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  • SOBRE O DIA NO TIMEU

    Para a meditao sobre a natureza e fora do tempo, que desde a lrica arcaica se constitui num dos centros de interesse e cuidado do homem grego, representa o Timeu a primeira formulao filosfica sistematizada chegada at ns (1).

    Ao tempo como lugar de nascimento e dissoluo, que caracteriza o plano do sensvel, atribui Plato como modelo a vida imutvel do notico sob o nome de ain e traduz essa ambivalncia de chronos definindo-o como eikn (2) :

    slxcb 'nevosi Mvrjtv nva aubvo noifjoai, xal iaxoa/j,v afia. ovgavv noiB (xvovxo axvo v svi y,ax gifiv lovaav alwvcov exva, rovtov rj %QVOV wvofj,%a/j,ev.

    (1) O tema atinge, na lrica de Pndaro, uma particular acuidade. A ele dedica H. Frnkel uma parte dos seus valiosos trabalhos Die Zeitauffassung in der frhgriechischen Literatur e Ephemeros ais Kennwort fur die menschliche Natur, respectivamente em pp. 1-22 e 23-39 de Wege und Formen frhgriechischen Denkens, Munchen, 1968. Quanto ao texto do Timeu diz J. de la Harpe, Le pro-grs de l'ide du temps dans la philosophie grecque, Festschr. z.O.Geburtstag von A. Speiser, Zurich, 1945, pp. 129 sq. tratar-se da primeira formulao explcita de uma distino entre o tempo do ser e o do devir, integrando este naquele.

    (2) Cabe aqui mencionar o livro de R. Brague, Du temps chez Platon et Aris-tote, Paris, 1982, que contraria a interpretao tradicional do tempo como imagem da eternidade, e entende, de preferncia, que o cu, no sentido de 'abbada celeste com todos os seus astros', que possui esse carcter icnico, j que o tempo no tem natureza material. Esta noo de representao atravs de uma estrutura material do mundo parece-nos sofrer de uma perspectiva imanentista no muito prpria da filosofia platnica, bem como de um empobrecimento da compreenso de chronos, determinado, talvez, pela habituao a um tempo espacializado, que o texto aris-totlico provoca. Quanto s reticncias de ordem lingustica postas na leitura do passo que se segue, podemos dizer que o acusativo slx, se bem que seja, de facto, mais comum no inico do que no dialecto tico, tambm aparece em autores ate-nienses (Aristfanes, Th. 559 e Euripides, Med. 1162). Para a compreenso de

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  • 66 M, C. FIALHO

    Concebeu a criao de uma imitao mvel da eternidade e, ao mesmo tempo que organiza o cu, cria, da eternidade que permanece una, uma imagem eterna que progride segundo uma ordem numrica. ela que designamos por tempo.

    A natureza do tempo enquanto eikn representao est marcada pela ambiguidade de este ter e no ter natureza prpria, j que representao de neste caso do ain (3).

    Assim, o problema da noo de chronos em Plato converte-se, simultaneamente, no da compreenso de ain, de que posteriormente falaremos. Por outro lado, na sua natureza de representao, cabe ao tempo dar do ain uma ideia parcial e imperfeita, guardando entre si e o modelo a distncia que representao pertence caso contrrio transformar-se-ia esta em identificao, distncia que Plato justifica pela impossibilidade de o mundo sensvel ser imagem perfeita do inteligvel, mesmo quando se trata da criao do Demiurgo : si vvafuv (na medida do possvel) (37d) exprime simultaneamente a boa-vontade e essa limitao do criador perante a natureza diversa e irredutvel dos dois mundos, possuindo a frase seguinte valor expli-cativo :

    rj ftv ov TOV t,nov (pvai rvy%avev oaa aljvio, xai xovxo [xv rj rci yevvrjti Ttavte& nqoaanxsi ovx jjv vvaxv.

