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MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULOAv. Tiradentes, 676 - Luz

São Paulo - SP, 01102-000 +55 (11) 3326-3336

[email protected]

www.culturarte.com.br [email protected]

+55 (11) 984-826-101

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NESTE NÚMERO

DOSSIÊ

Revista semestral do Museu de Arte Sacra de São Paulo e do IPAC-Instituto Paulista de Arte e Cultura, em parceria com Culturarte –

Pensamento, cultura e linguagens.

Volume 1, número 1/2019

ISSN: 2565-8763

LITERATURA E SAGRADO

OLHAR INTERNACIONAL

O Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) localizado em um dos mais importantes ícones arquitetônicos do Brasil, o Mosteiro da Luz, é o tema do nosso primeiro dossiê que conta com Marcos Horácio Gomes Dias, Karin Philippov, Titina Corso e André Guimarães Rodrigo. Naturalmente, este tema não se esgota neste espaço e ecoa em outros momentos da revista, como a entrevista com Claudinéli Moreira Ramos, Coordenadora Unidade de Monitoramento e Avaliação da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, e as seções “Em foco” e “Exposições”.

A chegada da Belle Époque ao Brasil, particularmente, à sua capital de então, o Rio de Janeiro, foi acompanhada também da importação de um modismo europeu que ganhou importantes espaços na vida cultural: o gosto pelo sobrenatural. Nomes como Machado de Assis, João do Rio e Coelho Neto se debruçaram sobre o tema.Leia o Artigo desenvolvido por Mary Del Priori. Ainda, sobre a Literatura e as relações com o Sagrado, Alcir Pécora aborda a riqueza da obra do Padre Antonio Vieira e José Luís Landeira trata dos escritos dos Padres do Deserto, no começo do pensamento medieval.

Vanessa Bortolucce nos traz, pela primeira vez em língua portuguesa, a tradução do Manifesto da Arte Sacra Futurista (Manifesto dell’arte sacra futurista) escrito em 1931 por um dos mais importantes artistas e teóricos do Futurismo Italiano, Luigi Colombo (1904-1936), usualmente conhecido nos círculos artísticos como Fillia. Nosso olhar internacional também nos leva a Lisboa, a visitar o Museu de São Roque, da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, um dos mais importantes espaços de construção da cultura jesuítica em língua portuguesa.

O Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP), desde alguns anos, decidiu, como parte de sua missão, não se restringir à atividade que está na raiz de sua razão, principalmente brasileira.

Para tanto tem desenvolvido uma profícua atividade editorial e, sobretudo, de ensino a respeito dos temas mais variados ligados à sua razão de ser, buscando reunir não só um grupo de professores altamente qualificados, mas também atingir frequência de pessoas interessadas, até então inédita.

Faz parte desse escopo a criação desta revista MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO, cujos objetivos maiores são:

- publicar sistematicamente trabalhos realizados

pelos alunos de seus vários cursos, estimulando a produção de textos que de outra forma permaneceriam desconhecidos;

- convidar permanentemente para colaborar os mais destacados nomes da história em si e da história das artes, além de autores dedicados à reflexão estética.

Assim, mais uma vez, o Museu de Arte Sacra de São Paulo reafirma a realização de sua nobre tarefa:

“servir, educar e prover cultura para todos”.

| PALAVRAS DO DIRETORJosé Carlos Marçal de BarrosDiretor Executivo do Museu de Arte Sacra de São Paulo

Execução:

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Convidamos o leitor a visitar esta revista, como quem entra em casa amiga. Desejamos, neste espaço, promover um encontro entre o público e investigação de ponta nas diversas áreas que formam o campo de estudo das Artes, particularmente, da Arte Sacra, aprofundando conhecimentos e motivando caminhadas para aqueles que tem fome de saber mais. Os artigos seguem estilos e gêneros diferentes e se preocupam em construir pontes entre obras, épocas, modos de ver o mundo e discursos.

Os autores buscam o diálogo entre suas investigações - com frequência fazendo uso de uma extensa bibliografia especializada, uma análise de símbolos e estruturas que podem ser encontrados em diversos ramos da arte - e a possibilidade de ampliar horizontes do nosso público leitor. O mais interessante é perceber que diferentes abordagens podem resultar em diferentes resultados e pontos de vista que solidariamente se somam, construindo espaços únicos de visita do caminhante leitor destas páginas.

O trabalho aqui desenvolvido reforça a dimensão didática e cultural do Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS), em constantes ações de reconstrução de sua identidade e conquista de novos espaços para promover a arte e a cultura. É esse espírito inquieto e ativo que já se tem visto em seus cursos, viagens de pesquisa in loco, exposições, conservação de acervo e apoio aos pesquisadores. A Piratininga - Revista do Museu de Arte Sacra de São Paulo é uma etapa de um trabalho institucional que pensa constantemente a divulgação da pesquisa e do conhecimento.

Esperamos que o leitor sinta-se em casa a cada volume desta revista. A arte é capaz de revelar segredos escondidos sobre a vida e a cultura de um povo e, por isso, responde por toda a coletividade e por todos os indivíduos. Seja bem vindo!

EDITORIAL

PIRATININGA - REVISTA DO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULOISSN: 2565-8763

Diretor Editorial: José Carlos Marçal de BarrosDiretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon NevesCuradoria Editorial: José Luís Landeira, Marcos Horácio Gomes Dias / [email protected]ção: Marcelo Henrique Gomes Dias / [email protected]: Queni Winters / [email protected]:Karin Philippov, Titina Corso, André Guimarães Rodrigo, Vanessa Beatriz Bortulucce, Edgar da Silva Gomes, Christiane Meier, Alcir Pécora, Mary Del Priori, José Luís Landeira, Ário Borges Nunes Junior, Silveli Maria de Toledo Russo, Maria Aparecida Ribeiro, Roberto Coelho Barreiro Filho, Fabricio Forganes Santos, Wilma Steagall de Tommaso, Mariana da Cruz Mascarenhas, Vanessa Lira, Marcos Horácio Gomes Dias.

MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULODiretor Executivo: José Carlos Marçal de BarrosDiretora Técnica: Maria Inês Lopes CoutinhoDiretor de Planejamento e Gestão: Luiz Henrique Marcon Neves

Administrativo:Andreza Rodrigues dos Santos, Iva Mendes dos Santos, Leandro Matthes Aurelli, Ligia Maria Paschoal Diniz, Maria de Fatima Miranda Paulino, Miriam Myrna Vieira Sans, Piter Torres de Souza, Renata Batista de Oliveira, Ricardo Nogueira do Nascimento, Stephanie Bezerra Cupertino, Roberto Cavalcante, Roseane Sobral.

IPAC - INSTITUTO PAULISTA DE ARTE E CULTURADiretor Executivo: José Carlos Marçal de BarrosDiretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves

CULTURARTE – PENSAMENTO, CULTURA E LINGUAGENSDiretores: José Luís Landeira / [email protected] Horácio Gomes Dias / [email protected]

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Volume 1, número 1/2019

SUMÁRIO

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08 - O MOSTEIRO DA LUZMarcos Horácio

13 - CONSERVAR PARA NÃO RESTAURAR Titina Corso

16 - O CORAL INSERIDO NA REALIDADE MUSEOLÓGICA André Guimarães Rodrigo

10 - O RECOLHIMENTO DA LUZ ATRAVÉSDAS TINTAS DE BENEDITO CALIXTODE JESUSKarin Philippov

DOSSIÊ

20 - CLAUDINÉLI MOREIRA RAMOS Vanessa Beatriz Bortulucce

ENTREVISTA

24 - IGREJAS DE SÃO PAULO DO SÉCULO XVIIIEdgar da Silva Gomes

ARQUITETURA

28- O CRUCIFIXO DE CLÁUDIO PASTROChristiane Meier

ESCULTURA

31- VIEIRA, AGORAAlcir Pécora

34 - O SOBRENATURAL NO RIO DE JANEIROMary Del Priore

41 - OS APOTEGMAS DOS EREMITAS DO DESERTOJosé Luís Landeira

LITERATURA

45 - RELÍQUIA: ESTÉTICA DA FINITUDEÁrio Borges Nunes Junior

RELICÁRIOS

48 - REFLEXÕES SOBRE UMA COLEÇÃO PARTICULARSilveli Maria de Toledo Russo

COLECIONISMO

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54 - ÍNDIOS EM COIMBRA Maria Aparecida Ribeiro

68 - MUSEU DE SÃO ROQUE José Luís Landeira

58 - A CONSTRUÇÃO DA URBE PAULISTANA Roberto Coelho Barreiro Filho

61 - AS IGREJAS DAS IRMANDADES DOS HOMENS PRETOSFabricio Forganes Santos

PANORAMA

76 - A GÊNESE DO TEMPLO CRISTÃO Wilma Steagall de Tommaso

PALESTRA

81 - UM CONVITE PARA VIAJAR NO UNIVERSO DA ICONOGRAFIA CRISTÃ

Mariana da Cruz Mascarenhas

RESENHA

82 - NOSSA SENHORA DAS DORES DE ALEIJADINHO Marcos Horácio Gomes Dias

EM FOCO

83 - SAGRADO MARFIM: O AVESSO DO AVESSO José Luís Landeira

EXPOSIÇÕES

84 - TRADUÇÃO: MANIFESTO DA ARTE SACRA FUTURISTA Vanessa Beatriz Bortulucce

OUTRAS PALAVRAS

88 - CURADORIA E FORMAÇÃO DE PÚBLICO Vanessa Lira

ARTE NA SALA DE AULA

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A construção do Mosteiro (ou Recolhimento, como foi inicialmente chamado) da Luz se deu em pleno período da colonização portuguesa no Brasil. Sua execução se deve à inspiração de uma reclusa do Recolhimento de Santa Teresa, de nome Helena Maria do Sacramento, que contou com a ajuda de seu confessor e diretor espiritual Frei Antônio de Sant’Ana Galvão.

O Recolhimento foi dedicado à Nossa Senhora das Candeias, também chamada de Nossa Senhora da Luz. Com o aumento do número de religiosas, foi necessário modificá-lo no correr dos tempos: ampliar o edifício para dotá-lo de celas para clausura, claustro, jardins, refeitório e enfermaria. O edifício não estaria completo sem o seu espaço principal, a igreja, que, por ter sido remodelada no final do século XVIII, apresentaria uma bela junção dos estilos rococó e neoclássico.

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IÊO MOSTEIRO DA LUZ: ESPAÇO DE ARTE SACRA

Por Marcos Horácio Gomes Dias 1

A colonização do Brasil se deu em meio à busca por mercadorias, à disputa por terras e escravos, a ataques piratas e ao desbravamento das terras paulistas em busca de ouro. Os bandeirantes, conquistadores paulistas, fizeram um grande esforço para desbravar e encontrar riquezas em todas as regiões, enviando diversas expedições em direção ao norte e ao interior. Um deles, Fernão Dias Pais, havia alcançado sertões distantes já no século XVII. No final desse século, outras levas de aventureiros e bandeirantes chegaram a regiões remotas que hoje compõem o território brasileiro.

Portugal, como um país fiel ao catolicismo romano e ao papa, contou também com o cristianismo católico para assegurar a posse dessas novas terras e a conversão dos gentios. Esse cristianismo romano também foi aquele que deu sentido à unidade dos colonos e à guerra travada contra os infiéis. A garantia de

O porquê do Mosteiro da Luz

expansão desse pequeno reino em terras novas e brasileiras se dá com a fundação de igrejas, conventos e mosteiros.

Essa presença encorajou os cristãos a se fixarem nas áreas conquistadas e estimulou a instalação de ordens religiosas de monges e freiras, ordens terceiras e irmandades leigas. Podemos encontrar em terras brasileiras as ordens dominicanas, franciscanas, carmelitas, beneditinas etc. Essas ordens cuidavam também do povoamento, da administração e da organização do território colonial. Contando com as irmandades leigas, tais ordens trouxeram para si a função de controlar e divulgar a religião católica na capitania. Essas associações religiosas conseguiram congregar a maior parte dos indivíduos, na medida em que agregavam os brancos, os mestiços, os homens pobres, negros escravizados e libertos.

O Mosteiro da Luz, fundado por Frei Galvão, servia como abrigo de religiosas que faziam votos de pobreza, obediência, castidade e, inclusive, de clausura, bem como para as jovens das famílias abastadas da região. Essas famílias desejavam oferecer uma educação esmerada para suas filhas, que sairiam do

1 Historiador e sociólogo. Doutor em História Social pela PUC; Mestre em História Social pela USP; pós-graduado em Arte e Cultura Barroca pela UFOP e Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Professor do MAS-SP.08

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Este conjunto arquitetônico de valor inestimável contou, na sua origem, com a elaboração direta de Frei Galvão. É, desse modo, um testemunho da história de nosso país. Hoje, esse complexo edificado, além de cumprir ainda seu papel como edifício religioso, é um dos ex libris da arquitetura do Brasil, abrigando o Museu de Arte Sacra de São Paulo, que guarda uma rica parte da história da arte religiosa do Brasil e, particularmente, do Estado de São Paulo.

O Mosteiro da Luz hoje

SANTOS, A. A. S. O Mosteiro da Luz e seu fundador Frei Galvão. São Paulo: Artpress, 1999.

TIRAPELLI P. (org.) Arte Sacra Colonial: Barroco memória viva. São Paulo: Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2001.

TOLEDO, B. L. Frei Galvão: arquiteto. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

TOLEDO, R. P. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

BIBLIOGRAFIA

convento apenas para se casarem, preparadas para serem o que se considerava “excelentes esposas”.

Nesse caso, percebemos que o Mosteiro da Luz, além de servir de clausura para as religiosas, era também utilizado como um espaço educativo para meninas que, um dia, assumiriam os papéis de mães e donas de casa. Nesse local, poderiam ter uma vida santificada, sem a obrigação dos votos religiosos, a qual, na verdade, teria sido a primeira intenção da construção do Mosteiro da Luz.

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O artista historiador e fotógrafo amador Benedito Calixto de Jesus (1853-1927) pinta, entre o final do século XIX e início do XX, uma pequena série de quadros representando edifícios coloniais históricos de São Paulo, a partir de fotografias não feitas pelo artista. Porém, antes de adentrar na obra tema do presente artigo, algumas questões pontuais são úteis para a compreensão do artista em si, concernentes ao contexto em que vive e às razões pelas quais a série é pintada.

Benedito Calixto de Jesus nasce na pequena Vila Conceição de Itanhaém (Teixeira, 1982), no ano de 1853, e inicialmente trabalha como artesão junto a seu pai, executando as mais diversas encomendas de pintura e decoração. Em 1873, aproximadamente, muda-se para Brotas, no interior paulista, a fim de trabalhar com seu irmão no restauro de santos de igrejas da cidade, o que lhe permite aprimorar seus conhecimentos.

De volta ao litoral e já com certa reputação

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1 Pós-Doutoranda em História da Arte da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (PPGHA – EFLCH-UNIFESP).

por seu trabalho de pintura e decoração, no ano de 1881 recebe a encomenda da decoração do Teatro Guarany (Alves, 2003), por Manuel Ferreira Garcia Redondo (1854-1916). Como o trabalho realizado por Calixto agrada, Redondo o apresenta ao Visconde Nicolau José de Campos Vergueiro, que lhe concede uma bolsa de estudos em Paris. O artista segue para a capital francesa no ano seguinte

e lá permanece por dezoito meses, durante os quais estuda primeiramente no atelier de Jean-François Raffaëlli, para em seguida optar pela Académie Julian. Seu profícuo aprendizado junto à segunda academia lhe abriu os horizontes para a técnica da fotografia na composição de imagens. Aliás, Calixto traz um aparato fotográfico completo para o Brasil. Não que a fotografia eliminasse o desenho, mas a tecnologia lhe propicia realizar estudos encenados com seus amigos e familiares, antes de realizar suas pinturas.

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O RECOLHIMENTO DA LUZ ATRAVÉS DAS TINTAS DE BENEDITO CALIXTO DE JESUS

Por Karin Philippov 1

Benedito Calixto é um dos nomes mais importantes do cenário artístico da virada dos séculos XIX e XX. Ele visitou o Mosteiro da Luz e nós, agora, o acompanhamos nessa visita.

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Assim, o uso da fotografia lhe permite ampliar seu repertório imagético, na medida em que aproxima a nova linguagem de suas pesquisas históricas; a tela “Recolhimento da Luz” é um exemplo disso. Partindo, portanto, de uma fotografia de 1862, de autoria do fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Calixto faz sua pintura (Campos, 2007). Mas por que o artista faz essa série? Embora os dados não sejam muito claros, o que se pode propor é que Calixto tenha seguido uma encomenda do então diretor do Museu Paulista, Afonso D’Escragnolle Taunay, e tenha transformado a série de fotografias de Militão para o suporte óleo sobre tela, uma vez que a fotografia, até os anos iniciais do século XX, não seja considerada arte, assim como a pintura é. Dessa maneira, partindo de uma imagem fotográfica, o artista transforma a imagem em preto e branco em óleo sobre tela, o que confere maior dignidade ao tema representado, igualmente.

Outra questão relativa à fotografia de Militão e à pintura de Calixto se vincula ao registro da cidade de São Paulo, que já no final do século XIX inicia seu projeto de modernização e o registro do patrimônio colonial aponta para a necessidade de preservação, do resgate

Benedito Calixto de Jesus. “Recolhimento da Luz”, século XIX/XX, óleo sobre tela, 57 x 72,5 x 5 cm, Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo. Assinado B. Calixto, inscrição no verso “Recolhimento de Nossa Senhora da Luz em São Paulo – 1860”. Técnica em Pesquisa: Alana Íria Augusto.Fotografia: Iran Monteiro.

do passado e da memória. Campos (2007) defende que não há um sentido de um passado ultrapassado nas fotografias de Militão, mas sim de um processo modernizador da cidade de São Paulo. Aliás, propõe-se o mesmo sentido na pintura de Benedito Calixto, que produz um imenso repertório de pinturas na virada do século XIX para o XX, abrangendo os mais diversos temas históricos, urbanísticos e religiosos.

Assim, a tela “Recolhimento da Luz” é pintada pelo artista. Como o artista faz a pintura? Conforme mencionado anteriormente, Calixto parte de uma fotografia de Militão realizada no ano de 1862, na qual se vê o Recolhimento da Luz com uma tomada posicionada no lado de fora do edifício. Na fotografia ainda se veem duas meninas que parecem posar para o fotógrafo. A pintura de Calixto, no entanto, oferece algumas modificações em relação à fotografia, pois o artista elimina as duas meninas e insere um convidativo portão aberto, no canto esquerdo do muro, portão esse que não aparece na fotografia. Provavelmente, o referido elemento pode ter sido instalado após o ano de 1862, data da fotografia de Militão.

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ALVES, C. F. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru, SP: Edusc, 2003.

ARROYO, L. Igrejas de São Paulo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954.

CAMPOS, E. A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiais: Obras públicas e arquitetura vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-1863. In: Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material,v. 15, n. 1, p. 11-114, 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-47142007000100002, Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5455. Acesso em: 05 Set. 2018.

MUSEU DA ARTE SACRA. Referência nacional em história e arte sacra. Disponível em: http://www.museuartesacra.org.br/pt/museu/museu-da-arte-sacra. Acesso em: 05 Set. 2018.

TEIXEIRA, M. Benedito Calixto Imortalidade. Santos, SP: Uniceb, 1982.

BIBLIOGRAFIA

Ainda em relação à pintura de Benedito Calixto, deve-se salientar que, ao eliminar as figuras humanas, o artista faz de sua pintura o testemunho de uma época, por meio de uma representação histórica e quase anatômica, por assim dizer, do patrimônio erigido no século XVIII por Frei Antônio de Sant’Anna Galvão (1739-1822), franciscano que dedicou sua vida à construção do Recolhimento da Luz, lar das Irmãs Concepcionistas, embora tenha havido outras duas edificações anteriores e datadas do século XVII. Arroyo (1954) narra toda a história da construção do Recolhimento da Luz, instituição criada pela Irmã Helena Maria do Sacramento, que, junto ao Frei Galvão, dá início à construção, após um sonho no qual a religiosa se vê rodeada por ovelhas e o Senhor lhe confere a missão de construir um Convento, ou seja, o Recolhimento da Luz. Após inúmeras discussões, a autorização para a construção é concedida e Frei Galvão, finalmente, consegue iniciar a obra, que leva mais de um século para ser finalizada.

Dessa maneira, a tela pintada por Benedito Calixto é icônica por trazer a representação do antigo Recolhimento da Luz, antes de sua expansão em tijolos, embora mantenha o mesmo traçado arquitetônico colonial. A vultosa coleção do Museu de Arte Sacra, que abre suas portas a partir de 1970, tem por obra mais emblemática a referida pintura, por ser testemunho da construção original do século XVIII, apesar de partir da fotografia de Militão Augusto de Azevedo, registrada em 1862. Assim, a tela se torna símbolo da maior coleção de arte sacra do país, quiçá da América Latina. A relevância

dessa pintura transcende os muros do próprio museu, uma vez que é amplamente divulgada por reproduções e cartões postais, o que permite sua circulação enquanto bem cultural e material, fato corroborado pelo esvaziamento das figuras humanas em sua pintura. Portanto, a pintura de Calixto dignifica, eterniza e consolida a imagem do Recolhimento da Luz, a fim de perpetuar seu valor histórico enquanto patrimônio a ser preservado e conservadona reconstruída cidade de São Paulo, na virada do século XX, época em que a velha cidade de taipa é paulatinamente demolida para ceder lugar à moderna cidade de tijolos, movida a eletricidade.

Assim, enquanto as antigas construções civis e religiosas são demolidas em prol das novas construções revivalistas, ou seja, feitas em arquitetura que retoma o gótico e o românico, o Recolhimento da Luz é mantido e tombado como conjunto arquitetônico representativo de uma tipologia construtiva em taipa, com linguagem colonial. Portanto, a pintura de Calixto possui esse sentido simbólico através de suas pinceladas suaves, porém seguras, além de ser exemplo de tradição histórica de uma São Paulo que estava sendo lentamente inventada no início da Primeira República, com a criação do Museu da Cúria, pelo arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, museu esse que surge na mesma época e que se transforma no Museu de Arte Sacra de São Paulo, instalado junto ao atual Recolhimento da Luz, tema representado por Benedito Calixto de Jesus.

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Vez por outra, nos jardins do Museu de Arte Sacra de São Paulo, podemos observar pessoas com aventais brancos que passeiam entre as árvores, transitam entre salas expositivas... Esses personagens diferenciados são estudantes de Conservação e Restauração, que circulam por esse cenário de muitos aprendizados, são observadores e interessam-se pela ciência do “fazer” e “conhecer” a arte que se ancora em um determinado momento histórico, bem como suas possibilidades físico-químicas que nos desafiam nas ações propostas em uma ação de conservação ou restauração.

Aprendemos, em sala de aula,que essa multiplicidade técnica e importância histórica do fazer técnico e estético da arte nos objetos requer um estudo importantíssimo sobre a

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IÊCONSERVAR PARA NÃO RESTAURAR:CONHECENDO O FAZER NA COMPREENSÃO DO OBJETO ARTÍSTICO

Por Titina Corso 1

conservação de uma obra, a sua estabilização térmica, o seu sistema expositivo, o seu transporte para outro local de exposição e tantas outras demandas técnicas. Essas informações são fundamentais para a compreensão da função de um profissional de Conservação e Restauração, profissão que começa ancorada em leis éticas internacionais, transcorre e perpassa por linhas teóricas que norteiam nossas ações como profissionais, para depois de sensibilizados e capacitados tecnicamente darmos os primeiros passos em nossas ações físicas sobre uma obra de arte.

Há três anos, iniciamos no Museu de Arte Sacra de São Paulo cursos modulares, teóricos e práticos na área de conhecimentos de Conservação e Restauração de materiais

131 Artista Plástica, Pedagoga, Conservadora e Restauradora. É professora do MAS-SP.

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como o gesso, o barro, o papel, a madeira e componentes mistos ligados a essas bases em elementos escultóricos ou integrados aos bens imóveis, sob a orientação da professora Titina Corso. Dentre os objetivos desse curso estão a compreensão patrimonial e o respeito à nossa cultura e à nossa história, sensibilizando profissionais diretamente ligados à área de Conservação e Restauração ou áreas interdisciplinares para que se capacitem na ação ética exigida pelo fazer da profissão ou ainda na contribuição interdisciplinar das áreas coligadas para a ação técnica e prática.Pensamos também nos educadores das diversas áreas afins para a sensibilização docente, em conjunto com seus alunos,em busca de um olhar mais crítico em relação ao patrimônio público e privado. A ambiência museal exerce forte laço com várias áreas do conhecimento, adquirindo modalidade transversal da educação cultural em nosso país.

Os cursos ministrados nas dependências do museu visam à capacitação de diversos profissionais que já se envolveram, em algum momento de seus estudos, com os temas

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abordados na Conservação e Restauração, sensibilizando e capacitando aqueles que estão se engajando nessas práticas pela primeira vez. Nossas atividade sem sala de aula são cuidadosamente preparadas para identificar os materiais artísticos dispostos na linha do tempo no fazer das artes e reconhecimento dos autores, bem como no fazer técnico das práticas conservativas e restaurativas.As práticas são elaboradas para que o conjunto de atividades intervenha na qualidade de uma aprendizagem colaborativa de saberes multidisciplinares.Refletimos desde o ato criativo até a intervenção técnico-científica da restauração, esta última sujeita aos modos de regulação e sucessivas revisões em nossas ações profissionais. É possível alguma dificuldade, mas diante da ação colaborativa a que nos propomos, os temas expostos promovem uma mudança cognitiva, transformando e reescrevendo o conhecimento.

As obras de arte expostas no Museu de Arte Sacra, bem como as obras dos alunos – alguns dos quais, inclusive, são colecionadores –são utilizadas como estudo de caso, integrando

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BALDINI, U. Teoría de la restauración y unidad de metodología. San Sebastián: Nerea, 1998.

BOITO, Camillo. Os Restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

BRANDI, C. Teoria da restauração. Cotia: Ateliê, 2004.

VIÑAS, S.Teoría contemporánea de la Restauración. Madrid:Sintesis, 2004.

BIBLIOGRAFIA

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a percepção e a análise de patologias, estimulando a discussão unida em estratégia colaborativa na execução de projetos práticos em sala de aula. Os alunos colecionadores são integrados ao grupo de aprendizagem, que reconhece ações criteriosas de prevenção, conservação e restauração, desenvolvendo essas competências colaborativas e criteriosas de intervenções sobre os objetos de arte.Percebe-se, assim, o sujeito mais apropriado de sua cultura, de seus bens, consciente das funções do profissional da área da Conservação e Restauração, na qual esse proceder “especialista” contribui para a estratégia educativa dos bens patrimoniais.

A educação patrimonial abordada pela interdisciplinaridade das ações de

Conservação e Restauração, em nossas aulas, tem um objetivo primordial:destaca a participação colaborativa por meio de práticas individuais e em equipe que permitam ao sujeito,independentemente das diferenças em suas áreas do conhecimento,apropriar-se de saberes específicos e gerais da área abordada.A regulação conjunta das habilidades cognitivas e metacognitivas, com estímulos na interdependência social aplicados e vivenciados nos valores culturais administrados pela profissão do Conservador-Restaurador, amplia as condições necessárias para a reflexão e seus discursos críticos, possibilitando a elaboração de escritas científicas e a produção de conhecimentos.Todos os interessados são muito bem-vindos.

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O Coral do Museu de Arte Sacra de São Paulo encontra-se em seu segundo ano de existência, tendo iniciado suas atividades em fevereiro de 2017. Trata-se de um grupo amador formado por 45 integrantes que ensaiam às quintas-feiras à tarde, nas dependências do Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz. Essa prática coral diante de tal contexto tem gerado uma infinidade de possibilidades de aprendizagem, além de terreno fértil para reflexões enriquecedoras.

A palavra coro tem sua origem na Grécia Antiga, como prática de dança e canto desempenhada por jovens e adultos, tanto na esfera religiosa como no teatro grego;no período medieval, coro passa a representar o local da igreja de onde religiosos e músicos entoam os cânticos sacros e litúrgicos.

