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GERAÇÃO E DEGENERAÇÃO Crises e Confrontos 81 04 CRISES E CONFRONTOS SUMÁRIO 04.01 - Crises do Capitalismo, 83 04.02 - O onze-de-setembro, 97 04.03 - “Rebeldias” atuais na América Latina, 100

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GERAÇÃO E DEGENERAÇÃO

Crises e Confrontos 81

04 CRISES E CONFRONTOS

SUMÁRIO

04.01 - Crises do Capitalismo, 83

04.02 - O onze-de-setembro, 97

04.03 - “Rebeldias” atuais na América Latina, 100

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Como símbolo das crises do capitalismo,

especialmente as financeiras, das quais

tratamos de modo especial neste capítu-

lo, vemos ao lado a imagem de uma montanha

de notas, material cada vez mais desejado, miti-

ficado e endeusado no capitalismo atual.

Na outra imagem, como símbolo dos confron-

tos anti-capitalistas, vemos o Pentágono sob o

suposto ataque no 11 de setembro de 2001. Veja

abordagem específica mais adiante.

Nesta parte do estudo, isto é neste Capítulo e no subsequente, é feita uma abordagem com a pretensão de ser mais ou menos didática, tentando classi�car e discutir sinteticamente algumas crises, confrontos e conseqüências decorrentes do modelo “moderno” do capitalismo, inclusive em especial a sua fase neoliberal.

A tarefa não é fácil porque são questões imbri-

O4 – CRISES E CONFRONTOS

“O desastre �nanceiro levou, na sua queda, todo o

edifício ideológico dos advogados da ‘mundialização fe-liz’. Estão a ser feitas constatações óbvias: a %nanceirização é um cancro que apodrece a vida de milhares de milhões de seres humanos e que lhes in'ige uma dupla penalização. Na verdade, tudo vai ser feito para que as vítimas paguem a louça partida e desencalhem a situação de uma minoria de delinqüentes sociais.” (grifos nossos)

Michel Husson – O capitalismo obsceno1

cadas, interdependentes e complexas. Além disso, também poderiam ser consistidas em outros tipos de classi�cação de crises. Por exemplo: militar, alimentar, ecológica, do mundo do trabalho e assim por diante.

1 Michel Husson é economista, membro do Conselho Cienti�co da ATTAC – Artigo publicado pela Agencia Carta Maior, em 16-10-2008.

Michel Husson é economista, membro do Conselho Cienti�co da ATTAC – Artigo publicado

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Crises e Confrontos 83

04.01 - Crises do Capitalismo

Antes de falarmos das crises do capital, com ênfase no período

neoliberal, se faz necessária uma breve introdução – destinada aos leigos como o autor - sobre o funcionamento de um dos principais mecanismos do processo de ganância do capital, e por conseqüên-cia, de expansão das crises: as bolsas de valores e de mercadorias.

A bolsa de valores é o mercado or-ganizado onde se negociam ações de empresas, tanto públicas como privadas. Como sabemos, ações são títulos repre-sentativos do capital de uma empresa de capital aberto.

Da mesma forma, na bolsa de mer-cadorias são negociados bens materiais ou títulos representativos desses bens, ou seja, os chamados “commodities”, a maioria dos quais são produtos agrope-cuários. O ouro, porém, também está no rol, sendo um dos principais “commodi-ties”.

Na foto da pág. 36 e na composição de imagens da capa, vê-se uma atividade típica de uma Bolsa, ou seja, a imagem de uma confusão danada de ordens e contra-ordens de negócios, gritos e im-propérios dos operadores. Uma “zorra”. Tudo na busca desesperada por vanta-gens �nanceiras, comerciais e econômi-cas.

As operações em bolsa são realizadas por contratos de compra e contratos de venda, com prazos �xados. Antes da data de vencimento, esses contratos podem ser renegociados muitas vezes, depen-

dendo da volatilidade do mercado com relação à ação em causa. Essa é a essência do “cassino”, como está demonstrado no processo de crises do mercado de ações.

No Brasil, existiam em algumas capi-tais dos estados, principalmente nas regi-ões Sudeste e Sul, bolsas de valores e bol-sas de mercadorias, funcionando às vezes em conjunto, às vezes separadamente. Desde há alguns anos, porém, ocorreu a uni�cação de todas elas na Bolsa de Va-lores de São Paulo (BM&FBOVESPA), que se tornou uma das maiores do mun-do em volume de negócios.

Uma bolsa pode ser constituída na forma de uma associação civil sem �ns lucrativos, ou de uma S/A, isto é, que visa lucros obtidos através da prestação de seus serviços. De qualquer forma, é constituída por sociedades corretoras e deve preservar elevados padrões éticos no seu funcionamento. Para tal, as bolsas têm de dispor de mecanismos de infor-mações adequados à transparência das operações que realiza diariamente. No Brasil, a atividade das bolsas é �scaliza-da pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM.

As bolsas operam com pregões físi-cos ou eletrônicos ou ambos, sendo que a primeira a operar exclusivamente com pregão eletrônico foi a Nasdaq, em Nova York.

Ao que consta, o primeiro processo de venda de ações em bolsa de valores ocor-reu em Amsterdã, na Holanda, em 1602, quando a Companhia Holandesa das Ín-dias Orientais instituiu e comercializou

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as primeiras ações da Companhia através de uma instituição �nanceira.

As principais bolsas do mundo são cerca de duas dezenas, sendo oito as mais importantes:

-> North American Securities Dealers Automated Quotation System (NAS-DAQ) -> New York Stock Exchange (NYSE)-> Bolsa de Valores de São Paulo (BM&FBOVESPA) -> London Stock Exchange (LSE) -> Frankfurter Wertpapierbörse (Frank-furt Stock Exchange) (FWB) -> Hong Kong Exchanges and Clea-ring (HKEx) -> Shangai Stock Exchange (SSE) -> Bolsa de Valores de Tóquio (TSE).Como é notório, o passeio diário do

capital nas Bolsas segue a trajetória do sol. Quando fecham as bolsas européias, abrem-se as das Américas que são, por sua vez, substituídas pelas do oriente. E assim, inde�nidamente, enquanto o sol iluminar e aquecer o capital e queimar ou escurecer e esfriar os resultados do traba-lho, na ciranda do capitalismo mundial. Qualquer agitação em qualquer desses mercados essencialmente �nanceiros, re-percute como uma onda de ressaca pelo mundo todo.

As transações mundiais diárias nos mercados de trocas, em trilhões de dóla-res, eram 0,3 em 1986, 0,7 em 1990, 1,0 em 1991/92, 1,3 em 1994 e 1,5 trilhões em 1997, cerca de 2,0 em 1999. Hoje, doze anos depois, com a exacerbação da ganância e o predomínio dos mercados

de derivativos, a cifra é quase impossível de ser determinada, mas é absurdamente fantástica. Supõe-se que seja dez vezes o PIB mundial. Uma loucura, uma aber-ração!

A maior especulação ocorre nos mer-cados a prazo, ou de futuros ou deriva-tivos. Estas são transações que se fazem no futuro, com data e preço �xados ante-cipadamente, em contratos fechados ou opcionais, isto é, onde não há a obriga-ção de exercer o direito de compra. Em todos os casos, o contrato é realizado com base num ativo “suposto real”, o que nem sempre é verdadeiro (vide os subpri-mes!). A partir daí, os contratos passam a ser um “produto” com vida e merca-do próprios e podem seguir trajetórias completamente autônomas, passando por tantas transações quantas os especu-ladores estejam dispostos a realizar. Em resumo, trata-se apenas de papel gerando riqueza, sem qualquer relação com uma “possível” base física inicial.

Quando o objeto negociado “mica” (= perde totalmente o valor, no jargão das bolsas), quem paga a conta, a�nal? Como essas transações estão lastrea-das, direta ou indiretamente, em papéis garantidos por governos de países to-madores de capital nos mercados inter-nacionais, a resposta se torna óbvia: o povo desses países paga a conta, porque os capitalistas têm mecanismos “quase” infalíveis de autoproteção. E raramente perdem, porque nas crises e recessões eles recorrem aos subsídios de recursos públi-cos de Estados fracos e/ou corruptos e a conta é debitada às respectivas socieda-

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des, ou seja, para aqueles que realmente pagam impostos. E estes não são os ricos, é óbvio!

É comum dar-se grande destaque aos tantos e tantos pontos percentuais que subiu (ou desceu) a bolsa de locais bas-tante desconhecidos do grande público, por exemplo, Jacarta. O que tem a ver o cidadão comum com a Bolsa de Valores de Jacarta? Com todo o respeito aos in-donésios, a imensa maioria da população do resto do mundo não sabe onde �ca a Indonésia, nem a sua capital e muito me-nos a sua Bolsa de Valores. Na verdade, esse cidadão jamais passou sequer pela frente de uma bolsa de valores em qual-quer parte do mundo e nem sabe o que é e nem como funciona.

A propósito, circulou na Internet uma estorinha que explica, com muito bom humor e realismo, o substrato do signi-�cado político, ideológico, econômico e até psicológico das bolsas de valores e mercadorias, bem como do próprio sis-tema capitalista, em si mesmo. Trata-se da história da compra de macacos, a qual adaptamos e resumimos a seguir.

Era uma vez, uma @oresta onde exis-tia uma grande quantidade de macacos. Certo dia, apareceu por lá um sujeito que se propôs a comprar macacos e ofereceu aos aldeões da região 10 dólares (ou li-bras ou euros ou rúpias ou rublos ou li-ras ou reais... en�m, a moeda local), por exemplar da “commodities macacos”. O valor foi julgado interessante e os aldeões saíram à caça dos símios.

Estabelecida a “bolha macacos”, em

pouco tempo a “commoditie” entrou em fase de escassez na @oresta, os aldeões perderam o entusiasmo e o suprimento foi se reduzindo. O comprador resolveu estimular os vendedores e subiu a oferta para 20 moedas. Aumentando a deman-da, a oferta foi estimulada, os aldeões retomaram a produção e o resultado foi o reaparecimento de mais produtos no mercado.

Com o passar do tempo, o processo se repetiu e o comprador teve de subir a oferta para 30 unidades da moeda. O resultado foi similar aos anteriores.

Neste ponto do processo mercantil, o negociante disse aos vendedores que pa-garia pelo próximo lote, 50 moedas per capita, mas necessitava urgentemente ir à cidade e seu assistente tomaria conta do negócio nesse meio-tempo. E viajou.

O assistente reuniu os investidores e lhes ofereceu a revenda de todo o esto-que de macacos já caçados a 35 moedas cada exemplar, os quais eles voltariam a vender ao seu patrão a 50 moedas. Os investidores �zeram as contas, sob a con-sultoria dos “chicago boys”, e concluíram que era um ótimo negócio.

Realizada a operação, nunca mais o negociante nem o seu assistente foram vistos nem localizados por aquelas pa-ragens! Corre um boato de que ultima-mente eles estiveram atuando no merca-do imobiliário nos EUA!

Conhece-se, todavia, o paradeiro de alguns de seus gurus preferenciais, ape-nas para citar uns poucos: 1 - Milton Friedman morreu em 2006, mas deixou

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como herança muitos discípulos intelec-tualoides espalhados pelo mundo todo, denominados “chicago boys”; 2 - Alan Greenspan se aposentou da presidência do FED depois de vinte anos de reina-do absoluto e agora pede desculpas pelos seus feitos e desfeitos; 3 - George Soros agora escreve livros de economia com crí-ticas aos métodos da ganância capitalista, depois de ter amealhado uma imensa ri-queza pessoal; 4 - Je!rey Sachs há pouco tempo renegou o neoliberalismo, a cuja implementação dedicou extremo esforço entre os anos 1970 e 1990, com o que ganhou muito dinheiro; 5 - Fernando Henrique Cardoso pediu que esque-cessem o que escreveu. Porém não pode pedir o esquecimento do que fez com o Brasil, com nossas estatais e com nosso povo, porque isso jamais será esquecido; 6 - Henrique Meirelles – “Henry” para os íntimos de Wal Street - ainda está na ativa, tendo sido o todo poderoso pre-sidente do Banco Central do Brasil em todo o governo Lula. Foi o maior repas-sador de dinheiro para o cassino �nan-ceiro nacional e internacional, mediante a continuidade da política de juros na paranóia e/ou esquizofrenia – para ser muito condensendente - imposta ao Bra-sil!

Bem... Voltemos ao trilho.Dentre as crises �nanceiras e econô-

micas do período capitalista, a Grande Depressão de 1929 foi a mais signi�ca-tiva. Pelo menos até o momento em que está sendo redigido este ensaio...!

Esse é o mais conhecido exemplo de

crise. Trata-se de um período de depres-são econômica, com início em 1929, que persistiu ao longo da década de 1930 e terminou apenas na Segunda Guerra Mundial. Por isso, essa década foi deno-minada “década do diabo”, por ser con-siderada o pior e o mais longo período de recessão econômica do século 20.

Como sabemos, aconteceram altas taxas de desemprego, quedas do PIB de muitos países, quedas na produção in-dustrial, de preços e de ações, bem como redução de todo o tipo de atividade eco-nômica.

A crise impôs o �m da especulação na Bolsa de Nova York e marcou o iní-cio de uma grande depressão nos Estados Unidos bem como de uma crise mundial que afetou de modo especial a Europa. Não devemos esquecer que a 2ª. Guerra Mundial foi gestada nessa época.