    Ora acontece que, sendo a natureza do Modelo vivo eterna, se torna impossvel estabelecer-lhe uma relao perfeita com o mundo criado.

    acvwv aceitamos a interpretao de G. Bhme, Zeit und Zahl. Studien zur Zeittheorie bei Platon, Aristteles, Leibniz und Kant, Frankfurt, 1974, pp. 69 sqq., de que o adjec-tivo significa no 'eterno', no mesmo sentido de iov, mas 'que participa da natureza do ain' ou seja, do seu modelo.

    Para um estudo sistematizado da noo de chronos e aion em Plato, vide C. Eggers Lan, Las nocines de tiempo y eternidad de Homero a Platn, Univ. Aut-noma de Mxico, 1984.

    (3) Esta duplicidade na natureza do eikn platnico mereceu a ateno de G. Bhme, op. cit. pp. 17-67. de louvar o mtodo seguido pelo autor ao tentar compreender o passo luz de uma teoria geral da representao no filsofo em causa. Os seus resultados, que utilizamos no presente trabalho, apresentam-se bem mais profquos que os trazidos por um mtodo retrospectivo que parta da recepo do passo em autores posteriores para a compreenso do texto em causa.

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  • SOBRE O DIA NO TIMEV 67

    Ressalta-nos aqui, como caracterstica especfica do kosmos aisthtos e ao mesmo tempo impeditivo essencial da aproximao perfeita tcmpo-ain, o ser chronos um genntos. Ora, a genesis implica alterao e movimento, noes que o termo kinsis pode exprimir simultaneamente e que entendemos possuir em 38a. Por esse motivo, ao tempo pertence o ter sido ou o vir a ser (37 e, 4 sqq.), e ao que nele nasce a alterao e a mudana, (cf. 38 a, 3-4), por oposio vida do paradigma notico, que aorstica e imutavelmente akintos sem velhice nem juventude (4).

    A instabilidade e mudana, momentos fundamentais da experincia arcaica de tempo, assim como da vivncia trgica, parece traduzi-las Plato por kinsis, componente essencial de chronos enquanto diverso de ain, e pertencente ao sensvel. Como, apesar de movimento mas enquanto movimento, o tempo se vai tornar no Timeu a imagem do imutvel, ou seja, a representao do contrrio de si mesmo, torna-se

    (4) E. Degani, Aion da Omero adAristotele, Padova, 1961, no inicio do cap. VI, dedicado ao conceito em Plato e Aristteles, ao op-lo a chronos, estabelece uma certa semelhana entre o ain platnico e a definio de Ser em Parmnides, 28B, DK,5-6. A mesma aproximao feita por W. von Leyden, Time, Number and Eternity in Plato and Aristotle, Ph Q, 14,1964, 36 sqq. C. Eggers Lan, Las nociones de tiempo y eternidad de Homero a Platon, Mexico, 1984, pp. 14-15, vai mais longe, ao afirmar que a relao platnica ain-chronos representa uma conciliao entre a ideia de permanncia, prpria de Parmnides, e a de fluidez, patente em Heraclito. Discutvei j a radical oposio, defendida por Degani, de ain, como tempo divino, a chronos como tempo profano, aritmetizado, tpico de cincia. Como veremos, entender a aritmetizao do tempo platnico como empobrecimento parece-nos ser um anacronismo provindo da concepo de fiorj %QVOV como um quantum, sem ter em conta que o modelo de chronos o prprio ain. A mesma crtica fazemos a A. E. Taylor, Plato's Timaeus, Oxford, 1928, pp. 678-691.

    W. Hirsh, Platons Weg zum Mythos, Berlin, 1971, pp. 168 sqq., salienta precisa-mente a transio, que se deve ter em conta na filosofia platnica, de uma noo de mundo das ideias imvel, em concordncia com as condies do logos, para a de movimento e vida que anima as ideias e se traduz no nmero. Do mesmo modo, o logos se converte em dialctica (tambm ela, afinal, movimento). Assim (p. 170), der Gedanke eines lebendigen Ideenkosmos ermglicht es, das griindende Verhltnis des Anblick-Bildens vom Einzelnen auf das Ganze einsichtig zu ubertragen. Die einzige Ordnung der sinnlichen Welt, der Kosmos Aisthetos, ist selbst Bild der einigen Ordnung des Kosmos Noetos, und die Weile ihres Wandels, die Zeit, ist Bild des Immerseins der Ideen, die Reproduzibilitt der bleibenden Anwesenheit. Das Leben des Sinnlich-Lebendigen ist selbst Bild des Lebens der Ideen, und es ist nur ais Bild.

