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1. A INVESTIGAÇÃO do Detetive 1.1. POR QUE uma edição dos sonetos de Pessoa? – Quais os maiores sonetistas Portugueses? Tão logo formulei a pergunta acima, minha orientadora respondeu sem hesitar: Camões, Bocage, Antero – ao que repliquei: e Fernando Pessoa? Ela treplicou: Pes- soa não tem muitos sonetos, logo não pode estar à mesma altura. Pusemo-nos, pois, a contar, esperando encontrar uns cinqüenta sonetos... Ao passar dos duzentos, foi necessário criar um website para organizar o corpus dos sone- tos pessoanos, escritos em Português, Inglês... e um até mesmo em Francês. Em termos pessoais, espero que esta tese dê a Fernando Pessoa uma vaga entre os grandes sonetistas Portugueses e, quiçá, do mundo. Em termos acadêmicos, este projeto justifica-se com cinco argumentos: 1) ARGUMENTO DO ESTUDO GLOBAL: ainda não foi feito um estudo crítico dos sonetos pessoanos em sua totalidade, muitos dos quais só foram editados recentemente (2005 e 2006) e sem aparato crítico e/ou questionamento aprofundado sobre atribuição heteronímica; 2) ARGUMENTO DO ESTUDO INDIVIDUAL: além da inexistência desse estudo geral dos sonetos de Pessoa, muito pouco foi escrito sobre estes sonetos indi- vidualmente; relativamente mais se escreveu sobre os sonetos ingleses do que sobre os portugueses; este projeto visa a enfocar não só o todo dos sonetos pessoanos, como também a leitura crítica de cada um deles como signos individuais; 3) ARGUMENTO DO POLIGLOTISMO COMO DESLOCAMENTO: também não foi feita uma comparação geral entre os sonetos pessoanos portugueses

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1. A INVESTIGAÇÃO do Detetive

1.1. POR QUE uma edição dos sonetos de Pessoa?

– Quais os maiores sonetistas Portugueses?

Tão logo formulei a pergunta acima, minha orientadora respondeu sem hesitar:

Camões, Bocage, Antero – ao que repliquei: e Fernando Pessoa? Ela treplicou: Pes-

soa não tem muitos sonetos, logo não pode estar à mesma altura.

Pusemo-nos, pois, a contar, esperando encontrar uns cinqüenta sonetos... Ao

passar dos duzentos, foi necessário criar um website para organizar o corpus dos sone-

tos pessoanos, escritos em Português, Inglês... e um até mesmo em Francês. Em

termos pessoais, espero que esta tese dê a Fernando Pessoa uma vaga entre os grandes

sonetistas Portugueses e, quiçá, do mundo.

Em termos acadêmicos, este projeto justifica-se com cinco argumentos:

1) ARGUMENTO DO ESTUDO GLOBAL: ainda não foi feito um estudo

crítico dos sonetos pessoanos em sua totalidade, muitos dos quais só foram editados

recentemente (2005 e 2006) e sem aparato crítico e/ou questionamento aprofundado

sobre atribuição heteronímica;

2) ARGUMENTO DO ESTUDO INDIVIDUAL: além da inexistência desse

estudo geral dos sonetos de Pessoa, muito pouco foi escrito sobre estes sonetos indi-

vidualmente; relativamente mais se escreveu sobre os sonetos ingleses do que sobre

os portugueses; este projeto visa a enfocar não só o todo dos sonetos pessoanos,

como também a leitura crítica de cada um deles como signos individuais;

3) ARGUMENTO DO POLIGLOTISMO COMO DESLOCAMENTO:

também não foi feita uma comparação geral entre os sonetos pessoanos portugueses

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e os ingleses; dada a importância dos sonetos do ortônimo e de Alexander Search

dentro da obra pessoana em Inglês, uma tal comparação lançaria luz sobre o deslo-

camento de Pessoa como poeta entre as literaturas Inglesa e Portuguesa, permitindo-

lhe uma visão particular de seu(s) mundo(s) literário(s), a um tempo de dentro e de

fora;

4) ARGUMENTO DA PONTE ENTRE TRADIÇÃO E RUPTURA: muito

se fala das inovações de Pessoa como rupturas modernistas, mas pouco se estuda

sobre sua dívida com o passado, que se revela na freqüente escolha do soneto como

forma poética;

5) ARGUMENTO DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: uma edição dos so-

netos pessoanos seria fonte de pesquisa para futuros estudos da obra do poeta, que,

embora já seja de domínio público, diante da grande quantidade de inéditos e da difi-

culdade de sua fixação textual carece de edições críticas confiáveis e acessíveis.

Há uma dependência dos argumentos #2 a #5 em relação ao Primeiro – o

ARGUMENTO DO ESTUDO GLOBAL, que enraíza esta tese. Embrenhada nes-

se argumento, há a pergunta-motriz: por que estudar o soneto e não qualquer outra forma

poética em Pessoa, criador e recriador de tantas?

Decerto seria uma utilíssima conquista realizar o estudo de todas as formas poé-

ticas em Pessoa e calcular seus respectivos graus de representatividade em relação ao todo

da obra pessoana: conquista tão grande... quanto demasiada para este mero douto-

rando, ser freqüentemente pasmado ante as dezenas de milhares de manuscritos do

poeta. Entretanto, a pergunta sobre o porquê do soneto pode ser vista doutra maneira,

se mergulhamos no fascínio do soneto na História da Poesia. O que é um soneto?

Em carta-dedicatória de 1959 a Matilde Urrutia, o poeta chileno Pablo Neruda

define sonetos como “pequeñas casas de catorce tablas”; com estas meras casas de

catorze versos, Neruda ansiava capturar o brilho instantâneo dos olhos da amada: eis

o soneto como fotografia, desenho (grafia) da luz ou brilho (foto) dos olhos de Matilde.

Há mesmo uma semelhança material entre o soneto e a fotografia: considerando sua

brevidade formal (pequena casa), um soneto é uma forma poética que se pode fazer

caber no verso de uma fotografia tamanho-padrão, como a mensagem limitante de

um cartão postal.

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No Brasil, já cantavam Tom Jobim & Chico Buarque: “Vou colecionar mais

um soneto / outro retrato em branco e preto (...)” (Retrato em Branco e Preto, 1968).

Ora, tal como o soneto fotografa um instante, uma edição dos sonetos de Pessoa

pode ser vista, metalingüisticamente, como radiografia ou curta-metragem da obra do

poeta, tão pulverizada em línguas, heterônimos, dificuldades editoriais...

Guiemo-nos, pois, pela concisão que o soneto inspira.

À edição crítica geral fique o longa-metragem.

1.2. MAIS PERGUNTAS que respostas

COMO organizar uma edição dos sonetos de Pessoa? Como começar?

ONDE encontrar os manuscritos dos sonetos do poeta? Estarão eles espalha-

dos, como se poderia julgar à primeira vista, já que ninguém organizou ainda uma

edição dos sonetos? Será possível encontrar todas as peças para uma edição definiti-

va? Haverá inéditos? Será preciso visitar outros países em busca de testemunhos e

bibliografia? Que bibliotecas e livrarias visitarei? E onde?

QUANDO Pessoa escreveu sonetos? Quantos anos se passarão nesta pesqui-

sa? Descobrir esses dados temporais ajudará em algo?

QUEM sou eu para me aventurar neste projeto? Há algo em minha disserta-

ção de mestrado sobre a gramática de Pessoa que me possa servir de base? Quem

me pode ajudar? Como dividir meu trabalho e pesquisa entre Brasil, Portugal, Esta-

dos Unidos... e honrar as expectativas de minha orientadora e da banca?

COM QUANTO essa pesquisa será feita? Como pesar o meu esforço, a paci-

ência de minha família, o carinho de minha orientadora e a impagável ajuda de incon-

táveis anônimos?

E SE essa pesquisa mudar os estudos pessoanos? E se só ajudar a mim? Vale-

rá à pena?

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1.3. METODOLOGIA – onde tudo vale a pena...

1.3.1. OBJETOS DE ESTUDO: A Busca dos Testemunhos

As perguntas apresentadas acima são menos divagação e mais um índice desta

tese: responder-lhes com rigor é escrever este próprio texto ao qual convido os leito-

res. Perseguir a primeira pergunta – como começar? – revelou-se um trabalho investiga-

tivo que me faz lembrar as lições de Sherlock Holmes: o aspecto necessariamente

linear e cumulativo desta pesquisa foi-me tão empolgante e obsessivo quanto as de-

duções do detetive de Baker Street. Tentarei recriar momentos da investigação, a fim

de descrever e ilustrar minha metodologia.

Os primeiros manuscritos de sonetos de Pessoa que me chegaram às mãos fo-

ram os assinados por Álvaro de Campos – um presente de minha orientadora Prof.

Cleonice Berardinelli, que me deu acesso a um fichário com fotocópias preservadas,

após seu labor investigativo para a edição crítica da obra do heterônimo. Pude ler,

pois, a escrita original de 8 dos 17 sonetos que atribuo a Campos. Mais tarde eu en-

contraria datiloscritos dos 3 primeiros sonetos de Campos... e ainda busco as provas

dos 5 sonetos do ciclo Barrow-on-Furness (publicado pela Ática sem indicação do tes-

temunho). Por fim, já com mais de 100 páginas da tese escritas, encontrei o manus-

crito do soneto incompleto (e metalinguístico) “Estou ‘screvendo sonetos regulares”.

A FIGURA 1 mostra um dos testemunhos levantados pela Prof. Cleonice Be-

rardinelli para a edição crítica da poesia do heterônimo Álvaro de Campos.

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Figura 1 – Soneto Para Parecer Normal, publicado com o título “Ah, um soneto...” no nº 34 da revista Presença (Nov. 1931-Fev. 1932).

Tão interessante quanto ver pela primeira vez a escrita de Pessoa, foi notar, en-

tre as fotocópias guardadas pela Prof. Cleonice, uma pasta com poemas marcados

pela dúvida de atribuição “Campos?” Entre estes poemas duvidosos, estava o ma-

nuscrito de O Bibliófilo, cujo texto acabei por re-fixar e atribuir ao Pessoa ortônimo,

após longa discussão com minha orientadora (a apresentar mais tarde). O soneto O

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Bibliófilo, tal como o “Com teu gesto pintado e exagerado” (que também atribuo ao

ortônimo) e o supracitado “Estou escrevendo sonetos regulares” surgem no apêndice

que a Prof. Cleonice pôs à sua edição de Campos (BERARDINELLI, 1990: 357-

359). A pergunta que formulei: se mesmo na mais cuidadosa e apaixonada edição crítica feita

da obra de Pessoa há dúvidas sobre a fixação e a atribuição de textos, que se verá em edições menos

cautelosas?

Pus-me, então, a abrir todos os livros de Fernando Pessoa que pude encontrar,

a fim de listar os sonetos e apenas os sonetos, independentemente de heterônimo e/ou

idioma. Talvez este projeto não fosse necessário... Se edições confiáveis (especial-

mente críticas) já tivessem publicado todos os sonetos de Pessoa, um pesquisador

poderia limitar-se a analisar os sonetos como um nicho dentro da obra pessoana, e esta

pesquisa poderia ser muito mais poética que filológica: Sherlock Holmes talvez não

fosse imprescindível. No entanto, algumas edições críticas da Imprensa Nacional Casa

da Moeda (INCM) não incluíram os sonetos publicados em vida pelo poeta, nem

exauriram o manancial de inéditos de Pessoa – sem falar na possiblidade de leituras

divergentes que nem mesmo as edições críticas podem relegar.

A contagem dos sonetos logo chegou à primeira centena, e duas ordens de

problemas saltaram aos olhos:

1) como organizar esta crescente lista de poemas, e quais variáveis listar em

planilhas?

2) edições igualmente confiáveis apresentam leituras bastante distintas de um

mesmo soneto; como decidir qual a leitura mais acertada sem ir ao testemunho pri-

mordial de cada soneto?

