17
1 A FEITICEIRA Escondido num matagal do Refúgio de Rowan, Max McDaniels avan- çou, agachando-se sob uma abóbada de ramos entrelaçados de pinhei- ros. Vira uma forma escura a esgueirar-se, avançando perto do sopé da montanha cinzenta, muito abaixo de onde agora se encontrava, e sabia que quem o perseguia não estaria longe. Desembainhando a faca, usou o brilho do óleo de fósforo que irradiava da lâmina para ler o mapa rude que desenhara antes de partir. O alvo ainda estava longe. A este ritmo, nunca lá chegaria: este adversário era muito mais rápido do que os outros. Afastando da mente estas realidades desagradáveis, Max concentrou- -se na ilusão que criara. O espectro era uma réplica perfeita de Max, dos pés à ponta dos cabelos pretos e ondulados, não descurando as feições definidas e graves que agora via espreitando cautelosamente de um ramo alto de uma árvore não longe de onde Max se encontrava. Dera-se ao trabalho de criar vestígios subtis da sua passagem perto da árvore, sabendo que um adversário bem treinado os localizaria. 11

1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

1

A FEITICEIRA

Escondido num matagal do Refúgio de Rowan, Max McDaniels avan-çou, agachando-se sob uma abóbada de ramos entrelaçados de pinhei-ros. Vira uma forma escura a esgueirar-se, avançando perto do sopé damontanha cinzenta, muito abaixo de onde agora se encontrava, e sabiaque quem o perseguia não estaria longe. Desembainhando a faca, usou obrilho do óleo de fósforo que irradiava da lâmina para ler o mapa rudeque desenhara antes de partir. O alvo ainda estava longe. A este ritmo,nunca lá chegaria: este adversário era muito mais rápido do que os outros.

Afastando da mente estas realidades desagradáveis, Max concentrou--se na ilusão que criara. O espectro era uma réplica perfeita de Max, dospés à ponta dos cabelos pretos e ondulados, não descurando as feiçõesdefinidas e graves que agora via espreitando cautelosamente de um ramoalto de uma árvore não longe de onde Max se encontrava. Dera-se aotrabalho de criar vestígios subtis da sua passagem perto da árvore,sabendo que um adversário bem treinado os localizaria.

11

Page 2: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava.A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a

encosta escarpada da montanha, tentando ver o seu adversário, mashavia apenas terra húmida e o assobiar leve do vento que soprava far-rapos de neblina pela montanha.

Enquanto o céu se aclarava, ficando de um tom leve de azul, Maxesperou, atento e imóvel como uma pedra por entre as raízes e as urti-gas. Precisamente quando decidira sair do esconderijo, um movimentoleve que vislumbrou pelo canto do olho fê-lo parar.

Uma das árvores avançava lentamente pela encosta da montanha. Pelo menos parecia-lhe ser uma árvore, uma das várias árvores ver-

gadas e jovens que se agarravam precariamente ao solo seco da encosta.Lentamente, porém, a silhueta endireitou-se e começou a avançar comcautela pela floresta esparsa. Quando a figura estava a cerca de cincometros, Max percebeu porque não conseguira iludir o seu perseguidor.

Era Cooper. O rosto dilacerado por cicatrizes do Agente parecia uma máscara

de osso fracturada. A sua pele clara estava camuflada com terra e ocabelo louro escondido sob um gorro preto. Chegando à base da árvoreonde o duplo de Max estava, desembainhou uma faca de lâmina finaque tinha escondida sob a manga. A lâmina coberta de óleo de fósforobrilhou.

Cooper começou a subir a árvore com a graciosidade fluida de umaaranha.

Enquanto o Agente subia, as pupilas de Max dilatavam-se lenta-mente. Energias terríveis borbulhavam dentro do seu corpo magro emusculado, fazendo com que os seus dedos se crispassem e tremessem.

Max saltou do esconderijo.Cooper virou rapidamente a cabeça em direcção ao som, quando

Max correu na sua direcção com a faca desembainhada. A arma de Max atingiu o alvo, mas, em vez de rasgar carne e osso,

atravessou a figura e embateu na árvore arremessando casca e madeira.O espectro criado por Cooper dissolveu-se numa nuvem de fumonegro e Max percebeu que fora enganado.

Virou então a cabeça e viu o verdadeiro Cooper a avançar rapida-mente, saindo de trás de um matagal cerrado. O Agente percorreu ocaminho que os separava com cinco passos rápidos. Passando a faca

12

Page 3: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

para a mão esquerda, Max lançou-se para cima da árvore, evitandoa lâmina de Cooper, que assobiou ao passar pelas suas costelas.

Cooper agarrou o punho de Max com a sua mão férrea. — Foste capturado — disse ele numa voz sibilante.Puxando com força, Max libertou-se e, descrevendo um arco com a

faca, golpeou o ombro de Cooper, deixando uma linha brilhante de óleode fósforo no tecido negro da camisola do Agente. Este soltou um gritorouco de surpresa. Com outro golpe rápido da faca, Max saltou da árvore.