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    visvel na comparao dos dois enunciados que citmos (37d), onde nos aparece definido como eikn.

    Primeiramente aparece-nos kinton como uma contingncia do eikn, na sequncia da impossibilidade imediatamente antes expressa de uma adaptao perfeita do paradigma da criao ao mundo criado, estabelecendo-se assim, numa primeira fase, uma como que oposio entre o ain e a sua imagem. Essa oposio ultrapassada num segundo momento em que o factor que aproxima a imagem do seu paradigma aparece verbalizado, de tal modo que a imagem pode ser caracterizada como ainion: %ax giftv iovaav. Isto , o seu movi-mento processa-se segundo o nmero, que vem aqui instituir-se em sentido do movimento, cuja referncia o Uno do modelo.

    A lei do nmero torna-se operante com a criao, ou melhor, ordenao do cu pelo demiurgo iaxoa/jmv /ua ovgavv... d e modo que chronose ouremos so indissociveis (38b, 6 sqq.) e o-movi-mento ordenado daquele se torna percepcionvel no cu na sua forma mais perfeita, o crculo (5). Este faz do eikn um /uoiraro i naoaosiyfiaxo, na medida do possvel (xar vva/Mv).

    Necessrio se torna agora formular a questo sobre a natureza do nmero e o sentido da expresso xar QiB/uv como qualificador do movimento. No nos parece ser arithmos entendido aqui apenas no sentido de uma progresso infinita e ordenada, mensurvel, das revolues celestes, uma contagem, afinal, afectada por uma perspectiva rectilnea em que cada um dos nmeros da ordem nada mais do que um quantum e no pode ser portador do sentido de um todo a perder de vista, nem esse todo, no percepcionvel nem inteligvel, pode ser ima-gem de algo. Cada uma das revolues astrais definida por Plato como IAQO XQVOV (37e) e simultaneamente como chronos (39d). Transporta, j por si, como nota Bhme (6), algo daquilo que imagem de ain. Quer dizer, cada um dos nmeros deve ser, por si, simulta-

    (5) Entendemos, pois, que o cu o meio material atravs do qual o tempo, visualizado, se torna representao. O cu ganha sentido na ordenao, pare-cendo-nos irrelevante o problema da sua anterioridade. Para J. C. Fraisse, L'uni-cit du monde dans le Tinte de Platon, R Philos, 172 1982, 249-259 essa ordem existente no cosmos converte-o de imediato, num inteligvel, cujo modelo lhe ima-nente. O que nos parece forar um pouco a leitura do texto.

    (6) Op. cit. pp. 101 sqq. ; interpretao j sugerida, de certo modo, pelas reflexes de W. von Leyden, pp. cit. pp. 39-42.

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    neamente, diviso e unidade, o que s possvel entendendo-o como correlato dentro de um sistema.

    A ideia de correlatividade est sem dvida presente no Timeu. Comecemos por notar que a unidade temporal mnima para Plato, o dia, composto pelas suas duas faces de presena e ausncia de luz (dia e noite, 37e) o primeiro da srie de trs termos enunciados, pgr] XQvov, compondo-se os dois seguintes por um nmero definido a partir da unidade que o antecede, e correspondendo simultaneamente revoluo de um astro, isto , representando por si, tambm, uma unidade. Que a velocidade de cada revoluo no medida absoluta mas relativamente, explicita-o Plato em 39b, 2-3:

    "ha ' shj fitQov vagy ri ng XXrjka flcaovrfJTi xai r%ei...

    Para que houvesse uma medida visvel da lentido ou rapidez relativas...

