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08_Uma Noite No Inferno

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Uma noite no inferno

Preferia acreditar que não seriam capazes

de nada além das costumeiras chacotas.

Julgava-os apenas crianças. Crianças más às

vezes é verdade; mas apenas crianças.

Recusava-se a crer que pudessem fazer algum

mal à sua mulher, ainda mais acompanhada da

filhinha. Não eram pessoas assim hediondas.

Mas havia mais de três horas que ela saíra

para comprar mantimentos e da casa na

encosta do monte até o vilarejo não passava

de uma hora de carroça e outro tanto para

voltar. Trovões anunciam a tempestade.

Largou o machado que brandia e limpando as

mãos calosas no brim grosso da calça entrou

na pequena habitação. Não. Nada havia

acontecido. Mas ia começar a chover forte. Na

verdade, com o frio que fazia, era possível que

nevasse. O vento varria em redemoinhos.

Quando entrou viu pela janela que dava

para leste a vermelhidão do céu e do outro

lado nuvens pesadas cobriam o monte. Mas

como explicar vinda do firmamento aquela

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Uma noite no inferno

rubríssima luz entrando em seus olhos?

Crepúsculo sombrio. Nuvens pairavam baixas

carregadas de opressão. Saiu. Não se via um

palmo à frente. A noite desce ameaçadora. Ele

precisa ir à cidade. Não que tivesse

acontecido alguma coisa com sua mulher e

sua filha. Estariam protegidas da tempestade

na casa de Fiodor. Ninguém na cidade seria

capaz de lhes fazer mal. Não precisava se

inquietar. Deve apenas ir encontrá-las pois

talvez precisem dele para colocar as coisas na

carroça. Não estão vestidas de modo

adequado. Levar-lhes-á agasalhos. Realmente

faz muito frio.

Foi um ano difícil, pensa enquanto prepara

o cavalo. Novembro era um mês

especialmente árduo para os homens das

montanhas. O tempo das primeiras nevascas.

Começou a sentir os pingos de chuva. Gostava

do cheiro da chuva na terra mas naquele

momento respirou-o como enxofre. Uma

angústia insuportável. A voz do vento severa e

gelada. Contemplou o horizonte e discerniu

estranha coloração. Ondas de fumaça trazidas

pelos círculos. Cheiro de fogo substituiu o

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cheiro da chuva e envolveu suas

recordações...

Os habitantes de M* consideram-se

felizes. Quando seus domínios se reduziram ao

mínimo acreditaram que era bom sinal. Dizem

que são solidários e assim fica mais fácil

ajudarem uns aos outros. Poucas das casas de

madeira dispostas pela rua principal parecem

habitadas. A única rua. A vida da cidade.

Nesse crepúsculo em que se avizinhava a

tempestade porém parece-se com a morte.

Desemboca na praça onde o juiz de paz,

Fiodor, vive com a mulher, Helena, e os filhos

– Érika – uma bela jovem de 19 anos – e Marco

– um forte rapaz saído da puberdade. Moram

no andar de cima do cartório onde o pai

raramente exerce sua profissão. O cartório é

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contíguo à mercearia de onde tira o sustento

da família. O movimento basta para que ele

renove o estoque por meio de um mercador

itinerante com o qual divide riscos e lucros. Ali

vende aviamento para roupas, e material

escolar, vestimentas de montaria e garimpo,

facões e ração e alguns tipos de comida

pronta. Agora Maggie está ali. Compra o que

precisa para receber seu irmão. Talvez o

convença dessa vez a ficar e usufruir

permanentemente da paz que a cidade grande

não propicia. Subsistência simples mas sem

sobressaltos. Bandidos, o que poderiam

querer num fim de mundo como aquele, onde

a mina estava desativada e nunca chegou a

funcionar um banco? Por essa paz – e por que

mais? – os que permaneceram após a exaustão

do subsolo preferem viver a decadência da

cidade. São mais felizes agora do que em sua

época áurea.

Ao lado da praça numa elevação junto à

ravina seca ergue-se a igreja local. Faz

também o papel de escola. Autoridades

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federais bem-intencionadas acreditam ser isso

inadequado mas estão longe demais. No chão

onde está diretamente construída mistura-se

a terra trazida por uma infinidade de botas de

mineiros que aos domingos iam agradecer a

benção das pepitas. Isso agora é nostalgia. O

sino só repica de trinta em trinta dias quando

um padre da região vem celebrar a missa

mensal do arrependimento. O som do sino. A

cerimônia de casamento. Uma bela festa de

núpcias e a lua-de-mel com o diretor de uma

companhia mineradora européia. Um duque ou

barão que veio inspecionar a mina e

aproveitou para caçar aves raras e a levou

para Paris. Assim Érika costuma sonhar

embora vestígios de ouro estejam cada vez

mais longe de M* e M* cada vez mais longe de

qualquer lugar.

Fiodor faz parte de um ciclo bem definido

em que há terra e trabalho. Benjamin vende

charques na quantidade presumida da procura

que antecipa pela experiência. Ian e sua

mulher, Nadja, são seus melhores fregueses

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mas estão restritos às necessidades das

pessoas cujos calçados ele produz ou

conserta. É ele quem se aproxima agora da

loja de ferramentas de Walt, cujos

rendimentos crescem ou diminuem na

proporção das idas lá do açougueiro. Tanja

costura para fora; vive disso. Todos comem

carne. Nem todos substituem ou afiam

regulamente suas pás e enxadas e uma boa

parte das pessoas costura as próprias roupas.

Não é um ciclo apenas econômico.

Os membros da comunidade harmonizam

suas vidas independentes do resto do mundo.

A aspiração moral estagnara na pressão

coletiva, quando surgem as manadas.

Precisam de um membro cujas idéias sejam

revolucionárias e induzam à mais simples

tradição do Bem. De tal modo que seu estado

de alma se propague. Porque cedo ou tarde os

ciclos mostram uma condição para o

desenvolvimento que pode ser a redenção.

Uma ruptura porém não parece mais possível

em M* porque no hábito acostuma-se a toda

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sorte de necessidade e torna-se fácil não

pensar à frente e torna-se fácil esquecer.

Não é uma vida fácil. Todavia tranqüila.

Como um oceano ao pôr-do-sol o que se vê é

perfeita serenidade.

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Um homem bonito o jovem forasteiro que

ali desembarcou. Faz calor. Supõe que

alguém negocie pedras preciosas. É que

encontrara uma. Realmente faz muito calor.

Precisa muito de dinheiro. Coiotes e lobos

vagueavam ao redor pelas colinas quando ele

chegou.

O condutor da carroça grita. Estão

chegando à cidade. Quem é o parente que

você veio visitar? Como assim, parente? Não

veio passar a Páscoa com parentes? Para falar

a verdade o estranho nem sabia que estavam

na Páscoa. Então Dan, o condutor, imaginou

que ele veio reencontrar um velho amigo e

expressou isso em palavras. O vento em seu

rosto as levou até o rapaz que respondeu. Não

conhecia qualquer pessoa naquele lugar.

– Mas meu Deus que diabos faz nesse fim

de mundo?

Disseram que havia ouro. E comerciantes

de ouro. Eu encontrei uma grande pedra.

Um urro.

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– Ouro?

Gargalhadas.

Ali não há ouro faz tempo. É só um

lugarejo que resistiu e não quis se tornar uma

cidade-fantasma. Ainda assim alguém poderia

se interessar pela pedra. O condutor responde

que havia um mercador itinerante e talvez ele

se interessasse; mas só vem de mês em mês e

partira há uma semana. Dan nada disse antes

porque em vésperas de festa sempre aparece

alguém para visitar um desses pobres

coitados.

– Eu mesmo sou um... A louca da minha

irmã mora aqui. É dona do hotel. Como se

fosse algo de que a cidadezinha precisasse – o

velho termina de falar, analisa as próprias

palavras e completa: – Bem. Hoje pelo menos

precisará.

Mas se ali não havia ouro em outros

lugares na província mantém-se decerto o

negócio do ouro – argumentou o rapaz.

Verdade. Em muitos lugares...

Então?

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– O que não há é um meio de ir para um

desses lugares agora além desta carroça.

Dan está zombando? O rapaz chegara ao

lugar onde pegou a carona em uma diligência.

Mas por que haveria de zombar? A tal

diligência mudou o trajeto porque a estrada

principal estava interditada até o dia anterior.

O rapaz não queria ofender, mas insiste: –

E se alguém precisar sair da cidade e o senhor

não estiver?

– Para isso há os cavalos e as carroças dos

habitantes.

– E ninguém pode emprestar um cavalo?

Ninguém ali tem nada além do que

necessita.

Calaram-se. Recostando-se na carroça,

tentou se conformar. Está assim agora, o olhar

vago sobre a cidade desolada. O cocô dos

cavalos recende sua infância. Férias na casa

de seu avô. Conforme o veículo entra pela rua

principal, torna-se alvo de ávida curiosidade, e

quando a carroça fez a volta na praça, Érika

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tinha um olhar assim. Ele não se apercebe.

Olha as casas de madeira e o feno das

estrebarias e os lampiões. A mais terrível

sensação de sua vida. O desespero das

pessoas no incêndio. A casa destruída. No

barulho do vento, a dor da lembrança. Perdera

os pais naquelas chamas. O seguro não

devolverá a vida deles. Pegará o dinheiro e

partirá dali para sempre. Então a carroça

parou em frente ao hotel. O sol se escondera

atrás de uma nuvem e por instantes cessou o

brilho do rifle que Dan trazia ao alcance da

mão.

– Velho cretino!

Maggie atira-se nos braços do irmão que

jamais entenderia como se sobrevive num

lugar indecente como esse.

Até parece que ele não sabe.

Dan sorriu irônico – O que é que eu... – Um

forte cutucão – Ai!

As crianças – sussurrou Maggie – Olhe

como estão lindos os seus sobrinhos – fala alto

enquanto o casalzinho se aproxima.

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– A pequena Linda! como está linda!... E

esse rapazinho tão grande e robusto!... Ele

apanhou os sobrinhos no colo, um em cada

braço. – E então o que Wagner tem feito?

Maggie perguntou quem era o rapaz.

Precisará de um quarto no hotel por uma

semana.

Um hóspede? Ela já se havia esquecido o

que era isso.

Ele nada ouve. Eis as chamas do passado.

Escuta os gritos das pessoas em todo o

quarteirão e sente o cheiro de carne humana

queimada e vê os bombeiros voluntários

chegando. Era tarde. De repente a mulher

estende a mão.

– Muito prazer, senhora.

Maggie deixa os dedos relaxados dentro

do cumprimento do rapaz que olha nos olhos

dela e entende. Deverá ficar quase uma

semana naquela cidade. Para onde pensava

em ir quando comprou a passagem? Sim.

Compreendeu enfim. Sentiu-se bem. O

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pesadelo estava no passado e pela primeira

vez na vida tinha uma fortuna nas mãos. Uma

semana de férias num lugar longe da

civilização será um descanso. Pela primeira na

vida sentiu algum alívio que não provinha da

idéia de suicídio.

A primeira impressão que alguém teria ao

ver o rapaz naquele momento seria a mesma

que ao refletir sua figura o espelho invocava –

a de que estava sorrindo e que depois devia

estar meditando a respeito de alguma coisa

importante a respeito da qual precisava tomar

uma decisão e, como se sentia realmente bem,

seu semblante assumiu esse tipo de

expressão satisfeita raramente condizente

com os sentimentos mais profundos e todavia

de algum modo a eles relacionada, como a

atração estética por moças bonitas como

aquelas que com o canto do olho esquerdo

percebeu enquanto Dan falava com a irmã. Na

verdade havia certa desolação à janela do

quarto e ele ali lembrava uma estátua

cinzenta e marcada das nuances sombrias do

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movimento do sol. Ao longe o barulho

contínuo de um moinho sem significação.

Portas e assoalho que rangem. Vozes ao

longe. Passarinhos cantam em tamanho calor?

O perfil triste recebe as últimas luzes do dia.

– Ali! Olhem o forasteiro!

Dormentes. As poucas pessoas que

passam chamam a atenção por certo ar

indolente como se houvesse mesmo um muro

a rodear aquela comunidade impedindo que

dela se saísse. Mas ele havia entrado. Sente

inexplicável vontade de ali se estabelecer.

Batem à porta. Assovio e cantarolar.

Palpitar do coração. Ele olha o relógio. Quando

a palpitação silenciar todo o resto terá

silenciado. Caminha na direção do som e abre.

Estão ali para convidá-lo. Haverá uma festa –

diz Érika. No rosto o mesmo tipo de sorriso

pouco antes no de Maggie. Ele não é muito de

festas. Ao lado da amiga, Marina insistiu. É

bom que as pessoas esqueçam as tristezas da

vida. Ela sabe tudo de tristezas porque é filha

de um ferreiro.

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Augusto Mando chegara a M* sem

pretensão relacionada a ouro. Cidades que

crescem tão rapidamente como as cidades

mineiras acabam com ouro pelas ruas e sem

serviços essenciais. Satisfeitos, os homens

darão com prazer algo de sua riqueza por uma

dose de uísque; para estar com uma mulher;

precisarão de médicos e remédios quando

doentes; dos serviços de um correio; de escola

para os filhos; de uma igreja e quem sabe de

um jornal. Suas ferramentas de trabalho não

são tudo de que necessitarão. Precisarão de

cavalos sadios e equipados e carroças em bom

estado – de um ferreiro, portanto.

A idéia da mudança foi agradável à filhas.

Marina se sente à vontade entre os mineiros

muito mais do que entre as pessoas de sua

cidade natal onde o pai tinha um patrão a

quem seus encantos não comoviam e pagava

pouco a seus empregados independente da

beleza das filhas ou dos favores que

pudessem lhe prestar. Em sua cidade natal

Marina era apenas uma mocinha a mais na

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multidão e ofuscada pelo requinte das damas

da sociedade e até pela beleza dos prédios.

Uma desconhecida. Completamente anônima.

Entre os mineiros porém era uma rainha. Seu

pai fingiu não perceber. Mas que lugar! –

dissera Augusto então. Nada deve à nossa

cidade em movimento. Não é, minha filha?

Despida pelo olhar dos mineiros, Marina

pensou que graças a Deus as semelhanças

terminavam por aí.

O silêncio do rapaz deve ser uma vontade

tímida de ir ao baile e assim as amigas

insistem dando cutucões uma na outra e rindo

aquele tipo de risada interna que só a

cumplicidade entende exceto por algumas

sensibilidades mais apuradas ou mesmo

neurose, o que parecia ser o caso dele.

– Venha à nossa festa, estranho.

Marina garante não irá se arrepender. A

única condição – diz Érica – é que não leve

arma de fogo. Faca pode – diz Marina. Mas o

rapaz não usava arma de qualquer tipo e lhes

disse.

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Não usa armas nessa região e está vivo?

Não está na região há muito tempo.

Elas não escutam.

Érika acha que ele tem uma roupa

européia. Um terno azul macio de listas que

ela pode sentir num abraço armado. Marina

não dá um mês para que compre uma arma de

verdade.

– O pai de minha amiga vende umas

ótimas.

Fiodor resistiu o quanto pôde. Não queria

saber de armas mesmo em se tratando de

subsistência. Deve haver outras mercadorias

que dêem lucro. Deve haver outro jeito de

conquistar a terra. Mas acabou cedendo, como

em tudo.

Ao longo de certo tempo quis acreditar na

própria imagem no espelho. Um homem de

aparência e temperamento e índole. Esteve

naquele reflexo por muitos anos. Deixou de se

reconhecer ali aos poucos quanto mais

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conhecia Helena, que adorava. Então se fez

tarde demais.

Passou a entrar nos hotéis às escondidas.

O pai dela não poderia descobrir. Quando

apanharam o trem, ela estava rindo. Com o

semblante decaído ele senta-se a seu lado no

último assento à direita do último vagão da

cobra metálica fumegante de cuja janela se

via as pessoas mexendo os lábios ao som dos

passos ecoando no soalho como martelos e

sininhos dependendo se era um homem ou

uma mulher. Ela abriu um livro. Ele vê a

paisagem lentamente passar pela janela como

se nada estivesse vendo.

A terra ao redor do hotel era árida e um

cãozinho acompanhava a sombra sob ele

pensando onde poderia ter conseguido

enterrar o osso naquele solo seco e duro e

pelo jeito eterno. À noite sonharia com o

cãozinho, que depois se transformaria nele

próprio, no sonho mas em cujo despertar

súbito e vivo era realmente ele. Meu

subconsciente quer me dizer alguma coisa –

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pensou, sentindo o corpo esfriando, o que a

princípio pensou se dever à temperatura

desértica, pensando mesmo em que o próprio

paradoxo do deserto teria algum simbolismo

no caso (já ocorrera a fuga do chinês), e os

músculos como que entrelaçados aos nervos

que tremiam sem qualquer manifestação

externa além da luz da lua sinuosa e traiçoeira

como uma serpente de desenhos xadrezes e

mornos como os da coberta sobre ele.

– Não tenho nenhum terno, moça.

Quanto à arma ele não crê que vá precisar

mas agradece.

O baile seria às dez horas. Elas passariam

às nove e meia para pegá-lo.

– É numa casa fora da cidade.

No meio-dia ofuscante ele sente os cheiros

feminis. Gostaria que elas o perdoassem mas

tem de recusar o convite. Não está com

espírito para festas.

As paredes do hotel são úmidas e há um

vazio no ar quando as moças descem.

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Calaram-se e se entreolharam e depois de

uma pausa Érika segurou a amiga pelo braço e

a puxou, irada. Passos descendo as escadas e

saindo do hotel. O rapaz suspira e fecha a

porta.

O delegado Alan está sentado à mesa de

seu almoço trazido por Helena. As duas moças

entram e Érika aponta na direção do hotel.

Acaso o delegado investigou esse rapaz? A voz

de Marina é arrastada e desagradável. Se

tivesse uma oportunidade o delegado daria

uma lição no pai dela. Filha é filha. Ou talvez

ela mesmo merecesse uma lição. Essa voz. O

estranho bem poderia ser cúmplice do chinês.

Veio para lhe dar fuga. O delegado passa a

manga da camisa na gordura em seus lábios

finos.

– Calma, meninas. Podem ficar tranqüilas.

Dan esteve com Alan e conversaram. Ele e

o chinês não se conhecem. Isso ele pode

garantir. Quer apenas vender uma pepita.