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IÊO CORAL INSERIDO NA REALIDADE MUSEOLÓGICA

Por André Guimarães Rodrigo 1

O Museu de Arte Sacra de São Paulo também canta e encanta com o seu coral. Mas manter a qualidade desse conjunto exige também pensá-lo dentro da realidade museológica em que se encontra.

A palavra coral, por sua vez ,refere-se ao gênero de composição vocal adotado por Martinho Lutero na Reforma Protestante.

Ambas as palavras, hoje, são utilizadas indistintamente para referir-se ao que se pode considerar uma das primeiras instituições sociais, representada por um grupo em que cada indivíduo,trazendo consigo sua história e características pessoais, coopera para a vivência musical coletiva.

Há vários perfis de coral, dependendo da instituição à qual pertence e da sua finalidade como organismo educativo, artístico e/ou social. Consequentemente, o repertório desempenhado alinha-se a essa proposta, tanto atendendo ao interesse dos cantores enquanto partícipes, quanto à mensagem artística que pretendem levar ao seu público.

Independentemente do coro e do perfil no qual se insere, onde há prática coral desempenha-se o canto coral – canto simultaneamente entoado por várias vozes, em uníssono (canto homofônico) ou em diferentes linhas (canto polifônico) – constituído de um repertório infindável, que oferece ao cantor a oportunidade extraordinária de experienciar a história da música sob uma perspectiva concomitantemente exequente e espectadora.

No momento da escolha de um repertório a ser trabalhado e apresentado, o regente do coro e os demais responsáveis por essa atribuição ponderam sobre diversos aspectos gerais e técnicos de cada uma das peças e,ao mesmo tempo, sobre a contribuição de cada uma delas na composição do repertório como um todo.

Os aspectos gerais constituem um leque de dados que abrangem várias áreas do conhecimento. Tomemos como exemplo a Missa Santa Cruz para discorrermos sobre

1 Professor, regente e fundador do Coral do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Graduado em Educação Artística - Música (Unicamp). Mestre em Performance em Regência pela Escola de Comunicações e Artes (USP).16

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alguns aspectos, com o auxílio do Referencial de Análise de Obras Corais (Ramos, 2003).

O compositor é Osvaldo Costa de Lacerda, paulistano, nascido a 23 de março de 1927 e falecido a 18 de julho de 2011. À época em que viveu e em que iniciava o ofício de compositor, posicionava-se a favor de Camargo Guarnieri2 ,da corrente de compositores influenciados por Mário de Andrade, no longo debate estabelecido com os compositores do Grupo Música Viva, influenciados por Hans-Joachim Koellreutter4, acercados rumos da música nacionalista de vanguarda produzida no Brasil.

A Missa Santa Cruz, composta em 1967, é um recorte representativo da obra de Osvaldo Lacerda para o gênero sacro, pois expõe as técnicas composicionais e a sonoridade que o compositor apresenta em sua produção para essa forma de escrita, de onde vale destacara Missa a Duas Vozes (1966), a Missa Ferial (1966) e a Missa a Três Vozes Iguais (1971).O envolvimento do compositor com o gênero religioso e sacro foi nutrido pela sua participação na Comissão Arquidiocesana de Música Sacra, instituída no Brasil em decorrência do Segundo Concílio Vaticano, cuja diretriz, dentre muitas outras, era empregar constâncias da música popular e folclórica nacional na música litúrgica, objetivando aproximar o povo de sua fé. A Missa Santa Cruz, inclusive, tem a autorização eclesiástica do Padre José Geraldo de Souza que, à época, era membro da Comissão de Música Sacra pela secção de São Paulo, além de ser dedicada ao Padre José de Almeida Penalva , que a estreou frente ao Coro da Sociedade Pró-Música de Curitiba em 6 de janeiro de 1968, bem como outras peças compostas por Osvaldo Lacerda em outras

2 Mozart Camargo Guarnieri (Tietê, 1 de fevereiro de 1907 – São Paulo, 13 de janeiro de 1993) foi um compositor, professor e regente brasileiro que desempenhou funções importantes na vida musical paulistanae cuja obra é muito difundida e executada até os dias de hoje.3 Movimento organizado por Hans-Joachim Koellreutter, integrado por compositores, intérpretes e professores, com o objetivo de promover uma educação musical com liberdade de criação e o cultivo da música contemporânea.4 Hans-Joachim Koellreuter (Freiburg, 2 de setembro de 1915 – São Paulo, 13 de setembro de 2005) foi um compositor e professor brasileiro de origem alemã. Em 1937, mudou-se para Rio de Janeiro e tornou-se um dos nomes mais influentes na vida musical no país.5 Padre José de Almeida Penalva (Campinas, 15 de maio de 1924 – Curitiba, 20 de outubro de 2002) foi compositor, musicólogo, regente e cofundador da Sociedade Pró-Música de Curitiba, importante órgão de educação e difusão musical da capital paranaense.

ocasiões.Conforme indicado na partitura pelo

compositor, “o nome – Santa Cruz – é uma referência ao símbolo sagrado do Cristianismo e uma homenagem ao primitivo nome do Brasil”.

O cantor de coro que acaba de receber essa partitura em mãos assemelha-se aalguém que adentra o espaço museal para conhecer determinada exposição pela primeira vez. Nessa etapa inicial de leitura do repertório, ele é um espectador que não tem conhecimento daquela obra e que, portanto,encontra-se diante de um novo universo ao qual terá de aventurar-se sob uma função de executante. No decorrer do processo de ensaios,aquele objeto, que inicialmente apresentava-se cheio de complexidades, passa a ser gradualmente conhecido e dominado tecnicamente, na medida em que sua sonoridade se funde às suas informações.

É importante ressaltar que, para um leigo ou semileigo em música,o processo de leitura de uma peça musical é construído com base na audição e, posteriormente, na reprodução do som apreendido. Portanto, o indivíduo assume no início um papel de ouvinte e,no transcorrer do tempo, conforme entoa sua linha repetidamente, submetida às inúmeras combinações possíveis com os demais naipes do coro, assume papel de público de si mesmo. Desse modo, as funções de exequente e de espectador se combinam, potencializando o conhecimento de determinada peça musical de maneira pormenorizada. Subsequentemente, seu olhar musical amplia-se quando se torna capaz de relacionar diferentes peças musicais entre si.

Tomemos outra obra como exemplo, a Missa

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6 Compasso é a forma de divisão musical em partes iguais ou variáveis, enumeradas para facilitar a sua leitura.7 Instrumento musical de teclas cujo ar fornecido pelo sistema de foles sustenta o som gerado por palhetas metálicas percutidas.

a Cinco Vozes, do compositor André da Silva Gomes, em comparação à missa de Osvaldo Lacerda sob o ponto de vista de alguns aspectos gerais.

Trata-se também de uma peça musical cujo texto é parte do ordinário da missa – o Kyrie e o Gloria –porém, composta por um músico luso-brasileiro, nascido em Lisboa, a 30 de novembro de 1752, radicado em São Paulo em 1774, onde permaneceu até seu falecimento, no dia 16 de junho de 1844. André da Silva Gomes veio ao Brasil a convite do bispo de São Paulo, Dom Frei Manuel da Ressurreição, para o posto de mestre de capela da Catedral de São Paulo.A Missa a Cinco Vozes está inserida na forma de escrita da Música Colonial Brasileira, desempenhada por Gomes e seus contemporâneos. Embora não se tenha exatidão da sua data de fatura,estima-se que foi composta ao final do século XVIII, período profícuo de sua produção, quando mestre de capela da Catedral de São Paulo.

A escolha das duas missas para uma breve comparação não é casual,em primeiro lugar,pela ampla possibilidade de configurarem um mesmo repertório, e depois por tratar-se de duas obras musicais cujas similaridades constituem notável ponto de partida para discussão. Ambas:

- pertencem ao gênero sacro e foram escritas

para a liturgia da Igreja Católica, cujo texto provém, em parte, da missa pré-tridentina;

- foram compostas na mesma cidade, por compositores expressivos da história de São Paulo;

- são peças corais com participação de solistas e acompanhamento instrumental.

Partindo de tais pontos em comum, compreende-se as dessemelhanças como ricas particularidades de cada peça. Portanto:

- foram escritas para a mesma fé, porém, com diferença de pouco menos de dois séculos. André da Silva Gomes compôs sua missa utilizando-se do texto em latim, que seria desempenhado na liturgia da Igreja Católica até o Concílio Vaticano II, na década de 1960. Embora possua somente as partes do Kyrie e do Gloria, a Missa a Cinco Vozes é uma obra extensa – totaliza 926 compassos – cuja performance, sob o ponto de vista litúrgico, se presta a uma solenidade onde a música possua papel protagonista, devido à sua longa duração, ao caráter pujante e à sua formação instrumental – coro a cinco vozes, solista, violinos 1, violinos 2, violas, trompas e órgão – também por influência das grandes obras sacras do barroco e classicismo europeus, numa fase em que a missa se dissociava da liturgia e era desempenhada como música de

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concerto.No caso de Osvaldo Lacerda, a Igreja para a qual escreveu a sua missa é outra –uma Igreja pertencente a outro tempo, cujo olhar estava voltado para a reaproximação de seus fiéis através da incorporação de elementos comunsà sua cultura. Por isso, a direção tomada por Lacerda é, de certa forma,adversa à de Gomes, uma vez que a partitura é enxuta – 256 compassos – de curta duração, com a clara finalidade de enquadrar-se ao contexto de uma missa cantada por seu celebrante, coro, solista e congregação, com acompanhamento de órgão ou harmônio .A Missa Santa Cruz traz, em língua portuguesa, partes do ordinário da missa comumente desempenhadas na liturgia em versão musicada. São elas o Kyrie/ Gloria/ Sanctus/ Benedictus/ Agnus Dei, com exceção do Credo, que recorrentemente, por opção do celebrante, é executado de forma recitada na liturgia.

- ambos os nomes figuram entre os grandes compositores que contribuíram com sua produção artística para a música da cidade de São Paulo, embora um deles seja paulistano e o outro tenha nascido em Portugal. Vale ressaltar que ambos apresentam forte influência da música europeia em sua forma de escrita, cada qual à sua maneira.

Afora alguns dos aspectos gerais abordados como breve amostra da relação entre as duas obras, há uma série de outros aspectos – além dos musicais referentes à duração, frequência, intensidade, timbre, entre muitos outros – que poderiam ser explorados com o objetivo de aprofundar-se cada vez mais nas especificidades das peças e nas relações entre elas.

Diante das indagações apresentadas sobre o repertório coral e desse jogo de semelhanças

ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA. Osvaldo Lacerda: catálogo de obras.

Organização e coordenação de Elizete Higino. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2006. 160p.

JUNKER, D. Técnica e estética– panoramas da regência coral. Brasília: Escritório de Histórias, 2013. 275p.

LACERDA, O.Missa Santa Cruz. São Paulo: Irmão Vitale, 1967. Partitura (22 p.).

RAMOS, M. A. S. Ensino da regência coral. 2010. 110 f. Tese (Livre Docência em Regência Coral, Análise Musical para Performance) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/27/tde-20092010-113311/>.

BIBLIOGRAFIA

e dessemelhanças que se estabelece frequentemente entre peças que compõem um mesmo repertório,pode-se aferir a vastidão e complexidade de elementos aos quais é submetido o indivíduo que canta em um coral.

Sob o ponto de vista artístico, o cantor é um agente cultural, é parte protagonista da realização musical e, portanto, passa a vivenciar a arte sob uma nova perspectiva, assumindo possivelmente um olhar mais abrangente como espectador desse segmento artístico, podendo inclusive expandi-lo a outros segmentos da arte em geral.

Por outro lado, assim como um museu, um coral é um “pórtico” que, ao traspassarmos, nos permite reviver a vastidão da nossa história. Por meio da prática coral, somos convidados a identificar a pluralidade de nossos laços identitários, cantando em diversos idiomas a música composta em diferentes locais e épocas – incluindo, especialmente, a música concebida em nosso próprio país. No caso do Coral do Museu de Arte Sacra de São Paulo, a analogia à visitação a um museu se faz notavelmente oportuna quando, ao final desse tipo de experiência, ocorre uma conscientização da multiplicidade de tópicos presentes no acervo em exposição.

Em meio ao acervo, portanto, o coral pode ser entendido como uma peça de museu, se observado como unidade coletiva que possui identidade histórica e artística. Ao mesmo tempo, o coral pode ser entendido como espaço museal em si mesmo, na medida em que apresenta regularmente um repertório de natureza plural, gerando reflexões como as citadas anteriormente e disponibilizando para a sociedade a performance de um acervo musical e histórico de grande valor.

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“QUANTO MAIS

O PASSADO É

DESCONHECIDO, TANTO

MAIS O FUTURO É

INCERTO”

Por Vanessa Beatriz Bortulucce

Na sua opinião, o que falta ao Brasil no que diz respeito às políticas de preservação do patrimônio artístico e cultural?

Nosso país ainda não dispõe, infelizmente, de uma política efetiva e continuada de preservação do patrimônio artístico e cultural. Há importantes órgãos criados para apoiar o Poder Público nas decisões acerca desse tema

Claudinéli Moreira Ramos é bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Possui Licenciatura em História e Mestrado em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). É especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidad de Girona, em curso ministrado no Observatório Itaú Cultural, por meio da Cátedra Unesco em Politicas Culturales y Cooperacion.

Sua atuação profissional concentra-se nas áreas de política cultural, gestão cultural, monitoramento e avaliação de políticas culturais, gestão de organizações da sociedade civil e parcerias entre Poder Público e Terceiro Setor. Entre 1998 e 2007 atuou na Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, tendo exercido diversas funções, de analista de documentação à diretora de gestão técnica e cultural. Nos anos de 2008 a 2013 foi coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria da Cultura do Estado de SP, onde gerenciou as estratégias de gestão de 18 museus da Secretaria e respondeu pelas políticas de articulação dos 415 museus integrantes do Sistema Estadual de Museus – SISEM-SP.

Entrevista com Claudinéli Moreira Ramos, coordenadora da Unidade de Monitoramento da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.

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Desde maio de 2013, coordena a então recém-criada Unidade de Monitoramento da mesma Secretaria, onde iniciou a organização das séries históricas e o balanço dos dez anos de parceria da SEC-SP com Organizações Sociais de Cultura e lidera a implantação das estratégias de monitoramento e avaliação das políticas culturais da Pasta realizadas em parceria com as OSs. Atualmente é doutoranda do Programa de Ciência de Informação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA USP.

Moreira Ramos concedeu para Piratininga a entrevista a seguir, reproduzida na íntegra, uma conversa sobre patrimônio e suas políticas públicas – e de como se faz premente a necessidade de pensar criticamente sobre os mesmos.

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Como a senhora avalia o que ocorreu no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018?

A tragédia que foi o incêndio no Museu Nacional é uma sofrida consequência do descaso da Administração Pública e da maior parte da própria sociedade brasileira para com o patrimônio cultural do país. Ela revela a falta de priorização da adoção de medidas de salvaguarda da edificação e dos acervos, pelos responsáveis; evidencia a falta de preparo do aparato público para a contenção do incidente; torna nítida a inexistência de uma elite nacional com algum compromisso público cultural que se materialize com rapidez e sem a necessidade de incentivos estatais. Mais: ainda que tenha sido impactante o choque de parte da população com esse desastre, também ficou claro que uma parcela enorme

das pessoas desconhecia o Museu e os tesouros que abrigava. Pior: as redes sociais permitiram observar que muita gente não viu razão para “esse sofrimento todo por causa de um museu” e houve até representantes eleitos pelo povo criticando a ênfase dada às políticas culturais em detrimento de assuntos sociais “mais sérios e importantes” como saúde e educação. Tudo isso é indicativo do extremo grau de ignorância que atinge o Brasil como pandemia, contribuindo para a manutenção de uma massa de brasileiros que desconhece sua história e suas raízes, que não exercita seu senso estético de forma ampla e inovadora e que permanece senhor de um repertório de conhecimentos, saberes e práticas bem limitado e pouco diversificado. É fundamental reconhecer, porém, que essa não é uma característica apenas da parte mais pobre da população. A péssima formação crítica geral das elites, voltada à liderança de um mercado de trabalho e de um modelo de consumo que não cabem mais no mundo contemporâneo, acentua a gravidade do cenário. O desserviço prestado pelos meios de comunicação, ao incentivar demonstrações afetivas pelo Museu e ao focar sua cobrança consubstanciada basicamente na “devolução” de um “museu nacional higt tech” a partir das memórias e imagens do que havia, também concorre para plantar a próxima tragédia. Falta um movimento que exija seriamente responsabilização: o que aconteceu com o Museu Nacional foi um crime contra o Brasil e contra a cultura humana que não pode ficar impune. Falta uma cobrança efetiva pela preservação dos incontáveis outros acervos sob risco, uma cobrança que precisa começar com a identificação desses acervos e com a alocação de recursos nos órgãos e departamentos de patrimônio histórico, por parte das autoridades públicas, bem como pelo levantamento de fundos privados para iniciativas sob responsabilidade da sociedade civil. Não é uma tarefa só do governo, tampouco só dos cidadãos - ambos os lados precisam mobilizar esforços para essa preservação.

nos três entes federados, sendo importante citar o IPHAN, ligado ao Ministério da Cultura, o CONDEPHAAT, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, e o CONPRESP, que se refere à instância municipal de São Paulo. Infelizmente, porém, na maior parte do tempo, a ação desses órgãos têm sido relacionada quase exclusivamente à deliberação sobre reconhecer ou não determinado bem como patrimônio nacional, paulista ou paulistano, e a autorizar ou não intervenções no referido bem,, na maioria das vezes arquitetônico. Os departamentos executivos do setor público, constituídos para dar suporte técnico e administrativo a esses conselhos, carecem de recursos financeiros e humanos para uma ação mais proativa. Quase não há condições para ações positivas, por exemplo, de orientação aos proprietários na adoção de medidas de caráter preventivo ou corretivo, nem para medidas de fiscalização, correção e salvaguarda. Por outro lado, na maioria das cidades e Estados, não há qualquer vantagem em possuir um bem de valor histórico, artístico ou cultural. Um exemplo disso é a inexistência de políticas de valorização do patrimônio arquitetônico, que facilitassem linhas de crédito para restaurações e reformas, ou que reduzissem impostos nos casos de comprovada conservação dos imóveis.

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Historicamente, há muitos responsáveis pela ausência de valorização do patrimônio em todos os sentidos. Os principais são a carência de recursos humanos e financeiros para atuar diretamente nos processos; a ausência de uma política educacional em que arte e cultura sejam verdadeiramente componentes estratégicas e a inexistência de uma política que valorize concretamente os bens de interesse histórico e cultural.

A defesa e a preservação da memória são hábitos que não apenas dizem respeito às instituições, mas também à população em geral. Como fazer o brasileiro se interessar mais pela memória de seu país?

Muito se fala sobre os processos de tombamento de patrimônio nos seus aspectos anteriores ao processo. Depois que um edifício é tombado, parece não haver um acompanhamento do bem histórico, no sentido de sua manutenção e preservação. Por que isto acontece?

Várias ações podem ser somadas nessa direção. A primeira e mais estruturante seria uma atuação no ambiente escolar, que articulasse o conhecimento do patrimônio, das tradições, da história e das artes à experimentação artística, à fruição cultural do patrimônio e à produção criativa de conhecimentos a respeito. Perde-se muito tempo com conteúdos esquemáticos em sala de aula, e pouco se aproveita dos museus, arquivos, bibliotecas e edifícios históricos como atores do processo educacional. Uma inversão que coloque as crianças e jovens na cidade e que traga a cidade, com sua arte, sua história, suas pessoas, suas tradições e inovações para a sala de aula é fundamental. Isso passa, inclusive, por aproveitar melhor os espaços escolares aos finais de semana, com exposições, cinema, debates, mostras fotográficas e teatrais, e por aproximar famílias, vizinhos, a comunidade, das escolas nesses períodos. E passa fundamentalmente por tornar lugares como era o Museu Nacional espaços de encantamento e provocação contínua das novas gerações, por meio de programas de visitação bem estruturados, pessoal qualificado para o diálogo com o público infanto-juvenil e investimentos na segurança e na qualidade expográfica e comunicacional dos acervos.

Iniciativas que incentivem a visitação familiar também são muito importantes porque, infelizmente, o brasileiro não aprendeu que o museu ou a biblioteca pública é um espaço para sua fruição cotidiana. Esperar que as pessoas percebam sozinhas, quando nunca foram estimuladas à apreciação, à experimentação, à “degustação” cultural, será desperdiçar as atuais e futuras gerações. As instituições terão de se desdobrar em estratégias criativas para motivar a pessoa trabalhadora, a pessoa aposentada, o dono de casa, enfim, o cidadão e a cidadã comum, a perceber na opção artística e

cultural que estava fora de seu radar, uma alternativa interessante para si e para sua família e amigos. E o desafio é fazer isso sem desvirtuar a função social desses equipamentos e acervos culturais. Mas se é um grande desafio, também reside aí uma oportunidade muito interessante, pois, para a imensa maioria da população, os acervos de arte e cultura são ilustres desconhecidos, capazes de instigar a curiosidade e de suscitar experiências inéditas e muito significativas. Há muitas pontes que podem ser criadas.

Nessa direção, iniciativas como o Programa Cultura é Currículo, desenvolvido há alguns anos no Estado de SP e agora reestruturado sob a forma do Programa Cultura Ensina, é uma empreitada que assegura de forma sistemática e continuada a visitação escolar de milhares de estudantes a equipamentos culturais, e também a fruição de programação artística e patrimonial nas escolas aos finais de semana, beneficiando, além do público escolar direto, seus familiares e os moradores do entorno. São realizações dessa natureza que precisam ser fomentadas, mantidas e aprimoradas ao longo das gerações, para que, de fato, seja possível a mudança cultural efetiva e tão necessária para o Brasil em relação à valorização de seu patrimônio, de suas artes e de sua história.

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“Somente teremos um projeto sério e efetivo de nação contemporânea quando abrigos de história e memória como o Mosteiro da Luz forem alçados

à prioridade das políticas públicas”

O Museu de Arte Sacra é um dos mais relevantes equipamentos culturais de São Paulo e do Brasil. Possui um acervo extremamente precioso para a nossa história e as nossas artes e habita um verdadeiro ícone arquitetônico - que é o Mosteiro da Luz - relíquia preciosa e praticamente única no país, por seu contexto e data de implantação, sua técnica construtiva, seu grande e santo realizador, seu percurso histórico e sua função histórica, social e cultural até os dias atuais. Se me permitirem uma aposta em relação ao tema da preservação patrimonial no Brasil, arrisco dizer que somente teremos um projeto sério e efetivo de nação contemporânea quando abrigos de história e memória como o Mosteiro da Luz foram alçados à prioridade das políticas públicas, traduzidas em recursos para seu restauro e permanente manutenção predial, conservação preventiva e fruição qualificada, com empenho público e privado para essa viabilização. O Estado de SP tem feito muito pela edificação, garantindo a conservação da área ocupada pelo Museu de Arte Sacra.

No entanto, é preciso ir além. Esse monumento arquitetônico tombado nas três esferas de governo - municipal, estadual e federal - precisa ser objeto de uma ação conjunta do Poder Público e da iniciativa privada que permita intensificar sua proteção, sua segurança e sua fruição pública, sem descaracterizar suas funções mistas - parte públicas, parte privadas - resguardando e divulgando para as atuais e futuras gerações o testemunho de épocas e realizações que ele representa. A trajetória de todas as tão diferentes nações do mundo permite reconhecer esse ponto em comum entre todas: sem valorização da história que lhe conforma, nenhum povo (re)define seus rumos e assume o protagonismo da escrita de seu futuro. Quanto mais o passado é desconhecido, tanto mais o futuro é incerto.

A falta de valorização das carreiras e das instituições ligadas à memória e preservação do patrimônio no Brasil se traduz nos baixos salários, sobretudo quando se leva em conta a alta exigência de qualificação e experiência, e nas poucas vagas existentes no mercado. Na verdade, é muito comum que a manutenção predial e a conservação preventiva de edificações patrimoniais sejam realizadas por leigos, sem o mínimo de orientação acerca das intervenções mais adequadas. O campo profissional para as áreas de conservação e preservação de patrimônio artístico e cultural ainda está longe de ter se consolidado em patamares competitivos no mercado de trabalho. No entanto, é válido observar que nenhuma nação do mundo que se tornou forte educacional e economicamente avançou sem cuidar de sua história e de seus bens nacionais. Assim, a perspectiva de reversão da crise no país e de uma guinada em direção ao desenvolvimento social e econômico sustentável obrigatoriamente passará pelo fomento à qualificação e a à valorização dos profissionais da área patrimonial. E ainda que muitas ações possam ser realizadas com ajuda de equipamentos e tecnologia, o campo das artes e da cultura permanece sendo um daqueles que a necessidade de recursos humanos qualificados seguirá sendo um imperativo.

Nessa direção, podemos dizer que o caminho do Brasil para o desenvolvimento passa pelo fortalecimento das carreiras de preservação patrimonial, inclusive no âmbito das tecnologias de informação e comunicação ligadas às artes e ao patrimônio e no uso intensivo dos mais modernos recursos automatizados para a segurança e para a prevenção e a contenção de riscos.

Quais são os maiores desafios, no Brasil, para o profissional que trabalha com memória e preservação do patrimônio?

Como a senhora vê o Museu de Arte Sacra de São Paulo, que divide um espaço com o Mosteiro da Luz, no cenário cultural e patrimonial da cidade de São Paulo?

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1 Doutor em História Social PUC-SP e Pesquisador do NEHSC da PUC-SP, Docente Universidade Cruzeiro do Sul.

No final do século XVII e início do século XVIII era quase uma obsessão para a população da Vila de São Paulo de Piratininga ver seu status elevado de Vila à categoria de cidade e ser sede de bispado, primeiro veio a elevação da vila ao status de cidade no ano de 1711, o bispado precisou esperar mais alguns anos para se tornar realidade, e foi com D. João V e o Papa Bento XIV, que a cidade se tornou sede de bispado no ano de 1745, seu primeiro bispo foi D. Bernardo Rodrigues Nogueira. Era ocasião para demonstração de poder e de festa, finalmente a outrora insignificante vila de São Paulo de Piratininga tinha realizado “seus sonhos”: era uma cidade e abrigava uma autoridade eclesiástica. Naqueles tempos isso era muito importante, na Europa medieval não foi diferente! Segundo Le Goff, “A cidade respeita a Igreja e com frequência se coloca a seu serviço” (Le Goff, 1997, p. 95).

Porém, não estamos na Europa e os colonos da São Paulo do século XVIII, ainda não viviam a realidade encontrada na França do século XII, nossa pobreza era extrema e a realidade cotidiana muito diferente da realidade europeia, o abade Surger, “consagra a arte gótica na construção da nova igreja da abadia de Saint-Denis. A inovação é notável e se propagará em quase toda a rede das igrejas do campo” (Le Goff, 1988, p. 114). A cidade mal conseguia recursos para se administrar. Porém a igreja exercia funções fascínio e temor pelo seu poder, e o pedido de um prelado para São Paulo foi para coibir a decadência moral do clero e da vida cristã, havia também o problema da grande extensão de terra para cada bispado

administrar. O público, o religioso e o privado, viviam entrelaçados no período colonial. Na Igreja, o rigor era extremo; o religioso foi motivo de obediência, temor e veneração por parte da população. As regras impostas pela igreja eram rígidas. As pastorais dos bispos tratavam até mesmo da vida particular de cada cidadão das dioceses. Se as regras não fossem cumpridas, poderiam dar motivos a excomunhão. A vida seguia ao toque dos sinos!

Segundo Mota, “de todo modo, São Paulo fortalecia-se na medida em que estava situada num ponto de comunicação com a Villa Imperial de Potosí, a grande cidade mineradora” (Mota, 2003, p. 247), porém as vilas e cidades do Brasil colonial não podiam ser comparados à riqueza que exalava da América Espanhola, esta diferença fica clara na observação de um padre procedente de Lima, atual Peru, Ruiz Montoya, observa que “uma cidade como o Rio de Janeiro ou São Paulo pareciam pobres, como “um canto de arrabalde” da capital do vice-reino do Peru, com judeus, muitos insubordinados e preadores de índios” (Mota, 2003, p. 247).