    Tal pensamento, pelo modo como formulado, remete-nos para a Repblica, 529d. Depois de vrias tentativas por parte do seu inter-locutor para estabelecer um objectivo ao estudo da astronomia, expe Scrates em que deve consistir tal cincia e qual o papel do verdadeiro astrnomo que, afinal, muito perto fica do do filsofo. Os movimentos astrais verdadeiros, na sua real velocidade e lentido, compreendem e implicam a correlatividade:

    ... r v r%o xa r\ ovaa (3Qavvrj v rmc rjdivi gid/um xal Ttai to hrjdat a%rifj,aai cpoq xe nq akhr\la cpsQerai xal r vvra qjSQSi, a rj Xymi fxv xal iavoai hqTtx, otpsi ' ov-

    ...movimentos pelos quais a velocidade essencial e a lentido essencial, em nmero verdadeiro, e em todas as formas verdadeiras, se movem em relao uma outra, e com isso fazem mover aquilo que-nelas essencial: so os verdadeiros ornamentos, que se aprendem pelo raciocnio e pela inteligncia, mas no pela vista (7).

    (7) Traduo de M. H. da Rocha Pereira, Plato. Repblica, Lisboa, Gulben-kian, 19906. Note-se que a astronomia do Banquete (que engloba tambm a mete-reologia) se define em termos semelhantes, como o estudo das relaes de harmonia ou desarmonia dos elementos n ?drjka (188a), negl XXr}Xa (188b) e dos

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    philipeSticky NoteQuanto ao que ns chamamos de tempo se referir ao que est em acusativo masculino? Ser que todo o sintagma poderia estar no masculino?

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    Neste passo Plato diferencia movimento e firmamento visvel e a sua ideia no inteligvel, matematicamente perfeita, diferena essa que no Timeu ignora, em virtude do interesse apontado por Festugire (8) em salientar no o chrismos, mas a criatividade do mundo das ideias.

    O Filebo salienta no nmero a funo da correlatividade e comen-surabilidade dos elementos de um sistema, denominando-os av/j,/nsrQa y.al ovfupwva (25e), bem como a importncia da diviso sistemtica na aprendizagem humana. Por isso, a capacidade de discernir e deter-minar num todo as subespcies, a diarese como mtodo de pensa-mento cientfico, foi atribuda ao Homem pela divindade (16c, e), isto , um dom que o notico necessita conferir ao Homem para que este possa iniciar a via da anagg. Cada elemento de um conjunto, encontrado pelo mtodo diairtico, permite, assim, ser compreendido como unidade e relao (cf. 18c).

    Tem o trabalho de Bhme, j vrias vezes citado, o grande mrito de chamar a ateno precisamente para uma tal funo do nmero no pensamento platnico, na sequncia do estudo deixado por J. Sten-zel (9), baseando-se na cuidadosa anlise de vrios passos, alguns dos quais aqui referidos, e assim entender o xaz' idjuv do Timeu essen-cialmente como relao sistemtica apreensvel dos mltiplos perodos orbitais entre si, muito mais do que como capacidade de contagem. A integrao dos tempos astrais, mutuamente relacionados e comen-surveis, num tempo periechn que a todos possa envolver e unificar atinge a sua expresso mxima no grande ano, o makros eniautos, crculo composto de todos os crculos, onde tomar sentido a interro-gao acerca do paradigma deste tempo envolvente o ain, que o nmero torna apreensvel.

    Na histria da evoluo semntica da palavra foi uso apresentar o Timeu como o primeiro testemunho do seu sentido de eternidade, sem especificao de contedo, pressupondo assim um considervel

    movimentos astrais, chamando-se essa fora eros. Para a relao entre harmonia, desarmonia e eros veja-se a introduo traduo de O Banquete, Lisboa, Verbo, 1973, feita por M. T. Schiappa de Azevedo (p. 202).

    (8) Le sens philosophique du mot Aion, PP, 4, 1949, 172-189. (9) Zahl und Gestalt, Darmstadt, 1959. V. Hsle, Zu Platons Philosophie

    der Zahlen und deren mathematischer und philosophischer Bedeutung Th & Ph 59, 1984, 321-355 v na noo platnica de nmero a possibilidade de compreender e reduzir a multiplicidade infinita dualidade.