Nem queria ficar mas não teve alternativa.

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Diante de Dan frescas e mornas. Seus

vultos contra a luz da estrebaria. Os cavalos

desatrelados se esticam e cascam e bufam e

relincham. Como estão ficando apetecíveis.

Que cor é essa da pele delas? “O senhor não é

rigoroso com as pessoas a quem dá carona”.

Ele nos come com os olhos. Dan se irrita.

“Podem estar certas de que ninguém

minimamente suspeito entra na minha carroça

ou, se entrar, não terminará a viagem”.

– Então o que diz desse rapaz?

– Quem? o talzinho? É um coitado...

As aparências enganam – dizem elas. Ele

concordou com um lascivo sorriso sarcástico.

Érika pensa por que os homens de M* são

muito vulgares e entende que elas não

chegariam assim a lugar nenhum.

– O senhor acredita que ele recusou o

convite?

A voz de Marina soou de novo e Dan

mentalizou sua irmã. “É verdade”, confirma. E

o estranho foi grosseiro com elas.

Receiam ao ver Dan aborrecido. Olhem.

Ele diz que anda com aquela carroça por todo

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Oeste e pode se orgulhar de conhecer as

pessoas. Sabe que mente. Se Maggie não

fosse sua irmã... Mas garantiu que o rapaz não

quer ir ao baile e isso é tudo. Argumentou

ainda: não achavam elas melhor assim? não

seria nada bom se ele aceitasse e depois

saísse por aí... “Será que esse fogo impede

vocês de raciocinarem?” (falava por

experiência própria). Ah essas mocinhas estão

se tornando realmente muito apetecíveis.

Em silêncio e com as cabeças baixas

concordam com o cocheiro. Érika murmura

entre dentes. “Não ligue. O estranho é meio

esquisito mesmo”. Assim que bateu os olhos

nele viu que não gosta de mulher. Marina

desafivela os cabelos e balança o rosto. É isso!

–exclama –Vamos espalhar que ele anda

desarmado e não gosta de mulher!

Agora Augusto está chamando a filha. Seu

grito atravessava o mar de silêncio e calor

inóspitos em ondas semelhantes à

perpetuação de badaladas se perdendo em

algum ponto do infinito. Que ela fosse logo

terminar a comida. Sabe que no baile não se

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come antes da meia-noite e o pai estava

faminto. Que vida – praguejou a moça. Érika

diz a ela que tenha calma. Poderia ser bem

pior sem o baile. É – concordou a amiga.

“Marina!” Poderia mesmo ser bem pior se não

tivessem o baile.

Qualquer coisa que o senhor precisar – diz

a camareira ao deixar o quarto do hóspede

com um jogo de lençóis enrolados que parecia

estar há séculos na cama em que acabavam

de ser trocados. “Obrigado”. Um sorriso. Ele

desfez a mala. Precisa tomar um banho e se

trocar. Maggie lhe disse que a água estava

quente. “Obrigado, senhora!” Tira as roupas

para entrar na tina. A própria Maggie e Nadja

e Helena sufocam os risinhos. Elisabeth, a

camareira, está em pé ao lado delas mas

desvia o olhar.

Campos de êxtase eram aqueles por onde

cavalgava Elisabeth todas as manhãs, rios de

nomes tão doces – Columbya, que corria a

maior parte do tempo pelo planalto

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sedimentar em vale profundo; Yakima, na

depressão que terminava em Puger Sound;

Ellenburg, que ela atravessava exultante em

comunhão com a Natureza amiga. E o grande

monte D´Or. E os vales arborizados. Ao norte a

fronteira banhada pelo Oceano, terra natal de

Elisabeth, terra abençoada, memórias alegres

de uma infância perfeita, de um primeiro

namorado perfeito, de um casamento perfeito.

Nunca saíra dali. Sua terra. Os montes da

cadeia Cascade, o orvalho rosado das manhãs,

as florestas altas, os passarinhos no arvoredo,

a cultura dos vales a sudeste, e sua felicidade,

o arredor de sua casa sem vizinhos exceto por

Lucas Rourky e seu filho no rancho deles bem

ao longe, crepúsculo de sonho para os lados

do oceano, sua casinha, os frutos no quintal, a

névoa fina que a recebia em cada despertar

ao sair pela porta de madeira rangendo uma

canção de paz. E lá ia Elisabeth trilha afora.

Poderia cavalgar para qualquer direção que

sempre havia um caminho mais belo do que o

do dia anterior. Sim era feliz, sim, Christian,

sou muito feliz. Chegou de tanta felicidade a

hesitar ao pedido, mas não se arrependeu,

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permaneceria feliz, pelo menos até a viagem

para o ouro, por que mesmo precisavam de

tanto ouro? Não havia ouro por aqueles

caminhos em qualquer direção na aura

dourada dos amanheceres? Jamais esquecerá

as palavras do pai em seu leito de morte:

Filha, ele é seu marido; você deve segui-lo.

Mas cuide-se. Cuide-se, digo, fisicamente

mesmo. Porque você não é assim, nunca foi

ligada a dinheiro e bens materiais. Talvez não

esteja preparada. E se os que querem ser

ricos e poderosos submergem na perdição e

ruína, também ficam aprisionados nas

concupiscências, que estarão naturalmente

ligadas ao corpo. Mesmo um corpo

escravizado às depravações físicas, em algum

momento se liberta, quando estiver saciado,

quando satisfeita a lascívia, seja de sexo ou

de comida ou de êxtase químico. Porque ainda

que doentio, nesses casos há um julgamento

do instinto a que se está sujeito, que não seja

moral, pelo padrão físico da satisfação. A

contrafação do julgamento não invalida o

julgamento: perverte-o. Mas no caso das

riquezas, da vaidade e do poder, não há

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instinto a ser adulterado e não há satisfação,

quero dizer, a satisfação com o dinheiro não

tem referência ou modelo. No máximo a

referência arbitrária do parâmetro quando

relativo a valores numéricos. Da mesma forma

ocorre com a vaidade e o desejo de poder. Não

há limite. Não há descanso. E transbordam,

portanto, para o domínio físico. Como se

precisassem dessa satisfação do instinto,

ainda que passageira. Não há de ser

coincidência que essas pessoas estejam

sempre ligadas com corrupções além das

ligadas ao dinheiro e todo tipo de crime com

conotações físicas.

Elisabeth achou que o pai estava mesmo

em seus últimos momentos e meio que

delirava. Beijou-o.

Ah, a jovem e bonita Elisabeth, seus seios

brancos, redondos e firmes em uma camisa

simples de linho e cambraia rendada; os dedos

de seus pés saindo das sandálias apaches –

Elisabeth dos olhos claros que refletiam como

espelhos de lagos, e os que neles eram

refletidos se perguntavam o que eles

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guardavam, e guardavam uma alma de

menina que para colher uma flor mais bonita

poderia correr grandes distâncias e sacrificar

boa parte de seu tempo que não era mais

assim mais tão disponível desde o casamento,

pois agora vivia para a casa e o marido, o bom

rapaz Christian Rourky que tanto agradara ao

pai dela como futuro genro, e ganhara

também toda a confiança da mãe, e deram-lhe

a filha sem questionamentos, na verdade com

grande alegria, não muito comum a pais que

estão entregando a filhinha que criaram para

si mesmos sem lembrar que chegaria o dia em

que ela estaria em idade de se casar – é

verdade, tinha pouco tempo para si a jovem

Elisabeth, para satisfazer pequeninos desejos

como o de colocar uma flor rara e fresca no

vaso da mesa na sala, colher uma linda e rara

flor com seus dedos macios e perfeitamente

roliços, ah, suas mãos são níveas e carnudas,

essas mãos que Christian adora, esses braços

também roliços como o das criadas negras –

semelhantes no formato, porque a brancura

dos braços de Elisabeth era de leite,

sedutoramente de leite. Assim era Elisabeth,

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toda a alegria e todo o sofrimento de

Christian. A voz de uma rouquidão suave. As

frases por ela produzidas eram poemas de

amor recitados. Enlouquecia-o a simples

hipótese de que algum dia alguém poderia

entender assim o ser de Elisabeth, ver assim a

mulher que era apenas dele, nascera ela para

ser sua deusa de cintura fina por onde

Christian a pegava todas as noites

introduzindo o amor – a cintura, o rosto

juvenil, o pescoço delicado, a proximidade do

colo que ele descobriria, o desejo – era um

bom homem, um bom marido, Christian

Rourky, um homem bom e atraente, um pouco

ciumento demais talvez, mas como não ser

ciumento com tal preciosidade dentro de casa

movendo-se por sua vida?

O rapaz chega a ver o pequeno buraco na

parede geminada com o quarto contíguo. Mas

não imagina. Depois gritos em que não

distinguem as palavras. Homens chamam lá

embaixo.

O que os imbecis querem?

Ricardo de Almeida Rocha 32

Page 31: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Melhor ir ver.

As três se levantam, ajeitando os vestidos.

Descem. Hei! Maggie fala com os homens. O

que está acontecendo?

Vozes de álcool. Perguntam pelo rapaz

que chegara à cidade. Traga-o e prepare o

quarto aqui do térreo.

Então Maggie pediu, quase ordenou. Psiu.

Silêncio. Ele pode escutar. Estão malucos?

Pensam que estão em Sodoma?

Algo parecido, diz um deles.

Helena intervém. Parem com isso. Querem

estragar tudo?

Outro dos homens percebe Sheila e

pergunta se ela não tem uma filha.

Ela era a filha. Lembra-se do senhor

bondoso com quem a mãe se casara. De como

o atormentava. Ele lendo os jornais de

domingo e ela pulando no sofá entre gritinhos

e risinhos. A mãe na cozinha. Ela perguntando

se ele já lera tal artigo na revista tal e se

deixando à mostra ao abaixar de lado para

pegar. Ele a estava olhando, decerto. Tanto

Ricardo de Almeida Rocha 33

Page 32: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

que quando se endireitou viu que o jornal

parecia antes um escudo. Ela riu e disse isso,

apontando. Pare com isso, menina – ele

respondeu, pego de surpresa. Ah, deixa disso,

papai. Deixe-me agradecer tanto que tem feito

por nós duas. Conseguiu expor a tortura de

seu desejo imenso – não tanto quanto o

respeito que devia à mulher. Isso porém não

aparecia no elemento que surgiu. Ela ria e ria

e fez de tudo mas antes que a ouvisse a voz

da mãe a chamando, ele já estava

recomposto.

Não, ela não tem filha. Mas tem

plenamente a si mesma, responde. Passa a

língua nos lábios e sorri para o jovem

embriagado.

Ricardo de Almeida Rocha 34

Page 33: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Após o banho ele quer sair e pensar.

Errou para fora dos limites da cidade. Montes

e depressões. A aragem e o calor suave da

tarde em sua pele. Olhou para trás e lá está

M*: a torre da igreja dominando todo o

cenário. Com o dinheiro comprará uma

casinha ou viajará pelo mundo. Ali é a janela

de seu quarto no hotel pequenina do lado

esquerdo da estrebaria. Do outro lado a

taverna. Fumaça. Rolos cinzentos das

chaminés são os únicos sinais de vida.

Adiante vislumbra um vale muito verde e um

lago onde adivinhou um lugar perfeitamente

adequado para meditar. Caminhou muito

antes de chegar a ver novamente o lago de

uma outra elevação. Desceu pela encosta

verdejante e conforme se afastava da cidade o

ar parecia mais respirável. Aspirou e segurou

nos pulmões e soltou de uma só vez. Oh

agradável entorpecimento! Uma aragem.

Ligeiramente ocultas por árvores, as águas do

lago estão encrespadas. Passa a ouvi-las... as

águas... as águas... Mais além o mar. Enche-

se de paz.

Ricardo de Almeida Rocha 35

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Uma noite no inferno

Cheiro de mato. As cores da Natureza. As

flores e os troncos das árvores. Fazia uma

tarde realmente agradável, nem fria nem

quente, como se a dimensão onde calor e frio

se estabelecessem tivesse sido substituída

pela ausência de temperatura dos sonhos e as

plantas pareciam igualmente aquele verde

indizível dos sonhos coloridos que indicam

segundo dizem estada numa outra realidade e

não apenas a manifestação do subconsciente

em preto e branco. As ramagens balançavam

por efeito de pássaros inquietos cruzando o ar

em ruídos recobertos pela consciência que o

rapaz tinha deles e o ruído das águas quase

podia molhar sua pele destinada àquela brisa

trazida sem dúvida do mesmo lugar de onde

vinha sua repentina paz, de tão tangível quase

sensual. O azul do céu se confundia com o do

mar distante. Leveza vespertina. Arranca do

pé e coloca na boca umas frutinhas vermelhas

que nascem nuns arbustos.

E a vê...

A respiração quase parou. Aproxima-se.

Que emoção é essa? É ela? Uma artimanha do

Ricardo de Almeida Rocha 36

Page 35: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

destino? Cansado, não sente o cansaço. Mas

senta-se: ordem expressa do corpo. Talvez a

umas quinze jardas a verdadeira pérola.

Desviara seu caminho planejado para

conhecer a jovem oriental de vestes terrosas.

A vez anterior havia uma semana e pouco,

pouco antes de seguir caminho e encontrar a

pedra (ainda um pouquinho e Dan lhe daria a

carona). Ali estava. Bela – não muito na

verdade – bela o bastante. Uma luz magnífica

na inclinação do sol e sons de animaizinhos e

sombras de árvores e murmúrio de águas e a

serenidade do lago. Cenário adequado para

um milagre.

Porque a chinesinha possuía uma

expressão bondosa, cativante logo à primeira

vista. Alguém poderia ser feliz com

semelhante amada, boa e atraente, meiga e

trabalhadora. Aonde a levará quando

estiverem juntos? Quem havia desistido do

amor e da própria vida... Ah. Ela não está com

a menina. Isso dá uma perspectiva de

intimidade que da outra vez, ao não existir,

tornara-se razão de seguir caminho, como se

não a tivesse visto na praia. Então num

Ricardo de Almeida Rocha 37

Page 36: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

vestidinho largo de algodão que lhe acentuava

as formas. Gritinho de criança. A menina corre

até a areia dura junto às ondas. A mãe está

pálida mas há um tom afogueado na têmpora

como se estivesse febril, resquício talvez de

antigos vícios. Nada de que deverá se

envergonhar. Instiga interesse e compaixão.

Uma jovem com um passado. Isso era quase

tudo. Porque longe estava o tempo das

estudantes à sombra das quais seu senso

erótico e estético andara se abrigando. Rugas

de expressão dizem de uma luta constante

contra a dor, filho de quem ele era. Sua irmã,

portanto.

Em tardes assim a vida não tem pressa. Os

pensamentos se recusam a uma conclusão,

como nuvens que se perseguem. Longe de ser

um capricho da natureza, é uma necessidade

do momento. Taiorie não percebe a chegada

do estranho. Continua a se refrescar, a mão

esquerda no braço direito, a direita no outro,

as duas ao rosto. Um rosto singelo, sem

mácula. Ele tem certeza. Encontrou uma

mulher digna. Frágil, e não o é ele também?

Também. E mais agora, absolutamente fraco

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Page 37: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

e, por isso mesmo, forte como nunca. Mas não

será precipitado pensar assim, sentir dessa

forma? Amor à primeira vista ou lá o que seja.

Não importa.

Um rosto triste. A mais triste expressão

num rosto humano. Bondosa. Outra pessoa

poderá emprestar à própria face caracteres

tão marcantes de bondade? Flor de sua tarde.

Assustada, faz menção de fugir. Os olhos dele

suplicam que não o faça, e ela obedece. Ao

redor os montes se erguiam entardecidos,

ensombrando os recantos do vale. Há uma

canção na paisagem e ela também a escuta

porque dá forma às coisas que sente.

Arregaçou as mangas úmidas e olhou o

horizonte como se buscasse um sentido para a

trágica perda. Mas como poderia haver? Não

levara adiante a idéia do aborto. Então não

foi castigo. No céu a menina estava viva. Na

nuvem ela brincava. No reflexo do mar, a mãe

chorou. Então pensou. Filhinha! Viva nas

trevas de um coração e de um oceano.

Debatia-se ainda. Taiorie devia ter aceitado

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Uma noite no inferno

quando o irmão disse que a ensinaria a nadar.

Tinha medo. Cansava fácil. E o pavor do mar.

Aprenderia agora a amar a última habitação

da menina. O que há mais a temer quando se

passa pela morte? Sim, pois ela morreu.

Aquela sombra que caminhava junto dela

estava destinada a um sepulcro bem menos

belo. A um túmulo diabólico.

Odor amadeirado de lago. Atravessam

arroios sobre seixos e retomam o caminho da

relva rala e muito verde envolvidos num ar de

sonho. Distantes da emoção do amor renovam

o amor na brisa calma e no murmúrio de

águas. Vivem por terem esquecido. Vivem

pela intuição. Estão preparados. Tudo assim

sossegado. A vida fora da vida: é dessas

interrupções no cotidiano que surgem as

descobertas. Ali são madressilvas? Logo ele

irá perceber que toda resposta dela vem

através dos olhos, às vezes por gestos. Agora

desvia esse olhar para as flores. Olhos

puxados, semicerrados, dois riscos no rosto.

Adianta-se. Fazia tempo. O medo nela era

inverso. Recém se dera e se dera mal. Não:

não por amor. A blusa freme e as folhas caem.

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Uma noite no inferno

Rompe-se o muro entre ela a estranha e ela a

quem um homem conhecerá totalmente – no

tocante às montanhas, às florestas, ao lago,

ao sol e ao vale, pelo menos.

Que importa afinal? Deus aprouvera puni-

la, tirar-lhe a filhinha, a única, seu único laço

com o afeto. Deus o aprouvera. Nem sofre

tanto assim, anestesiada. Desperta para o

amor porque precisa sobreviver. Um amor

deve significar também outro filho. Ele sente

certa indiferença como se fosse um amor

indireto mas nem liga, faz tempo que o desejo

vinha crescendo, precisa desse amor, pode

fazê-lo sublime, pode, há todo elemento

conveniente – essa desbanalização da tarde

por meio do passeio; a perspectiva do alívio

após a venda da pedra. O que menos precisa é

da chegada para viver esse caminho.