O Século XVIII foi de grandes transformações administrativa na vida de São Paulo, de acordo com Carlos Guilherme Mota, a província perde sua autonomia no ano de 1720 e os transtornos só começaram, pois ainda haveria a separação da capitania de Minas Gerais, no ano de 1748 novas cisões a enfraquecem ainda, Goiás e Mato Grosso se tornam territórios independentes de São Paulo. Na segunda metade do século as coisas começam a entrar nos trilhos, no ano de 1765 o rei português restaura a sua autonomia e nomeia um governador, o Morgado de Mateus,

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SÃO PAULO DO SÉCULO XVIII: O COTIDIANO MARCADO PELO BADALO DOS SINOS...

Por Edgar da Silva Gomes 1

A São Paulo do século XIX era espaço para de homens e mulheres, brancos e negros, livres, libertos e escravizados que nas suas muitas igrejas construíam o seu cotidiano que nós podemos agora melhor conhecer.

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que se instalou no colégio dos jesuítas por uma década, fazendo parte da estratégia de reforma implementada pelo marques de Pombal que havia expulsado os religiosos das possessões portuguesas. Mota responde, através do Morgado de Mateus, a uma importante pergunta sobre o que era a São Paulo do século XVIII.

A vida paulista era morna, o lazer incluía banhos no rio Tamanduateí, pouca coisa mais. Doenças como icterícia e lepra assolavam a população, e a pobreza dominava, levando Pombal a fomentar a atividade agrícola e de comércio, chegando a mandar instalar uma forja de ferro em Sorocaba. Sobre os paulistas, o Morgado escreveu que gastam tudo quanto têm e vão até o fim do mundo, se necessário. O seu coração é alto, grande e animoso, o seu juízo grosseiro e mal limado, mas de um metal muito fino (...) a capitania tinha sessenta mil habitantes, espalhados em uma cidade, dezoito vilas, nove aldeias e 38 freguesias. São Paulo contava com cerca de quatro mil almas (Mota, 2003, p. 249).

Leila Mezan nos dá uma ideia do cotidiano na colônia, “no mundo americano, durante os primeiros séculos de colonização, o espaço de sociabilidade, para a maior parte da população se concentrava fora das paredes do domicilio, fosse ele a rua ou a igreja, uma vez que os grandes momentos de interação social eram as festas religiosas” (Algranti, 1997, p. 113). Havia na colônia uma continuidade, apesar da miscigenação, uma continuidade da religiosidade ibérica, ou seja, marcada por muitas festas dedicadas ao santos protetores, santos padroeiros das igrejas que se construíam nas vilas e cidades ou que faziam parte do calendários religioso católico. Havia uma confraternização grande, onde se reuniam às vezes diversos povoados em uma única festa marcadas por missas, procissões e te-déuns. Segundo Mezan, as festas para as autoridades civis e eclesiásticas existiam, mas em menor quantidade. A igreja também era o lugar de oração que reunia cotidianamente senhores e escravos, era portanto, o lugar das diversas festas públicas e religiosas de oração à Deus e aos santos. E quais são e onde estão estas igrejas que fazia o cotidiano da população!

Capela Nossa Senhora dos Aflitos, situada no bairro da Liberdade, esta pequena capela foi erigida no ano de 1775, e inaugurada em 1779, sua construção em taipa de pilão, ficava junto ao cemitério público da cidade para abrigar os corpos de escravos, indigentes e pobres, além dos condenados à morte no Largo da Forca. O antigo cemitério era famoso por abrigar o corpo do soldado Francisco José das Chagas, condenado por sublevação, enforcado no ano de 1821 e tido como mártir pelos populares que pediram clemencia após a corda para o enforcamento arrebentar três vezes, porém, quando foi trocada pela corda de couro, finalmente o condenado sucumbiu ao martírio. O antigo largo da Forca é conhecido atualmente como Largo da Liberdade e abriga a Igreja de Santa Cruz das Almas dos Enforcados.

Igreja de Santo Antônio, situada no Largo do Patriarca, “tem uma decoração simples, na qual se destaca o retábulo principal, executado em 1780 por Bazin, e considerada a mais bela talha rococó de São Paulo” (Gomes, 2004, p. 261). Existia no local desde o ano de 1592 uma ermida de santo Antônio. No século XVII o local serviu como igreja matriz e hospedaria e de abrigo para os franciscanos até a construção do convento no Largo de São Bento. A igreja passou por uma grande reforma, em estilo eclético, no ano de 1899, quando a prefeitura demoliu sua torre e realinhou a fachada com a rua Direita.

Igrejas Paulistanas do Século XVIII

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Igreja de Nossa Senhora da Conceição de “São Gonçalo” erigida no ano de 1756 pela Irmandade do mesmo nome, que se abrigava na Igreja de Santo Antônio. Esta irmandade obteve permissão para construir uma igreja para sua devoção na administração do bispo frei Antônio da Madre de Deus. A edificação propriamente dita se deu no ano de 1757, em local próximo à Igreja Catedral de São Paulo, atrás da Praça da Sé, no largo conhecido como Praça João Mendes. Humilde e com estilo colonial, hoje esta pequena igreja é frequentada pela comunidade católica japonesa, a simplicidade da construção faz crer que desde o inicio seus frequentadores eram pessoas de poucas posses. O santo de devoção da comunidade japonesa tem uma historia intimamente relacionada com o país dos imigrantes, “São Gonçalo Garcia foi martirizado na cidade de Nagasaki, no Japão, no século XVI, crucificado com outros companheiros da Ordem Terceira de São Francisco e da Companhia de Jesus. O motivo da condenação foi estarem pregando o evangelho cristão naquele país.” (Gomes, 2004, p. 262). A forte devoção dedicada ao santo conseguiu suplantar o nome original da igreja e hoje são poucas as pessoas que fazem menção à Nossa Senhora, preferindo citar apenas o nome de São Gonçalo para se referir a igreja. Atualmente a igreja é administrada

Igreja de Santo Antônio – Praça do Patriarca https://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_Santo_Ant%C3%B4nio_(S%C3%A3o_Paulo) acesso: 22.set.2018 00h08

pelos padres jesuítas pela concessão dada à eles pelo bispo diocesano D. Lino Deodato no ano de 1893.

Igreja Nossa senhora da Consolação, erigida pelos devotos de Nossa Senhora no ano de 1799, no antigo Caminho de Pinheiros, hoje rua da Consolação, era um local bastante afastado da cidade e com poucos moradores até meados do século XIX. A época de sua ereção, o bispo diocesano era D. Mateus de Abreu Pereira, que autorizou a comunidade devota a construir igreja com provisões para celebrar missas e demais ofícios divinos. Pobre, a comunidade provavelmente recorreu ao antigo costume de esmolar em nome da santa para conseguir a quantia necessária à construção do templo. Nas Atas da Câmara Municipal de São Paulo podemos ver que no decorrer do século XIX, com a construção da Igreja, onde havia um pântano e poucas moradias, com falta de coesão urbana, com a chegada do templo, o bairro foi se desenvolvendo e adquirindo uma fisionomia mais harmoniosa que não havia nas décadas anteriores. No ano de 1892 a Igreja da Consolação foi elevada à Igreja Matriz e “sob sua responsabilidade encontravam-se as Igrejas de Santa Cecília, do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora do Monte Serrate, do bairro de Pinheiros, e a Capela de Santa Cruz, do bairro de Perdizes”. (Gomes, 2004, p. 264). A edificação da antiga igreja cedeu lugar à uma nova edificação no ano de 1907.

Igreja Senhor Bom Jesus de Matosinhos, mais conhecida como “Igreja do Brás”, tem uma tradição oral que suplanta a sua documentação histórica, “a origem da igreja foi atribuída a um negociante português, que também tem como certa a origem do bairro que leva seu sobrenome, o bairro do Brás, na região central da cidade de São Paulo. O negociante era o português José Brás, citado por alguns historiadores”. (Gomes, 2004, p. 265). O negociante português figura nas Atas da Câmara, porém nos documentos do Arquivo da Cúria Municipal de São Paulo seu nome está omitido. Outra tradição relacionada ao templo é a de que o tenente-coronel José Correia de Morais reedificou a igreja no ano de 1800 com a autorização do bispo diocesano D. Mateus de Abreu Pereira e reinaugurada no ano

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de 1803. A segunda metade do século XVIII é a data mais provável para construção da primeira capela dedicada a Senhor de Matosinhos. A região central passou por forte crescimento a partir da segunda metade do século XIX e com isso o templo foi passando por algumas reformas e ampliações a fim de melhor atender a população que crescia.

Igreja Nossa Senhora da Conceição de Santa Ifigênia, conhecida nas primeiras décadas de sua construção como “a igreja dos sinos quebrados” ficava situada na esquina das ruas da Conceição com rua Santa Ifigênia, hoje temos no local o Largo de Santa Ifigênia. Diz a lenda que seus sinos tocavam constantemente irritando os moradores dos arredores, isso resultou inclusive em uma punição aos “fabriqueiros” da igreja com multas pesadas. “Nos séculos XVIII e XIX, os sinos das igrejas ‘marcavam’ com suas badaladas o ritmo da vida cotidiana da população. Tudo era motivo para badalar os sinos nos templos da cidade: festas, batizados, mortes, casamento, inundações, incêndios e chegada de clérigos”, (Gomes, 2004, p. 267), a marcação do toque era diferente para cada situação vivida no cotidiano. O uso abusivo dos sinos causava despesas para a Câmara que deveria substituir o sino quebrado por um novo daí o “apelido” da Igreja. A gênese da capela desta igreja é como em outros casos devido à formação de uma irmandade, neste caso era a Irmandade de Santa Ifigênia e Santo Elesbão. Consta que a primeira missa rezada no local onde se erigiu a Capela se deu em janeiro de 1795. Depois de passar por várias reformas no século XIX, a primeira Capela foi demolida no

ano de 1911 para a construção do atual templo de Santa Ifigênia.

Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na São Paulo colonial, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário foi uma das primeiras devoções lusitanas a surgir, esta devoção durou um longo período sem ter uma Capela para seus fiéis, o que veio a acontecer no início do século XVIII, em data controversa, alguns pesquisadores afirmam que o ano de sua construção foi 1721, enquanto outros como Antônio Egydio Martins citam a data de 1746. A Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos reunia os negros católicos da pequena e pobre cidade de São Paulo que reproduziam as características dos festejos das comunidades negra no Norte e Nordeste, como os congos e cucumbis onde eram eleitos os “reis e rainhas” da festa, “a igreja foi construída e permaneceu por muitos anos no Largo do Rosário, que ficava na confluência da rua São Bento com a avenida São João e Praça Antônio Prado. No ano de 1903 foi demolida e reedificada no Largo de Paissandu” (Gomes, 2004, p. 268).

Concluindo, as Igrejas e capelas do período colonial, como vimos acima, muitas vezes foram remodeladas e reformadas para se adaptarem a realidade da cidade que crescia e se “movimentava”. Esses templos fizeram parte do cotidiano de homens e mulheres, brancos e negros, livres, libertos e escravizados, que choraram a morte de seus entes queridos e em outras ocasiões festejavam casamentos, batizados e as festas de seus padroeiros numa polifonia onde os sentimentos se misturavam com o badalar dos sinos!

GOMES, Edgar da Silva. Cotidiano e Igrejas, in, Ney de Souza (Org.) Catolicismo em São Paulo. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 246-269.

GOMES, Edgar da Silva. São Paulo de Vila a Cidade, in, Yvone D. Avelino et.al. (Orgs.). Olhares Cruzados: Cidade, História, Arte e Mídia. Curitiba: CRV, 2011, p. 53-68.

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LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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BIBLIOGRAFIA

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No Império Romano, a morte por crucificação era uma punição ultrajante e reservada somente a não romanos. A penalidade aplicada a Jesus teria a finalidade não somente de humilhá-lo como ser humano, mas como líder de sua comunidade. Na Protoigreja cristã, contudo, esse enxovalhamento público do Messias não foi explicitado de forma visual.

Por mais de quinhentos anos, para a pintura e a escultura, tanto a paixão como a morte de Cristo não eram enfatizadas, mas suas pregações e ações foram temas de representações pictóricas. A tortura, a crucificação e a morte foram evitadas, já que humilhantes; salientava-se sua trajetória no mundo, sua ressurreição e posterior ascensão aos céus. Desse período, há pinturas murais e mosaicos nos quais Jesus está ensinando, curando e operando milagres.

Uma das primeiras imagens que se aproxima, figurativamente, de uma cruz é o cristograma, formado pela sobreposição das duas primeiras letras da palavra grega Christos/ ΧΡΙΣΤΟΣ, Chi-Ro, XP , . Foi muito usada na Protoigreja e incorporada aos mais variados suportes, como urnas e monumentos funerários, bem como em mosaicos tardo-romanos.

Na Ravena do século V, em mosaicoda via crucis, mostra-se Jesus de maneira imperial,

281 Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Santo Amaro, integrante do grupo de pesquisa Condesim-Fotós/DGP-CAPES, especialista em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado, bacharel em Tradução pela Universität Mainz, Alemanha.

trajando vestes púrpuras de barrado dourado e ostentando uma auréola cruciforme ricamente adornada, como se fora uma joia, uma coroa. Seu rosto não apresenta qualquer traço da tortura a que estaria sendo submetido e seu andar é digno, apesar de se dirigir ao Calvário; e o mais importante: Ele não carrega sua cruz, quem o faz é Simão. Uma vez mais, não é a humilhação, a tortura e o sofrimento que o artista e a Igreja desejam ressaltar, e sim o Messias e sua trajetória nesse mundo.

Após a queda do Império Romano do Ocidente, com a decadência das cidades e a ruralização da sociedade, surgem os mosteiros e, com eles, os copistas e iluministas, que passam a reproduzir textos religiosos com ilustrações. Nestas, encontramos as primeiras representações do Redentor na cruz.Apesar de crucificado, Ele é mostrado de olhos abertos, ressuscitado; traja o colóbio2 e quase não se nota sangue–seu rosto não está marcado pela dor; ao contrário, tem expressão viva. Mais uma vez, a ideia do pintor não era dar ênfase à morte, mas à ressurreição, o mistério que dá esperança ao fiel e sentido ao Cristianismo.

Por volta do ano 1000, surgem as primeiras representações de Jesus morto na cruz, como no crucifixo de Lotário. Sua cabeça pende para a direita, seus olhos estão cerrados, seu corpo desfalecido. Aparentemente, isto é uma novidade depois de quase mil anos de Cristianismo: a representação da morte e não da ressurreição.

Nesse crucifixo, Jesus está precariamente coberto com um tecido ao redor do quadril, operizônio, que deixa muito mais à mostra do que encoberto. Antes, o Salvador era mostrado portando roupas senatoriais e reais, cobrindo a maior parte de seu corpo; à mostra ficavam quase

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O CRUCIFIXO DE CLÁUDIO PASTRO

Por Christiane Meier 1

Por volta do ano 1.000, surgiram os primeiros crucifixos com o Cristo morto. Antes disso, o Cristo aparecia apenas ressuscitado. A Cruz de Pastro, que aqui examinamos, apresenta o Messias, a uma só vez, morto e ressuscitado.

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292 Túnica tardo-romana com ou sem mangas.

sempre só rosto, mãos e pés. Com o perizônio, temos a representação figurativa de mais uma etapa da Sua humilhação: o despojamento das vestes e o uso de um simples tecido ao redor do quadril. Esta é a vestimenta com a qual Ele será, normalmente, representado na cruz até a contemporaneidade.

São Francisco tinha grande devoção pelo crucifixo de São Damião, obra do século XII, que retorna ao Cristo ressuscitado, com as suas cinco chagas, mas sem sinal de sangue ou de sofrimento: uma imagem que suscita à paz interior e convida o fiel a meditar e orar.

Mas o século XIV viu a peste negra alastrar-se pela Europa Ocidental e dizimar quase a metade da população. A sociedade, mais uma vez, entra em colapso e se desespera –e o artista espelha esse Zeitgeist no Cristo doloroso. Essa tipologia se espalha pelo Ocidente, culminando no altar de Isenheim, que, na sua parte central, mostra a cena do Calvário com um Cristo contorcido pela dor e coberto de feridas. Desta forma, o crente via no sofrimento do Senhoro seu próprio e sentia-se acolhido por Deus, da mesma forma que Ele acolhera o Filho amado.

No século XVI, a Reforma Protestante retoma a questão da Ressurreição como ponto central da fé cristã e adota a cruz vazia, sem o Cristo, já que Ele está no Céu e não mais lá. A Igreja Católica reage e, após amplos debates no Concílio de Trento (1545-1563), publica as regras da Contrarreforma, ratificando o uso das imagens, seja por meio de pinturas ou esculturas. Toda forma de arte deveria ser utilizada a favor da catequização dos povos recém-conquistados por portugueses e espanhóis nas Américas, África e Ásia.

O Barroco, com seu pathos, com sua teatralidade, mais atrativo para pagãos que a arte simbólica da Idade Média, será amplamente utilizado pelos artistas.No Brasil, os jesuítas lançarão mão de toda sorte de pinturas e esculturas, peças de teatro e músicas para a conversão dos povos locais.

Na passagem do século XVIII para o XIX, surge, em Minas Gerais, o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, autor das peças que integram as capelas da via crucis de Bom Jesus de Matozinhos, declarado patrimônio da

humanidade pela Unesco.Sua obra é barroca e carrega na expressão de dor e de sofrimento, apreciada à época.

Nos séculos XIX e XX, a maioria dos pintores e escultores seguirá o fluxo da arte religiosa católica em voga, produzindo nos mais variados estilos da época, até que, em 1965, o Concílio Vaticano II recomende um retorno aos cânones da Protoigreja cristã. Antes mesmo das deliberações do Concílio, desde o início do século XX, alguns arquitetos e artistas sacros já se pautavam por essa matriz. A Basílica de Nossa Senhora Aparecida é um exemplo, já que sua concepção é da década de 1940 e sua construção iniciada em meados de 1950, tendo uma arquitetura que dialoga com as primeiras basílicas cristãs de Milão e Ravena.

No final do século XX, a construção da Basílica está completa, mas sem ornamentação interior, que começa a ser planejada. Na mesma época, desponta o artista sacro paulistano Cláudio Pastro (1948-2016), um dos mais importantes da contemporaneidade e que trabalha de acordo com os preceitos do Concílio. Ele mesmo se declarava “um homem do Concílio Ecumênico Vaticano II e de até antes” (2013, p.6). A ele caberá a tarefa de planejar e executar a decoração da maior igreja mariana do mundo, a Basílica de Nossa Senhora Aparecida.

Pastro trabalha não somente no Brasil, mas na América Latina e na Europa, tendo, pouco antes de seu desaparecimento, inaugurado uma estátua de Nossa Senhora Aparecida nos jardins do Vaticano. Contudo, sua obra mais extensa e complexa é, sem dúvida, a Basílica de Aparecida, onde, sobre o altar mor, coloca uma cruz de aço suspensa, com um Cristo morto estampado.

O Museu de Arte Sacra de São Paulo possui uma cruz similar, mas menor em dimensão; igualmente, uma escultura em chapa de aço, de cor escura, acastanhada, com partes vazadas, como se tivesse sido carimbada. Ela mede 120cm de altura por 106cm de largura e 0,03 cm de espessura; tem, portanto, o formato de cruz latina. Dada a pouca profundidade da chapa, torna-se uma peça bidimensional na tridimensionalidade, isto é, o contorno de Jesus é bidimensional, apesar de estar estampado

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em um suporte de três dimensões. Não é uma imagem em negativo, mas um positivo, dado que cortada e retirada.

Vê-se um homem magro, com os ossos da caixa torácica bem demarcados, braços abertos na altura dos ombros, mãos espalmadas e dedos esticados; pernas estiradas e pés egípcios3 unidos. A parte superior do corpo está nua, já a inferior apresenta um tecido enrolado à cintura, que vai até os joelhos, um perizônio.

Notamos cinco ferimentos: um em cada mão e pé e um na altura da primeira costela, do lado direito. Como a figura é alongada, sua cabeça parece pequena em comparação ao corpo; os cabelos são longos, tem barba e o crânio pende para frente e à direita, tendo a seu redor um círculo, uma auréola. A representação desse homem é estilizada – não se trata de um em especial, podendo tratar-se de qualquer homem. É possível fazer aqui uma ponte com a estética medieval: Pastro fez uma releitura de crucifixos do tipo de Lotário, mencionado anteriormente.

Pela tradição iconológica da Igreja cristã, trata-se de Jesus crucificado, o Messias que morreu na cruz e ressuscitou no terceiro dia; e, se ressuscitou, já não está lá, como de fato notamos, se olharmos atentamente. O artista o retirou a laser, como se retira partes de massa com uma forma, deixando somente o contorno de algo que esteve ali presente um dia: mostra o contorno de Jesus que esteve na cruz e que ressuscitou e está no Céu, sentado à direita do Pai.

Como o artista mesmo afirmara, a “arte sacra é sinal indicativo de outra presença, mas não a coisa em si” (Pastro, 2013, p.316). Portanto, estamos diante de uma evocação do que aconteceu há dois mil anos, quando o Redentor morreu, foi retirado da cruz e ressuscitou ao terceiro dia. Miramos um crucifixo onde vemos um Cristo, mas que já não está lá, que foi removido: é a uma só vez vazio e repleto com a

morte e a ressurreição.A imagem sacra, como a cruz de Pastro, dá

ao crente o sentimento da presença mística do representado, na sua ausência física; para o fiel, esta não retrata o mundo sensível, mas tem seu próprio significado e possui um caráter inacessível e, até certo ponto, invisível, ao que autores chamam de Teologia da Presença (Reis, 2010).Católicos revivem-na a cada Eucaristia, quando o pão/a hóstia e o vinho se transformam em corpo e sangue de Cristo e, neste momento, Ele está presente no altar.Conhecem, igualmente, a simbologia da cadeira vazia do celebrante e sabem que Cristo está presente por meio desta, como Pastroesclarece: “Sedia ou cátedra – A cadeira do padre ou bispo que preside a liturgia e representa Cristo, que estaria presente de maneira invisível” (apudSartorelli, 2013, p.122).

Diante do crucifixo de Pastro, estamos perante o mesmo fenômeno: uma cruz com a presença de um Cristo ausente, arrancado da chapa de aço, ressuscitado. Uma cruz que, apesar de ser de um material frio e pesado, por causa de sua composição (aço corten) e de seu tratamento químico, adquire cor acastanhada, que lhe confere um aspecto agradável, “quente”. O corte a laser que extraiu a figura de Jesus, além de apresentar um traço preciso e contemporâneo, permite fazer incisões que deixam pouco material entre um espaço vazio e outro. O vazado da figura torna-se um rendilhado, fazendo a obra aparentar leveza.

Desta forma, Pastro representa o que está nas Escrituras, mas que, apesar de crente, não entende exatamente como ocorreu. Por ser um homem de fé e um artista sacro, buscauma forma de concretizar, pictoricamente, essa crença, esse pensamento metafísico: ele nos apresenta um Cristo que, de fato, foi crucificado e morto, mas que ressuscitou e não está mais na cruz para a qual olhamos.

PASTRO, C. Imagens do invisível na arte sacra de Cláudio Pastro. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

REIS, U. O Ícone: teologia da presença. 15/02/2010. Disponível em:www.ateliersantacruz.blogspot.com. Acesso em: 04 abr 2018.

SARTORELLI, C. A. O espaço sagrado e religioso na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Almeida Casa Editorial, 2013.

BIBLIOGRAFIA

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VIEIRA, AGORA

Por Alcir Pécora 1

Por que ler hoje em dia os sermões de Antônio Vieira, produzidos há séculos, e como lê-los e dessa leitura construir prazer são questões para as quais este artigo promove interessantes reflexões.

Trabalhar em classe com uma obra como os “Sermões”, do padre jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), não é tarefa fácil, seja no ensino médio, seja mesmo na universidade. Não seria de se esperar facilidade já por ser produzida no século XVII, um tempo não apenas distante, mas ordenado por um regime profundamente diverso do atual, genericamente burguês, capitalista, democrático e laico. Mas dificulta ainda mais o estudo dos sermões a imagem distorcida que usualmente se tem do gênero da oratória sacra, e a sua necessária associação a práticas clericais. A ideia mais comum é que se trata de um assunto de interesse exclusivamente religioso, ou moral, com escassa atualidade e interesse para quem não participe previamente de sua crença.

Nada mais enganoso, porém: a obra de Vieira – e, em particular os seus sermões, que são a parte mais importante dela – apenas tem ampliado, ao longo do tempo, o conjunto dos que se interessam por conhecê-la e por estudá-la. E em se tratando de prazer da leitura, um sermão de Vieira admite uma fruição tão intensa quanto qualquer obra de arte de primeiro nível. Justamente por isso, o primeiro encargo do professor é discutir essas imagens correntes, porém equivocadas, e reajustá-las de maneira mais adequada à obra real de Vieira.

É correto dizer que o sermão seiscentista constitui um gênero que existe no âmbito das práticas ocidentais cristãs e, em especial, como parte da liturgia da missa, e isso não pode nem deve ser ignorado. Mais especificamente, no caso dos sermões de Vieira, deve-se considerar ainda que a sua produção se insere 1 Crítico literário e professor livre-docente de literatura na Unicamp - Universidade Estadual de Campinas.

A importância de ler Antônio Vieira hoje

no processo conhecido como Contrarreforma ou Reforma Católica, quando a Igreja de Roma, com base nas resoluções do Concílio de Trento, reage de maneira sistemática e organizada contra o avanço das religiões “protestantes” no mundo. E o faz, em primeiro lugar, através da valorização, regulamentação e expansão da prática da pregação. Mas, ainda assim, certamente não é pela influência do pensamento exclusivamente religioso ou moral que os sermões do padre Vieira são celebrados ainda hoje, em vários países, mesmo os de tradição religiosa majoritária protestante, como Estados Unidos, Holanda e Alemanha.

É também preciso considerar que o sermão, especialmente o pregado nos moldes propostos pela Companhia de Jesus, como é o de Vieira, jamais isola moral ou religião de outros aspectos da vida prática, além de articulá-las

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necessariamente com a ideia de política da Igreja e do Estado católico. Nesse modelo, não há contradição necessária entre oratória sacra e prática política, bem ao contrário. Como dizia Vieira, “não há fim sem meios”, isto é, os “fins” da Providência divina fornecem também os “meios” de ação política dos cristãos na história, os quais, por sua vez, devem auxiliar a conduzir os homens a seu destino místico, transcendental. Em termos morais, essa forma de pensamento teológico-político torna especialmente relevante a disciplina da “casuística”, cuja investigação sobre a natureza e as condições das virtudes entre os homens leva necessariamente em conta as circunstâncias concretas em que se dão as escolhas do arbítrio e os escrúpulos da consciência humana.

Com base nessas formulações iniciais, pode-se entender que os sermões de Vieira são realmente importantes e únicos quando considerados no âmbito de uma compreensão complexa da cultura do seu tempo, o que inclui

as suas diversas práticas políticas, religiosas e letradas. A rigor, sequer é possível falar em “cultura” ou “literatura” em Portugal, no século XVII, sem que se leia e compreenda igualmente a grande produção sermonária ali gestada, da qual a de Vieira é seguramente a mais importante.