Com um movimento fluido, os pés de Max tocaram no chão e elecomeçou a correr, virando à direita na bifurcação e avançando rapida-mente pelo caminho íngreme que assinalara no mapa. Cooper seguiu--o, não parecendo muito preocupado por o adversário se estar a afastarusando a Amplificação. Ignorando Cooper, pelo menos durante algunsinstantes, Max concentrou-se no cume acobreado para onde se dirigia,correndo pela encosta da montanha e saindo do matagal.

Foram precisos dez minutos a correr rapidamente para Max verum galhardete branco a oscilar ao vento, num pico de pedras aguça-das. Ao memorizar a localização do galhardete, não conseguiu resistire sorriu. Mais dez minutos a este ritmo e venceria.

Porém, ao correr, a sua respiração tornou-se cada vez mais custosa;à medida que o ar se tornava dolorosamente rarefeito, inspirar eraquase impossível. Olhando rapidamente para trás, Max viu queCooper estava a menos de cem metros, aproximando-se e correndo aum ritmo regular. Max cuspiu para o chão e acelerou o passo, tossindoao avançar pela colina.

O galhardete estava perto, mas a dor e as tonturas que sentia eramquase impossíveis de aguentar. Brilharam pequenos grãos de luz diantedos seus olhos; a boca parecia-lhe estar cheia de areia quente. Tro-peçando numa pedra, caiu, raspando o joelho e largando a faca. Assimque se conseguiu levantar, viu uma forma difusa a aproximar-se.

Cooper estava a menos de dez metros dele, a bota preta e robustado Agente pisando firmemente a faca que ele deixara cair.

Cooper olhava fixamente para Max. O seu peito subia e descia,seguindo o ritmo lento da sua respiração; o Agente olhou então rapida-mente para a marca vermelha do uniforme do seu adversário: um alvocosturado exactamente onde o coração de Max se encontrava. Um golpena marca era considerado uma morte e o exercício terminaria imedia-tamente.

13

Page 4: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— Desistes? — perguntou Cooper, falando com a sua pronúnciado leste de Londres.

Max parou um instante, agachando-se ligeiramente e assumindouma postura defensiva, enquanto pensava na oferta de Cooper.

No preciso momento em que ele decidiu o que fazer, o Agente reagiutão rapidamente, que parecia ter lido a sua mente. Antes que se tivessesequer mexido, Cooper arremessou a faca fina e preta com um golpe depulso em direcção à marca que Max tinha na camisola.

A faca rasgou o ar avançando rápida e certeiramente. Com umgolpe quase imperceptível da mão, Max deu uma palmada na arma,afastando-a e sentindo imediatamente a dor que a lâmina romba lhecausou, ao lhe golpear a palma da mão. Saltando para a frente, Maxpontapeou o joelho de Cooper, obrigando o homem alto a recuar. Afas-tando os dedos, a faca de Max voou-lhe obedientemente para a mão.Ele atacou então, movendo-se com uma série vertiginosa de simula-ções subtis e ataques rápidos.

A fúria fervia dentro dele. Como se atrevem a enviar o Cooper! Coopernão era aluno de Rowan; era um assassino solitário que perseguia oInimigo, seguindo as ordens dos seus superiores. Hoje, recebera ordenspara caçar Max, algo certamente feito para que este não perdesse ahumildade, depois de uma série de vitórias fáceis. Max desferiu golpesseguindo um ritmo frenético e imprudente. Arrancaria a marca dacamisola do Agente e esta seria o seu troféu, podendo depois ir buscaro galhardete sem se preocupar.

Porém, ao contrário dos anteriores adversários de Max, Coopernão se deixava intimidar pela velocidade e agressividade únicas deste.O Agente ultrapassara a surpresa inicial e já estava novamente na posseda sua faca. Dançaram então os dois, para trás e para diante, Coopercomo uma miragem desorientadora de aço e fumo devido à capa desombras que o rodeava. Não tardou a que Max tivesse de semicerraros olhos para o ver: uma silhueta negra num pano de fundo cinzento--escuro. Naquelas circunstâncias, era difícil a Max perceber em quemão o Agente tinha a arma ou sequer quando atacava. À medida queas sombras se adensavam, a lâmina reluzente da faca parecia umaespécie de fogo-fátuo oscilante e traiçoeiro, pois por vezes desaparecia,golpeando depois certeira e rapidamente. Max tentou antecipar osataques, mas estes não seguiam qualquer padrão; foi então obrigadoa usar apenas os reflexos.

