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03 03 ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA EM ESPAÇOS NÃO FORMAIS NO BAIXO AMAZONAS: experiências de agentes ambientais voluntários do programa de manejo comunitário de quelônios pé-de-pincha, parintins-am João Marinho da Rocha Augusto Fachín Terán

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ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA EM ESPAÇOS NÃO FORMAIS NO BAIXO AMAZONAS: experiências de agentes ambientais voluntários do programa de manejo comunitário de quelônios pé-de-pincha, parintins-am

João Marinho da RochaAugusto Fachín Terán

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Introdução

Este texto reflete sobre a importância de estudos sobre as potencialidades de Espaços não Formais não institucionalizados de Educação no processo de Alfabetização Científica em Comunidades do Baixo Amazonas. Fazemos isso, a partir da revisitação, após três anos, de nosso processo de pesquisa que deu suporte a uma dissertação defendida no Programa de pós-graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia da Universidade do Estado do Amazonas-UEA, no ano de 2012.

Amparada na linha de Pesquisa em Educação em Ciências, Divulgação Científica e Espaços Não Formais, tal pesquisa investigou as potencialidades da utilização dos Espaços Não formais não institucionalizados criados no decorrer da execução de um programa de manejo comunitário de quelônios “pé-de-pincha” para processos de Alfabetização Científica de crianças, jovens e adultos de três comunidades do assentamento agrícola de Vila Amazônia, Parintins-AM.

A partir das narrativas orais de agentes ambientais voluntários sobre o processo do manejo e os variados espaços socioambientais por ele gerados, apontamos vários Espaços de educação, tais como: praias naturais e artificiais, e tanques berçários existentes nessas comunidades elencando seus potenciais de uso pela Educação formal.

Trazemos neste texto aquilo que apontamos em 2012 como “Alfabetização Científica comunitária”, quando apresentamos essa descrição do processo de implantação e execução do programa de manejo nas três comunidades estudadas, a partir da fala dos próprios comunitários envolvidos. Aparece, neste contexto, um esforço descritivo que deve ser visto como um dos elementos indicadores de que esses sujeitos amazônicos compreendem a necessidade de estarem junto aos técnicos da universidade e escolas locais desenvolvendo uma prática que visa, não somente a garantia de mais espécies animais em seus lagos, mas também, uma sensação de dever cumprido para com sua comunidade que vive e sobrevive há tempos nesses espaços amazônicos, num movimento em que vai, estabelecendo relações diferenciadas com o ambiente. E mais, que dá a seus filhos, possibilidades de educação com mais sensibilização para as questões amazônicas, portanto, para suas próprias vidas.

Nosso estudo de caráter qualitativo, na perspectiva de (SANDÍN ESTEBAN, 2010), teve como foco o entendimento dos processos sociais e históricos construídos coletivamente em torno da atividade de manejo de quelônios amazônicos e sua implicação aos processos educativos

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dos envolvidos nesse manejo. Foi realizado entre 2010 e 2012, em três comunidades do assentamento agrícola de Vila Amazônia, Parintins-Amazonas, a saber: Nossa Senhora de Nazaré; Nossa Senhora Aparecida do Miriti e Nossa Senhora do Rosário do Lago do Máximo.

Para a coleta de dados utilizamos as técnicas de observação direta participante e entrevistas com seis agentes seguindo a metodologia da História Oral (MEIHY, 2005), que embasou a proposta de entendimento do problema, em razão de sua sistemática de abordagem constituir-se de um conjunto de procedimentos, os quais sejam i) o estabelecimento do perfil do grupo dos entrevistáveis, ii) a gravação em áudio ou vídeo e iii) a transcrição das entrevistas, bem como o iv) tratamento do produto escrito, v) a autorização para uso por meio de carta de cessão de direitos, e por fim vi) armazenamento e análise da documentação oral produzida (MEIHY, 2005). Está foi pautada na análise do conteúdo dos relatos dos sujeitos, em diálogo categorias trazidas pelos textos técnicos acerca do manejo que informam das etapas do programa, conforme Andrade (2005; 2008).

Essa categorização foi necessária, pois o tempo do sujeito que fala não é necessariamente o cronológico, mas obedece a cargas de significados que o sujeito atribui aos eventos que realizam em sua vida (MEIHY, 2005; MEIHY & HOLANDA, 2011), como é o caso da sua participação no manejo comunitário dos quelônios amazônicos. Dentro dessa lógica, os fatos guardam em si, uma maior significação, sendo entendidos dentro de processos mais amplos do que as simples palavras.

1. Processos de alfabetização científica nas experiências de agentes ambientais voluntários

O foco do estudo era Investigar as contribuições do programa de manejo de quelônios nos processos de Alfabetização Científica de crianças do 4º e 5º anos. No entanto, nossos caminhos de pesquisa, guiados pelos procedimentos da História Oral Temática (MEIHY & HOLANDA, 2011) nos apresentaram cenários não previstos, um deles foi a figura de homens e mulheres com extrema sensibilidade para as questões socioambientais de suas comunidades, apresentado em suas falas preocupações com as problemáticas que afetavam suas vidas. Estamos nos referindo aos agentes ambientais voluntários. Estes indivíduos e suas percepções do mundo que os cercam nos levaram a (re)pensar a estrutura do texto final previamente fechado. A partir daí, ao invés de descrevermos o manejo unicamente através da pouca literatura existente na época, optamos em fazer a descrição da natureza e desenvolvimento do manejo comunitário a partir das próprias

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narrativas orais desses sujeitos. Disso, resultou aquilo que chamamos na primeira parte dos resultados de Alfabetização Científica Comunitária por entendermos que muitos desses homens e mulheres integraram as ações predatórias de diminuição da diversidade nos lagos do Máximo, do Zé-Açú, do Miriti e foram eles também que assumiram e sustentam por vezes, sem os apoios devidos, ações que geram espaços não formais de ensino na comunidade, e que devolvem aquela abundancia perdida, e desse modo auxiliam com sua atitude processos de Educação para além das salas de aula nas comunidades rurais do Baixo Amazonas.