Ler Vieira, nesses termos, é ter acesso ao autor mais celebrado, em língua portuguesa, de um dos gêneros mais prestigiosos da vida cultural do tempo. Prova-o, por exemplo, o fato de que os seus sermões existem, da forma como estão publicados, graças a uma ordem expressa dada pelo Geral dos jesuítas, Gianpaolo Oliva, um dos homens mais cultos da corte papal, para que Vieira os preparasse para impressão, pois acreditava que eles significavam um triunfo das letras católicas. A qualidade incomum da escrita dos sermões não apenas chamou a atenção do Geral, como a de outros grandes da época, como a Rainha Cristina da Suécia, senhora de um dos salões mais célebres de Roma, frequentado pelos maiores senhores, artistas e intelectuais daquela que posteriormente foi chamada de “Roma Barroca”. Mas sempre convém ter em mente que pensar em “letras”, naquele tempo, não implicava separar o “literário” do que se entendia como “fé” ou “política”. Ao contrário, pode-se dizer que os sermões de Vieira faziam parte do melhor arsenal imagético da reforma católica contra a iconoclastia reformada.

O uso engenhoso das palavras em um dos maiores artistas da língua portuguesa

Para falar em termos específicos, o aspecto mais marcante dos sermões de Vieira é o uso “engenhoso” que faz das palavras, procurando, a cada passo, produzir relações surpreendentes entre os termos dos seus conceitos ou argumentos – ou, de outra maneira, “estabelecer correspondências entre objetos extremos”, como preceituavam as retóricas “agudas” do período –, sem nunca deixar, entretanto, de associá-los a comentários bíblicos e teológico-políticos.

Tal elocução aguda ou engenhosa, por sua vez, em Vieira, se associa a um vasto conjunto de temas, distribuídos num intervalo de tempo de mais de 60 anos de prática sermonária. Dentre

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eles, os mais recorrentes são os conselhos para a política cristã do Império português no mundo, cuja situação julgava precária tendo em vista a sua guerra simultânea contra Castela e Holanda, mas, ao mesmo tempo, altamente privilegiada, enquanto objeto de uma particular eleição divina; a defesa da política jesuítica para as missões das províncias do Brasil, que basicamente pretendia alcançar autonomia de jurisdição para a Companhia de Jesus tratar dos negócios indígenas, sem ingerência dos moradores e mesmo do governo local.

Fora dos sermões, em sua correspondência ou em escritos ditos “proféticos”, os temas vieirianos mais importantes são a “reforma dos estilos” da Inquisição portuguesa, de modo que esta fosse obrigada a identificar acusador e crime, e ainda fosse impedida de efetuar o confisco dos bens antes do fim do processo e a comprovação da culpa do acusado; a conciliação e conversão dos judeus ao catolicismo, que julgava iminente, seguido de um longo período de paz no mundo, no qual se instalaria, ainda na vida terrena, um reino universal de Cristo.

Outro aspecto particular dos sermões de Vieira é que são regidos por uma concepção “sacramental” de sua prática. Vieira os entendia essencialmente como um meio discursivo para atualizar a presença de Deus entre os fiéis. Desse ponto de vista, o sermão é análogo à comunhão eucarística: receber a palavra que comenta o verbo divino é estar exposto à eloquência radical de sua presença verdadeira. A expressão oratória sacra é, aqui, portanto, literal: a palavra que interpreta as Escrituras é também o meio fundamental de sua presentificação entre os homens.

A operação é complexa e tem mão dupla: se os sermões são meios de consagração da presença de Deus entre os homens, os fatos da história, para serem corretamente interpretados, têm de ser considerados à luz dos planos de Deus para os homens. Este segundo aspecto diz respeito ao que Vieira chamava de “fazer doutrina da ocasião”, isto é, reconhecer as circunstâncias dos acontecimentos como parte da orientação providencial do mundo, que o encaminha para a finalidade cristã pela qual foi criado.

Pode-se dizer mesmo que essa articulação íntima entre Deus e os eventos terrenos, segundo o modo de pregar de Vieira, prevê sempre uma forma de sustentação da Monarquia portuguesa, mesmo nos transes aparentemente mais insuperáveis de sua história. Cabe ao pregador, que é também conselheiro político, mais do que ao político propriamente dito, dispor a compreensão dos homens de modo a favorecer que isso ocorra, o que também significa impedir que haja contradição entre a razão exclusivamente “de Estado” e os preceitos da Igreja.

Em Vieira, também se pode dizer que tudo que é humano é igualmente ocasião divina para efetuação de uma espécie de “economia salvífica”, isto é, de dar andamento à operação providencial de redenção do homem para a bem-aventurança, “causa final” da criação. Nessa chave de leitura, o horizonte metafísico ou místico último de seus sermões é tornar o homem uma espécie de “coautor” da Providência, o que também significa afirmar que Deus existe como presença latente em toda ação humana que o confirma.

Assim, para resumir tudo numa frase, a principal riqueza dos sermões do Padre Antônio Vieira é a extraordinária capacidade que demonstra em conjugar domínio de língua, retórica aguda ou engenhosa, erudição teológica e ocasião política. Nisto, é único. É a grande referência da eloquência sacra da Igreja em língua portuguesa em todos os tempos. A considerar outras línguas europeias, no século XVII, nada deixa a desejar aos melhores oradores do tempo, como o francês Jacques-Bénigne Bossuet, o inglês John Donne, o italiano Paolo Segneri ou o espanhol Hortensio Paravicino. Vieira, agora, continua sendo o grande Vieira, que Fernando Pessoa considerava o maior artista da língua portuguesa.

“Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em

que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos”.

(Pe. Antonio Vieira)

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1 Especialista em História do Brasil, doutora em História Social (USP) com pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na França. Ganhadora do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

A magia renasce vigorosa no século XIX

Dezembro de 1764, e o som do gongo de Otranto invadiu a literatura européia. O quarto conde de Orford, filho do riquíssimo e controverso ministro Robert Walpole, fundava então um movimento que chegou até nós. Poeta de cemitérios, adepto da melancolia tumular, Horace Walpole abriu a portas de um universo habitado por criaturas saídas da noite dos tempos. Do espaço de pulsões e sonhos, da sua e de outras penas como as de William Beckford ou Charles Maturin nasceram monstros, espíritos, almas perdidas, mortos-vivos e Satã em pessoa. Seres que sobrevoaram o Atlântico.

E quem se interessou pelo assunto no Brasil? Os intelectuais e estudantes. A boêmia literária que nasceu graças ao surgimento das faculdades de Direito, animou os universitários. Eles viviam livremente em repúblicas, longe da família e mergulhados em muita literatura romântica e depois, gótica. Inicialmente, o poeta e lorde Byron era a grande inspiração.

No Rio de Janeiro, a tradução de seu poema Lara veio na pena de Tibúrcio Antonio Craveiro que viveu na Corte entre 1825 e 1843. Por trás

da aparência respeitável de um professor do Colégio Pedro II, se dissimulava uma vida de orgias e bizarrices. Sua casa era decorada com aparelhos de tortura, múmias e gravuras macabras. As paredes, borrifadas de sangue. A iluminação era garantida por velas pretas e vermelhas, como as que os condenados do Santo Ofício empunhavam a caminho da fogueira. Ele escrevia sobre uma lousa de mármore negro, que, diziam, fora retirada da sepultura de uma donzela.

Outro byroniano foi o conde Tierry Von Hogendorp, ex-general das tropas napoleônicas que se refugiou em Cosme Velho ao pé do Corcovado, no Rio de Janeiro. Dormia num quarto de paredes negras, com caveiras e tíbias cruzadas, esqueletos em branco representando a dança macabra: aquela em que a morte puxava pela mão um cordão de condenados. Sua cama era um ataúde.

Ao longo do século XIX, por razões de higiene, os campos santos iriam se afastar dos altares e se transformar em jardins, em cidades, em florestas com ciprestes, enfim, em dispositivos cênicos onde atuavam sonhos e dramas. Para

Rio de Janeiro, 1889. LAGO, Pedro Correa do. Coleção Princesa Isabel - Fotografia do século XIX. Capivara, 2008.

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O SOBRENATURAL NO RIO DE JANEIRO

Por Mary Del Priore 1

O gosto pelo sobrenatural é uma característica na construção da arte e da cultura brasileira. Ele ganha particular importância na virada dos séculos XIX e XX, no Rio de Janeiro, com modismos importados de Paris.

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Machado de Assis e o espiritismoevitar a corrupção dos ares, a paisagem era dissimulada por plantas e flores. As necrópoles se pintavam de verde. Percorriam-se suas áleas para visitar túmulos conhecidos. Louvava-se a calma serena do lugar. Nele se observava a lua nascer, escutava-se o silêncio. Não havia a preocupação em dissimular a morte. Ela era cantada em prosa e verso. A morte era romântica e sensual. Louvava-se a passagem do visível ao invisível, o limite entre dois mundos. A lembrança dos desaparecidos era substituída pela sensação de sua presença. Pela impressão de sua permanência. Os afetos se prolongavam graças aqueles que falavam com os mortos.

A moda? Apreciar a beleza do horror, considerado uma fonte de sensações. Ou, como resumia Edmund Burke , tudo o que suscitasse idéias de dor e perigo, tudo o que remetesse a noção de horror seria sublime, ou seja, capaz de produzir fortes emoções. O elo misterioso entre prazer e dor ganhou força. Beleza, morte e deleite se misturavam na pena de autores lidos pelos brasileiros.

A tendência prosperou. Em abril de 1859: na capital do Império, a manchete da Revista Popular chamava a atenção para um artigo onde se discorria sobre o “amor do maravilhoso”, a “curiosidade sempre ávida de mistérios, apaixonada pelo desconhecido”. Segundo o articulista, os anos, não modificaram esse gosto. “Tão poderoso e vivaz é o instinto de credulidade que se não apelamos para o raciocínio, admitimos os contos mais ridículos e extravagantes” - sublinhava.

Sim, as pessoas acreditavam em fatos aparentemente fantásticos. Mas, não deviam. Afinal, eles eram construídos pela imaginação humana. O bom senso devia prevalecer, sempre. Porém... Porém fatos recentes tinham prendido a atenção dos homens mais esclarecidos:

“Passava a feitiçaria por morta, bem morta; longe disso está viva como nunca” – admirava-se o articulista. “crentes ou incrédulos, todos nos vemos obrigados a contar com esta potência misteriosa e a prestar-lhe alguma atenção [...] É, pois, hoje um fato consumado: a magia renasce vigorosa no século XIX” – concluía.

Machado de Assis, leitor dos autores franceses, não fez por menos. Em seus Contos da Meia Noite, plantou um poeta cujas estrofes intituladas “À beira de um túmulo” falavam de morte e vida, flores e vermes, amores e ódios, tudo num caldo de “oito ciprestes, vinte lágrimas e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério”.

No conto “O espelho”, por exemplo, ele sintetizou o medo do escuro recorrendo aos elementos do que se considerava o sublime:

“E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou larga. Tic-tac,tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém, em parte nenhuma [...] Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando...”.

Mas, na falta de castelos habitados por fantasmas, de cadáveres góticos e espectros alucinantes, Machado de Assis chocou-se contra outras criaturas noturnas, outros mediadores entre a vida e a morte: os espíritos. Isso, pois, à época, os textos de Alain Kardec invadiram as livrarias, ganhando adeptos entre intelectuais, médicos e advogados. As revistas e reuniões “espiritistas” se multiplicavam em todo o Império. A Livraria Garnier, tão freqüentada pelo autor, exibia na vitrina O Livro dos Espíritos. E, enquanto os céticos como Machado se

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versão oriental, na qual homens encarnavam em animais:

“ocorreu-lhe que os dois Quincas Borba podiam ser a mesma criatura, por efeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus pecados que a vigiar o dono. Foi a preta de São João d´El Rei que lhe meteu, em criança, essa idéia de transmigração. Dizia ela que a alma cheia de pecados ia para o corpo de um bruto: chegou a jurar que conhecera um escrivão que acabou feito gambá...”

E por fim, no conto Dona Benedita, sobre uma viúva que tinha dúvidas em recasar-se, descreveu uma aparição muito semelhante as que se viam nas fotografias de ectoplasmas:

“Uma noite, volvendo D. Benedita este problema à janela da casa de Botafogo, para onde se mudara desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente, uma claridade opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro à janela. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos porque morriam todos no ar. A figura veio até o peitoril da janela de D. Benedita e de um gesto sonolento, com uma voz de criança disse-lhe estas palavras sem sentido: - Casa...não casarás...se casas...casarás...não casarás...e casas...casando....

D. Bendita ficou aterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à figura quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita”.

Segundo um estudioso, a violência de Machado em relação ao espiritismo crescia na medida direta do sincretismo da doutrina de Kardec com práticas mágicas de origem negra. O consumo de chás, poções a base de ervas e produtos de origem animal nos rituais comprometia a saúde mental da população e no seu entender só podia terminar com uma solução: a força.

“Eu, legislador, mandaria fechar todas as igrejas dessa religião, pegava dos correligionários e fazia-os purgar espiritualmente de todas as suas

fechavam em copas, o povo lia. E lia muito. A edição se esgotou. O sucesso era total.

Tempos estranhos esses, em que as ciências tinham introduzido tantas conquistas: a eletricidade, a química, a ótica. Mas onde o desejo das pessoas era um só: abordar um universo maravilhoso, onde tempo e espaço não existissem. Onde se pudesse ver e falar com os espíritos e fantasmas. O prazer que se tinha nas “histórias de espíritos”, diziam os científicos, vinha de um resto de dúvida sobre sua existência. Mas, sobretudo, de um secreto desejo de que fossem verdadeiras. E tanto mais o futuro parecia sombrio, maior o número dos crédulos ou crentes que buscavam esclarecer suas dúvidas e buscar coragem nas comunicações com o Outro lado.

Reação? Talvez inspirado em Scott e Austen ou simples preconceito, a de Machado de Assis não tardou. Além de enriquecer a língua portuguesa com a palavra “mediunidade”, o espiritismo seria uma fábrica de idiotas e alienados – ele insistia. O escritor dividia a vida útil do crente espírita em duas fases: na primeira ele conversava com os espíritos ainda em seu juízo perfeito. Na segunda, que começava quatro ou cinco anos depois, se tornava vítima de demência pura. Doença, aliás, observável somente por alienistas, depois de cuidadoso exame. E então era o caso de chamar a “polícia e o carro” que transportava loucos.

O conto “Uma visita de Alcebíades” foi uma sátira mordaz ao espiritismo. Nele, o personagem Álvares, um desembargador é o protagonista de um encontro com o espírito do “grego autêntico, trajado à moda antiga”. Machado não zombou só desta vez e continuou a cutucar. No capítulo “torrente de loucos” do seu famoso O alienista, o personagem Doutor Simão Bacamarte diz ter construído o hospício de Casa Verde para estudar a loucura e seus diversos casos “por caridade”. E citando são Paulo: “Se eu conhecer quanto se pode conhecer e não tiver caridade nada sou”. Não era a caridade a base do espiritismo? Sutil galhofa. No Quincas Borba ele a repete. Não há menção direta ao espiritismo, mas antes de enlouquecer Rubião se lembra de uma idéia de infância: a de metempsicose, na sua

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doutrinas; depois dava-lhes uma aposentadoria razoável”.

Fadas, espíritos, demônios, o sobrenatural seria verdade ou não? Mas nos anos em que Machado publicava seus contos, os espíritas tinham se fortalecido. As comunicações com o Outro lado se multiplicavam por meio de sessões de mesa, cartomantes, videntes, peças de teatro que colocavam em cena diabos e fadas, espetáculos de mágicas importados dos Estados Unidos, terreiros onde proliferam rituais africanos. Enfim, o país mergulhava na insegurança provocada pelo fim de um Império. Era preciso crer no inacreditável.

João do Rio e o exorcismo

E de fato, fluído, mágica, fadas ou diabos, cada um confiasse no que bem quisesse. Os exorcistas que o dissessem. Sim, pois nas ruas no Rio de Janeiro se cruzavam possessas ou endemoninhadas. Criaturas gentis e dóceis caiam em ataques que as fazia cuspir uma espessa saliva. Os médicos as qualificavam como histéricas. João do Rio assistiu: uma mulher que ficava suspensa, dois palmos acima do chão com os braços em cruz, mastigando insultos ao Criador. E outra que passava horas, enrodilhada com soluços secos, ameaçando com socos os crucifixos que lhes eram apresentados.

O remédio? Um exorcismo feito por um homem “velho, puro e forte” além de destituído das vaidades do mundo. Contra os falsos exorcistas, havia os jesuítas, alguns lazaristas e o superior da Ordem dos Capuchos. Frei Piazza era o mais conhecido: “o grande combatente

João do Rio. Revista FON-FON! semanário illustrado. Rio de Janeiro, p. 11. 13 fev. 1909

dos diabos”. Ele oficiava no singelo convento no alto do Castelo, entre a roupa que as lavadeiras punham a secar e o chamado cristalino dos sinos. Diferentemente do renomado Frei Luís de Salvador que só lidava com demônios europeus e mandava um sacerdote angolano para lidar com demônios africanos, Frei Piazza oficiava sem limites culturais.

A questão era: em pleno amanhecer do século XX, os diabos existiam? Resposta: sim. Na tenda de feiticeiros que se tornou a capital da Corte, não faltavam missas negras, satanistas, espectros que caminhavam ao lado das pessoas e magos amigos de Belzebu. A prova é que, na capital do Império, fatos estranhos deram de acontecer: sereias, faunos e tritões apareciam, aqui e ali. O João catraieiro, no Cais dos Mineiros, vira emergir do mar uma dama de vermelho e homens de barba verde que riam e assobiavam. Histéricas, não curadas pelos métodos do neurologista francês Dr. Charcot, subiam o morro, debaixo de mantilhas para esconder o rosto. Iam buscar tratamento com frei Piazza que exorcizava das quatro da manhã às quatro da tarde, uma vez por semana. Só em 1903, foram mais de 300 demoníacas que Satã arrastara para as profundezas do inferno.

“- O exorcismo é público? Perguntou o jornalista

João do Rio.- Nem sempre. O Diabo pela boca dos

possessos conta a vida de todos, injuria os presentes. Não é conveniente”.

O exorcismo se fazia de acordo com regras estabelecidas num livro de marroquim vermelho: o Rituale. Lia-se em voz alta o ofício de expulsão do “ministro indigno de Deus”, seguido de passagens dos evangelhos segundo São João, São Marcos, São Lucas. Nesse ínterim, se fazia várias vezes o sinal da cruz no possesso envolto na estola clerical.

“- Eu te exorcizo, imundo espírito, fantasma legião em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, ordeno-te que abandones esta criatura feita por Deus com terra ... Adjuro-te, serpente antiga, em nome dos julgamentos dos vivos e em nome dos mortos, em nome do teu Criador e do Criador dos mundos, daquele que tem o poder de te enviar ao Inferno...Obedece a Deus diante

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do qual se ajoelham os homens... Sai agora, sai sedutor. O deserto é tua morada e a serpente a tua habitação, etc..”.

Porque o Diabo amava a imundície, encontrava suas vítimas nas “classes baixas, sem limpeza”. Graças à sua presença, as pessoas se tornavam sábias, de repente. Falavam línguas estrangeiras. Era fácil para o exorcista identificá-las. Enquanto isso, a endemoninhada praguejava, batia a cabeça, coleava como cobra, cuspia até cair exausta e livre do Príncipe das Trevas. A ordem era de que fosse para casa anunciar as boas coisas que Deus fizera por ela.

Havia quem xingasse a Virgem Maria com sonoros palavrões e quem desfiasse um rosário de nomes ocultistas e simbólicos. Os escritores transformavam Belzebu em personagem de novelas. Homens e mulheres chamavam seu nome para obter amor, riqueza e poder. “Satanás faz milagres a troca de almas”, admoestava João do Rio. E ainda animava sabás, festas noturnas com “fúrias desnudas e sob a ventania do cio”, no pacato Engenho Novo. Seus ajudantes eram espíritos de mortos, ou fantasmas dos que tiveram morte violenta.

O problema, segundo Saião era os “malefícios satânicos estarem inundados de azeite-de-dendê e de ervas de caboclos”. A magia

“estava decaída eivada de costumes africanos e misturadas de pajés”! Não se aplicavam corretamente as receitas do livro de magia, Clavícula de Salomão: ratos brancos, morcegos, sangue mensal das mulheres, fluídos vários e sangue. Muito sangue. Na Missa Negra presidida por Justino, o Bode, se misturavam segundo João do Rio, velhos viciados, ninfomaníacas e prostitutas que comungavam hóstias roubadas à igreja mais próxima. O cenário tinha um altar-mor, ladeado de um pavão de cauda aberta, símbolo do Vício Triunfal. No teto, morcegos em corações de papel vermelho e panos pretos com cruzes de prata. A sala, iluminada por castiçais altos, sufocava com os cheiros do braseiro. Depois de orações conclamando Satã, sacristãos seminus davam início à bacanal.

Na saída, assustado, João do Rio ainda ouviu do porteiro:

“Não quer água maldita?”.Saiu correndo como doido na noite enluarada

– contou. Os anos posteriores à proclamação da

República foram marcados por um turbilhão de mudanças. A europeização, antes restrita ao ambiente doméstico, transforma-se agora em objetivo – o melhor seria dizer “em obsessão” – de políticas públicas. Como na parte do mundo ocidental, cidades, prisões, escolas e

Teatro Municipal e Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro, 1909. Marc Ferrez.

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Coelho Neto e o mundo do além

No conto de Coelho Neto, A conversão, um dos personagens revelava sua adesão ao espiritismo no qual via uma porta entre o mundo real e o sobrenatural: “Combati, com todas as minhas forças, o que sempre considerei a mais ridícula de todas as superstições. Essa doutrina, hoje triunfante em todo o mundo, não teve, entre nós, adversário mais intransigente nem mais cruel do que eu”. Porém, sua situação mudou: vira a filha Júlia conversar com a neta morta Esther através do telefone. “Ouvi toda a conversa e compreendi que estamos nos aproximando da Grande Era, que os Tempos se atraem – o finito defronta o infinito, e das fronteiras que os separaram, as almas já se comunicam”.

Outro romance no qual o autor explora a vivência do mundo dos espíritos é O Turbilhão. Nele, duas personagens características do Rio da Belle Époque: uma ex-escrava que chega ao espiritismo a partir da morte do filho na Revolta da Armada e sua patroa, cuja filha fugira de casa e que é levada à sessão pela criada. A descrição do centro espírita revela como havia há uma continuidade entre a crença nos santos e o respeito pela Igreja católica e a invocação dos espíritos.

Ainda outro personagem criado pelo autor sob evidente inspiração dos tempos é Celuta, a esposa intoxicada pelo marido, o ciumento Avelar, em A Sombra. O elemento fantástico é que ao contrário de morrer rapidamente, inoculada que fora com bacilos da tuberculose, Celuta se tornava mais e mais vigorosa: “o que eu via, e todos apregoavam em louvores, era o reviçamento da vítima, mais robustez, aspecto magnífico, apetite, sono tranqüilo, higidez absoluta”. Sim, pois a esposa inocente e envenenada se torna a personificação da morte. E depois de sucumbir, Celuta voltou para atormentá-lo até que confessasse o crime.

hospitais brasileiros passam por um processo de mudança radical, em nome do controle e da aplicação de métodos científicos; crença que também se relacionava com a certeza de que a humanidade teria entrado em uma nova etapa de desenvolvimento material marcada pelo progresso ilimitado.

Por apresentar uma visão otimista do presente e do futuro, o final do século XIX e início do XX foi caracterizado, seguindo a moda européia, como sendo uma Belle Époque. Havia, contudo, uma face sombria nesse período. O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução

de café. Tal situação, aliada à concentração de terras e à ausência de um sistema escolar abrangente, fez com que a maioria dos escravos recém-libertos passasse a viver em estado de quase completo abandono. A pobreza estava em toda a parte e as grandes reformas urbanas que tentavam transformar o Rio de Janeiro em Paris, não abafavam o mal estar de viver. As mudanças políticas não atingiram a sociedade como um todo. Só as elites se beneficiaram. Mas não foram apenas as frustrações de ordem política que modelava a vida cotidiana. A modernidade dos bonds, da luz elétrica e do telefone trazia também a resistência às mudanças. Vivia-se o que um historiador denominou de “a revolta contra a razão”. Em revanche, se recorria ao fantástico é ao imaginário popular, recheado de fadas, demônios e aparições. A literatura escapista transportava para outro mundo, onde o sobrenatural dava as cartas. Nele, nada era espanto ou surpresa. Tudo possível!

Frente às mudanças urbanas que enterravam o passado imperial, nascia uma cidade desconhecida e monstruosa. Cidade habitada por pervertidos, histéricos, loucos. Cujas noites eram carregadas de vícios, medos e mistérios. E onde se cruzavam criaturas medonhas como um Bebê de Tarlatana Rosa, personagem de um conto de João do Rio: “uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos que era alucinadamente – uma caveira com carne”! Verdadeiro beijo da morte! O impacto dessas tensões bateu na literatura. Antes mergulhados na busca de

uma identidade nacional, alguns autores se viram mais focados no temor do progresso e da ciência. Sim, os avanços científicos também poderiam produzir aberrações.

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Belle Époque: O Brasil vive impregnado de magia

Alguns poucos anos mais tarde, o professor Arthur Ramos pôde escrever: “O Brasil vive impregnado de magia” E concluía o ilustre antropólogo a quem tanto se devem os estudos da cultura africana: “Nós brasileiros ainda vivemos sob o domínio do mundo mágico, impermeável em muitos ao influxo de uma verdadeira cultura”. Sim, pois a mentalidade mágica e a crença no sobrenatural acompanhavam e envolviam as idéias, as ciências e as letras. Não à toa, essa literatura de sensação enchia as noites dos que acreditavam que, no contexto da fé, o sobrenatural era coisa normal.

Mas ao lado do mágico e do fantástico, a Belle Époque assistiu ao surgimento de grupos com idéias liberais que propunham a transformação radical da sociedade. Eram anticlericais, livres pensadores, abolicionistas, anarquistas, socialistas, positivistas, espíritas , maços e protestantes. Cada qual se movendo dentro de espaços circunscritos, mas, em busca de uma transformação da sociedade. Eles tinham um objetivo comum: a luta em defesa do estado laico e da república. Junto ao fim do Império,

ruía também a hegemonia do catolicismo. Os resultados desastrosos do ensino religioso, o contraste entre a moral ensinada e a vivida pelo clero e a visão da Igreja como uma ameaça á nação e aos indivíduos se impunham. Nas elites, buscava-se uma espiritualidade reflexiva e interiorizada que militares, profissionais liberais e intelectuais encontravam no kardecismo.

Enquanto os romances folhetins transpunham para as cidades a figura de celerados, cenários macabros e suplícios físicos, entre nós, se deu um caldo: tanto o fantástico na literatura quanto as tendências baseadas no kardecismo, espiritualismo, socialismo, anarquismo, maçonaria, racionalismo e positivismo buscavam redefinir o mundo. Procuravam ir à busca do novo. Ao imaginário “católico”, rural e monarquista se opunham idéias que remetiam ao urbano, à República, ao futuro e ao progresso. Combinação de razão e de paixão, de sonho e realidade, de ciência e crenças, de esperanças e medos, de maravilhas e técnicas elas, as novas idéias, hidrataram o novo século junto com a Belle Époque. Mas na busca do novo, elas acabavam por tropeçar, sempre, numa tradição velha de alguns séculos.

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De variados modos, ao longo da história, a produção literária tem se interessado pelo ensino. Não apenas, e sequer poderíamos dizer principalmente, pelo ensino formal, escolar, mas antes pelo modo como o ser humano aprende coisas afirmando a sua individualidade em meio ao coletivo. Essa preocupação encontra raízes já na Poética, de Aristóteles. Ali, a arte é vista a partir da mimesis, conceito complexo que pode ser brevemente definido como um processo de imitação, que tanto permite a elevação moral e o aprendizado de um modo de viver, como produz o prazer de quem participa desse processo que é, também ele, em parte pedagógico.

Muitas vezes, a voz educadora não apenas constrói a obra de arte, como procura ensinar ao leitor a reconstruir a relação consigo mesmo e com o mundo. Faz isso a partir de certas informações ou analogias e da possibilidade de reflexão sobre elas. As fronteiras entre essa atitude educativa e a mera propaganda costuma ser tênue e esteve aberta a muitas discussões ao longo dos tempos. Essas discussões são importantes por questionarem a dimensão estética da arte e a sua relação com a pedagogia, (re)pensando os critérios sobre o valor do texto literário, de modo particular, e artístico, de modo mais amplo.