14

Page 5: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

O ar moveu-se atrás de Max, que bloqueou o golpe e tentou agarraro punho da faca, mas Cooper recuou e o contra-ataque de Max falhou,acertando no vazio. Este ficou furioso. Novos ataques com a faca: trêspunhaladas, mais rápidas do que jabs de um pugilista, apontadas aopeito de Max. Apesar de conseguir bloquear e afastar a mão de Cooper,Max não foi capaz de desferir mais do que dois golpes em arco deses-perados, antes de o Agente estar fora do seu alcance.

— Não se esconda! — gritou Max, frustrado.Não houve resposta. A escuridão rodeava-o, espessa como sopa de

ervilha.Por fim, Cooper cometeu um erro. Max ouviu um movimento

repentino atrás de si. Virando-se, viu a lâmina reluzente a desferir umarco baixo em direcção ao seu torso. Rápido como uma serpente, Maxapontou a faca para baixo e defendeu o golpe com o guarda-mão.Cooper parou, desequilibrado e ao alcance do adversário, que conse-guiu vislumbrar a marca vermelha no peito do Agente.

Porém, ao desferir o golpe, Max sentiu o peso do Agente a mover--se e a mão deste prendeu-lhe o cotovelo. Usando a força e velocidadedo golpe de Max, Cooper arremessou-o para o chão e deslizou ileso,rápido e fluido como uma enguia. Caindo pesadamente com o traseirono chão, Max sentiu subitamente algo aguçado a pressionar-lhe opeito. A voz de Cooper rompeu o silêncio.

— Pára.A ordem foi dada de forma definitiva, concisa e calma. As sombras escuras esfarraparam-se e dissolveram-se no vento.

Quando se haviam dispersado completamente, Max viu que Cooperrecuara e estava a cerca de vinte metros dele. O Agente limitou-se aolhar para ele em silêncio, durante alguns instantes. Aparentementesatisfeito com o resultado do combate, tocou num pequeno receptor quetinha na orelha.

— Daqui Cooper — disse ele, sem tirar os olhos de Max. — Estoucom ele agora. Terminámos. O resultado foi... o esperado.

Max viu que Cooper ouvira pacientemente a resposta. O Agentedesligou o receptor e aproximou-se de Max.

— Temos de regressar — ordenou ele. Max levantou-se e virou o rosto para olhar para o galhardete branco

que flutuava ao sabor do vento, um pouco mais acima.— Desiste — disse Cooper. — Venci.

15

Page 6: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

Max seguiu o indicador do Agente, que num gesto descontraídoapontava para o seu peito. No centro da marca, brilhava um borrãode óleo de fósforo.

— Tem a certeza? — perguntou Max, olhando iradamente para oAgente, antes de começar a tossir com violência.

Cooper olhou para o próprio peito, onde a marca de uma punhaladabrilhava no alvo vermelho da sua camisola. Uma dúzia de cortes fosfo-rescentes eram também visíveis no peito e braços do Agente.

Ele olhou para os golpes de Max com uma expressão séria. Tocouno receptor.

— Correcção. O resultado foi inesperado. Os dois participantesforam eliminados.

Cooper retirou o receptor da orelha.— Com quem falava? — perguntou Max.— Com a directora Richter — respondeu Cooper. — Temos de

chegar à Manse antes do meio-dia.Max soltou um pequeno queixume, mas Cooper não cedeu.— Devias estar feliz pela oportunidade de correr — criticou o

Agente, enquanto o via apertar os sapatos. — Estás em péssima forma. — Mais ninguém é perseguido pela encosta acima por Agentes —

resmungou Max, sentindo-se exausto e zangado.— Estás a ficar sem opções — respondeu Cooper estoicamente.

— Os alunos mais velhos fizeram queixa. Recusam-se a treinar con-tigo... acham que os resultados dos treinos estão a prejudicar as suascandidaturas. De hoje em diante, treinas contra Agentes ou contraMísticos.

Max pensou no aluno do sexto ano que perseguira no início dasemana e na forma como este tinha saído furiosamente do Refúgio,depois de ter sido rapidamente derrotado.

— Prometo não os derrotar tão depressa — disse Max com um sor-riso travesso. — Deixo-os ter melhores resultados.

O semblante de Cooper ficou carregado.— Nem pensar. Tens muito em que melhorar. Estás contente com

a manchinha amarela que fizeste, não estás? — Sim, um bocado — admitiu Max, corando e olhando envergo-

nhadamente para os sapatos. Cooper enumerou os erros de Max pronunciando as palavras de

forma clara, firme e breve.

16

Page 7: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— Podia ter-me aproximado do teu esconderijo vindo de qual-quer direcção. Um canto de pássaro permitiu-me aproximar-me eficar a menos de dez metros de ti. Os teus espectros são básicos e in-fantis...

— Já percebi... — interrompeu Max, sentindo-se corar ainda maisde vergonha.

— Não — contra-argumentou Cooper, baixando-se para olhar paraMax nos olhos. — Não percebeste. Se isto fosse uma situação real, nãoterias uma mancha amarela no peito. Estarias a atravessar o rio antessequer de me veres.

