplos modelos (MASOLO, 2010, p.317).

No bojo dessas ideias, concordamos com o filsofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres quando se refere ao mdico psiquiatra e filsofo martinicano Franz Fanon (1925-1961) a geopoltica filosfica de Fanon era transgressiva, descolonial e cosmopolita. Era sua inteno trazer luz o que tinha permanecido invisvel durante sculos. Reclamava a necessidade do reconhecimento da diferena (MALDONADO-TORRES, 2010, p.409).

Pois bem, partindo do trabalho filosfico de Fanon que nos debruamos sobre as possibilidades de uma geopoltica filosfica da descolonizao. Se quisermos continuar suliados por essa perspectiva, nos parece indispensvel um exerccio crtico filosfico que se estenda para alm da acusao e da denncia. O trabalho filosfico de Fanon (2006; 2008) abriram caminho para a possibilidade de uma srie de inflexes, entre elas, uma das mais significativas foi a desvinculao entre terra e condenao. As categorias de lugar, espao e territrio funcionavam como a condio de possibilidade do conhecimento em termos eurocentrados. Fanon (2008) enftico na recusa da salvao, porque ao invs de precisar do pensamento da terra civilizada, passou a ser preciso reinventar a si, reescrever as ideias, trazer o pensamento de outros lugares, principalmente de sua prpria terra. Com efeito, uma geopoltica filosfica que podemos construir a partir de Fanon um efeito da perspectiva de enxergar a si dentro de um territrio epistmico que no surge devedor; emerge, pelo contrrio, oriundo do campo da polirracionalidade e do desafio de operar para alm das categorias de centro e periferia.

Com efeito, estamos diante de um racismo epistmico que na rea da filosofia tem sido renitente, avassalador e uma regra cannica blindada de vrias maneiras contra as alternativas de uma filosofia pluriversal. Diante desse quadro, a afrocentricidade e o perspectivismo amerndio tm siso inspiraes decisivas para uma filosofia afroperspectiva que, alm de denunciar essa injustia cognitiva sistemtica e o menticdio[footnoteRef:8] que tem inviabilizado a promoo da pluriversalidade e polirracionalidade filosfica, tem erguido algumas alternativas para a sala de aula. [8: Termo utilizado por Abdias do Nascimento para se referir ao desmantelamento mental de negras e negros que diante do racismo ficam imobilizadas(os) quando inquiridas(os) a respeito da capacidade produtiva, intelectual e poltica de si e dos que compartilham identificao cultural, ancestral e histrica. ]

Afroperspectivas na sala de aula: uma pesquisa em curso

Antes de apresentarmos a filosofia afroperspectivista propriamente dita, vale a pena um panorama das pesquisas que temos realizado desde o final da primeira dcada do sculo 21. Em 2009, iniciamos algumas incurses a respeito do racismo e a filosofia, resultando numa publicao em 2011. Na 1 edio do livro Ensino de Filosofia e a Lei 10639 reuniu algumas consideraes sobre as relaes tnico-raciais, estudo de histria e cultura, afro-brasileira e africana articuladas ao ensino de filosofia. Em meados de 2012 iniciei formalmente a pesquisa intitulada Ensino de Filosofia e a Lei 10.639/03: a presena da histria e da cultura afro-brasileira e africana na formao docente, no livro didtico e na sala de aula. Os resultados parciais que se desdobraram num projeto de pesquisa ampliado Afroperspectivas Filosficas para a sala de aula: possibilidades para o Ensino de Filosofia contemplar as Leis 10.639/03 e 11645/08 na Formao Docente, no Livro Didtico e no Ensino Mdio no deixaram muitas dvidas. O material didtico e a formao docente na rea de filosofia tem, na maioria dos casos, permanecido alheia s discusses do Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indgena e para a Educao das Relaes tnico-Raciais.