Os séculos III a VI d.C. assistiram, nos desertos do Egito e da Síria, ao movimento de pessoas (principalmente homens, embora haja testemunhos também de mulheres) que para ali fugiam desejando viver como monges eremitas. Essa época coincide com o estabelecimento

OS APOTEGMAS DOS EREMITAS DO DESERTO: NAS FRONTEIRAS ENTRE A PEDAGOGIA, A LITERATURAE A FÉ

Por José Luís Landeira 1

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do cristianismo como religião oficial. Essas pessoas, ao perceberem as consequências do fim da perseguição aos cristãos, rompem com a civilização de sua época, de um mundo que consideram fácil demais, e fogem para os desertos. Por isso mesmo, são também chamadas de anacoretas, ou seja, derivado do grego, de ana, “para a frente”, e chorêin, “lugar”. Isto é, os anachoretes eram aqueles que “partem para outro lugar”.

Dos barracos, grutas e até túmulos onde se instalaram, os anacoretas atraíram a muitos que acorreram a eles buscando benefícios e sabedoria. Alguns ficavam por pouco tempo; outros, desejosos de partilhar esse modo de vida, permaneciam, dando origem a verdadeiras colônias. O silêncio era parte constitutiva da vida ascética que esses homens e mulheres do deserto levavam. Mesmo assim, chegaram até nós diversos registros escritos, tais como algumas cartas, além de biografias, testemunhos e coleções de apotegmas elaborados por pessoas que os visitavam.

Os monges eremitas do deserto

1 Pós-doutor do programa de Materialidades da Literatura da Universidade de Coimbra, Portugal; doutor em Educação (USP), mestre em Letras (USP), pesquisador, professor e curador editorial do MAS-SP.

Os monges eremitas dos desertos do Egito e da Síria, nos séculos III a VI, atualizaram a prática cristã, serviram de base para todo o pensamento medieval e foram a origem de uma das mais importantes manifestações da literatura sacra, os apotegmas.

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A chegada de um novo discípulo ao deserto seguia certo ritual. Ele deveria associar-se a um Abba, pai ou ancião (Amma, em se tratando de uma mulher), pessoa experiente, que serviria de modelo. Essa convivência produz a aprendizagem do novo, pela ação e pela palavra. Os ditos do Abba são para o discípulo declarações que o iluminam na eterna busca do caminho da salvação. A autoridade do apotegma, contudo, não estava na força de quem o proferia, mas no Espírito de Deus que inspirava o anacoreta. A eficácia, por sua vez, dependia da atitude de acolhimento e fé com que essas palavras eram recebidas.

Iletrados na sua maioria, os eremitas falavam, porém, a partir de uma experiência pessoal com o Transcendente. As palavras, guardadas na memória, foram partilhadas para o benefício de outros.

Os apotegmas são textos curtos, quase sempre dialogais, de caráter ao mesmo tempo literário, pedagógico e religioso. Apotegma origina-se do grego e pode ser traduzido como “declaração”. Faz referência ao ensinamento contido nas palavras do Abba a seus discípulos.

Os apotegmas tiveram grande popularidade durante toda a Idade Média, já a partir dos séculos V e VI, tendo sido traduzidos para diversas línguas, como grego, latim, copta, etíope e árabe, entre outras. As citações organizavam-se seguindo três esquemas básicos: (1) alfabético: de acordo com os nomes dos eremitas que proferem os apotegmas ou são protagonistas dos feitos, seguindo o alfabeto grego; (2) sistemático ou lógico, de acordo com as virtudes cristãs; e (3) misto, ou seja, sem uma ordem específica.

Produtos de dois séculos de vida eremítica, os apotegmas evoluíram na sua forma. Eles eram, no início, muito simples. Constituíam-se, basicamente, da resposta a uma pergunta (explicitada ou não) feita pelo discípulo a seu mestre, o Abba (pai ou ancião).

Sirvam de exemplo os apotegmas a seguir:Perguntou um irmão a um ancião: “Indica-

me uma só coisa que eu deva conservar,

para poder viver!” E o ancião respondeu-lhe: “Se conseguires suportar ser injuriado, isso é grande coisa, que supera todas as virtudes” (Draghi e Campo, 2003, p. 52).

Disse um ancião: A terra sobre qual o Senhor nos mandou trabalhar é a humildade (Draghi e Campo, 2003, p. 52).

Aos poucos, os apotegmas passam a incluir o contexto desse diálogo. O texto passa a dar maior relevância ao espaço e ao tempo, o que permite compreender não apenas os sobressaltos próprios da época em que essas pessoas viviam, mas os dilemas humanos que, de algum modo, são atuais mesmo hoje em dia. É o que vemos a seguir:

Contava-se de João Colobos que, tendo-se retirado para a casa de um velho tebano em Sceté, ficou pelo deserto. O seu Abba, pegando num pedaço de madeira seca plantou-o e disse-lhe: “Rega-o todos os dias, até que dê fruto”. Ora, a água estava tão longe que era preciso partir de noite e voltar na manhã seguinte. Passados três anos, a madeira ganhou vida e

Os apotegmas: diálogos feitos para o ensino

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Os apotegmas têm algo a nos ensinar no século XXI?

deu fruto. Então o velho, pegando nesse fruto, levou-o à igreja e disse aos irmãos: “Tomai, comei o fruto da obediência” (Guy, 1991, p. 86).

Em algumas ocasiões, o contexto ampliado permite que o diálogo se dê não entre o mestre e seu discípulo, mas entre este e um outro, ser espiritual ou terreno. O objetivo, contudo, continua sendo o de construção da aprendizagem do discípulo. Como se vê:

Um dia certas pessoas foram a Tebaida para visitar um ancião. Levaram consigo um homem atormentado pelo demônio, a fim de que o ancião o curasse. Depois de haver feito uma longa oração, o ancião disse ao demônio: “Deixa essa criatura de Deus!” E o demônio respondeu: “Diz-me quais são as cabras e quais são os cordeiros?” E o ancião respondeu: “As cabras, sou eu; quanto aos cordeiros, só Deus o sabe”. Com estas palavras o demônio gritou: “Retiro-me por causa da tua humildade!” E desapareceu num instante (Draghi e Campo, 2003, p. 51).

Finalmente, encontramos apotegmas mais extensos, narrativas que buscam construir por meio da narrativa maravilhosa a fé do ouvinte (leitor). São diversos os exemplos, mas podemos citar a Vida de Taís, pecadora de Alexandria e convertida pelo Abba Panfúcio (Os Apophtegmata patrum no mosteiro de Dume, p. 5-6).

Os feitos dos padres do deserto são inúmeros e usualmente atravessados pela ação do sobrenatural. O constante enfrentamento do demônio é superado pela oração e pela solidão do indivíduo, em que o esquecimento de si próprio dá lugar a uma vida de penitência e simplicidade.

O estilo é sempre simples, narrativo, buscando como que retratar um instantâneo que deve preservar a sabedoria de Deus no tempo. A linguagem narrativa está a serviço não tanto da verdade histórica, mas, principalmente, do que se considera verdade moral. A dimensão pedagógica está acima da preocupação com a verdade histórica, embora dela não prescinda completamente.

Qualquer leitura atual dos apotegmas deve levar em conta o contexto em que se deu essa realidade do deserto. Os apotegmas respondem à necessidade de preservar a identidade e os ensinamentos desses eremitas e constituíram-se em fontes de ensino que moldaram, durante séculos, o modo considerado bom de estar no mundo.

Mesmo na qualidade de mestres, os eremitas estavam na constante busca de uma sabedoria que fosse, antes de tudo, cristã e revelada pelo Espírito de Deus. Como nos diz Paládio, que recolheu a vida de muitos desses anacoretas, em carta a Lauso:

Apenas o Deus do Universo não precisa de qualquer lição, pelo fato de ser princípio de Si mesmo e nada nem ninguém existiu antes dele. Mas todas as outras coisas são suscetíveis de ensino, precisamente pela sua condição de produzidas e criadas. (Paladio, 1991, p. 24)

Muitas vezes, essa busca esbarrava na ingenuidade e na própria natureza humana. A tomada de consciência de sua realidade e de seus limites levava-os a um constante estado de investigação do pensamento de Deus e de como este se manifestava em suas vidas. Por vezes, entendiam mal tais sinais, mas não desistiam de continuar. Essa necessidade de constante enfrentamento, a consciência de que, por mais que desejemos escapar, nunca podemos fugir de nós mesmos, é bem sintetizada nas palavras de uma dessas mulheres do deserto, a Amma Teodora:

Era uma vez um monge que, por causa do grande número de tentações que o atormentavam, quis ir para outro lugar, e quando calçava as suas sandálias, viu perto dele um outro homem que também calçava as suas (era a tentação personalizada), e que lhe disse: “Não é por causa de mim que vais partir, porque eu te seguirei aonde quer que vás” (Guy, 2006, p. 118).

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A relíquia presentifica a crença na vitória da criatura em relação à morte e o consequente acesso dos mortais à vida eterna; de sua presença emana a esperança da eternidade. Desse modo, só um receptáculo à altura dessa dignidade pode acolhê-la, preservá-la e ressaltar o seu valor incalculável.

Tal receptáculo abriga aquilo que restou de um corpo que viveu segundo a sequela Christi, do qual, portanto, já se garante o gozo da imortalidade. A arquitetura de um relicário visa, assim, expressar um profundo conteúdo teológico.

O termo “relíquia” abarca um duplo conceito: o corpo de um santo, ou um fragmento dele procedente; ou todo o conjunto no qual ele é exposto, isto é, não só o resto propriamente dito, mas também os adornos, a teca, o relicário etc. (Sbardella, 2007). Em razão dessa segunda perspectiva conceitual, estabelece-se uma interlocução entre as decorrências teológicas do conceito de relíquia e a produção artística que se desenvolveu em torno dele.

O processamento que caracteriza a confecção de uma relíquia, a partir do resto mortal do 1 Psicanalista, é doutor em psicologia social (USP) e doutor em Direito Canônico (Pontifícia Universidade Lateranense de Roma) e pós-doutor em Ciência da Religião (PUC-SP).

RELÍQUIA: ESTÉTICA DA FINITUDE

Por Prof. Dr. Ario Borges Nunes Junior 1

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Transformaste o meu pranto em uma festa, meus farrapos em adornos de alegria (Sl 29,21).

santo, é complexo. Ele põe em evidência o aspecto ambíguo que envolve o objeto relíquia: materialidade e transcendência, insignificância e plenitude, horror e beleza... A seguinte citação, extraída da biografia do Servo de Deus Francisco de Yepes (1530-1607), irmão de São João da Cruz, morto também em odor de santidade, ilustra de maneira precisa o caráter paradoxal contido no conceito de relíquia.

Muitos dos que ali estavam logo cobiçaram os objetos pobres que possuía, as roupas velhas e os andrajos, para levá-los como relíquias (...). Tanto pode a virtude e tanta honra dá a Deus e a seus amigos, que as coisas mais velhas e desmanchadas que os serviram, faz o Senhor que sejam mais estimadas que o ouro e a prata (Velasco, 1992, p. 293).

A relíquia testemunha silenciosamente o triunfo sobre a comodidade da condição natural, mesmo em relação à preservação da própria vida, e desperta, em contradição ao estado inerte que o resto mortal define, um afeto de júbilo e de esperança, que é evocado, por exemplo, no embelezamento do relicário, mediante a aplicação de enfeites, como pedras coloridas e adereços dourados, que visam representar a apoteose de que já desfruta. A comprovação do martírio ou da prática das virtudes tem desdobramentos estéticos. Virtude e beleza tangenciam-se.

A ambiguidade intrínseca ao tema das relíquias diz respeito ao seu caráter eminentemente material (resto) e, simultaneamente, transcendente (eternidade). Dessa relação surge o trabalho de embelezamento da relíquia na conformação do relicário.

De acordo com tais circunstâncias, a conservação e a exposição das relíquias requerem locais e recipientes adequados. A interminável fração do corpo relíquia e a

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distribuição dos fragmentos produzidos são estratégias que engendram uma perspectiva de eternidade a partir do trato com as relíquias. A divisão do corpo implica a possibilidade de sua presença simultânea em muitos lugares. O tempo, por sua vez, parece congelar-se na perenidade do culto, sempre passível de ser revitalizado, por meio da garantia material que um fragmento corporal, ainda que minúsculo, presentifica, quando adequadamente inserido em um ambiente de exposição. Tal proliferação estimula intensamente a produção de sempre mais relicários e receptáculos para acolher esses pontuais acessos para a eternidade (Nunes, 2013).

Da relíquia emana algo que sacraliza a atmosfera; assim, sua presença define o caráter sacro de um ambiente (Canetti, 2002). Essa presença é evocada a partir do receptáculo que a expõe. O metal reluzente que, em geral, constitui o corpo do relicário metaforiza a glória da superação da morte. O olhar humano atribui ao mundo glorioso da eternidade a cor dourada do metal polido e o representa contornado por resplendores e raios luminosos, pois nele tudo reluz.

A sacralização do mundo estende-se a todas as coisas criadas e é, também, reconhecida, por exemplo, pela presença, no relicário, da combinação de motivos fitomorfos, animais e alegóricos em conjunto com outras representações naturais. A palma, sempre presente na iconografia martirial, expressa a vitória no combate, a perseverança até o último momento; e o lírio atesta a perfeita observância da castidade. As virtudes do santo materializam-se, assim, em inscrições no relicário não só de motivos diretamente religiosos.

Quanto à forma, observa-se que alguns relicários têm formas de partes do corpo evocando de onde procede a relíquia ou, então, fazendo alusão à parte do corpo na qual incidiu o suplício. Da forma humana, o enfoque se estendeu ao campo arquitetônico; surgiram, então, os relicários em forma de altar ou de igreja. Definiram-se formas de relicários para representações específicas de aspectos históricos e de circunstâncias da vida do santo (Lessi, 1995). Para a exposição de relíquias do

lenho da Cruz, muitos relicários apresentavam a forma de cruz, agregando alguns conjuntos de detalhes ao corpo de relicário, como os instrumentos da paixão, por exemplo, ou a flor-de-liz para fazer menção à origem francesa do sagrado receptáculo.

O culto às relíquias propiciou um patrimônio histórico, cultural e artístico de valor incalculável para a Igreja (Gélis, 2008). Desde a Antiguidade, junto aos restos mortais de um mártir, construía-se o martiria, monumento que visava acolher dignamente os seus despojos sagrados, expressando formalmente a glória do discípulo de Cristo.

A partir do século VII, paralelamente à difusão do culto às relíquias, promovida pela Igreja, nasce e se desenvolve a cultura da arte e do relicário. Os relicários são empregados para a conservação, a transladação e a posterior exposição dos corpos dos mártires e dos confessores. No século IX, já abundam diversas formas de relicários (caixa, vaso, medalha, ostensório, cápsula, cruz, urnas para corpos inteiros).

Os translados promovidos pelos cruzados durante a baixa Idade Média favoreceram ainda mais a diversificação nas formas dos relicários, que poderiam ser tanto da forma de partes do corpo humano quanto da forma de pequenas igrejas.

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BIBLIOGRAFIA

Em ordem de grandeza bem superior, podem-se mencionar as construções em pedra (Fig. 3), vidro e outros materiais, como a Sainte Chapelle, para acolher as relíquias da Paixão de Cristo, erguida em Paris, no século XII, por iniciativa do rei São Luís. No século XVI, com o vigor da Contrarreforma, surgem as capelas-relicários, de formas renascentistas e barrocas, para acolherem os corpos descobertos nas catacumbas romanas (Martín e Díez, 2005).

A expressão significativa que o culto às relíquias adquiriu em algumas circunstâncias da História da Igreja repercutiu intensamente em uma produção arquitetônica e artística centrada no júbilo da perspectiva da vida eterna. A beleza do relicário representa o prêmio e a coroa de glória que o fiel seguidor de Cristo recebe, depois da morte corporal, garantidos pelos méritos do Mestre com os quais se identificou.

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No âmbito das indagações sobre a dinâmica da formação das coleções particulares no Brasil, entre objetos, artistas, artesãos, colecionadores e respectivos contextos socioculturais, como causa a ser investigada, interrogada e interpretada, considera-se importante ressaltar logo de início, inspirada nas palavras de Pierre Bourdieu, em Méditations pascaliennes (Bourdieu, 1997), o valor da observação sociológica e do processo mental de percepção, memória e juízo, que orientam a estreita ligação das representações simbólicas às experiências, no entendimento do processo por meio do qual os objetos tornam-se colecionáveis e ensejam a formação de uma coleção.

Nesta perspectiva, entende-se que o ato de

REFLEXÕES SOBRE UMA COLEÇÃO PARTICULAR PAULISTA

Por Silveli Maria de Toledo Russo 1

Colecionar revela a consciência da responsabilidade por um legado que necessita ser pensado no entendimento da trajetória e progresso de nossas sociedades. Os objetos colecionados atuam como testemunhos vivos da história.

1Pesquisadora Residente na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Universidade de São Paulo. Professora do MAS-SP.

colecionar não se limita ao registro dos objetos e de seus elementos constitutivos nem a uma consciência estética subordinada à pura aisthesis como relata Jacques Rancière, em Aisthesis. Scènes du regime esthétique de l´art (Rancière, 2011), isto é, a busca concentra-se na fluidez dos significados implícitos, percebidos nas relações e inter-relações que se associam às práticas sociais, subjacentes à tangibilidade visível dos objetos e de sua materialidade. Para legitimar tais interpretações, destaca-se aqui uma coleção particular localizada na cidade de São Paulo,que apresenta um estreito (e notório) vínculo com a cultura material religiosa – sobretudo originária do período colonial brasileiro.

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A coleção deixa notar uma criteriosa sensibilidade organizacional na sua composição, bem como o talento crítico de seu detentor, o colecionadorA. Casagrande. Bem anotações autobiográficas, cedidas a esta pesquisadora, o senhor Casagrande refere-se à década de 1990 como um decênio marcado pelo início de suas primeiras aquisições, época em que, segundo ele, era ainda despretensioso o intuito de formar um acervo, o que só foi considerado após a consciência de que não mais poderia recuar dessa prática. E sem demora, deste modo, logo nos anos iniciais da presente centúria, o processo das aquisições galgou grandes proporções.

Mesmo assim, apesar da dedicação para formar um acervo capaz de contemplar, predominantemente, peças remanescentes da sociedade colonial, caracterizadas pela conjugação de contributos plásticos com importante intenção à representação da temática cristã, isto não deve ser interpretado como a personificação total da coleção; pois, tem-se intenção de ir além do tema religioso e do repertório que envolve exclusivamente os primeiros séculos de colonização, fato que permite alargar a apreciação crítica do processo de transferência e recepção cultural das manifestações artísticas, entre Europa, Ásia e América, e a dinâmica de análise de suas diversas linguagens e o que delas se propõe representar.

Este espectro compreende uma criteriosa seleção de peças, produzidas neste território de superposição cultural de grande fôlego, entre os séculos XVII e XX, a atrair vivamente o olhar curioso do pesquisador interessado ao universo dos artefatos de cunho religioso, na tentativa de conhecer e interpretar uma produção artística complexa, como a brasileira, e suscitar o exame crítico do material exposto, composto

2 É de presumir que há na coleção nomes de artífices importantíssimos do período colonial. Percival Tirapeli, historiador de arte e autor do livro que apresentou a exposição: “Oratórios Barrocos. Arte e devoção na Coleção Casagrande” , oferece ainda informações sobre um anjo alado com 44 cm de altura (produzido em madeira policromada e dourada, procedente do Rio de Janeiro e de referência oitocentista), atribuído ao Mestre Valentim da Fonseca e Silva (Serro, Minas Gerais, 1745 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1813): (...) anjinho de gola culto, saído do cinzel de mestre Valentim, tem como modelo os anjos de gola de Bernini. (...). Cf. TIRAPELI, Percival. Oratórios barrocos – Arte e devoção na Coleção Casagrande. São Paulo: MAS-SP, 2011, p. 101.

Na busca pelos objetos: sensibilidade organizacional e talento crítico

A Coleção e as representações de Ordem Devocional

por pinacoteca, imaginária, tapeçaria, louçaria, prataria e móveis, todos dotados de um lavor de rigoroso capricho, à mostra nos vários ambientes sociais da residência. E assim, na sua leitura, é possível conferir peças em prata que ganharam especial destaque pela erudição observada nos diversos procedimentos ligados à sua feitura: o repuxado, cinzelado, gravado, filigranado, granulado, esmaltado, dourado e a técnica que permite incrustações com pérolas e gemas várias.

Além das representações de ordem litúrgica, há aquelas de ordem devocional, que se traduzem em esculturas de madeira de pequenas proporções, oriundas do resguardo das residências. Mostram-se aqui com soluções singulares, ora inspiradas em peças criadas nos mosteiros de ordens religiosas, ora resolvidas à revelia das regras vigentes. Lembra-se, neste ponto, das pequenas esculturas de feição popular, mas que ao mesmo tempo demonstram erudição no trabalho do executor – por conta das madeixas que se apresentam com expressiva volumetria e rigoroso labor. Tal modelo é oriundo do contexto paulista, pelas mãos do artífice: “Mestre do Cabelinho Xadrez”, conhecido, do mesmo modo, como “Mestre do Cabelinho Cortado”, cujas peças possuem dimensões que variam de 12 a 15 cm de altura e são comumente produzidas para atuarem como protagonistas nos oratórios de viagem.

Contudo, e nesse instante, é bom que se esclareça que nem a qualidade nem a beleza da imaginária justifica só por si que lhe faça uma referência especial, já que neste escrito não se propõe estudar a coleção, mas sim o colecionador. Mas mesmo assim, na sequência de raciocínio, permite-se acrescentar que o protagonismo da imaginária adquirida não se limita à exclusividade da madeira, pois bem ao contrário, A. Casagrande protesta também

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Oelevada estima e consideração pelos artífices brasileiros que trataram das imagens em barro, o que pode ser confirmado pela plêiade apresentada com tal material, produzida tanto nos séculos XVII e XVIII, como em época mais recente: oitocentista, cujas reproduções escultóricas são denominadas “santos paulistinhas”.

Em muitos dos segmentos das artes plásticas e decorativas, mesmo aqueles em que não se considera entendedor, o senhor Casagrande tem sempre algo interessante a referir ou a observar – ouvido quando de sua presença às aberturas de exposições no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) – tão ampla é a sua cultura e retentivo o seu gosto. Mas, a imaginária, designadamente a imaginária colonial, muito parece ser uma de suas predileções, visto que, sobre as suas peças desse repertório, encontram-se importantes representações, a exemplo de um par de anjos, acerca do qual extrai-se a seguinte observação do historiador de arte, Percival Tirapeli:

Os dois anjos atlantes em madeira escura, fragmentos de algum altar de capela jesuítica, são desconcertantes. A fábrica certamente é indígena, de modelo europeu assimilado em especial no decorativismo das asas, no colar desproporcional com símbolo do infinito, nos braceletes à semelhança de guizos formando linha circundante aos cabelos encaracolados e volutas acima da cabeça. Os pés alados por folhas ou plumagem como as das asas, e as folhas de acanto (do modelo) por detrás das nádegas, completam a imaginação indígena referente aos seres celestiais alados que lhes serviram de modelo (Tirapeli, 2011, p. 100).

É o que se pode verificar no oratório ermida, originário do Estado de Pernambuco, Brasil, em que se vê singular composição, entre colunas de fuste torso e capitéis com referência à ordem clássica coríntia. Repertório, esse, composto com enquadramentos de diferentes características, designadamente, estruturas de índole arquitetônica e paisagística. O arremate superior em arco concêntrico é trabalhado de

forma a acompanhar o entalhe do fuste das colunas; este desenvolvimento tem raízes muito antigas na cultura portuguesa. Na modelagem da base, das colunas e dos arcos aparecem concheados, folhas de parreira e mísulas em volutas de acanto, indicando um clima emocional que extravasa por toda a peça. Já as pinturas se apresentam com surpreendentes manifestações: no camarim, cena citadina de Jerusalém; na face interna das portas, de um lado o símbolo do sol a enaltecer a “presença da luz divina”, e do outro a lua, a simbolizar quiçá o “feminino da Virgem”, envoltos por ornatos que refletem a primeira fase da pintura do período colonial no Brasil .

E como o oratório ermida, muitos outros exemplares remanescentes do período colonial brasileiro poderiam ser aqui referenciados e deles extraídos opiniões de elevado interesse, mas acredito que o conteúdo em apontamento já basta para se poder estabelecer uma interpretação bastante próxima da singularidade palatal do colecionador, e sua fidelidade às figurações de temática cristã. Sobre tal fidelidade, entretanto, como o próprio colecionador argumenta, “a coleção vem tomando um rumo mais abrangente”, e assim, seguindo a sua fala, “entendeu-se por bem ingressar na seara composta pelo movimento acadêmico brasileiro”, cujos pintores, diga-se, estudaram ou compuseram a Academia Imperial de Belas Artes–AIBA [1826-1889], de elevada representatividade artística no cenário brasileiro (Duque, 1995).

Assim, peças de diferentes épocas, suportes e produções ocupam vários ambientes e são distribuídas de acordo com a sua orientação. Longe de serem aleatórias ou subjetivas, as aquisições do colecionador conformam-se em dois grandes eixos: arte sacra e arte acadêmica brasileira, a resgatar, deste modo, a tradição colonial e a cultura popular, e a incorporar temas caracteristicamente brasileiros na arte erudita. Imagens religiosas; mobiliário, em que se destacam peças vinculadas às práticas religiosas, entre mesas de altar e oratórios, respectivamente de uso litúrgico e de circunscrição devocional ou piedosa; arte acadêmica ou popular, todas essas

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Permite-se dizer que a relação do colecionador com as obras de sua coleção é passível de se enquadrar na expressão “Afinidades eletivas”, ao espírito do jurista e economista alemão Max Weber [1864-1920], pelo habitual cuidado que A. Casagrande presta ao acervo e aos objetos que o cercam. Tais constatações, proporcionadas por ocasião da pesquisa e das reproduções fotográficas realizadas no acervo, mostram que o colecionador trata a sua coleção como parte da família, ao se rodear dos objetos que reuniu em quase 30 anos de colecionismo. Tudo deixa notar um sentimento que mescla afetividade e erudição, situando-o à margem do universo dos colecionadores (acumuladores), ao desconsiderar o valor comercial da coleção – vista a priori como investimento, como explicitado por meio de suas anotações, aqui expostas, privilegiando o seu valor histórico e o vínculo afetivo que se estabelece.

Para o colecionista A. Casagrande, cada peça torna presente um momento, pelo exercício da memória e/ou da imaginação, há sempre uma particularidade que causa emoção e/ou manifesta a sua admiração, envolta de uma sensibilidade não ingênua, que segue os cânones de sua própria experiência, devoção e crença religiosa, unida, é verdade, às tendências elaboradas pelos comerciantes de produções artísticas. Os objetos de cunho religioso, entre imaginária e móveis, proporcionam um prazer

O Colecionador e o ato de colecionar: a razão e o resgate da afetividade

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ao colecionador diferente da pintura acadêmica. As peças tridimensionais são constantemente manipuladas e seu arranjo, e distribuição na ambiência chega a se caracterizar, sugere-se, como um testemunho lúdico, em um “contexto performático”, conceito utilizado por Ulpiano Meneses (1998), entendido no presente escrito como articulação sincrônica entre prática e representação.

Será necessário acrescentar que as possibilidades de estudo multidisciplinar se aplicam a essa dinâmica de estudo e têm ajudado a refletir sobre a operacionalidade do colecionismo privado, e a consciência da necessidade de preservação dos aspectos simbólicos e afetivos que se relacionam tanto aos objetos quanto aos ambientes das residências que abrigam as coleções, pela capacidade de representar o cotidiano das relações individuais, familiares e sociais dos colecionadores, vistos nesta situação “como formadores de identidades sociais” (Carvalho, 2008).