Encaramos aquele esforço como um dos elementos indicadores de que esses sujeitos amazônicos compreendem a necessidade de estarem junto aos técnicos da universidade e escolas locais desenvolvendo uma prática que visa, não somente a garantia de abundancia em seu lagos, mas também, uma sensação de dever cumprido para com sua comunidade que vive e sobrevive há tempos nesses espaços amazônicos, num movimento que vai, a cada momento, estabelecendo relações diferenciadas com o ambiente. E mais, que dá a seus filhos, possibilidades de educação com mais sensibilização para as questões amazônicas, portanto, para suas próprias vidas.

Atualmente, as relações desses sujeitos com o ambiente não são mais pautadas numa lógica da extração desenfreada dos recursos naturais, mas de um uso direcionado para a sustentabilidade. Muitos destes sujeitos, chamados de agentes ambientais voluntários ou simplesmente “agentes de praia”, estiveram presentes nos diversos momentos do uso em larga escala de tais recursos, em especial dos quelônios. Agora, porém, acabam por tornarem-se os responsáveis por esses esforços de repovoar o lago de suas comunidades, através de práticas que levam à preservação de tais recursos, e com isso, passam a auxiliar nos processos educacionais, e, portanto, na melhoria da compreensão de mundo de suas crianças.

Essa atitude participativa das comunidades locais no manejo dos recursos é uma tendência que cresce em toda América latina (CAMPOS-ROZO & ULLOA, 2003), proporcionando, o que chamamos neste texto como Alfabetização Científica Comunitária, naqueles que se envolvem mais de perto e também aponta para uma gestão compartilhada dos recursos naturais amazônicos.

Desse modo, aquela descrição foi compreendida no corpo geral do estudo como um indicativo muito forte de como a presença dessa prática de manejo, pode, não somente auxiliar processos de Alfabetização Científica nos sujeitos que estão inseridos nos espaços de educação formal, como a

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escola. Mas, podem também proporcionar aquilo que sinalizamos como Alfabetização Científica Comunitária.

Esses homens e mulheres, em sua maioria com pouca escolaridade formal, mas com muita sensibilidade diante de seu mundo natural, que os faz continuar suas ações, mesmo que “as gentes da cidade” não apareçam de forma sistemática para lhes dar o suporte que necessitam. Trazem, em suas falas, que são reflexos de suas ações comunitárias, uma enorme abertura para o aprendizado com o outro que chega da universidade e com aqueles que estão ali, realizando processos de educação no espaço escolar. Colocando-se, então, como parceiro que está, não só para aprender, mas que quer sentir-se presente no processo do ensinar, tão claro para nossas escolas do campo que aos poucos começam a abrir-se para homens e mulheres como os agentes ambientais voluntários do programa “pé-de-pincha”.

Essa situação de abertura para o diálogo por parte desses sujeitos ficou demonstrada numa observação participante por ocasião da coleta 2011/2012 em uma das três comunidades estudadas. A equipe da universidade que foi em 2011 para a coleta, levou apenas duas ninhadas de ovos de quelônios das praias naturais para a praia artificial. Mas para o projeto registrou-se 37 ninhadas coletadas, transferidas e identificadas pelo trabalho coordenado pelos agentes de praia. Tudo de maneira técnica, da mesma forma como se opera quando os técnicos da universidade estão presentes com os acadêmicos vindos de Manaus ou Parintins. As informações coletadas pelos agentes de praia, tais como: data, praia onde foi coletada a ninhada e quantidade de ovos foram registradas numa planilha, e escritos com tinta num pedaço de madeira, fincado próximo à cova transplantada na chocadeira artificial. Isso foi um tipo de comportamento extremamente significativo, pois, percebemos o quanto tais sujeitos vêm sendo sensibilizados no que se refere à preservação dos quelônios amazônicos e mais, como podem atuar autonomamente de forma técnica, daí a Alfabetização Científica Comunitária.

Percebemos então, a partir disso como o projeto conseguiu instrumentalizar/sensibilizar indivíduos de comunidades amazônicas, ao ponto de, eles mesmos realizarem, de forma técnica, o manejo quando da ausência dos técnicos da universidade. Tal união de saberes evidencia o espaço de diálogos permitido ao longo do desenvolvimento dessa ação, que vai da coleta à soltura, os sujeitos se alternam: a) escola, representada por professores e alunos; b) comunidade local, representado pelos agentes de praia, e, c) a Universidade Federal do Amazonas, representada pelos técnicos e voluntários. Um esforço conjunto de preservação, que educa e auxilia processos educativos em comunidades amazônicas.

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A educação realizada em torno das atividades de manejo torna-se responsável por essa sensação das comunidades em acreditar em si, de ter iniciativas em prol de seu mundo. De estarem, portanto, mais sensibilizadas para olhar o mundo de forma mais centrada e de ver nesse mundo possibilidades práticas de mudanças, e mudanças para melhor (CHASSOT, 2011, p. 86). Essa sensibilidade é, portanto, uma das potencialidades da Alfabetização Científica. Daí que trazemos, a descrição do processo de implantação e execução do manejo em comunidades amazônicas estudadas pelos próprios sujeitos das comunidades, como um elemento indicador desse processo de educação.