A primeira pergunta foi respondida com uma proliferante tabela provisória: um

soneto por linha e colunas para ano, título, heterônimo, edição primeira, notas e cota;

cota, aqui, significa uma indicação numérica de onde encontrar o testemunho entre os

rolos de microfilme da obra pessoana disponíveis em duas bibliotecas no mundo: a

Biblioteca Nacional do Brasil (no Rio de Janeiro) e a Biblioteca Nacional de Portugal (em

Lisboa).

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A segunda pergunta merecia investigação. Começando por minha cidade natal,

fui com minha orientadora à Biblioteca do Rio de Janeiro. Eis que o labirinto de

Fernando Pessoa não está apenas nos heterônimos: os desafios burocráticos para

digitalizar os testemunhos dos sonetos (um drama à parte), não obstante a gentileza

de muitos funcionários, foi o menor dos problemas; passado um mês com boletos

bancários e telefonemas e permissões, conseguimos a primeira leva de digitalizações

oficiais dos sonetos de Pessoa.

Um grande problema surgiu: encontrar os manuscritos dos sonetos em meio a

mais de cem rolos de microfilme à moda antiga (microfilmes que devem ser lidos em

máquinas leitoras de microfilme); cada rolo de microfilme pode ter centenas de pági-

nas... Façamos as contas... É preciso um índice.

O problema dentro do problema é haver mais de um índice: ou três.

1) Há um índice dos rolos de microfilme no sistema computadorizado da Bi-

blioteca Nacional do Brasil, com uma numeração própria (e a Biblioteca não possui todos

os rolos);

2) Há um índice mimeografado (e incompleto) relacionando rolos de micro-

filme a certos temas da obra Pessoana, com preciosas anotações manuscritas de quais

cotas, aproximadamente, se encontram em cada rolo; com esse índice foi possível

eliminar rolos que teriam apenas prosa (por exemplo, os dedicados ao Livro do Desas-

sossego); no entanto, logo descobri falhas nestas indicações, sonetos em rolos inespe-

rados e testemunhos sem qualquer cota;

3) Por fim, há o meu próprio índice de cotas, anotadas dentre todas as edições

que pude encontrar com sonetos pessoanos; este seria o meu mapa para investigar

todos os rolos necessários dos sonetos de Pessoa; no entanto, também este mostrou-

se um índice falho, visto que descobri haver sonetos inéditos, os quais poderiam sur-

gir em qualquer rolo insuspeito de poesia.

Embora um tanto desnorteado, encontrei na Biblioteca Nacional do Brasil provas

de uma dezena de sonetos em Inglês e em Português – algumas gemas como o sone-

to incompleto Sonho de Górgias, do heterônimo Carlos Otto (FIGURA 2).

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Figura 2 – Sonho de Górgias, único fragmento de soneto do heterônimo Carlos Otto, publicado pela primeira vez por LOPES, 1990.

Nesse ínterim, a Biblioteca Nacional de Portugal disponibilizou na Internet versões

facsimiladas de 29 cadernos de Fernando Pessoa (escritos entre 1900 & 1934). In-

vestiguei todos, encontrando alguns dos primeiros sonetos do poeta. Foi a essa altu-

ra que a escolha do soneto para radiografar a obra de Pessoa se mostrou enormemente

vantajosa: em meio a centenas de páginas de múltiplas caligrafias e rasuras (algumas

pouquíssimo sóbrias), a forma do soneto salta aos olhos treinados; as “casas de catorze

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versos” impuseram-se-me – e, com as provas encontradas nos cadernos, acresci de

10 sonetos o corpus. A FIGURA 3 apresenta dois exemplos de sonetos encontrados

nestes cadernos.

Figura 3 – (esquerda) “Como te amo? Não sei de quantos modos vários” (também intitu-lado Antígona noutro testemunho), publicado pela primeira vez por BLANCO, 1985; (direita) Joseph Chamberlain, atribuído tanto a Charles Robert Anon quanto a Alexander Search, publicado pela primeira vez por FREIRE, 1995.

Levei cerca de um ano organizando os testemunhos até então achados, compa-

rando e contrastando provas e leituras de provas, finalmente entendendo que seria

preciso ir a Portugal levantar todos os manuscritos e datiloscritos possíveis; sem isto, a

parte interpretativa desta tese teria base deveras movediça.

Passei três semanas em Lisboa em fins de 2010, pesquisando, imprimindo, fo-

tografando, correndo, digitalizando, redigitalizando e catalogando testemunhos en-

contrados na Biblioteca Nacional de Portugal. No último dia de pesquisa, já mais que

satisfeito e com 99% de meu índice de cotas verificado, reconheci, por acaso ou des-

tino, num rolo de microfilme insuspeito, uma série de formas de soneto... Eis deze-

nas de sonetos em Inglês possivelmente inéditos: até este momento em que escrevo a

introdução da tese, não os encontrei publicados em parte alguma (FIGURA 4), e me

debato com a decisão de não incluí-los neste estudo, pois sua inclusão estenderia em

pelo menos um ano minha defesa de tese: algo ficará para o futuro...

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Figura 4 – “Were I to die even upon this day”, exemplo de manuscrito com soneto incom-pleto de Pessoa, provavelmente inédito.

Na Casa Fernando Pessoa, ainda em Lisboa, encontrei entre os trabalhos de Tere-

sa Rita Lopes (1990) facsímiles de O Palrador, jornal fictício editado pelo jovem Fer-

nando, estrelando heterônimos tais como o Dr. Pancrácio (FIGURA 5); esses facsí-

miles não estão microfilmados nas Bibliotecas que pesquisei.

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Figura 5 – (esquerda) Sonho, soneto do heterônimo Dr. Pancrácio, publicado pela primei-ra vez por LOPES, 1990; (direita) “Emissário de um rei desconhecido” (Passos da Cruz – XIII), publicado pela primeira vez na Revista Centauro, 1916.

Há, ainda, os sonetos sem testemunho manuscrito ou datiloscrito pelo poeta,

que no entanto foram publicados durante sua vida, tais como os Passos da Cruz publi-

cados na Revista Centauro em 1916. Encontrei a preciosa revista original na biblioteca

Hatcher Graduate da University of Michigan, em Ann Arbour, MI, EUA – e tomo-a como

testemunho válido (FIGURA 5).

Há também os sonetos que não foram publicados em vida do poeta e cujo tes-

temunho provavelmente se perdeu: eis o caso da guirlanda Barrow-on-Furnness, para a

qual a freqüentemente contestada edição da Ática (1942-1946) é o único testemunho.

Decerto há, por fim, os sonetos cujo testemunho simplesmente não pude en-

contrar... e os poemas (gemas ainda perdidas?) que porventura não pude reconhecer

entre os microfilmes.

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Ao todo, estudei 282 sonetos de Pessoa, 104 em Inglês, 177 em Português e 1

em Francês – ou 176,5 em Português e 1,5 em Francês, visto que há um soneto par-

cialmente em Português e parcialmente em Francês.

Dos 282 poemas estudados, 172 contavam com manuscritos, 57 com datilos-

critos, 32 com testemunhos mistos, 50 com os testemunhos de publicações feitas em

vida do poeta e 5 com a edição da Ática como único testemunho (somando-se estes

números, temos mais de 282, pois há poemas com mais de um testemunho).

[FIGURA 6: gráficos sobre idiomas e testemunhos dos sonetos estudados]

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1.3.2. DESAFIOS FILOLÓGICOS: A Decifração dos Testemunhos

1.3.2.1. FIXAÇÃO

Este capítulo não existiria se Pessoa tivesse publicado todos os seus sonetos

em vida – o que não é o caso; tampouco existiria se o poeta tivesse datilografado a

versão final de todos os seus manuscritos – o que também não é o caso, visto que

mesmo os datiloscritos pessoanos existentes costumam apresentar emendas manus-

critas de difícil decifração. Como a maioria dos sonetos de Pessoa consiste em pa-

péis de caligrafias rápidas e inconstantes, fixar seu texto em muito se parece com uma

investigação policial: pistas falsas, becos sem saída, informantes, sofismas, deduções.

Ora, por que não levantar todas as edições de Pessoa com sonetos e copiá-las

no que concerne aos poemas de 14 versos, compilando assim os sonetos de Pessoa?

A resposta a tal pergunta tem duas partes.

1) Ajuntar todos os sonetos já editados de Pessoa não necessariamente implica ob-

ter todos os sonetos de Pessoa; foi justamente levantando os sonetos publicados que

principiei minha investigação, vindo a descobrir que haveria inéditos; logo, fez-se

imperativo ir à fonte dos originais.

2) Também percebi que duas edições de um soneto de Pessoa não necessari-

amente apresentam o mesmo poema! Se isso parece uma surpresa à primeira vista,

imaginemos desafiar três leitores distintos a datilografar um texto com quase um sé-

culo de idade, manuscrito em papel de baixa qualidade e com caligrafia quase taqui-

gráfica. Qual o mais provável: estes três hipotéticos leitores fixariam o texto da

mesma maneira, ou teriam três leituras algo distintas?

Mesmo entre especialistas da obra pessoana – incluindo os realizadores das ex-

celentes edições críticas – o caso é justamente o segundo: leituras por vezes bastante

diversas têm sido feitas dos sonetos de Pessoa, e também por essa razão foi necessá-

rio voltar aos originais. Encontrando os originais, o próximo passo foi gerar um

website na Internet a fim de organizar as edições e os testemunhos de cada poema,

sem o que esta pesquisa seria inviável, ou levaria o triplo de tempo.

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Minha estratégia de leitura consistiu em tirar a máxima vantagem de uma posi-

ção privilegiada: como a maioria dos sonetos de Pessoa já foi editada ao menos uma

vez – em geral duas vezes –, sempre que possível justapus o testemunho primordial

(manuscrito ou datiloscrito) a duas edições independentes do poema em questão,

anotando as divergências na fixação do texto e decidindo, enfim, por uma ou outra

leitura – algumas vezes, por nenhuma delas.

A seguir, apresentarei exemplos dessa estratégia, mas antes de prosseguir é pre-

ciso dar voz a uma questão: tal estratégia de fixação do texto não faria desta tese um

trabalho mais próximo da Filologia que da Literatura?

Se os instrumentos de análise pertencem à Filologia (manipulação e organiza-

ção eficiente dos testemunhos), a seleção dos objetos de análise dentre o corpus pes-

soano e a fixação final dos textos são indissociáveis da Literatura: isso fica evidente

ao decidirmos fixar uma leitura em vez de outra, com base no conhecimento de al-

gum dado específico sobre o estilo pessoano. Segue um exemplo verídico...

O Bibliófilo O Bibliófilo Edição BERARDINELLI (1999) Edição SFD1 (2005)

Ó ambições!... Como eu quisera ser Um pobre bibliófilo parado Sobre o eterno fólio desdobrado E sem mais na consciência de viver. Podia a primavera enverdecer E eu sempre sobre o livro recurvado Sorriria a um arcaico pecado De uma medieval moça e qualquer. A vida não perdia nem ganhava Nada por mim, nenhum gesto meu dava Um gesto mais ao seu † profundo E eu lia, a testa contra a luz acesa, Sem nada querer ser como a beleza E sem nada ter sido como o mundo.

Ó ambições!... Como eu quisera ser Um pobre bibliófilo parado Sobre o eterno fólio desdobrado E sem mais na consciência de viver. Podia a primavera enverdecer E eu sempre sobre o livro recurvado Sorriria a um arcaico passado De uma medieval moça e qualquer. A vida não perdia nem ganhava Nada por mim, nenhum gesto meu dava Um gesto mais ao seu Amor profundo E eu lia, a testa contra a luz acesa, Sem nada querer ser como a beleza E sem nada ter sido como o mundo.

Álvaro de Campos?

29-12-1911 Fernando Pessoa

29-12-1911 O pesquisador talvez se depare com uma palavra no sétimo verso de um sone-

to, reconhecendo que tal palavra já foi lida por editores tanto como “pecado” quanto

como “passado” – e a decisão entre as possiblidades de leitura há de levar em consi-

deração o conhecimento literário do pesquisador (e não apenas sua habilidade filoló-

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gica). Entre o conhecimento literário do investigador poderia estar a percepção de

que uma leitura ou outra aproximaria o soneto do estilo de um ou outro heterônimo pessoa-

no (digamos que “pecado” estaria mais para Álvaro de Campos, e “passado”, mais

para Pessoa ortônimo). Ora, se o pesquisador soubesse que o soneto foi escrito an-

tes do surgimento de Campos em Pessoa, as informações fundamentalmente literárias

sobre a gênese e o estilo desse heterônimo cederiam o argumento decisivo para a

fixação do texto: logo, editar-se-ia “passado” em vez de “pecado”.