A Grande Depressão permanece como um dos períodos mais estudados da história da economia mundial. Mes-mo assim, economistas, historiadores e cientistas políticos têm criado diversas

Acima, vê-se uma multidão à porta da Bolsa de Nova

York, em outubro de 1929.

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teorias com muito pouco consenso. Uma das teses mais aceitas é a de que a crise foi de@agrada pela política equivocada do FED dos EUA ao reduzir as reservas monetárias.

Na realidade, esse fato somente agra-vou o principal problema já existente, ou seja, a de@ação que estava instalada des-de algum tempo na economia daquele país. Em outras palavras, a crise já estava anunciada.

Aliás, todas as crises, de uma forma ou de outra, sempre podem ser percebi-das antes da sua aparição real. É só sa-ber fazer as leituras adequadas, coisa que pouca gente faz. E, se o faz, não divulga para o grande público.

Em resumo, durante a Primeira Guer-ra Mundial a economia norte-americana estava aquecida, o que continuou após a guerra. Entretanto, no processo de re-construção, os paises europeus foram re-cuperando os seus sistemas produtivos e, consequentemente, diminuindo as im-portações dos EUA. O mercado se res-tringiu; os estoques das empresas ameri-canas aumentaram; as ações, que estavam em alta, caíram de cotação; veio a corrida para vender as ações e, aí... o caos!

Crises do petróleo - Em 1908 foi descoberto petróleo no Irã e, na sequên-cia, em todo o entorno do Golfo Pérsico, o qual se tornou a maior região petrolife-ra do mundo, com cerca de dois terços das reservas mundiais até então conheci-das. Em decorrência, hoje detem quase 30% da produção mundial.

A partir da descoberta dessa riqueza

fantástica, toda a região começou a ser explorada pelas grandes empresas petro-líferas, principalmente as chamadas “ir-mãs”: Satandad Oil, Shell, Gulf, Mobil, British Petroleum e Satandad Oil of Ca-lifornia.

Em 1960, na cidade de Bagdá, foi fundada a Opep – Organização dos Pai-ses Exportadores de Petroleo, composta pelos cinco principais produtores: Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kwait e Venezuela. O objetivo era constituir uma forma de se contrapor ao achatamento de preços praticados pelo cartel das seis (ou sete ou mais) irmãs.

Os três objetivos da Opep, de�nidos na Conferência de Caracas em 1961, fo-ram os seguintes: 1 - aumentar a receita dos países-membros, a �m de promover o desenvolvimento; 2 - assegurar um aumento gradativo do controle sobre a produção de petróleo, ocupando o es-paço das multinacionais; 3 - uni�car as políticas de produção.

Em decorrência, foram aumentados os “royalties” e os impostos pagos pelas multinacionais aos respectivos governos e alterada a base de cálculo dos preços internacionais do petroleo.

Em 1973, os membros da Opep con-cluíram que estavam sendo explorados demais e, assim meio de repente, di-muiram a produção e elevaram o preço do barril de petróleo de US$ 2,90 para US$ 11,65 em apenas três meses. O es-topim utilizado como justi�cativa para o processo de confronto foi o apoio dado a Israel na ocupação de territórios pa-

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lestinos, como decorrência da chamada Guerra do Yom Kipur (Síria e Egito x Israel). As vendas para os EUA e para a Europa, na condição de aliados – eter-nos! - de Israel, foram embargadas e as cotações chegaram a um valor que hoje seria equivalente a 40 dólares.

No entanto, os chamados petrodola-res acumulados pelos países produtores não reverteram em melhoria de vida das respectivas populações, mas inundaram a economia mundial na busca de aplica-ções, em especial nos países em desenvol-vimento, tais como o Brasil.

Por outro lado, os aumentos do preço do petróleo desestabilizam a economia dos maiores importadores e provoca-ram recessão nos EUA e na Europa, com grande repercussão internacional, crise que �cou conhecida como a crise do choque do petróleo.

Depois disso, tem havido uma suces-são de crises no Oriente Médio porque os derivados do petróleo se tornaram a principal fonte energética em uso no mundo, bem como insumos fundamen-tais para os bens de consumo das pessoas de todo o planeta.

Depois de 1973, as maiores fontes de crises referenciadas ao petróleo foram: 1 - a revolução iraniana em 1979, com a instalação da república islâmica, lide-rada pelo iatolá Khomeini. 2 - a guerra Irã-Iraque, em 1980, com mais de um milhão de soldados mortos. 3 - a chama-da Guerra do Golfo entre o Iraque e o Kuwait, em 1991, com a intervenção do Bush pai. 4 - a Guerra dos EUA (Bush

�lho) e “aliados” contra o Iraque e o Afe-ganistão, a partir de 2002. 5 - a grande elevação dos preços do barril de petróleo em 2008, para algo em torno de 100 dó-lares o barril, um dos estopins da crise que explodiu em 2008.

Crise de 1987 – A primeira crise �-nanceira, propriamente dita, do período neoliberal ocorreu quando Wall Street desmoronou no dia 19 de outubro de 1997, depois da divulgação de dados que mostraram um signi�cativo dé�cit co-mercial e um aumento das taxas de juros do Banco Central da Alemanha.

Como é sabido, desde o governo Ro-nald Reagan (ex-mocinho dos �lmes de “cowboy” de Hollywood), os EUA se tor-naram um dos aplicadores mais entusiás-ticos do modelo neoliberal, preconizado por Hayek e Friedman, sendo este um conselheiro muitíssimo privilegiado dos governos estadunidenses desde então.

Na era Reagan, os EUA entraram numa fantástica e desvairada divida in-terna e externa por conta da esquizo-frênica corrida armamentista e espacial, com vistas a um confronto tecnológi-co, político, militar e ideológico com a URSS. Dessa forma, não era difícil pre-ver uma recessão decorrente dos dé�cits orçamentários. Era fácil de prever, mas não foi prevista.

Em 19 de outubro de 1987 – mais um outubro! – o índice Dow Jones caiu 22% depois da divulgação de dados mostrando as di�culdades que estavam ocorrendo na economia da Alemanha. Outros índices registram importantes perdas em vários

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paises, mostrando a interdependência dos mercados mundiais. Esse foi o primeiro “crack”1 da era da informática, cuja onda se espalhou pelo resto do mundo.

Crise de 1997/98 - A partir de 1990, houve a redução dos juros nos países cen-trais do capitalismo industrializado e o conseqüente aumento da revoada de capi-tais para os países emergentes. Por exem-plo, em 1994 a crise mexicana explodiu porque as taxas de juros nos EUA haviam aumentado. Voltaram a cair em 1995/96, mas o México já tinha sido “comprado”, com petróleo, mão-de-obra barata e tudo o mais!

Assim, no primeiro semestre de 1997 o período de juros baixos parecia estar chegando ao �m, com a crescimento do emprego nos EUA e os sinais de que o Bundesbank começava a aumentar as ta-xas de juros na Alemanha.

Entretanto, como os donos do poder e da política econômica só costumam a�r-mar e rea�rmar que o período de vacas gordas do sistema é algo que dura para sempre, ninguém previu a crise de 1997, até porque os modelos econométricos desse pessoal não projetam momentos de crises, só de benesses.

Todavia, os perigos de uma crise esta-vam bem à mostra, principalmente pela ausência de uma correção do câmbio e o crescimento do dé�cit em conta cor-rente, em especial na Ásia e na América Latina, inclusive no Brasil.1 “Crack” numa Bolsa signi�ca uma baixa súbita de mais de 20% nas ações, o que produz pânico e precipita uma corrida de vendas de papeis nego-ciados em Bolsa, pelo mundo todo.

Entre 1992 e 1995 alguns dos chama-dos “tigres asiáticos” (Coréia, Indonésia, Malásia, Tailândia, Filipinas) haviam crescido a uma média anual de 7%, com in@ação baixa, fenômeno que foi batiza-do como “milagre asiático”.

No entanto, a valorização do dólar em relação ao iene contribuiu para a perda de competitividade dos países asi-áticos, já que suas taxas de câmbio esta-vam ancoradas ao dólar, o que fez cair o crescimento das exportações da Coréia, da Malásia e da Tailândia para o Japão. Por outro lado, os seus ativos em moeda nacional e seus passivos em dólares tor-naram-se vulneráveis a uma desvaloriza-ção cambial.

Em janeiro de 1997, a bolha especu-lativa no mercado de imóveis, a perda de competitividade externa e o dé�cit em conta corrente começaram a pressionar o baht tailandês. Entre maio e junho os juros aumentaram apesar dos controles estabelecidos sobre os @uxos de capitais. Em julho, diante do ataque especulativo, houve o colapso que se re@etiu nos de-mais “tigres”. E, por efeito de contágio, a crise se estendeu pela Hungria, Rússia, Brasil e por vários países exportadores para aquela região, inclusive os nossos vizinhos da América do Sul.

Em outubro, a onda de ressaca atin-giu o won coreano, re@etindo a falta de con�ança que se generalizava pelo mun-do periférico e semi-periférico do capita-lismo. Em alguns paises da América La-tina, como Brasil, Argentina e México, os governos tentaram defesas mediante

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aumento de juros e medidas �scais de-fensivas.

Nos países centrais, os industrializa-dos, os efeitos duraram pouco porque, exceto o Japão, já haviam recuperado parte de suas perdas. Claro, quem co-manda a economia e a política mundial, normalmente se safa mais rápido! Isso, nem sempre. Vide o que ocorre hoje com os EUA e grande parte da Europa.

Quanto à Rússia, as di�culdades que desaguaram na crise de agosto de 1998, têm profundas raízes e origens bem mais remotas, porque elas vêm desde antes da cisão da URSS (União das Repúbli-cas Socialistas Soviéticas), em 1991. Foi a partir dessa época que a situação da Rússia se agudizou em decorrência de questões políticas, econômicas e sociais muito graves.

De qualquer modo, a instabilidade ocorrida em função da crise asiática teve re@exos muito fortes na Rússia e agravou as di�culdades já existentes no país. Em 17 de agosto de 1998 o governo tomou medidas drásticas para controle da situ-ação: desvalorização do rublo, câmbio @utuante, conversão unilateral da divida para rublos e a moratória por 90 dias.

O FMI havia de�nido um emprésti-mo de US$ 22 bi, mas aportou realmen-te US$ 5 bi! Pergunta-se: foi por falta de con�ança ou por “sacanagem” político-ideológica? Ou ambas?

A instabilidade se espalhou pelo mun-do e reativou a crise asiática, que come-çava a ser debelada. Os credores, porém, acabaram concordando com as condi-

ções impostas pela posição de soberania do governo russo. “Vão-se os anéis, man-têm-se os dedos” deve ter sido o pensa-mento predominante.

Uma análise apressada pode levar à conclusão, mais apressada ainda, de que a aceitação foi devida ao poder militar e atômico da Rússia. Porém, a “pequeni-na” (em termos de poderio bélico) Ar-gentina, em 2005, tomou uma atitude similar em defesa dos interesses da nação e os credores também recuaram de suas ganâncias e aceitaram a proposta do pre-sidente Kirchner. Já o Brasil... Bem, no Brasil a soberania nunca foi um valor a ser preservado!

Crise de 2000 – Esta crise se deve ao estouro da bolha das “empresas ponto-com”, termo que era inicialmente apli-cado a empresas virtuais, isto é, que ex-ploram a comercialização de serviços ou produtos exclusivamente via Internet, mas passou a ser usado também para em-presas não exclusivamente virtuais, como por exemplo, a empresa Lojas America-nas. As empresas “pontocom” prolifera-ram muito ao �nal da década de 1990, produzindo um frenesi de investimentos especulativos.

Isso conduziu ao estouro da bolha em abril de 2000, sendo esta a primeira grande crise da bolsa eletrônica. Fez, por exemplo, com que o índice Nasdaq, que concentra os negócios de empresas de Internet e de tecnologia, caísse 27% nas duas primeiras semanas de abril e per-desse 39,3% em um ano, sendo a maior queda em número de pontos. Essa queda,

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porém, repercutiu em todos os mercados vinculados à chamada “nova economia”, isto é, economia virtual.2

O anúncio da maior alta da in@ação em cinco anos nos EUA provocou a venda em massa de ações, que desciam a ladeira e �zeram com que investidores retirassem centenas de bilhões de dólares do mercado de ações.

O aumento da in@ação produziu au-mento da taxa de juros básica da econo-mia norte-americana num ritmo mais forte do que vinha acontecendo nos últi-mos meses. Juros mais altos drenaram re-cursos das Bolsas porque os empréstimos �caram mais caros, as empresas investi-ram menos, os consumidores compra-ram menos. E a economia, que crescia há cerca de nove anos, começou a parar.

A in@ação detonou o pânico, que foi realimentado pelas “chamadas de mar-gem”, como se diz no jargão �nanceiro. A lógica é a seguinte: 1 - as instituições que emprestam dinheiro para investido-res comprarem ações passam a requisitar depósitos de garantia; 2 - quem tomou dinheiro emprestado para investir teve de devolver uma parte; 3 - tem de vender mais ações para fazer caixa, o que derru-ba ainda mais as Bolsas.

Por exemplo, a queda do índice Dow Jones ultrapassou os 554,26 pontos, queda que só havia sido registrada em 27 de outubro de 1997, no auge da cri-se asiática. O índice Standard & Poor’s, que mede a situação de 500 empresas

2 Cf. Folha de São Paulo On line, 15/04/2000

norte-americanas, recuou 84 pontos, ou 5,78%.