Trazemos as falas desses sujeitos para dizer o quanto à educação formal no campo amazônico, precisa livrar-se do paradigma de que há:

Uma linguagem universal, um método único, uma forma de pensar que privilegia a suposta realidade objetiva que é disseminada na educação formal desde a primeira escola até a universidade. A diversidade das histórias locais, os modos diversos de conhecimento da natureza, o elenco de soluções para problemas pontuais, as distintas linguagens simbólicas de compreensão do mundo têm sido suprimidas ou são aliciadas, traduzidas, ou mesmo prostituídas pelo modelo uniformizador do conhecimento ocidental. [...] A construção de saberes de pessoas comuns, mesmo que sistemáticos, são em geral dispensados como referências cognitivas sem importância (ALMEIDA, 2010, p.35).

O movimento que apontamos neste texto é o do diálogo entre os saberes e não a extinção de um em prol do outro. Com esse entendimento, nasceu à própria lógica do manejo pé-de-pincha, a partir das comunidades amazônicas estudadas que recorrem ao saber científico, para com ele, auxiliar nos processos de retorno da diversidade e paralelamente auxiliar processos de educação. Então, a Ciência Amazônica, que hora se constrói e por consequência, os saberes científicos que a educação formal, via escola, julga ensinar, precisam cada vez mais:

[...] rever antigas sabedorias, experimentar outros modos de conhecer, catalogar, classificar, combinar mais livremente as informações sem ter que escolher entre tradição e modernidade, local e global, natural e social, talvez seja um bom antídoto para não morrermos de frio no pico do iceberg da Ciência abstrata. É para abrir as ciências e evitar sua necrose que outros conhecimentos

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devem ser experimentados, conhecidos (ALMEIDA, 2010, p. 40).

Os conhecimentos dos agentes sobre o processos do manejo indicam para esse movimento, de uma postura nova diante da realidade amazônica. Quando o saber da universidade foi ao encontro do saber da comunidade, este estava iniciando um processo de fortalecimento de conhecimento do mundo amazônico, pois

As populações rurais e tradicionais, ao longo de suas histórias, têm desenvolvido e sistematizado saberes que lhes permitem responder a problemas de ordem material e utilitária tanto quanto têm construído um rico corpus da compreensão simbólica e mítica dos fenômenos do mundo. Idem (2010, p.48).

Escutar tais saberes, para deles promover o melhor entendimento do espaço amazônico, é o que fez a Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Esses intelectuais da tradição, Idem, (2010 p.51-52):

[...] sabem ler a natureza, compreender a linguagem dos animais e das plantas, os segredos da mata. Desenvolvem um rico conjunto de técnicas agrícolas, extrativistas, de pesca e de conhecimentos sobre o ecossistema, mesmo que não registrem essa sabedoria por meio de palavras escritas em livros. [...] A cadeia de imputação de sentido às coisas se distingue dos paradigmáticos da Ciência, uma vez que transversaliza domínios, aproxima o vivo do não vivo, conecta o físico e o metafísico, o simbólico e o racional [...] são levados a fazer da curiosidade um princípio do qual não podem abrir mão.[...].

Essa curiosidade, que traz para o processo do conhecer uma aproximação do sujeito do mundo natural onde está, é elemento valioso para o processo da Alfabetização Científica. Nesses doze anos de programa no Baixo Amazonas e mais recentemente no médio Juruá, muito se produziu em torno da ação do manejo comunitário dos quelônios amazônicos, principalmente sobre crescimento populacional das espécies de quelônios nos lagos das comunidades (ANDRADE, 2008), e como tem influenciado na Alfabetização Científica dessas comunidades (ROCHA & FACHÍN-TERÁN, 2011).

A partir desse entendimento, devemos olhar para os conhecimentos desses sujeitos amazônicos das três comunidades estudadas, que hoje, após

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oito, seis e cinco anos respectivamente, de manejo em suas comunidades, souberam somar seus conhecimentos aos conhecimentos da universidade.

Assim, o que dizem hoje sobre seu espaço amazônico, é fruto de suas concepções de mundo, juntamente com aquelas trazidas pela universidade. Como resultado disso, temos sujeitos mais sensibilizados para a vida amazônica. Sujeitos que, de fato, agem por que entendem a necessidade de agir. No entanto, precisam ser mais olhados por quem, em nome de uma Ciência pretensamente limpa, se utiliza de suas falas, fazeres e não os inserem no processo histórico como sujeitos de fato. Percebemos que, mesmo havendo um esforço de diálogo entre os saberes,

[...] Quando se olha a posição da escola, colocada entre a Academia, produtora da Ciência, e a comunidade, detentora de saber popular, a vemos cortejando o saber acadêmico, que não conhece, mas precisa transmitir, e até desprezando o saber popular, que ela também não entende e que não tem a validação da Academia (CHASSOT, 2011, p.215-216).

Cabe, então, um repensar do conhecimento que precisamos para a educação. E a escola amazônica tem uma função importante nesse processo. Não somente ela, mas também, as Instituições de Ensino Superiores, formadores dos indivíduos desse repensar, ou aprender a pensar uma educação que se identifique mais com comunidades amazônicas, do que com o espaço urbano e de trabalho nas cidades.

As comunidades amazônicas não precisam mais repetir esse currículo que desenraiza o sujeito de sua localidade e o faz admirar a cidade, em detrimento de seu local. O currículo para o campo amazônico, com destaque para o Baixo Amazonas, ainda continua a ser pensado na cidade e pela cidade, sem muitas considerações das realidades diversas, a exemplo do assentamento agrícola “Vila Amazônia”, onde desenvolvemos nossa pesquisa.