Ela sabe tudo, nada sabe, nada específico

mas um tanto que lhe basta. Eu, que nada sei,

que nada entendo, pensou ela, importava-lhe

sentir o prazer, a gratificação que aos demais

seres parece natural. Que o estranho

chegasse os lábios pelas suas espáduas no

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Page 40: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

movimento ansioso da demora. Quem é este

que chegou sabe Deus de onde?

O sol que sumira havia uma semana tudo

tinge de luz. As árvores. Se você tocá-las

profundamente transformar-se-á em uma. Diz

o quanto se sente sozinho como se estivessem

conversando há horas. Tudo que ela oferece

como resposta é o olhar e não dá para explicar

um olhar, quando se tenta, perde-se seu

verdadeiro atributo. Ele não comenta a

respeito. Diz que ela sabe o que ele está

sentindo. Ela talvez não respondesse com

palavras, mesmo se pudesse. Deseja o mesmo

que ele e basta. Talvez ela tenha lhe pedido

isso – pediu, de algum modo. Essa respiração.

O vestido amarrotado. O balanço da

correntinha. O caminho. A referência. Aqui.

Dedos e tiras, aura de um cheiro forte e

adocicado. Mais devagar. Cílios de sol nas

folhas, raios de sol penetrando os ramos, a

terra úmida e tenra, a aspereza da pedra, o

sulco, o arrepio e o grito. Continue. Ela está a

ponto de chorar mas se contém. Isso ele não

entenderia.

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Uma noite no inferno

Nem para um ou para outro é algo novo

mas é algo novo porque em algum lugar, em

algum momento, houve uma transformação.

Questão de sobrevivência. Há o momento de

entender por que timbram coisas antigas e

futuras como se não existisse o tempo ou eu

mesma, pensa ela, e eu também – e eles em

um só corpo fossem o tempo. Ninguém nas

proximidades. Nem mesmo um distante eco de

M*. Ele deu por seu cansaço e por meio do

cansaço considerou que caminhara mais do

que a princípio imaginou. Estão sós no vale.

Pelos anos seguintes será assim.

1

1 sexta-feira, 14 de junho de 2013

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Uma noite no inferno

A habitação suntuosa em estilo vitoriano é

talvez a única prova de que M* teve um

passado próspero. Oito horas de uma noite

fresca. A pequena multidão passa pela

avenida central; muitos vão à opera. Ali

estavam Fiodor e Helena, felizes. Acertaram

ao se mudar para aquela linda cidade. Amo-

te, diziam com freqüência. Os filhos seriam

bem educados ali e felizes também. Fiodor

vê Dan passar por ele. A casa de ópera está

abandonada. Maggie ofereceu uma recepção

quando da sua primeira visita. Uma lágrima no

rosto anguloso do juiz. Hoje não haverá

recepção alguma. Fiodor comenta com a

mulher que todos passaram um pouco da

conta na bebida. Não acho, dissera Helena.

Então ele percebeu também que ela estava

embriagada. E pouco depois, a festa passou a

ser um evento mensal. E a partir Helena dali

estava mudada. São quatro da tarde em M* e

faz calor. Por Deus, faz muito calor.

Dez aposentos. Dois fazem parte do palco;

outros quatro da platéia. Dois nos antigos

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Page 43: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

bastidores. O lugar onde entrarão à noite e

achar-se-ão. O prisioneiro olha pela janela do

cárcere. Mortalha noturna. Camarotes,

escadaria, corredores, bar, banheiros. Paredes

púrpuras e tapetes purpúreos. Fiodor não

imaginava que capricho era aquele.

Poltronas pelos cantos, quartos, camas,

maletas e valises. A costureira logo estará

deitada, chorando. Não sou santa mas sou

uma pessoa decente. Os camarotes não foram

modificados. Sequer foi preciso tapetes

purpúreos, pois já havia tapetes purpúreos;

apenas as paredes foram pintadas dessa cor.

Diana, filha de Jeiel, o farmacêutico, viúvo

doente que só se levanta da cama para

atender os clientes. Ela está no salão ao lado

do antigo palco. Aleluia, diz Marina! Até que

enfim!... Era difícil compreender por que a

jovem não ia às confraternizações. Estão

felizes porque enfim se decidira. Veja, Marco.

Carne fresca...

Maggie diz que Marina não deveria falar

assim. O que Diana pensará? – Que somos

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Uma noite no inferno

felizes – Sim – insistiu Marina – são felizes

apesar de viverem em M*.

Marco segura a mão da jovem, olha para

ela, volta-se de novo ao rosto de Marina; seus

sentidos se agitam com as sombras que vão e

vêm e o barulho que fazem e o cheiro que

exalam, e tudo isso afeta Diana além do

imaginável – os dedos de seus pés estão

contraídos nos sapatos de couro, não lembra

como foi parar ali, nunca deveria, mas não se

lembra, teria sido envolvida pelas vozes? Ah,

as vozes, as vozes ecoando em seu cérebro

como o ranger de uma de uma porta

eternamente aberta diante das criaturas que a

devoram.

As escadas escuras não dão em parte

alguma. Maggie diz: meu amor me espera;

precisa ir, deixá-los-ia a sós. Entregara a esse

amor a vida inteira. Os amores de Marina a

esperam também, sem vida. Até logo, Diana.

Que Marco cuidasse bem dela. Oh sim. Ele

estava preparado. O friso nas margens do

carpete, dourados, chegam a cegar. Será uma

noite inesquecível.

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Page 45: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Diana pega um livro amarelado na

empoeirada estante. Não sabe o que fazer. As

vozes aumentavam em seu cérebro quando

ele chegou por trás. Levanta o vestido. Os

livros se inclinam mais uns sobre os outros e a

estante balança fazendo esvoaçar as

partículas do pó para o espaço etéreo onde

Diana se refugiara – porque suas mãos reais

permaneceram e ali se apoiaram nos

movimentos vigorosos do rapaz. Há uma outra

mão sobre a blusa em seu seio. Não deixei de

ser sensível à beleza, ele pensa. Hun – diz.

Onde você andava que não aparecia por aqui?

Ah! vida miserável em que as coisas preciosas

são construídas quando não há mais quem era

digno do usufruto! Ela chorava quanto mais

sorria naquele mundo que Marco desconhecia.

Porém ele estava também ali, personificado

num monstro mais feroz quanto maior o

pranto que ouvia. Seria capaz de matar

segundo tal estímulo. A investida dos dedos

sob ela de súbito está molhada. Deveria

conjurar e entretanto sorriu, gargalhou.

Congratulou-se na urina. Secou a mão na

própria incursão entre as rendas. Ela estava

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Uma noite no inferno

sendo mais que violada. Estava sendo

amputada. E todavia não abria mão das flores

daquele outro mundo. Continuava afagando os

animaizinhos naquele bosque tão verde de

flores tão vivas. Quanto mais deveria sofrer

nas mãos daquele animal que vibrava na

imundície mais ela jubilava onde ele não

poderia chegar, pois agora a espada súbita de

um príncipe havia matado o monstro. Bem que

ele tentou, abrindo os botões, desnudando-a,

apertando-a, manuseando o endurecimento

inconsciente e indefeso, obrigando-a a

apalpar, a aceitar, trazendo-lhe o rosto,

mantendo-o capturado à calça enquanto

convidava o demônio ao sacrifício e o adorava,

delirando entre os som da voz desesperada

que era de Diana mas ela própria não ouvia.

Qual pecado aqui não pequei e assim tão

jovem? Que vício não aprendi em tão pouco

tempo de vida? A que perversidade me

recusei? E como que para exibir a Satã a

verdade de sua fala, encharcou a doce boca

que não mais resistia.

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Page 47: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Na volta do fim da escada, Maggie vê Dan.

Sorriem. Marina prossegue na direção dos

homens acabados de chegar. Seus pés

também estão contraídos, duros. Olá rapazes.

Estão sequiosos. Val não está aqui? Sabiam

que fugiria na hora.

Grandes espaçosas mãos, grandes olhos

injetados. Ar pesado sob o teto. Esse belo

rostinho sem-vergonha! Cabelos curtos

desgrenhados. Érika não se conformava. Você

não vai se pentear antes de irmos? Boca

exageradamente vermelha, hálito de vinho.

“Saída”. Nadja entra no mesmo aposento.

No grande quarto construído a partir de

um dos camarotes do lado direito, Alan pede

que a mulher interrompa a dança, É um

instantinho só, querida. Recebeu à parte os

homens um por um. Sua parte. Entrega um

maço de notas. O homem as colocou na calça.

Helena nunca vira antes o oficial de justiça na

cena habitual. A coisas talvez estivessem

saindo de controle. Logo haverá mais

pistoleiros do que executivos e políticos no

esquema, como nos tempos da mineradora. Os

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Uma noite no inferno

movimentos labiais são inequívocos.

Cinqüenta por cento. O aposento é assim tão

grande ou há uma ilusão de ótica? Sentada,

pensa no chinês. Talvez devesse estar lá,

consolando-o.

Cinqüenta. Nada a menos.

Sejamos razoáveis. Houve demora na

aprovação do gasto. Logo porém o atraso será

a mais perfeita desculpa.

Walt entra e dirige-se para Helena sem

tomar conhecimento dos demais. Da janela

aberta entra uma brisa úmida. E eles com

isso? Combinado não é caro. É preciso conter

essa gente. Estão perdendo a noção das

coisas. O fato de ser o delegado não implica

mais na autoridade devida. As coisas estão

saindo de controle. Nada decerto que deva

fazê-lo recuar. Encostado contra a parede,

seu rosto sereno nada demonstra. O mês que

vem virá em dobro. O homem se afasta, não

satisfeito, mas tudo certo. O mês que vem.

A situação se repete com cada um. O

governador não irá descumprir suas

promessas. Todos se contentam. Fazer o quê?

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Uma noite no inferno

O último, antes de falar com Alan, relanceou

os olhos na direção de Helena e Walt como

quem não está vendo. Hum. Ele tem é muita

pose, e só. A noite descia para dentro da casa.

Chega a pensar na família e em possíveis

conseqüências. Deixemos para lá, agora é

tarde. Diante do delegado. O governo pensa

mesmo em reconstruir M* a partir de uma

ferrovia?

A mulher retoma a dança. Alan se sentara

novamente. Uma ferrovia... Verbas de todo o

tipo. A idéia o excita, mais do que os

movimentos da mulher. Seja como for, é no

colo de Walt que ela se deixa após a última

peça. Mais. Outra vez. Walt imergiu no

perfume dela, cheiro de uma floresta. Prefere

o cheiro dela ao das notas novas estalando.

Acredite. Prazer louco! Pois sempre tivera a

fantasia de se exibir com uma terceira pessoa

presente. Que delícia! E de alguma forma

Helena devia isso a seu patético marido.

“Quanto eu amo você” – foi isso o que disse

ao introduzir o pedido? Algo assim. E ela

chegou a se sentir feliz, a noiva, precisava

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Uma noite no inferno

admitir: sentia-se feliz. Os tempos eram

outros.

Apressando-se ao longo do caminho na

direção da meta sempre fugitiva, o delegado

desliga-se da ferrovia, dos membros, dos

valores e do futuro, com mãos tremulas. Sou

um filho de Deus, pensou depois de uma

satisfação sempre frustrante; teria sido um

homem bom se tivesse sido alertado antes

que a virtude e o vício são em si mesmas a

recompensa e o castigo.

Quando decidiram permanecer na cidade,

cada qual tinha as próprias razões. Nenhuma

naturalmente apontava para a casa de opera

desativada, que foi uma conseqüência quase

natural da mistura do que é inerente à cidade

grande e das coisas peculiares aos pequenos

povoados. Na época do ouro, o hotel de

Maggie ostentava uma grande pedra de

mármore à entrada, depois vendida para uns

homens do Leste. Aproveitaram-na no hoje

famosíssimo Taehung. As ruas eram de

excelente iluminação. Nas canaletas corria

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Uma noite no inferno

discretamente o esgoto, mantido pela limpeza

pública de uma administração impecável.

Contra a sonegação e outros descaminhos,

tentou-se até impedir a circulação do ouro

com uma Casa de Fundição. Mas exercer

controle direto sobre a produção mineira

terminou por atrair todo tipo de desvio. Havia

uma menina que costumava levar seu cão

feroz numa coleira para passear todo fim de

tarde, mas acabaram proibindo isso, por causa

da integridade das pessoas. Era filha do

farmacêutico. Diziam que não existe coleira no

mundo que possa impedir uma tragédia nos

momentos da ira de uma cão. Ela chamava seu

cão de Vocabull.

Por toda a rua principal havia muitas

árvores agradáveis, depois cortadas por uma

necessidade inelutável de lenha. Com a

exaustão dos veios, a própria Natureza se

voltou contra a cidade – no verão um calor

sufocante, no inverno um frio insuportável; pó

metade do ano e lama na outra metade. Onde

ainda existem cursos dágua? O que fazer da

liberdade numa terra tão distante das

estradas; o que fazer numa solidão tamanha,

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Uma noite no inferno

de gafanhotos infestada? Os poucos espelhos

tornaram reduzida a quantidade de reflexos

de luz. A profusão de bares e prostíbulos não

deixou marcas. A única coisa parecida é a

taverna de Alfonso Negrini, apenas um ponto

de encontro. Os moradores já não precisam de

um bordel.

Tanja chegou a pensar por causa da

demora que Afonso não viesse mais. Diz-lhe

isso quando ele chega. Abraça-o. Que bom que

veio. Aproxima-se. Ele a traz para junto de si e

a abraça. Diz que demorou só para deixá-la

em suspenso. Imagine. Só para deixá-la em

suspenso, que nada. Mais que isso. Sabe do

que ela gosta. Ah, quem diria. Quando a viu

pela primeira vez, não pensou que pudesse ter

algo com uma mulher tão respeitável. Sai do

canto, pelo centro do aposento, a passos

lentos. Está perto de Afonso, mas quem

olhasse com atenção perceberia certa

distância a mais e um demasiado contraste

das cores de suas roupas. Pensou que ele não

viesse. Ora, por nada neste mundo.

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Uma noite no inferno

Como sempre ela falou em amor, com seu

sotaque do sul, numa entonação insegura.

Como se adivinhasse. Ela diz para não

perderem mais tempo, querido, nosso tempo é

curto e para vivermos uma noite tenho de

suportar um mês de tédio sem fim. Ele

responde que fará, minha potranca, essas

horas compensarem plenamente seus dias de

tédio e os meus de desejo. Diz que inventa

roupas estragadas só para vê-la. Ela pede

apenas que ele seja delicado, ela adora

qualquer coisa desde que seja com delicadeza.

Não gosta de violência.

A mulher que entrou diz que gosta.

Nunca o perdoará. Ela então teria de

desculpá-lo mas seria uma desatenção não

atender Maria que continua entrando,

esbarrando acintosamente em Tanja, a se

esgueirar chorosa corredores afora. Maldito.

Afonso chama. Vem cá. A bofetada soa e

Maria cai. Senta-se nas costas dela, apanha

uma porção abundante de seus cabelos e

puxa-a para trás. Vergada num limite

inimaginável. Devolve-a ao chão; o assoalho

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Uma noite no inferno

ecoa na noite. Cruza-lhe as pernas de modo

que com sua perna a imobiliza e a traz pelo

laço do vestido. O tecido se rasga. Trabalho

para Tanja, diz. E riem. Forçada a ficar de

joelhos, ela submete-se sem pesar.

Afonso e Maria podem ser ouvidos do

outro lado da parede mas Augusto e Margot

não prestam atenção. Ela brinca com um

pássaro ferido.

Era um homem cujos sentimentos sempre

estavam ligados a algum fenômeno físico. Não

se perguntava sobre certo e errado nem nunca

pensou em corromper ou abusar, muito menos

alguém que amava tanto. Imaginara dar à filha

uma boa educação, até porque precisara fazer

papel de pai e mãe. Ali está ela. Sorri, alegre

no balanço, equilibra-se no alto do muro. Isso

foi na última cidade em que estiveram antes

de M*. Lá a mulher o abandonara. Refletiu

num determinado toque o quanto ela era

jovem e bonita, demais para alguém como ele.

Agora a menina está comendo a comida que

ele diariamente lhe prepara com minúcia e

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Uma noite no inferno

deixa-lhe ao ir trabalhar. Sorri ainda. É. Pode

ser que a mulher o tenha deixado já em M*.

Diz a si mesmo que está melhor agora, se

convence de inocência, por que seria o tal

canalha miserável que a mulher acusava? –

naturalmente um raciocínio parcial de mulher

despeitada quando percebe que perdeu; e a

menina não, era pura e continuou pura ao

crescer, fecha os olhos agora, olhe quanta

pureza, o ar se enchia de bichinhos da noite,

não há qualquer razão de culpa. O quarto é

pequeno e agora ainda mais.

Ela move a mão como que vencida, ou

talvez vitoriosa, demorará a saber, ou nunca

saberá, na verdade ignora tais conceitos,

simplesmente não sabe e perdeu a vontade de

chorar desde que soube que está grávida do

pai.

A jovem esposa do agente dos correios

teve tudo que o dinheiro pode comprar.

Armand era um bom administrador do

patrimônio que ela dissipava com ardor.

Sheila é jovem, bela, educada, culta. Seu par

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Uma noite no inferno

nas festas costuma ser Marco, mas como

nessa noite está ocupado com a iniciação de

Diana, ela ficou num canto, conversando com

a mãe do delegado. Sheila tem quarenta anos.

A senhora Carol teve Alan com quatorze. Uma

senhora ainda atraente e muito educada. O

lampião no alto impede a escuridão total do

aposento. Sombras bruxuleiam na parede

sanguínea.

Ela não entendia. Uma mulher como a

senhora parar numa cidade como M*. O

delegado foi nomeado numa cidade em que só

se pensava em bens materiais e onde se

ignorava totalmente as delícias do intelecto,

como as conversações, bem supremo da alma,

alimento dos espíritos nobres. A mãe diz que é

realmente uma pena. Meu filho e eu

enveredamos por caminhos sem nada em

comum. Sheila sugere que talvez sim ainda

tenham alguma coisa. Pergunta: não está com

calor com esse xale? Carol se ilumina. Revela-

se para ela o poder da casa, como o poder de

uma lembrança, embora fosse sua primeira

vez desde a morte do marido. Sim, está com

um pouco de calor. Poderia tirá-lo para mim,

Ricardo de Almeida Rocha 58

Page 57: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

por gentileza? Os lustres altos balançam sobre

elas.