Eis um exemplo ocorrido durante a pesquisa, à volta do soneto O Bibliófilo,

atribuído ora a Campos, ora a Pessoa ortônimo. Ao escrever o parágrafo anterior,

estava eu convencido de o soneto ser do ortônimo, com base, entre outras coisas, na

leitura de “passado” em vez de “pecado”.

Houve, porém, uma reviravolta na decifração do manuscrito, o que não alterou

a atribuição do soneto ao ortônimo, mas solapou parte de meu supracitado argumen-

to – algo deveras freqüente durante a elaboração desta tese.

À reviravolta. Outra vez revendo o manuscrito, pude confirmar a identificação

do vocábulo “Amor” no v.9 (feita por SFD1), palavra até então tida como ilegível

por mim e por BERARDINELLI (1990). Isso levou-nos a rever o texto inteiro do

soneto, incluindo a questão “pecado” vs. “passado”. Eis que logo confirmamos a

leitura de “pecado” com base na da palavra “moça”, contida no verso subsequente

do mesmo poema:

tirando-se a cedilha, o ‘ca’ de ‘moça ’ é idêntico ao meio da palavra em questão; ora, “passado” não tem “ca”;

∴      logo, “pecado” é a leitura correta.

Com a introdução de um “Amor profundo” (v. 11), de rojo a presença de “pe-

cado” já não soou tão maliciosa – sendo, pois, inteiramente cabível a Pessoa ortôni-

mo; com isso, descartamos a hipotética atribuição a Campos, chegando ao fim de

uma aventura filológico-literária.

Prosseguindo com estas notas sobre a fixação do texto, apresento em minúcias

o procedimento de leitura de um soneto, como ilustração da metodologia deveras

policiária desta tese, (para empregar um adjetivo de Pessoa, leitor ávido de “novelas

policiárias”, como dizia).

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FIXAÇÃO DE DIONÍSIO (2005)

FIXAÇÃO DE SFD1 (2005)

Socégo enfim. Meu coração deserto Sossego enfim. Meu coração deserto Nada espera da inutil caravana. Nada espera da inútil caravana. Pouco a pouco meu spirito se irmana Pouco a pouco meu 'spírito se irmana Com ter perdido o proprio saber incerto. Com ter perdido o próprio saber incerto. E sempre além de mim o ar – descoberto É sempre além de mim o indescoberto Parto ao luar com que se o sonho engana. Porto ao luar com que se o sonho engana. De imperceptivel o sonho, plana De imperceptível o sonho, plana Para a vida a este desacerto. Para a vida a este desacerto. Estagna a /*luz/ de algo por achar, Estagno a lagos de algas por achar, Sinto vazio o barco dos amores. Sinto vogar o barco das amadas. A noite despe não haver o luar A noite despe não haver o luar E como um philtro de horas encantadas E como um filtro de horas encantadas Tremem os rios, gelam as estradas Tremem os rios, gelam as estradas No absurdo vacuo de eu não ter que amar. No absurdo vácuo de eu não ter que amar. Figura 8 – Leituras divergentes do soneto “Sosségo enfim. Meu coração deserto”, feitas por DIONÍSIO e SFD1 (ambas publicadas em 2005).

MINHA FIXAÇÃO DO SONETO Sosségo enfim. Meu coração deserto Nada espera da inútil caravana. Pouco a pouco meu ‘spírito se irmana Com ter perdido o próprio /*sonho/ incerto. É sempre além de mim o indescoberto Porto ao luar com que se o sonho engana. De imperceptível o /*diabo/, plana /*Parar/ a vida a este desacerto. Estagno a lagos de algas por achar, Sinto vogar o barco das amadas. A noite despe não haver o luar E como um filtro de horas encantadas Tremem os rios, gelam as estradas No absurdo vácuo de eu não ter que amar. Fernando Pessoa, 3-12-1917

Figura 7 – “Sosségo enfim. Meu coração deserto”, manuscrito e fixação.

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Publicado em 2005 tanto por DIONÍSIO quanto pelo grupo de Manuela Pe-

reira da SILVA, Ana Maria FREITAS e Madalena DINE (SFD1) [FIGURA 8], o

soneto “Sosségo enfim. Meu coração deserto” apresenta uma leitura deveras controvertida,

visto que os editores discordam na fixação de 5 versos do poema (vide grifos na

FIGURA 8); que há de fazer o leitor? Confiar cegamente na publicação selada como

“edição crítica” e ignorar a leitura divergente? Aqui, em posição privilegiada (tanto

por avanços tecnológicos que me permitem alta resolução digital, quanto por sentar-

me sobre os ombros de ambas as edições), critico ambas as leituras, fazendo delas

uma colagem a fim de gerar a minha própria fixação, encaixando as peças que ao meu

ver parecem as mais acertadas para compor o quebra-cabeça desta tese.

Escrevo aqui em detalhes minhas deduções filológicas, ilustrando o drama in-

vestigativo que é editar os sonetos de Pessoa.

Antes de passar às minhas notas, sublinhemos que a edição de DIONÍSIO go-

za do selo 'crítica', mas não por isso deveria ter, a priori, mais valor que a de SFD1,

que em muitos casos parece mais acertada – o que nos leva à dedução de que nem

mesmo as edições críticas podem dizer-se “definitivas”... nem mesmo esta que aqui

faço; muito pelo contrário, julgo que todo editor de Pessoa se beneficiaria com uma

grande lição de Sócrates: “prova que estou errado e te agradecerei”. Ao soneto, pois.

Uma chave de leitura está em notar que se trata de versos decassílabos, que a

princípio podemos supor regulares, ainda que esta regra não seja sempre confiável.

Nesse sentido, se o v.4 lido por DIONÍSIO e SFD1 é decassílabo (“Com ter perdido

o próprio saber incerto”), ele deveria ter a palavra “saber” (vide FIGURA 7) lida

como um totalmente improvável monossílabo à portuguesa (s'ber) – ou ser tachado

“verso de pé-quebrado”, hendecassílabo náufrago em meio a um mar decassilábico; a

terceira e última opção seria considerar a possibilidade de a leitura estar errada, sendo

“saber” uma leitura possível mas não indubitável, visto que algum pesquisador futuro

poderia lá enxergar outro monossílabo cabível... ou vocábulo dissílabo que fizesse

sinérese com a palavra seguinte (“incerto”, começada por vogal), agindo como mo-

nossílabo; donde divirjo das duas leituras e, pesando o ouvido grandemente rítmico

de Pessoa, leio /*sonho/ como objeto conjecturado, satisfazendo a métrica do verso.

Decerto o verso poderia ser hendecassílabo – falha de Pessoa – e esta possibli-

dade de exceção não destrói a regra métrica do poema; logo, como ponto de partida

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– e apenas como ponto de partida –, podemos tomar a maioria dos versos do soneto

por decassílabos (até que se prove o contrário) – e com esta chave partamos a com-

parar e criticar as leituras de DIONÍSIO & de SFD1.

Ambos concordam na fixação do primeiro quarteto. A primeira distinção sur-

ge no v.5 – e surge extrema, emprestando sentidos radicalmente distintos ao verso.

v.5: “É sempre além de mim o indescoberto” (SFD1) vs.

“É sempre além de mim o ar – descoberto” (DIONÍSIO)

Um argumento em prol da leitura de DIONÍSIO seria não se encontrar um

claro pingo de 'i' no fim do v.5 (vide FIGURA 7), sendo que Pessoa mesmo em ver-

sos de caligrafia obscura raramente deixa de “pingar o i”; mas este argumento logo

cai se lemos, dois versos mais abaixo (v.7), a palavra 'imperceptível', que é claramente

perceptível (concordam DIONÍSIO & SFD1) e também carece de pingo no 'i'; em ver-

dade, o princípio de “imperceptível” parece bastante similar ao da palavra em ques-

tão no v.5 (in- ≅ im-), sendo mais plausível lermos 'indescoberto' que 'ar descoberto'.

DIONÍSIO poderia argumentar que Pessoa, se quisesse fazer divisão silábica

de uma palavra (“in-descoberto”) ao fim de uma linha, poderia ter “quebrado” tal

palavra mais à frente, após a segunda sílaba (“indes-coberto” por exemplo)... SFD1

poderiam contra-argumentar que Pessoa poderia ter previsto que a palavra não cabe-

ria no espaço do papel, apressando-se a quebrá-la. Sobre a divisão silábica, ambos os

lados são hipotéticos demais para valer como argumento, ao passo que é fato que o

traço divisor ('-') está bem mais para hífen que para travessão... algo mais convincente que

qualquer hipótese de divisão silábica que DIONÍSIO viesse a apresentar.

Ademais, 'indescoberto' é uma leitura muito mais ricamente pessoana que “ar –

descoberto”... Acrescente-se que, no contexto destes versos, parece fazer mais senti-

do um “porto indescoberto” (i.e., não-descoberto), que um “descoberto”, pois no

primeiro caso o “indescoberto / é sempre além de mim”... Ora, “sempre além de

mim” jamais será descoberto!

Na leitura de Dionísio, porém, o “ar” é que seria “sempre além de mim”, e o

porto seria por alguma outra razão (obscura) “descoberto”... nada tendo que ver com

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o verso anterior – o que me parece uma grande perda de sentido. Encerremos, pois,

a batalha filológica do verso 5 e passemos a outro verso.

v.7: “De imperceptível o sonho, plana” (SFD1 & DIONÍSIO) vs. “De imperceptível o /*diabo/, plana” (minha conjectura)

SFD1 & DIONÍSIO concordam com esta leitura – e não apresentam qualquer

dúvida sobre ela, ao passo que não fico satisfeito ao confrontar tal leitura com o tes-

temunho, pois com ela o verso está quebrado (eneassílabo). A saída seria evitar a

sinérese inicial no verso, separando a vogal final de “De” & a inicial de “i mperceptí-

vel” – o que me parece artificial à leitura (lemos “Deim-per-cep-tí-vel-o...”), pois o

verso obteria uma acentuação esdrúxula: todos os versos do poema acentuam-se ou

na sexta ou na quarta e oitava sílabas, e este acentuar-se-ia na quinta sílaba! Bem

mais cauteloso me parece considerar, por um instante, que a palavra 'sonho' possa ser

outra coisa, visto que em muito pouco se parece com a mais clara ocorrência de 'so-

nho' no verso logo acima; não é impossível, pois, que o 'sonho' do v.7 seja uma pala-

vra trissílaba e que o verso seja perfeitamente decassílabo. Após diversas conjecturas,

no momento cogito, sem qualquer certeza, a palavra “diabo” para ocupar o espaço

em questão, embora não encontre no testemunho um “pingo de i” para avalizar mi-

nha própria hipótese. De qualquer maneira, divirjo de ambos os prévios editores.

No mesmo verso, ainda considerei que a palavra final 'plana' pudesse ser 'fla-

na'... gerando interessante oposição à palavra que principia o verso a seguir: “Para(r)”.

No entanto, como não encontrei argumentos concretos a favor quer para 'plana' quer

para 'flana', deixei a primeira opção. Sigamos.

v.8: “Para a vida a este desacerto” (DIONÍSIO & SFD1) vs. “Parar a vida a este desacerto” (minha leitura)

SFD1 e DIONÍSIO lêem 'Para', ao passo que leio 'Parar', por dois motivos:

a. Há algo mais ao fim de “Para”, um certo “rabicho” após o segundo 'a' e...

b. Se considerarmos tal algo mais como um 'r', não só o verso fica decassílabo,

como a acentuação subitamente “entra em forma”, com uma sexta sílaba forte.