Cardalt e Molina (2004, p.149-158) trazem sete itens necessários, nessa direção da luta pela construção de uma identidade para a educação do campo, a saber: 1- A Educação do Campo identifica-secom a luta pelo direito de todos à educação; 2- Os sujeitos da Educação do Campo são os sujeitos do campo; 3- A Educação do Campo se faz vinculada às lutas sociais do campo; 4- A Educação do Campo se faz no diálogo entre seus diferentes sujeitos; 5- A Educação do Campo identifica a construção de um projeto educativo; 6- A Educação do Campo inclui a construção de Escola

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do Campo; 7- As educadoras e os educadores são os sujeitos da educação do campo. Esse movimento de busca de identidades para a Educação do Campo se faz a partir de processos afirmativos, dissemos mais, de invasão, ou seja, o mundo do campo precisa ocupar cada vez mais a escola. É o que vemos a partir das experiências do manejo comunitários de quelônios pé-de-picha, onde, mesmo sem estar nas propostas curriculares, e como admitem os professores, não trabalham diretamente, mas há um conhecimento vivo e que se relaciona com o que está vivo na comunidade “invade” essas escolas por meio dos alunos e agentes de praia.

2. Conhecimentos sobre o processo de implantação do manejo

Mostramos inicialmente as condições que levaram à comunidade a requerer a implantação do programa. Centramos a atenção na forma como se deu a implantação, houve reuniões entre os representantes dos saberes acadêmico e comunitário.

As análises dos relatos indicaram que a decisão em iniciar o processo de manejo nas comunidades partiu, em sua maioria, de uma constatação comunitária sobre a diminuição dos recursos naturais, especialmente nos lagos. Essa constatação levou a um processo reflexivo de como as próprias comunidades, que contribuíram no processo de diminuição de tais recursos, poderiam ajudar na sua recuperação. Feito isso, constata-se, comunitariamente a necessidade de agir em parceria com outros elementos e instituições. Aparece então, a escola local, como fator chave na nova postura, e por fim, a busca do auxílio técnico da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBGE) que vem para iniciar de maneira técnica os processos de manejo.

Inúmeros processos foram implantados na região amazônica desde a época colonial, o que afetou diretamente os modos de vida do homem amazônico e sua relação com a natureza. Houve exploração de vários recursos ao longo dos séculos, o que levou várias espécies da fauna e da flora à beira da extinção, como por exemplo, o pirarucu Arapaima gigas, o peixe boi Trichechus inunguis, e os quelônios, com destaque para a tartaruga-da-amazônia Podocnemis expansa, restrita a poucas áreas e ausentes da visão dos mais novos”, como relembra um velho agente ambiental voluntário. Essa exploração dos recursos resultou num processo de empobrecimento da diversidade nos lagos amazônicos, entre eles, os três que dão nome as comunidades estudadas, a saber: o lago do Zé-Açú, o lago do Miriti e o lago do Máximo. Estes lagos possuem nomes próprios, por não serem, a

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nosso ver ambientes físicos apenas, mas, ambientes culturais, entorno dos quais habitam centenas de sujeitos que os têm como fonte de vida, como transporte, como laser, como possibilidade de sobrevivência, como escola da vida e como guarda das identidades locais.

Segundo relatos dos agentes de praia, esses lagos ajudavam no processo de fornecimento de espécies como o tracajá Podocnemis unifilis, para auxiliar nos trabalhos coletivos – os chamados puxirus, muito comuns na Amazônia há umas duas décadas, especialmente no trabalho com a agricultura de “mandioca”. No entanto, neste inicio de século, os comunitários depararam-se com a escassez de diversas espécies. Este fato levou os para o processo de reflexão de como, eles mesmos, tinham que buscar maneiras de ajudar a natureza que, por diversos fatores não respondia mais às suas demandas alimentares e até mesmo de transporte, pois alguns lagos tiveram suas cabeceiras e nascentes comprometidas pela pecuária. Soma-se a este problema, uma prática comum de antigos moradores que era a queima ou derrubada da mata ciliar, e a destruição dos “aningais” do lago, realizada para a pastagem para o gado bubalino, introduzido ali nos últimos anos. A partir da constatação destes fatos é que chegaram a conclusão de que deveriam tomar providências para se manter no seu próprio ambiente.

Então, é nesse contexto que os comunitários tiveram contato com a cartilha de divulgação do programa pé-de-pincha e perceberam que ações planejadas poderiam reverter esse quadro. Diante de tal situação, recorreram ao IBAMA para que pudessem os auxiliar no esforço de recuperar as populações de quelônios em seus lagos.

Sou agente ambiental e coordenador do projeto na comunidade. A implantação foi através da minha iniciativa. Vendo que estava em fase de extinção a espécie, aí, por conta própria fui fazer a coleta dos ovos trazendo para a comunidade, numa área próxima a minha casa, onde foi construída a primeira chocadeira. Fiz isso seguindo orientações da cartilha do “pé-de-pincha”. Após a iniciativa, comuniquei o IBAMA, por motivo de ter recebido bastante crítica destrutiva dos demais comunitários (AGENTE DE PRAIA “A”, 2012).

Neste relato, constatamos que os sujeitos agentes de praia, se veem no processo do manejo e se colocam, enquanto agentes de uma ação que têm consciência que não é somente para si, mas para o coletivo. Esses indivíduos admitem a necessidade da orientação por parte dos órgãos

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governamentais, como o IBAMA. Também visualizamos o diálogo entre os saberes a partir do processo de zelo dos recursos naturais.

A partir da crítica feita pelos próprios comunitários ao agente de praia que realizou esta iniciativa, percebemos o quanto a ação do manejo não consegue atingir a todos os comunitários, muitos dos quais, ainda estão extremamente ligados às práticas tradicionais de exploração. Este fato valoriza a função dos agentes de praia, para os quais dizemos neste estudo que sofrem, a partir do programa, processos de “Alfabetização Científica Comunitária”, pois sua sensibilidade os mantém firmes, mesmo diante da resistência de outros comunitários que não participam e que por vez até tentam prejudicar as ações do manejo.