Max não respondeu.— E há mais — disse Cooper, embainhando a faca e virando o

rosto tenso e assustador para Max. — O teu autocontrolo é atroz... astuas emoções traem as tuas intenções. Um adversário bem treinadosaberá o que estás a planear fazer antes de tu próprio o saberes. Errofatal.

Max franziu o sobrolho e engoliu a resposta que queria dar.Virando-se, Cooper começou a correr.

Quando chegaram à clareira do Refúgio, o Sol já se via muito acimadas dunas, a oeste. A erva alta da clareira ondulava e oscilava ao saborda brisa, ponteada aqui e ali por montes de flores silvestres e pilaresaltos de pedras batidas pelo sol. Ao longe, algumas dúzias de figuraseram visíveis a caminharem nervosamente à sombra azulada da CabanaQuente.

— Podemos ir ver o que os alunos do primeiro ano estão a fa-zer? — perguntou Max, puxando a camisola preta de Cooper, queestava ensopada de suor.

O Agente acenou negativamente em resposta quando passaram porNolan, o caseiro principal de Rowan, que levava YaYa para o alpen-dre. Max sorriu quando os alunos do primeiro ano bateram em retiradasubitamente, fugindo da criatura. Estivera na mesma situação há umano, assustando-se ao ver a leoa negra, que era do tamanho de umrinoceronte, a deitar-se no alpendre.

Nolan cumprimentou Max e Cooper com um aceno, quando estespassaram pelo grupo.

— Ouvi dizer que iam passar por aqui. Estão os dois inteiros? —perguntou ele na sua característica pronúncia arrastada, os olhos azul--claros a brilharem de bom humor.

17

Page 8: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

Para reforçar a pergunta, bateu com as mãos enluvadas uma naoutra, fazendo com que pequenos pedaços de palha voassem do courodas luvas.

Cooper limitou-se a assentir com um aceno, ignorando os olharesfixos e curiosos e os sussurros dos alunos.

— Minha nossa — comentou Nolan, olhando demorada e intriga-damente para a mancha amarela que cobria a marca da camisolade Cooper. — Turma, apresento-vos o Cooper e o Max McDaniels.O Max está no segundo ano... — começou ele, mas piscou subi-tamente os olhos, o sorriso desaparecendo-lhe dos lábios. — Agoraque penso nisso — continuou —, alguns já conhecem o Max.

Ouviram-se alguns sons de surpesa quando um grupo de alunos serecordou de quem era o colega. Na Primavera passada, Max salvaraalguns deles de um destino terrível, resgatando-os da cripta de MarleyAugur. Max acenou, cumprimentando-os, ansioso agora por continuara andar.

— A directora está à espera — explicou Cooper, tocando leve-mente nas costas de Max para que este não parasse.

— Eu sei — respondeu Nolan gravemente. — Ainda bem queestás aqui para fazer isto, Cooper. Não a deixes aproximar-se muitodo nosso rapaz, OK?

Cooper assentiu com um aceno, mas continuou a andar rapida-mente. Max resistiu ao ímpeto de fazer as perguntas que queria atéterem fechado a porta grossa e coberta de musgo.

— De que estava Nolan a falar? — perguntou ele cautelosamente.— Quem é que não deve aproximar-se demasiado de mim?

Cooper seguiu o voo de uma borboleta vermelha, enquanto o sinodo Velho Tom repicava, batendo as onze horas.

— Uma feiticeira — balbuciou ele. — Chegou a Rowan antes deamanhecer.

A Mãe, decididamente, não estava muito impressionada com afeiticeira. A bruxa baixa e de pele parda soltou uma interjeição de des-prezo quando Max lhe disse o que ouvira e continuou a enfiar a pontaafiada e comprida da unha no peru que limpava, arrancando-lhe asentranhas com um movimento feroz.

— É isto que a Mãe faz às feiticeiras! — exclamou ela de formaimpressionante, brandindo os órgãos na mão fechada e atirando-os

18

Page 9: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

para um tacho. Bob, que estava a cortar cenouras às rodelas com umalenta precisão, suspirou.

— A directora acha que isto é importante — comentou Bob, nasua voz trovejante de barítono.

— Oh, «a directora acha que isto é importante» — desdenhou aMãe, troçando do sotaque russo do ogre enorme, enquanto agarravaa infeliz ave com toda a força. Pousando o peru na cabeça, pegou numavassoura que estava à mão e balançou-a diante do nariz do ogre.— O Bob, que é grande e forte, está com medo das feiticeiras? — per-guntou ela, soltando uma risada. — Está com vontade de se esconder?Está com vontade de fazer chichi de medo?

A Mãe começou então a dançar em pequenos círculos, o peru aabanar embriagadamente em cima da sua cabeça, enquanto ela rodo-piava a vassoura como uma dançarina.