Nesse ambiente, o religioso e o profano (o espiritual e o temporal) convivem sob o mesmo teto, numa acomodação quase hermética. Não obstante o sugestivo invólucro, existe um ideal de expor ao público o patrimônio adquirido, com a ideia de reconstituir saberes sobre as produções artísticas e os legados culturais de nossa sociedade, e possibilitar, às comunidades, reviver memórias e valores (religiosos), e estabelecer vínculos identitários.

manifestações se harmonizam, sob a ótica do colecionador.

Sobre isso, seguindo as conceituações de um dos mais expressivos agentes de leilões da centúria passada, o francês Maurice Rheims [1910-2003], em seu livro intitulado La vie étrange des objets: histoire de la curiosité (1959), permite-se dizer que existe aqui um sentido que supera o propósito de construir uma memória histórica e poder informacional; pois, além desses quesitos, existem indícios que possibilitam observar no espírito do colecionador um vínculo afetivo com as artes e os objetos que detém. Que indícios são esses?

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OColeção privada e contato público:

ensino, pesquisa, debate e exposição do acervo

Acredita-se que a complexa teia de motivações e expectativas anteriormente descritas, cuja concepção de cultura se baseia, sim, na unicidade de valores intelectuais e econômicos, e na consolidação de status social, não deixa, todavia, de corroborar a formação e promoção do conhecimento. Verdade essa que, em continuidade à perspectiva europeia, desde o final do século XVIII e ao longo do século XIX (com o surgimento das academias e o enaltecimento da crítica de arte), foi se alargando em direção à legitimação da prática do colecionismo, em que “não só se preservam os objetos reunidos, mas também os ambientes domésticos, fruto da personalidade e do modo de vida de seus criadores”, como alerta Paulo Costa (2007).

Até onde os olhos alcançam, recorda-se ainda que a partir de 1889, com a proclamação da República, o colecionismo privado ganhou força nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, por certo pela complexidade cultural de ambas, que naquele tempo conheceu mudanças significativas na disposição da habitação brasileira: da colônia ao final do Império; da simplicidade dos interiores coloniais ao aumento da suntuosidade dos espaços domésticos e de seu “recheio”: pinturas, artes utilitárias e decorativas, móveis e outros objetos oriundos de um sistema de mercado de apurado requinte.

Por conseguinte, as coleções privadas localizadas na Região Sudeste do país, e seus respectivos colecionadores, ganharam um significativo destaque no cenário cultural brasileiro. Revelam ambientes que, em alguns casos, foram preservados e se mantiveram em seu estado original, além de haver o cuidado em manter acessível todo o histórico documental acerca da constituição das coleções, avivando assim a prática do colecionismo entre os segmentos da elite, fato que, em tempos posteriores, sobretudo a partir dos últimos anos da década de 1960, deram ensejo a outras gerações de coleções e instituições.

Assim, A. Casagrande, bacharel em Direito, espraiou sua sensibilidade analítica e seu talento crítico por outro campo do pensamento e do conhecimento humano: o das artes, mantendo consigo, desde a sua formação no campo jurídico, o gosto pelas artes utilitárias e decorativas, e o habitual interesse por visitas a museus, antiquários e casas de leilões; outrossim, inspirado pelo comportamento de outros colecionadores conhecidos –Domingos Giobbi [1925 – 2013], Orandi Momesso eLadi Biezuz– inclui em seu cotidiano a habitualidade de encontros sociais e intelectuais para a promoção da arte, sua investigação e crítica.

Nesse discurso de firmes propósitos, de fato, o colecionador concretiza tais posicionamentos, ao compartilhar sua coleção em reflexões com os públicos, por meio de exposições temporárias que decorrem, com frequência, nos recintos de instituições culturais e acervos museológicos da capital paulista. Lembra-se neste ponto de algumas dessas importantes exposições, dentre as quais: “Origens... Justiça em Evolução”, nas dependências do museu do Tribunal de Justiça de São Paulo, no ano de 2011; “Oratórios Barrocos – Arte e devoção na Coleção Casagrande”, no Museu de Arte Sacra de São Paulo, também no ano de 2011, “Barroco Ardente e Sincrético– Luso-Afro-Brasileiro”, no Museu Afro Brasil, no ano de 2017.

Dinâmica essa que tem contribuido, por certo,

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BOURDIEU, P. Méditations pascaliennes. Paris: Seuil, 1997.

CARVALHO, V. Gênero e Artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp, 2008, p. 25.

DUQUE, G. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995.MENESES, U. Memória e Cultura Material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos, v. 11, n. 21, 1998.

RANCIÈRE, J. Aisthesis. Scènes du regime esthétique de l’art. Paris: Éditions Galilée, 2011.

RHEIMS, M. La vie étrange des objets: histoire de la curiosité. Paris: Plon, 1959.

TIRAPELI, P. Oratórios barrocos – arte e devoção na Coleção Casagrande. São Paulo: MAS-SP, 2011.

BIBLIOGRAFIA

À guisa de conclusão

Em última análise, interessa enfatizar que, ao ato de colecionar, aplica-se a consciência da responsabilidade permanente de um legado que necessita ser pensado como algo que atenderá às gerações futuras, como um dispositivo importantíssimo de informação na perspectiva de entendimento da trajetória e progresso de nossas sociedades. A propósito, a partir da qualidade que emana do discurso dos recintos domésticos e dos objetos neles inseridos (utilitários ou decorativos), tem-se um campo de análise, entre o certame da sociologia, da iconologia e da etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, que ajuda a melhor compreender os personagens tratados aqui, seja artista ou colecionador, seja criador ou fruidor, em diálogo com a narrativa dos próprios objetos, e seus valores simbólicos, e que expostos ao cotidiano das relações individuais e familiares atuam como testemunhos vivos,sempre à espera de reflexões e investigação científica.

para o fortalecimento das aquisições da presente coleção e, porque não dizer, para a incessante busca por algo inédito a acrescentar..., o que naturalmente corroborou a constituição de um acervo de grandes proporções. Em suma, interessa expor que essas interlocuções levam o colecionador a novas aquisições não apenas por meio de leilões importantes ou revendedores menores, mas também junto de outros colecionadores, sobretudo daqueles pertencentes às famílias paulistanas com alta concentração de bens.

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Observando os índios

ÍNDIOS EM COIMBRA

Por Maria Aparecida Ribeiro 1

Pode parecer estranho: há índios em Coimbra. Mas... são frutos de um outro tempo e de uma outra maneira de pensar.

Quem, na Sé Nova de Coimbra — um templo jesuítico, cuja pedra fundamental foi lançada em 1598, por D. Afonso de Castelo Branco, bispo de Coimbra — depois de um ofício religioso, seguir com o olhar a saída do sacerdote para a sacristia poderá, contemplando a beleza do templo, desfrutar de prazer estético e de elevação espiritual, mas poderá também ter aguçada a sua curiosidade. No fundo de cada lado do transepto, há um retábulo de talha dourada e policromada dos finais do século XVII. Chama a atenção pelas proporções, pelo desenho e pela imponência de algumas esculturas. Composto de três corpos, um central onde se destacam as imagens da Coroação de Nossa Senhora

Na continuidade do arco, simetricamente dispostas, duas figuras douradas (lado esquerdo do transepto) ou dois anjos (lado direito). Após eles, em meio corpo, mais duas figuras híbridas: cocar indígena e vestimenta decotada deixando ver o peito. Seguem-nas, de cada lado do arco, dois pequenos anjos, um dos quais parece brincar com um pássaro de penas coloridas que evoca o exotismo de além-mar. Terminam o arco, de cada lado, outras figuras em meio corpo, trajando também uma veste decotada que deixa ver o peito, mas sugerindo

(lado esquerdo) e da Sagrada Família (lado direito), possui nos corpos laterais grandes vitrinas divididas em onze partes que guardam cada uma a sua relíquia. Encimam os retábulos, grandes arcos também em talha dourada e policromada. Acima deles, outro grande arco do mesmo tipo. Situado por cima da janela, guarda uma certa leveza, que lhe advém da luz solar e do fundo branco da parede.

Ao fixar detidamente este conjunto, o visitante terá por certo uma surpresa: no arco sobre a janela duas grandes figuras de índio seguram o escudo português. No entanto, têm asas de anjo e rabo de sereia. Dos selvagens, só mesmo o cocar.

1 Mestre e Doutora em Letras, é investigadora e professora do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra.

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desta vez um tecido mais pesado, como veludo ou brocado. Na cabeça das que estão do lado esquerdo do transepto, novamente o cocar; nas das do lado direito, três plumas, à maneira dos orientais.

Baixando o olhar e observando o retábulo propriamente dito, podem-se ver mais “índios”. No cimo, dois grandes anjos seguram uma coroa e tocam flauta; ladeiam-nos duas figuras de corpo inteiro: a efígie parece a de anjos justiceiros, mas seguram flores, ao invés de espada; na mão esquerda, levam um escudo, onde se vê um coração. Suas roupas lembram veludos ou brocados. Difere, no entanto, o ornamento da cabeça dessas figuras: as que estão sobre a talha do lado direito do transepto têm, por detrás da cabeça, apenas três plumas, semelhantes às que usavam os cavaleiros em seus chapéus ou os indianos nos seus turbantes; já as figuras que ficam do lado oposto usam um cocar de penas retas semelhante aos dos índios brasileiros.

Mas a “decoração indígena” não termina aí: o observador atento poderá localizar ainda quatro indiozinhos em cada um dos retábulos. Dois, incrustados no terceiro arco, ladeiam um anjo (lado direito do transepto) ou um indiano (lado esquerdo) e têm os ombros envolvidos por um tecido vermelho drapeado.

Os outros dois indiozinhos encimam cada uma das vitrines-relicários. A nudez dos seus corpos é disfarçada por uma espécie de folhagem dourada; na cabeça, o cocar brasileiro.

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Com uma observação mais prolongada e dirigida para os altares laterais, ainda no transepto, surgem, sobre o altar de N. Srª de Fátima e sobre o de N. Srª da Conceição, mais oito índios: dois, com cocares e colares cujos motivos variam, em cada um dos arcos que encimam os altares, a seguir aos anjos que seguram um florão; outros dois, em meio corpo, sustentando cada uma das colunas laterais dos altares, têm cabelos lisos — se comparados com o das figuras orientais com que fazem par —, ostentam o tronco nu e deixam entrever uma tanga feita de folhas. Outras figuras orientais, aves e cachos de uvas completam a talha.

2 Importa lembrar que a sereia, ser fantástico cujo sentido pode ser positivo e negativo,aparece comomotivo de um outro retábulode Coimbra: oda Sé Velha, emestilo manuelino, onde também figuram homens silvestres com arcos e flechas, macacos e porcos músicos. Neste contexto, apesar de poder ter sido motivada pelos Descobrimentos, a sereia ainda não está ligada à ideia de domínio, mas pertence à série do maravilhoso e do fantástico que os novos mundos podem proporcionar.

Os índios, Deus e a Coroa PortuguesaEvocando a vitória dos portugueses, bem

como dos índios seus aliados, sobre os holandeses e a recente Restauração — quando o Brasil voltou ao domínio português, o retábulo da Sé Nova lembra também as teses proféticas do Padre Antônio Vieira, insinuando a presença de Deus nos desígnios portugueses (aliando evangelização e conquista, Portugal seria o instrumento deste Quinto Império da Humanidade, depois da Assíria, da Pérsia, da Grécia e de Roma).

Fragmentos que compõem uma alegoria barroca, os índios da Sé Nova fazem, pois, parte de um texto em que se fala da submissão dos gentios a Deus, mas também à Coroa: não se pode esquecer que os seres que têm asas de anjo, cocar de índio e cauda de sereia seguram o escudo português, numa clara alusão às

navegações, à expansão do Império e da Fé, ideia presente desde a carta de Caminha, que ao mesmo tempo vê “águas infindas”, bons ares e verdes arvoredos e vaticina que tudo o que for plantado na terra descoberta dará frutos, mas também (e talvez por isso) imagina (ou deseja) o índio “sem idolatria nem adoração”, tábula rasa:

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

E portanto, se os degredados, que aqui hão-de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão-de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes qui- serem dar. [...]

Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomámos. (CORTESÂO, s.d.: 130)

Sem sair da ideia de submissão e rebeldia que informa a divisão dos seres que não são nem divinos nem humanos, os anjos-índios do retábulo, e mesmo os índios sem asas, seriam os índios submissos, cristianizados pelos portugueses e seus aliados na defesa do território contra os outros europeus (de que nos falam o próprio Antônio Vieira e tantos missionários que andaram pelo Brasil), que se oporiam aos outros índios, rebeldes, porque não cristianizados, ou porque cristianizados por não portugueses. A propósito, convém lembrar este trecho da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba:

Concluída tão felizmente esta primeira parte da sua missão, traziam os padres por ordem que intentassem os sertões do Maranhão,

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que naquele tempo estava ocupado pelos franceses, apalpando a disposição dos índios seus confederados e vendo se os podiam inclinar à pureza da fé católica, que entre os franceses estava mui viciada de heresias e à obediência e vassalagem dos reis de Portugal, a quem pertenciam aquelas conquistas (VIEIRA, 1992: 130).

Essa dupla submissão de que fala Vieira — ao catol ic ismo e ao rei por tuguês — está expressa no retábulo da Sé Nova, marcada pelo ar t i f íc io barroco da dispersão e da recolha: disseminados, anjos e gent ios, conhecidos através das viagens marí t imas; como síntese, os índios-anjos-sereias . No retábulo da Sé Nova, os mot ivos unem-se, pretendendo mostrar o t r iunfo de um duplo projeto del ineado desde muito.

Mas, just i f icado pelo fato de ser

CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d.

VIEIRA, Pe. Antônio. Escritos Instrumentais sobre os Índios. São Paulo: EDUC-Editora da PUC-SP/ Loyola/ Giordano, 1992.

BIBLIOGRAFIA

3 São de reler as palavras de Caminha: “Águas são muitas; infindas. E de tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que vossa alteza em ela deve lançar” (CORTESÃO,s.d.,p.80).

decoração de um templo jesuí t ico num momento em que a evangel ização já v inha dando os seus frutos, em que a Companhia atuava em favor do gent io, o t raço da inf idel idade é subst i tu ído pelo do amor. As f iguras do anjo- índio e do anjo-or iental que seguram f lores, em vez de espada, e empunham um escudo com coração mater ia l izam um pensamento já ant igo entre os jesuí tas do Brasi l .

A disseminação de aves e outros elementos da fauna e da f lora nos retábulos da Sé coimbrã, embora seja um procedimento comum e tradicional , vem, neste caso, l igada ao mot ivo da fer t i l idade e da abundância tão caro ao Barroco, e reforça nesta narrat iva a imagem da submissão econômica também presente nesta alegor ia.

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CAMINHANTES E SEUS CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DA URBE PAULISTANA

Por Prof. Dr. Roberto Coelho Barreiro Filho 1

Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.

Assim é a ação humana pelo mundo fora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;

E o sol é sempre pontual todos os dias.Alberto Caeiro

Fernando Pessoa

1 Formado em Publicidade (FAAP), com mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutorado em História (PUC-SP). É professor do MAS-SP.

Os Caminhos nos levam a muitos lugares. Esse aglomerado populacional onde ocorre uma série de trocas sociais, comerciais, culturais, administrativas, educacionais, entre outras, em determinado espaço geográfico. São Paulo é um exemplo muito bom disso tudo. Neste ensaio quero falar sobre alguns caminhos formadores/fundadores da cidade de São Paulo.

Podemos lembrar aqui que, logo que a família real desembarcou na Bahia, D. João VI autorizou a abertura de novas estradas entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, o que era proibido desde 1733 porque a Coroa temia o contrabando de pedras preciosas e ouro. Mudávamos a perspectiva de desenvolvimento nacional. Mudávamos nossos caminhares.

Até então, as pessoas circulavam a partir das trilhas criadas pelas tropas que iam para o centro minerador, o Brasil andava em trilhas. O Brasil se descobria em meio a picadas de facão.

A história da cidade de São Paulo está ligada a estas trilhas indígenas que, antes do

descobrimento, já eram muito famosas, não só no país como na América do Sul.

A chamada Trilha dos Tupiniquins é nossa primeira trilha, talvez a mais importante na nossa fundação. Também denominada Caminho de Paranapiacaba (lá pelos lados do município de Mauá) ou Caminho de Piaçaguera, foi a mais antiga e principal ligação entre o litoral (Baixada Santista) e a vila de São Paulo de Piratininga, durante o período colonial e antes dele.

Iniciava-se nos arredores da vila de São Vicente, atravessava uma área alagada (hoje Cubatão) e prosseguia pela Serra do Mar acima até às nascentes do rio Tamanduateí (atualmente cidade de Mauá) e daí ao córrego Anhangabaú na aldeia do famoso índio Tibiriçá em Piratininga (atual Largo de São Bento, no centro histórico de São Paulo). A trilha passava pelo território dos Tamoios (inimigos dos tupiniquins) e, apesar de ser movimentada, nos primeiros tempos da colonização, muitos viajantes foram por eles atacados e muitas vezes devorados. O percurso consumia dois

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dias para subir e um para descer; dependendo do tempo, podia levar mais dias. Alguns relatos falam de cinco dias.

Mas a trilha dos tupiniquins fazia parte de um caminho maior que ligava os dois oceanos! Sim, uma “estrada” transcontinental primitiva. O peabiru, assim chamados antigos caminhos utilizados pelos indígenas sul-americanos desde muito antes do descobrimento, ligava o litoral ao interior do continente. A designação Caminho do Peabiru foi empregada, segundo alguns historiadores, pela primeira vez pelo jesuíta Pedro Lozano no início do século XVIII, ao que se supõe. Outras fontes, no entanto, dizem que o termo já era utilizado em São Vicente logo após o descobrimento do Brasil, em 1500. O certo é que o principal destes caminhos constituía-se em uma via que ligava os Andes ao Oceano Atlântico – de um lado a outro da América do Sul! Mais precisamente, de Cusco, no Peru (embora talvez se estendesse até o Oceano Pacífico), ao litoral brasileiro na altura da cidade de São Vicente, estendendo-se por cerca de 3.000 quilômetros, atravessando os territórios dos atuais Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil. Segundo os relatos históricos, o caminho passava pelas regiões das atuais cidades de Cusco, Assunção, Foz do Iguaçu, Alto Piquiri, Ivaí, Tibagi, Botucatu, Sorocaba e São Paulo até chegar à região da atual cidade de São Vicente. Ainda havia outros ramos do caminho que terminavam nas regiões das atuais cidades de Cananeia e chegavam a Florianópolis. Dá para entender o destino da cidade de São Paulo para essa imensa massa populacional e sua importância no continente. Já éramos um entrocamento comercial, bem antes da presença europeia.

Um outro “caminho” ou “trilha”, chamado Caminhos do Mar de São Paulo, foi aberto, ao final do século XVIII, em função das precárias condições do Caminho do Padre José de Anchieta, que inviabilizavam o transporte do açúcar e demais gêneros do planalto de Piratininga pela Serra do Mar até ao porto de Santos, no litoral. Relatos nos falam de mortes em função do terreno muito escorregadio na decida da Serra do Mar. Em dias de chuva, as mortes se intensificavam. Tempos difíceis!

Desse modo, em 1790 iniciou-se uma nova via, calçada de pedras, por determinação do governador da capitania de São Paulo, Bernardo José Maria de Lorena (que dá nome, hoje, à Alameda Lorena), apelidada assim como calçada de Lorena. As obras ficaram a cargo do Brigadeiro João da Costa Ferreira, engenheiro da Real Academia Militar de Lisboa. Concluída em 1792, estendia-se por 50 km, reduzindo em cerca de 20% o percurso entre Santos e São Paulo de Piratininga.

É considerada uma das maiores obras da engenharia na colônia, à época, uma vez que transpor os mais de 700 metros de desnível representados pela Serra do Mar, a chamada Muralha, numa região de mata densa e altos índices pluviométricos, foi um desafio que, para ser vencido, exigiu de seus construtores a adoção de técnicas ainda inéditas na Capitania de São Paulo. A pedra foi utilizada na pavimentação, na construção de muros de arrimo e de proteção junto aos despenhadeiros e nos canais pluviais da Calçada. Nas curvas do trecho de serra, caixas de dissipação desviavam para fora da via as águas conduzidas pelos canais pluviais. Uma obra monumental.

Menos íngreme, foi a primeira via a possibilitar o trânsito de tropas de muares, consumindo apenas dois dias na subida.

Uma das mais importantes viagens realizadas por essa via ocorreu em 1822, uma vez que por ela o Príncipe-Regente D. Pedro subiu a serra em direção a São Paulo, vindo a proclamar, a 7 de setembro, a Independência do Brasil. Com indigestão de costelinhas de porco comidas em Santos.

Os remanescentes da calçada encontram-se preservados e abertos à visitação turística no trecho que se estende do seu início, no planalto, até ao seu terceiro encontro com a Rodovia Caminho do Mar, outro importante caminho da cidade de São Paulo ao mar.

Nos caminhos Bandeirantes, algumas estradas acabaram por produzir um grande desenvolvimento para cidade de São Paulo. Uma delas é a Rodovia Anhanguera. A primeira menção se tornaria histórica a partir de 1720: Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, o moço, sairia de São Paulo com uma tropa de 152

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homens acompanhado de dois religiosos em direção a Campinas. Mais tarde, atravessando o rio Mogy Guaçu, chegaria a Jundiaí, arredores de Campinas, e iniciaria o desbravamento do oeste paulista. Já em 1774 a estrada era utilizada para o interior de São Paulo. Foi a primeira estrada brasileira duplicada e pavimentada, no século XX.

Em substituição à estrada Caminhos do Mar, em 1929, o presidente de São Paulo, Júlio Prestes, e o interventor Adhemar de Barros entregavam a rodovia Anchieta, que, mais tarde, seria ampliada e receberia outra grande estrada ao Porto de Santos, que é a Rodovia dos Imigrantes.

Além dessas importantes vias ao Porto de Santos ou ao oeste paulista, outras duas grandes estradas fariam parte de São Paulo um importante entreposto comercial nacional. São elas a Rodovia Régis Bittencourt e a Rodovia Fernão Dias.

Essas entradas e bandeiras, esses bandeirantes formavam e ampliavam os antigos caminhos indígenas e criavam poderio empresarial e político da cidade de São Paulo e do Estado de São Paulo posteriormente.

Éramos então uma província que contemplava os estados de Goiás e Mato Grosso, Paraná e Minas Gerais em um único grande estado de São Paulo.

No século XIX, a chegada da ferrovia inaugurava novos caminhos. Desta vez, a ferrovia viria a agilizar e ampliar os caminhos de conquistas do estado de São Paulo. Foi assim que a chamada estrada Santos-Jundiaí (a São Paulo Railway) seria inaugurada em 1867, tendo como principal ponto de parada a cidade de São Paulo na Estação da Luz, antes de completar a viagem até Santos.

Em 1870, chegaria a Companhia Estrada de Ferro Sorocabana, que ligaria a cidade de São Paulo a Sorocaba no escoamento do café. Estas duas estradas de ferro faziam com que o escoamento da maior riqueza do país chegasse

ao porto de Santos e, de lá, ao mundo. A área de transbordo era realizada aqui na cidade de São Paulo na região do Bairro do Bom Retiro.

Nossa ligação com o Rio de Janeiro seria feita pela Rodovia Dutra ou pela estrada de ferro Central do Brasil. A Rodovia Dutra foi entregue em 1951; neste período, cerca de 50% do PIB nacional passava por ela. O ramal Central do Brasil em 1860 começava subir a Serra do Mar, chegando então ao Vale do Paraíba e, posteriormente, à cidade de São Paulo.

Como podemos ver, a cidade de São Paulo provinciana em seu início já tinha uma tendência a ser o ponto de partida para comércios e serviços nacionais e internacionais; mais tarde, a partir de suas trilhas, os bandeirantes fizeram suas entradas e bandeiras, ampliando o mapa de possessões portuguesas no continente americano. A partir daí das entradas e bandeiras, inicia-se a ampliação dos domínios paulistas no território nacional. A chegada das estradas e das ferrovias amplia o controle econômico e político de São Paulo.

De uma pequena aldeia indígena, em 1554, com suas trilhas, em 1872 já éramos 31 mil habitantes. Em 1920 já éramos 579.040; anos depois, 3.800.000. As ligações por estradas fizeram de São Paulo uma das maiores cidades da América Latina e uma das maiores do mundo.

Aquela cidade que surgia de uma missão jesuíta reunia então poucas pessoas no seu início. Com o tempo, acabou se caracterizando como um grande entreposto comercial e de serviços, e trouxe para sua história seu espetacular crescimento populacional e econômico que, com a chegada do ciclo do café e, posteriormente, a industrialização, levou esta cidade de trilhas a ser a maior cidade do país.

BUENO, E. Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

PORTA, P. História da Cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2009

MOURA, C. E. M. Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Ateliê, 1999.

BIBLIOGRAFIA

“Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e

retocando sonho pelo qual se pôs a caminhar.” Paulo Freire.

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Foi em resposta às demandas geradas pelas temporalidades econômicas que os negros começaram a traçar seu lugar nas cidades brasileiras, acomodando-se em irmandades cujas igrejas demarcariam os espaços do catolicismo afro-brasileiro. A boa articulação dos africanos geraria prestígio às irmandades dos escravos, possibilitando a estes a ereção de belos templos, a organização de um conjunto de bens sacros ou imobiliários e a recriação de costumes ancestrais que, na diáspora africana, floresceriam em festas e costumes inseridos posteriormente na lista do patrimônio nacional.

Ainda que existissem pressões dos poderes eclesiásticos ou legislativos a tal manifestação cultural, os negros souberam salvaguardar suas práticas religiosas na ambiência dos templos católicos, sendo possível, a partir da

AS IGREJAS DAS IRMANDADES DOS HOMENS PRETOS: DOCUMENTOS DA CULTURA RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA

Por Fabricio Forganes Santos 1

1 Arquiteto e urbanista, investigador FAPESP/USP, curador de arte, integrante da Comunidade do Rosário na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França (São Paulo) e professor do MAS-SP.

Em um momento em que se repensa a diversidade dos contributos dos negros na elaboração do pensamento brasileiro, destaca-se a compreensão das Igrejas dos Homens Pretos na formação do pensamento católico, cultural e artístico nacional.

análise desses lugares, a compreensão de um importante capítulo da vida da população negra ao longo da história colonial do Brasil. Este trabalho pretende “colocar luz” sobre as Igrejas das Irmandades dos Homens Pretos, valorizando esses edifícios não somente como documentos de investigação, mas como marcos de resistência do povo negro na paisagem urbana das cidades brasileiras.

Retirado das terras africanas, ao pisar em solo português o negro seria prontamente inserido em alguma das irmandades disponíveis, seguindo o costume vigente em tempos em que cabia aos leigos a responsabilidade dos cultos e demais resoluções inerentes ao ciclo do nascimento à morte. Em Portugal, as confrarias agrupavam homens e mulheres segregando-os de acordo com padrões sociais, raciais, de ofícios ou devoções.

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2 Neste trabalho, as palavras “confraria” e “irmandades” serão utilizadas indistintamente porque as diferenças de cunho religioso não chegam a afetar os aspectos históricos ou sociais desses grupos.

No caso dos negros, em geral introduzidos nas cidades portuguesas como mão de obra, coube a inserção na irmandade que o acolhesse, escolhendo – ou sendo escolhido – pelos dominicanos lisboetas, cuja devoção maior, a Virgem do Rosário, já tinham contato desde o início da colonização dos portugueses na África.

De acordo com o pesquisador José Ramos Tinhorão (1988), além da imagem de Nossa Senhora do Rosário, o convento dos dominicanos em Lisboa também contemplava em um dos altares a figura do Santo Rei Baltazar, o que reafirmaria a associação dos negros a este templo a partir de aproximações com a cor da pele retratada neste santo. Outros oragos também passariam a ser venerados nas irmandades negras criadas em Portugal entre os séculos XV e XVII, cujo crescimento de adeptos se justificaria, em parte, pela expansão portuguesa na África e, em parte, pela chegada de negros escravos de diversas etnias, cujas disputas territoriais ainda subsistiam preservadas mesmo na diáspora africana.