Um processo similar no que se referem à busca pelos órgãos competentes para ajudar a comunidade, da ação do manejo em si e das dificuldades em convencer os demais comunitários, foi relatado pelo agente de praia “B”, (2012), ao descrever a implantação do manejo em sua comunidade.

Bem, vendo o desaparecimento da espécie no lago da comunidade, alguns moradores se preocuparam com isso, mas tinham que fazer alguma coisa pra resolver o problema. Foi assim que surgiu o projeto aqui. Na época nós éramos coordenador da comunidade e lançamos o convite ao gerente do IBAMA [...] que atendeu o pedido e trouxe o coordenador geral do projeto [...], que em uma reunião no centro comunitário com todos os moradores e comunitários para juntos fazerem a implantação do projeto. Alguns moradores preocupados e sem experiência lançaram perguntas ao coordenador de: como fazer pra transplantar os ovos para a chocadeira? Como alimentar os filhotes após a eclosão? E o coordenador com muito respeito, explicou como é levado para a chocadeira, como tratar os filhotes no berçário. Logo após a reunião, o coordenador, junto com alguns comunitários foram fazer o trabalho de campo e a experiência de como tirar os ovos das ninhadas que já estavam reservadas para serem transplantadas para a chocadeira. A 1ª ninhada foi tirada da praia chamada “Aimim”, e a 2ª praia “cupuperé”, a 3ª da praia São Raimundo. Ficou como coordenador do projeto na comunidade Raimundo Ramos Barbosa. No primeiro ano foram coletadas quatro ninhadas, mas como tinha algumas pessoas que não acreditavam no trabalho resolveram roubar uma ninhada da chocadeira, nesse ano foram devolvidos ao rio 54 filhotes de tracajá.

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Essa atividade de manejo foi aos poucos envolvendo outros setores da comunidade, como a escola, que passou a auxiliar os comunitários no processo de manejo, envolvendo-se de diversas formas e com os mais variados sujeitos, tais como professores, alunos e auxiliares de serviços. Neste momento inicial, destacaremos a participação da escola, por meio destes últimos sujeitos, como indica o auxiliar, mas que também se entende como agente de praia, e é desta forma que eles se apresentam: Trabalho como auxiliar de serviços gerais na escola. Mas sou também, agente de praia, cuido da limpeza da área da chocadeira, e também ajudo na troca de água no tanque berçário [...] (AGENTE DE PRAIA “C”, 2011).

Percebemos como tais sujeitos tomam para si as atividades do processo de cuidado com os filhotes ao longo do manejo, assumindo funções variadas. No relato, indicam sua participação nas etapas de coleta, transplante para a chocadeira e por fim, de cuidado dos filhotes após a eclosão, quando ficam nos tanques berçários (nas comunidades estudadas erma caixas d’agua de 5.000 litros). Nesse ambiente os filhotes são devidamente cuidados até serem soltos no lago.

Ainda sobre esse processo de lidar coletivamente no manejo e de cooperação nas tarefas, o agente indica sua participação no processo de alimentação dos filhotes, afirmando: Trabalho há oito anos no programa pé-de-pincha, fico mais na parte da alimentação dos filhotes dos quelônios. De uns dois anos pra cá ficam ali pra cabeceira do rio na propriedade do rapaz que é o responsável do manejo na comunidade (AGENTE DE PRAIA “D”, 2012).

Esse relato, tanto indica o trabalho coletivo, como acaba denunciando uma questão que ocorreu em duas das três comunidades estudadas. Por inúmeros motivos, tais como as dificuldades em estabelecer um diálogo direto com os demais comunitários e a escola, os agentes construíram a chocadeira e posteriormente, fixaram os tanques berçários para os portos de suas casas, afastados daquilo que chamam de quadro da comunidade. Nos dois casos, o casal e seus filhos é que passaram a responsabilizar-se pelas maiores atividades. Por esta razão, os demais membros da comunidade participam de forma mais intensa apenas na soltura dos filhotes.

Percebemos, a partir dessa situação que falta institucionalizar os diálogos entre os que executam o projeto (universidade, agentes de praia e escola). Ressaltamos aí, a responsabilidade assumida pelos agentes para que o projeto continue sendo realizado em suas comunidades, assumindo para si tais responsabilidades, o que demonstra interesse para continuar o

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manejo. É curioso verificarmos que, a reboque destas duas constatações, aparece a influência na escola, visto que os dois casais de comunitário-agentes de praia e suas crianças eram alunos das escolas das comunidades. Os pais fazendo ensino fundamental (modalidade EJA) e as crianças ensino fundamental (modalidade regular). Essa questão, que hora se apresenta é um indicativo de como a escola do campo, precisa cada vez mais, assumir uma visão holística da realidade, onde “[...] o homem recupere a visão do todo. Que se sinta pleno, vivendo dentro da sociedade como um cidadão do mundo e não como um ser isolado em sua própria individualidade” (BEHENS, 2005, p. 58). Agindo dessa forma, passará a incluir de forma sistemática, as ações e vivências de seus sujeitos, o que agregará no processo de formação dos homens e mulheres da zona rural amazônica.