Sem dvida, filosofia um termo polissmico; mas, encontramos algumas linhas de definio que sempre esto invariavelmente ligadas ao modo como professoras e professores de filosofia concebem a atividade filosfica. Em certa medida, vale dizer que a maneira de filosofar fica atrelada a identidade da(o) docente de filosofia, assim, dependendo da forma como uma professora direciona suas escolhas politicas e tericas, o ensino de filosofia pode envolver um carter mais ou menos eurocntrico. Mas, apesar das escolhas individuais, linhas e filiaes de um(a) professor(a); os contedos vinculados disciplina no so autnomos, a liberdade de escolha do que se ensina na sala de aula circundada pelos documentos que demarcam o trabalho de ensinar filosofia. Pensar filosoficamente o ensino de filosofia pensar com a filosofia o problema de seu ensino (DANELON, 2010, p.111.).

Em suma, a resposta que cada professor de filosofia do Ensino Mdio da a pergunta o que filosofia? Decorre, naturalmente, da opo por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado. Afinal, fundamental para essa proposta que ele tenha feito sua escolha categorial e axiolgica, a partir da qual l e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrario, alm de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe- um padro, um fundamento, a partir do qual possa acetar qualquer esboo de critica. (PCN/Filosofia. P.48)

Deste modo, com base nos prprios Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Filosofia percebemos que no existe uma forma nica de se fazer filosofia, pelo contrario, a filosofia plural. Porm, um elemento tem sido muito presente na produo filosfica; a saber: o eurocentrismo. Os livros didticos selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD) de 2012, Fundamentos da filosofia: ser, saber e fazer de Gilberto Cotrim, Iniciao filosofia de Marilena Chau, Filosofando: introduo filosofia das autoras Maria Lcia de Arruda Aranha e Maria Helena Martins apesar das diferenas tm uma base comum. Os trs convergem para uma afirmao clich que se tornou o maior dos dogmas da filosofia. A saber: a filosofia tem bero grego. Porque ainda que o PNLD 2012 diga que preciso apresentar e garantir diversos sistemas de pensamento e das mltiplas facetas da filosofia; para impedir vises monolticas do fazer filosfico; para poder confrontar posies diferentes (BRASIL, 2012 p. 13). O velho clich se repete. Os filsofos e os professores de filosofia tendem a afirmar as suas razes numa regio espiritual invariavelmente descrita em termos geopolticos: a Europa (MALDONADO-TORRES, 2010, p.397). Neste sentido, a ideia de uma certido de nascimento redigida na lngua grega permanece como documento de registro do nascimento da filosofia, deixando que a data fictcia gire em torno do sculo V A.C. Os manuais de filosofia corroboram com isso dizendo coisas como, A filosofia nasceu quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade (...) comearam a fazer perguntas e buscar respostas... (CHAU, 2010 p.25).

Os historiadores da filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do sculo VII e incio do sculo VI antes de Cristo, nas colnias gregas da sia Menor (particularmente as que formavam uma regio denominada Jnia), na cidade de Mileto. E o primeiro filosofo foi Tales de Mileto. (Ibid., p.32).

(Figura 01tirada do livro didtico livro Iniciao Filosofia de Marilena Chaui).

Ainda com relao origem dos conhecimentos filosficos, destacamos que o livro de Iniciao Filosofia de Marilena Chau chega a mencionar a produo de conhecimento de outros povos na antiguidade, porm ela fala de forma categrica que a filosofia tipicamente grega e que o que, por exemplo, os povos africanos e asiticos tinham pensamento.

Dizer que a filosofia tipicamente grega ou um fato grego no significa, evidentemente, que outros povos, to antigos quanto os gregos ou mais antigos do que eles, como os chineses, os rabes, os africanos ou os ndios da Amrica no possuem sabedoria. Tambm no quer dizer que todos os povos no tivessem desenvolvido pensamento. (Ibid., p.26)

O que conta para essa afirmao que a filosofia sempre foi considerada a atividade mais especfica do ocidente. O filsofo ganense Kwame Appiah reitera essa considerao no livro A Casa do meu pai: Filosofia o rtulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito filosofia reivindicar o que h de mais importante, mais difcil e mais fundamental na tradio do Ocidente (APPIAH, 1997, p.131). Sem dvida, a colonizao trouxe fenmenos que ultrapassavam a dominao poltica e econmica, ou ainda, essa dominao e opresso nunca foi dissociada de uma subjugao epistmica, de injustias culturais e intelectuais.