Lá fora, a noite era inquieta como um

animal acuado numa jaula. Jim ouve os galos

ao longe, profetas do amanhecer. Ao canto

junta-se a voz dos cães, latindo de longe em

longe, e corvos grasnando presságios.

O entardecer distante de qualquer lugar

conhecido, ou sentimento, escritas no céu

estrelando-se palavras encorajadoras. O lago,

o distante barulho do mar, o amor ao lado. A

imensidão do amor e do crepúsculo. Liberto do

passado e do futuro, eis que vive, ao lado do

amor; mãos dadas são asas.

Copas ensombradas, flores brancas. As

estrelas cintilam. É uma noite especial, não há

dúvida. Caminham há mais de duas horas.

Atravessaram arroios e riachos sobre seixos;

retornaram ao caminho da relva rala e muito

verde. Às vezes passam por tufos de onde

surgem os arbustos com frutinhas vermelhas,

que comem. Ele a leva pela mão e ela se deixa

Ricardo de Almeida Rocha 59

Page 58: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

guiar. Como? Ele a guia. Ela se deixa. Uma

mulher que se permite novamente, sim, mais

uma vez. Lembrar-se-ão disso no futuro?

Saberão para sempre o respeito que se deve a

esse tipo de acontecimento?

Mas antes o irmão. Nunca foi uma menina

de família, agora tem a necessidade de sentir

que o ama. Porque não acha que seja de todo

má. E agora se sente forte de novo. O irmão.

Fará algo por ele, algo que não conseguiu

fazer pela filha. Essa paz que a cerca

produzirá fruto. É uma sensação forte de vida

no toque sensual. A força também renasce ao

lado, nele, e desafia insegurança e medos.

Uma nova vida. Eis a cidade lá embaixo.

Sinais. Ela esperará ali. Sinais. Algo como

quadrado, cruz, não... Cárcere. Isso. O quê?

Falar com o delegado? Não. Ela gesticula mais

e mais ansiosa. Braço? Veias... Sangue... Do

mesmo sangue... seu irmão? O que

aconteceu? Está preso? Sim. Querido.

O que fez?

Nada. Estão enganados.

Ricardo de Almeida Rocha 60

Page 59: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Verá o que pode fazer. Pergunta por que

ela não vai junto. Medo? De quê? De que tem

medo? Não o quê?

O homem, o momento; a Natureza

testemunha. Por favor, meu anjo, apenas vá.

Ajude-a. Um gesto de confiança. Ele diz

Obrigado. Espera merecer essa honra.

Os bastidores do teatro, agora uma

espécie de adega. Descem. Mais garrafas de

uísque e absinto. Cada degrau da escada

provoca calafrios em Val. É o filho de um dos

homens que estão com Marina. Que lugar é

este? Tímido, medroso, mas veja sua

excitação, espírito que quase se confunde com

intrepidez. Érika o conhece bem. Jamais veio à

Casa de Opera. Ela própria o convidara. Ele

estará enfim com sua deusa. Os homens fazem

sempre o que queremos, Marina, ela costuma

dizer à amiga e repetiu ao saírem da

delegacia. Val. Basta-lhe imaginar. Por esse

prazer submete-se. Veste um terno de

algodão coenizado, uma camisa de seda

Ricardo de Almeida Rocha 61

Page 60: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

javanesa e um coat de gabardine. A própria

Érika confeccionara. Quando o estranho

entrava na cidade vestia essas roupas.

Val não tem o que dizer mas fala. Baile

sem música é estranho, não é? Em algum

momento ela estará à disposição para que ele

realize os antigos sonhos que ainda o

prendiam a M*, a própria razão de sua

permanência em M*. Não entende esse olhar.

Continua falando. Estou bem assim?

– Está ótimo, cavalheiro...

Os trejeitos dela o deixam constrangido e

excitado. Música? Ele não está escutando essa

que toca só para eles? Nada ouço, pensa, mas

tenta. Porque ela está deslumbrante no longo

vestido justo de musselina rebordada em fios

metálicos. Compensa todas as suas

esquisitices.

Manda que ele repita: Sim, querida, esta

será a nossa música. Ele o fez. Ela quase se

emocionou de verdade. Meu amor... Sabe que

chegou o dia. Será tirada daquele lugar e

levada para longe. Ele sente ter chegado a

hora. Os ombros de Érika reluzem. Suas coxas

Ricardo de Almeida Rocha 62

Page 61: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

são emolduradas pelo tecido. O corpo tanto

tempo desejado. Chegou o dia.

Ela fecha os olhos e se vira de perfil; ele

apanha a garrafa de absinto. A metade de um

só gole. Não sabe mais como manter a

conversa. Leva seus lábios aos dela.

Correspondência apaixonada. As mãos

sôfregas tentam abrir os laçarotes. Érika

mantém os olhos fechados, murmura coisas

incompreensíveis. Uma moça deliciosa. Val

não procura sentido, desde que ache o que o

procura.

Deitada sobre a mesa na adega. Entre a

seda, generosas partes de intimidade

precedem mãos e lábios. Enlouquecem-na

também. Pronta para recebê-lo, abriu os

olhos. Ele tirara as roupas caras de Paris!

Diante dela apenas o filho de um mineiro, com

o peito cabeludo, mãos calosas e hálito de

absinto.

– Idiota!

Esbofeteou-o e ordenou que apanhasse as

roupas no chão e as colocasse de novo. Ele

pensa em revidar mas lembra de que há muito

Ricardo de Almeida Rocha 63

Page 62: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

comprava fiado no armazém de Fiodor e

obedece.

Poeira no rosto e os olhos claros

reluzentes. Entra na cidade vazia. A delegacia.

Ninguém. O que faz ali? O irmão da chinesinha

está preso, deve interceder por ele. Olá! Jim

se agarra às barras de ferro da cela e diz

Estou aqui. O outro aproxima-se. Por que

deveria temer? Ah, precisa deixar de ser assim

tímido. Impede-o de realmente viver. Estão

agora muito perto, separados apenas pelos

ferros. Então Taiorie conseguiu mesmo

alguém, como disse que faria. Por que está

ali? Como assim, porque estou aqui? Para ser

enforcado, amanhã, quando acordarem.

Pouco consegue reter além disso. Os

detalhes, as implicações, tudo relacionado a

esse fato, Jim não mais consegue reter. Ia

morrer e só. O redor está embaçado, os sons

silenciados, os objetos sem peso, não sentia

mais cheiros.

Ricardo de Almeida Rocha 64

Page 63: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

O outro está feliz, não deve esquecer, está

apaixonado e em paz. Talvez até febril. Mesmo

assim precisa saber o crime cometido. Sou

oriental.

– Não acredito – mas a reação reflete o

medo de acreditar e ter de fazer alguma coisa

a respeito, como prometera.

Dizem que matou alguém. Por que

deixaria sua vida plena nas montanhas e viria

perder tempo matando os mortos?

– E por que veio?

Procurar o pai; mas não quis saber e o

delegado o acusou.

Por que um pai rejeitaria?

Não estava ali para livrá-lo mas

interrogar, pensa Jim, e pergunta: O que você

quer afinal?

Fazer a coisa certa.

Está num lugar estranho para quem se

preocupa em fazer a coisa certa.

Quem sabe agora descubra algo sobre a

estranha cidade cujo ar pesado voltara a

respirar. Já saberia se tivesse ido ao baile em

Ricardo de Almeida Rocha 65

Page 64: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

que estão neste exato momento. O baile...

Sim, o convidaram. Está cada vez mais

envolvido numa coisa de que não quer

participar. Sabe que o chinês fala a verdade,

não pode mais escutá-lo. Diz não gostar das

insinuações. Essa gente boa lhe dera abrigo.

Deve-lhes isso, ter conhecido a irmã dele.

Está mesmo apaixonado?

– Para sua sorte.

Jim é inocente mas está preparado para

morrer. Se não acredita, deixe-o em paz.

Estivera a vida inteira em meio a essa

desconfiança. Está cansado. Melhor morrer de

uma vez. Eram semelhantes, talvez as

semelhanças os separasse, como o espaço que

há entre a pessoa e o espelho. Já disse que

vou interceder por você junto ao delegado.

Meia-noite. Pássaros da noite rodeiam o

cárcere. Não há tempo. O delegado só virá

com a manhã, diz Jim. Como se houvesse

afinidade entre aquelas pessoas e a luz. Irei

para o hotel então e pela manhã... Será

enforcado. Já desistira de lutar, por que mais

essa inútil esperança? Me ouvirão, diz o

Ricardo de Almeida Rocha 66

Page 65: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

estranho como a pedir desculpas; diz e sabe

que não ouvirão, acredita em Jim, sua alma

está ligada à dele.

As coisas que ouvira e presenciara da

cela. Como poderia Jim leva-lo a crer? Coisas

de que até o Deus de sua inocência duvidaria.

A imagem de Taiorie e seu gesto de

confiança. Vai até a mesa, mexe nas gavetas,

acha as chaves, abre a fechadura.

Jim tem um ranchinho nas montanhas. Um

lugar inacessível para aquela gente. Se o

culparem pela fuga. É seu. Taiorie sabe onde

é. Leve-a para lá, não a deixe jamais vir aqui.

Caminha pelas desertas ruas sombrias,

pode ver os fantasmas de sua juventude; mas

nada vê, nem a própria rua adiante, nem o céu

estrelado acima. Um estrondo. A delegacia

desaba. A poeira ainda sobe. Não será visto

como um cúmplice.

Na verdade, há música nos salões. Alan

escuta. Apanha o violino e começa a tocar.

Está aliviado. Ou mais ansioso, por sua

mediocridade. Não tem uma missão no

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Page 66: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

mundo? As pessoas estão encostadas nas

cadeiras da platéia, deitadas no tapete, sobre

peças de roupa que não se pode saber de

quem são. Garrafas nas mãos e o tom das

paredes nos olhares. Ali o barbeiro, tonto;

caminha para a mesa onde do banquete. Acolá

Nadja. Muitas mãos passeiam por seu corpo.

Alguém derrama vinho e todos aceitam o

brinde. A seu lado, Marina dança para eles.

Ela não comete a indelicadeza de trocar o

nome de nenhum dos homens a quem se

dirige. Então os desafia. Ainda preferem

aquele rapaz insosso?

Olham uma à outra. Desaparecem os

homens ao redor. A menina que já não é. A

experiência almejada. Certamente, pensa

Marina, Nadja imagina esse tipo de coisas

desde sempre, mas posa de normal,

simplesmente sexy. Todas as mulheres são

assim, essas mulheres mais velhas que vivem

dizendo o que as filhas devem fazer e o que

não.

Todas as jovens querem ser mulheres

feitas. Nadja sabe que Marina jamais se

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Page 67: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

casará por amor, não saberá o que é tamanha

felicidade. Porque ela é bem casada, sim.

Ainda olha Ian com amor. Ou será outra coisa

esse sentimento? Ódio? Indiferença? Que

importava? Tinha um marido. Um homem para

dizer seu.

Para Nadja não basta o marido? Por que

precisa se exibir para esses homens que

Marina conquistou?

– Nós damos conta, doçura...

Eles têm, diz um outro, o que elas

precisam.

Um tempo, bem pequena, Marina saía em

primavera, pensando no amor. Amor era a

camaradagem que nascia do desejo e o grande

sol vermelho no horizonte que durante toda a

luz da tarde se anunciava em meio às colinas.

Agora sabe que amor não passa do próprio

desejo, vinculado à posse. Assim é a vida. Não

foi ela quem determinou o instinto dos

homens; aprendeu a usá-lo.

À mesa chegam de todos os lados os

convivas embriagados, metendo as mãos nos

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Page 68: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

pratos coloridos dispostos ao longo da toalha

vermelha quadriculada – grandes pães

caseiros, biscoitos de milho, carneiro

grelhado, tortas de maça feitas com sorgo no

lugar do açúcar de que M* há muito carecia;

toda espécie de caça ainda encontrável na

região, antílopes, lebres, esquilos – mas as

mãos optavam pela carne de porco: toucinho,

lingüiça, costela – tudo muito gorduroso.

Durante o transcorrer da festa, houve um

vislumbre em cada um, diferente em tempo

mas comum a todos.

Noite, noite, as estrelas acima, perdi a

conta dos dias que estive preso, pensa Jim,

esquecera a ultima vez que consciente esteve

envolto por uma noite assim, fresca, não

muito, não são comuns noites assim na Ásia,

ele lembra, o dia em que chegou à América,

quantos sonhos abortados, mas ao se afastar

daquela cidade maldita, ao se ver longe de M*,

eis estará pleno sob semelhantes noites, livre

para construir um futuro, enfim, ah, noite, sob

as estrelas, pensa, estou livre.

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Page 69: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

No dia seguinte, a vida voltou ao normal

em M*. Antes do amanhecer reiniciam a lida

da sobrevivência. Um pacto silencioso.

Ninguém falava no baile até as horas próximas

ao baile seguinte. O delegado só sentiu a falta

de Jim à noite, e mesmo assim não deu

qualquer importância ao fato, afinal não houve

o assassinato de que ele era acusado, o que

nem o próprio Jim sabia. Ninguém relacionou a

fuga a um cúmplice, menos ainda ao estranho,

nem mesmo quando se soube que ele havia se

estabelecido nas montanhas com uma jovem

oriental.

Por outro lado, se encheram de interesse

ao saberem que ele encontrara alguém para

partilhar a vida e ficaria – Sim – disse Dan para

sua irmã – Foi o que ele me disse. Porque se

sentiu obrigado a justificar por que não mais

pegaria a carona.

Faz a encomenda de uma carroça – Ah,

mas precisa trazê-la para que a conheçamos –

diz Augusto. Marina ratifica. É verdade. Pois

Ricardo de Almeida Rocha 71

Page 70: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

vivendo assim perto faz agora parte da

família. Enfática quando ele parte, deseja-lhe

toda a felicidade do mundo.

Ao norte da casinha corre um rio de águas

translúcidas. O verde exuberante que sobe,

um ano depois estará para embranquecer.

Outra visão de glória: Taiorie dá à luz uma

linda menina. A exultação todavia não dura. O

leite secara no seio da mãe e a criança chora

em desespero. Claro, dariam um jeito,

tranqüilizou-os Fiodor. Poderiam cuidar de

uma cabra até mesmo dentro de casa, quando

o inverno chegasse. Érika riu. Ah, as

crianças... São uma benção de Deus... –

Sobretudo – acrescentou Marco – o ato de

fazê-las...

Fiodor providenciará agora mesmo. Ele

assentiu. Quer resolver o assunto e voltar

para casa, pensa ao tropeçar no pé em seu

caminho. Cai junto a uns sacos de ração.

Érika pede muitas desculpas, contendo o riso.

Não tem importância.

Um fato sócio-cultural. Sabe-se ou não. E

quando se sabe conta-se ou não. Não há

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Page 71: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

regras. Ele sabe e não conta. É a regra que

instituiu para si mesmo. Ele é essa forma de

pensar que se impôs. É o que ele é e é o que

ela terminou sendo. A alma de um homem

pertence a ele. Um casal é um monopólio.

Minha alma descansará na distância em que

se consiste.

Ao entrar na mercearia com o delegado

Marina diz quem é vivo sempre aparece e

pergunta acerca da esposa. Casaram mesmo

ou estão apenas morando juntos? Casar-se é

muito importante.

Olhou-a. O que era importante? O que era

coerente, decente, o que deveria julgar

relevante? Faz tempo não perde seu tempo

com isso. Cada qual decida. Ele não iria julgar

nada ou ninguém. Omissão? Nada disso. Mas

por que deveria ter tal pretensão? Cada qual

conhece a própria vida, a vida pregressa e o

futuro desejado. Quanto ao presente, vivamos

e deixemos viver.

Bom que tenha vindo. Pois, falando em

orientais, ultimamente o delegado pensava

muito naquele prisioneiro, aquele fugitivo,

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Page 72: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Leonard se lembrava? Era a única pessoa na

cidade quando ele fugiu. Prontamente Fiodor

lembra que ele próprio, Armand, e Jeiel

também estavam na cidade e teria mais

motivos para ajudar o chinês, já que não

acredita que seja culpado.

Subitamente colhido pela hipótese, o

delegado se cala. Fiodor, Armand, Jeiel e a

própria Diana, que saiu cedo da festa e desde

então jamais tornou a falar, entrou num

mundo próprio a que ninguém tem acesso.

Quanto a Armand, desde aquela noite não se

soube mais dele.

Bem, bem, não é importante, concluiu o

delegado.

Marina diz que não atrase a vida de

Leonard; ele precisa saber das cabras. Sheila

entra para as compras, o semblante decaído.

Não se conforma com o sumiço do marido. Um

bode bom, apesar de tudo. Sacudindo a

poeira, Leonard levanta-se. Vão até o rancho

onde Christian agora vive só. Morre para pedir

notícias de Elisabeth a Fiodor, mas se contém.

Acertam o negócio. Uma fêmea e um macho

Ricardo de Almeida Rocha 74

Page 73: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

prontos para o acasalamento, e uma cabra

com cria. Fiodor se encarrega do transporte

dos animais.

O céu crepuscular assim vermelho em

nada combina com o aguaceiro que se

anuncia. O cheiro tampouco é o da aura de

chuva, muito menos o de aromas noturnos. Os

primeiros pingos, grossos. A angústia toma

conta de seu espírito. Estavam em novembro e

poucas coisas boas haviam marcado o

período. Tão diferente do tempo em que

Halmah ainda não havia nascido.

Quando Halmah não havia nascido, a vida

era melhor; a vida era mais fácil. A menina

quase levou a vida de Taiorie no parto. Por

causa da menina, teve de reatar relações com

as pessoas de M*. E agora por que outra razão

teria sua mulher de ir à cidade? O bebê não

dorme à noite, com dores de ouvido ou nas

gengivas. Bem, mas ele mesmo disse à

mulher: uma vez estivesse lá, seria bom

aproveitar e dar um pulo na mercearia. Ajeitou

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Uma noite no inferno

os agasalhos na sela e calcou os flancos do

cavalo.

Avança num galope louco. Vento e chuva:

chicote gelado em seu rosto. Precisa sofrear.

A montaria, relinchando, gira sobre si mesma,

empina. Leonard cai. O cavalo se aquieta a

seu lado. No chão. Sente-se ridículo. Por que

perdia assim o controle? O feixe de luz

caminha à sua frente. Nada tinha acontecido.