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No entanto, como é também possível que eu esteja errado (e Pessoa tenha

quebrado o verso, descuidadamente)... deixo um sinal de leitura conjecturada.

v.9: “Estagno a lagos de algas por achar,” (SFD1) vs.

“Estagna a /*luz/ de algo por achar,” (DIONÍSIO)

As leituras deste verso não poderiam ser mais diferentes. De rojo descartei a

leitura conjecturada de DIONÍSIO (luz), pois a terminação da 3a e 5a palavras do

verso (lagos/algas ou luz/algo) é praticamente idêntica no testemunho... o que dá força

imediata à leitura de SFD1: “-gos” e “-gas” são muito próximos em lagos/algas.

Se lermos a 3a palavra como 'lagos', então 'Estagno' na primeira pessoa fará

mais sentido que 'Estagna'; daí eu optar pela leitura de SFD1, ainda que a fixação de

'algas' me deixe algo desconfortável, como se algo ainda estivesse fora do lugar na

estranha evocação imagética do verso. Mas... Pessoa usou 'algas' em vários textos

seus, e meu gosto não tem nada que ver com o que o poeta escreveu; ademais, “lagos

de algas” faz sentido como imagem de algo estagnado (o verso principia por “Estag-

no”). Seguimos, pois, a leitura de SFD1 para o v.9.

v.10: “Sinto vogar o barco das amadas” (SFD1) vs.

“Sinto vazio o barco dos amores” (DIONÍSIO)

Uma vez mais opto pela leitura de SFD1, por dois motivos: a) diante do ma-

nuscrito, 'Vogar' parece muito mais acertada leitura do vocabulário pessoano; b) 'a-

madas' faz rima com outras terminações legíveis nos tercetos, ao passo que 'amores'

não o faz (e o 'd' taquigráfico característico de Pessoa é visível no testemunho').

v.11: “A noite despe não haver o luar”

É preciso ler 'luar' como monossílabo ('u' como semivogal de um ditongo cres-

cente: lwár), para que o verso seja decassílabo.

v.12: “E como um filtro de horas encantadas” (SFD1) vs.

“E como um filtro de poses encantadas” (DIONÍSIO)

Outra vez fio-me na leitura de SFD1, pois “horas” torna o verso decassílabo,

ao passo que “poses” lhe quebra o ritmo.

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Eis que chegamos ao fim da fixação de um mero soneto. Multipliquemos esta

aventura por 282 e chegaremos à metodologia investigativa desta tese.

1.3.2.2. INÉDITOS?

Em meio à pesquisa, ao calcular que deveria haver sonetos inéditos, considerei

tal possibilidade como uma bênção: seria uma honra ser o primeiro a publicar (quiçá

o primeiro a ler) um soneto extraviado de Fernando Pessoa. Ao fim da pesquisa,

como mencionei, já satisfeito por ter encontrado 5 inéditos, deparo-me com mais de

50 sonetos potencialmente inéditos entre as cotas do espólio 49A1 e 49A7. Bênção?

Ou maldição? A essa altura, eu já conhecia bem o imenso trabalho de ser o primeiro

a ler um manuscrito pessoano: horas e horas e mais horas de decifração por vezes

pouquíssimo produtiva... isso para um único poema. Decifrar mais de 50 manuscri-

tos levaria um ano para um pesquisador solitário, donde decidi renomear minha edi-

ção crítica para “quase completa” ou in fieri, postergando o trabalho de decifração

dos sonetos ingleses inéditos para um pós-doutorado, oxalá em equipe.

Não fui o único a me deparar com sonetos de Pessoa inéditos, em Inglês: Pa-

trício Ferrari, ao realizar sua excelente edição das traduções que Pessoa fez (para o

Inglês) de alguns sonetos de Antero de Quental, notou que a empreitada de traduzir

Antero inspirara o poeta a escrever sonetos anterianos em Inglês – os quais Pessoa

agrupara sob o título Mors Dei. Ferrari anota que estes sonetos fragmentários estão

ainda inéditos (em 2011) e então cita um destes sonetos, generosamente fornecendo-

lhe a cota no espólio (49D2) – o que sugere haver ainda mais sonetos inéditos em

Inglês do que os que eu encontrei.

Ao estudar a edição de DIONÍSIO (1997), encontrei listas com títulos de po-

emas de Pessoa; alguns estavam em Francês e continham a indicação de número de

versos; dois tinham 14 versos: seriam eles sonetos? Pus-me a buscar “Oh femme aux

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yeux si noirs” e L’Autel. Acabei por encontrar o primeiro destes poemas, que de fato

tinha 14 versos numa de suas versões, mas em nada mais se parecia com um soneto.

A boa surpresa foi, durante a busca, deparar-me com um soneto propriamente dito, apa-

rentemente inédito e em Francês! Trata-se talvez do único soneto em Francês de

Fernando Pessoa, incompleto, sem data ou assinatura, de qualidade criticável – mas

nem por isso pouco valioso.

Segue um facsímile com minha transcrição do soneto, na qual contei com a

ajuda da Prof. Cleonice Berardinelli.

Figura 8 – Soneto inédito em Francês de Pessoa; ms. (50B1-21) e fixação do texto.

Passando do Inglês e do Francês à Língua Portuguesa, vera pátria de Fernando

Pessoa, encontramos três sonetos possivelmente inéditos:

Il est sur les sommets une lueur étrange L’ombre croit vers la terre, et seule, au /*but/ des creux Cette lueur comme un miroir mystérieux Reflète un au-delà hanté des mains des anges. L’homme tragique et dur, accroupi en la fange En sentant la lueur lui au ciel ☐ des yeux Et sans son vain /*regard/ où sont morts tous les vœux L’espoir naît comme un cri à la peau des phalanges. Tout ceci est couleur de mort et de détresse Mais la lueur /*qui croit/ c’est /*l’ombre qui viendra/ Bientôt le jour prendra la terre dans ses liens; Et /*mère/ l’/*accroupi/ tragique et noir verra Chaque pierre porter un jour dans l’allégresse De sa noirceur éclore aux ☐ /*-iens./

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Figura 9 – Soneto inédito em Português de Pes-soa (JMC); testemunho 56-50 e fixação do texto.

Este soneto de 1910, de tom claramente jocoso, é assinado por JMC, i.e., Joa-

quim Moura Costa, heterônimo satírico de Pessoa. “Theóphilo” deve ser Teófilo

Braga (1843-1924), que em 6 de outubro de 1910 (4 meses após o soneto) seria no-

meado presidente do Governo Provisório da República Portuguesa, recém-saído o

país da revolução de 5 de outubro de 1910, com a abdicação do Rei Manuel II.

Há conjecturas na fixação – e mesmo no posicionamento das estrofes desse

soneto. Aqui façamos três notas. Primeiramente, o soneto de maldizer de JMC con-

ta com uma estratégia de repetição como a que Carlos Drummond de Andrade em-

pregaria 18 anos mais tarde, no famoso “No meio do caminho tinha uma pedra”

(1928) – também com efeito desmoralizante (o “Teófilo” de Drummond era o Par-

nasianismo), como se a cada ocorrência do refrão, o “grande” Teófilo se apequenas-

se, seu nome perdendo poder significativo...

Em segundo lugar, segundo o testemunho de Pessoa, há mais de uma possibi-

lidade de interpretação para a ordem dos tercetos: interpretamos a marcação do poe-

ta ao redor do dístico “Vi chegar o comboio (...) nenhum” como indicação de que

isso seria o fecho do soneto, configurando um estrambote à moda inglesa – além de

o desenvolvimento do soneto levar a crer que se preparava uma surpresa:

Não há grande Teófilo nenhum.

Por fim (nossa terceira e última nota no momento), o que editamos como v.11

é um verso com mais de 10 sílabas (dodecassílabo ou mesmo bárbaro, dependendo

de como o lemos), havendo pelo menos duas razões plausíveis para tanto; como Pes-

Dizem que o grande Teófilo chegou Agora mesmo ao Porto. É impossível. Como diabo o é? Acaso é incrível E embarcou em Lisboa, e se /*papou/.

Chegou o grande Teófilo. Parou O expresso aqui às cinco. Não é crível. Viram-no chegar muitos. Esse nível De visão é cegueira – n’isso estou. Quero saber o que há de mal ou erro. Em dizer que chegou o grande Teófilo. Às cinco horas da tarde por comboio de ferro Chegou o Teófilo – Acredita enfim? Vi chegar o comboio. ––– Em Portugal Não há grande Teófilo nenhum.

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soa provavelmente não erraria o metro de um único verso de modo tão exagerado,

cogitamos que: ou se trata de 1) um rascunho de linha cujo número de sílabas o poe-

ta viria a “enxugar”, ou de 2) um verso propositadamente quebrado, enfatizando o

escárnio dirigido a Teófilo através de uma desmesura escrachada.

Do escárnio à religiosidade, Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723) é evocada

num outro soneto incompleto e possivelmente inédito de Pessoa, de 1919. Sóror

Mariana é considerada a autora das célebres Cartas Portuguesas (Lettres Portugaises, pu-

blicadas em Francês por Claude Babin em Paris, 1669). Tais cartas são dirigidas a

Noel Bouton de Chamilly, conde e oficial francês que lutou em Portugal durante a

Guerra de Restauração contra a Espanha (1640-1668); o Conde de Chamilly teria,

então, conhecido Sóror Mariana, a qual nutriria por ele uma paixão tal, que a moveria

a escrever umas das mais belas cartas de amor da história.

Pessoa escreve três sonetos com imagens bastante similares, ainda que algo in-

dependentes, como que variações de um mesmo tema:

“Do abismo onde o Passado dorme e espera”; “Do frio abismo onde o Passado habita”; Este inédito “Ai de quem não só sente, mas conhece”.

A personagem feminina que se insinua nos dois primeiros desses poemas, no

terceiro subitamente se apresenta como “freira”, evocando a imagem de Sóror Mari-

ana Alcoforado, a tecer, letra a letra (“fio a fio”) o texto de suas cartas de amor, sem

o conhecimento do mundo... muito bem como o próprio Pessoa, a escrever, verso a

verso, seus poemas então desconhecidos, secretos como as cartas de Sóror Mariana.

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Figura 10 – Soneto possivelmente inédito de Pessoa, evocando Sóror Mariana Alcofora-do; manuscrito (cota 43-16v) e fixação do texto.

Há um outro soneto (também fragmentário) com o título Sóror Mariana, de que

trataremos mais à frente, ao discutir a incompletude de alguns dos objetos de estudo

desta tese.

Encontramos mais dois sonetos aparentemente inéditos. Eis o primeiro:

Figura 11 – Soneto inédito de Pessoa; manuscrito (57A-43) e fixação do texto.

Ai de quem não só sente, mas conhece Que sente, e /*sem que de sentir seu ser distraia/. Fio a fio fita ao frio que vê vir

Formar a teia que ☐ tece. Ai de quem não /*só/ dor ou amor padece Mas também a consciência de o sentir E onde em si, sentindo-se sentir,

E ☐ Tu, freira, que /*supus/ e indefinida Do abismo, onde o Passado dorme e espera Qualquer /*re/___________ desconhecida Que soubeste de ti senão o amor?... O /*resto/... O claustro abandonado e a hera

E o luar frio ☐ /*-or/

Abdiquei. No silêncio da planície Sem saber como vi-me errar sem mim Na ampla planície sem lugar nem fim Vi-me e ouvi minha voz de /*longe/. Disse, Virada para a pérfida ledice Que ficará onde eu /*ficar/ ☐ /*-im/ E como um canto austero de Latim Minha voz de outro, como se eu fluísse, Disse /*termo/ no longe que não sei Se era /*dentro ou fóra d’onde/ rei Eu pelo império da /*visão vivi/: “Ruíram meus castelos /*nados ruins/ E a rainha não veio nunca, e /*ao fim/, /*Pés/ da rainha, nunca os /*conheci/.

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As muitas incertezas perante o manuscrito não nos permitem ir longe em in-

terpretações deste último poema. Mesmo assim, sabemos que o poeta "abdica", in-

transitivamente – e que se encontra numa planície sem saber como lá foi parar; sua

voz protagoniza a segunda estrofe, trazendo metalinguagem aos versos; uma perso-

nagem recita o último terceto, parecem surgir um rei e uma rainha...