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    abismo entre o sentido primordial do termo 'vida' como durao global e energia, impulso vital e o sentido que a Plato se atribui (10). Modernamente esta perspectiva tem sido reformulada e novos caminhos se abriram. Degani sugere j uma concepo platnica de ain que mantm em si algo do sentido primordial, concebendo a eternidade como a forma de presente ilimitado e estvel, indivisvel, de um Perfe-ction que ao tempo profano, divisvel, numervel e fludo se ope, consistindo a capacidade icnica do tempo no eterno retorno do seu movimento circular (11). S que, em nosso entender, a funo do nmero como correlao foi subvalorizada. Por isso, no se torna to nitidamente apreensvel como que chronos j por si, enquanto sistema mvel, capaz de tornar perceptvel a ideia do periechn que, sem dvida, pertence essencial do ain.

    Bhme apresenta, na sua interpretao, o xar gid/biv platnico como a condio, o meio, por que o tempo se torna e realiza como representao do ain e que, simultaneamente, abre ao Homem a via anaggica. Salienta o autor que a normal e falsa compreenso do nmero decorre da falsa compreenso de ain enquanto eternidade. Essa eternidade dever ser entendida no como oposta ao tempo, mas como sua fundadora: unidade e poder vital omnipresente que leva o tempo a desdobrar-se e nela manter, tambm, a sua unidade.

    Festugire, no seu trabalho j citado (12), defende que este novo

    (10) Estranhamos que Festugire, op. cit. p. 175, fale ainda do sentido primi-tivo de ain como temps que dure la vie d'un chacun. J C. Lackeit, em 1916, p. 9 do seu trabalho Aion: Zei und Ewigkeit in Sprache unci Religion der Griechen, diss. Knigsberg, v como sentido primeiro da palavra o de 'Lebenskraft' e imediata-mente da derivado o de 'Leben', referido ao seu contedo, no distenso temporal, ambos presentes na poesia homrica (cf. respectivamente //. 5.685, 16.453; Od. 7.244, 9.523 e Od. 5.152, 160, 18.204).

    (11) E. Vollrath, Platons Lehre von der Zeit im Timaeus, Ph J, 76, 260-261 v na oposio ain-chronos uma oposio entre duas formas de presena: a do notico, total e completa, que faz parte da natureza deste e nesse sentido que entende 'eternidade' e a do sensvel, incompleta e processada por fases. W. von Leyden, no citado trabalho, define a eternidade do ain fundamentalmente como um modo de existncia incondicionado pelo tempo, ao contrrio do eterno aristo-tlico, sinnimo de existncia contnua ou sempiterna.

    (12) Pp. 176 sqq. Note-se, no entanto, que o facto de no ter tomado em conta o verdadeiro sentido primitivo da palavra mas um seu derivado ('tempo de vida') o conduz a uma compreenso empobrecida da eternidade apenas como 'tempo de durao da vida do modelo notico' que, desta feita, no tem comeo nem fim: logo, eterno.

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    sentido de ain foi preparado pelos Pr-socrticos, nomeadamente Empdocles, nas suas especulaes sobre o aspetos ain, provavel-mente do Sphairos.

    Parece-nos sintomtico que Plato designe justamente como 'miov o paradigma do Demiurgo, isto , como ser vivo, necessariamente tocado por um impulso vital e dotado de um tempo de vida: um ain, no seu sentido original, que, para o caso, tem a particularidade de ser eterno (dtov, 37d). O wiov iov, por sua vez, enquanto concebido como paradigma, contm em si a necessidade da existncia e criao daquilo em funo de que modelo, o que se efectua por aco da fora que Plato denomina como Demiurgo. Isto , tambm sob este aspecto o ain do wtov iov no perdeu ainda o seu sentido primitivo, dado que contm em si a potencialidade de todas as expresses de vida (13).

    . 0 Cosmos, para ser tornado semelhante ao seu modelo, dever tambm conter em si. todas as espcies vivas (39e), uma das quais, a dos corpos celestes, nos seus movimentos correlacionados, se destina a constituir a imitao da natureza de vida do modelo notico. Rela-es e movimentos so apreensveis como nmero por aquela das espcies que se distingue pela capacidade de o apreender (39b) o Homem.