Os habitantes de M* eram frívolos, devassos

talvez, mas inofensivos. As nuvens ignoram a

luta interior, tornam-se cada vez mais baixas.

Ciprestes, ciprestes que se dobram. O

firmamento cada vez mais vermelho mostra

que sim as colunas subindo não deixam

dúvida... um incêndio... um incêndio de

grandes proporções, em meio ao temporal

desvendado pela cortina escura ao longe.

Eles foram chegando lentamente, um trote

preguiçoso...

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Page 75: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Christian nunca mais teve alegria. Como

poderia? Tristeza absoluta no lugar do ciúme.

Fortalecida e corajosa, Elisabeth lhe disse que

nunca mais tocaria nela de novo e enfrentou-

o. Nunca mais. O que pode fazer? A bela casa

nos arredores de M* está vazia sem ela. Seus

pais mandariam mesada. Mesmo sem mais

negócios na cidade, decidiu então ficar. Mas

não deveria ter vindo. Primeiro com sua

ambição e depois com seu ciúme, matou a

exuberância pura de Elisabeth. Sim, chegou a

bater no rosto dela, louco. A lavoura no

anoitecer pela janela. A voz vibrante, vívida,

de sua esposa ecoando. Sombras. O céu

aperta a paisagem na lama numa simetria

irreal. Tantas nuvens, aterrorizantes. Raios.

Esses trovões. Todas as luzes da casa estão

acesas. Mas Elisabeth não está mais ali. Está

fazendo o jantar para Maggie. Trevas.

Das paredes úmidas desprende-se um

cheiro forte que se mistura ao perfume de

Elisabeth. A casa está cheia de fantasmas.

Desde que ela o abandonou, fica noites e

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Uma noite no inferno

noites sentado, olhando para ela. Se ao menos

soubesse que ela está feliz. Mas sabe que não.

Não é vida para ela. Está arrumando quartos

para homens. Oh, e jamais dera motivos para

ciúmes como os motivos que agora

verdadeiramente existem. Uma empregada de

hotel... Naquele uniforme com avental... Como

deve estar bonita, mortamente bela, a

mortalha de Christian. O perdão se tornou

impossível, para sempre? Qualquer palavra

será dissipada pela sua estupidez ao

atormentá-la?

Viu a esposa sempre se dedicar a ele e à

casa diligentemente, ao longo dos anos.

Mesmo quando o lar passou a ser este, nesse

lugar que ela jamais quis. É preciso amar o

que se tem, dizia Elisabeth, não esperar ter

para amar ou amar apenas o que não se tem

mais. Mas não pôde me suportar em casa o dia

inteiro. Era realmente insuportável.

O aguaceiro caiu de repente,

surpreendendo a todos. Sheila estava com

Marco nos correios. Lamentava o

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Uma noite no inferno

desconhecimento do paradeiro de Armand em

noites de dedos. O rapaz perguntou se Sheila

não deveria ser mais discreta. Será melhor o

próprio teatro.

A chuva apanhou Val a voltar para sua

casa. O teatro será um refúgio conveniente. O

telhado tamborila com violência. Entra no

prédio vazio, tilintando, mas dá com o irmão

de Érika e a esposa de Armand. Que ele não

fique constrangido dessa maneira, pede

Sheila. Por que não tira logo essas roupas

molhadas? Ora, é um pedido que

naturalmente merece o protesto de Marco.

Mas não há nada demais. Bem, na festa Marco

vira-o com sua irmã. Estaria com ciúmes? Ah

que gracinha. Não há razão para ter ciúmes,

ou seja lá o que está sentindo.

– Pense que Érika não enlouqueceu como a

filha de Jeiel...

Marco devia ter sido muito bruto. E Sheila

cansara de mostrar como as mulheres gostam

de ser tratadas.

Tudo bem. Val ouvira. Tire essa roupa.

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Uma noite no inferno

Ah. Naquela noite tinha sido esbofeteado

por tirar as roupas.

Coisas de Érika. Ela é muito complicada.

Para Sheila as coisas devem ser do modo mais

simples e natural.

Marco diz a Val que se apresse.

Sheila observou. Érika deve ser louca por

preferir suas fantasias a uma realidade assim.

Então se aproxima e se ajoelha.

Val é trabalhador. Sua mãe acreditava que

daria alguma coisa na vida. Agora se sente

mais confiante. Que belo exemplar de homem.

Forte e saudável, cumpre sempre as

obrigações. A tempestade lá fora deixa de ser

ouvida. O lobo, que se escondera quando ele

passava, está uivando. Quem sabe o

respeitem mais a partir de hoje. Mas de súbito

pensa na relevância disso, de ser respeitado.

Ou da vaidade viril. Val olha pois os cabelos

de Sheila e percebe um reflexo do temporal.

A pesada porta se abriu como um dos

trovões. Os homens invadem a sala.

O que é isso, meu Deus? Quando Marco,

nu, ajoelhou-se junto dela, esvaindo-se em

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Uma noite no inferno

sangue, Sheila passou a recordar como

Armand costumava dizer que mais cedo ou

mais tarde a gente paga as coisas que faz

nesta vida. Pobre e generoso Armand...

Digamos que ele não tenha se dado conta da

vida de casado e continuara ainda com o

espírito aventureiro dos tempos de solteiro. O

pecado com a empregada, de que tanto se

arrependera, não era nada perto de tudo

aquilo.

Os homens seguem Val até a porta lateral

esmurrada. Agora o assoalho ressoa com a

grotesca queda. O cabo do rifle explode em

sua cabeça e a faca é cravada por trás em seu

pescoço.

O lobo continua a uivar.

Uma janela está aberta; um chapeleiro

estranho; o teto alto faz com que a

tempestade pareça estar dentro. Ah, um dia

que seria tão agradável. Marco é gentil

quando quer, como ontem ao marcar o

encontro; tão discreto. Jesus! Ele está morto!

Seu rosto é uma máscara de dor, como se a

dor não houvesse cessado com o fim da vida.

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Uma noite no inferno

Um dos homens que observava as inflexões

dos pensamentos no rosto dela com as mãos

na cintura, súbito, desfere o soco que lhe

rouba o ar.

Percebe sua única chance enquanto é

amarrada com as cortinas, os braços e as

pernas abertos, pendurada. Esses dois,

salpicados do sangue de Val, talvez sejam

mais manipuláveis que os dois primeiros. Não

é ainda o meu sangue, consegue pensar, e diz

Por favor... Tenta encará-los mas não acha os

olhos deles. Então grita. E a cada grito

imagina o último, e implora pelo último grito,

que todavia tarda e tarda, e tarda.

Os uivos do vento e do lobo se misturam,

a tempestade desce em rodamoinhos, quase

paralela ao chão. Sobre a terra aparecem os

quatro homens do lado de fora da casa entre a

água e o fogo que a porta cospe e os segue na

cena imensa da tormenta inelutável.

É impressionante, diz o taverneiro com os

olhos na janela; mas Maria não sabe do que

ele está falando, pois fala sem parar. Você viu

Ricardo de Almeida Rocha 82

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Uma noite no inferno

a chinesinha? Uau! Depois que o Leonard

comprou as cabras, nunca mais deixaram de

vir aqui, acho que poderiam participar do

próximo baile. Será que não há homens em M*

para trazê-los a força? Ora, não são as

regras... Que mal fará uma pequena infração?

não seria um pecado mortal...

A portinhola está rangendo. Maria tem a

pele escura, Afonso acredita que ela tem

descendência índia. Seus vestidos são

simples, bem decotados, seus sapatos velhos

e gastos. Mas ela se crê irresistível, talvez

porque tenha herdado a casa ao lado do hotel,

talvez porque tenha assistido a chegada dos

primeiros mineiros, talvez porque seu cavalo é

o mais veloz dentre todos os cavalos de M*, ou

porque sua pele escura é tão lisa. Ela pensa o

que ele tanto vê lá fora na chuva que parou de

olhar os meus seios? Mas ele não está mais

olhando para fora.

O rio corre volumoso entre os cedros.

Nunca se viu seu nível tão alto; nunca se viu

sua correnteza tão forte. Leva as pedras das

margens; tem o peso de um azul profundo que

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Uma noite no inferno

se transforma em cinza escuro em alguns

pontos. Corre atrás da taverna. Por isso

decerto resolveram trazer a ferrovia, dois rios

numa região tão escassa de água, embora

Afonso tenha ouvido dizer que não passa de

desculpa do delegado para ficar com o

dinheiro e distribuir a seus pares. O som não

era nítido para Maria, mas um vago fundo

desses vultos que entram – O que querem? –

pergunta autoritário o taverneiro. Um tiro o

atinge entre os olhos e o outro explode em

seu peito. Cai contra as garrafas da prateleira

atrás dele. O som do vidro quebrando se

arrasta pela perplexidade de Maria. O quê? O

quê? Agora o rio acordou em seus ouvidos.

Agora à janela a tempestade gritou. Os

homens contra a luz crescem diante dela. Os

raios da luz são como coroas em suas cabeças.

Não pode deixar de notar o quanto são

másculos mas mesmo assim apavorada tenta

fugir sem sequer lembrar que não havia para

onde ir e tropeça na barra do vestido e cai, a

queda abafada pela convulsão dos elementos.

Esse medo é mais do que o raio que corta

a negrura dos céus e do trovão que em

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Uma noite no inferno

segundos se faz ouvir, estremecendo o prédio;

é a bota nas costas, é o ar que falta, é a água

da chuva na lufada do vento. Está toda em si

mesma, inteira no chute em seu rosto. Perde

aos poucos a consciência diante dos seres

embaçados, as criaturas rugentes.

Voltou a si com a água do balde em seu

rosto. Afonso agoniza. Os homens são ainda

vultos, apenas visões, como se fossem

demônios. Um deles a levanta pelos cabelos,

outro desfere outro soco, o terceiro se

prepara. Enquanto o taverneiro dava o último

suspiro, ela pedia que eles a matassem, por

favor.

Só muito tempo depois foi atendida.

Quebrados os lampiões, o fogo se alastrou

rapidamente.

Dan passara o dia inteiro pelos corredores

do hotel, com a fisionomia distante,

lembrando-se da casa de sua mãe, onde

passaram a infância no Leste – destacada do

casario pelos ramos floridos pendentes no

Ricardo de Almeida Rocha 85

Page 84: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

muro – dizendo consigo mesmo o quanto fora

bonita aquela época de sua existência. Ouve a

voz dos sobrinhos. Por que nascera com uma

vontade tão fraca e instintos tão acentuados?

Estava a ponto de chorar ao descer para se

despedir.

Elisabeth o cumprimenta. Sente vontade

de perguntar por que está tão triste, acha

porém mais prudente evitar sua presença. Viu

o que viu. Não é mais caso de crer ou não em

indícios. E logo agora que resolveu pedir a

demissão, melhor não se envolver. O que fará?

Decerto não voltaria para Christian embora

ainda o ame. Talvez para a casa de seus pais.

Estão mesmo velhinhos; devem estar

precisando dela.

Dan comenta com a irmã acerca da chuva.

Nunca vira coisa igual. Parece o fim do mundo.

Abriu um sorriso malicioso e agora seus

pensamentos se harmonizam e ele enfia a mão

por debaixo, sentindo-se liberto e salvo de ser

triste. Pelo menos, disse, o barulho protege

das crianças.

O que era aquilo?

Ricardo de Almeida Rocha 86

Page 85: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Um carinho já saudoso, minha poldra.

Não. O que era aquilo? – repetiu ela,

fazendo um gesto de silêncio com o mesmo

dedo que apontou para cima. Ouça.

Parece um incêndio.

Quem é esse? tem uns trinta anos. A testa

dura e os cabelos crespos. O queixo quadrado.

Sem sinal de barba, o que parece a Dan

estranho para um homem daquela região..

Parecia um bom homem apenas na medida em

que um bom homem necessita sempre parecer

alguma coisa. Um assaltante, provavelmente,

aproveitando-se da tempestade. Não, é

bobagem pensar tal coisa. Mas com certeza

não vinha em paz. E se Dan fugisse? Não.

Melhor aproveitar a situação e ter uma morte

gloriosa. Será lembrado por todo o sempre. O

homem que deu a vida pela sua família. Não

fugirá. Precisa daquela tempestade, do

incêndio, do malfeitor.

Maggie sente o sangue descer; ao menos

garante a ausência de conseqüências. Até

porque dois filhos eram o bastante. Pois a

resistência que Dan ofereceu ao criminoso foi

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Page 86: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

decepcionante; tão débil. O rifle ficou todo o

tempo encostado, inútil. O homem aproximou-

se do irmão, desferiu seis golpes e agora

colhe do corpo o sangue que escorre entre os

dedos a buscar o meio de Maggie, forçando,

forçando para cima, abrindo-a, misturando, o

que é o quê? Dedos fortes e frios na nádega

gelada e áspera. As chamas envolvem os dois.

As crianças!

Linda e Wagner lá em cima tentam mas

não conseguem descer para junto da proteção

materna. À janela, o irmãozinho pega a mão

da menina e jogam-se. Um baque e passa a

haver um movimento de vida na lama ardente.

Eis a chuva, a tempestade. Eis os raios e

os tétricos trovões. Sua companheira, antes

de tudo uma amiga, Christian não pode perdê-

la assim. Esteve todo esse tempo a seu lado,

sofreu tanto, inclusive por seu sonho do ouro,

seu estúpido sonho do ouro; e nunca deixou

de ser bela e bondosa. Talvez não seja tarde.

Que envelheçam juntos, a função da idade.

Vou ao hotel, pensa. Vai busca-la. Tem um

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Page 87: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

pressentimento. Sai e a chuva machuca seu

rosto. Na tempestade, memórias e projetos.

Vinde, amor, não é tarde. Refaçamos nossa

história. Antes de qualquer coisa me perdoe, e

sigamos. Além do crepúsculo existe um

destino. Nas estrelas descansa uma morte boa

e frutuosa. Que ela o perdoe e ainda fraco ele

estará pronto. Tudo será diferente apenas no

que foi mau.

– Meu Deus, amor, o que você está

fazendo na rua, com um tempo desses?

Não há tempo. Leve-me daqui, diz ela.

Quase fora apanhada pelo demônio. Súbito

ver a face de Christian é uma revelação. Mas

ela está falando de quem? Ciúme, o inferno do

amor.

A vida deixara de existir pois em algum

momento entre a tarde e a noite todos

percebem que alguma coisa estranha está

acontecendo. O fogo consome alguns prédios

da rua principal com tamanho ímpeto que a

chuva não tem qualquer poder de amainar.

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Page 88: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Línguas ardentes sobem das janelas da

taverna e do hotel cujas paredes enegrecem

estalando e caindo em segundos. O encontro

de labaredas contrárias torna-se um mesmo

rodamoinho de horror tragado pelo abismo

acima da cidade, como se o mundo estivesse

de cabeça para baixo – chamas tingidas dum

vermelho vivíssimo, belíssimas, pensa alguém

à janela, chamas vermelhas, folhas

chamuscadas, madeira e lixo espalhado. Os

cavalos empinam e relincham. As carroças

andam sozinhas. Socorro! Crianças caem da

janela em meio à algazarra dos cascos

chapinhando na imensa poça. Eram tão lindas.

Ninguém faz menção de ajudá-las, saber se

estão vivas ou mortas.

Os cavaleiros se dispersam. Não. Alguns

permanecem pela rua principal, seguindo na

direção da praça. A tempestade turbilhona. As

roupas dos invasores crepitam em seus corpos

rijos impassíveis, como se fossem bandeiras.

Passam em meio ao fogo e à tempestade

alheios, como se não houvessem alma.

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Uma noite no inferno

Um blusa dobrada com habilidade; a

bainha e a renda não custarão tanto assim,

minha amiga. Na própria Tanja a bainha sobe

e chama a atenção da mulher. Ela pensa que

sou um de seus clientes? Cantarola. Afonso

não era homem que merecesse tristeza.

Nenhum homem. Estou ficando velha para

isso. Despertando, faz projeções. Está velha

também para mudar. Duas faces da mesma

moeda. O que existe aqui não irá encontrar

noutra parte: homens jovens sempre

dispostos. De resto, basta-lhe o trabalho. O

que existe aqui é absinto e trabalho por conta

própria – as formas de prazer com que se

acostumara ao longo de sua vida solitária.

Orgulha-se de si mesma e quase da própria

solidão. Na verdade é uma boa bisca, pensa

Nadja.

Um último gole de café. Tanja é boa no

que faz, desde um simples café. Obrigada.

Abre a porta. O cachorro abana o rabo e o

gato se enrosca na perna de Nadja. Um afago

e ela se prepara para sair.

Ricardo de Almeida Rocha 91

Page 90: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Moça que freqüentara as melhores

escolas, Nadja não se conformava por ter se

casado com um homem que antes decidido a

fazer fortuna do modo tradicional abandonou

tudo para tentar a sorte no garimpo. Ela não

imaginava semelhante vida para atingir o

objetivo. Era uma dama. Mulher de sociedade.

Assim a chamavam, uma dama. Pelo porte,

pelas festas, pela caridade. Enfim. Seus pais

teriam fundado uma organização de ajuda aos

necessitados caso ela quisesse, caso não

tivesse vindo. Em seu terror, terá saudade.

Pela porta aberta não saiu: os homens

entraram. Oferecer-se em troca da própria

vida é uma idéia recorrente nas mulheres de

M* – uma idéia ineficaz. Distante agora como a

própria vida pela qual iriam pedir.

Nua e em sangue, o rosto contra a terra

encharcada. Um grito da garganta mais

escura. Sente vergonha de alguma coisa que

não saberá precisar em meio ao sofrimento

mais cruel. Nada vê. Passos que se confundem

com a própria tormenta se aproximam.

Lágrimas junto as pesadas gotas que

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Page 91: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

escorrem. Os cabelos pesam à altura da

cintura, mãos ásperas em monstruosa

energia, lágrimas vermelhas e terra vermelha

encharcada.

Tanja está paralisada. Nem era sua amiga,

mas meu Deus. Há um momento em que chega

a pensar não será atacada, que eles estão

hesitantes. Vê Marina atrás das carroças. Se

escapar terá muita história para contar. Havia

uma mulher chamada Nadja...

Nadja era a mulher do sapateiro...