Em meio ao desespero, operadores da Bolsa Nasdaq faziam uma auto-ironia amarga: o anúncio da in@ação foi ape-nas o “prego que faltava no caixão das Bolsas”. Um evidente exagero, porque as bolsas continuam vivas e desempenhan-do cada vez melhor o seu papel de meca-nismos rentistas e de especulação institu-cionalizada.

Por outro lado, houve alta no merca-do de títulos da dívida norte americana, considerada uma área segura quando os investidores querem fugir da volatilidade das Bolsas. É que os bônus de 30 anos – um dos papeis referenciais no mercado - subiram e, concomitantemente, os seus juros recuaram.

Crise de 2001 – Em 2001 ocorreu uma crise de natureza multipolar e com-plexa (política, econômica, �nanceira, militar, estratégica), crise que tentaram disfarçar apelando para o manto do fun-damentalismo religioso. Na verdade, en-tre outras razões, os EUA ainda não ha-viam saído da crise de 2000.

O “onze-de-setembro” produziu, além dos mais de 3.000 mortos, também um imenso impacto político, social e �-nanceiro, cuja primeira conseqüência, foi o fechamento da Bolsa de Nova York durante uma semana. Em sua reabertura, o índice Dow Jones sofreu a maior queda até então, ou seja, 685 pontos.

A análise dos demais ângulos desta questão será feita no tópico confrontos políticos, logo adiante.

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Crise de 2002 - A falsi�cação das contas da empresa de energia Enron e a fraude do grupo de telecomunica-ções WorldCom desestabilizam as Bol-sas do mundo. Os mercados europeus, por exemplo, registram quedas inéditas: Frankfurt perdeu 43,9%, Paris 33,7% e Londres 24,8%.

A Tyco International também pro-tagonizou uma agitação signi�cativa no mercado, em especial no que se refere aos aspectos de con�ança na seriedade e na honestidade dos altos executivos das gi-gantes do sistema capitalista.

A Enron, uma das maiores empresas de energia do mundo, sétima empresa dos EUA, tem sede em Houston, Texas. Possuía ligações com o governo George W. Bush, sendo uma das maiores �nan-ciadoras das suas campanhas ao governo do Texas e à presidência do país.

Tantas foram as falcatruas, esperte-zas e desmandos da Enron, que é difícil saber qual foi o principal problema que redundou na sua crise e na conseqüente concordata ao �nal do ano 2001. No en-tanto, as razões básicas dessas di�culda-des são bem claras e muito comuns: ga-nância sem limites, ausência de controles tanto internos como por parte de audito-ria externa obrigatória, assim como con-troles governamentais.

Por conta dessas razões, a empresa produziu um caos no abastecimento de energia, em especial na Califórnia, pro-vocando apagões propositais que geraram desemprego, mortes, prejuízo, falências e demissões políticas. Tudo isto em troca

de ganhos imediatos, sem esforço, em paralelo ao objeto da empresa (serviços de energia), aproveitando a dimensão e a complexidade da organização, para esca-par a todo e qualquer controle. Foi assim que se tornaram possíveis grandes mano-bras através de contas em paraísos �scais, criação de fundos de investimento ilegais e especulação nas bolsas.

Sob o olhar complacente e interes-seiro da empresa de auditoria Arthur Andersen, também dublê de empresa de consultoria da Enron – coisa que até no Brasil é proibida – produziu mais de 5.000 desempregados, arruinou fundos de pensões acumulados durante toda a vida por milhares de trabalhadores e de-sativou uma grande central de energia na Índia durante mais de cinco anos.

Cerca de 20 mil trabalhadores da em-presa perderam bilhões de dólares porque foram impedidos de vender as ações dos seus fundos de aposentadoria, enquanto o valor das ações começava a despencar. Ao mesmo tempo, os executivos da em-presa obtiveram elevados ganhos, ven-dendo mais de US$ 1 bilhão em ações quando o preço ainda estava próximo do pico.

Os documentos que indicam a ma-nipulação do mercado de energia na Califórnia pela Enron foram revelados pela Comissão Federal de Regulação em Energia. As revelações abriram um novo capítulo nas discussões, onde consumi-dores e políticos ainda questionavam a culpa pelos apagões no estado e pelos altos preços da energia cobrados no in-

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verno de 2001. Na ocasião, a Paci�c Gas and Electric,

outra grande empresa do setor, também recorreu à concordada, o que obrigou o estado da Califórnia a assinar contratos de longo prazo, com altos preços, como única alternativa encontrada para garan-tir o abastecimento energético na região. Ao �m, o governo da Califórnia passou a executar um processo de estatização, que deixou os neoliberais boquiabertos. E, também com um misto de alegria e satisfação, a muitos de nós, da esquerda!

Je^ Skilling, o cérebro e todo podero-so comandante da Enron foi condenado a 24 anos de prisão, porém foi solto após pagar �ança de US$ 5 milhões. Outro dirigente importante, Ken Lay, morreu antes da sentença, supostamente por sui-cídio e não se sabe ao certo se ele se suici-dou ou “foi suicidado”. Grande parte dos quadros diretivos envolvidos nas fraudes também foram condenados a pesadas pe-nas.

No Brasil, a Enron teve grande in@u-ência no processo privatizante do setor elétrico, realizado durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso.

A WorldCom, entre 1995 e 2000, avançou decisivamente no setor de te-lecomunicações, comprando várias em-presas, inclusive a MCI por US$ 37 bi-lhões. Tomou conta de metade de todo o tráfego de Internet dos EUA e metade de todos os e-mails da rede mundial e se transformou numa das maiores operado-ras de longa distância. No Brasil, a MCI foi a compradora da Embratel.

Com as crises do �nal dos anos 1990, os lucros começaram a frustrar as ganân-cias dos analistas de Wall Street. Assim, empresa retirou US$ 2,8 bilhões das re-servas destinadas a cobrir dívidas e obri-gações e colocou como rendimento em sua declaração �nanceira.

Como essa manobra não foi su�ciente para a ganância da sua direção, despesas operacionais foram classi�cadas como capitais de investimento de longo pra-zo, conseguindo mais US$ 3,8 bilhões. Também foram registradas entradas de milhões de dólares em despesas com computação, porém os documentos cor-respondentes nunca apareceram.

Estas falcatruas transformaram as perdas em lucros de US$ 1,3 bilhões em 2001. Porém, em 2004, quando a pró-pria auditoria interna e os controles ex-ternos perceberam o tamanho do rombo, foi decretada a falência e a WorldCom mudou o nome para MCI. Os diretores executivo e �nanceiro foram processados e condenados a 25 anos de prisão, porém sempre recorrendo à apelações ou ne-gociações de redução de pena mediante “acusação ao outro”. Um procedimento muito usual, tanto lá como aqui e, su-põe-se, em qualquer parte do mundo.

O caso da Tyco International é um pouco diferente mas é emblemático. Desde 1986, no processo de globaliza-ção, ela realizou mais de 40 aquisições de grandes empresas, assim como muitas outras aquisições menores. Passou a atu-ar em mais de 100 paises, sendo o maior fornecedor mundial de componentes

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elétricos e eletrônicos, o maior centro de projetos e produção de sistemas de tele-comunicações submarinas, o maior pro-dutor de sistemas de proteção de incên-dio e serviços de segurança eletrônicos, o maior produtor de válvulas especiais e o investidor principal em produtos médi-cos, plásticos e marcas de adesivos.

A fraude na Tyco funcionava assim: os diretores se auto-atribuíam participa-ção nos lucros ou faziam empréstimos a si mesmos com juros muito baixos; ven-diam ações da empresa sem avisar os in-vestidores, desobedecendo as regulações vigentes; “roubaram” US$ 600 milhões através de boni�cações sem aprovação e despesas extravagantes, obviamente su-perfaturadas. Tomavam empréstimos que depois eram “esquecidos”. Uma festa!

Foi um caso “exemplar às avessas” de corrupção e acumulação de riquezas, mais de natureza pessoal do que empre-sarial. Os diretores envolvidos receberam sentenças de 8 anos a 25 anos de prisão.

Entre 2003 e 2007 não ocorreram crises signi�cativas porque o mundo crescia �rme e de modo quase generaliza-do. Todavia, tratava-se de uma aparente calmaria enquanto estava sendo gestada a tsunami de 2008 nas regiões submari-nas, digo, “subprime”.

Crise de 2008 – Pelo que se pode perceber, não será exagero a�rmar que a crise de 2008 é, seguramente, a “mãe das crises” do capital, em termos de desdo-bramentos já ocorridos, bem como da-queles que poderão ainda ocorrer.

Centenas e centenas de textos já foram

– e continuam sendo - escritos a respeito do tema, debates foram – e continuam sendo - realizados e ainda não é fácil fa-zer um diagnostico consistente da situ-ação a que chegou o sistema capitalista neoliberal. Contudo, muito mais difícil ainda é garimpar o futuro.

É óbvio que esta é mais uma crise anunciada. É óbvio também que não estava anunciada por aqueles cuja ocu-pação e preocupação é amealhar mais e mais riqueza a qualquer custo e no me-nor prazo possível. Para esses, o futuro se restringe à data do próximo venci-mento do derivativo da vez.

A partir da “crise pontocom” de 2000, o mercado imobiliário norte-americano começou uma fase de expansão, princi-palmente porque os juros nos EUA co-meçaram a ser reduzidos. Por exemplo, em 2003 o Federal Reserve baixou os juros para 1% a.a., a menor taxa nos 50 anos antecedentes.

Em 2005 o mercado imobiliário dos EUA já era a “bola da vez” e cresceu a busca por hipotecas, cujo dinheiro pas-sou a ser investido em títulos virtuais, tanto quanto a estimular o consumismo, o que nos EUA sempre foi uma cultura permanente.

Daí, o salto para o “subprime” (em-préstimos com pequena ou nenhuma garantia), foi apenas um pequeno passo. Essa “farra” avançou sem qualquer con-trole até 2006, quando os preços dos imóveis atingiram um pico absurdo e foi iniciado o óbvio processo de queda.

A rotina nesses casos é simples, clássica

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e nada surpreendente: os juros subiram, os compradores se afastaram, a oferta su-perou a demanda, os preços começaram a cair, a inadimplência aumentou, o te-mor do calote cresceu, o �nanciamento sumiu. Claro que a economia dos EUA também começou a descer a ladeira.

Os efeitos colaterais – na verdade não tão colaterais assim -, começaram a sur-gir: desemprego, migração das aplicações �nanceiras para outros ativos, de prefe-rência em mercados de outras regiões do planeta e assim por diante.

Acontece que no mundo globalizado de hoje, se as boas ondas se espalham com facilidade e rapidez, o mesmo acon-tece com as ruins!

O processo recessivo passou a conta-minar o mundo central do capitalismo. E não apenas este, mas também o da pe-riferia do sistema, porque o desabamento se globalizou, tendo começado ainda de-vagar em 2007, aumentou a velocidade em 2008 e passou a vôo cego em 2009. Para onde está indo? Qual o destino �nal desse processo?

Como uma forma “didática” e bem humorada de entender o processo, vale reproduzir aqui a história do seu Biu, uma metáfora anonimamente criada por alguém que, em linguagem popular e co-tidiana, parece que “entende do riscado” e que “sacou legal” a origem da coisa. A reprodução aqui pressupõe que nem to-dos conheçam a historinha que andou rolando na Internet.

“Seu Biu tem um bar na Vila Car-rapato e decide que vai vender cachaça

‘na caderneta’ aos seus leais fregueses, todos bêbados, quase todos desemprega-dos. Porque decide vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose da ‘branquinha’. A diferença é o sobrepreço que os ‘pinguços’ pagam pelo crédito.

O gerente do banco do seu Biu, um ousado administrador formado em cur-sos de ‘emibiêi’, decide que as cadernetas das dívidas do bar constituem, a%nal, um ativo recebível e começa a adian-tar dinheiro ao estabelecimento tendo o ‘pindura dos pinguços’ como garantia.

Uns seis ‘zécutivos’ de bancos, mais adiante, lastreiam os tais recebíveis do banco e os transformam em CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS ou qualquer outro acrônimo %nanceiro que ninguém sabe exatamente o que quer dizer. Es-ses adicionais instrumentos %nanceiros alavancam o mercado de capitais e con-duzem a operações estruturadas de de-rivativos na BM&F, cujo lastro inicial (garantias) todo mundo desconhece, isto é, as tais cadernetas do seu Biu. Esses derivativos são negociados nos mercados de 73 países como se fossem títulos sé-rios, com fortes garantias reais.

Até que alguém descobre que os ‘be-buns’ da Vila Carrapato não têm di-nheiro para pagar as contas e o Bar do seu Biu vai à falência. E toda a cadeia ‘sifu’...”Perfeito!!! Genial!!!Retomando a análise no ponto onde

foi interrompida para o “enxerto” da historinha acima, vamos deixar de lado

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minúcias e detalhes. Por exemplo o que aconteceu, está acontecendo e irá acon-tecer com Fannie Mae, Freddie Mac, Lehman Brothers, BNP Paribas, AHM (American Home Mortgage), Citigroup, Bear Stearns, AIG, Merrill Lynch, WaMu (Washington Mutual), Wachovia e deze-nas de outras siglas, quase todas desco-nhecidas – e logo esquecidas - por nós, simples mortais, sobreviventes, semi-vi-ventes. E pagantes! Sempre pagantes!