Não basta apenas a mudança de nomenclatura de escola rural para uma nova, chamada de escola do campo, é necessário acompanhar os ritmos de vidas e vivências do meio em que estão inseridas tais escolas para, a partir disso, tornar-se escola daquele e para aquele lugar, do espaço rural ou do campo amazônico. Espaço de onde os sujeitos possam olhar o mundo de forma sistematizada e responsável, tal como os agentes de praia nos mostraram, ao abraçarem a causa do manejo para si e assumir as responsabilidades que, em primeira instância, não seriam somente suas, mas de todos os comunitários, da escola e universidade, como instituições que se apresentam para a promoção do conhecimento humano nesta parte da Amazônia, onde também não,

[...] queremos um ensino asséptico [...] um ensino sujo [...]. Assim a proposta é de que o ensino seja séptico, isso é, encharcado na realidade cotidiana na qual buscamos o conhecimento [...]. A escola[...] sempre buscou desvincular-se do mundo onde está inserida...Nem parece que a Ciência é um instrumento para a leitura do mundo natural (que não é asséptico)” (CHASSOT, 2011, p.13-14).

Para que essa sujeira deva ser compreendida como a consideração aos inúmeros elementos que cercam as escolas rurais, como os espaços não formais da comunidade, os saberes dos velhos e das velhas, e as parcerias como a do manejo comunitário de quelônios amazônicos pé-de-pincha, existe ainda,

[...] uma necessidade de se buscar uma valorização dos saberes populares e uma conscientização do respeito que os mesmos merecem e de como estão inseridos nos distintos contextos sociais. Esta é uma função política.

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É um novo assumir que se propõe a Escola: a defesa dos saberes da comunidade onde está inserida. É evidente que isso não significa o estudo dos saberes estranhos ao meio, mas o não desprezo pelo local. É esta a postura política que se espera da escola. (CHASSOT, 2011 p. 216).

Não se quer aqui entrar na lógica de validação ou hierarquização de saberes, mas da percepção e respeito dos mesmos pela escola formal, no ato do ensinar e aprender nas comunidades rurais amazônicas. As escolas dessas localidades ganharão na qualidade do educar, se conseguirem abrir-se, cada vez mais para as sujeiras de suas comunidades.

3. Conhecimentos sobre o processo de execução do manejo

Apresentamos a seguir de modo agrupado, os conhecimentos sobre o processo de execução do manejo de seis agentes de praia, pois, há mais elementos convergentes do que divergentes. Nossa intenção é a de visualizar o entendimento desses sujeitos sobre as atividades do entorno do manejo e assim, indicar que vêm sendo influenciados pelas ações do projeto desenvolvido em suas comunidades.

O manejo ocorre de setembro a junho. As etapas são: 1ª coleta dos ovos, 2ª vigilância na chocadeira, 3ª transplante para o tanque berçário e o cuidado com os filhotes, e 4ª soltura dos animais. A Coleta dos ovos é feito pelos agentes de praia juntos com umas crianças quando retiram os ovos das ninhadas, colocam em cubas de isopor para serem transplantados para a chocadeira, os ovos são tirados com cuidado para não serem rolados ou mudarem muito de posição. Os ovos são depositados na chocadeira e são vigiados para que outros animais predadores e insetos não ataquem. Depois da eclosão tem o transplante para o berçário, e lá tem o cuidado com a alimentação, é feita a troca de água, é verificar se não estão morrendo e outros cuidados [...]. A soltura é feita com festa. São convidadas outras comunidades, os alunos, os professores de todos os níveis de escolaridade, políticos, chefes de instituição e outras pessoas como o coordenador local do projeto. São feitas palestras, apresentação de alunos da escola da comunidade, vídeos sobre meio ambiente, culto dominical, torneios de futebol. (Agente de praia “A”, 2012).

Percebemos que há, inicialmente, um indicativo do período em que ocorre o manejo. No período das águas baixas, ocorre a coleta dos ovos

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nas praias e o transplante para a praia artificial, onde os ovos ficam até a eclosão. Após eclodirem, os filhotes são levados para o tanque berçário, onde ficam até a soltura. A liberação ocorre, a partir de março, chegando a maio e junho em algumas comunidades, quando o nível do rio no baixo amazonas já está alto.

Sobre a coleta dos ovos, os agentes de praia indicam quais os sujeitos que devem realizar esta tarefa, sendo em sua maioria da comunidade, com grande participação dos alunos das escolas locais. A coleta é realizada durante o período da seca dos rios. As equipes do programa da universidade, quando participam, passam apenas um final de semana. No período de observação nas três comunidades (2011/2012), houve apenas uma ida de tal equipe a uma das comunidades para fins de coleta, embora o trabalho já tivesse sido realizado pelos agentes de praia.

A manipulação dos ovos durante o transplante é feita seguindo as orientações obtidas nos anos anteriores com os técnicos do projeto. Na chocadeira artificial as novas ninhadas são identificadas e semeadas na areia a uma profundidade similar ao que ocorre numa praia natural. Numa planilha é registrada a data, local, o número de ovos coletados. Estes registros ajudam a gerar o relatório anual do projeto e influenciam a escolha do local que a comunidade irá liberar os filhotes. Há um indicativo dos saberes primevos das comunidades que “recomenda” que os filhotes sejam soltos nas praias formadas na beira dos lagos, onde os ovos foram coletados. Os comunitários liberam os filhotes não apenas num ponto do lago, mas em diferentes pontos na beira dos lagos.

Talvez esteja aí mais um item para que a Ciência Amazônica, a partir das universidades Estadual e Federal – Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM) iniciem pesquisas, a partir das vivências já experimentadas pelas comunidades locais, e dessa escuta das vozes que saem das florestas, auxiliar o processo de promoção humana na região. Pois, o que se percebe, nesta parte da região amazônica, são lentos processos de apropriação da ciência pelas comunidades rurais, especialmente voltados para o âmbito da educação no contexto do campo.