— Chichi, chichi, chichi, chichi...Max acabou de comer a torrada e acenou ao companheiro de

quarto, David Menlo, que estava à porta a olhar calmamente para acozinha. A Mãe, cheirando o ar, parou abruptamente de dançar.Guinchando, rodou rapidamente para olhar para David, os seus olhosarregalados de medo. A bruxa tremia sempre que via o rapaz louroe baixo, desde a tentativa falhada, no Dia das Bruxas do ano anterior,de o subjugar e comer.

— Olá, Mãe — disse David. — Olá — balbuciou a Mãe, os seus olhos de crocodilo a percor-

rerem freneticamente o arco acima de David. — Mãe, tem um peru na cabeça.— Obrigada — resmungou a bruxa, retirando a ave agora amas-

sada e colocando-a delicadamente no tabuleiro para assar. — Se medão licença...

E, com estas palavras, correu para o armário, deixando a vassouracair ruidosamente no chão. Enfiando-se a custo, por causa do seuamplo traseiro, fechou a porta. Uma tigela cheia de açúcar estremeceuna prateleira onde estava e caiu, despedaçando-se e salpicando pedaçosde vidro e açúcar pelo chão.

— Desculpe — disse David, baixando-se para ajudar Bob a varrer.— A culpa não é tua — sussurrou o ogre, revirando os olhos.

— A Mãe tem-se portado terrivelmente; pior do que o costume. Achoque a culpa é das cartas. Está sempre a lê-las — explicou o ogre, apon-

19

Page 10: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

tando com o seu dedo comprido e rude para uma pequena pilha decartas, que estava ao lado da tábua de cozinha da Mãe.

Max pegou numa destas e leu o sobrescrito, que estava escrito amaiúsculas:

SR.A BEA SHROPEACADEMIA DE ROWAN EUA

— Quem é a Bea Shrope? — perguntou Max, contorcendo o narizao pegar no envelope, pois este cheirava a couve.

Um grito horrendo soou, vindo do interior do armário. A portapequena e amarela foi escancarada e a Mãe saiu disparada deste, arran-cando a carta das mãos de Max e protegendo a pilha de envelopesencostando-os ao peito.

— Ninguém! A Bea Shrope não é ninguém! Não existe! — gritoua Mãe, resfolgando, agarrando firmemente as cartas e tentando passaro traseiro amplo pela porta do armário. — Vai lá ter com a tua feiti-ceira e não te metas nos assuntos da Mãe! — exclamou ela sonoramente,batendo com a porta para rematar.

— Bem, foi divertido — disse David —, mas o Cooper está à nossaespera. Era suposto tomares um duche, já agora.

— Estava com fome — protestou Max, olhando demoradamentepara um prato de bacon estaladiço.

David limitou-se a cantarolar e afastou-se, subindo a escada emcaracol da Manse.

— Que foi? — perguntou Max, seguindo o companheiro de quar-to. — Experimenta tu passar a noite em branco com o Cooper atrásde ti, sem nada para comer!

Cooper estava à espera deles no átrio. Escoltou os dois rapazes atéao último andar da Manse, levando-os por um corredor desconhecidoe caminhando rapidamente, enquanto passavam por retratos decoradoscom molduras douradas e várias máscaras africanas, até chegaremfinalmente a uma porta escura de madeira encerada.

— A feiticeira está lá dentro — disse Cooper calmamente. — Nãolhe é permitido ficar a menos de dez metros de vocês. Ela sabe disso.Vou sentar-me na cadeira mais próxima dela... vocês sentam-se ao ladoda directora.

20

Page 11: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— Cooper — sussurrou David —, isto parece ser perigoso. Tem acerteza de que devemos entrar?

A Max pareceu que as feições duras de Cooper se suavizaramdurante alguns segundos. O Agente ajoelhou-se e olhou David nosolhos.

— Vai correr tudo bem — disse ele com uma certeza calma.— Não vos vai acontecer nada, está bem?

Cooper deu depois uma palmada amigável no ombro de David,mostrando-lhes uma faca de lâmina ondeada, feita de um metal enfer-rujado e avermelhado. Max nunca a vira. A arma exsudava uma auranociva; a lâmina descolorida sugeria uma história repugnante. O ins-tinto de Max dizia-lhe para se afastar da faca, mas David estavacompletamente aterrado.

— Vai correr tudo bem, David — sussurrou Max, apoiando ocolega, cujas pernas pareciam estar prestes a ceder.

David sorriu debilmente, mas voltou a olhar para a faca quandoCooper a embainhou sob a manga.

— Vamos lá ver o que a feiticeira velha quer — disse Cooper, baten-do levemente à porta.