O que deveria acontecer e seria, real-mente, do nosso total interesse é que esses e todos os tipos de especuladores ganan-ciosos e patifes se “lascassem” sozinhos e que não transferissem para nós os ônus das suas ações irresponsáveis, ganancio-sas e criminosas em termos sociais.

Entretanto, os recursos, que deveriam ser destinados à prestação de serviços pú-blicos, infelizmente passam prioritaria-mente a socorrer instituições e organiza-ções quebradas por ganância, incompe-tência e descontrole. Como diz Michel Husson em seu artigo O capitalismo obsceno, de cuja matéria foi extraído o mote para a epigrafe deste capítulo: “tudo vai ser feito para que as vítimas paguem a louça partida e desencalhem a situação de uma minoria de delinqüentes sociais.”

Infelizmente, esse é o presente e tam-bém o futuro imediato anunciado. Possi-bilidades futuras, porém, é um tema para mais adiante, neste ensaio.

De um modo geral, as crises políticas nunca são a única origem e raramente são a causa maior das guerras. Contudo,

as guerras, tanto as grandes quanto as “medias” e as “pequenas”, não serão tra-tadas especi�camente neste estudo.

Daremos apenas alguns destaques para certas questões referentes ao episó-dio do onze-de-setembro, isto é, a espo-leta que detonou as ações bélicas, polí-ticas e econômicas no Afeganistão e no Iraque em 2002. O destaque se deve ao fato de que muitas das suas razões não têm sido adequadamente abordadas para o grande público.

Assim também não será tratado um outro importante marco político da his-tória do capitalismo, ocorrido no período neoliberal, ou seja, a queda do muro de Berlim, em 1989. Esse foi um processo resultante de crises de varias naturezas, o qual também deu origem a muitas crises posteriores.

Essa questão está extensa e profunda-mente analisada e debatida em incontá-veis estudos, documentos, livros e teses, de sorte que sua abordagem especí�ca é totalmente impensável neste ensaio.

Por outro lado, é oportuno relembrar que uma parte signi�cante da ação neoli-beral sobre a política dos Estados nacio-nais foi vista, de forma sintética e exem-pli�cativa, na resenha feita no capítulo anterior sobre a expansão neoliberal dos anos 1980/90.

Aqui, serão feitas algumas comple-mentações e atualizações, também sinté-ticas, sendo priorizados os fatos da pri-meira década deste século.

Pelo signi�cado que passou a ter a

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região, foco maior é dado à América do Sul, onde começam a assomar algumas “rebeldias” com relação ao sistema ca-pitalista neoliberal, as quais se juntam às de Cuba, da Nicarágua e El Salvador, no Caribe e América Central.

04.02 - O onze-de-setembro

Uma das crises de maior dimensão tanto política como econômica,

militar e estratégica desta década é a de-corrente do episódio de onze de setem-bro de 2001.

Na época, após um mês de um infer-nal assédio midiático, já se fazia neces-sário perguntar quais aspectos ainda não tinham sido su�cientemente destacados, debatidos, esmiuçados, defendidos, cri-ticados. Contudo, restavam – e sempre restarão – uns tantos temas a serem ga-rimpados sobre aquele episódio, suas ori-gens e consequências.

É de se destacar que algumas análises mais críticas têm permanecido em esferas restritas, não acessíveis ao grande públi-co. Esses espaços são a Internet, o debate acadêmico e os meios de comunicação setoriais da sociedade, no campo das es-querdas. Nos meios o�ciais e mediáticos em geral, absolutamente nada há de útil!

Há, porém, analistas que têm levanta-do hipóteses bastante heterodoxas e dú-vidas a respeito da autoria dos atentados. Diz-se, por exemplo, que o padrão uti-lizado para o ataque às torres do WTC contraria princípios básicos do islamis-mo, estando mais para os padrões do fanatismo de fundamentalistas do tipo Timothy McViegh, aquele cidadão esta-

dunidense que foi condenado e executa-do por implodir metade de um edifício público em Oklahoma em 19 de abril de 1995, matando 168 pessoas. Relembre-se que, no inicio, procuravam por terro-ristas muçulmanos! Como de praxe!

Em termos de vítimas, são contun-dentes alguns comparativos com fatos da história relativamente recente, cujos nú-meros são aterrorizantes. Por exemplo: Hiroshima e Nagasaki (200 mil vítimas diretas); Coréia (400 mil coreanos e 35 mil soldados estadunidenses e aliados); Vietnam, Laos e Camboja (5 milhões de nativos e 60 mil soldados estaduni-denses); Iraque (1 milhão de iraquianos mortos na “guerra cirúrgica” do Bush pai, com pequenas baixas nas forças ame-ricanas e aliadas).

Considere-se também outros tantos seres humanos que têm sido sacri�cados em outras ações de guerra e de violência, também de origem política ou econômi-ca ou religiosa ou tudo isso ao mesmo tempo. E, para completar o quadro do caos, adicione-se os milhões de vítimas da fome e da violência de várias origens e naturezas, tudo sob a marca da exclusão social e econômica.

Por acaso, esses também não serão se-res humanos iguais aos que estavam nas torres do WTC ou no Pentágono, ou seja, iguais a cidadãos estadunidenses? Ou são de outras categorias e de outros mundos, ou seja, seres inferiores cujas mortes são convenientes para os processos seletivos da humanidade?

Na época, uma pesquisa do Gallup

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– aliás pouco noticiada – indicou que nos EUA apenas 54% aprovaram a guer-ra; na Índia, 72% (na época, o proble-ma que mais despertava a atenção era a disputa contra o Paquistão pela região da Cashemira); em Israel, a aprovação foi de 77%, por razões óbvias. Não obstan-te, nos demais cerca de 30 países pesqui-sados, a reprovação à “guerra in�nita” foi geral. Também no Brasil, apesar do estar-dalhaço paranóico e infernal das grandes redes de comunicação, dois terços da po-pulação reprovou a guerra.

Onde, então, está o apoio à fúria guerreira do Imperador Bush e dos seus “falcões”? Em primeiro lugar, está nos go-vernos dos países com variados graus de dependência econômica, �nanceira, co-mercial ou política em relação aos EUA, tais como o Brasil. Em segundo lugar, no mesmo nível de importância, está o imenso processo midiático de ocultação das reais dimensões do tal “apoio”. Este processo misti�cador atende a alguns in-teresses muito nítidos e, por outro lado, também outros tantos obscuros, que o Sistema tenta ocultar.

Exemplos: a) os poderosos grupos econômicos inseridos nas redes de comu-nicação americanas, sendo alguns com interesses diretos na indústria armamen-tista; b) a indústria armamentista, em si, um dos maiores sustentáculos da eco-nomia norte-americana; c) o desvio da atenção das razões primordiais do “ter-rorismo” e do “contra-terrorismo”, para confundir o público pela inversão de responsabilidades; d) a tentativa de con-

vencimento do grande publico de que o apoio à ferocidade do “terror anti-terror” está generalizado e permeia as sociedades ocidentais, ao invés de estar apenas em alguns governos dependentes, de uma forma ou de outra, dos EUA.

Outra questão: o ódio, a violência e o terror devem ser combatidos com a mesma moeda, olho por olho? Para essa discussão, seria conveniente explicitar qual foi o seu momento-zero. Mas isso é impossível porque nesse duelo imbecil, quem sacou primeiro?

Quanto ao Osama bin Laden e seus seguidores, o que restará para aterrorizar se lhes for retirada a principal razão do seu ódio – que também está disseminado pelo mundo todo - contra a exploração e a prepotência do Império? Com certeza, o Islã não odeia o povo estadunidense; odeia o sistema de poder e de dominação dos EUA.

Na contramão de todo um processo ideológico, extensamente desenvolvido para tentar provar motivos improváveis, existem hipóteses bem mais plausíveis para tanto aparato midiático e belicoso:

1. O governo Bush precisava “fazer qualquer coisa” para recuperar índices de aprovação popular, os quais esta-vam em queda livre já havia algum tempo.2. O Iraque tem a segunda maior re-serva de petróleo conhecida.3. No território iraquiano se encon-tra a maior parte das trajetórias dos rios Tigre e Eufrates, sendo essa uma das maiores fontes hídricas da região.

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Diz-se que há projetos de transporte de água para a Arábia Saudita e o Irã.4. Sadan havia mudado a base dólar do petróleo iraquiano para a base euro e os demais membros da Opep esta-vam pensando fazer o mesmo, o que signi�caria uma perda gigantesca no domínio da economia mundial por parte dos EUA e uma fatal desvalori-zação do dólar em escala planetária.5. O Afeganistão �ca no caminho dos oleodutos e/ou gasodutos previstos para trazer produtos da região do Mar Cáspio (Cazaquistão, Uzbequistão etc.) para o Golfo Pérsico, no Oriente Médio.6. Há descon�anças razoáveis de que o Pentágono tenha sido atacado por via terrestre em vez de aérea, tendo em vista que os danos causados fo-ram bem reduzidos, adicionando-se o fato de que aquela área estava em reformas naquele momento, apenas com alguns trabalhadores no local. De qualquer modo, restam ainda muitas perguntas sem respostas: para onde teria ido o Boing? Por que não foram mostradas pelo menos algumas das suas partes, mesmo dani�cadas? E os corpos dos passageiros? Por que foi feita uma limpeza geral e completa em curtíssimo tempo. Por que o ter-reno foi recoberto com areia e brita, também às pressas? 7. Por que ele teria destruído apenas o andar térreo do anel externo de um prédio de 4 andares e 24m de altura? Os demais andares caíram depois.

8. O avião “seria” um Boing 757-200, 13m de altura, 39m nas asas, 100t de peso, 600 milhas por hora em velo-cidade de cruzeiro e 250 em aterris-sagem. 9. O que, a�nal, aconteceu com o “pretenso” avião que “iria” para a Casa Branca? Ele existiu, de fato?

Esta foto foi tirada de um satélite.

Esta foto foi tirada de um helicóptero.As fotos foram acrescidas de desenhos,

com destaques, de um avião.As fotos e os desenhos nas montagens

estão em proporções corretas.Elas estão disponíveis no endereço:

www.asile.org./citoyens/numero13/pen-tagone. (Caso ainda não tenha sido re-tiradas...)

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04.03 - “Rebeldias” atuais na América Latina

A América Latina está se tornando pal-co de situações político-ideológicas

que convergem para um nítido processo de confronto com o sistema dominante.

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Queremos acreditar que esse processo possa se tornar uma espécie de rumo para a ampliação dos embates com o sistema capitalista.

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E que, de certa forma, passe a ser um protótipo para a construção de um novo modelo de hegemonia tal que contemple o primado das organizações sociais e po-líticas, estruturadas com real inserção nas bases da sociedade.

Por enquanto, esse processo está mais nítido na América do Sul, mas está se ex-pandindo para a América Central e Cari-be. Onde, aliás, há cinqüenta anos Cuba resiste bravamente ao Império.

A América do Sul é um dos maiores territórios contínuos existentes no plane-ta e contém riquezas naturais das mais abundantes e variadas. É habitada por po-vos com origens, histórias, culturas e lín-guas que mantém muitas similaridades. É verdade que apresenta também especi�ci-dades, como não podia deixar de ser.

Uma importante questão que deve ser colocada é se as dissimilaridades são, re-almente, intransponíveis ou isso é mais um discurso daqueles cujos interesses se-

guem o principio do “manter separado para facilitar a dominação”!

É bem por isso que os paises da região têm sido vítimas de processos ideológi-cos de dominação e exploração, impos-tos pelas elites burguesas, quer de âmbito nacional, continental ou mundial. Não é surpreendente, portanto, que também tenham sido vítimas de ditaduras longas, ferozes e cruéis, até cerca de duas décadas atrás.

De todo o modo, a América do Sul, o “continente do amor” - no dizer da eco-nomista, historiadora e professora Ceci Juruá -, tem enorme potencial para vir a ser, no seu conjunto, uma grande po-tência mundial. Talvez a maior potência. Por que não? Esse futuro, entretanto, �ca condicionado a uma uni�cação de propósitos e vontades políticas, como premissa fundamental para qualquer outro tipo de uni�cação de atitudes e de ações conjuntas.

Na região, mais signi�cativamente do que em outras partes do mundo, já são visíveis algumas mudanças políticas, com variados níveis de efetivas transfor-mações. Tais são os casos da Venezuela, da Bolívia, do Equador, do Chile, da Ar-gentina, do Uruguai, do Brasil e, ultima-mente, do Paraguai. Podemos incluir no conjunto dessas movimentações políticas também a Nicarágua e El Salvador.

Nesses países ascenderam ao governo candidatos com propostas de avanços sociais, liberdades democráticas, trans-parência administrativa, controle social, desenvolvimento sustentado, combate à

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corrupção, etc. Todavia, prometer é fácil; fazer nem

tanto. Assumir o governo nem sempre signi�ca assumir o poder, tais são os em-pecilhos encontrados pelo caminho, que correspondem a verdadeiras muralhas estrati�cadas por séculos de dominação capitalista, com explorações e alienações de todo o tipo, natureza e dimensão.

Mudar essa situação não parece ser fácil, mas não será algo impossível.

No capítulo Trajetória do neolibe-ralismo, dentre os exemplos de “radio-gra�a” daquilo que transitava em várias partes do mundo neoliberal, já foi dado destaque especial para a América Latina.

Agora, neste ponto do estudo, vamos fazer uma nova radiogra�a - talvez uma “tomogra�a computadorizada” – de paí-ses em processos mais efetivos de trans-formação social, econômica e política. Para atualizar a conjuntura.