O último soneto inédito em Português que encontramos, com o rude incipit

“Alma de corno – isto é, dura como isso”, merece um estudo à parte – e voltaremos

a ele na seção sobre a “Atribuição” dos sonetos pessoanos, mais à frente.

Acredito que o trabalho de decifração dos inéditos de Pessoa prosseguirá ape-

sar das edições críticas – e humildemente chamo minha edição dos sonetos de Pessoa

de um projeto indefinidamente in fieri.

1.3.2.3. DATAÇÃO

Quais as dificuldades de datação dos sonetos de Pessoa? Não seria este um ca-

so simples de publicar a data, quando há data, e marcar “s.d.” (sem data) nos poemas

sem indicação de data?

Há, aqui, uma complicação pessoana e um desafio. Comecemos pela compli-

cação.

Algumas datas postas por Pessoa são parte de suas “ficções do interlúdio”.

Exemplo disso são os sonetos I, II e III do heterônimo Álvaro de Campos, datados

por Pessoa respectivamente de Agosto, Outubro e Dezembro de 1913, com parênte-

ses explicativos dizendo, outra vez respectivamente, “uns seis a sete meses antes do

Opiário” (Agosto de 1913), “uns cinco meses antes do Opiário” (Outubro de 1913) e

“uns quatro meses antes do Opiário” (Dezembro de 1913). Opiário é um divisor-de-

águas na vida do engenheiro Álvaro de Campos, que com tal poema descreve sua

vida e filosofia antes do encontro com seu mestre Alberto Caeiro, cujo impacto lhe

mudaria a vida e, conseqüentemente, o estilo literário – de quartetos rimados e metri-

ficados à la Mário de Sá-Carneiro, Campos passaria a escrever versos brancos e livres

como os de Walt Whitman... Esses dados servem de preâmbulo para dizer que os

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três primeiros sonetos de Campos, datados por Pessoa como de 1913, em verdade

foram escritos após 1913 – provavelmente em 1922, ano em que o terceiro deles foi

publicado na revista Contemporânea nº 6, com o título de “Soneto Já Antigo”.

Explicada esta complicação, apresentemos agora o desafio: seria possível dedu-

zir datas aproximadas dos poemas que Pessoa deixou de datar? Como?

A fim de datar sonetos “sem data” de Pessoa, é preciso buscar parâmetros

cronológicos, alguns mais fiáveis que outros. Um parâmetro relativamente sólido

está nas datas de publicação de sonetos cujo testemunho surge sem data – mas este

método só nos ajuda nos poemas publicados em vida pelo poeta, como no caso do

tríptico No Túmulo de Christian Rosencreutz. Na edição SFD3 (2006), que contém este

ciclo de sonetos, as organizadoras esclarecem em nota que "O autor preparou o texto

[do tríptico] para sair na revista Sudoeste, nº 3, novembro de 1935, o que não veio a

acontecer”. Tendo em consideração que Pessoa viria a falecer no mesmo mês da

planejada publicação, podemos sublinhar que este tríptico é uma das últimas obras

do poeta – e, portanto, a datação aproximada de Novembro de 1935 não é disparate

algum.

Que parâmetros empregar, porém, ante um poema sem data e não-publicado

em vida do poeta? Tomemos, por exemplo, o soneto “Do abismo onde o Passado

dorme e espera” (que chamaremos ‘A’), sem data, mas com um raciocínio de data-

ção engenhoso, proposto por SFD2.

Este poema ‘A’ não apresenta qualquer data no testemunho; SFD2 conjectu-

ram uma datação com base no poema fragmentário “Do frio abismo onde o passado

habita” (soneto ‘B’), que também DIONÍSIO (2005) publica, na edição crítica da

Imprensa Nacional Casa da Moeda. Curiosamente, o mesmo DIONÍSIO que publi-

ca ‘B’ exclui o soneto ‘A’ de sua edição, talvez devido a não apresentar o testemunho

de ‘A’ uma datação evidente – problema que SFD2 decidiram enfrentar.

Sobre o interessante fragmento ‘B’, SFD2 anotam “que parece ter sido feito na

seqüência deste(s) [i.e., em sequência do poema ‘A’ e de uma variante sua], atendendo

ao primeiro verso, mas que se desenvolve diferentemente, rematando de forma in-

compreensível (...)."

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Com esta observação sagaz, SFD2 encontraram um parâmetro para uma data-

ção conjecturada do soneto ‘A’: um fragmento ‘B’ datado que desenvolve as mesmas

imagens de ‘A’, com alguns versos tão parecidos, que é razoável supor terem sido

escritos num mesmo momento. Seguimos, portanto, esta bela dedução, inspirados

pela investigação digna de um Sherlock Holmes.

Há parâmetros menos consistentes, mas não menos interessantes, como no ca-

so do soneto de amor “Digo-lhe adeus sem tê-la conhecido”, cujo testemunho não

apresenta data escrita pelo poeta, mas apresenta uma data deveras; isto ocorre porque

Pessoa escreveu o poema no verso de um exemplar impresso do panfleto Sobre um

Mani f e s to de Estudantes , de 1923, também escrito por Pessoa em apoio ao seu amigo,

o poeta Raul Leal. Decerto Pessoa poderia ter escrito o soneto anos após a publica-

ção do seu panfleto (em verdade, em qualquer dia entre Abril de 1923 e Novembro

de 1935); no entanto, uma manifestação pública (imaginemos a polêmica acerca da

obra de Raul Leal, em 1923) é mesmo um bom cenário baudelariano digno de uma

ligeira paixão à primeira vista, como a que Pessoa retrata em “Digo-lhe adeus sem tê-

la conhecido” – e acreditamos que o parâmetro seja pista digna, por mais impreciso

que se revele em sua delimitação temporal.

Há mais dois exemplos de parâmetros vagos (mas ainda válidos) que eu gosta-

ria de apresentar. O primeiro vem da investigação acerca do soneto “Abismo de ser

muitos! Noite minha!”, publicado pela primeira vez por LOPES (1990) e, posterior-

mente, por SFD3 (2006) – duas leituras divergentes do soneto as quais critico nesta

tese, acabando por divergir de ambas. Em sua edição, SFD3 não logram datar com-

pletamente o poema, mas deixam uma interessante nota sobre o testemunho: “Es-

crito numa folha de calendário de 8 de março, sexta-feira, data que se verificou nos

anos de 1912, 1918, 1929 e 1935”.

Ora, então temos possíveis dia e mês – mas não o ano do soneto. Com essa

nota em mente, buscamos 2 caminhos para conjecturar o ano:

a) buscar outras folhas de calendário que poderiam ter poemas datados, a fim

de comparar caligrafia e tinta empregadas nos poemas;

b) empreender uma análise interpretativa e temática do poema, para eliminar

anos improváveis de sua escrita.

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Sobre o caminho “a”, busquei, nas edições críticas da INCM, folhas de calen-

dário em todas as descrições de papéis empregados por Pessoa – e nada encontrei

para os anos de 1935, 1929 e 1918. Como não há ainda uma edição crítica para os

poemas de 1912, absolutamente nada encontrei – e, como veremos abaixo, cremos

que o poema não data de 1912. A esta altura, pareceu-nos infelizmente possível que

Pessoa só tivesse escrito este único poema em folha solta de calendário.

Andemos, pois, pelo caminho “b”. Pensamos que 1912 deva ser o primeiro

ano a ser excluído: o soneto em questão sintetiza a poética da heteronímia e, em

1912, nenhum dos grandes heterônimos de Pessoa tinha ainda nascido: Caeiro, Cam-

pos e Reis estavam apenas em gestação... Desenvolvendo este mesmo argumento,

cremos que também seja plausível descartar 1918 (em que Pessoa só escreve um so-

neto tradicional) e considerar o poema em questão como um soneto de maturidade,

i.e., de 1929 ou 1935, com o poeta olhando para trás e percebendo quantas pessoas ele

abriga em si. O v.8 (“Poeira, as razões de quanto fui ou tinha”), reforça esta idéia de

retrospectiva, de avaliação do passado numa idade relativamente avançada.

Em 1930, 32, 33 e 34, Pessoa escreve outros sonetos sobre o mesma tema da

heteronímia, dando plausibilidade à nossa conjectura de considerar 1929 e 1935 co-

mo alternativas para a datação do ano do poema. Decerto, é também possível que

Pessoa tenha escrito o poema num dia diferente do da folha de calendário – mas o

parâmetro existe, ainda que a sua solidez não seja diamantina.

Um adendo: já com as deduções acima escritas e revistas, encontrei por acaso

datas nas cotas próximas à 46-41, que designa o manuscrito do soneto “Abismo de

ser muitos! Noite minha”. Na cota imediatamente anterior (46-40), há uma indicação

do ano 1928; na segunda cota posterior (46-43) encontramos a indicação 1929. Estas

evidências reforçam grandemente a hipótese de o poema ter sido escrito em 1929.

O último exemplo de parâmetro vago que apresentamos é o que empregamos

na datação conjectural do ciclo de sonetos Ao Cabo da Boa Esperança, cujo primeiro

poema principia assim: “Três vezes te fitei”.

O soneto é em primeira pessoa, e o incipit pode ser lido como um parâmetro

para uma vaga localização temporal do poema: “Três vezes te fitei”. Deveras, Pessoa

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viu o Cabo da Boa Esperança ao menos três vezes (quiçá quatro) e, portanto, este

poema deve ter sido escrito pelo menos após a terceira visita de Pessoa.

Janeiro de 1896: Pessoa vai de Lisboa ao Cabo da Boa Esperança (Cabo...)

Agosto de 1901 = Pessoa volta do Cabo... a Lisboa

Setembro de 1902 = de Lisboa ao Cabo...

Agosto de 1905 = do Cabo... a Lisboa

É possível que Pessoa não tenha visto o Cabo da Boa Esperança em todas as

quatro vezes. Também é possível que o poeta tenha escrito o poema entre 1902 e

1905 – ainda que isto seja pouco provável, visto que Pessoa não tem sonetos em

Português entre 1903 e 1905, e a paciente e cuidadosa caligrafia dos sonetos de 1902

é bem distinta da presente nos testemunhos do ciclo Ao Cabo... Logo, é mais prová-

vel que os sonetos sejam posteriores a 1905, ainda mais provavelmente posteriores a

1909, ano em que o poeta volta a escrever sonetos em Português (desde 1904 escre-

via sonetos apenas em Inglês).

Como Pessoa faleceu em 1935, teríamos a vaga extensão de datação provável

entre 1909 e 1935 – mas há uma informação no poema IV do Ciclo Ao Cabo... que

parece sugerir a outra extremidade do segmento temporal em questão: “Quem Deus

escolhe, nunca fez felizes” é o incipit do soneto IV. Ora, há um outro célebre incipit

de Pessoa, logo no segundo poema do livro Mensagem, que parece ser evocado por

este verso: “Os deuses vendem quando dão” – forma muito mais elaborada e pesso-

ana de comunicar que os escolhidos dos deuses geralmente não terminam muito feli-

zes. Parece-nos razoável conjecturar, pois, o poema O Campo Das Quinas (8-12-1928)

de Mensagem como posterior ao ciclo Ao Cabo..., por elaborar um de seus temas. Lo-

go, chegamos à extensão 1909-1928 para a datação conjecturada do ciclo Ao Cabo da

Boa Esperança.

Às voltas com o desafio de datar um soneto sem data ou com datação ficcional

dentro do universo pessoano, podemos buscar toda sorte de parâmetros, alguns mais

sólidos que outros, mas todos válidos, desde que não caiamos na pretensão de consi-

derar meras hipóteses como signos de verdade. Por outro lado, que a ausência de

uma data escrita por Pessoa jamais seja razão para deixarmos de investigá-la, aventu-

reiros sempre prontos a partir em busca de mais um mistério filológico.