Obrigada agora a sentir na boca pela

décima vez o sabor ao qual se acostumara

com prazer, nunca é claro com os cabelos

puxados e em simultâneo violentada, assim,

cadela. Onde estão seu pai e sua irmã? Horror.

Desfalecimento. Engolfa. Um seio em

abrasado aperto, irrecuperável. Doendo,

doendo. Pai! Gostaria de clamar por piedade.

Que a figura paterna existisse e pudesse lhe

dar proteção e cuidados. É tarde demais.

Nunca mediu conseqüências do que pudesse

fazer para provocar. Um antigo namorado, o

primeiro, o único namorado, a quem assim se

Ricardo de Almeida Rocha 93

Page 92: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

possa de fato chamar, ele despediu-se dizendo

Cuide-se, amor; assim você não vai terminar

bem. Risos na cara dele, o idiota, a vida

convida, a manhã se derrama todos os dias.

Comamos e bebamos. Quem era ele, ou ela,

para negar? Amanhã morreremos.

Nada agora nada nadando no nada.

Irrespirável parte de coisa nenhuma.

Visão turva, calor. Suor que queima.

Desesperada baba, cospe. Cabelos dourados

orgulhosos. Luz de todos os lados penetra em

cada um dos congelados cortes na pele

atônita. Cheiro de cabelos queimados, bola

vívida em torno do rosto. Deve estar muito

feia. Algum dia não? Amada um dia? Pisoteada

e pisoteada. Então não é um pesadelo. Cheiro

de fumaça. E hoje está morrendo.

Tanja não a vê mais. O fogo atrás e a

tempestade adiante. Onde os homens? Ela é

uma mulher trabalhadora. Não há termos de

que comparação entre ela e uma adúltera,

entre ela e uma devassa. Apenas tem

fantasias, bebe um pouco socialmente, e em

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Page 93: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

uma comunidade se faz respeitável pelo

trabalho. Cuida de sua vida. Não pactuou

jamais por exemplo com a injustiça ou a

maledicência. Visão de impiedade na vida, em

meio da qual se destaca o corpo do homem,

não seu rosto. Não há um contexto. Não há a

relevância de um plano. Nada de lembranças.

Vivera? Deus conhecia seu coração. Tira de

sua fé a sua esperança. Por que então essa

aproximação fedorenta? Naquele dia dirão

também que havia uma costureira chamada

Tanja.

Gritos de Marina. O pai e a irmã se

entreolham. Sentada ela apressa o final, sabe

como fazer. Pára então na porta pela qual

deveriam descer surgir o homem. Desceriam

com tamanho fogo? Ouça. A mocinha não

suporta mais esse hálito de Afonso. Mas

realmente era a voz de sua irmã. Gritos de sua

irmã. O abutre não deveria estar à janela. Meu

Deus, o que está acontecendo? Ecos de

passos que não continuam. Não descerão.

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Uma noite no inferno

O delegado sai para ver o que está

acontecendo. Vê outras imagens e escuta

outras palavras pelas quais está tranqüilo e

certo de que resolverá o assunto. A cena é

composta por diversas idéias pessoais,

algumas tiradas de seus tempos de faculdade.

Não é homem de se impressionar fácil.

Deveriam tê-lo ouvido quando solicitou que a

delegacia fossem construída num prédio mais

próximo do centro. Curvado contra a tormenta

e certo de não é nada demais; já viu naquela

cidade as piores tempestades e trágico

incêndios. Um homem assim não se assusta

fácil. Aliás, precisa sugerir uma reunião para

que as pessoas passem a tomar os cuidados

básicos com relação ao fogo.

Que bibocas mal ajambradass. Pessoas

que não tinham um minuto a perder e agora

todo o tempo do mundo as consome de tédio.

Delegado! O que Helena faz aqui? Alan! Tudo é

chuva e trovões, fogo e cheiro de gente

queimada.

Ricardo de Almeida Rocha 96

Page 95: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Os correios. A farmácia. Não há fogo ou

mortes aqui. A mercearia. Tudo parece calmo.

Que prisma é esse que impede a visão?

Parecem próximos, mas a voz dela não

chega em seus ouvidos. O cavaleiro que

desponta no fim da rua parece ainda distante

mas carrega os trovões. Seu cavalo é

majestoso; um puro-sangue inglês, dir-se-ia. O

porte de homem que o monta é

excepcionalmente garboso. Passará ele as

noites certamente debruçado nos livros

apesar da tranqüila situação financeira. Érika

sente estranho calafrio, de prazer e terror.

Deve ser essa mistura louca de temperaturas

simultâneas. Pensou em subir e colocar um

vestidinho novo e umas sandálias que

realçassem seus pés, que acabara de cuidar

com imersões e cremes. Não teve tempo.

Ela estava olhando embevecida e cada vez

mais excitada a ponto de quase chorar diante

deles, os cavaleiros que se juntaram ao

primeiro, eram quase uma formação militar,

garbosos e organizados que sequer ligam para

a convulsão natural ou para o fogo, Érika

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Page 96: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

gostaria de saber de onde vem e o que

querem, sente que pode estar perto de se

apaixonar verdadeiramente. Sorri com

simpatia e em seu coração os sentimentos são

como os papéis no rodamoinho.

O delegado fala. O que vocês querem?

Menciona sua autoridade ao pensar na

aprovação que teve ao ser indicado para o

cargo, isso se chama popularidade, eles

precisam mostrar deferência diante da

autoridade.

A senhora Carol grita de casa para que ele

tenha cuidado, pois acabará fazendo

referências à sua fortuna escondida ganha em

uma e outra negociação com autoridades da

capital e bandidos. Por ele, continuaria

falando, não percebe que seus gritos se

perdem na tempestade. Mas – sabe-se como é

–cada um tentando resolver o problema que

discerne e o verdadeiro problema intacto. Ele

repete a pergunta. O que querem?

Respondam, em nome da Lei! Helena escuta e

murmura alguma coisa entre dentes num

sorriso sarcástico.

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Uma noite no inferno

O cavalo logo à frente, relinchando,

empinou. A última visão de Alan antes de cair.

Os homens vão desmontando, um após o

outro. Não davam alternativa ao delegado,

que começa a atirar. As balas zuniam e os

homens continuavam avançando; dois deles

por fim o agarram, erguem e arrastam para a

delegacia. Há um rifle apontado quando

entram. Soltem ele! A senhora Carol repete o

que disse. Se não o soltarem será obrigada a

atirar. Os homens se entreolham com

expressão indefinível.

Helena está só sob o temporal. Pensa o

quanto tem poder para mudar aquela

situação. Logo estarão subjugados diante

dela. Basta que o primeiro prove. Terá de fazê-

lo ainda que não lhe agrade correr algum risco

por causa do amante. Enfim, há um

componente pessoal, um dever que tem para

consigo própria, para com sua própria vida.

Sim, e Érika e Marco podem estar correndo

perigo. Agora se lembra de que não vê o filho

desde que Sheila esteve na mercearia. Sim,

precisará agir, talvez por si mesma, que seja,

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Page 98: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

porque no final das contas estamos todos

sozinhos neste mundo.

A cidade vermelha e quente em plena

tempestade. Será que isso é neve? A senhora

Carol fala, impõe-se. Diz que soltem as armas

e levantem as mãos ou será obrigada a atirar.

Um homem saca sua arma e sob o fogo do rifle

dispara no seio enorme da mulher. Parece o

fim, mas não irá lamentar. A meia-idade foi

bem aproveitada, rapazes mais jovens e

mulheres também. Chegou a flertar com um

desses homens? Abre a boca para falar mas

apenas sangue. Seus olhos agora estão

embaçados. Imagina a razão por que o filho

insistiu em dizer que o pai fora assassinado,

quando seu marido morrera de câncer. Teria

sabido que ela se insinuou para o chinês? Não.

Estava por demais envolvido com os

salteadores e os políticos, indo de lá para cá

sempre fazendo e desfazendo acordos. Então

foi com certeza por causa de Helena, com ela

o chinês tivera mesmo um caso, pelo menos

foi o que ela lhe contou. Seja como for, agora

está livre e sabe Deus onde. Viva e livre. A

vida é mesmo irônica, pensou agonizando.

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Uma noite no inferno

A noite próxima, alimentada pelo vento,

se propaga rapidamente pela campina. Para

quem olha de longe, como Leonard

atravessando o riacho a galope, um círculo

adusto determina os limites da cidade. Está

perto agora do campanário. Deveria estar com

fome. Não comeu ao longo de todo o dia.

Pensa de súbito o que faria se não houvesse

mais as razões que hoje pensa ter para viver.

Pensa o que é viver afinal. Em meio ao frio

vermelho, parece mesmo que está nevando.

Cada um dos homens que cerca Alan, cada

um deles tira o chapéu num movimento

coreografado e surgem as mulheres. São

louras e morenas e ruivas. Apenas mulheres.

O único homem no recinto é o próprio

delegado. As de trás trazem açafates, a da

frente pelo cano apanha o rifle das mãos da

mãe. Uma mulher linda naquelas roupas

negras, ainda há esse tempo de olhar. Depois

a violência do golpe no maxilar. Grite de dor.

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Uma noite no inferno

Peça misericórdia. Louve o Senhor. Faça

alguma coisa.

Em vez da excitação e do desejo sufocante

diante das coxas rijas, pois ela tirara a calça,

em vez disso o corpo sem resposta exceto

pela morte nas veias. Precisa mesmo se

torturar pensando o significado dessas coisas?

Que diferença? Amarrado na perna da mesa,

nu agora, elas também tiram as roupas, peça

a peça. Lentamente, muito lentamente. Isso

um dia era estar pronto. Agora uma por vez.

Um tipo de desespero de quem realmente

percebe que não há mais esperança, porque a

tortura é da mesma substância que um dia

foram as idéias de prazer e glória.

A sala some na dor, mas reaparece. A

virilidade se perde, mas é reanimado. As

mulheres com os cestos se aproximam. A boca

é aberta, enfiadas as iguarias. Está no mundo

como costumam estar os animais quando

subitamente se vê homem. Levanta-se num

outro corpo, uma criatura iluminada da noite,

um anjo de luz. Plaina pela sala. Ali estão elas,

sopros de uma vida distante em meio a seu

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Page 101: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

vômito. Vê a si mesmo lá de cima. Elas

entendem seus rogos e o ignoram. Ele próprio

não liga para o que diz, apenas observa. Então

é assim. Vê a boca ser enchida sem

possibilidade de recusa, mais uma vez, e uma

outra. Espere. Agora é uma coisa fria. Ele vê

do alto o cano da arma entrando na sua boca.

Seu ser sai agora da sala, plaina pela rua.

Não está mais sentindo calor ou frio. Entra em

outras casas. Há tempo ainda. Aqueles a quem

corrompeu. Estão contando o dinheiro para a

fuga. Não é mais um lugar seguro. O mundo se

tornou inseguro por causa do falso brilho. O

que acontece a cada um passa pelo corpo,

mas não é no corpo que tudo se origina. Em

que plano? Em que esquema? Em que

silenciosos espaços infinitos? Em que horror?

Agora ele sabe o destino que os aguarda.

Todos serão visitados. Sabe Deus de que

maneira deixarão o corpo, o que se passará

antes que os espelhos não mais os reflitam.

Agora sabe, avisá-los-ia se pudesse. Não quer

estar sozinho, como se sofrimento fosse algo

que se possa partilhar.

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Page 102: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Os homens tomam agora a direção da

mercearia. Para Érika, tem mesmo o porte

principesco. Uma princesa na torre. Seu

amado estaria entre eles, traz para ela um

anel de brilhantes, finalmente, mal pode

acreditar. Prepara-se para recebe-lo, olhando

o pai com desprezo.

A mãe entra esbaforida. Pare com isso,

menina; não vê que são bandidos? O vestido

da filha está aquecido, o pai desvia o olhar da

silhueta. Não parecem bandidos. É que ela

está vivendo com essa inumana virtude de

estar nos sonhos e todavia é tão consciente

do que está fora dela. Não vira o que fizeram

com o delegado? Como jogaram o cavalo em

cima dele e o levaram para dentro?

Talvez até o tenham matado.

Alan também não é flor que se cheire.

Corrupto, devasso, torturador de inocentes.

Para não falar outras coisas. Helena fulmina a

filha. Fique calada.

Que inocente? Mas Fiodor se cala.

Imaginava algo assim. Graças a Deus o rapaz

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Uma noite no inferno

fugiu. Volta a servir Taiorie. Precisa de mais

luz. Aproxima outro lampião. O castigo.

Estrondeando. De uma só vez. A tempestade

nas plantações. O incêndio pode ter feito

vítimas; nem se sabe ao certo onde é. Para os

lados da taverna, Marco a freqüenta. Esses

homens...

Idiota! Castigo, castigo. Coisas da vida. E

Marco está muito bem. Se com o pai não, com

a mãe ele fala. Está lá na Casa, com a

mulherzinha do Armand.

Mãe, veja, estão se aproximando. Parecem

ter mesmo uma postura digna. Érika vai lá em

cima trocar seus horríveis sapatos.

Vingança contra delegado, qual seja a

razão, são bandidos.

Impressão da mãe, fala a filha ao calçar a

primeira sandália.

Impressão ou não, Helena sabe lidar com

situações assim. Lembra dos homens que

queriam... – diz a mãe (o resto em movimentos

labiais) – ... o maridinho dessa porca?

Arremata por sobre o som da tempestade e os

estalidos do fogo. Lembra?

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Uma noite no inferno

Passa as mãos pelo corpo, ajeitando o

vestido. Detém-se abaixo da gola abrindo

botões. Vai para a porta. Abre um sorriso.

Sem qualquer dúvida. Essa vermelhidão

do céu não faz parte do crepúsculo. Calca de

novo os flancos do cavalo e, levantando-se na

cela, inclina-se. O animal aperta o galope,

galope, galope. Fumaça atrás da colina.

Atmosfera apodrecida na entrada da cidade.

Cruzes. Ludovico Bach 1835-1868. Por que

aqui? O frio, lembra. Um montanhês forçado à

inatividade durante o inverno acaba deixando

tudo para trás em migração estacional não

raro definitiva. Estão em torno dele,

fantasmas. Antigos vizinhos, os moradores

das encostas internas da montanha. Não

poderia estar no pequeno e íntimo campo

sagrado que aquelas famílias partilhavam?

Daqui já deveria estar vendo os telhados

de M*, mas apenas névoa e fumaça. Ou o que

seja além. Ou o que seja. Atmosfera

apodrecida e o galope. Não pensa mais, tudo

são os olhos de Taiorie e os olhos de Halmah.

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Uma noite no inferno

E o frio. E a neve. Nunca se soube como o

amigo morreu. Pelo menos tentou alguma

coisa. Era preciso fazer alguma coisa, ou ele

mesmo teria de abandonar a casa querida,

onde conhecera tanta felicidade ao lado da

eterna esposa. Na cama. As contrações

aumentando. As mãos fechadas, o suor, a

testa banhada. O processo de um nascimento.

Ele ali, sua presença pouco mais que um

detalhe, um capricho do destino. A filhinha

agora faz parte deste mundo cruel, deste

belíssimo mundo. As dificuldades não são

comparáveis à alegria que trouxe, a dor é

necessária, não apenas purifica, é necessária.

Como pôde ter raiva da criança?

Nascendo e ninguém ali para ajudá-lo.

Nem uma avó para cortar o cordão e enfaixar.

Halmah chora ainda junto ao seio da mãe. E

ele ao lado das duas. E onde elas agora?

Como? O que é aquilo?

Ardendo. Do alto ele vislumbra a cidade.

Ardendo. O cheiro horrível, ânsia de vômito.

Vômito. Ardendo.

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Uma noite no inferno

Numa nesga da espessura negra aparecem

os restos exteriores da mina desativada. Um

lugar morto. Parece ser tudo o que as chamas

recusam, o que já esteja morto. Entretanto,

quando começa a descer a colina, vê a filha de

Tanja. A menina é magra e bonita, sai do

prédio como se nada estivesse acontecendo. A

capa dos cadernos combina com seu vestido

gasto. Ali outras crianças e a professora.

Então a igreja desvenda-se, incólume, intacta

em meio ao fogo.

A filha lança um grito de horror. O

estrondo e o corpo ensangüentado no chão da

mercearia. Um vento feroz abre a porta num

pavoroso silvo. Contra a tempestade aparece

o vulto. Fiodor interpõe-se entre a aparição e

a esposa. O rifle do bandido surge com o cano

direto no rosto do marido mas o homem

abaixa a arma e com uma pressão da coronha

apenas o tira do caminho.

Atrás do balcão. Taiorie abaixada com a

filhinha. Outro homem aparece, nova visão no

Ricardo de Almeida Rocha 108

Page 107: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

pesadelo. Quietinha, querida, fica quietinha. O

primeiro levanta Helena e com uma bofetada a

joga para o que havia entrado, que passa a

imitar os trejeitos da mulher um pouco antes.

Ela sabe lidar com situações assim... Lembra?

Lembra? Mia agora. Late. Cacareja. Coça-se

como um macaco na mímica exagerada e

cruel. Amarrota o tecido junto ao pescoço da

mulher e a sufoca. Não chore, meu anjo. A

mecha comprida cai e divide o rosto de Helena

em duas partes de uma mesma máscara de

desespero.

Um terceiro homem entra. Parece

diferente dos demais. Suas roupas lhe caem

impecavelmente. Num gesto lento de afetada

polidez, agarra Érika pelos cabelos e a leva

até a porta, entregado-a lá fora aos

companheiros, abutres que surgiram do nada

sobre a vítima indefesa. Aqui embaixo, a

menina e a mãe esperam algum tipo de

milagre. Taiorie canta para a filha baixinho.

Estão ali como se estivessem num outro plano,

etéreo, do vasto mundo. Cantam, emendam

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Uma noite no inferno

uma música na outra. Não podem vê-las.

Deus, mantenha-nos ocultas até que

desapareçam.

Alguns seguram os braços, outros as

pernas da moça, outros rasgam seu vestido,

bátegas martelam-lhe o corpo. O terceiro

homem abre uma brecha na calça impecável.