Na Argentina, um presidente pre-tensamente de esquerda, Fernando de la Rua, assumiu o governo em 1999. Nesse governo, entretanto, ocorreram algumas trapalhadas no processo de correção do caos econômico, político e social herda-do de Ménen. É verdade que o surgimen-to de di�culdades não foi surpreendente, tendo em vista a situação política e insti-tucional em que se encontrava a Argen-tina. Assim, a conjuntura se tumultuou e redundou num breve período de troca quase diária de vários presidentes.

Nessa fase, ocorreu uma grave crise �-nanceira e econômica como decorrência da vinculação paritária ainda existente

entre o peso e o dólar, instituída no go-verno neoliberal, atrelado aos EUA, do presidente Carlos Ménen.

Em 25 de maio de 2003 Néstor Kir-chner tomou posse como presidente, tendo vencido Ménen por “W.O”. Ou seja, Ménem desistiu de concorrer ao se-gundo turno da eleição presidencial em razão da sua derrota fragorosa no primei-ro turno.

A partir daí, vários aspectos da situ-ação política e econômica da Argentina começaram a mudar realmente. Entre 2003 e 2007, mesmo com a ocorrência de uma breve crise energética em 2003 – herança das privatizações generalizadas do neoliberal governo Ménen -, o PIB argentino cresceu a uma média anual aci-ma de 8,5%. E, como uma conseqüência natural do crescimento, o desemprego foi sendo reduzido de forma constante.

Um dos marcos positivos da admi-nistração Kirchner foi a atitude de sobe-rania exercida com relação à negociação da divida externa argentina, realizada em 2004. Nessa quase crise internacional no mundo capitalista, foram impostas – e acabaram sendo aceitas pelos credores - condições bastante duras. Em conse-qüência, a economia argentina obteve signi�cativos ganhos e deu-se o inicio de um processo de estabilização e cres-cimento, mercê da demonstração de �r-meza do governo argentino.

Cristina Kirchner foi eleita para subs-tituir o marido e assumiu a presidência em março de 2008, sendo a segunda mu-lher a presidir a Argentina e também a se-

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gunda mulher a presidir atualmente um país da América do Sul. Tem enfrentado algumas turbulências políticas e econô-micas, cujas conseqüências ainda não es-tão muito claras. Todavia, os avanços em termos de organização regional no âm-bito do Mercosul estão sendo mantidos.

Na Bolivia, em 2005 foi aprovada uma lei para exploração dos recursos na-turais do país, mas o povo discordou e exigiu que a decisão fosse revista. Saiu às ruas, bloqueou estradas e aeroportos e pressionou até que o presidente Carlos Mesa renunciou, assumindo o presidente do poder judiciário.

Em 26 de janeiro de 2006 assumiu o governo Juan Evo Morales Ayma, um le-gitimo representante da maioria indíge-na do povo boliviano. O presidente Evo Morales, de origem ameríndia, da etnia aymará, é líder do MAS – Movimiento al Socialismo e integra a nova ordem po-lítico-ideológica que está em processo de expansão no sul da América.

Morales já havia �cado em segundo lugar na eleição presidencial anterior, em 2002, mas nas eleições de dezembro de 2005 ele venceu com maioria absoluta, já em primeiro turno, tornando-se o pri-meiro presidente boliviano de origem indígena.

Suas atitudes de independência e so-berania têm – e não poderia ser diferente – recebido criticas ferozes dos conserva-dores de todas as latitudes da América, inclusive do Brasil, em especial da mídia brasileira.

A Bolívia tem sofrido boicotes cruéis

por parte dos EUA, que se desdobram em assassinatos de lideres populares e sindicais e no apoio explicito à tentativa de cisão na unidade geográ�ca do país.

A respeito do movimento separatis-ta na Bolívia, Nildo Ouriques, profes-sor da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina e presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos daquela Universidade, em entrevista ao jornal “A Tarde”, de Salvador – Bahia, de 21-11-2008, a�rma:

“Não foi apenas uma tentativa, foi uma política orientada pela embaixada de Washington em La Paz, que era clara-mente a de criar uma subversão completa no país e que resultou em várias mortes. Os governadores de Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija, estados da chamada Meia Lua, se reuniam com o embaixador nor-te-americano, Philip Goldberg, à luz do dia.3 Eles %zeram uma conspiração para derrubar Morales, mas fracassou pela imensa mobilização popular. A estratégia que usaram contra Chávez foi também usada contra Morales. É a política dos EUA: derrubar todo e qualquer governo que represente aspirações populares e so-beranas.”E Ouriques acrescenta:“Não há qualquer possibilidade de di-visão da Bolívia porque Tarija, Estado que concentra a riqueza petroleira, deu 50% dos votos a Morales. Santa Cruz de la Sierra é historicamente parasitária

3 Goldberg foi expulso do país pelo presidente boliviano Evo Morales em setembro de 2008, acusado de conspiração contra o governo.

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dos recursos petroleiros e produz soja com um terço da produtividade que registra-mos no Brasil. Além desses dois estados, o governador de Beni, Ernesto Suárez, está sendo processado, está na cadeia e de lá não pode sair. Dessa maneira, não existe mais a possibilidade de divisão da Bolí-via.”Recentemente, tomou-se conheci-

mento de que a metade das reservas de lítio do mundo está no Salar do Uyuni, o maior deserto de sal do mundo, o que pode transformar a Bolívia na Arábia Saudita desse metal. As reservas da Bo-lívia têm mais de 5 milhões de tonela-das, enquanto no Chile são cerca de 3 milhões, no Tibet, 1,0 milhão, nos EUA menos de 0,5 milhões de toneladas.

Como sabemos, trata-se de matéria prima essencial para a fabricação de me-dicamentos e de baterias para automó-veis. Tem, portanto, enorme futuro em aplicações industriais de tecnologias de ponta. Todavia, as di�culdades da Bolí-via, também nesse ramo, residem na fal-ta de condições econômicas para investir nesse enorme potencial industrial. De qualquer maneira, seria mais uma opor-tunidade para parcerias exitosas entre os paises sul-americanos que estão buscan-do novos caminhos para transitar de for-ma conjunta.

Mais recentemente, a proposta de Morales para uma nova Constituição foi aprovada em plebiscito com quase dois terços de votos favoráveis do povo boliviano, o que signi�ca uma conquis-ta que �cará na história do país. Além

disso, con�rma o presidente Evo Mora-les como legítimo representante dos an-seios de seu povo e remete sua liderança para o âmbito externo, de modo especial para América do Sul, mas também para a América Latina, como um todo. E para o mundo, como foi percebido no Fórum Social Mundial de 2009, em Belém do Pará.

No Brasil, com a chegada de Luis Iná-cio Lula da Silva ao governo em 2002, foi criada enorme expectativa no interior dos movimentos sociais, sindicais e po-líticos de esquerda, quanto a mudanças profundas nos rumos político-ideológi-cos do governo brasileiro. Infelizmente, a partir das de�nições explicitadas mes-mo antes da posse, �cou notório que, em grande parte, as expectativas de mudan-ças mais profundas iriam �car minimiza-das. Isso, na hipótese mais otimista.

Duas atitudes fundamentais que tra-çaram nitidamente os rumos das estra-tégias políticas ideológicas e econômicas foram a “Carta aos Brasileiros” e a nome-ação de Henrique Meirelles (“Henry”, para os íntimos de Wall Street...) para a presidência do Banco Central.

O surpreendente – para muitas pes-soas, dentre as quais nos incluímos -, é que, passados oito anos, as posições de-correntes dos compromissos assumidos com os centros de poder econômico e �-nanceiro mundiais e nacionais, em quase nada foram mudadas.

Há uma opinião quase unânime en-tre os analistas de esquerda, não apenas brasileiros, no sentido de que na América

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Latina nunca um governo, que possa ser quali�cado como de esquerda, teve tan-tas condições políticas tão privilegiadas para fazer mudanças profundas, como o governo Lula.

Reconheça-se, entretanto, que não é fácil instituir, de plano, novos paradig-mas que vão na contramão de seculares estrati�cações políticas, comportamen-tais e culturais, sedimentadas por séculos e séculos de dominação e exploração e orientadas para outros rumos que não os ansiados pelas grandes massas, por tanto tempo desprotegidas e desassistidas.

É inegável também que começaram a ser removidas algumas pedras do entu-lho secular que vêm prejudicando o país, especialmente nas duas últimas décadas do século que passou, ou seja, o período do predomínio do modelo neoliberal no mundo e também no Brasil.

Tais medidas e ações, entretanto, têm se mostrado tímidas, modestas e até pí-�as quanto à abrangência, velocidade e profundidade nas mudanças. E inexis-tem razões objetivas e concretas para tal comportamento. As razões que têm sido alegadas e alardeadas re@etem muitas ve-zes tentativas de engodo, despiste e sub-terfúgio para falsos medos e temores.

Em outras palavras, tem faltado ou-sadia, audácia e real consciência quanto às verdadeiras potencialidades e possi-bilidades do país e do seu povo. Povo esse que, em novembro/2002, delegou e avalizou ações transformadoras para o governo Lula. E continuou avalizando nas eleições de 2006 e nas pesquisas de

opinião até o �nal das duas gestões.Em agosto de 2004 realizamos uma

análise setorializada, abrangendo cerca de vinte setores importantes. A relati-vidade entre a quali�cação positiva e a negativa foi consubstanciada com a atri-buição de notas, sob nosso juízo pessoal, com valores entre dez e zero, isto é, entre a excelência insuperável e a ine�cácia to-tal e/ou o equívoco absurdo.

Como é óbvio, a avaliação detectou tanto os aspectos positivos como os ne-gativos e constatou que quase todos os setores de atuação governamental tinham avançado em relação a governos neoli-berais anteriores, mas... sempre existem mas...! A verdade é que os avanços fo-ram fracos.

No segundo semestre de 2009 realiza-mos uma reavaliação dos mesmos setores e atribuímos novas notas, coerentes com a situação percebida nesse momento. A variação no período de mais de quatro anos permitiu uma fotogra�a do desem-penho percebido no governo Lula, entre a metade da primeira gestão – quando a administração Lula já tinha uma “cara” bem de�nida – e a metade da segunda gestão.

Neste espaço não desceremos a deta-lhes. É apenas uma avaliação genérica, critica, criteriosa e de ordem pessoal.

Claro está que não é possível esta-belecer uma nota geral para o governo Lula pelo método simplista de cálculo por média aritmética das notas setoriais. Além da análise não abranger todos os setores de governo, isto é, ter um sentido

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de amostragem, há diferenças relativas quanto às in@uências dos impactos se-toriais sobre a atuação esperada de um governo popular que pretenda realmente administrar “um país de todos”, a atual logomarca do governo federal.

Foi fácil perceber que existe um subs-trato recorrente, ou seja, uma questão que vem sendo destacada pelos analistas idôneos e isentos tanto em âmbito nacio-nal como internacional.

________________

A política monetária, *nanceira e econômica é a armadilha central para um desenvolvimento com so-berania e qualidade de vida para o povo brasileiro.

_____________

Essa armadilha, historicamente insta-lada no Brasil e fortalecida nos anos ne-oliberais dos governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, não foi desmontada no governo Lula. E, o que é mais incompreensível e assus-tador é que inexistem reais perspectivas de desmonte, conforme muitos indícios visíveis e perceptíveis. Citemos alguns exemplos.

Em primeiro lugar, existia – deixou de existir em decorrência da crise atual - uma inadmissível e incondicional sub-missão ao “risco Brasil” e ao “mercado”, deus-todo-poderoso do modelo neolibe-ral fracassado em todo o mundo. Ironia: uma das instituições “respeitadíssimas” em análises de “solidez das economias nacionais”, faliu e foi uma das causas da

crise de 2008...! Esse fracasso só não estava sendo per-

cebido no Brasil pelos arautos neoliberais de sempre e por outros aderentes tardios. O encastelamento continuado dessas pessoas no governo Lula é absolutamen-te descabido sob raciocínios e análises minimamente lógicas e racionais, tendo em mente a história política do PT e do próprio presidente.

Em segundo lugar, continua intocável o cego e absurdo principio do irrecorrí-vel cumprimento dos contratos, ou, no jargão jurídico o “pacta sunt servanda”, o que em tradução livre signi�ca: “contra-tos são feitos para serem cumpridos”.

Quais contratos? Todos? Até aque-les �rmados por ingerência de forças econômicas nacionais e internacionais e no sentido exclusivo dos seus interesses? Aqueles contratos que contém notórias lesões aos interesses do governo, do país e do nosso povo? E os contratos leoninos, que priorizam deveres e responsabilida-des apenas dos contratantes, isto é, dos poderes públicos e, por conseqüência, do povo brasileiro?

Aparentemente, são perguntas absur-das, mas em quantas situações as respos-tas é que são absurdas, por serem a�rma-tivas?

Em terceiro lugar, as concessões po-líticas são feitas para a construção e ma-nutenção de um inconsistente “arco de alianças” e um gasoso princípio da “go-vernabilidade”. Ora, no Brasil as gover-nabilidades e os arcos de alianças sempre foram forjados e mantidos com fatias de

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participação no poder, no orçamento do Estado ou em ambos.

Ainda estamos muito longe de inver-ter essas lógicas políticas e culturais por-que os governos pouco ou nada fazem nesse sentido. Todavia, a necessidade e a urgência do início da inversão da tra-jetória maligna do oportunismo político já ultrapassaram qualquer limite de tole-rância.