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1.3.3. DESAFIOS EDITORIAIS: A Seleção dos Testemunhos

1.3.3.1. ATRIBUIÇÃO

Se esta tese fosse sobre qualquer outro poeta, provavelmente esta seção não se-

ria necessária – e se fosse sobre Max Aub e Antônio Machado, poetas espanhóis que

criaram espécies de heterônimos apócrifos, esta seção seria menos complicada. Fer-

nando Pessoa criou um universo de 127 heterônimos (CAVALCANTI FILHO, 2011),

personagens literárias com vidas, éticas e metafísicas em papel, alguns dos quais não

só foram poetas, mas ocasionalmente sonetistas. Freqüentemente, Pessoa assina seus

sonetos com um de seus muitos nomes, facilitando o problema da atribuição de ver-

sos a heterônimos específicos; contudo, se um poema não apresenta atribuição ex-

pressa – ou se tem mais de uma atribuição –, que heterônimo devemos considerar

como seu devido autor?

A primeira pergunta dentro desta pergunta seria... Que heterônimos de Fer-

nando Pessoa escreveram sonetos? Comecemos pelos cinco heterônimos principais,

i.e., Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Fernando

Pessoa ele mesmo. Dentre esses, Bernardo Soares é prosador, ainda que sua prosa

atravesse constantemente os limites movediços entre prosa e poesia; revirei o Livro do

Desassossego em busca de qualquer texto com 14 versos ou com pretensões a soneto;

nada encontrei. Alberto Caeiro escrevia poesia em versos livres e brancos, a não ser

que estivesse doente, quando sua poesia rimava – como é o caso das quatro canções

“doentes” de O Guardador de Rebanhos (poemas XVI a XIX), dentre as quais infeliz-

mente não se encontra soneto algum; é mesmo pena Caeiro não ter escrito um sone-

to quando enfermo.

Passemos a Ricardo Reis, heterônimo autor de odes cujos versos brancos, em

geral, oscilam entre seis e dez sílabas. Poderia Reis ter escrito sonetos? Há pelo me-

nos um poema (que qualificamos nesta tese como “soneto”) que atribuímos a Reis,

por apresentar versos brancos perfeitamente metrificados, como todos os seus.

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Trago nas mãos as oferendas todas Com que se a Primavera depois veste De nova, e as /*árv’res/ saem dos troncos negros Para a sua palavra de verdura. Meus braços são só brancos no intervalo Da trazida folhagem que os atulha. Meus olhos viram a manhã nascer E no olhar o relembram, que estremece Com a alegria de melhores horas Se pensa no presente. A minha voz Erguida é como a fonte no sossego Da sombra que copada a árvore jaz Na relva curta, e o viandante esquece A árdua necessidade de um destino.

Será isto um soneto? Discutiremos nossos critérios mais adiante (vide seção

“Soneto?”). Por ora, refletindo sobre o poema, notemos que, além de ele apresentar

uma única estrofe, seus versos são brancos, mas não livres, exibindo uma perfeita

métrica decassilábica. DIONÍSIO (2005) publica-o pela primeira vez entre os poe-

mas de Fernando Pessoa... Mas, com a exceção única do seu soneto (e poema) derra-

deiro, Fernando Pessoa não deixa de rimar seus poemas de 14 versos... ao contrário

de Ricardo Reis, que muito confortavelmente poderia ter assinado estes versos bran-

cos nada livres (como o são todos os seus versos) – poema que, junto ao texto “Em

vão fechado em seu diurno curso”, talvez forme o grupo dos únicos 2 sonetos de Reis.

Como bom pagão da decadência, Reis não conhecia a rima. Também como

pagão, Reis assinou apenas odes, tomando sua inspiração de Safo e Horácio, cuja anti-

güidade não conhecia o soneto... forma poética surgida mil anos mais tarde! No en-

tanto, a etimologia das “odes” escritas por Reis revela um sinônimo da raiz de “sone-

to”: a palavra “ode” vem do Grego, em que significa “canção lírica”, função nada

distante da “pequena canção” que é o “soneto” italiano. Portanto, ao cantar eventu-

almente em 14 versos brancos mas perfeitamente métricos, Reis poderia muito bem

estar dedilhando as linhas fronteiriças entre a ode e o soneto... Odes acidentalmente

parecidas com sonetos, ou sonetos que, em Reis, só poderiam parecer odes.

Além da edição crítica de DIONÍSIO, só encontramos o poema “Trago nas

mãos as oferendas todas” publicado num único outro lugar, virtual: um site da inter-

net que o exibe sob o título “Prováveis Poemas De Ricardo Reis”. Logo, não sou o

único a crer que a assinatura de Reis pertenceria mais a este poema que a de Pessoa

ortônimo. Eis um exemplo dos argumentos a pesar durante a atribuição de poemas

sem assinatura.

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Passando da rigidez formal de Reis a Álvaro de Campos, eis um heterônimo

extremamente versátil que conta com uma série de sonetos – incluindo seus primei-

ros poemas, três sonetos vanguardistas. Quando Campos escreve um soneto, escre-

ve-o mesmo para testar os limites desta forma clássica, revolucionando-a. GARCEZ

(1981) faz uma belíssima análise da revolução que o terceiro soneto de Campos re-

presenta na lírica portuguesa. Dos dezessete sonetos atribuídos a Campos, apenas

um não apresenta assinatura: o soneto incompleto “ Estou ‘screvendo sonetos regula-

res”. Como sabemos ser este um soneto de Campos?

Ora, já no primeiro verso há metalinguagem a emprestar um tom jocoso de

conseguimento e/ou surpresa ao texto, tom impensável em Fernando Pessoa ortô-

nimo, o último dos cinco estilos que averiguávamos. Nem é preciso assinatura para

imaginarmos o heterônimo engenheiro a dizer: Eu, Álvaro de Campos, autor de

Grandes Odes Modernas em versos livres, estou escrevendo sonetos regulares!

A atribuição a Campos ou Pessoa de sonetos sem assinatura gerou algumas

controvérsias. Visitemos rapidamente algumas destas.

Ah, como outrora era outra a que eu não tinha! Como amei quando amei! Ah, como eu ria. Como com olhos de quem nunca via Tinha o trono onde ter uma rainha. Sob os pés seus a vida me espezinha Reclinas-te tão bem! A tarde esfria... Ó mar sem cais nem lodo ou maresia, Que tens comigo, cuja alma é a minha? Sob uma umbrela de chá em baixo estamos E é súbita a lembrança opositória Da velha quinta e do espalmar dos ramos Sob os quais a merenda... Oh amor, oh glória! Fechem-me os olhos para toda a história! Como sapos saltamos e erramos...

Este soneto sem data é atribuído a Campos por LOPES (1993). Aqui, atribuí-

mo-lo ao ortônimo. Penso que o único elemento que traz ao poema o tom de Cam-

pos está na presença súbita, humorística talvez, dos “sapos” ao fim do poema. Co-

mo é possível encontrar, no ortônimo, traços do estilo camposiano antes do nasci-

mento de Campos como heterônimo – e não havendo datas nem mais argumentos a

favor da atribuição deste poema a Campos – optamos por deixar o soneto entre os

de Pessoa ele mesmo.

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Há 2 sonetos que a Professora Cleonice Berardinelli publica em 1999 no apên-

dice à sua edição dos poemas de Álvaro de Campos: “Com teu gesto pintado e exa-

gerado” (de 1914) e O Bibliófilo (de 1911) – cuja atribuição defendo para o ortônimo.

Tratemos antes de O Bibliófilo. A professora Cleonice Berardinelli (1999) usa

uma fonte do poema datada de 1911, sem comentar o fato de esta data pesar como

argumento para atribuir o poema ao ortônimo e não a Campos. Em 1911, Campos

não existia como heterônimo: seus primeiros sonetos (na ficção de Pessoa) datam de

1913 e, em realidade, são mais provavelmente da década de 1920.

Sobre o estilo de O Bibliófilo, não é impossível ver a pena de um Álvaro de

Campos em estado embrionário. Por outro lado, o soneto não pede a toda hora a

assinatura de Campos e, em vez da euforia ou ironia do engenheiro, ao longo dos

versos vamos encontrando suspiros e conceptismos de Pessoa ortônimo, tais como:

Ó ambições!... Como eu quisera ser (...) A vida não perdia nem ganhava Nada por mim, (...) E eu lia, a testa contra a luz acesa, Sem nada querer ser como a beleza E sem nada ter sido como o mundo.

“Com teu gesto pintado e exagerado” é de Novembro de 1914 – e, segundo

uma das gêneses narradas por Pessoa, Campos já existia desde Março do mesmo ano.

No entanto, os poemas de Campos fora do Arco de Triunfo são todos datados a partir

de 1915. Arco de Triunfo é o primeiro livro projetado por Pessoa para Campos (que

Berardinelli editou em 1990). Tal como no caso de O Bibliófilo, reconhecemos traços

próto-Campos no tom dos versos, especialmente na valorização de uma filosofia da

inocência material que Caeiro viria a ensinar e Campos, a seguir – mas esses traços não

surgem em grau suficiente para Campos merecer a atribuição em detrimento do

ortônimo. Vide excertos sobre tal inocência exterior:

Tu nada sabes do essencial pecado (...)

Porque a análise é a vera perversão... O único vício é rebuscar a alma, Dor a dor, sensação a sensação... Tu, a exterior, que mal tens na alma oca? (...)

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Lembremos que a personalidade estilística de Pessoa-ortônimo é bastante plás-

tica antes do desenvolvimento pleno de Campos, Caeiro e Reis – o que é evidente no

desbocado (e algo preconceituoso) Soneto Positivo, escrito em 1910 e que caberia talvez

na boca de Campos, mas que temos de atribuir ao ortônimo pela mesma razão tem-

poral que trouxemos acerca de O Bibliófilo. Depois do nascimento de Campos, Pes-

soa dificilmente diria pela pena do ortônimo palavras como 'ronha' (maliciosa, en-

ferma, sarnenta) e 'sub-rameira' (quase-meretriz), que povoam o Soneto Positivo.

Apresentemos um último soneto de atribuição controvertida entre Pessoa e

Campos: “Não há verdade inteiramente falsa” é de 1926 e, portanto, Campos seria

candidato honorável a autor, existindo ativamente no universo pessoano desde 1915.

Não há verdade inteiramente falsa Nem mentira de todo verdadeira. O rio leva, espumelhada esteira Tudo o que esterilmente me realça... Prazer’s, talento, a perfeição consciente... O tipo físico distante /*de/ outros, (E se eu deixar cair uma semente No rio, os resultados serão neutros)... Maravilha fatal de toda a idade... O homem que se interroga, e age por fóra E só regressa a casa se não piora... No entanto, um bocado de saudade, Uma maneira de um apego à hora E uma reminiscência sem verdade.

Que se pode entender dos parênteses que o poeta fecha no v.8 (aliás, com a es-

tranha rima ‘neutros’/‘outros’)? Humor? Fernando Pessoa não costuma fazer graça

em seus sonetos... Que heterônimo se ri em sonetos a toda hora? Qual deles cria

neologismos tais como “espumelhada”, de som tão irreverente? Ora, Álvaro de

Campos – e cogito se este soneto sem assinatura não se possa atribuir a Campos,

localizando-o sua gênese entre os poemas da série Barrow-on-Furness e o soneto P-há.

Trata-se de uma conjectura a entreter. No entanto, o humor presente no poema não

atravessa irremediavelmente o campo de Pessoa rumo à dimensão de Campos, mas

fica como que sobre um muro onde a atribuição poderia ir a um ou outro lado. Qui-

çá o próprio Pessoa se perguntasse, aqui, quem deveria assinar o texto...

Fernando Pessoa ele-mesmo, o ortônimo, tem não só sonetos, mas mais de

duas centenas de sonetos, somando-se os em Inglês e os em Português – e até mes-

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mo um em Francês. Atribuímos ao ortônimo os sonetos assinados por Fernando

Pessoa e, em geral, os sem assinatura – havendo exceções como as que referimos

acima, em que atribuímos sonetos sem assinatura a Reis ou a Campos, por motivos

estilísticos ou formais. Por outro lado, há alguns sonetos tradicionalmente atribuídos

ao ortônimo que, aqui, associamos a heterônimos – por exemplo o poema “Eu”, que

a edição da Ática tomava por ortônimo e que aqui recebe a assinatura de Diniz da

Silva.