    A astronomia deve, assim, fazer parte da educao do jovem. A tarefa do filsofo, sua afim, consiste na reconstituio do Uno que o tempo tenta representar por meio da comensurabilidade no movi-mento. A medida e a comensurabilidade tornam-se possveis desde que a unidade numrica se visualiza como dia, sem a noo do qual no seria vivel a interrogao acerca do Todo e do seu sentido : isto , a filosofia (47a). Vemos, pois, que o meio que nos possibilita a noo de nmero e de tempo, a actividade da filosofia, o sol enquanto luz, que se oferece em cada uma das suas aparies e ausncias como uni-dade (dia) e simultaneamente torna visvel o espao celeste e os movi-mentos astrais, mensurveis a partir do dia.

    (13) No esqueamos que o prprio ain de um mortal, como globalidade do seu tempo de vida, era constitudo por etapas definidas, delimitveis por um nmero preciso de anos (Slon, frg. 27 West.) Vide W. Schadewaldt, Lebenszeit und Greisenalter im friihen Griechentum, Hellas und Hesperien I, Bern, 1970, pp. 109-127,

  • SOBRE O DIA NO TIMEU 73

    A vista , consequentemente, o mais importante dos rgos de percepo, que possibilita a interrogao acerca do Todo (47a) a partir da percepo do nmero e da noo de tempo (%QVOV svvota). Incom-paiavelmente mais valorizada que no passo acima citado da Repblica, a actividade visual situa-se, pois, no sensvel como ponto de partida para a actividade dianotica, cujo primeiro objectivo ser estabelecer na alma humana o equilbrio, libert-la de perturbaes, pela obser-vao e imitao do equilbrio e harmonia dos movimentos celestes, governados pelo nous, de cuja natureza ela participa. O primeiro passo neste caminho , na compreenso do nmero, como vimos, a noo de dia enquanto manifestao visvel da unidade numrica.

    Podemos agora interrogar-nos e foi esse o objectivo que presi-diu s consideraes feitas at aqui se, nesta importncia fundamental atribuda ao dia no caminho da anagg, no ter Plato sido sensvel a um dos momentos fundamentais da experincia patente na lrica arcaica e subsistente ria tragdia: a do Homem como ephemeras, isto , criatura cuja natureza marcada pela limitao e dependncia de dia. evidente que Plato no entende a palavra com esse cunho existencial primitivo onde se traduz a temporalidade humana, nem o seu pensa-mento se coaduna com tal experincia, mas transfere e adapta a estru-tura da relao de eependncia homem-dia ao campo da actividade racional e considera hmera como elemento bsico, noo sine qua non, no caminho do clculo e da abstraco que permite ao Homem libeitar-se do reino do contingente, do transitrio.

    O tempo timaico, dado essencialmente na astronomia e na cosmo-logia, atingvel e compreensvel pelo clculo, eixo de articulao com o notico, apresenta-se, afinal, como possibilidade de fuga ao transi-trio porquanto, ainda no transitrio, representa o uno e permanente. No o tempo do acontecer humano onde ao Homem dada, no mundo, a experincia da sua natureza de ser histrico, marcada pela irreversibilidade e singularidade de cada momento, de indivduo com existncia prpria, nica e determinada pela certeza de um fim (14).

    A natureza cclica do tempo a realizao da ordem do Cosmos, de que o Homem um elemento. Tais movimentos representam para a alma, ao imit-los, a sua preparao para poder participar do per-manente, liberta das perturbaes a que a sua morada corprea a

    (14) Vide M. Millier, Exprience et histoire, Louvain, 1959.

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    condena. O acontecer humano no tem, no entanto, identidade prpria. cclico como o acontecer csmico (15). O que na histria humana ocorreu repetir-se-, sem que o Homem dela seja verdadeira-mente o agente, mas apenas por integrao na ordem csmica, mesmo quando o Cosmos se encontra ameaado pelo no ser e ausncia de nous {Poltico, 272 d, sqq.).