Em quarto lugar, a expectativa do povo brasileiro quanto a uma generaliza-da transparência nas atitudes e ações de governo tem sido frustrada em situações muito importantes a ponto de existirem casos de opacidades inexplicadas, muitas das quais estão passando para a quali�-cação de inexplicáveis. E, para piorar e/ou deteriorar a situação, a grande mídia nacional - uma tradicional falsa defensora do princípio da transparência -, contribui para a confusão entre o que é importante e não importante para a sociedade bra-sileira, a ponto de inverter totalmente conceitos, quali�cações, responsabilides e valores.

Claro está que a natureza e o conteú-do desta análise não cumprem um papel de crítica destrutiva, mas sim, trata-se de um contributo para algumas mudanças de rumo, sob pena de o Brasil estar per-dendo um raro momento para adotar e até liderar algumas transformações que já estão em trânsito na América Latina.

Para concluir, destaque-se que em 22 de janeiro de 2007 o governo Lula trouxe a público um programa de investimentos denominado PAC - Programa de Ace-

leração do Crescimento. Tratava-se de uma iniciativa que pretendia atender reclamações de diversos setores econô-micos e sociais, bem como de expecta-tivas frustradas, tendo em vista o baixo desenvolvimento do país, problema cuja solução não foi priorizada no primeiro governo.

Com essa atitude, passou a haver no país uma expectativa de que se tratasse de uma real mudança de rumo, uma de-cisão política �rme, não sujeita às intem-péries políticas e às mudanças de humor do chamado “deus mercado”, ou seja, dos atores econômicos e �nanceiros na-cionais e internacionais. Nesse sentido, a aprovação inicial foi muito ampla, com poucas críticas pontuais, talvez decorren-tes apenas de interesses não atendidos.

No documento de lançamento foi destacado que o “desenvolvimento econô-mico deve bene%ciar a todos os brasileiros e brasileiras. Nesse sentido, o desa%o da polí-tica econômica em 2007-2010 é aproveitar o momento histórico favorável e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensi%-cando ainda mais a inclusão social e a me-lhora na distribuição de renda do País.”

Belas palavras, que poderiam con-substanciar reais mudanças de rumo. Es-tas mudanças, porém, não estão se con-substanciando, pelo menos com a abran-gência, a profundidade, a relevância e a celeridade que seria desejável.

No Chile, o presidente Salvador Al-lende foi assassinado pelo golpe militar de 11-09-1973 e assumiu o poder o general Augusto Pinochet. A economia

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chilena passou a ser comandada pelos “chicagos boys” chilenos, graduados na Universidade de Chicago e, portanto, aderentes aos princípios neoliberais de seu “mestre supremo”, Milton Friedman.

O governo Pinochet foi o primeiro a implantar o modelo neoliberal, mesmo antes de `atcher na Inglaterra. Entre-tanto, não foi seguido a risca o receituá-rio do FMI, sendo adotado um modelo adaptado às condições próprias do país.

A frente partidária denominada Con-sertación, que assumiu o poder desde a queda de Pinichet, em 1990, prosseguiu com a trajetória neoliberal nos governos ditos pseudo-socialistas de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet. Por exemplo, em 2000 foi dada mais uma guinada forte para o colo dos EUA, quando Lagos pre-feriu aderir à Alca ao invés do Mercosul.

A Concertación, coalizão de socialis-tas, social-democratas e democrata-cris-tãos, vinha se mantendo e se expandindo no poder, com um claro sinal de que o período de dezessete anos de governo militar (1973-1990) tinha sido su�cien-te para a maioria dos chilenos.

“Aqui, todos querem distância daque-la direita da ditadura Pinochet”, disse o cientista político da Universidade do Chile, Guillermo Holzmann. “A coliga-ção de direita (Aliança) é agora uma mes-cla daquela direita antiga, do Pinochet, representada pela União Democrática In-dependente (UDI), juntamente com uma nova direita chilena, que se apresenta como moderna e neoliberal, chamada Renovação Nacional.”

Já na fase quase �nal do seu governo, Michelle Bachelet começou a ter maiores problemas, agravados pelo resultado das eleições em âmbito municipal. Foi a pri-meira derrota da coligação em 18 anos porque a Concertación perdeu 56 das suas 233 prefeituras, enquanto a Aliança, a coligação de partidos de direita, elegeu 36 novos prefeitos, além dos 104 que já detinha.

Nas eleições presidenciais de 2010 esse processo se concretizou com a elei-ção de Sebastian Piñera.

No Equador, como vimos, a base histórica da economia era agrícola, em especial a exportação de bananas e cacau. Mesmo com o petróleo passando a ser o novo grande sustentáculo, o latifúndio ainda é muito forte.

Todavia, a conseqüente prosperidade atual induziu demandas por reformas so-ciais. A maior entidade política de mo-bilização popular é a Conaie - Coorde-nação das Nacionalidades Indígenas do Equador, que agrega nações indígenas das duas correntes principais: os descen-dentes dos Incas e os que habitam a bacia amazônica.

A política no Equador já vinha com-plicada desde o governo de Abdalá Bu-caran, o qual foi declarado mentalmen-te incapaz pelo Congresso Nacional em 1997. Foi substituído por Jamil Mahuad, eleito em 1998, uma espécie de Fernan-do Collor, que instituiu um governo si-milar ao de Collor tanto na abertura eco-nômica e dependência externa quanto na corrupção.

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Em 1997 já tinha ocorrido uma mar-cha que promoveu uma atuação mais forte das forças populares, especialmente indígenas e em 1999 houve outra mar-cha que aprofundou o confronto dessas forças com o governo.

Em janeiro de 2000 houve um agra-vamento na situação política e �nanceira do Equador que desaguou na dolarização da moeda, quando o governo substituiu a moeda equatoriana, o sucre, pelo dó-lar, colocando o sistema monetário do Equador sob o controle do FED, banco central norte-americano, e também sob severas restrições do FMI e do Banco Mundial.

Assim, era fatal que ocorresse um pro-cesso de confronto, o qual culminou no levante das forças populares e a tomada do poder no dia 21 de janeiro, como já foi destacado.

O Equador é um exemplo dos desas-tres causados pelas políticas de “livre mer-cado” impostas na região pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo Departamento de Estado dos EUA. Iniciadas em 1980, es-sas novas políticas tiveram um impacto devastador em setores como educação, saúde e segurança social.

Eis alguns números do Equador no período neoliberal:

1. Entre 1980 e 2000 ocorreu uma diminuição de 14% no PIB. 2. Desde então, a renda per capita cresceu apenas 8% em cinco anos.3. A taxa de pobreza em 2000 já era 30% mais alta do que a de 1993.4. Aproximadamente metade dos 13

milhões de equatorianos vive na po-breza; 30% vivem com menos de um dólar por dia.5. Mais de 85% da população indí-gena sobrevive abaixo da linha de po-breza. 6. A freqüência escolar diminuiu.7. A desnutrição infantil é de 26%, 15% correspondem aos nativos.8. Os cortes no orçamento dos pro-gramas sociais destruíram o sistema de saúde do país.9. Cerca de 22% da população mi-grou para outros países. 10. O desemprego e o subemprego são crescentes.11. Cerca de 43% do orçamento esta-tal depende da exportação do petró-leo.12. Um terço do orçamento estatal está comprometido com o pagamen-to da dívida.Durante a década de 1970, aumen-

tou o débito do país com os bancos nor-te-americanos, com base expectativa de alta dos rendimentos do petróleo. Com a queda nos preços do petróleo nos anos seguintes, houve uma profunda crise, da qual o país ainda não se recuperou total-mente.

A questão do petróleo tem sido uma fonte de tensão continua, com protestos por causa da destruição ambiental e da contaminação da água potável, em con-seqüência da procura e exploração do petróleo.

Sob a pressão de massivas manifesta-ções de trabalhadores e da população in-

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dígena, o legislativo do Equador já depôs seis presidentes nos últimos 10 anos.

Lucio Gutierrez, o último presiden-te eleito antes de Rafael Correa, foi um aliado do presidente George W. Bush, sendo deposto em abril de 2005 em meio à greve geral causada pelos imensos cor-tes nos gastos públicos, implementados em decorrência do acordo com o FMI. Ele tinha sido eleito com a promessa de aumentar os programas sociais e imple-mentar reformas. Depois de assumir o governo, mudou de posição e se subme-teu às exigências do FMI.

Em dezembro de 2006 Rafael Correa, um economista de 46 anos, formado nos Estados Unidos e na Bélgica, passou a ser o 56º presidente do Equador e o sétimo a ocupar o posto desde que o Congresso Nacional depôs o presidente Abdala Bu-carán em 1997

O partido de Correa, a Alianza País, é um partido burguês nacionalista, embo-ra se considere como parte de uma “cor-rente progressista que está se espalhando pela América Latina e Caribenha que se propõe a libertar o Equador dos 500 anos de exploração”. Sua declaração de princípios faz referências ao pan-ameri-canismo de Simon Bolívar e à luta dos povos nativos do Equador. E chama para a formação de uma “nova ordem” basea-da na igualdade entre as etnias, no desen-volvimento ecologicamente sustentável e na renegociação da dívida externa.

Em 28 de setembro de 2008 foi apro-vada em plebiscito nacional a nova Cons-tituição do Equador, em cumprimento a

uma das mais importantes promessas da campanha eleitoral de 2006.

A atuação de Rafael Correa tem des-pertado algumas críticas raivosas da mí-dia atrelada à “política imperial” norte-americana, inclusive no Brasil, como é obvio. No nosso caso, as reações dizem respeito principalmente à Usina Hidro-elétrica de São Francisco, da empresa “brasileira” Odebrech.

Outra polêmica muito forte foi levan-tada quando, em novembro de 2008, o presidente do Equador decidiu instituir um período de carência quanto ao pa-gamento de parte da divida externa (os bônus Global 2012) e esperar o relatório de uma auditoria a respeito dos processos de endividamento do país nos últimos 30 anos.

Em dezembro de 2008, o presidente decretou moratória da dívida externa, mandou suspender os pagamentos dos juros, pagar somente algumas parcelas vencidas e prosseguir estudando com advogados nacionais e internacionais as estratégias jurídicas para impugnar uma dívida que considera ilegal e ilegítima.

Rafael Correa a�rmou estar prepara-do para enfrentar as oposições interna-cionais referentes à sua decisão e também disse estar assumindo as responsabilida-des pelas conseqüências do não paga-mento da dívida de quase 10 bilhões de dólares.

Esse posicionamento foi exitoso na medida em que signi�cativas parcelas da dívida foram canceladas ou renegociadas em condições vantajosas para o país.

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No Paraguai, 32% da população está abaixo do nível de pobreza e o desem-prego no país atinge 16% das pessoas economicamente ativas. A soja é o seu principal produto de exportação, mas a pecuária também tem relativa importân-cia assim como a venda de produtos im-portados dos EUA e da China.

Após o término, em 1989, da ditadura de 35 anos do general Alfredo Strossner, passou a governar o partido Colorado. Entretanto, em decorrência de disputas entre lideranças de correntes internas, tem sido muito tumultuada a história política do país.

Em 1999, ocorreram muitas ações de confronto com movimentos sociais atuantes no país. A situação política se agravou e assumiu a presidência Luiz Gonzáles Macchi, presidente da Câmara Alta (Senado) e o Paraguai �cou algum tempo sem realizar eleições.

Em abril de 2001 um pequeno gru-po de militares esboçou uma tentativa de golpe, que fracassou.

Em 20 de abril de 2008, numa elei-ção que mobilizou quase três milhões de eleitores, foi eleito o ex-padre Fernando Lugo, do Movimento Popular Tekojoja (igualdade, em guarani) e da coligação Aliança Patriótica para a Mudança. Foi interrompida uma dominação que o Par-tido Colorado exercia há mais de meio século, inclusive durante a ditadura de Strossner.

A campanha eleitoral de Lugo teve de ser realizada em tempo recorde devi-do a di�culdades iniciais a superar, tan-

to oriundas da própria Igreja quanto do Partido Colorado, situacionista, como era natural.

Já no poder, Lugo vem tomando ini-ciativas ousadas. A primeira foi questio-nar a divida de US$ 19 bilhões com a Eletrobrás, holding do sistema elétrico estatal do Brasil, por conta ainda da cons-trução de Itaipu. Essa dívida está prevista no Tratado de Itaipu (que Lugo também pretende revisar) para ser paga até 2023. Além dessa, a dívida externa paraguaia está avaliada em US$ 2 bilhões.

Outra atitude foi pretender realizar, tal como Rafael Correa está fazendo no Equador, uma auditoria da sua dívida externa, processo que tem o apoio da Ve-nezuela, Bolívia, Cuba e Nicarágua.

Lugo está enfrentando intensos pro-cessos de confronto com as forças de oposição, tendo sido também envolvido em questões de paternidade. Até o seu vice-presidente tramou um processo de empeachment.

No Uruguai há uma longa história de ditaduras. Em contrapartida, têm sido produzidos exercícios signi�cativos de cidadania e de democracia, mesmo sob algumas ditaduras. Vamos tomar em-prestadas algumas informações de uma fonte �dedigna e merecedora de grande admiração e respeito, ou seja, o jorna-lista, poeta e escritor uruguaio Eduardo Galeano, o qual escreveu e publicou re-centemente um livro intitulado Espe-lhos – uma história quase universal.