Há uma notável questão envolvendo o ortônimo, não de atribuição duvidosa,

mas de questionamento da autoria mesma, acerca do soneto “Alma de corno – isto é,

dura como isso”. Ao encontrarmos esse soneto, pensamos tratar-se de um poema de

outrem que Pessoa teria copiado para si, como é o caso de dois sonetos encontrados

no caderno de Pessoa de cota nº 153 (datado de 1902 a 1909):

[Ms. 153-p.1] “– Cansas-te ó vate?! – Não cansei; fiz pronto.” – D’um poeta brasileiro

[Ms. 153-p.3] Os Versos de Isidoro – “Fanfarunfias, farófias, bagatelas” – “A um tal An-tónio Isidoro dos Santos professor de retórica em Coimbra (que foi), em fins do sécu-lo 18 e que tinha o mau sestro de querer ser poeta à força (...)”

Tal como esses sonetos, o “Alma de corno...” não apresenta rasuras, o que nos

fez pensar: eis um poema ou copiado, ou passado a limpo por Pessoa. Ante o tom

chulo do soneto, julgamos serem versos de escárnio de outro alguém. Quais os

grandes sonetistas de escárnio e maldizer? Buscamos na tradição da poesia satírica

um possível autor: Bocage? Gregório de Matos? Nada encontramos com os versos

de “Alma de corno...”. A essa altura da pesquisa, pusemos o poema de lado por cer-

ca de um ano, como provável soneto de outrem a investigar.

Retornando ao poema durante a escritura desta tese, notamos que, abaixo dos

versos, há uma espécie de assinatura:

[FIGURA 12: uma rubrica?]

Ora, seria estranhíssimo assinar versos doutrem. Lemos duas iniciais – FP? –,

rubrica incomum em Pessoa, que costumava assinar nome & sobrenome ortônimos...

Buscamos nos manuscritos pessoanos outras rubricas do ortônimo. Não en-

contramos quaisquer “FP”s. No entanto, tivemos uma idéia a partir da assinatura

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presente no manuscrito do soneto Nova Ilusão (cota 35-28): compor uma rubrica a

partir das iniciais caligráficas do poeta... Será que nosso forjado “FP” seria algo simi-

lar à hipotética rubrica do poema “Alma de corno...”?

1. Assinatura do poema Nova Ilusão.

2. Assinatura acima com apenas iniciais & traço.

3. Composição dos elementos acima & comparação com a assinatura presente em “Alma de corno...” &

[FIGURA 13: Reconstituição e comparação de rubricas de Pessoa.]

Parece-nos que a reconstituição foi satisfatória; nossa forjada rubrica poderia

muito bem ser FP. No entanto, o ortônimo não apresenta em parte alguma versos

tão vulgares quanto os de “Alma de corno...”. Revendo a exaustiva lista de heterô-

nimos levantada por CAVALCANTI FILHO (2011), conjecturamos a atribuição a

outro FP, diretor da seção humorística de O Palrador, o heterônimo Francisco Paú,

que, assim, receberia um soneto quiçá inédito.

Mesmo após essa elucubração, ainda acreditamos que algum especialista em

poesia satírica portuguesa possa reconhecer no soneto “Alma de corno...” a mão de

um outro poeta... Sobre essa possibilidade, diremos o mesmo que escreveu Domin-

gos Fernandes ao deparar-se com o grande problema da autoria dos sonetos camoni-

anos, em sua edição de 1616 (apenas troque o leitor Camões por Pessoa):

(...) se neste livro se acharem algũas cousas que não sejam de Camões, não me ponham culpa, que com boa fé as dei a impressão com muita diligência.

(Domingos Fernandes apud BERARDINELLI, 2000: 249)

Devemos, ainda, ressaltar Alexander Search, heterônimo de juventude, que

conta com dezenas de sonetos, sendo a segunda atribuição mais frequente na edição

desta tese. Search foi tão influente na juventude do poeta, que magneticamente che-

gou a reclamar para si sonetos anteriormente atribuídos a Charles Robert Anon, rele-

gado a menos de meia dúzia de sonetos.

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Há, por fim, os heterônimos autores de 1 ou não mais que 4 sonetos: Dr. Pan-

crácio assina 4, Vicente Guedes assina 3 e Carlos Otto, Eduardo Lança, Joaquim

Moura Costa, Diniz da Silva, David Merrick e o Íbis (um heterônimo-pássaro egíp-

cio) assinam (cada um deles) um único soneto. Segue uma lista dos heterônimos

com indicações temporais de composição de seus primeiros sonetos.

Dr. Pancrácio (Maio de 1902) Eduardo Lança (Junho de 1902) Fernando Pessoa (Agosto de 1902) David Merrick (circa 1904) Charles Robert Anon (Abril de 1904) Alexander Search (Agosto de 1904) Carlos Otto (1909) Vicente Guedes (Janeiro de 1910) Joaquim Moura Costa (Abril de 1910) F.P., talvez Francisco Paú (circa 1910) Íbis (Junho de 1911) Álvaro de Campos (1913 na ficção de Pessoa; em verdade, provavelmente 1922) Ricardo Reis (provavelmente 1918) Diniz da Silva (1923)

Alguns desses heterônimos foram mais criados por seus sonetos do que criadores

deles – verdadeiras pessoas de Soneto.

1.3.3.2. INCLUSÃO

Já exemplificamos desafios de fixação do texto e de atribuição dos sonetos pes-

soanos a heterônimos específicos. Na raiz desta tese, há uma outra questão a enfren-

tar: que poemas incluir? Pessoa tem perto de 30 mil páginas escritas (CAVALCANTI

FILHO, 2011: 12); dentre essa imensidão de obras, que poemas incluir em nossa edição

dos sonetos de Pessoa?

Ora, incluiremos os sonetos e apenas os sonetos... Mas, o que é um soneto? A

definição de “soneto” é um problema central e, portanto, planejo tratar da história

dessa forma de composição poética, incluindo as primeiras manifestações do soneto

e suas vertentes mais contemporâneas, cujas distintas abordagens de o que é “sone-

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to” nos permitirão englobar mais ou menos poemas de Pessoa no corpo dos objetos

deste estudo.

Após definir “soneto”, apresentaremos exemplos de peças que não foram re-

conhecidas como sonetos pelas edições existentes dos poemas de Pessoa, argumen-

tando por que reconhecê-las como sonetos é essencial para o seu estudo – e por ve-

zes até mesmo para uma fixação mais apurada do texto dos poemas. Em seguida,

usando a definição proposta, defenderemos como sonetos alguns poemas incompletos

de Pessoa. Por fim, estudaremos alguns poemas pessoanos que se encontram nas

margens de nossa definição de soneto, provocando os limites de inclusão de textos

entre os objetos de estudo desta tese.

1.3.3.2.1. SONETO...

Em seu excelente manual de formas poéticas (The Teachers & Writers Handbook

of Poetic Forms), Ron Padget (1987) define “soneto” de modo meticuloso; tomaremos

sua definição como ponto de partida para nosso critério de inclusão de poemas nesta

tese, expandindo-a, comentando-a e criticando-a quando necessário:

A sonnet is a fourteen-line poem , thought to have been invented by the poet Giacomo da Lentini (ca. 1200-1250). It is one of the most well known of all verse forms in the Western world. The word sonnet is derived from the Italian word sonetto, a little sound or song, which came from the Latin sonus, meaning “a sound”.

Aprendemos a etimologia do soneto: “pequena canção”, que está para a poesia

assim como a “sonatina” para a música (sonatina = “pequena sonata”, composição

instrumental “soada” em vez de cantada). Sendo uma canção curta e de forma defi-

nida (logo, fácil de memorizar), o soneto ganhou enorme popularidade no hemisfério

ocidental, comparável à fama do haiku ou do ghazal no oriente. Também aprende-

mos o nome do presumido inventor do soneto, Giacomo da Lentini (séc. XIII), no-

tário de profissão e poeta de vocação, do qual reproduzimos um soneto abaixo:

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Figura 14 – Soneto de Giacomo da Lentini em decassílabos (In: LANGLEY, 1915: 61).

Pode-se argumentar que o soneto não é somente uma forma poética, mas algo

mais vasto... algo como um gênero da poesia, envolvendo características temáticas e

um certo processo de pensamento que se reflete na linguagem – além dos elementos

formais pelos quais o reconhecemos facilmente numa página; entre milhares de ma-

nuscritos de Pessoa, o fato de um soneto rascunhado saltar aos olhos foi freqüente-

mente motivo de alegria para este pesquisador. Ron Padget prossegue sua definição

do soneto, elaborando o modo de pensamento característico desta forma poética:

The sonnet form involves a certain way of thinking: the setting up or development of a thought or idea which is brought to a conclusion at the end of the poem. Sticking to one subject in the sonnet and creating pauses at the ends or in the middles of lines make the poem resemble the way we think when we are thinking about a single idea.

Leiamos um soneto de Pessoa em busca deste “certo modo de pensar” des-

crito por Padget. Segue o primeiro soneto de Pessoa, escrito em 1902 e assinado

pelo Dr. Pancrácio, quando o poeta tinha ainda 13 anos de idade.

Sonho Sonhei esta existência de venturas, Sonhei que o mundo era só d'amor, Não pensei que havia amarguras E que no coração habita a dor. Sonhei que m'afagavam as ternuras De leda vida e que jamais palor Marcou na face humana as desventuras Que a lei de Deus impôs com /*☐/ rigor. Sonhei tudo azul e cor-de-rosa E a sorte ostentando-se furiosa Rasgou o sonho formoso que tive;

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Sonhando sempre eu não tinha sonhado Que nesta vida sonha-se acordado, Que neste mundo a sonhar se vive!

~ Dr. Pancrácio, 24-5-1902

Não escolhemos este poema ao acaso: embora seja o 1o soneto de Pessoa, sur-

preendentemente ele apresenta um tom de maturidade, sintetizando um dos temas

fundamentais da filosofia pessoana (o Sonho, a que retornaremos na 3a parte desta

tese). Se esta composição manifestar os atributos descritos por Padget, teremos um

sólido ponto de referência para nossa almejada definição de “soneto”. Perguntemos:

– O soneto de Pessoa desenvolve um pensamento (ou idéia) de modo a trazê-

lo a uma conclusão ao fim do poema?

– Trata o poeta de um – e apenas um – tema no poema?

– Cria o poeta pausas nos fins (e nos meios) dos versos, assemelhando o sone-

to ao modo como pensamos (quando estamos pensando sobre uma idéia específica)?

Com exceção de pausas nos meios dos versos (algo que Pessoa viria a elaborar

após seus 13 anos de idade), o poema em questão atende a todos os quesitos apre-

sentados por Padget, em termos do caráter pensativo do soneto.

Prosseguindo com seu verbete, Padget profere que “the most well-known son-

nets are by Petrarch, Spenser, Shakespeare, Milton & Wordsworth”. Não obstante a

inclusão de Petrarca, é evidente que Padget está destacando os sonetos mais conheci-

dos em seu próprio universo de leitura (de língua inglesa) – e qualquer apaixonado

das literaturas neolatinas poderia muito bem discordar. Padget adiciona que “other

great writers of sonnet include Elizabeth Barrett Browning, Thomas Wyatt, W. H.

Auden, Rainer Maria Rilke, Edna St. Vincent Millay, Dante, Gerard Manley Hopkins

and Dylan Thomas”. Outra vez, apesar de Rilke e Dante constarem na lista, Padget

realça autores da literatura Anglo-Americana – e prossegue fazendo-o, ao discorrer

sobre a divisão estrófica do soneto à moda Inglesa como sendo a mais comum:

The most common form of the sonnet is a fourteen-line poem in two parts: an oc-tave (eight lines) and a sestet (six lines). The octave can be divided into two four-line stanzas and the sestet can be divided into one four-line stanza and a couplet (the two lines at the end). The chance to have two lines at the end, set off from the rest of the poem, often gives the poet the moment to conclude the poem’s thought in a momentous and satisfying way.