Pois bem, a colonizao implicou na desconstruo da estrutura social, reduzindo os saberes dos povos colonizados categoria de crenas ou pseudosaberes sempre lidos a partir da perspectiva eurocntrica. Essa hegemonia, no caso da colonizao do continente africano, passou a desqualificar e invisibilizar os saberes tradicionais, proporcionando uma completa desconsiderao do pensamento filosfico desses povos. Neste sentido, estamos diante do racismo epistmico (NOGUERA, 2011, p.15).

A nossa pesquisa tem trazido luz alguns desdobramentos:

Se na historiografia filosfica hegemnica na antiguidade, os trabalhos africanos so terminantemente desconhecidos ou esquecidos. Um esforo pela sua reabilitao, tal como fazem James, Bernal, Diop e Asante muitssimo importante para a abertura de novas possibilidades epistmicas, inclusive para a prpria filosofia rever seus eixos geopolticos e desnaturalizar o seu carter eminentemente europeu. Afinal, se a Filosofia pode ser, em linhas muito gerais, tomada por sua capacidade crtica de busca de justificao num franco exerccio de desbanalizao das generalizaes fceis e desnaturalizao das certezas justificadas inadequadamente ou sem fundamento. Por que carga de razes a filosofia deixaria de problematizar e desnaturalizar sua filiao e sua certido de nascimento? (NOGUERA, 2011, p.24)

O livro didtico, assim como a formao acadmica, tem sido feito silncio em relao ao pensamento filosfico africano. Uma anlise das grades curriculares dos cursos de Filosofia de algumas instituies de ensino como Universidade de So Paulo (USP)[footnoteRef:9], Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)[footnoteRef:10], Universidade de Campinas (Unicamp) tm algo em comum, em nenhuma disciplina encontramos meno sequer filosofia africana. O projeto pedaggico do curso de graduao da Unicamp explicito: [9: As pesquisas ainda em curso, identificam um currculo tradicional com pouco espao para histria e cultura afro-brasileira eafricana. https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/jupGradeCurricular?codcg=8&codcur=8010&codhab=103&tipo=N&print=true acessada em 02/05/2012] [10: http://www.ifcs.ufrj.br/filosofia/graduac/graduac.html acessado 18/08/2012]

Apesar de tudo isso,

Filosofia uma disciplina cujo conceito flexvel, caracterizvel de diversos modos (...). Apesar de tudo isso, entende-se que a Filosofia caracteriza-se por dois traos fundamentais: primeiro, ela reporta-se tradio dos Grandes Pensadores Ocidentais, que usamos denominar de clssicos da Histria da Filosofia; em segundo lugar, ela se constitui como discurso crtico pautado pela coerncia lgica, isto , pela clareza conceitual e pela consistncia argumentativa (Projeto Pedaggico do Curso de Graduao em Filosofia da Unicamp, 2006, p. 3)[footnoteRef:11]. [11: http://www.ifch.unicamp.br/graduacao/ppedagogico/filosofia.pdf acessada em 19/08/2012.]

Diante do cenrio exposto, oportuno propor a filosofia afroperspectivista como um modo para atender a dupla injuno inicialmente apresentada: 1) Ensinar filosofia; 2) Ensinar histria e cultura afro-brasileira e africana.

Afrocentricidade, mbambas e kumbas para uma filosofia africana ontem e hoje

O termo mbamba (bamba) no idioma kimbundu significa expert ou mestre(a) algum que sabe fazer algo com maestria e competncia. Kumba na lngua kikongo quer dizer velho, experiente ou sagaz. Dai a palavra macumba, isto , reunio de gente experiente e sagaz. Diante do campo problematolgico da filosofia (africana), vamos trazer baila algumas questes e autoras e autores que so nossas referncias para resolvermos o que ainda parece insolvente para muita gente. A existncia de uma filosofia africana registrada em textos antes dos escritos gregos.