Essas universidades locais, ainda sustentam seus currículos de formação inicial de professores de maneira que pouco ampara o futuro profissional para atuar nessas comunidades rurais amazônicas. Isto deve ser revisto, haja vista que, a partir do polo da UEA em Parintins, um grande número de novos professores, está atuando nas comunidades de oito municípios do Baixo Amazonas no inicio do seu magistério. E estes novos

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profissionais precisam orientar-se para atuar como amazonidas, não como os colonizadores de outrora, com práticas que retiram os sujeitos de seu ambiente, mesmo sem intenção direta, desqualificam suas visões de mundo e modos de vida, desconsiderando inúmeras potencialidades para iniciar processos de Alfabetização Cientifica.

Os agentes ambientais voluntários indicam esse diálogo com a universidade, especificando as fases em que os conhecimentos dos técnicos são fundamentais, a exemplo da coleta dos ovos, onde carece de todo um cuidado e registro no transplante e também fase da soltura, quando os técnicos e voluntários que chegam da cidade realizam processos de biometria (peso, largura, marcação dos cascos, etc.). Assim, afirmam que “a participação dos técnicos quando acontece é na coleta e quando é pra fazer a biometria dos filhotes. A importância desses sujeitos é incentivar o programa e ensinar como se trabalhar o programa em suas diferentes fases” (Agente de praia “E”, 2012).

Esses sujeitos agentes de praia apontam ainda como os demais comunitários participam das atividades, refletindo a grande participação das crianças que em última instância, são alunos das escolas locais, pois,

A participação dos comunitários é muito pouca. Então [...], temos a maior participação de crianças e jovens da comunidade. Sendo variável a presença de pessoas adultas. Têm adultos que tentam até prejudicar o trabalho. A importância dos comunitários para o projeto é de incentivar para que no futuro todos pudessem ter alimentos em sua mesa. Um ponto positivo do programa é o aumento da espécie e a conscientização do povo da comunidade, o trabalho das crianças e dos agentes ambientais (AGENTE DE PRAIA “D”, 2012).

Esse relato aponta também para o significado da participação de cada sujeito no manejo. Dos demais comunitários que precisam inserir-se cada vez mais no processo de cuidado com os recursos naturais de onde vivem. Das crianças, que vivenciando junto com os adultos aprendem nos Espaços Não Formais de Educação, certas questões relativas à vida comunitária e à necessidade de sua participação, desde cedo nos processos de gestão desses recursos disponíveis em seu ambiente.

O relato do Agente de Praia “D”, (2012), promove ainda certa reflexão sobre a utilidade do programa para as comunidades, tais como: a conscientização daquilo que denomina de “povo”, num ato de se “auto separar”, desse grupo. Quando se refere aos demais comunitários como

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“povo”, parece estar ciente de sua condição de agente de praia. E mais, é um indicativo que possui entendimentos de como sua ação é importante, mas os demais comunitários, ainda carecem dessa sensibilização que estamos insistentemente chamando de Alfabetização Científica Comunitária.

4. Conhecimentos sobre aspectos de manejo, conservação e reprodução de quelônios amazônicos

Evidenciamos aqui, como os agentes de praia representam as questões específicas sobre manejo, conservação e reprodução dos quelônios. Estes conceitos não devem ser compreendidos como conceitos fechados, mas como o dizem ou utilizam para abordar essas temáticas, a partir de sua participação nas ações do projeto.

As vivências dos agentes de praia junto aos técnicos possibilita uma maior sensibilidade de tais comunitários para as questões ambientais de modo geral, especialmente sobre os quelônios amazônicos. E mais, os ajuda a perceberem-se como parte do meio amazônico e como tal a responsabilizar-se pelo processo de cuidado dos recursos naturais.

Assim, manejo “é o trabalho que a gente faz desde o transplante dos ovos até a soltura. É fazer a retirada com cuidado” (Agente de praia “E”, 2012). Há aí, indicativos da percepção de que a natureza sozinha não consegue mais promover um processo rápido de recuperação das populações animais nos lagos. Daí, dizem “o manejo ocorre na retirada dos ovos. Temos que saber tirar da cova e trazer para a chocadeira para não causar nenhum transtorno, pra não apodrecer” (AGENTE DE PRAIA “D”, 2012). O manejo seria para eles essa ajuda para que os recursos sejam novamente abundantes. Em fim, “é o trabalho que a gente faz com os quelônios, cuidando bem de perto” (Agente de praia “F”, 2012).

No primeiro relato do Agente de praia “E”, percebemos que manejo é representado como um processo longo de cuidado com os quelônios. Um cuidado que envolve as etapas de retirar os ovos das praias naturais e construir uma nova praia artificial em lugar seguro para que os filhotes não sofram depredação, até serem devolvidos no lago. O segundo relato do Agente de praia “D”, reforça a questão do manejo como o cuidado que se deve ter para que a espécie se mantenha. Tal entendimento é especificado no último relato do Agente de praia “F”, ao descreverem os cuidados necessários com os ovos retirados das praias naturais e transplantados nas artificiais. Esses dois relatos dialogam com as orientações da cartilha pé-de-pincha, onde Andrade (2005. p. 12), indica que,

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Manejar é dar uma mãozinha para a natureza. O manejo envolve uma série de procedimentos bastante simples, destinados a garantir o nascimento do maior numero possível de filhotes. Além de nascer em segurança, eles devem ser protegidos até que sua carapaça fique dura. Assim, eles podem resistir aos seus inimigos naturais: aves (gaivotas e gaviões), peixes (piranhas, traíras, aruanãs) e outros seres aquáticos (sanguessugas e jacarés). Manejar é como fazer uma caderneta de poupança. Cada ano que passa, aumenta o número de quelônios. Com a fartura voltando à várzea, ganha o meio ambiente e ganham os seres humanos, pois aumenta a oferta de alimentos e crescem as possibilidades de se fazer criação em cativeiro, gerando renda e carne, ovos e filhotes.