Minha filha. Há gritos de chuva e as portas

gementes. Há o moinho desativado. Talvez

neste momento a restauração de alguma coisa

perdida. Helena quase se sente grata. Todavia

não há mais como não saber que é a

despedida. Ainda assim, corre na direção da

filha, graças a Deus por semelhante

desespero, e se joga nas pernas dela, nas

pernas de Érika. O rapaz de modos educados

interrompe-se e com o cotovelo devolve

Helena ao chão. Fiodor... Estava só... Sempre

esteve e há tanto tempo. Ali. A face tristonha

emanando seu velho amor incondicional. Seu

marido... Sim, foram felizes.

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Uma noite no inferno

Parecem se multiplicar na vaga e baça

visão das duas mulheres. Os cortes das facas

nos tecidos são cirúrgicos, e também são

precisos ao arremeterem um após outro.

Embora agonizante, Helena sente cada um;

eles parecem nada sentir, apesar da semente

perdida em alguém que não conhecem, nada

sentiam, não na carne – nos olhos refletia-se o

gozo de uma vida perfeita e perversa.

Revirando os olhos, Helena expirou.

Nesse momento o homem a viu, como

quem jamais a deixara de observar. Riu e

aproximou-se. A chinesa resiste à pressão,

agarrada à filha. Surge outro, olhos de sangue

injetados e barba cheia de baba. Agarrando-

lhe pelo outro braço, a desprende da criança.

LeThu-Xua deu um gritinho e correu pela

areia úmida. A luz no rosto do homem em sua

direção impede a mãe de discernir as feições

dele. Não há sol ainda e o horizonte confunde

os elementos. Por alguns instantes o encontro

pareceu inevitável mas num segundo

Ricardo de Almeida Rocha 111

Page 110: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

momento ele sumira. Evaporou-se, e ela viu

frustrada a gratuita alegria.

Na trilha de seus medos, Leonard já vai

longe. Desviara-se da mulher surgida como

anjo de redenção e avança sem rumo. Um

brilho sob as águas do arroio que atravessa.

Esquece o sentimento que a figura feminina

despertou. Os raios multicoloridos se

espalham pela praia. De onde está agora, a

única luz que percebe, a luz que determina a

cor, está em sua mão direita, como se fosse

um ser adormecido.

Ah. Tantas súbitas perspectivas!...

Refletido na pedra, novamente o garoto

tímido e insensato, um eu antigo e gasto que

ele pensara morto, tudo o reflexo devolvia.

Mas hei, alguém na estrada, uma carroça.

É uma nova pessoa em seu encalço, correndo;

uma pessoa renovada. Esbaforida agora. Os

trancos em semitons marcam a distância do

veículo. Sim? Olha o condutor, hesita um

segundo. Garoto novamente, é torturante ter

Ricardo de Almeida Rocha 112

Page 111: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

se dirigir a um estranho. Mas é preciso, pede

a carona. Claro, amigo, pode subir.

Estará a viagem quase inteira intimidado.

Um dia e pouco, com a parada para dormir

quase dois. Só ao chegar terá a ousadia de

mencionar a pedra e nem assim terá sido por

confiar em Dan totalmente. Por que está

tremendo? Espera que o homem não tenha

notado.

Foi ao longo da noite que se lembrou da

moça na praia com a menina. Insight de amor

regido pelo desejo que por sua vez se

renovara com a pedra; segurança é potência.

Vê então o quanto tem sido desgastado pela

pobreza, mais pela pobreza do que pela

solidão. Pelo cotidiano da necessidade que o

seguro de seus pais apenas por um pouco de

tempo aliviou.

Junto do mar. Qual das duas é a criança?

Porque Taiorie preservara algum tipo de droga

natural em seu corpo, ou talvez a gravidez a

tivesse gerado também. Esse jeito de ser que

nos adultos desaparece. Aperta mais os olhos

e abre o sorriso para um peixinho. Mas as

Ricardo de Almeida Rocha 113

Page 112: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

gargalhadas de LeThu-Xua estão contadas.

Nessa onda. Onde está? Há um segundo sorria

tanto, a mais feliz das mulheres. E agora...

Mamãe! Onde, meu Deus? Mamãe! O tio

escuta os gritos, corre, mergulha. Onde? Como

a escuridão desce rápido quando não é

desejada...

O silêncio terá a ver com as trevas.

O pescador tenta consolar. Não, ela nada

sabe sobre o significado de uma vida eterna

noutra dimensão.

A janela que dá para os fundos da rua

principal. Labaredas sob a chuva, ou sobre, ou

em meio à chuva – quem há de saber. A

mesma janela pela qual, havia alguns minutos,

talvez uma hora, os vizinhos se acotovelavam

para olhar. Não são mais expectadores,

participam do teatro trágico: o que se passava

ali, não se passava apenas ali – homens e

mulheres violentados, surrados, decapitados,

incendiados, clamando pela morte, e outros se

esbarrando no meio da rua, fugindo para lugar

Ricardo de Almeida Rocha 114

Page 113: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

nenhum, pisoteados. Fogo onde antes casas

ousaram se chamar lares. Taiorie vê também

que Érika havia sido abandonada no chão

pelos agressores, exceto o rapaz elegante sob

o qual ela estertora, que arremete, arremete,

arremete, com um furor que não se aplaca.

Quando percebem que acabou, os homens

se voltam todos para ela.

Num momento não mais esperado, entre

as vestes ardentes do homem clamando aos

céus como um reverendo e os escorpiões nas

brasas se retorcendo, em meio ao grande

estrondo de um toldo e um teto que desabam

– Barbeiro, diz a placa caída, e essa outra

Bilhar no andar de cima –, quando do impulso

heróico que brotou na alma tímida, Onde elas

estão? – pensou – preciso Meu Deus encontrá-

las. E como escutasse nitidamente os gritos

não escutados, entra na mercearia sabendo no

corpo a seqüência de atitudes. Já viu vapor

assim subir para o abismo acima, no perverso

passado em que o calor assassino rosnava na

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Page 114: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

espreita de cada sobrevivência; já ouviu esses

estalidos tétricos no ronco do trovão; já sentiu

esse cheiro de carne humana que com o dos

porcos queimados se confunde.

O olhar distante num átimo aterrissa no

bandido. Poderia ter dito: Solte-a. Ou apenas

arrancá-la das mãos dele, com energia e ira

desconhecidas. Deve supor que há salvação,

deve esperá-la, para ter a essencial palavra

de consolo. Que pássaros são esses, voando

em círculos como abutres? No futuro haverá

de contar isso para os netos. Contra a morte

qualquer esforço (ou virtude) é relativo – essa

luta desigual, esse braço quebrado em seu

joelho, ou o espírito indômito que se dele se

derrama. As sombras bruxuleiam na parede,

as sombras da pugna perdida. Ardente,

muitíssimo vermelho, o espelho multiplica

raios de uma luz macabra. Tai é bela e sublime

mesmo aqui, como uma santa no inferno. Não

se atreva, canalha. No assoalho estende-se

sem vida o corpo de outro malfeitor.

Houve o momento da noite despercebida,

as estrelas aguardam em seus lares ocultos.

O som e a fúria da tempestade e do fogo

Ricardo de Almeida Rocha 116

Page 115: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

desceram e a cidade está envolta. Fique firme,

amor; tenha calma, meu anjo, tudo terminará

bem. O olhar da resposta doce e confiante a

filhinha, vendo, imitou.

Eles vão saindo lentamente das casas

assoladas no sentido da mercearia. As

mulheres desdenham de uma possível parada

na farmácia de Jeiel e são as primeiras a

chegar. Diana passa a mão no vidro que seu

hálito embaçou. O dia realmente se foi. Chega

a esboçar um sorriso, tocada sabe Deus por

qual esperança. Seja qual for, é a mesma do

floco de neve na lama. Seu pai surge atrás

dela, curvo e maltratado, e a abraça chorando.

Decerto a filha estaria num mundo melhor.

Eu era isso que diziam? Deveria lhes

atender a inveja? Entregar-me? A densidade

de seu andar discorda do sonho alheio. Admito

que não estou nada bem desde o parto. O

avesso do tapete. Luxo oriental de devotada

esposa com pulseiras luzentes. Taiorie e a

aparição no momento preciso. Duas quando a

filha chega. Dão sentido à sua vida. Não é

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Page 116: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

necessário saber. Crê no brilho do sol. Suor

frio precisa de água fria. Vento. E um

momento de amor que adestre a inspiração

deve bastar para que esqueça todo o mal.

As mulheres diante de Leonard não são

mais mulheres mas mazelentas visões da

morte. Súbito começam a rir, mais e mais alto,

gargalham enlouquecidas. Levam as mãos aos

coldres. Ele se adianta e pisa a própria

sombra, e a sombra o fere mais que qualquer

das balas que zuniam, mais que a bala agora

estilhaçada em seu ombro. Não mais se deterá

diante do espelho ou das próprias lágrimas, o

vazio em seu peito foi preenchido e isso basta,

mil vezes melhor a perda trágica do amor do

que jamais tê-lo conhecido; melhor mil vezes a

vida que se perde plena do que as que

tediosas e vãs se eternizam. Mas o rifle de um

dos mortos se enternece nas mãos dele, como

uma folha verde no calor causticante.

Revólveres coiceiam e balas furam o

assoalho; todavia há nessa histeria algo que

se faz necessário a uma eventual quietude

posterior. Haverá salvação? Zunidos e

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Page 117: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

relâmpagos sobre a mente outrora

apaziguada. Precisa haver salvação, por elas,

todas as coisas de uma vida agarradas ali uma

à outra.

Uma a uma as bandoleiras vão caindo,

tornando-se um aglomerado inerte; e eis

revela o relâmpago não há gota de sangue no

assoalho. Ah, anjo de luz a quem idolatrei, tu

não me conheces mais, ainda que eu esteja

agora em teu poder, bendito seja o nome de

quem tem todo o poder, agora meus olhos o

vêem.

– Meus amores – diz Leonard – quando

amanhecer nós estaremos caminhando por

essas ruas, e estarão limpas, e essas lágrimas

nos olhos de vocês terão secado, e jamais nos

lembraremos desta noite.

Papai jamais havia mentido para sua

filhinha. Mamãe comovida o perdoa. O deus

das circunstâncias. Taiorie e Halmah se jogam

em seus braços.

Leonard chorou.

Sombras se arrastam em torno da casa,

pela lama. Sombras pelas janelas do segundo

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Page 118: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

andar. Arrastam-se pelas cinzas dos

documentos, saem agora pela porta. Uma

criança. Uma inocente criança. O vulto se

contorce, se enrodilha, gane e suspira na

conta dos mortos.

A mercearia está cercada por todos os

lados. Acima tampouco há saída. Ao longo da

rua ainda há outros chegando. Ignoram a

farmácia de Jeiel. Entram e clamam, conjuram.

As roupas roçam na madeira da parede.

Leonard sente, escuta, vê de relance os rostos

alaranjados na janela. A casa circundada pela

sebe em chamas – ilhada, cercada pelos

bandidos que continuam a se multiplicar –

morrendo, está rachada. Ou não? O que escuta

agora acaso é som de precipício? Não a esta

distância do mar.

Ou será?

Aos poucos, tudo parece se aquietar. Por

que demoram? Querem que sofram por causa

do medo. Leonard e Fiodor se entreolham.

Olham ao redor. Estão assim quietos e

atentos, a respiração suspensa, os braços

pendidos ao longo do corpo. Porque há essa

Ricardo de Almeida Rocha 120

Page 119: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

quietude, torna-se nítida a chuva; nas

lâmpadas mais intensa porque está tão

escuro. A água escorre pela parede, cascatas.

Reflexos e sombras. Será suficiente uma vaga

observação da noite exterior para entender

que todas aquelas coisas fazem parte de uma

visão, um pesadelo talvez, sabe-se lá, um

problema neurológico incurável naquela parte

do mundo sem o progresso europeu ou até do

Leste.

Fiodor prepara o rifle antes que Leonard

possa sequer perceber. Cuidado!, grita. As

mãos do homem soltam-se do vestido. Não em

minha casa! atrás do balcão onde construí

minha vida! Suor, chuva e lágrimas – o rosto

do agressor respinga sobre Taiorie e sua filha.

Quem há de saber tudo sobre todas as coisas?

O juiz clama ao som do tiro, a bala penetra em

seu ombro; ali ficará por todo o resto de sua

vida. Segure-a, diz um dos homens. É a

primeira vez que voz assim é ouvida. A

mercearia tornou-se em maldição. A dor

impede que Leonard consiga erguer o braço.

Não há como deixar de pensar no final de

tudo. O medo é realmente a pior desgraça.

Ricardo de Almeida Rocha 121

Page 120: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

São três ou quatro em torno delas. Nada

mais a fazer, as coisas saíram definitivamente

de controle. Um instante todavia e um outro

que se segue, o facão no mostruário e cortado

é o cetro daquela iniqüidade mais ou menos

que humana – o que é isso afinal, essa carne

esverdeada, esse transcendental atentado ao

pudor, com que geração antecedente será

semelhante ou qual a reproduzirá no futuro?

Não há retorno possível, ou esperança de

pesadelo, ou a frustração da perspectiva mais

sombria.

Ninguém há que saiba sobre isso, que

tenha lido a respeito ou talvez imaginado. O

desprezo com que se desvencilham do juiz

empurrando-o assim e o jogando no chão, o

ódio entre urros contra Leonard – um ódio

gratuito e ininteligível (porque diante disso

tudo encontra explicação) –, é claro que

Taiorie pensa a respeito, ou talvez pensasse,

não estivesse ela mesma possessa, porque

homens ou demônios – não importa – estão

tentando contra sua vida, contra sua

garotinha.

Ricardo de Almeida Rocha 122

Page 121: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

O fluxo está a ponto de se romper. Lábios

trêmulos proferem a teoria como prece.

Virtude não sanguínea. O que alguém

descobriu nem sempre há de servir. Às vezes

quando menos se espera. Lança fora os

hábitos quase vícios. O desespero tem

serventia maior que a paz acomodada. Lembra

quando chegou? O que queria da vida à

janela? Faz um esforço. Não raro tudo se

resume a isso, ao esforço de tentar. Olhe se

não é o mesmo lugar. Olhe se não são novas

criaturas. Olhe que futuro deverá. Reorganize

as idéias de acordo com a nova fonte.

Caminham ao redor delas, gargalhando.

Leonard se arrasta e volta a pensar nos tiros

misericordiosos; algo o detém – não saberia

dizer o quê, alguma coisa. Quis resistir contra

essa resistência, quis se convencer de que era

a única saída, mas continua girando diante

deles, fazendo-lhes uma frente absurda.

Chegaram em relances um e outro dos

monstros à sua volta; derrubam-no de novo,

direcionam as armas para suas pernas. Está

Ricardo de Almeida Rocha 123

Page 122: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

claro que não teria sentido para eles fazer mal

à sua família se ele já estivesse morto.

Os homens têm filha e mãe diante dele,

prontos. Todo o sentido da existência está

abalado, ainda que ele possa pensar que

existe um amaldiçoado elo ligando a todos.

Não sabe todavia o que é. Imagina que existe,

que deva existir, mas não faz agora qualquer

diferença. Anos de ilusão, sopro de vida,

crostas terrosas – antes a morte do que esta

tortura. Depois que deitar no pó, se for

buscado, não mais será. Pois eles fedem a

sangue e enxofre. Há um prêmio pela sua

dor? Uma recompensa pelo seu sofrimento?

Que cano é esse de arma lá fora?

O reflexo é como a luz de um relâmpago à

janela: mesmo depois que esmaecem as coisas

ao redor, sabe-se que soará o trovão. Tudo

agora está assim, coisas mortas que adquirem

vida por causa da luz, como a lua que um dia

sem dúvida há de voltar ao céu.

Ali. Está vendo. Mal pode crer, é Diana. A

branca, magra e distante Diana. Seu

vestidinho de chita parece à prova de fogo.

Ricardo de Almeida Rocha 124

Page 123: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Ela mesma parece ser uma chama, uma chama

inextinguível. Ela, que se notabilizou na

cidade por ser diferente, não era assim? Jeiel

sempre foi um magnífico profissional, mas

mais que tudo um pai exemplar. Leonard

lembrava do carinho e do apoio quando ela

apareceu daquele jeito. Os únicos da cidade

que o visitavam na montanha. Atrás do prédio

da farmácia o jardim viça como se fora numa

cidade próspera e verde. Um dia, Taiorie falou

com ela sobre um sonho. Cultivar flores com a

produção de gladíolos. Sim, um departamento

de floricultura levando a subsistência adiante.

Nesse caso, diria que mais que subsistência,

seria vida. E não é que Diana parecia

entender? Tai era assim, promovia esse tipo

de milagre – não o libertara?

Da porta e da janela, um novo rumo. Mas

não deveria haver sangue na parede?

Voltam-se os demais para olhar, do lado de

fora não o fogo e escuridão esperados, a neve

e a chuva, as bestas da noite rondando. Então

a winchester de Jim Cung Cho com seguidos

estrondos derruba um por um daqueles que o

não consideraram. Acreditavam que estaria

Ricardo de Almeida Rocha 125

Page 124: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

vencido pela depressão ou pelo álcool, o que

faz ali, como?

Halmah torna a se agarrar à mãe. Minha

filhinha, gostaria de dizer. Tem mais que

nunca essa necessidade da fala. Então diz

Minha filhinha do jeito que pode, e a menina

entende e se acalma.

Meigos movimentos à janela. Um chicote

enrosca-se no pescoço do bandido. Diana puxa

e o enforca com seu peso estirado. Ela não

pode ter tamanha força. Na verdade, ela não

poderia sequer estar ali. Mas o que é possível

e o que não é são coisas que nada mais

representam. Por um instante Leonard apenas

olha admirado, mas é o sinal de que precisa e

se levanta, maior que a dor e todo espanto.

Eles não lhe darão qualquer motivo. Quem

sabe nem saibam se existe um. Ele mantém o

homem agarrado pelo colarinho; mas está

morrendo, exangue num silêncio de

potestades e eras. Diga-me. Mas morreu em

suas mãos, o que é alguma coisa estupenda, a

mais extraordinária e terrível dentre todas,

alguém que morre em suas mãos ou, pior

Ricardo de Almeida Rocha 126

Page 125: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

ainda, alguém morto por você, não importa o

tamanho do erro ou quão perverso; matar

alguém é algo de que você não se recupera,

uma perplexidade para o resto da vida, para

sempre deixarão de ser mas não por força ou

vontade humana, ainda que ninguém seja

nada e toda glória a glória de uma flor.