Em entrevista de lançamento do li-vro, em Porto Alegre, Galeano nos conta

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que o Uruguai teve educação laica e gra-tuita antes da Inglaterra; voto feminino antes da França; jornada de trabalho de 8 horas antes dos Estados Unidos e Lei do Divórcio antes da Espanha.

O presidente José Batle nacionalizou os serviços públicos; separou a Igreja do Estado; mudou os nomes do calendário: a Semana Santa ainda se chama, entre os uruguaios, Semana do Turismo.

O General José Artigas fez a primeira Reforma Agrária da América, meio sé-culo antes que Lincoln e um século an-tes que Zapata. O general, que se fazia chamar cidadão Artigas, tinha dito que “os mais infelizes devem ser os mais privile-giados”, que jamais iria “vender nosso rico patrimônio ao baixo preço da necessidade” e que “sua autoridade emanava do povo e cessava diante do povo”.

Por outro lado, os militares reacioná-rios não encontraram uma frase de José Artigas que não fosse perigosa para colo-car no seu mausoléu. Então “decidiram que ele era mudo e nas paredes de mármore negro não há mais do que datas e nomes”, ironiza Galeano.

Amante declarado do futebol, ele faz comparações: “há mais de meio século, o Uruguai não ganha um Campeonato Mundial de Futebol, mas durante a dita-dura militar compensou e conquistou ou-tros duvidosos troféus: foi o país que, pro-porcionalmente, teve o maior número de presos políticos e torturados.”

“A prisão com o maior número de presos foi chamada de ‘Liberdade’. Como que ren-dendo homenagem ao seu nome, palavras

presas fugiram de suas grades. Escorreram por elas os poemas que os presos escreviam em minúsculos papéis de enrolar cigarros”.

Realmente, a linguagem poética de Galeano tem a capacidade de expressar com grande força os seus posicionamen-tos políticos.

O que se pode ler nas entrelinhas do estilo satírico e mordaz do escritor é que os sistemas políticos são sempre repletos de contradições, quando não há �rmeza ideológica nas atitudes e ações políticas com vistas aos interesses maiores do ser humano e da sociedade.

O senador José Mujica, ex-lider revo-lucionário tupamaro, que foi Ministro da Pecuária no governo Tabaré Vasquez, foi lançado no Congresso da Frente Ampla como candidato presidencial da Frente à eleição de 27 de outubro de 2009, na qual saiu vencedor.

O pensamento do presidente eleito José Alberto Mujica Cordano, 74 anos, pode ser sintetizado de uma entrevis-ta que concedeu ao jornal espanhol El Mundo em junho de 2008, mediante os seguintes destaques:

sala com muito ruído e onde nunca se apaga a luz.

deve estar de acordo com a vocação de construir uma sociedade razoavelmente justa. Existem hoje na América Latina governos para todos os gostos, mas ne-nhum que tenha renunciado a buscar comida, moradia e cuidados de saúde para os mais necessitados.

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-verno da Frente Ampla foi termos sido capazes de manter a disciplina %scal, reativar o setor produtivo, atrair inves-timentos e fomentar a iniciativa priva-da, sem aumentar o fosso entre os rendi-mentos mais altos e os mais baixos. Jun-tamente com a Costa Rica, somos o país da América Latina com a distribuição de renda mais eqüitativa entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres. Propi-ciamos a recuperação da classe média, que foi a mais prejudicada pela crise em 2001.

importações nem de deixar os agriculto-res entregues à própria sorte, mas tam-pouco de se governar com os olhos postos na redação do Wall Street Journal.

-lismo selvagem do salve-se quem puder e o liberalismo de raízes humanas que postulam o ''fair play'' como regra bá-sica nas relações econômicas. Vou dizer algo que talvez surpreenda: o velho li-beralismo inglês tratou bastante bem a nós uruguaios.

alguns dos capítulos mais negros da nos-sa história. E eu digo cúmplices porque a maior parte do tempo foram os oli-garcas ou os militares crioulos [nativos], que abriram as portas para os marines, a CIA e as empresas mineradoras ou fruticultoras. Além disso, seria injusto colocar no mesmo saco um líder da esta-tura de Martin Luther King e um ver-dadeiro desastre como George W. Bush.

[onde esteve por 13 anos, como líder tupamaro] não era uma cela, era um poço. Eu tive que aprender a disciplinar-me: inventava ferramen-tas e as aperfeiçoava com minha imagi-nação. Minha única companhia eram as formigas: aprendi que esses insetos gritam. Pode-se comprovar quando se aproxima o ouvido. Eu também aprendi que o homem tem recursos inesgotáveis para enfrentar a adversidade. É por isso que dói muito quando alguém se sente quebrado e renuncia à vida.São lições de política e de vida de um

antigo e sofrido revolucionário, merece-dor de grande respeito e admiração. Na presidência do Uruguai, para a qual foi eleito em dezembo/2009, com certeza dará continuidade ao processo de avan-ços sociais do governo anterior. E pode ser mais um representante de uma nova ordem mundial que está se ampliando a partir do sul da América.

Na Venezuela, podemos considerar que a história mais recente do país tem duas fases bem distintas: antes de Hugo Chávez e durante Hugo Chávez. Como será depois de Hugo Chávez, hoje é difí-cil opinar com segurança.

A capacidade polemizadora do presi-dente Chávez é tal, que ele tem suscita-do admirações e críticas tanto da direi-ta quanto da esquerda! Os adversários à direita têm razões óbvias para serem críticos e até muito ferozes, haja vista as mudanças estruturantes introduzidas no trato da soberania, da política e das ques-tões sociais. No que se refere à esquerda,

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tendo em vista as tantas “gradações de esquerda” hoje existentes no mundo, as admirações e as críticas muitas vezes se mesclam e, por isso, geram confusão nas interpretações.

Como já foi visto, a elaboração do re-sumo a respeito da Venezuela contido no capítulo sobre a trajetória neoliberal, foi apoiada em documento elaborado por Plínio Arruda Sampaio, intelectual e po-lítico de inegável respeitabilidade, que ti-nha lá estado ao �nal da década de 1990, como observador e analista do que estava ocorrendo na Venezuela.

Hoje, para opinar sobre o que se passa naquele país é indispensável que as con-sultas sejam apoiadas em fontes �dedig-nas com relação a posicionamentos mar-cadamente de esquerda.

Por exemplo, existem analistas com �rmeza de concepções de esquerda que criticam a validade referencial dada a Simon Bolívar porque negam a verdade da imagem de herói que lhe é atribuída. Inclusive, são citadas opiniões críticas de Marx a respeito das atitudes políticas de Simon Bolívar. Ora, isso poderia impac-tar negativamente na validade histórica dos discursos in@amados do presidente Chávez, inclusive a nova denominação dada à Venezuela, ou seja, República Bo-livariana da Venezuela. Parece tratar-se de fatos e versões com interpretações his-tóricas um tanto divergentes sob pontos de vista conceituais.

Ao que se pode deduzir das informa-ções da imprensa - tanto contra como pró-Chávez -, o resultado das últimas

eleições municipais na Venezuela permi-te uma dupla interpretação. Se olharmos sob o ponto de vista quantitativo, os nú-meros são favoráveis à política chavista e há razões para a comemoração dos seus apoiadores e admiradores; se olharmos sob o ponto de vista qualitativo, isto é, sob o viés da importância política e eco-nômica das regiões, pode haver razões para preocupações quanto à continuida-de do projeto do presidente.

No plebiscito realizado em fevereiro de 2009, foi aprovada a possibilidade de Chávez candidatar-se novamente em 2012 à presidência. Segundo ele, isso é fundamental para a consolidação da implantação do “projeto socialista boli-variano” na Venezuela, de modo a não haver retorno ao modelo capitalista.

Feitas essas considerações com a �na-lidade da manutenção de uma postura sempre aberta a novos e/ou diferentes pontos de vista, é forçoso rea�rmar nos-sa posição de crença na pureza de inten-ções do presidente Hugo Chávez quanto à trajetória que estabeleceu para levar o país e seu povo para novos rumos. Ou seja, para o confronto com o capitalismo e sua superação na Venezuela.

Enquanto o processo de transforma-ções políticas, econômicas e sociais esti-ver na direção da plena satisfação das ne-cessidades fundamentais e, dessa forma, de um novo destino para o povo vene-zuelano, não vemos qualquer obstáculo para apoiar tal comportamento.

Na Nicarágua, a economia é pre-dominantemente agrícola, tendo como

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principais produtos comerciais: café, algodão, banana, cana de açúcar, mi-lho, frutas, cereais, mandioca, sorgo. Os depósitos de material vulcânico en-riqueceram o solo, o que torna o país ex-tremamente fértil e quase a metade do território é coberto por matas nativas. É um dos países da América Central com maiores rebanhos de bovinos, ovinos, su-ínos e caprinos.

A população é predominantemente mestiça: 69% de mestiços (ameríndios com brancos), 17% de brancos, 9% de negros e 5% de ameríndios (nativos).

Depois de 40 anos de domínio da fa-mília Somoza no governo da Nicarágua, a Frente Sandinista de Libertação Nacio-nal – FSLN, uma organização revolucio-naria então liderada por Eden Pastora to-mou o palácio do governo em Manágua, em 22 de agosto de 1978. Mas �nalmen-te assumiu o governo em 17 de julho de 1979, com a renúncia do presidente So-moza, que se asilou nos EUA.

A FSLN - que tomou o nome de Sandinista em memória e homenagem a Augusto Sandino, guerrilheiro morto em 1934 - governou o país até 1990. Man-teve permanente confronto com os Con-tras, um grupo remanescente da Guarda Nacional, oriundo da “dinastia” da famí-lia Somoza, apoiado ostensivamente pe-los EUA. Nas eleições de 1990, venceu Violeta Barrios de Chamorro, que então liderava um grupo antissandinista, liga-do aos Contras.

Em 2006, Daniel Ortega Saavedra, que já havia sido presidente em 1985,

elegeu-se novamente e os sandinistas re-tomaram o poder, depois de 16 anos nas mãos dos contras.

Dado que Ortega é bastante ligado a Hugo Chávez, alguns analistas têm avalia-do que a sua eleição pode ter o signi�cado de um claro desa�o aos EUA, que apoia-ram ostensivamente o banqueiro Eduardo Montealegre, candidato derrotado. Por exemplo, os EUA manifestaram claras e expressas ameaças de imposição de rígidos controles sobre as remessas dos milhões de dólares enviados às famílias na Nicarágua pelos imigrantes nicaraguenses que vivem e trabalham nos EUA. Mesmo assim, pre-valeceu o discurso de Ortega: “amor, paz e reconciliação.”

Todavia, tendo em vista a maioria oposicionista do Parlamento, a FSLN precisa de muitas alianças para o cum-primento de suas promessas de campa-nha, tais como a formação de um banco de fomento, a redução dos altos salários de alguns funcionários do Estado e a in-clusão, no seu orçamento, de fundos li-berados em decorrência de auditoria da dívida externa.

Em El Salvador foi eleito Mauricio Funes, um antigo jornalista de televisão, candidato pela Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional - FMLN. Ele é mais um presidente latino-americano no qual estão depositadas algumas ex-pectativas de mudanças para o povo sal-vadorenho.

Todavia, não são poucos nem sim-ples os problemas que estão à espera do novo presidente. Por exemplo: a violên-

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cia, a pobreza, a falta de crescimento, a dependência dos EUA, a mais alta taxa de mortes violentas da América Latina, principalmente por ação dos “maras” ou “pandillas”, isto é, gangues juvenis ar-madas. Mas os números vêm baixando. Em 2008 foram 3.179 homicídios, sen-do que em 2006 tinham ocorrido 3.928 mortes.

Vejamos alguns dados estruturais e conjunturais de El Salvador.

1. País pertencente à América Central, com cerca de 6 milhões de habitantes, sendo que cerca de 1,2 milhões vivem na capital, San Salvador.2. A grande maioria (90%) da popu-lação é de mestiços, 9% de brancos e 1% de ameríndios. 3. 37% da população é pobre e cerca de 10% se encontra abaixo da linha da pobreza. 4. A taxa de analfabetismo em 2005 era de 18,9%. 5. A in@ação é de 5,5% e o PIB cres-ceu 3,2% em 2008.6. As exportações principais corres-pondem a produtos manufaturados e café.7. Os EUA são o principal sócio co-mercial, onde estão mais de dois mi-lhões de imigrantes salvadorenhos, cujas remessas representam a segunda fonte de subsistência do país, com 17% do PIB, sendo que a primeira corresponde aos serviços, com 60% do PIB.8. A balança comercial apresenta dé�-cit de US$ 5,2 milhões.

Entre 1930 e 1970, o Partido Comu-nista de El Salvador (PCS) era a única organização de esquerda que lutava por democracia, justiça social e soberania na-cional. Essa luta ganhou grande impulso nos anos setenta com o nascimento das Forças Populares de Libertação Fara-bundo Martí (FPL), o que redundou na criação da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em 10 de outubro de 1980.

O aprofundamento da guerra revolu-cionária, a intervenção crescente do go-verno dos EUA e o novo ascenso da luta social, se transformaram em fatores de avanço do processo político. Entretanto, somente depois de serem superados mui-tos obstáculos políticos, é que a FMLN foi legalizada como partido político, em 14 de dezembro de 1992.