Esse modelo de agrupamento devocional também começaria a ser praticado na África, induzido principalmente pela expansão do catolicismo a partir do reino do Congo, dotado de um rei convertido à nova doutrina. Das irmandades católicas localizadas em cidades africanas, todas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário, fora identificada uma na Ilha de São Tomé fundada em 1526; uma em Sena, Moçambique, criada em 1577; e outra instalada na Igreja de São Salvador em 1610, no reino do Congo. Além da fundação dessas irmandades, seriam erguidas três igrejas dedicadas ao mesmo orago em Luanda pelo ano de 1690 (Karasch apud Pedrosa, 2018).

Importa ressaltar que os modos de adesão ao catolicismo teriam ecos nas práticas católicas afro-brasileiras, contribuindo para o estabelecimento de capítulos ou retificações muito particulares nos compromissos de algumas irmandades negras – caso das associações restritas a mulheres ou as segregações étnicas e identitárias presentes em outros estatutos – , em detrimento da apropriação de tradições ou da diversidade cultural presente em outras

confrarias – caso da adoção do rei do Congo em irmandades que não aceitavam negros bantos. Independentemente das particularidades ligadas aos processos de conversão, as confrarias africanas e portuguesas certamente gerariam os modelos para as irmandades negras brasileiras, incluindo, no caso nacional, as questões relacionadas à aquisição dos terrenos, construção dos edifícios e formação de patrimônio sacro, responsabilidades que contribuíram para o desenvolvimento de ações e estratégias eficazes na preservação, reconstrução e perpetuação de um legado físico e imaterial.

No Brasil, as diferentes práticas religiosas podem ter como primeiro momento a chegada de grupos de africanos de variadas etnias, cujas demandas objetivavam cumprir as necessidades das temporalidades econômicas brasileiras ao longo dos séculos, sendo a religião, neste caso, parte da bagagem cultural de que esses povos disporiam para a formação da identidade desta nação.

Conforme a historiografia dos movimentos da escravidão, o ingresso desses africanos no Brasil pode ser classificado em ciclos. O

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primeiro traria os negros da região da Guiné no século XVI. O segundo proporcionaria o ingresso considerável de negros da região de Angola e Congo no século XVII. O terceiro traria os negros da Costa da Mina no século XVIII. No último ciclo, os negros viriam de diversas partes da África, quando os raptores conseguiam realizar suas operações na ilegalidade do século XIX (Filho, 2008).

A alternância desses povos africanos no Brasil contribuiria para a criação de irmandades negras muito díspares, constituídas com particularidades que podem ter paralelo com as características regionais de cada contingente negro ou mesmo inerentes aos costumes de cada grupo metaétnico, favorecendo a realização de cultos católicos afro-brasileiros com aspectos muito particulares em cada região do país.

O primeiro momento das irmandades negras foi composto pela segregação racial dentro dessas confrarias, proporcionando a recriação desses grupos na diáspora africana. Sendo assim, cada irmandade seria formada por seus compatriotas, estando tais restrições anotadas nos compromissos das irmandades fundadas principalmente nas cidades do Nordeste brasileiro. Tal aspecto, de certa forma, contribuiria com os ideais da população branca que objetivava o enfraquecimento desses povos, fortalecendo o regime de escravidão nas principais cidades brasileiras. Contudo, o negro compreenderia a importância de suas irmandades na garantia de interesses sociais, reconsiderando as leis discriminatórias em prol do fortalecimento de espaços privilegiados inseridos nos principais centros urbanos.

Nascidas nos altares laterais da Igreja matriz, as irmandades negras, à medida que se fortaleciam, solicitavam a construção de suas igrejas por meio do Auto de Ereção, organizando sua vida religiosa e construindo seu patrimônio. Ainda que o espaço destinado a tal edificação pudesse ser em local afastado ou menos privilegiado, podendo a arquitetura da igreja estar em menor destaque quando comparada às igrejas das irmandades brancas, vale ressaltar que dois dos maiores artistas do barroco brasileiro, os mulatos Aleijadinho e

Mestre Valentim, eram afiliados às irmandades negras de suas cidades, com várias passagens importantes vivenciadas no cotidiano desses espaços católicos afro-brasileiros, utilizando seus esforços, algumas vezes, para abrilhantar a arquitetura desses templos como as sedes de irmandades negras em cidades das Minas Gerias ou do Rio de Janeiro.

Assim como acontecia com toda a população brasileira, também aos negros a vida religiosa católica tinha um importante papel. Aos escravos, no entanto, o espaço católico afro-brasileiro era provavelmente o único momento em que poderiam sociabilizar longe dos olhos dos brancos. Além dessa importante contribuição, as igrejas das irmandades poderiam concretizar necessidades fundamentais para a sua cultura, como a possibilidade de um sepultamento em solo sagrado, cujo funeral realizado segundo práticas próprias resgataria costumes africanos.

Desta forma, os espaços católicos afro-brasileiros se tornariam fundamentais para a preservação de costumes ancestrais, estando presentes inclusive em regiões mais afastadas, lugares em que os sacerdotes nem sempre chegariam, caso dos quilombos, onde também foram encontradas igrejas de Nossa Senhora do Rosário .

Sobre as devoções particulares dos negros no Brasil, além da presença constante de Nossa Senhora do Rosário, iniciada pelos

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17ª Festa de N.S. do Rosarios dos Homens Pretos da Penha de Franca, em Sao Paulo. Foto: Erica Pontes Catarina.

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dominicanos e propagada em solo brasileiro pelos jesuítas, é notável a existência de santos negros nos templos das irmandades negras, dentre eles São Benedito, Santo Antônio de Catageró, Santa Efigênia, Santo Elesbão e Santo Rei Baltazar, oragos cuja cor da pele ocasionaria aproximações com esses povos e poderia fazer paralelo com outros aspectos inerentes a culturas africanas, principalmente nas questões ligadas ao culto à ancestralidade por parte dos africanos ou afrodescendentes de origem banto.

Outra devoção muito comum entre os negros era ao conjunto da Paixão de Cristo, composto pelas figuras de Jesus Crucificado, Nossa Senhora das Dores, João Evangelista e Maria Madalena; deste último conjunto podemos extrair a criação de festejos particulares, como a Festa de Nosso Senhor do Bonfim. Por fim, alguns santos católicos seriam resgatados pela população negra a partir do cruzamento da história destes com os mitos transmitidos na oralidade das religiões de matriz africana, corroborando para um maior alcance da doutrina católica a partir do sincretismo de justaposição proporcionado entre tais seres divinizados.

A vida social da população brasileira durante o período colonial era organizada pelas festas religiosas. Parte do calendário era composto pelas solenidades que discorriam sobre a vida de Jesus Cristo, restando aos demais dias os

festejos dos oragos de cada uma das irmandades leigas, cujas datas, preestabelecidas pelo cânone católico, delineavam o cotidiano de cada instituição religiosa. Inseridas na sociedade, as irmandades negras também seguiriam o calendário determinado pela Igreja Católica, organizando, neste caso, o tempo livre dos irmãos de acordo com as responsabilidades ou tarefas estabelecidas pelos seus compromissos.

Ainda que a festa do padroeiro fosse celebrada por todas as irmandades obedecendo alguns costumes, independentemente de serem oragos de brancos ou de negros, os africanos aproveitariam tais festejos para resgatar tradições ancestrais que poderiam ser inseridas nas práticas católicas afro-brasileiras, revelando principalmente suas origens a partir do uso de determinados ritos que encontrariam correspondência na cultura dos iorubás ou dos bacongos, principais grupos introduzidos no Brasil durante a escravidão negra. Tais ritos acabaram sendo incorporados na tradição de cada um desses festejos católicos, e a acolhida popular ao longo dos séculos reforçaria a diversidade como parte da identidade do povo brasileiro, dificultando inclusive o reconhecimento das origens de tais atos.

Enquanto os negros bantos recriariam nas cidades brasileiras os símbolos religiosos perdidos pela diáspora africana, os iorubás camuflariam os dogmas do culto aos orixás nas festas dos santos católicos, resgatando sobretudo as características principais de sociedades africanas por meio de costumes ou de vivências mitológicas. As irmandades constituídas, em sua maioria, pelos negros oriundos de Angola ou do Congo dariam muita atenção à figura do Rei e da Rainha do Congo, personagens protegidos pelas guardas de Congadas e Moçambiques durante as procissões ou eventos religiosos.

Além dessa particularidade, já iniciada pelos irmãos negros em Portugal, outro aspecto bastante inerente à cultura banto que floresceu no Brasil foi a devoção aos santos católicos sincretizados com divindades domésticas africanas como os Nkisis, muito cultuados nas tribos da África subsaariana, de onde sairiam a afetuosidade a São Benedito ou a produção

653 Ver Quilombo de Ivaporunduva, na cidade de Eldorado, São Paulo.

17ª Festa de N.S. do Rosarios dos Homens Pretos da Penha de Franca, em Sao Paulo. Foto: Erica Pontes Catarina.

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FILHO, L. V. O negro na Bahia (um ensaio clássico sobre a escravidão). 4 ed. Salvador: EDUFBA: Fundação Gregório de Mattos, 2008.

PEDROSA, A. Histórias afro-atlânticas. v.2. Antologia/ Organização editorial Adriano Pedrosa, Amanda Carneiro, André Mesquita. São Paulo: MASP, 2018.

SCARANO, J. Devoções e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino do século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975.

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BIBLIOGRAFIA

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dos santos de nó de pinho procedentes do Vale do Paraíba (Altuna, 2014). Na tradição das irmandades mineiras, a necessidade de aproximação com a divindade favoreceria, inclusive, a criação de lendas muito particulares, como a do mito fundador de Nossa Senhora do Rosário, em cuja festa realizada na cidade de Minas Novas (MG) a padroeira é retirada de dentro do rio (Sá, 2016).

Em contrapartida ao mito fundador dos mineiros, os adeptos das irmandades negras do Nordeste fundiriam as histórias dos santos católicos com a mitologia dos orixás, usufruindo da oportunidade de festejar um padroeiro para recriar costumes ancestrais –caso da Lavagem do Bonfim, equiparada por alguns historiadores e antropólogos como uma louvação ao orixá Oxalá (Bastide, 1971). Outras particularidades da cultura dos africanos que se concentraram mais no Nordeste podem ser identificadas a partir dos compromissos das irmandades, confrontados, por exemplo, na valorização da mulher para algumas tribos em comparação às confrarias exclusivamente femininas, como a dedicada a Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira da Bahia.

Não obstante a maneira de ser católico afro-brasileiro, prática que poderia estar relacionada ao patrimônio imaterial por ser original e genuína, outras vertentes nascidas sob o teto das Igrejas dos Homens Pretos merecem destaque como contribuição dos negros católicos à formação do legado nacional. Além das Congadas, Moçambiques e outras expressões culturais intimamente ligadas aos eventos religiosos, ao redor das irmandades negras também se deu o nascimento de eventos “profanos”, como o samba de roda e o maracatu, reconhecidos como demonstração máxima da identidade do

povo brasileiro. A investigação apurada a esse patrimônio

imaterial ou aos bens materiais edificados pelas irmandades negras pode identificar adaptações ou reformulações, resultado dos processos de modernização impostos pelo tempo. Contudo, o reconhecimento das correspondências ancestrais, da resposta ao choque cultural com europeus e das inovações provenientes por estar no Brasil são características fundamentais para o olhar cuidadoso para com as Igrejas dos Homens Negros e a atenção especial para com este importante documento da cultura religiosa afro-brasileira.

Embora incompreensível para o clero da época e muitas vezes divergente para os pesquisadores contemporâneos, as bases que fundaram algumas irmandades negras e apoiaram as manifestações religiosas católicas afro-brasileiras proporcionaram a preservação de um legado cujas práticas ou festejos acabaram por ser incluídos na lista dos bens imateriais do patrimônio nacional, especialmente em virtude da forte e complexa estrutura fundadora.

Celeiro de eventos identificados como legítimos pela maior parte da população negra contemporânea, muitas das Igrejas dos Homens Pretos ainda encontram-se esquecidas no plano urbano de nossas cidades, desabitadas de gente e de culto. Valorizar esses edifícios, independentemente das questões estéticas que o abarcam, é garantir o reconhecimento desses lugares como testemunhos de resistência negra no urbanismo de nossas cidades e, para além disso, qualificar tais espaços como marcos fundadores, parte constituinte e célula primordial na construção da cultura e da identidade do povo brasileiro.

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MUSEU DE SÃO ROQUE: DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E FÉ

Para um brasileiro, a visita ao Museu de São Roque e à Igreja do mesmo nome, localizada ao lado, se torna obrigatória se estiver em Lisboa. Se por fora a construção pode não chamar muito a atenção de um turista desavisado, por dentro se revela um enorme conjunto de preciosidades que despertam a curiosidade.

O local foi um dos primeiros museus de arte de Portugal. Desde a sua abertura, em 11 de janeiro de 1905, ficou instalado no edifício da antiga Casa-Professa da Companhia de Jesus em Lisboa, espaço contíguo à Igreja de São Roque, que tinha sido doado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 1768, após a expulsão dos jesuítas.

O lugar é, por si mesmo, histórico. Ali saíram, para o Brasil, o Padre Manoel da Nóbrega, bem como o Apóstolo do Brasil, Padre José de Anchieta. Ali esteve também um dos nomes máximos da literatura de Língua Portuguesa, o Padre Antonio Vieira, homenageado por meio de uma polêmica estátua logo na entrada do Museu. As variadas reações que a estátua provoca valem, por si só, conhecê-la.

Ao longo de sua existência, o museu foi objeto de várias remodelações que possibilitaram acompanhar as mudanças no campo da museologia. A remodelação mais profunda se deu entre 2006 e 2008, permitindo ao museu ampliar e duplicar a sua área de exposição permanente, que aqui temos oportunidade de visitar. Além do sentido de acolhimento que transpira em todo o museu.

A Coleção de Pintura reúne obras dos

Por José Luís Landeira

FOTORREPORTAGEM

séculos XVI a XX. A de Escultura é constituída por mais de duas centenas de peças, que formam um conjunto representativo das mais importantes correntes artísticas portuguesas dos séculos XVI a XX, especialmente o período maneirista e barroco. A de relicários da Igreja e do Museu de São Roque é uma das mais importantes do mundo, devedora a D. João De Borgia, neto do Papa Alexandre VI, da temida família dos Borgia, e pai de São Francisco de Borgia. Dom João, embaixador de Filipe II de Espanha na corte do Imperador Rodolfo II, legou a sua coleção de relíquias aos Jesuítas de São Roque, em 1587. Representa um testemunho ímpar no contexto da História da Arte Portuguesa e da História da Igreja da Contrarreforma católica. Merecem também atenção as coleções de ourivesaria, de iluminuras e de arte oriental. Além, é claro, da própria Igreja de São Roque e de sua famosa Capela de São João Batista.

Fica aqui registrado um agradecimento muito especial à Dra. Maria Teresa Torres Fontes de Freitas Morna, diretora do Museu de São Roque, que foi de uma atenção e delicadeza excepcionais em acolher a proposta desta fotorreportagem, assim como à minha cicerone durante a visita, Filomena Brito.

Também vale assinalar que, desde este ano, o Museu de São Roque da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa é parceiro institucional do Museu de Arte Sacra de São Paulo.

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O Museu de São Roque da Santa Casa de Misericórdia de

Lisboa é parceiro institucional do Museu de Arte Sacra de São

Paulo (MAS-SP)

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A Igreja de São Roque foi a igreja principal da Companhia de Jesus (jesuítas) em Portugal durante mais de 200 anos, antes da expulsão pelo Marquês de Pombal, no século XVIII.

A Igreja de São Roque foi um dos raros edifícios em Lisboa a sobreviver ao Terremoto de 1755, conservando o estilo próprio da Contrarreforma que serviu de modelo para a arquitetura religiosa colonial do Brasil.

Tem diversas capelas, sobretudo no estilo barroco do século XVII inicial, sendo a mais

notável a de São João Baptista, do século XVIII, feita pelos arquitetos Luigi Vanvitelli (1700-1773) e Nicola Salvi (1697-1751), o mesmo que projetou a Fontana de Trevi, em Roma.

Os painéis central, “Batismo de Cristo”, e os laterais, “Anunciação” e “Pentecostes”, são do pintor Agustino Masucci (1691-1758), transpostas para micromosaico por Mattia Moretti (?-1779). Sim, as obras que você verá não são efetivamente pinturas, mas um genial trabalho de mosaico.

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01 - Fachada Museu São Roque.02 - Calcário Policromado (Início do século XVI).03 - A relíquia de São Roque, que dá origem à denominação da Igreja e do Museu.04 - Galeria do Museu.05 - Sant’Ana e São Joaquim, Portugal, c. 1700.06 - Detalhe.07 - Casamento de Santo Aleixo (1541) de Garcia Fernandes.08 - Coleção de Santos de Roca.09 - Galeria do museu dedicada à Capela de São João Batista.10 - Claustro.11 - Coleção de marfim.12 - Coleção de ourivesaria.13 - Galeria do museu.14 - Galeria do museu.15 - Galeria do museu e suporte midiático.16 - Fachada da Igreja de São Roque.17 - O altar da Igreja com os espaços em que são exibidos os relicários.18 - Capela de São João Batista.19 - Batismo de Cristo (Mosaico de Mattia Moretti que transpôs uma pintura de Agustino Masucci).20 - Anunciação.21 - Pentecostes.22 - Igreja de São Roque (detalhe).23 - Detalhe da capela.24 - Sacristia com coleção de quadros dedicados a São Francisco Xavier do século XVII e XVIII.25 - Minha generosa cicerone Filomena Brito.26 - E para terminar a visita, um passeio pelas cercanias.

LEGENDA

Museu de São Roque: Largo Trindade Coelho

200-470 | Lisboa | Portugalwww.museu-saoroque.com

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A GÊNESE DO TEMPLO CRISTÃO

Por Wilma Steagall de Tommaso 1

O texto a seguir reproduz a palestra proferida no dia 8 de agosto de 2018, no Museu de Arte Sacra de São Paulo, pela professora Doutora Wilma Tommaso.

1 Doutora em Ciências da Religião e Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo.

Para os primeiros cristãos, era claro que a Igreja como edifício, sempre e em todos os tempos, era a imagem do Corpo de Cristo. O Concílio Vaticano II, em seu convite para estudarmos a liturgia e a arte e arquitetura sacras, sugere a conveniência de nos fixarmos à época em que a Igreja começou a liturgia e os edifícios sacros, quando havia uma ideia clara do que se buscava. Em comparação, mil anos mais tarde a situação havia se complicado. Por isso, para se estudar a eucaristia, não devemos nos basear nos anos cinquecento, mas nos primeiros cinco séculos da Igreja.

Para estudar a Igreja como edifício, convém focarmos um período preciso: o da passagem da Igreja como casa, Domus Ecclesiae, à Igreja como edifício público. A importância desse período está em nos revelar com clareza o que é para os cristãos o edifício litúrgico.

Na liturgia da Domus Ecclesiae, celebrava-se em volta da mesa, e a prioridade era dada ao cenáculo na forma do que era a Última Ceia. Na Última Ceia, Cristo mostra aos discípulos que Ele é o Dom, a Oferta do Pai, e se entrega nas mãos dos homens, para que esses, “destruindo” e comendo desse dom, descubram a bondade do Pai e voltem ao Pai. O sentido teológico da Última Ceia é o retorno ao Pai, e esse era o espírito da liturgia doméstica dos primeiros cristãos. Pelo batismo, o cristão se torna filho; na eucaristia, ele retorna ao Pai, o que se dá na casa dos cristãos, a casa do Pai.

A partir do Édito de Milão em 313, que permitiu as celebrações de culto, os cristãos deixaram de celebrar nas casas e começaram a celebrar em edifícios públicos. Esses edifícios eram, muitas vezes, mercados, pois homens poderosos se converteram e doaram imóveis para a celebração do culto cristão. Os cristãos

entravam e celebravam a liturgia, mas, quando terminavam, percebiam que o espaço havia se transformado. A liturgia havia transfigurado o mundo. O mistério que acontece no altar, acontece no cristão, mas onde termina? Ninguém sabia responder. Percebiam que era algo que penetrava no mundo, a cristificação, a transfiguração do mundo.

Os cristãos, portanto, entenderam que é propriamente a liturgia que modela o espaço que se tornou a casa, a nossa casa. Entrando na Igreja, os cristãos sentiam a comunhão em ação, um mundo novo, uma nova criação, uma nova humanidade reconciliada, não mais individualista, pois a vida de Deus é unidade. Nesse sentido, São João Crisóstomo diz que a verdadeira base da eucaristia é o povo. Encontramos um movimento pendular: os cristãos se reúnem, pois receberam no batismo uma vida de comunhão, e não resistem se vivem individualmente. Sete dias depois, o mundo os sufoca de novo e eles voltam a ser indivíduos, por isso têm necessidade do domingo. A vida que receberam no batismo leva-os à conversão no domingo.

Para alcançar a compreensão dos cristãos de que é a liturgia que faz o espaço, precisamos entender a liturgia como uma passagem: os cristãos se reúnem e pela eucaristia entram na casa do Pai. No Santuário do Santuário, na Jerusalém celeste, na Praça de Ouro, do Apocalipse (capítulos 21-22), é aí que se convoca todo o Corpo de Cristo, de Abraão a nós. Na anáfora armênia, por exemplo, até as crianças que ainda não nasceram são convocadas. Todos os que pertencem a Cristo são convocados a uma única assembleia. Juntos, cantam: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo”, sintonizados à musica

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celeste. Compreendemos que não são os cristãos que fazem a festa ao Senhor: no “bendito os que vêm em nome do Senhor”, os cristãos são convidados do Senhor à casa do Pai. A eucaristia é o ingresso no Reino; começa quando os cristãos deixam suas casas domingo para ir à celebração eucarística e termina no Escathon. Na casa do Pai entram, “por Cristo, com Cristo, em Cristo”, a vós Deus Pai estão todos aqui e agora sim podem dizer: “Pai Nosso que estais no céu”. Ao voltar da igreja, estão com os olhos limpos por tudo que viram no santuário em comunhão, conhecendo o Pai, e recebendo o que ofertaram, o Corpo de Cristo.

Assim, Santo Agostinho conta que, quando o diácono lhe dizia o “Corpo de Cristo”, ele respondia: “Amém, isto eu sou, sou o Corpo de Cristo e entro no mundo para transfigurar o mundo”.

A liturgia é uma passagem de um espaço a outro: de uma história ordinária a uma história santa, da criação inicial a uma nova criação, de uma realidade de pecado a uma realidade santa. Os cristãos se recordaram de Moisés quando Deus lhe pede para construir a tenda do encontro. A Carta aos Hebreus (capítulos 8, 9 e 10) diz que Deus fez esse gesto a Moisés para dar a chave de leitura de toda a obra de Cristo e de tudo que é a Igreja.

Deus diz a Moisés que construa uma primeira tenda, onde os sacerdotes e o povo entram e fazem a liturgia. Mas há ao lado uma segunda tenda, que é a habitação de Deus, o Santo dos Santos, a verdadeira casa de Deus que Moisés não viu, porque Deus não permitiu, deu-lhe apenas o modelo.

A primeira tenda é a humanidade, mas o homem não pode caminhar para Deus, não pode sair dele mesmo. Pode lançar-se em um mundo ideal, um mundo metafísico que acaba em moralismo e que não leva nada da humanidade ao Reino. Entre as duas tendas há uma cortina que representa o pecado e a morte, que ninguém jamais superou. Mas, simbolicamente, uma vez ao ano, o sumo sacerdote entra nesse espaço que não é o verdadeiro santuário, mas um modelo.

A carta aos Hebreus diz, refletindo sobre essa estrutura veterotestamentária, que na segunda tenda habita o Pai que enviou seu Filho, que atravessou o céu e se fez Homem. Na Septuaginta, tradução grega da Bíblia, há uma belíssima expressão que fala da humanidade como uma tenda. Deus criou o homem e depois entra na sua tenda, se fazendo homem. Deus entra como Homem e vai em direção ao véu entre as duas tendas.

Encontramos nos capítulos 4 e 5 da Carta aos Hebreus uma descrição dramática de uma liturgia de gritos e lágrimas: o Filho para ser liberado da morte, solidário a todos os homens, passando por tudo que a humanidade passa. A carta fala de sacrifícios, gritos e sofrimentos, porém, Deus deu a seu Filho a vitória, vencendo a morte. Está nos Evangelhos que, no momento

Figura 1: as duas tendas de Moisés.

Figura 2: representação da primeira tenda.

Figura 3: o simbolismo do Filho na tenda.

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da morte, o véu do templo se rompeu, porque o Filho sabia que além do véu, ou seja, da morte, está o Pai. Por isso o Pai o enviou — e é importante notar como Cristo insiste em muitas passagens que o Pai o enviou — porque, assim, o Pai o ressuscita. Essa passagem entre as tendas é a liturgia.

Essas duas realidades juntas, as duas tendas, formam o Cristo, a unidade, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Tudo que é divino pode vir em direção ao homem e tudo que é humano tem acesso a Deus. Mas a Igreja ensina que essa unidade é a igreja e que não coincide perfeitamente com o Cristo — o que vai acontecer só no Escathon —, mas é o ingresso ao Reino, e a liturgia é essa passagem.

Os cristãos levam ao altar pão e vinho, suas ofertas ao universo, a terra e seu trabalho, depois desce o Espírito Santo, que transforma a oferta em Corpo de Cristo. Não é uma oferta pura; o Espírito Santo a torna Corpo de Cristo e, após a consagração, entra-se na memória da Páscoa de Jesus, participa-se da sua morte na cruz. É quando toda a humanidade de Cristo penetrada da vida do Filho se torna um dom, e toda a humanidade se torna um dom, uma oferenda perfeita. Cristo morre e o Pai o ressuscita.

O Corpo de Cristo eucarístico é constituído pelas ofertas. Essa oferta, ao ser transportada, é a princípio ordinária, depois se transforma em Cristo ressuscitado. O Corpo de Cristo é constituído do pão e do vinho do cristão que celebra, isto é, do seu trabalho. Não há Cristo eucarístico sem o cristão. Na eucaristia, o cristão não se imagina no Reino; ele realmente está no

Figura 4: o simbolismo da unidade das duas tendas.

Reino, porque sua oferta passou, sua vida, seu trabalho, seu cansaço, tudo isso foi ofertado. Tudo isso passou e deve ser respeitado na edificação de uma igreja.

Respeitar essa estrutura teológica – a igreja ter visivelmente essas duas tendas – foi a conquista dos cristãos dos primeiros séculos. A igreja deve ter visivelmente as duas tendas: humanidade e divindade que se transformam em uma Pessoa, Cristo, a unidade. Deve ser visível na estrutura a passagem de uma para outra e, ao mesmo tempo, deve ser visível a unidade, porque Cristo é uma só Pessoa. Observamos aí a inspiração para se construir uma igreja. Esse é um fundamento sobre o qual não há objeções nem objeto para discussões; essa é a fé cristã dos primeiros séculos que é resgatada pelo Concílio Vaticano II.

As primeiras igrejas tinham o formato de uma pagnota (um pão redondo italiano), como se toda eucaristia fosse a pagnota e os cristãos fossem esse corpo. Havia o altar e, dentro do presbitério, uma abside onde ficava o Pantocrator, o Cristo em Glória, que tudo sustenta, como se os cristãos se dessem conta de que estavam na casa do Pai.

Na Basílica de Santa Maria Madalena em Veselay, França, no pórtico havia no início São João Batista e na nártex a memória do batismo, que exprime a vida nova. No solstício de verão, na semana de 24 de junho, quando se celebra São João Batista, surgem pontos de luz no chão da igreja que traçam o caminho para a casa do Pai, que é o Altar, que é Cristo. Os construtores elaboraram o espaço inspirados na liturgia, com a arquitetura e a arte servindo ao Cristo. No solstício de inverno, na semana do Natal, o sol reflete nos capitéis norte, nos quais estão representadas a fauna e a flora, a Criação, a qual só se entende sob a luz de Cristo, e cenas do Antigo Testamento, que só se entendem à luz de Cristo.