Daí para frente o tiroteio ganha ares de

batalha, torna-se ensurdecedor. Refeitos, os

homens não podem mais ser detidos, pois

deixaram de lado Taiorie e Halmah,

determinados a simplesmente destruir

aqueles de quem eram inimigos, que

destruíram o poder das pessoas ao redor ao

falarem prudentemente com seus lábios e não

sacrificarem seus filhos e suas filhas.

Porque lá de fora vem uma feroz reação

aos malfeitores.

Deixe que Jeiel descubra. A arma que

reflete está nas mãos de Christian, que vai e

vem em seu cavalo. O chicote com Diana na

parte exterior da janela junto ao balcão. Lá

dentro Fiodor se levanta e Leonard se junta à

sua família. No telhado do prédio em frente,

Jim e sua espingarda. Há menos de um minuto

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Page 126: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

a arma de Armand também está disparando

de lá.

Ele cresceu numa família outrora bastante

conceituada da China, fizera refeições com

reis e generais, sem que, como qualquer

criança, isso o afetasse. Mas eram tempos

passados. Quando descobriram que ele era um

bastardo, expulsaram a mãe, que morreria nas

ruas de Pequim. As grandes perspectivas que

sonhavam para seu futuro morreram com ela.

É um sobrevivente. Precisa manter-se vivo e

proteger a irmãzinha. Um lutador. Depois da

grande viagem, é acolhido na aldeia dos

pescadores. Madrugadas insones fica

imaginando o que poderia ter sido em seu país

ou o que será de fato ao terminar sua busca.

Parece que a cidade mineira de que falaram é

essa. Pai. Pai? Armand já tem problemas

demais, ainda mais agora com essa história.

Quer apenas retomar seu casamento e o que

menos precisa é de um filho súbito. O que não

esperava era uma visão como aquela, a

mulher e o filho de Fiodor. E agora seu filho.

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Uma noite no inferno

Por quê? Mas por que haveria de importar? As

coisas simplesmente acontecem. É aqui e

agora e pronto.

Necessidade de acreditar ou as

evidências, dilema extremo – porque a

suspeita não é a sentença mas caminha a

passos largos nessa direção.

Num verão de sua juventude, Armand

conheceu Sheila num balneário. Espraiava-se

ao sol e se deteve toda a manhã na

contemplação dela até a abordagem em que

tentou o equilíbrio entre a malícia e a

delicadeza, julgando pela teoria que diz

ficarem as mulheres fascinadas por extremos

opostos convivendo num mesmo homem e,

partindo por instantes do próprio pressuposto

de que era tal homem, tentou se revelar.

Era um anjo, Sheila. Encantadora numa

primeira vista, sedutora numa segunda, digna

de amor ao abrir a boca – assim Armand ficou

feliz por ter aceito o convite de um amigo, a

que normalmente dirão não (detestava

grandes aglomerações de modo geral e em

Ricardo de Almeida Rocha 129

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Uma noite no inferno

particular aglomeração de veranistas ricos).

Estava enfeitiçado. A principio pensou apenas

em intimidades, mas logo quis tê-la a seu lado

pelo resto de sua vida.

A seu redor, a maioria dos rapazes

desfrutava de seu corpo, num maiô sensual

porque discreto. Alguns talvez esperassem

uma chance, mas não como ele, que mantinha

uma calculada distância. Porque aqueles

estavam distanciados pela própria

proximidade, afastados de seu amor pela

amizade.

Tudo era então muito diferente de uma

cidade mineira do Oeste, no apogeu ou na

decadência, as pessoas tratavam o sexo com a

necessária sutileza e a corte como uma regra,

portanto era um lugar muito diferente de M*.

Portanto Armand acreditou-se em

vantagem quando seus olhares se cruzaram. E

pensou que era quem deveria ensinar quando

enfim numa noite ficaram a sós. Era o quinto

dia das férias.

A sublimidade de estarem juntos

subitamente foi comprometida quando ela

Ricardo de Almeida Rocha 130

Page 129: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

mostrou-se experiente a ponto de arrancar

sangue.

– Não gosto disso, querida.

– Do que você gosta?

De manhã a luz incidiu sobre os mesmos

olhos que fizeram Armand sonhar e era esses

olhos que agora iluminavam seu caminho de

volta para M*, num desesperado galope.

Quando deixou a cidade após apanhar a

esposa com Marco, agiu por orgulho muito

particular. Quando planejou a volta, sua

intenção era vingar-se. Mas quando passou

pelo correio vazio em meio àquela tempestade

macabra e viu a mercearia em chamas, tudo

em que pensava era salvar a mulher.

Não saberá dizer por que teve aquela idéia

de subir no telhado. Se ainda ama assim, fará

qualquer coisa por esse amor e possivelmente

será a última coisa que virá a fazer.

Ali está ela, ali está Sheila. Veio salvá-la,

ele quer dizer, mas não precisa, porque ela

entende e o abraça forte, pedindo o seu

perdão. Meu amor...

Jim verifica o pulso e descobre a gravidade

do ferimento. Meu pai – repetiu.

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Uma noite no inferno

Na ação que se tornou a própria essência

de cada ser e levou a contemplação muito

além do que poderia em si mesma, mais à

frente e despreocupada porque tudo será

enfim como tem de ser, Fiodor localiza seu

espaço naquele caos. Porque quem garante

que sob o caos não esteja o sentido mais

profundo, o mais verdadeiro significado das

coisas que não parecem ter nenhum? Que

noite extraordinária, oh que noite! E estou

aqui.

Pessoas ainda correm de lá para cá,

cortam o ar os disparos e ecoam, balas

perdidas colhem mulheres e crianças.

Possivelmente as formigas são os seres vivos

que mais resistem ao fogo, mais que os

próprios escorpiões. Em determinado

momento, ninguém percebe exceto Jeiel, os

bandidos não mais parecem se multiplicar.

Poderia o farmacêutico jurar que viu um ou

dois deles tentando fugir.

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Page 131: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

Chegou à janela e o brilho da arma de Jim

na mureta do telhado o entorpece de prazer,

mais uma passagem de Christian no cavalo e

outra vez sua mira se mostra fantástica.

Limpou a mão na roupa e era como se

estivesse limpando a própria alma. Havia

lágrimas em seus olhos quando ele próprio

tornou a apontar um rifle em sua vida há tanto

tempo vã. Que Diana também se orgulhasse

dele. Nem percebe que nada sente de suas

dores e que sua doença nenhum sintoma

manifesta.

Quando tempo passou até que crescessem

sobre eles, contra a luz – que se apaga nos

vultos, são apenas réstias saindo dos

malditos, como aura de anjos, dos mais

iluminados dentre os anjos –, quanto tempo

passou, está ele morto para que o diga,

morto, que esperança ainda poderia haver

além desse tiro fulminante que o salva,

derrubando o opressor? A mão da amada o

alcança, os dedos carnudos, as unhas

perfeitas, as branquíssimas palmas, essa

concha que se lhe oferece – dão-se as mãos;

comunicam-se as almas, pelos olhares e pelas

Ricardo de Almeida Rocha 133

Page 132: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

mãos. Um tiro certeiro e também Fiodor foi

salvo de um bandido que ele sequer viu se

aproximar.

Não há mais uma missão para os

bandidos, agora se trata de uma questão

pessoal. É mister ainda a morte lenta.

Quebram os lampiões no balcão e nas

paredes, quebram ainda no alto com pedaços

de madeira. Falta os homens lá fora, teriam

dito, pois assim imaginam a menina, e todos

saem no encalço daquele que usara o chicote.

Não perceberam qualquer tiro do telhado, não

perceberam ou não ligaram para o cavaleiro e

muito menos o homem agora naquela janela

quase em frente. A única perda entre eles,

para eles, era o enforcado. Os que estão

dentro não podem escapar. As chamas

crescem e crescem em segundos, alcançam o

teto, vistas ao longe sobem. Quem haverá

todavia que as veja?

O alicerce de uma casa. Labareda nos

ouvidos. Contas de colares rolando pela

chuva, garrafas; um calendário espedaçado,

apenas um cartão. Quem caminhará a partir

Ricardo de Almeida Rocha 134

Page 133: 08_Uma Noite No Inferno

Uma noite no inferno

de hoje por essa rua? Constituirá para si

novos passantes, novos altares cotidianos,

outro gado e pessoas? Eles estão ali, montam

e seguirão na procura da menina, seguirão

caso algo não os impeça, e não sejam

despedidos para onde vieram. Por ali –

escutam o caminho. E quando chegam, ei-la

indefesa, é apenas um velho aleijado.

São as vozes de Jeiel e sua filha. Escutam

lá de dentro como se não houvesse o fogo.

Amor, ah meu amor, tudo dará certo sim, eu te

conheço. Nossa vida está firmemente

assentada. Desceu a chuva, a neve, e não foi

abalada; e após raios, dilúvio e as pedras de

saraiva, andaremos sobre o que era antes

fogo consumidor. Ele acredita. Erguendo-se

nas listas do assoalho apodrecido vê que em

vez de continuar crescendo o incêndio parece

arrefecer. As frinchas e interstícios trazem a

inequívoca luz, embora seja noite, ou talvez já

tenha amanhecido, entre o espaço de tempo

necessário para que uma chuva se transforme

em neve e fogo se torne inextinguível.

Christian e sua arma são como uma

mesma coisa, dando cobertura a pai e filha.

Ricardo de Almeida Rocha 135

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Uma noite no inferno

Eis porém com o tempo se torna inútil, porque

conseguem agarra-la e já não pode protege-la

sem por em risco a vida dela. É o perigoso

momento de sua hesitação, sem saber que

atitude tomar; não quer desistir, Elisabeth

está vendo e está propensa a permitir de novo

se apaixonar por ele, praticamente lhe pediu

que fosse ajudar as vítimas dos ataques,

portanto refez a conexão entre eles, temos de

ajuda-los, disse ela, assim, tornando-os de

novo nós.

O cavalo de Elisabeth surge então. Ela

usou de toda sua habilidade de amazona para

manter longe os bandidos, sofreou, girou,

empinou, atacou com os cascos. Chega porém

o momento em que nada mais há a ser feito

porque ela é derrubada. Sua perna é forte o

bastante para ser arrastada sem maiores

danos mas escuta o som doloroso e surdo da

própria queda para fora da sela, caindo

também nas mãos terríveis da horda. Daí por

diante seus gritos são intercalados pelas

gargalhadas que tem alguma tenebrosa

ligação com o cheiro horrível. O que foi feito

da noite? Olha o céu e é tudo o que vê por

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Uma noite no inferno

alguns segundos em que tudo se resumia

nisso, no que foi feito da noite, como era

possível surgir uma semelhante e gloriosa

manhã, ou gloriosa seria se não estivessem as

duas à mercê dos homens, alvo de seu ódio e

luxúria e escudos contra a arma de Christian,

agora a única arma.

Mas como assim a única, onde está aquele

deus do telhado? Seja como for, não

adiantaria, uma arma ou duas, elas seriam as

primeiras vítimas, fosse quem fosse e onde

estivesse agora não poderia mais ajudar,

exceto se o fizesse com as mãos, como esse

relâmpago que surge de entre as casas,

livrando primeiro Diana, com golpes certeiros

de uma luta ali desconhecida, de pés voadores

e empuxos imprevistos de inopinadas tábuas

onde deveriam estar as mãos e na desarmada

técnica guerreira abre espaço para que o rifle

de Christian volte à ação, derrubando quantos

fossem aparecendo diante delas.

Lá dentro, as tábuas rangem. Aqui não é

mais lugar nenhum. Leonard está ali sem mais

qualquer propósito. Sai. Onde? Onde a aragem

substituíra o vento, onde restara do fogo

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Uma noite no inferno

apenas vestígios cinzentos sob a luz das

camadas brancas, o ar que Diana aspira está

carregado de seu alento, respirando fundo e

pedindo cuidado. Cuidado com o homem

caído, não está morto e mexe em sua arma.

Um corpo se interpõe entre a bala e o corpo

da moça, enquanto as flamas vorazes

minguam para dentro de uma perfumada

profundeza.

Ela corre e se aproxima. Leonard... Um

galo ousa cantar a manhã que se aproxima. A

expressão serena e branca, essencial, aparece

em nuvens que podem muito bem ser a névoa

última, o túnel, a perfeita realidade que só se

impõe por um gesto pessoal. Leonard! – a

chinesa e a filha pisam na lama que sobe aos

vestidos. A esposa abraça o corpo

ensangüentado e a menina começa a chorar.

Antes que os montes nascessem,

contempla-a e sua luz é a luz de anjos. Sua

mão o guia à terra firme. O ar se renova e se

faz desejável. Sente na boca o dulcíssimo

beijo, devolvendo-lhe o perdido alento; em

seu colo, reclina a cabeça para dormir. Sua

alma vaga entre os astros fora do tempo. Ela

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Uma noite no inferno

tem nas mãos uma flor suficiente como

consolo mais que um jardim inteiro. Através

dela entrevê coisas que eram e que serão,

dentro de um tempo que não se anseia mas se

afinal se conquista. Desce às águas e é

purificado de si mesmo. Ao longo da estrada

iluminada, o guia a aureolada dama. Num

lugar alto e santo, junto às portas, a distancia

que ela perde à sua frente torna-a maior e

mais diáfana.

Deveras, onde há pouco a noite, agora a

luz da manhã nas casas que sobreviveram. O

cavalo da adolescente tem oito anos, os

joelhos baixos, o peito forte, as espáduas

valentes. É obediente e livre no seu amor por

ela. Recebe também as cores suaves e

aquecidas espalhadas pelo horizonte e está

refletido na montra da farmácia. Ali também

uma ou outra chama. O inferno não é feito de

fogo, murmura Diana, mas de pensamentos

humanos.

Um trote, trote, trote. O reverendo está

chegando. Sem dúvida irá querer fazer o culto

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Uma noite no inferno

em memória das vítimas, quando pregará

sobre as razões de uma igreja incólume. Sim.

Não mencionará os corpos dos malfeitores sob

a neve desaparecidos nem a ausência de

sangue onde alguns caíram na mercearia.

Um homem bem apessoado vem com ele.

Jamais se esquecera da menina que serviu

como testemunha de seu casamento, aqui

mesmo, meu Deus do céu, ali em cima, e o

senhor sabe, como enviuvara, e faz o pedido

ao qual, bem, responde Fiodor: perdi esposa e

filha e o senhor perdeu a futura noiva.

Havia ainda um outro, o mercador

itinerante. Faz algum comentário que o

homem de Deus escuta com atenção.

No dia do culto, a ausência de Taiorie será

sentida. Terá desistido? É normal. Tão nova e

tanta tragédia. Mas não. Ela abrigará os

trabalhadores da ferrovia, porque é de sua

propriedade boa parte do terreno por onde a

ferrovia passará, lhes dará as refeições

durante as obras. E a produção das flores

começará logo, exuberante.

Quando uma tonalidade se volatiliza,

outra começa a ser gerada. A montanha surge

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Uma noite no inferno

da manhã. Ali passa o arroio, sob uma das

janelas. Taiorie e Halmah pertencem àquele

lugar.

No final da noite, quando amanhecia, ele

morreu. Halmah não se lembra com clareza,

exceto por uns flashes inconstantes. Sabe que

estava perto. Só nas visitas de Diana se chega

a falar no assunto abertamente. Assim a

adolescente adquiriu a memória colorida com

que chega à vida adulta. Seu pai. Mesmo que

não fosse seu pai. Suporta melhor sua

ausência por isso, porque não chegou a haver

uma separação, ela ainda não tinha

consciência para tanto.

A moça alta de traços orientais vê poucas

pessoas ao longo da vida nos vales internos

da montanha prefere não acompanhar a mãe

quando das compras na cidade ou a mãe é que

prefere ir sozinha para sossegar seu sonho no

caminho. Se o sol ilumina o pequeno rebanho

logo cedo, não há como trazer à mente

aqueles corpos pelo chão enquanto

amanhecia, às centenas, e logo depois corpo

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Uma noite no inferno

algum mas a rua branca, e o leitoso vale além,

e a montanha imponente e branca.

A fria manhã avança gloriosa e à paisagem

branca se agrega a alaranjada luz que sepulta

a brutalidade em seu silêncio.

No rosto dourado de Jeiel registra-se um

renascido desejo de vida que não supunha

felicidade. Esse homem salvou a minha filha.

Acreditará nas melhores coisas. É a

mesma casa, a mesma vida. Porque as duas

são mulheres num mundo de homens, não

deve deixar de esperar e abandonar qualquer

de seus projetos. Ao longo das noites – e

decerto isso não é uma manifestação de fé ou

de bondade – se convenceu de que esteve lá

naquela noite, e de que era inocente de ter

estado lá naquela noite, não poderia prever

tudo aquilo e evitá-lo, constituía um desígnio

à parte do livre arbítrio concedido, uma

determinação de sabedoria maior que a dor.

Ele era uma pessoa especial. Imagina que

como toda pessoa especial deveria estar

disponível para seu chamado. Ainda assim,

precisara ela realmente estar ali? Diante da

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Uma noite no inferno

novidade do espelho, ajeitou o decote da

camisola inútil. Foi um amor maior, mais que

verdadeiro; o passeio no lago não se perderá,

sua memória está a serviço de uma história

mais ampla, de águas sim, também de árvores

e frutinhas, mas ainda de fogo e tempestade.

Daquele dia até a noite determinada, esse foi

o tempo do sensual usufruto e das noites de

carinho. As cores ao redor não deixam dúvidas

sobre a primavera. Estava certa quanto à

produção de plantas ornamentais e a

qualidade de vida que a filha poderia ter numa

comunidade assim. E agora que a ferrovia

chegou, há sempre essa nova perspectiva.

Passou pela janela e viu ao longe, junto as

cores, a fumaça. O som inconfundível

anunciou o trem.

A luz de dias assim é tudo de que precisa.

A composição faz a curva e se aproxima mais e

mais da estação.

Se sua força nasceu do amor ou da

tragédia, ignora; mas sabe que está ligada

para sempre às sombras do crepúsculo e às

luzes do amanhecer, uma e outra coisa

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Uma noite no inferno

concede a seu rosto um tom veemente de

cristal.

O vale está cheio de flores.

FIMFIM

©2001,2010 Ricardo Rocha

[email protected]

Copyright by Ricardo Rocha

Texto protegido pela Lei de Propriedade Intelectual

No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998

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