Assim, foi possível sustentar um pro-cesso de uni�cação e coesão que tem como objetivo fundamental um proces-so verdadeiramente revolucionário, tal que garanta um verdadeiro futuro para o país. Esse processo chegou ao governo e espera-se que também consiga chegar ao poder em El Savaldor.

Essa, aliás, tem sido uma expectativa constante da esquerda latino-america-na. Entretanto, se por um lado vê-se o despontar de algumas lideranças – leia-se Evo Morales, por exemplo – que são estimulantes, por outro lado, também temos tido decepções.

Para complementar o tema “rebeldias” atuais na América Latina, vamos retomar a entrevista, já referida, do economista

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Nildo Ouriques, reconhecido como um especialista nas questões latino-america-nas.

Ele faz considerações importantes e muito pertinentes sobre os rumos atuais da política vigente em alguns países da América do Sul. Nesta transcrição adap-tada, foi preservado o conteúdo, manti-do o estilo coloquial da entrevista e, evi-dentemente, respeitada integralmente a sua opinião.

Este movimento [o bolivarianismo ou bolivarismo] tem como um princípio básico que nenhum governo se asseme-lha a outro. Rafael Correa não é igual a Evo, Evo não é igual Chávez, porque são países muito distintos. Então, o que eles têm em comum? Pri-meiro, são países que estão resgatando profundamente a soberania nacional. Segundo, que essa soberania nacional está articulada com a soberania popu-lar. _______________

Em terceiro lugar, são países que ul-trapassaram o marco da democra-cia representativa e estão fazendo uma democracia participativa. O horizonte liberal foi derrubado.

_______________

Isso não é só através dos referendos, consultas populares, mas também das constituições implantadas na Venezue-la, Bolívia e Equador. E também pela recon%guração da economia. O que é que o mundo está fazendo agora? Exa-tamente o que esses governos já fazem há

cinco, seis anos: o controle de câmbio, o intervencionismo estatal, o controle das empresas e os programas fundamentais da distribuição da propriedade.Se a idéia da intervenção do Estado foi massacrada nas últimas três décadas pela %loso%a neoliberal, então, de que maneira se consegue convencer que um modelo tão massacrado pela opinião pú-blica é o caminho viável? Consegue-se porque a mídia não é tudo. Se fosse pela mídia, Chávez não chegaria ao poder, tampouco Rafael Correa e Evo Morales. E Fidel já teria sido derrubado.Os instrumentos ideológicos utilizados por eles são instrumentos de poder, or-ganização popular. _______________

Vá a El Alto, na Bolívia, e veja que lá não tem partido político. O MAS (de Morales) não é um partido, sim uma organização popular. Os par-tidos foram superados por lá.

_______________

E eu não sou contra os partidos, eles são importantes. Quanto mais ideologica-mente enraizados no povo, melhor. Esses países têm organizações populares e lide-ranças comprometidas com o povo.Eu não tenho a menor dúvida de que os países que implantaram esse mode-lo vão sair melhor da crise econômica mundial. Já estão enfrentando melhor a crise com respostas estruturais muito maiores às questões sociais e estão ven-do governos, como o brasileiro, tomar medidas que eles tomaram há cinco, seis

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anos. Ninguém tem falado sobre isso, mas eles estão mostrando controle já faz tempo, enquanto todo mundo diz que está faltando controle.O mundo precisa olhar melhor para esse modelo porque eles não estão fazendo apenas intervenção estatal, estão recons-truindo democraticamente o Estado. _______________

E os instrumentos de poder, que têm na constituição venezuelana, os no-vos instrumentos das autonomias na Bolívia, o caráter plurinacional em defesa da natureza no Equador, onde a constituição proíbe o Estado de resgatar banco quebrado, não é genial?

_______________

Muito mais avançado! Eles seguem o lema “inventamos ou erramos”. Estão inventando, com mais estabilidade po-lítica, maior pressão das massas sobre as decisões e maior interesse do povo em participar da política.Qual o futuro da América Latina? Os povos estão se levantando. Onde o na-cionalismo revolucionário perdeu, como no México e no Peru, os governos não gozam de popularidade. De tal manei-ra que o colapso ideológico do sistema aprofunda a crise do capitalismo que mal começou. Vai ter um colapso brasi-leiro ainda, pode anotar aí, com fuga de capitais, perda daqueles US$ 170 bi-lhões de divisas, maior endividamento estatal e maior controle dos banqueiros e exportadores produtivos que sempre es-pecularam contra a moeda.

Assim, um fosso está para acontecer e é o próximo capítulo da crise. As grandes maiorias estão observando tudo isso, estão aprendendo e vamos entrar nessa rota latino-americana. Temos que apos-tar no processo de integração com corpo próprio, a favor dos nossos interesses. Depois discutiremos com o mundo, uma vez que estejamos fortes.Conforme foi visto neste capítulo,

começa a ganhar corpo na América La-tina a idéia das auditorias das dividas contraídas por governos anteriores, não democráticos e/ou subordinados e sub-servientes aos paises centrais do capitalis-mo, em especial os EUA.

O primeiro governo a tomar essa ini-ciativa foi o do Equador, seguido recen-temente pelo novo governo do Paraguai. Esse processo já tem a simpatia e o apoio de países que já manifestaram a intenção de proceder a auditorias em suas respec-tivas dívidas.

No Brasil, a questão da auditoria da dívida externa está prevista na Constitui-ção Federal de 1988. Entretanto, foi co-locada nas “disposições transitórias” e até hoje continua “transitória”, ou melhor, continua o�cialmente “esquecida”.

Em 2000 a questão da dívida externa brasileira foi trazida ao debate da socie-dade no bojo da campanha do Jubileu 2000, a campanha mundial pelo perdão das dívidas externas dos países pobres.

O Plebiscito Popular realizado pelos movimentos sociais e populares – sem qualquer apoio institucional, tanto go-vernamental como privado – recolheu

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mais de 6 milhões de votos, com uma estrutura operacional precária e ín�ma, apoiada apenas na colaboração voluntária e espontânea da sociedade civil organiza-da com base nos movimentos sociais.

Claro está que não foi conseguida a obtenção de qualquer continuidade do processo, em termos o�ciais, porque o governo estava dominado integralmente pelos “neoliberais deslumbrados” da ges-tão de Fernando Henrique Cardoso, por dois mandatos consecutivos.

No governo Lula, a política econô-mica continuou mantendo vários prin-cípios neoliberais vigentes e permaneceu do mesmo tamanho o poder dos “repre-sentantes de Wall Street”, incrustados prioritariamente no Ministério da Fa-zenda e no Banco Central. Foram feitas apenas mudanças tópicas pontuais em termos de pessoas detentoras de alguns cargos relevantes. Além disso, chegaram com Lula �guras importantes – Palocci e Meirelles, por exemplo – no esquema montado para demonstrar que nem toda, mas a maior parte da política econômi-ca continuaria “como dantes no quartel de Abrantes”. Assim, é claro que não foi possível avançar um milímetro sequer na questão da auditoria da dívida. Só mais recentemente, têm havido movimentos de pressão popular sobre o Parlamento para a retomada da questão da auditoria da dívida brasileira. Foi, porém, mais um processo que “bateu na trave” porque o relatório da Comissão foi engavetado, como tantos outros.

Para encerrar este capítulo, entende-

mos ser pertinente a inclusão do resumo de um estudo chamado “A Democra-cia na América Latina”, realizado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) entre julho de 2002 e junho de 2003 e publicado em abril/2004, o qual con�rma várias ques-tões antes destacadas4 .

O estudo foi feito com base em uma pesquisa entre 18.643 pessoas de 18 pai-ses da América Latina, entre eles Bra-sil, México, Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Colômbia e Paraguai. Para a pergunta “você apoiaria um governo au-toritário se ele pudesse resolver os pro-blemas econômicos”, a maioria (54,7%) deu resposta a�rmativa.

Apenas 14% das pessoas con�am em partidos políticos, 40% crêem que possa haver democracia sem partidos, 38,25% crêem que possa haver democracia sem Congresso Nacional. Os que acham que os governantes eleitos não cumprem as promessas de campanha são 96%.

E 64,6% acham que as promessas são mentiras apenas para ganhar a eleição. Para 56,3% o desenvolvimento econô-mico é mais importante do que a demo-cracia e 43,9% acham que democracia não resolve os problemas de seus países.

Esses números são sintomáticos. Fica claro, como destaca a matéria do jornal: “une os entrevistados, além da vizinhança, o fato de hoje respirarem ares democráticos, assim como também o desalento com a de-mocracia”. Os países sob análise realiza-

4 Cf. o jornal Folha de São Paulo, de 21/04/04 .

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ram 70 eleições nacionais entre 1990 e 2002 e pouco ou nada mudou.

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“Isso signi�ca que, por si só, eleições não garantem democracia e o sonho de combinar liberdade política e prosperidade econômica é envene-nado pelos índices de pobreza e de-sigualdade social.”

_______________

No curso da década de 90, o conti-nente contraiu a febre das “reformas estruturais”. O estudo da ONU chama a febre pelo apelido: “Consenso de Wa-shington”. Prometia desenvolvimento mas produziu apenas frustração.

Em 1980, o PIB per capita da região era de US$ 3.739. Em 2000, decorridas duas décadas, passou a US$ 3.952. O pequeno acréscimo foi assegurado por “melhorias relativas”, observadas no Bra-sil, no Chile e no México, porém insu�-cientes para deter a marcha da pobreza.

Em 1990, havia 190 milhões de mi-seráveis na América Latina; em 2001, quando a população era de 496 milhões de pessoas, os pobres somavam 209 milhões, quase metade da população (42,14%); em 2003, já eram 43,9% os que viviam abaixo da linha de pobreza.

Aprofundaram-se, de resto, os des-níveis de renda. Em 1997, os 20% de cidadãos mais ricos detinham 55% da renda produzida na região; os 20% mais pobres, apenas 4,8%.

Nos últimos 15 anos, “o desemprego e a informalidade aumentaram signi�-

cativamente”, conforme o estudo. Em 2002, o índice médio de desemprego na região foi de 9,2%, um dos mais altos do planeta. Dobra – e assusta! - quando se considera apenas a população jovem.

_______________

“A política precisa mostrar-se rele-vante, apontar caminhos, transfor-mar eleitores em cidadãos integrais.”

_______________

O estudo propõe o debate aberto do problema e lista quatro pontos que julga centrais, resumidos a seguir.

1. Exercício da política. O poder dos presidentes é apenas formal e não se traduz em e�cácia na ação de gover-nar. Eleitores não se sentem represen-tados pelo Congresso. 2. Papel do Estado. O Estado perdeu a primazia na tomada de decisões e submete-se a pressões privadas. “É freqüente a falta de distinção entre o interesse público e o privado. Urge fortalecer o Estado”. _______________

“Com Estados débeis, mínimos, só se pode aspirar à conservação de de-mocracias meramente eleitorais”.

_______________

3. Uma economia para a democracia. A sustentabilidade da democracia de-pende da redução dos níveis de po-breza. O pensamento único e a receita universal atentam contra o desenvol-vimento da democracia e da própria economia. As alternativas econômicas

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devem ser debatidas. “O bem-estar de uma sociedade não se decide em laboratório de técnicos”.(grifo nos-so)4. Poder e políticas democráticas sob a globalização. Enfatizam-se apenas as questões �nanceiras e comerciais e se esquece o principal: os poderes exteriores deixaram de ser exteriores e passaram a condicionar e até a de-terminar as decisões dos Estados. “O poder nacional não pode se extinguir em nome de um incontrolável poder global”.Os estudiosos da ONU ouviram

também 190 personalidades da América Latina entre políticos, empresários, reli-giosos, funcionários públicos, jornalistas e também 41 ocupantes ou ex-ocupan-tes das cadeiras de presidente e vice-pre-sidente, inclusive Fernando Henrique Cardoso. Eles se puseram de acordo em relação a dois pontos: a) nunca houve tanta liberdade política no continente; b) a democracia na região é um “projeto inacabado”.

O estudo identi�cou três elementos de constituem riscos à democracia.

1. Assédio do mundo privado ao Estado, que se manifesta por meio de lobbies, recorre à “compra de votos” e pode “fabricar” candidatos. A pres-são é também balizada pelo humor dos mercados, sobretudo o �nanceiro, principalmente pela in@uência exage-rada das empresas estrangeiras.

2. Desenvoltura do narcotrá%co. Além de ser um desa�o interno, atrai

a atenção dos EUA, “gerando novas formas de pressão externa que limi-tam ainda mais a esfera de ação dos governos”. O “dinheiro sujo” se in�l-tra, de resto, na política e nas insti-tuições.

3. Meios de comunicação. Reconhe-ce-se que contribuem com a �scaliza-ção da atividade pública, mas acabam predispondo as sociedades contra seus governantes.É notório que as críticas são muito

contundentes, o que já seria esperado. Todavia, após a realização desse estu-

do, ocorreram muitos avanços, confor-me já foi destacado, na resenha procedi-da neste capítulo. Podemos interpretar esses avanços como indicativos de um processo de melhoria no trato da política na América Latina, em especial quanto a questões de soberania e de independên-cia.

Assim, pode-se concluir com a rea�r-maçao do posicionamento que já vimos assumindo ao longo deste ensaio, ou seja, que é impossivel a existência de uma democracia real e plena no siste-ma capitalista.

Por outro lado, constata-se que:________________

A América Latina é considerada pe-los EUA como um quintal de sua propriedade e domínio, mas está começando a deixar de ser!

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