    Mostra-nos o mito do Poltico acerca do desenvolvimento de uma cultura humana que ele apenas transitrio, condenado ao retro-cesso no restabelecimento da ordem csmica pela divindade, pois fruto de uma situao de privao e negatividade (16). Representar, possivelmente, o esforo da alma para ultrapassar um chrismos parti-

    (15) Alcmon de Crotona, em contrapartida, equaciona a existncia humana de outro modo, ao dizer que os homens morrem por no poder ligar o seu comeo ao seu fim (2 B,DK).

    (16) Uma excelente anlise do mito -nos facultada por W. Hirsch, no seu livro j citado, p. 244 sqq. Na dinmica progressiva que constitui a primeira fase do movimento do universo e da natureza, o deus est primeiramente presente para depois suspender a sua aco e deixar o mundo entregue apenas inrcia do impulso que primeiramente lhe conferiu. O movimento de regresso representa, assim, um percurso de salvao ontolgica do mundo, na medida em que este recupera a proximidade, isto , a participao do divino, nele presente e causa primeira do seu movimento. E conclui o autor (pp. 248-249) quanto integrao do mito na filosofia platnica: vom Werdenden ist hier die Rede. Das Werdende aber ist, wie wir wissen, allein kraft der Ideen, und diese (d.h. die sinnlich-korperliche) Welt ist Bild des Ideec-kosmos im platonischen Sinn. Alies Entstehende hat sein Herkommen von der Idee, und es bleibt, wenn es entsteht und entstanden ist, auch immer schon hinter dieser zuruck. Alies Werden ist in sich Abfall von der Idee ais seiner Herkunft. Und so zeigt sich alie Bewegung immer ais ein Weg-von der Idee: Alies Naturliche ist, gemessen an: seinem Wesen, immer schon im Verfall, und nichts ist dem angemessen, was es zu sein beansprucht.

    Sobre o modo como o Homem se situa neste processo, observa Hirsch (pp. 249 sqq.) que o seu estatuto ambguo, na medida em que ele est entre o divino e a natureza, e enquanto o divino no est marcado por um processo de devir, o devir na natureza , por seu turno, um jogo de declnio e nascimento (ou seja, participao e afastamento das Ideias). Assim, p. 250: Im Menschen allein fllt die Gegenlufigkeit der Bewegungen ausseinander. Er ist, der er ist, weil er aus der Natur und aus der Wahrheit kommt. Er allein vermag sich umzuwenden. Das, was der Gott im Ganzen immer schon und standig vollbringt, hat er aus Eige-nem aufzubringen aus Eigenem freilich, weil er seinem Wesen nach aus der Offen-barkeit kommt, and die erinnernd er sich in sie und damit in sein voiles Wesen zuriick-bringt.

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    cularmente profundo (17), e representa, decerto, integrado no contexto da filosofia platnica, conforme o faz Hirsch, o paradoxo de todo o devir que , ao mesmo tempo, determinado pela Ideia mas desvirtuao da Ideia (18).

    Se a historicidade pressupe a experincia de situao e esta tem como correlato necessrio a experincia de corpo, no podemos deixar de aqui ponderar o que sobre esta pensa Plato. O corpo permanece sempre para aqum do chrismos; nele procura a medicina restabelecer, sempre que ameaada, uma ordem semelhante dos elementos do Cosmos (19), mas as suas leis so as do mundo sensvel a que pertence movimento, indisciplina, inconstncia, incapacidade de emanci-pao do sensvel; o transitrio que pesa como lastro para a eman-cipao da alma, o responsvel pela sua larache; a experincia imediata de mundo, mediada pelo corpo, significa necessariamente conhecimento enganador, e a ligao de corpo a mundo representa para a alma, nele presa, a ameaa do no ser.