Esta abriu para dentro e Cooper conduziu os rapazes para umasala escura e sem janelas, cujo tecto era sustentado por arcos demadeira esculpidos; a única luz provinha de candeeiros a petróleo quebrilhavam com uma aura dourada e quente que banhava os presentes.A directora Richter estava sentada à cabeceira de uma mesa de granitoem cujo tampo estava gravado o selo de Rowan; em cima desta, haviataças de cristal e uma licoreira com vinho tinto. A professora Kraken,a catedrática de Mística, curvada e antipática, estava à direita dadirectora: Max cumprimentou os presentes, mas concentrou-se rapi-damente na coisa estranha e encarquilhada que olhava atentamentepara ele, do canto mais afastado da mesa.

— Max, David — disse a directora Richter —, desculpem a luzser tão ténue; a nossa convidada sente-se mais confortável neste tipode ambientes. Permitam-me que vos apresente a Dama Mala.

A feiticeira sorriu e fez uma vénia. À luz difusa, a sua pele pare-ceu-lhes primeiro estar coberta por cicatrizes, como a de Cooper,mas Max rapidamente se apercebeu de que estava a olhar não paracicatrizes mas sim para tatuagens. Todas as partes visíveis do seucorpo — o rosto, as orelhas, a parte de cima dos dedos — estavam

21

Page 12: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

cobertas por pequenos hieróglifos e símbolos dispostos em formas epadrões ordenados, que desapareciam no interior da sua túnica sim-ples e preta. O seu cabelo branco e entrançado era fino como papiroe o seu rosto enrugado exprimia um ar de educada expectativa,enquanto a feiticeira bebia um pequeno gole de vinho. Os seus olhosverde-claros focaram-se imediatamente em Cooper quando este sesentou ao seu lado, demorando-se na manga do Agente. Porém, o sor-riso não lhe abandonou os lábios e a feiticeira concentrou-se rapida-mente em Max e David, que se sentavam agora ao lado da directoraRichter.

— A Dama Mala é uma das nossas parentes do Leste — explicoua directora Richter, afastando o cabelo grisalho da fronte com a mão.— Há séculos que não falávamos com as feiticeiras, mas elas são velhasamigas e sentimo-nos honrados com esta visita.

A feiticeira levantou o copo num brinde de gratidão.— Sim — continuou a directora Richter, esboçando um curto sor-

riso em resposta. — David, Max, a chegada da Dama Mala foi muitoinesperada. Ao que parece, o nosso amigo Peter Varga, numa das suasviagens, decidiu pedir ajuda às bruxas para encontrar as crianças queforam raptadas no ano passado. Falou-lhes de vocês e... a nossa hós-pede decidiu visitar-nos, para nossa grande surpresa e prazer. Talvezagora que estamos todos aqui, ela tenha a bondade de nos explicar oobjectivo da sua visita.

A Dama Mala sorriu, mostrando os seus dentes pequenos e ama-relos, que tinham sido afiados até se tornarem pontiagudos. Quandose levantou e fez uma nova vénia, colares de pedras semipreciosas tilin-taram e estalaram.

— É muito amável, directora — disse ela numa voz rouca de so-prano. — E eu também gostaria de saudar, em nome das minhasirmãs, os nossos irmãos e irmãs que atravessaram o mar há tantotempo. É justo que os jovens sejam as faúlhas que reacenderão a velhaamizade que há entre nós e que nos ajudem a ultrapassar as nossasdiferenças. Há muito que esperamos para ver estes dois.

— Directora Richter... — sussurrou Max. A directora ergueu o indicador, pedindo-lhe que ficasse em

silêncio. A feiticeira olhou rapidamente para Max, focando nele os seusolhos verdes e penetrantes.

— Qual das Crianças Abençoadas é esta? — perguntou ela.

22

Page 13: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— Dama Mala, este é Max McDaniels. É...— O Cão — completou reverentemente a feiticeira, arregalan-

do os olhos e aproximando-se de Max. Cooper mexeu-se ligeiramentena cadeira. — Perdoem-me, pois só agora os meus velhos olhosvêem a luz que brilha na sua fronte. Rath dé ort, Cúchulain. Saol fadachugat.

Max remexeu-se desconfortavelmente na cadeira quando a feiticeiratocou com a fronte na mesa, voltando depois a sentar-se. Antes decontinuar, ela fez um gesto rápido.

— Agora que Astaroth percorre novamente o nosso mundo, agrande Escola de Rowan precisará desesperadamente do seu Cão. Parahonrar as nossas antigas alianças, as minhas irmãs disseram-me paraexigir apenas metade daquilo a que temos direito. O Cão de Rowanpode ficar aqui, convosco. As feiticeiras exigem apenas o jovem Feiti-ceiro, tão dotado nas nossas artes.

— De que raio está a falar? — interrompeu a Sr.ª Kraken em tomsevero, olhando fixamente para a Dama Mala. — Quem pensam asfeiticeiras que são, para virem a Rowan exigir o que quer que seja,muito menos um dos nossos alunos? Valha-me Deus!