A filosofia afroperspectivista foi inspirada por bambas e kumbas que tm sido valentes expoentes na abertura de caminhos pouco frequentados no mundo acadmico. Cheik Anta Diop (1954; 1967; 1977), George James (2005) e Molefi Asante (1987a; 1987b; 1991; 2000) so referncias muito importantes do nosso trabalho, ao lado de Frantz Fanon (2006; 2008) falando em favor de uma descolonizao do pensamento, Martin Bernal (1988; 1991) com a srie Atenas Negra[footnoteRef:12], destacando que a Grcia era uma sociedade multirracial, a filsofa africano-americana Angela Davis (2000) e o filsofo sul-africano Mogobe Ramose (1999; 2011). [12: Black Athena: the Afroasiatic Roots of Classical Civilization com dois volumes ainda no possuia traduo para o portugus em 2013. ]

A afrocentricidade foi, ao lado da minha biografia de ativista, um elemento transformador e responsvel pelo deslocamento mais radical dos investimentos acadmicos. importante elucidar que a afrocentricidade um paradigma, modelo epistmico e maneira de abordagem acadmica e de desenvolvimento de pesquisas. A afrocentricidade prope uma correo constructural[footnoteRef:13] para africanas e africanos de todo o mundo. Importante registrar que para Asante o conceito de africana(o) no tem carter geogrfico; mas, poltico. De modo que, tal como classificar uma pessoa como ocidental no diz respeito aos limites territoriais de pases europeus- sem dvida, latino-americanos e estadunidenses podem ser, conforme o contexto, classificados como ocidentais. Ou ainda, o oriente est para alm das diferenas entre pases como China, ndia e Japo; uma pessoa africana se compartilha ancestralidade, cultura e histria policntrica, xenfila e de resistncia dominao e opresso impetrada pela expanso europeia. A afrocentricidade surgiu em resposta supremacia branca, a qual tem assumido diversas formas que certamente no so exclusivas entre si (MAZAMA, 2009, p. 111). [13: O termo usado por Asante em ingls constructural, um neologismo. Por este motivo, a opo foi manter o sentido original reproduzindo um neologismo na lngua portuguesa.]

O primeiro livro de Molefi Asante sobre afrocentricidade foi lanado praticamente entre os Estados Unidos da Amrica e o Zimbbue. Em 1980, Asante tinha 38 anos de idade, parte deste ano ele estava na Universidade Estadual de Nova York; mas, foi para o Zimbbue atuar como jornalista onde ficou at 1982. Na publicao do segundo livro em 1987, Ideia afrocntrica, ele j estava no Programa de Estudos Africano-Americanos na Universidade de Temple na Filadlfia. Trs anos mais tarde, Asante publicou Kemet, afrocentricidade e conhecimento. Asante tem duas categorias muito importantes para o entendimento da afrocentricidade, localizao e agncia. A afrocentricidade uma questo de localizao porque os africanos vm atuando na margem da experincia eurocntrica (Ibidem). Conforme Asante (Idem), toda a produo que no atende aos interesses eurocntricos marginalizada. No menos importante sublinhar que no se deve considerar afrocentricidade sinnimo de africanidade. Pode-se praticar os usos e costumes africanos sem por isso ser afrocntrico (Idem, p.94). O que est em jogo a localizao, a posio central que as experincias, perspectivas e referenciais epistmicos africanos assumem no desenvolvimento de qualquer atividade. importante frisar que se trata de uma ideia fundamentalmente perspectivista (Asante, 2009, p.96), sem par com qualquer tipo de fundamentalismo, etnocentrismo ou viso fechada. Ou seja, Afrocentricidade no religio, por isso que os valores africanos so sujeitos a debate, embora sejam fundamentais para a abordagem afrocentrada (Idem, p.95).

De acordo com Asante (2009, p. 94; 2002, p. 1) a agncia um conjunto de dispositivos e a devida articulao de recursos de todos os tipos para a recuperao da sanidade da populao negra, alm de ser fundamental para busca e manuteno da liberdade. Em outras palavras, a chave para a reorientao e a recentralizao, de modo que a pessoa possa atuar como agente, e no como vtima ou dependente (Asante, 2009, p.94). Por exemplo, a maioria dos debates sobre o trfico negreiro se concentra nas atividades dos brancos em vez de se concentrar nos esforos de resistncia dos africanos (Asante, 1991, p.171). No caso da filosofia fundamental que busquemos a histria do pensamento filosfico africano que parece ter ficado invisibilizada diante do discurso filosfico hegemnico.