    Na haimonia dos movimentos celestes animados pelo nous, no seu movimento cclico, tem a alma a possibilidade de participao, integrando-se assim, enquanto homonotica, nessa harmonia. Mas o verdadeiro movimento de existncia individual, no corpo, no de modo algum susceptvel de integrao no ciclo, porque o seu percurso

    (17) K. Gaiser, Platon und die Gesckichte, Stuttgart, 1961, tem, do mito do Poltico, uma perspectiva diferente. Entende que ele no exclui, do acontecer humano, um sentido histrico-temporal, j que do histrico faz parte a tenso entre acaso e determinao e a aliana entre tradio e novidade. Pensamos, no entanto, que a associao do progresso queda e do retrocesso razo divina ordenadora, que assim anula ciclicamente a aco humana, se no deixam interpretar por esta pers-pectiva. Tambm o facto de o destino humano ser visto apenas como mero ele-mento do acontecer csmico, sujeito s mesmas catstrofes peridicas da Natureza, como afirma o prprio Gaiser, op. cit. p. 14, nos parece amortecer a possibilidade de valorizao de dimenses prprias do histrico, e muito menos ver em Plato o fundador da histria como cincia {id. ibid. p. 24) pelo facto de ter recorrido a elementos de causalidade. Sobre o progresso nas artes e na sophia, M. T. Shiappa de Azevedo, Hpias Maior Plato, Coimbra 1985, p. 22.

    (18) Op. cit. pp. 247 sqq. Para a funo diversa do relato do mito do Pro-tgoras, no identificvel com o ponto de vista de Scrates, chama o autor a ateno. De resto, nota O. Gigon, Studien zu Platons Protagoras, Stuien zur antiken Literatur, Berlin, 1972, pp. 105-106, no Protgoras que excepcionalmente o mito no posto na boca de Scratas nem de quem o representa.

    (19) Timeu, 88 e. Cf. Banquete, 186b, sqq.

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    rectilneo, com princpio e fim, irreversvel e nico. Dela se no ocupa Plato, naturalmente, subestimando, assim, o cerne da experin-cia de indivduo, destacado do Cosmos e marcado pela certeza de uma morte prpria, que faz de cada momento o unicum de uma exis-tncia no repetvel.

    Corpo e experincia de corpo so algo que, para Plato, importa superar em proveito da sade da psych, o que vrias vezes expresso n o jogo de palavras soma / sema (20), ou na aluso ao paradoxo euri-p*diano de que viver morrer e morrer viver.

    Com efeito, o Scrates do Fdon a imagem do filsofo ideal que se alegra com a morte prxima como libertao da contingncia do corpo, por oposio quele que teme a morte, e que no philosophos mas philosmatos (68b), opondo assim corpo e sabedoria.

    Este desprendimento do corpo e de tudo a que o corpo se encontra ligado fruto da prtica da filosofia, que Scrates define como um exerccio da morte (fisrrj Oavrov) durante a existncia do fil-sofo (80e), prtica de libertao apolysis do corpo como obst-culo (fmtov, 65 a) para a phronsis. Para o conhecimento representa ele uma fonte de perturbaes que a alma, em si, no possui (65 a-c).

    Pese embora o papel da viso, num dilogo posterior como o Timeu, para a apreenso do dia e sistema de clculos astronmicos que ele possibilita, com vista compreenso do notico atravs do que dele se faz representar no tempo, pese embora o facto de a se encon-trarem vestgios da extrema importncia da relao tradicional Homem--dia como expresso da experincia valorizada de temporalidade, o todo da filosofia platnica no deixa, por isso, de estar marcado por essa atitude perante a morte efectiva como libertao total do corpo a que o filsofo aspira. Ela possibilidade de comunho com o mundo da verdade e dos arqutipos, encontro da alma do filsofo com o seu esplendor e verdadeira luz, que no plano sensvel no mundo onde a histria humana e o progresso acontecem se encontra empalidecida (Fedro, 250b; d-e). (21)

    M. C. FIALHO

    (20) Vide e.g. Grgias, 493a ou Crtilo, 400c. (21) Duas concepes opostas sobre o progresso em Plato, vide E. Edelstein,

    The idea of progress in Classical antiquity, Maryland, 1967, 102-118 e E. Dodds, The ancient concept of progress, Oxford, 1973, 9-16.