— Annika — disse a directora Richter, num tom de aviso.A professora Kraken ferveu de fúria, parecendo estar prestes a

explodir, mas engoliu o comentário que tinha na ponta da língua.Dama Mala parecia estar confusa.

— Disse alguma coisa que vos tenha ofendido? — perguntou afeiticeira, olhando rapidamente para os rostos dos presentes.

— Dama Mala, perdoe a nossa ignorância — disse a directoraRichter —, mas diga-nos exactamente aquilo que pretende. Certa-mente não acha que levará David Menlo...

A feiticeira assentiu com um aceno e sorriu, olhando para David,que soltou um queixume rouco e se afundou na cadeira.

— O que a leva a pensar que permitiríamos tal coisa? — pergun-tou a directora Richter calmamente.

— O facto de termos direito a fazê-lo — respondeu a Dama Mala,o sorriso dando lugar a uma expressão de furiosa indignação.

David estava atónito, afundando-se ainda mais, até só se verem osseus olhos acima do tampo da mesa.

— Directora Richter — disse Max furiosamente mas sem levan-tar a voz —, não vai deixar... esta feiticeira levar o David, pois não?

23

Page 14: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— Claro que não — respondeu a directora Richter, olhando firme-mente para ele. — Que direito reclamam as feiticeiras para fazeremuma exigência tão absurda?

A Dama Mala franziu o sobrolho, enquanto passava a unha afiadapelo selo de Rowan.

— A nossa exigência não tem nada de absurdo — respondeu elalentamente, os seus olhos brilhando. — E esperámos quase quatro-centos anos para a fazer. Talvez a vossa memória já não seja o que era,mas até as mais jovens das feiticeiras sabem o que é o Juramento deBram e a ocultação do Livro das Origens.

— O Livro das Origens — repetiu a directora Richter, esforçando--se por recordar algo. — Refere-se ao Livro de Tot?

— Refiro — confirmou a feiticeira. — Diz-se que o próprio Asta-roth quer o livro, que há muito estuda a forma de decifrar os segredosque lhe permitirão usar o livro. Bram levou o códice perigoso e escon-deu-o onde o Demónio não o podia alcançar.

A directora Richter franziu o sobrolho e olhou para a professoraKraken.

— Isso é impossível — desdenhou a professora, abanando deci-didamente a cabeça. — O livro foi destruído há milhares de anos.

— Não foi destruído — sussurrou a feiticeira. — Há quinhentosanos, as feiticeiras retiraram-no do túmulo do príncipe Neferkaptah,substituindo-o por uma falsa relíquia. Em vão tentámos decifrar osseus segredos. Porém, a nossa façanha tornou-se conhecida no mundoe o tesouro acabou por atrair vários interessados. Os mensageiros deAstaroth procuraram-nos nas montanhas; foi-nos prometida umagrandiosa recompensa em troca do livro ou do seu paradeiro. Pesámostodas as ofertas, pois, afinal de contas, eram generosas e não conseguí-ramos decifrar o livro. Mas Bram também nos visitou e foi a sua pro-posta que aceitámos.

Max pensou em Elias Bram, o último Ascendente, que faleceradurante o Cerco a Solas, lutando para que alguns sobreviventes pudessemfugir a bordo do Kestrel. Apesar de Bram ser idolatrado em Rowan, otom que a Dama Mala usara deixara Max profundamente abatido.Virando-se para David, viu que os olhos do amigo estavam agora ausentese desfocados, algo que acontecia quando ele pensava profundamente.

— E que oferta fez Bram? — perguntou a directora Richter, numavoz calma e séria.

24

Page 15: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

A feiticeira olhou directamente para a directora Richter, semicer-rando os olhos e tocando na mesa com o dedo, para enfatizar o quedizia.

— Que qualquer criança que fosse abençoada com a Magia Antigapoderia ser entregue às feiticeiras, para que estas cuidassem dela e aeducassem. Podemos exigir três e o contrato foi escrito. Tenho duasdessas crianças diante de mim e ainda assim só vos peço o jovem Fei-ticeiro. Permita-me que lhe diga, directora, que deveriam sentir-segratos pela nossa generosidade. Reconhecemos o facto de que nãofoi a directora que fez este pacto e que lhe deve ser difícil despedir--se de um aluno tão inteligente. Porém, por agora, levamos apenasum, como prova do respeito que sentimos por Rowan... Aconselho-aa não nos obrigar a reconsiderar.

— Directora Richter... — sussurrou Max, não parecendo acredi-tar na longa pausa que se seguiu às palavras da feiticeira. — Não estáa pensar na oferta que ela fez, pois não? Não a vai deixar levar oDavid?

A directora Richter olhou severamente para Max, antes de voltara olhar para a Dama Mala.