Sobre a questão da conservação, os sujeitos trazem uma ideia de como os recursos podem estar à disposição das comunidades amazônicas, mas seu uso não pode mais ser realizado de qualquer modo. Isto deve ser feito de modo racionalizado, a fim de que sejam mantidos para usufruto das futuras gerações, como indica o Agente de praia “A” (2012), “só estamos repovoando a área do lago para que as pessoas possam retirar para seus sustentos, sem prejudicar por causa da extinção da espécie”. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, afirmam que conservação também “é manter a espécie nos lagos para não acabar pra ter mais tarde” (AGENTE DE PRAIA “B”, 2012). Então, conservar para tais sujeitos insere-se na lógica da guarda dos recursos para usufruto da própria comunidade, seja no presente ou pelas gerações futuras.

Os relatos desses sujeitos, não trazem conceituações do que seja reprodução em si, mas apontam para seus significados para a comunidade e de como ela ajuda no processo de continuidade da espécie dos quelônios. Assim, para o Agente de praia “C” (2011), reprodução significa “reproduzir para o aumento da espécie em determinado lugar”. Neste caso específico, o lago de sua comunidade. Tal pensamento é compartilhado pelo Agente de praia “E” (2011), ao indicar que “a reprodução é que todos temos que coletar os ovos para não deixarmos essa espécie morrer”.

Um dos elementos percebidos nesses relatos referentes a manejo, conservação e reprodução, é que tais sujeitos amazônicos, parecem estar fora da necessidade da conceituação isolada das coisas, mas sempre atribuem significação para suas falas, ligando a importância de suas ações, ou para si, ou para sua comunidade. É dessa maneira que devemos entender suas falas, vê-las, enquanto um processo que os leva para o campo da sensibilidade, frente ao uso de seus recursos. Esses sujeitos sabem, por

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exemplo, que devem cada vez mais inserir-se nas atividades de manutenção de tais riquezas, para que as mesmas não diminuam ou se acabem, pois, são de extrema relevância para sua vida individual e comunitária.

É nesse contexto que o processo educacional formal nas áreas rurais amazônicas deve ser efetivado, também, a partir de um processo de fuga das abstrações, que comumente torna alunos em “alienígenas” em sala de aula, e ligando-se mais com questões práticas vividas, valorizadas nas comunidades amazônicas. Seria então, uma porta para uma Alfabetização Científica que parte do campo amazônico e não uma Educação Científica que chega ao campo como verificamos, pois:

[...] Ao olhar-se como foi construída a história social do currículo dos diferentes saberes que a Escola ensina, verifica-se o quanto esses não tem um enraizamento na realidade local e temporal da Escola. [...]. Muitos desses conteúdos [...] organizam-se em uma determinada disciplina escolar, que muitas vezes se caracteriza como uma disciplina esotérica e que, por seu hermetismo, se torna (propositalmente) inacessível (CHASSOT, 2011, p.214-215).

O que está em questão, é uma nova construção curricular que considere elementos das realidades, como os indicativos trazidos acima. Realidades, onde os sujeitos comunitários, chamados de agentes ambientais voluntários, compõem uma ação que gera processos de educação em espaços educativos fora do ambiente escolar e que, curiosamente os alunos sem farda, se fazem presentes. E, junto aos mais velhos aprendem de modo geral, aquilo que em seguida, quando vestem farda, os professores ensinam, ou tentam ensinar na sala de aula, pois, enfrentam certas dificuldades, por não lembrarem, ou até lembrarem, mas não saberem como usar as vivências desses meninos e meninas, ou como dizem nas comunidades amazônicas, “curumins” e “cunhantãs”.

As escolas do Campo amazônicas estudadas, ainda encharcadas no processo de querer ensinar parecem continuar a querer não aprender e, portanto, a ignorar esses sujeitos, suas falas, suas parcerias, seus saberes. Será mais fácil fazer educação nessas áreas, quando os sujeitos que nela vivem forem respeitados, a exemplo dos agentes ambientais voluntários.

Considerações Finais

O estudo das contribuições do programa de manejo para os processos de Alfabetização Científica nas comunidades do Baixo Amazonas

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nos levou para o campo do maior conhecimento das potencialidades para a construção de Mundos amazônicos que, se identificados, entendidos e acima de tudo valorizados num diálogo com outros saberes, pode dar excelentes suportes para inúmeros processos de educação nas áreas da Amazônia, como é o caso do assentamento Vila Amazônia.

E nesse movimento, de uma educação que se deixa sujar pelos saberes locais, propor processos sociais de emancipação de homens e mulheres. Tudo isso feito como o auxílio indispensável de uma ciência que consiga dialogar com saberes de gentes como os “agentes ambientais voluntários” apresentados neste texto. Nesse movimento quase utópico podem estar indicativos de outras histórias para a Amazônia.

A partir desse nosso estudo para o mestrado em área “diferente” da nossa de “origem” aprofundamos nossos olhares para Amazônia a partir de outras bases e isto nos encaminhou para outras propostas de visualização do Baixo Amazonas também a partir de suportes multidisciplinares.

Pensar a ciência na Amazônia significa entender como essa região foi pensada/inventada, encará-la como multifacetada e que como tal não pode ser olhada de maneira generalizada, mas suas facetas vistas como possibilidades de diferentes entendimentos.

A partir desses conhecimentos com mais consciência, consideração dos saberes diversos dos sujeitos/realidades e entendimentos das complexidades locais, é possível escrever outras histórias que dialoguem com as realidades amazônicas e contradigam a invenção de Amazônia.

Pensar a Amazônia significa, portanto, encarar toda sua complexidade, o que exige posturas teóricas metodológicas que dialoguem com as ecologias, saberes locais e a considere enquanto região multifacetada que é.

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