“a arte dos cristãos se mostra um grande organismo onde tudo está

ligado, uma arte da vida”.

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Temos muito o que aprender dessas antigas igrejas para gerar o espaço litúrgico da atualidade e como construir igrejas com sentido constitutivamente teológico.

Outro exemplo é a Basílica de Monreale na Sicília, Itália, construída na mesma época que Veselay. Ela oferece um espaço que exprime o Corpo de Cristo, e Cristo é a Cabeça desse Corpo. Como Corpo de Cristo, a humanidade

Figuras 5 e 6: trilha de luz durante o solstício de verão e reflexo nos capitéis no solstício de inverno na Basílica de Santa Maria Madalena em Veselay.

revela todo o mistério do Pai, do Filho, do pecado e da Redenção. Todo o Corpo de Cristo é impregnado dessa revelação. Os mosaicos das paredes da basílica faziam os cristãos entenderem a mensagem, como um filme que registra o que acontece. As paredes se tornam o autorretrato da Igreja, revelam a mentalidade e a forma da vida de Cristo.

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BOESPFLUG, F. Dieu et ses images, une histoire de l’Eternel dans l’art. Paris: Éditions Bayard, 2008.

DAWSON, C. A formação da cristandade: das origens na tradição judaico-cristã à ascensão e queda da unidade medieval. Tradução de Marcia Xavier Brito. São Paulo: É Realizações, 2014.

GOVEKAR, N. (a cura di). Il rosso della piazza d’oro: intervista a Marko Ivan Rupnik su arte, fede ed evangelizzazione. Roma: Lipa Edizione, 2013.

PASTRO, C. A arte no cristianismo: fundamentos, linguagem, espaço. São Paulo: Paulus, 2010. p. 262.

RUPNIK, M. I. Via della bellezza sapienza di vita. Museu della Basilica, Santa Maria delle Grazie, Quaderni 5. Firenze: Edizione Feeria, 2007.

RUPNIK, M. I. L’autoritratto della chiesa, arte, bellezza e spiritualità. Bologna: EDB Lampi, Centro Editoriale Dehoniano, 2015.

ZEVI, B. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 71.

BIBLIOGRAFIA

Podemos pensar na complexidade da mensagem apresentada. A forma da existência de Deus é Um no Outro. Para nós isso é estranho, posto que, pecadores, vivemos um ao lado do outro. Porém, Cristo disse: “Como Eu no Pai e o Pai em Mim, Eu estou em vós e vós em Mim”. Essa é a nova existência divina, um no outro. Como para os cristãos nada é superficial, em tudo há muito o que desvelar. Ao ver o pão, o cristão não vê o pão, vê o Cristo; diante do óleo, não vê só o óleo, mas a unção do Espírito.

Os cristãos aprendiam a teologia pelo exemplo das imagens. Assim, podemos pensar em uma parede com estas três imagens: (1) Deus cria a água, (2) a água se torna violenta – dilúvio –, (3) Cristo salva Pedro das águas. Uma imagem se explica com outra, encontra seu sentido na outra, não há nada separado, nada isolado.

Podemos pensar como a arte dos cristãos se mostra um grande organismo onde tudo está ligado, uma arte da vida. Buscava-se descobrir como Deus fala e salva por meio das situações representadas, como uma coisa na outra. Essa verdadeira teologia era ensinada nas paredes das igrejas.

Quanto à técnica, em princípio, as imagens eram apenas esboçadas, como na própria liturgia. A arte cristã do começo tratava apenas do essencial; não completava a figura (ou a imagem), pois isso quem faz é Deus, porque a perfeição pertence a Deus. Com o passar dos séculos, os cristãos se deixaram vencer pela perfeição da beleza do período clássico da arte greco-romana. Esse assunto, no entanto, fica para um próximo encontro.

Figuras 7 e 8: Cristo na Basílica de Monreale na Sicília e detalhe do mosaico na parede.

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O livro “O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro”, da autora Wilma Tommaso, é um convite para uma rica viagem ao encantador universo da iconografia cristã. Repleta de levantamentos históricos e ilustrações, a obra conta a história da arte cristã em cinco capítulos, com uma linguagem simples e voltada tanto para os maiores conhecedores do assunto quanto para o público iniciante.

No primeiro capítulo, vemos como a arte cristã demorou a ser reconhecida. A princípio, não havia imagens de culto, pois os primeiros cristãos reuniam-se em torno de uma mesa para celebrar a eucaristia e rejeitavam a arte estatuária. Além disso, Deus não podia ser retratado visivelmente, porque a imagem é um interdito divino no judaísmo.

Voltado para a arte românica, o segundo capítulo aborda os levantes realizados contra a veneração de imagens e sua defesa em favor da “alfabetização” dos cristãos que não sabiam

UM CONVITE PARA VIAJAR NO UNIVERSO DA ICONOGRAFIA CRISTÃ

ler, a aprovação da veneração das imagens no segundo Concílio de Niceia (787), entre outros aspectos.

Um dos tipos mais significativos da iconografia e que intitula a obra de Wilma, o Pantocrator – o termo vem da origem grega: pan = todo ekratos = poder, mestre de tudo; Deus = criador do Universo–, é o tema do terceiro capítulo. A história da imagem do Pantocrator e a passagem da arte imperial para a cristã, entre outros temas, são retratadas neste capítulo.

Já o quarto capítulo faz um percurso da Contrarreforma Católica ao Concílio Vaticano II e como este resgatou a arte sacra.

Para encerrar, o último capítulo traz a vida e obra do maior artista sacro brasileiro, Cláudio Pastro (1948-2016). Um artista que deixou marcas nas igrejas e capelas não só do Brasil, como do exterior, com destaque para o Santuário Nacional de Aparecida.

Uma excelente dica de leitura para os amantes da arte e da historiografia cristã.

1 Mestranda em Ciências Humanas. Especialista em Metodologia do Ensino na Educação Superior e em Comunicação Empresarial. Jornalista. Blogueira de Cultura e Economia. Assessora de Comunicação.

Por Mariana da Cruz Mascarenhas 1

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EM FOCOMarcos Horácio Gomes Dias

A imagem de Nossa Senhora das Dores invoca a morte de Cristo na cruz. Ela é sempre representada com um manto sobre a cabeça que lhe cai aos pés. Traz um semblante triste e apresenta sete punhais que atravessam seu peito, símbolo das

sete dores sofridas por ela: a profecia do velho Simeão , a fuga para o Egito, a perda do Menino Jesus no templo , o caminho para a cruz, a

crucificação, o descimento da cruz e o sepultamento de Jesus.

| Sobrancelhas:Altas que seguem a linha do nariz. Estão contraídas em forma de “V”.

| Olhos amendoados:Característica típica das obras de Aleijadinho, possível influência orientalizante da arte produzida na China e trazida pelos portugueses.

| Nariz:Fino e saliente, terminando em uma ponta acentuada.

| Boca:Lábios bem delineados.

| Queixo:Bipartido.

| Anatomia:Forte e vigorosa do rosto e das mãos.

Aleijadinho: escultor e arquiteto mineiro do século XVIII, é considerado o maior artista do período colonial brasileiro.

| Corpo: Rígido.

| Roupa:Volumosa, angulosa e com dobras geométricas que lembram as esculturas do gótico europeu.

Nossa Senhora das Dores

AleijadinhoMuseu de Arte Sacra de São Paulo

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SAGRADO MARFIM: O AVESSO DO AVESSO

EXPOSIÇÕES

Com curadoria do Professor Doutor Jorge Lúzio, investigador na área, e Maria Inês Lopes Coutinho, diretora técnica do Museu de Arte Sacra de São Paulo, realizou-se em 2018, nas dependências de exposições temporárias do MAS/SP a exposição “Sagrado Marfim: o avesso do avesso”. Tal exposição abordou um tema essencial tanto para a compreensão da arte como da mentalidade cultural produzida a partir da matriz da língua

portuguesa, a arte sacra luso-oriental em marfim.

As peças do Museu se somaram às do acervo da Coleção Ivani e

Jorge Yunes e da Fundação Ema Klabin. A exposição, inaugurada no dia 19 de maio, alcançou grande sucesso entre o público, tendo o seu término previsto, no momento da edição desta fotorreportagem, para o dia 4 de novembro.

Fotos: José Luís Landeira

Por José Luís Landeira

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1 Historiadora, Mestra em História da Arte e da Cultura (Unicamp) e Doutora em História Social (Unicamp). Realizou Pós-doutorado pela USP. É professora do MAS-SP.

influência no futurismo do período, o que conduziu às imagens religiosas da chamada “arte sacra futurista”, em um movimento que até então estava fortemente caracterizado como materialista e antirreligioso, culminando no Manifesto da Arte Sacra Futurista (1931). Fillia escreveu vários manifestos acerca do tema do sagrado; tais textos se explicam pelo fato de que, ao longo de suacarreira,o artista colocou uma significativa ênfaseno aumento docaráter espiritualdo futurismona tentativa deconcluir o processode elevar sua ideologia a uma religiãoadequada paraas pessoas que viviamna “era da máquina”. Uma de suas contribuições mais importantes foi a tentativa derecuperar eredefinir o “homemfuturista”, ressaltando a importância daidentidade pessoal e experiência espiritualpor meio de novasformas de representaçãovisual e verbal.

Para Fillia, a arte não se trata somente de um ato estético: elaestáintrinsecamente ligada à ideologia social e política, bem comoà espiritualidade. A nova realidade, fruto da sociedade tecnológica, necessita de novas formas de interpretação e compreensão da existência. Trata-se, aqui, de uma nova postura poética do futurismo, que, em seus primeiros anos, não se ocupava em refletir as questões ligadas à espiritualidade do homem. Em Fillia, testemunhamos a enorme importância dada para a natureza espiritual das relações entre arte e vida, derivadas, em parte, pela nova configuração da Europa após o final da Primeira Guerra, e o zeitgeist do chamado “retorno à ordem”. Tal ênfase nos aspectos psicológicos e espirituais marca um novo direcionamento na poética futurista; a arte pode, agora, servir também como uma experiência transcendente.

A teoria da espiritualidade de Fillia é marcadamente voltada para o indivíduo, e não

O MANIFESTO DA ARTE SACRA FUTURISTA DE LUIGI COLOMBO (FILLIA)

Por Vanessa Beatriz Bortulucce 1

O presente texto apresenta, pela primeira vez em língua portuguesa, a tradução do Manifesto da Arte Sacra Futurista (Manifesto dell’arte sacra futurista) escrito em 1931 pelo artista e teórico italiano Luigi Colombo (1904-1936), usualmente conhecido nos círculos artísticos como Fillia. Ele fez parte da segunda geração de poetas, artistas e teóricos do futurismo italiano que conduziu o movimento para além da Primeira Guerra Mundial. Ele foi autor de poesias, contos e peças teatrais, pintor autodidata, jornalista, ativista político e editor que dedicou sua vida para a sua pesquisa artística e o avanço da poética do movimento. Publicou obras sobre arquitetura moderna, culinária e design, colaborando intensamente com F. T. Marinetti, fundador do grupo de vanguarda, e outros importantes intelectuais de seu tempo.

Fillia foi um personagem único entre os futuristas em virtude das suas qualidades pessoais e espirituais que permearam a sua visão de mundo e as suas obras. Profundamente influenciado pelos impulsos destrutivos e reconstrutivos do futurismo–estética que almejava construir uma sociedade de valores modernos e tecnológicos em todas as áreas do conhecimento – impôs sua filosofia pessoal no movimento, tornando-se uma figura fortemente influenciadora na poética do grupo nos anos 1920 e no início da década seguinte.

A partir de 1922, além de pinturas apresentadas nas exibições futuristas, ele atuou no design de interiores, mobiliário e objetos de decoração, incluindo cerâmica. Escreveu diversos manifestos e ensaios sobre arte e arquitetura que usualmente apareciam em revistas que eram editadas e publicadas por ele (La Città Futurista, Vetrina Futurista, La Città Nuova, Stile Futurista) e em monografias ou antologias.

O conjunto da obra de Fillia exerceu enorme

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MANIFESTO DA ARTE SACRA FUTURISTA 1

(Gazzetta del Popolo, 23 de junho de 1931)

1 Traduzido do original L’arte sacra futurista, in CARUSO, L. (org.) Manifesti, proclami, interventi e documenti teorici del Futurismo, 1909-1940. Firenze: SPES-Salimbeni, 1980.2 Planalto rochoso calcário situado no nordeste da Itália, o Carso foi um dos locais de batalha na Primeira Guerra Mundial.3 Vittorio Veneto é uma cidade italiana da região do Vêneto, província de Treviso. Na Primeira Guerra Mundial foi palco de uma batalha decisiva, assinalando a vitória dos italianos sobre os austro-húngaros.

Posto que não era indispensável praticar a religião católica para criar obras-primas de arte sacra e, por outro lado, considerando-se que uma arte sem evolução está destinada a morrer, o futurismo, distribuidor de energias, impõe à arte sacra o seguinte dilema: ou renunciar a qualquer ação exultante sobre os fiéis ou renovar-se completamente por meio de síntese, transfiguração, dinamismo de tempo-espaço compenetrados, simultaneidade de estados de espírito, esplendor geométrico da estética da máquina.

O uso da luz elétrica para decorar as igrejas com o seu fulgor branco-azul, superior em pureza celestial ao vermelho-amarelo carnal luxurioso das velas; as maravilhosas pinturas sacras de Gerardo Dottori, primeiro futurista que renovou com intensidade original a arte sacra; os afrescos futuristas de Gino Severini nas igrejas suíças; as muitas catedrais futuristas com um dinamismo de formas em concreto armado, cristal e aço, realizadas na Alemanha

para um grupo, o que o distancia de explicações que atribuem essa sua visão exclusivamente às tendências religiosas do regime fascista, uma vez que estas estavam fortemente voltadas para o coletivo. Os estudos de Fillia, neste sentido, também estão afinados com as tendências intelectuais internacionais e os estudos sobre espiritualidade que se aplicavam nas artes plásticas, notadamente no campo da pintura abstrata.

Renovação indispensável

e na Suíça, são os sinais desta indispensável renovação da arte sacra.

De fato:1. Somente os artistas futuristas, ricos de

imaginação ilimitada, podem pintar ou construir um Inferno capaz de aterrorizar as gerações que sofreram heroicamente os infernais bombardeios do Carso e estão treinados para uma vida mecanizada mais perigosa que as pequenas chamas do fraco gás do Inferno tradicional.

2. Somente os aeropintores futuristas, mestres das perspectivas aéreas e habituados a pintar de cima, podem exprimir plasticamente o fascínio abissal e as ditosas transparências do infinito. Isto, ao contrário, não é permitido aos pintores tradicionais, todos mais ou menos enredados no obsessivo realismo, todos inelutavelmente terrestres e, portanto, incapazes de elevar-se até uma abstração mística.

3. Somente os aeropintores futuristas podem fazer cantar na tela a multiforme e veloz vida aérea dos Anjos e a aparição dos Santos.

4. Somente os artistas futuristas, ansiosos de originalidade a qualquer custo e sistematicamente hostis ao déjà-vu, podem dar ao quadro, ao afresco e ao conjunto plástico a potência da surpresa mágica necessária para exprimir milagres.

5. Somente os artistas futuristas, que há vinte anos impõem, na Arte, o árduo problema da simultaneidade, podem exprimir claramente, com as apropriadas compenetrações de tempo-espaço, os dogmas simultâneos do culto católico, como a Santíssima Trindade, a Imaculada Conceição e o Calvário de Deus.

6. Somente artistas futuristas eletrizados de otimismo, cor e fantasia, como Balla, Belli, Benedetta, Caviglioni, Cocchia, Corona, Depero, Diulgheroff, Dottori, Duse, Fillia, Peppe Diaz, Lepore, Marasco, Lombardo, Munari, Pozzo, Prampolini, Rosso, Tato, Thayaht etc., podem hoje especificar em uma obra de arte sacra a beatitude do Paraíso, superando nos nervos dos combatentes católicos a alegria infinita, paradisíaca, da nossa imensa Vitória de Vittorio Veneto3.

ExemplosSó o Futurismo premente e veloz Além da Arte

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pode figurar e plasmar qualquer além da vida.Exemplos de arte sacra futurista:• O quadro de Gerardo Dottori A Crucificação

é caracterizado pela fascinante fluidez dos corpos das mulheres chorosas ao pé da cruz. Elas parecem os dolorosos prolongamentos do próprio corpo de Cristo, todos banhados por uma luz extraterrestre que constitui o personagem dominante do quadro.

• O quadro de Fillia Natividade-morte-eternidade exibe, ao redor de Nossa Senhora sentada em primeiro plano, uma paisagem tornada irreal pela aparição de uma grande cruz desmaterializada, isto é, formada de puro céu. Esta cruz aflora no líquido corpo de Nossa Senhora, como uma suave fosforescência submarina. O conjunto está fechado na esfera do mundo em cuja superfície aparecem todas as igrejas da história, das enfurnadas nas catacumbas às romanas, bizantinas, românicas, góticas, renascentistas etc. até as futuristas. A figuração de Nossa Senhora é animada pela linha luminosa do Menino Jesus.Esta continua no ritmo do corpo da mãe, com os mesmos elementos arquitetônicos das igrejas. O quadro contém uma prodigiosa simultaneidade de elementos díspares. Fusão impressionante de concreto e abstrato. Síntese do catolicismo no seu longo desenvolvimento secular.

• O quadro de Fillia A Adoração representa uma Nossa Senhora suplicante, cujo corpo está desmaterializado ao ponto de não possuir mais nada de humano, forma abstrata da oração aos pés de uma cruz feita de atmosfera.

• O quadro de Oriani Subida para o Calvário é caracterizado pela dramatização de todo o ambiente no qual a dor, plasmada em uma centena de modos diferentes, domina a dor expressa pela figura de Cristo.

• O conjunto plástico de Mino Rosso Natividade mostra a obediência plástica absoluta de todos os personagens e de todos os objetos circundantes que parecem magnetizados de modo irreal pelo Menino Jesus.

São igualmente significativas as outras obras de arte sacra futurista expostas em Pádua pelos futuristas Dottori, Fillia, Oriani, Pozzo, Pogolotti, Rosso, Saladin, Severini, Vignazia etc.

O futurismo, movimento de orgulho italiano inovador, claramente antimassônico e anticlerical, previu, há vinte anos, o advento do fascismo, criou e capitaneou as vanguardas artísticas do mundo inteiro, agilizou a literatura com as palavras em liberdade e o estilo simultâneo, esvaziou o teatro do tempo e da psicologia mediante sínteses simultâneas alógicas baseadas na surpresa ou drama dos objetos, engrandeceu as artes plásticas com a transfiguração antirrealista e o dinamismo plástico, inventou a arte dos rumores, o rumor-harmônio e o tatilismo, introduziu na música a estética da máquina, iniciou uma alimentação dinamizante, deu uma amplitude criativa à fotografia, despertou a estupenda aeropintura do amanhã e lançou a nova arquitetura de ferro, cimento, agilidade, cor, purificada de elementos decorativos, rica de despojado esplendor geométrico que Antonio Sant’Elia ensinou aos racionalistas italianos, agora forçados a reconhecer a sua paternidade italiana se não quiserem passar por imitadores dos nórdicos imitadores de Sant’Elia.

Agora, vinte entre cem dos melhores pintores do movimento futurista italiano apresentam uma sala de arte sacra futurista na grande exposição de Pádua.

Incansável movimento inovador, estimulador de velocidade, embelezador e intensificador do mundo, o futurismo intervém em toda parte, esperado ou inesperado, por uma simples manifestação da sua potência tipicamente italiana e fascista.

Este manifesto concebido e escrito em colaboração com o pintor futurista Fillia está perfeitamente em harmonia com a atividade criativa de Enrico Prampolini, que brilha hoje na primeira linha extremista da Exposição do Grupo 1940 de Paris , e com a atividade criativa de Fortunato Depero, que prepara a sua grande Mostra de Dinamismos nova-iorquinos.

F. T. MARINETTI/FILLIA

Futurismo inovador

4 O Grupo 40 (Gruppo 40) foi uma associação de artistas fundada por Enrico Prampolini (1894-1956) no início da década de 1930, influenciado pela experiência do artista com outras vanguardas artísticas europeias, das quais se destaca o movimento francês Abstraction-Création.

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CURADORIA E FORMAÇÃO DE PÚBLICO

Por Vanessa Lira 1

Os desafios de formar público no espaço escolar de modo prático, mas sem perder do horizonte a importância do conhecimento teórico, é abordado neste artigo a partir das semelhanças entre o papel do professor, na atividade docente, e o do curador, no trabalho museológico.

Sabemos dos muitos desafios na formação de público apreciador de arte no Brasil. Independentemente da linguagem artística, as produções voltadas para a conquista das massas possuem inúmeras estratégias de apreensão instantâneas.Elas não exigem profunda compreensão e estabelecem ligações superficiais com as ideias e o gosto do público, conquistado rapidamente, deixando pouco espaço para que ele desenvolva habilidades mais complexas para a leitura de obras, com apreço estético mais delineado e envolvimento mais profundo.

A sala de aula é um importante território para o plantio de pequenas sementes que ajudam na construção e no desenvolvimento do gosto estético, no desenvolvimento de habilidades mais complexas necessárias para a leitura de obras com qualidade. Um terreno fértil que, se bem cultivado, pode nos ajudar a seguir preenchendo, a passos lentos, essas nossas lacunas culturais na formação de público.

Um professor do ensino básico é hoje uma espécie de curador de conteúdo. Seja qual for sua matéria, o professor deve, constantemente, eleger prioridades que o conduzam em um bom caminho de tutoria na formação de estudantes que deverão se tornar cidadãos críticos e “resolvedores” de problemas, ativos em uma sociedade que trafega a passos largos no desenvolvimento das mídias e tecnologias e na disseminação de imagens e opiniões, que são formadas antes mesmo que se possa estudar o assunto.

Diante da velocidade na produção e disseminação de informações, os professores precisam proporcionar, com mais frequência, oportunidades nas quais os estudantes possam desenvolver ferramentas para pensar

1 Professora de Artes na Educação Básica, investigadora no CulturArte, e assessora de práticas pedagógicas do ensino de Artes.

melhor – compreender e analisar situações – para que, munidos de conhecimento e poder argumentativo, possam formar e emitir, com clareza, suas opiniões.

Apreciar - ler obras de ArteFaçamos um recorte no vasto universo

escolar. Vamos nos concentrar no professor de artes, que deve, antes de mais nada, oferecer pílulas apreciativas, sem, contudo, dispor de obras originais em seu ambiente de trabalho. O professor-curador seleciona conteúdos prioritários, faz os devidos recortes temporais na produção artística da humanidade e propõe atividades de leitura para entender como sua turma aprecia as obras de arte.

O professor, então, escolhe um período para proporcionar a construção de conhecimentos, junto aos estudantes, estabelecendo metas e objetivos.De posse das metas, professor e alunos começam a se aventurar pelos caminhos dos novos conhecimentos.

Estimular a pesquisa/leitura e a conexão com reproduções digitais ou impressas de obras de arte está longe de ser uma tarefa simples e fácil. Contudo, há que se romper as barreiras e desafiar os estudantes a realizarem descobertas por meio do material disponível. Logo eles perceberão que as obras podem ter muito mais a “conversar” com suas experiências do que poderiam imaginar.

Produzir perguntas, no lugar de fornecer respostas, pode ser um bom início:uma ação que pode proporcionar o envolvimento dos estudantes pela via da curiosidade. Devem ser os estudantes os protagonistas de seu percurso de aprendizagem;quanto mais forem desafiados, mais sentido farão as atividades e eles perceberão os ganhos desse percurso.

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O percurso a ser trilhado pelos estudantes, com a tutoria e a mediação do professor, pode ser compreendido como processo criativo. Ainda que o produto dessa caminhada não seja uma obra de arte, o estudante percorrerá o caminho do conhecer, desvendar, relacionar com sua experiência, transformar em produção e, por fim, falar sobre ela, com apropriação dos conhecimentos construídos e aplicados a sua própria criação.

(figura 1 – mapa de processo criativo por Vanessa Marques Lira)

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O produto criativo poderia ser, por exemplo, o planejamento da curadoria de uma exposição. Após participarem do processo de apreciação e contextualização de obras, os estudantes teriam como desafio a criação de uma exposição de arte. Nesse processo, seria possível entender uma exposição de dentro para fora,descobrindo a função de vários gêneros textuais envolvidos na produção de uma exposição: desde a escolha das obras, passando pela relação entre elas, o texto que contaria a história e os objetivos da exposição – o texto curatorial – e a criação do percurso que o observador faria durante o período de visita, dispondo ainda dos textos que complementariam a mediação entre obras e observadores e as legendas das obras.

Seria um universo particular, no qual os estudantes poderiam discutir arte de várias formas e demonstrar sua compreensão sobre o período estudado. Para complementar esse percurso, durante a pesquisa, os estudantes poderiam refletir sobre as diferenças entre “experiência estética” e “experiência pragmática”.

A partir de suas construções, relações e leituras, os estudantes poderiam criar sua proposta de exposição, conectando obras, resolvendo problemas, estabelecendo relações e objetivos de leitura para guiar outras personagens da comunidade escolar pelos percursos da arte.

O trabalho escolar com curadoria possibilita que os estudantes desenvolvam habilidades complexas, desde a compreensão de leitura de diversos gêneros textuais até a construção de argumentação, para explicar e contextualizar suas escolhas.

Planejar, escolher e construir um mapa expográfico pode desenvolver habilidades úteis para a vida dos estudantes, que se tornarão cidadãos capazes de compreender e analisar inúmeras situações, justificar suas escolhas e explicar porque não quiseram outro caminho com clareza e propriedade.

A prática curatorial

Experiência pragmática

Experiênciaestética

Por quê?

Aquilo que percebemos toca os sentimentos

Dimensão afetiva (não segue convenções)

Equilíbrio entre pensare sentir – dinâmico

Imaginação orientadapela forma

Beleza habita relação

Expressão

Sentido Significado

Conteúdo

Comunicação

Objetos estéticos (bonito ou feio nãoestá em questão)

Forma (maneira comoa relação se consolida)

Objetos belos (agradáveis)

Verdade = Função

Imaginação a serviço da percepção utilitária

Racionalismo – pensar antes de sentir

Dimensão racionale simbólica

Conceitos que orientam nossa percepção

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(figura 3 – mapa expográfico. fonte: < http://imgs.fbsp.org.br/files/29BSP_EXPOGRAFIA_p03_2F.jpg>)

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Enriquecer o trabalho em sala de aula desenvolvendo processos artísticos possibilita a construção consciente do gosto estético do aluno por ele mesmo.Consequentemente, sua busca pela apreciação de obras de arte ou,ainda, o desenvolvimento da habilidade de analisar situações, notícias e imagens sem que elas sejam consumidas sem critérios –e, ainda mais importante, sem que se tornem consumidores sujeitos à torrente veloz desse volume contemporâneo de informações visuais a que são submetidos diariamente.

É preciso considerar que as relações entre observador e obra de arte já extrapolaram os conceitos modernos, antes colocados em xeque por Bryan O’Doherty, em sua obra “No interior do cubo branco”,que desafia o leitor a repensar as relações em questão.

A obra de arte, no mundo contemporâneo, sai do museu e se prostra diante do transeunte. No entanto, é preciso formar transeuntes capazes de enxergá-la, compreendê-la e relacionar-se com ela. De outra forma,corre-se o risco de ignorar o processo de transformação na produção de arte e desperdiçar sua valiosa característica atual de estar onde a vida acontece, por não haver público preparado para “dialogar” com ela.

Formação de público

ADORNO, T. W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970.

BORDINHÃO, K.; VALENTE, L.; SIMÃO, M. S. Caminhos da memória: para fazer uma exposição.v.1. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2017.

DUARTE JR., J. F. O que é a beleza. São Paulo: Brasiliense, 1986.

O’DOHERTY, B. No interior do cubo branco – a ideologia do Espaço da Arte. São Paulo: Martins.

BIBLIOGRAFIA

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