Dificilmente algum se oporia existncia de filsofas africanas e filsofos africanos na atualidade. Mas, se cogitarmos que na antiguidade, inclusive antes dos primeiros filsofos gregos, existiam filsofos no continente africano com vastos registros de filosofia egpcia; no raro encontrarmos argumentos contrrios. A abordagem afrocntrica entende que o racismo antinegro est presente nesse entendimento.

Ns entendemos que a existncia de uma filosofia africana na antiguidade no carece de mais provas. O livro The Egyptian philosophers: ancient African voices from Imhotep to Akhenaten de Asante e os prprios textos em hierglifos esto disponveis para quem tiver disponibilidade de examinar e verificar, caso tenha o esprito filosfico de no tirar concluses antes de uma consulta profunda e crtica de seus prprios preconceitos, os textos de Ptah-Hotep, Amenenhat, entre outros.

A nica questo que pode merecer ateno no a existncia dos textos; mas, a sua filosoficidade. Este debate filosfico muito interessante, mesmo para quem no compartilha das nossas convices intelectuais de que a filosofia pluriversal e no tem lugar de nascimento. Importante frisar esse ponto, no queremos deslocar a origem da filosofia da Grcia para o Egito, mesmo sabendo que os textos em hierglifos so bem anteriores aos extratos de Tales de Mileto e Herclito de feso, por exemplo. Afinal, a data dos escritos de Ptah-Hotep, vizir da V Dinastia do Reino Antigo do Egito, antecede 3000 A.C. Mas, a nossa questo no por primazia. Afinal, tambm temos textos indianos muito antigos. Nossa questo vai na direo daquilo que Ramose chama de pluriversalidade.

Considerando que universal pode ser lido como uma composio do latim unius (um) e versus (alternativa de...),fica claro que o universal, como um e o mesmo, contradiz a ideia de contraste ou alternativa inerente palavra versus. A contradio ressalta o um, para a excluso total do outro lado. Este parece ser o sentido dominante do universal, mesmo em nosso tempo. Mas, a contradio repulsiva para a lgica. Uma das maneiras de resolver essa contradio introduzir o conceito de pluriversalidade (RAMOSE, 2011, p.10).

A pluriversalidade percebe que existem multiparcialidades, isto , perspectivas diversas mltiplas que no so necessariamente concorrentes; mas, que compe quadros complexos de vises parciais e particulares que recobrem fenmenos semelhantes. Num exemplo, a msica uma atividade humana que no foi inventada por um povo especfico, porque congnita aos seres humanos que constroem musicalidades especficas com seus instrumentos, ancestralidade, solo cultural e histria determinada. O mesmo se d com a religiosidade. Ora, seria estranho, tal como se quis fazer com a filosofia, dizer que uma certa cultura inventou a religio. O que difere muito de falarmos da expresso religiosa X, religiosidade Z. Mas, no devemos tomar a parte pelo todo. Ou seja, empreender um exerccio metonmico de opresso, fazendo de uma religio toda possibilidade de experincia religiosa. Ou, no nosso caso, encerrar todas as filosofias na filosofia ocidental.

O estudo de uma tradio filosfica empobrece muito o horizonte de estudantes tanto do ensino mdio quanto de graduao e ps-graduao. O trabalho provocado pela Lei 10.639/03 justamente criar condies para pensarmos de modo descolonizado para alm do que parece ser o maior tabu da filosofia, seus equivocados genes gregos. Neste sentido, destacar a filosofia africana uma tarefa muito importante para um pensamento filosfico que vai nas razes daquilo que entendemos como radical e prprio do filosofar, problematizar e desabanalizar o banal, principalmente para deixarmos de lado o clich surrado de que o ocidente foi e continuaria sendo o nico capaz de filosofar e se os outros quiserem faz-lo tero que seguir os passos ocidentais.

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