— Claro que não — respondeu ela. — Teriam de ser apresentadasmuitas provas antes de atribuirmos sequer um grão de verdade a estaexigência; quanto mais até a honrarmos. Desconheço completamenteo pacto a que a Dama Mala se refere... e tu, Annika?

— Nos muitos anos que passei a estudar os documentos dos Arqui-vos, nunca deparei com uma única referência a tal pacto — respon-deu a professora Kraken com orgulho. — Pensar sequer que Bramnegociaria usando crianças como moeda de troca é absurdo... violatudo o que ele defendia! Trocar crianças por livros! Disparate! Ondeestá o Livro das Origens, pelo qual, supostamente, vendemos o nossofuturo?

— Não sabemos — respondeu a Dama Mala com uma fria cal-ma. — Cabia a Bram preocupar-se com o destino do livro, não a nós.A nós cabe-nos exigir o cumprimento e o pagamento do nosso con-trato.

— E se recusarmos? — perguntou a directora Richter.— Não o farão — respondeu a Dama Mala. — Recusar é garan-

tir a queda de Rowan. Astaroth está entre nós, directora Richter...os esforços e a vigilância de Rowan falharam e decepcionaram-nos e

25

Page 16: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

o próprio céu mostra-nos que o Demónio voltou. Rowan precisa dosseus velhos aliados para sobreviver à tempestade que se avizinha. Nãoé hora de sucumbir a um orgulho tonto.

A directora Richter levantou-se e cruzou os braços.— Não me parece que seja orgulho idiota, Dama Mala, lembrar-

-lhe que a sobrevivência da sua irmandade tem sido garantida pelosesforços e vigilância que critica. Graças à nossa bondade, as feiticeirastêm vivido escondidas e longe das cidades e das máquinas, sendo-lhespermitido ter uma vida afastada dos inventos e avanços modernos.Estas cortesias podem terminar. Se as feiticeiras decidirem ameaçarRowan ou os seus interesses, prometo-lhe um desfecho tão rápido esevero que até as mais pessimistas das feiticeiras ficarão chocadas.

O rosto da feiticeira contorceu-se em silenciosa fúria. Esta abriua boca para responder, fechando-a pouco depois e olhando bre-vemente para Cooper, que estava imóvel na cadeira e lhe devolveuo olhar com uma calma imperturbada. Ouviu-se o tiquetaque dosponteiros de um relógio pequeno, durante longos segundos. A divi-são estava insuportavelmente silenciosa; a ameaça de violência pai-rava no ar.

— É lamentável que escolha falar assim diante destes jovens —disse finalmente a Dama Mala, juntando as mãos e exalando profunda-mente. — Sei muito bem que tem muitos soldados e muitas armas àsua disposição, directora. Não nos vangloriamos de poder travar umaguerra aberta com Rowan; na verdade, é a última coisa que queremos.É a directora que ameaça, não nós; queremos apenas que honre o quefoi prometido. Tenho de a avisar, directora, que recusar a nossa exi-gência justa é violar os termos do Juramento de Bram e fará com queuma maldição se abata sobre vós, arruinando esta escola e todosque nela vivem. O pacto foi selado com Magia Antiga... assinado como sangue do próprio Bram e é irrefutável.

— Se foi escrito com o sangue de Bram, certamente têm o do-cumento — respondeu a directora Richter friamente. — Quero veresse documento e quem quer que seja que realmente representa asfeiticeiras. Essa pessoa não é você, Dama Mala... você foi meramenteenviada para entregar uma mensagem e o seu dever está cumprido.Está na hora de voltar para casa.

A Dama Mala bebeu o resto do vinho que tinha na taça e levan-tou-se.

26

Page 17: 1 A FEITICEIRA - fnac-static.com · O canto agudo de uma ave quebrou o silêncio matinal. Algo se aproximava. A pulsação de Max acelerou. Olhou então rapidamente para a encosta

— A directora é a minha anfitriã e pediu-me que me retire. Irei.Mas as minhas irmãs virão, directora, e trarão todas as provas queexigiu. E, quando partirem, estas Crianças Abençoadas, ambas, irãocom elas.

— Enquanto eu for directora, nunca — respondeu Richter calma-mente, pedindo a Cooper com um gesto que acompanhasse a feiticeiravelha à saída.

Esta parou diante da porta; o seu rosto feroz parecia ter sidocopiado de uma das máscaras esculpidas que estavam penduradas nasparedes do corredor. Olhando para a directora Richter, rasgou-se-lheum sorriso de quem sabia um segredo.

— Os directores são substituíveis, directora Richter, algo que osseus antecessores sabiam muito bem. Talvez deva saber que PeterVarga não é o único filho de Rowan que atravessou as montanhaspara nos pedir ajuda — disse ela, olhando depois para Max e David.— Esperem-nos dentro de um mês, meninos. Terão um novo lar.

Despedindo-se com uma vénia, saiu da divisão.

27