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Mais uma vez, apresentar como mais comum a forma de três quartetos e um dís-

tico é uma concepção embebida de costumes ingleses. A forma italiana do soneto –

com dois quartetos e dois tercetos – é pelo menos tão comum quanto a inglesa.

Pessoa emprega ambos os arranjos estróficos, e nem sempre seu emprego

condiz com o idioma utilizado, isto é: o poeta tanto escreve à moda inglesa em Inglês

& à moda italiana em Português, quanto emprega a forma inglesa em Português e a

italiana em Inglês, embaralhando formas e idiomas.

Embora a maioria absoluta dos sonetos de Pessoa em Português tenha estrofes

sob a forma italiana (4433), encontramos 3 sonetos em Português estruturados sob a

forma inglesa (4442): “Se eu te adorara então como hoje adoro” (1910), A Sala do

Trono Carcomido (1915) e o poema que encerra o ciclo de cinco sonetos intitulado Bar-

row-on-Furness (1915-1923) – sendo o ciclo assinado pelo heterônimo Álvaro de Cam-

pos e com o curioso detalhe de os primeiros quatro sonetos estarem à moda italiana.

Barrow-on-Furness V Há quanto tempo, Portugal, há quanto Vivemos separados! Ah, mas a alma, Esta alma incerta, nunca forte ou calma, Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. Sonho, histérico oculto, um vão recanto... O rio Furness, que é o que aqui banha, Só ironicamente me acompanha, Que estou parado e ele correndo tanto... Tanto? Sim, tanto relativamente... Arre, acabemos com as distinções, As subtilezas, o interstício, o entre, A metafísica das sensações — Acabemos com isto e tudo mais... Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

~ Álvaro de Campos, entre 1915 e 1923

Note-se que o esquema rímico empregado pelo poeta acompanha o esquema

estrófico: abba acca dede ff – e os dois versos finais emparelham suas rimas.

Sonetos em Inglês à moda italiana são muito mais comuns em Pessoa do que

os em Português à moda inglesa. Ainda que Pessoa tenha publicado os 35 Sonnets à

moda inglesa (4442, seguindo Shakespeare), todos os sonetos de Charles Robert

Anon e a maioria dos de Alexander Search desenvolvem-se com dois quartetos e dois

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tercetos (4433); têm, pois, forma italiana, os primeiros sonetos em Inglês do poeta,

dos quais apresentamos o segundo, assinado por Anon:

Could I say what I think, could I express My every hidden and too-silent thought, And bring my feelings, in perfection wrought, To one unforced point of living stress; Could I breathe forth my soul, could I confess The inmost secrets to my nature brought; I might be great; yet none to me hath taught A language well to figure my distress. Yet day and night to me new whispers bring, And night and day from me old whispers take... Oh for a word, one phrase in which to fling All that I think or feel, and so to wake The world; but I am dumb and cannot sing, Dumb as yon clouds before the thunders break.

~ Charles Robert Anon, Maio de 1904

Sobre o cânone de sonetistas proposto por Padget acima, gostaríamos de apre-

sentar uma alternativa mais internacional, em forma de linha cronológica; no gráfico

a seguir (FIGURA 13), vejamos:

n em vermelho, autores de língua Portuguesa;

n em azul claro, os de Inglesa;

n em azul escuro, os de Espanhola e Alemã;

n em amarelo, os de Francesa.

n e, em laranja, os de Italiana.

Os nomes citados não são de meros repetidores de uma forma poética estática,

mas de revolucionários, poetas recriadores do soneto em vários critérios, em variados

contextos.

Conforme seguimos a linha do tempo, os poetas tomam mais e mais liberdades

com o soneto, primeiramente alvedrios temáticos, de pensamento e de linguagem –

e, ultimamente, liberdades cada vez maiores com a própria forma.

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Figura 15 – Linha do Tempo com alguns poetas sonetistas.

Por exemplo: Camões revolucionou o soneto de Petrarca, mudando-lhe a filo-

sofia e, portanto, o modo de pensamento (comparem-se o “Alma minha...” de Ca-

mões com o “Quest'anima gentil…” petrarquiano). Shakespeare revolucionou a

temática do soneto, escrevendo seus mais belos sonetos de amor a um amigo ho-

mem! Bocage e Pessanha elevaram a musicalidade da forma a patamares irrepetíveis.

Tal como Baudelaire na França, Augusto dos Anjos no Brasil subverteu a linguagem

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empregada no soneto, incluindo em seus poemas jargões científicos e vocábulos con-

siderados ultrajantes em sua época. Os franceses Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e

Valéry – e o alemão Rilke – fizeram do enjambement (“cavalgamento”) um ritmo es-

sencial no corpo do soneto, trazendo ao primeiro plano a tensão entre frase e verso.

Os sonetos de Vinícius de Moraes e Carlos Pena Filho atravessaram os limites entre a

música e a poesia. e. e. cummings (escrito mesmo com minúsculas), mestre das pau-

sas e respirações, recriou o conceito de pontuação do soneto. Temos, pois, exemplos

de liberdades temáticas, de pensamento e de linguagem.

Prossigamos na linha do tempo. Pablo Neruda reconsiderou a própria forma

do soneto: muitos de seus Cién Sonetos de Amor (1924) cadenciam versos brancos e

livres – e ninguém hoje negaria estar diante de sonetos primorosos. Padget concor-

da, mais à frente em seu verbete: “Nowadays it is possible to write sonnets that have

no particular meter or rhyming schemes”.

Chegando ao fim de nossa breve viagem no tempo, Robert Duncan, nos EUA,

explodiu a forma, compondo sonetos que nem catorze versos têm. Em Português,

Herberto Helder rompeu todas as fronteiras, compondo sonetos eufóricos, brutais,

com uma divisão estrófica que em nada se parece com a de um soneto tradicional.

Onde está Pessoa em meio a essas revoluções? Qual a sua representatividade

na história do soneto?

Esta pergunta é uma das razões para a existência desta tese. Minha resposta é a

tese inteira – e cabe a cada um chegar à sua própria conclusão sobre a pergunta.

Contudo, se restringimos nosso foco ao soneto de Pessoa, por um momento sem

compará-lo a outros sonetistas, podemos formular outra pergunta, quiçá mais tratável:

como Fernando Pessoa entende o soneto e aborda os seus limites? Enfrentando antes esta ques-

tão mais comedida, talvez possamos medir a influência de Pessoa na história do so-

neto.

Em termos formais, a maioria dos sonetos de Pessoa é tradicional (seguindo

ora a forma inglesa, ora a italiana) – ainda que haja poemas que consideraremos “so-

netos” e que fugirão a esta regra (vide seção “SONETO?” mais adiante).

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Em termos de linguagem e pensamento, Pessoa é um inventor de palavras, vo-

cabulários e estilos, que, dependendo do heterônimo, vão do sublime ao vulgar: ao

lado de sonetos místicos de Pessoa, o Dr. Pancrácio e Joaquim Moura Costa abor-

dam temas nada elevados, e Álvaro de Campos chega a xingar num soneto.

Como exemplo de Pessoa testando os limites da tradição, arriscamos dizer que

Álvaro de Campos revoluciona o soneto em Portugal, por exemplo, ao escrever

“Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de”.

Soneto III Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de Dizer aos meus amigos aí de Londres, Embora não o sintas, que tu escondes A grande dor da minha morte. Irás de Londres pra York, onde nasceste (dizes... Que eu nada que tu digas acredito), Contar àquele pobre rapazito Que me deu tantas horas tão felizes, Embora não o saibas, que morri... Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar, Nada se importará... Depois vai dar A notícia a essa estranha Cecily Que acreditava que eu seria grande... Raios partam a vida e quem lá ande!

~ Álvaro de Campos, Dezembro de 1913 (A bordo do navio em que embarcou para o Oriente;

uns quatro meses antes do Opiário, portanto)

GARCEZ (1981) analisa este poema em detalhe e de maneira brilhante, con-

frontando o desafio de calcular as revoluções latentes em seus versos. Transcrevo

aqui trechos da análise de Garcez, à guisa de amostra do que será preciso fazer com

cada um dos sonetos de Pessoa, caso desejemos uma avaliação completa das contri-

buições do poeta à história do soneto.

[Em “Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de”,] Álvaro de Campos interpreta e reali-za esta forma multissecular [do soneto] de um modo personalíssimo, inovando-a sob vários aspectos, e somente desentranhando as originalidades que o texto apresenta é que poderemos julgar de seu valor artístico. (...) Ora, de (...) idealismo acha-se despido o texto de Álvaro de Campos. Primeiramente, o soneto não é sempre, para ele, “a forma completa do lirismo puro” [expressão de Ante-ro de Quental] ou, pelo menos, seu conceito de lirismo diverge, sobremaneira, do de Antero. A composição pessoana é uma carta em forma de soneto e uma carta suma-mente informal, onde se fazem alguns avisos a uma interlocutora de nome Daisy, sobre as medidas que deverá tomar quando sobrevenha a morte do remetente. O registro de

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linguagem que emprega é o coloquial (...). Atentemos para a banalidade da “chave de prata” com que inaugura seu poema: “Olha, Daisy, quando eu morrer” (...). Se o estilo é coloquial, é também e, principalmente, irônico, intencionalmente displicen-te. (...) Campos não é um desarmado que faz uma confissão direta de sua dor: é alguém que se camufla, lança mão da ironia e da displicência como de uma máscara para ocultar seus verdadeiros sentimentos. (...) (...) importa salientar que, de modo algum, por empregar o estilo baixo, a poesia de Campos é mais fácil. Pelo contrário, o esforço de resgate de palavras tem de ser muito maior, pois seu poema está composto de palavras coloquiais e é necessário que cada uma delas passe a se reger por uma nova lei, diferente da que a rege quando está em-pregada fora de um contexto poético. (...) Resta-nos falar que seu “fecho de ouro” é uma imprecação: “Raios partam a vida e quem lá ande!”, portanto, um “fecho de ouro” às avessas. (...) É um fecho estridente, que constitui um acabado exemplar da obra de arte dissonante, apontado por Hugo Friedrich como característica da obra de arte moderna. (...) poderíamos concluir dizendo que, pelas ousadias técnicas que apresenta, se trata de um soneto sumamente original, subversivo mesmo (...).

Voltemos ao verbete de Padget, pois ainda não tratamos de rimas, tão caracte-

rísticas num soneto quanto a divisão estrófica:

Traditional rhyme schemes for the sonnet vary a lot, the most famous being abab cdcd efef gg (Shakespeare), but Wordsworth often did it this way: abbaaccb dedeff. The rhymes and sound schemes of the sonnet are similar to those of the ballad and of popular songs, but the sonnet is not a narrative poem and is usually more complex or con-densed, and more contained within itself, since it is shorter and has no repetition of lines or refrain.

Uma vez mais Padget apresenta como “mais comum” uma característica da li-

teratura inglesa: o esquema rímico de Shakespeare e Wordsworth. Em Pessoa, ao

menos tão comuns quanto as rimas alternadas (abab), são as rimas interpoladas nos quar-

tetos (abba), enquanto nos tercetos a variação é imensa. Embora os 35 Sonnets sigam

um esquema rímico estritamente shakespeariano, Pessoa frequentemente compôs

sonetos em Inglês com rimas interpoladas.

Note-se: Padget escreve que o soneto não é um poema narrativo e que não tem

repetições de linha (ou refrão), mas Pessoa quebra ambas estas regras em ao menos

uma ocasião. Seu primeiro soneto Inglês é totalmente narrativo (The Death of the Ti-

tan) – e o poema “Lady, believe me ever at your feet” repete versos belamente.

Após esta breve história do soneto e do soneto em Pessoa, onde estamos em

nossa definição (ainda que provisória) do soneto visto como forma poética? Em ge-

ral, um soneto de Pessoa deve ter:

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* 14 versos (veremos, nesta tese, pelo menos uma exceção);

* 4 estrofes, divididas em 2 quartetos e 2 tercetos, ou em 3 quartetos e 1 dístico (defenderemos algumas exceções);

* rimas, em geral alternadas ou interpoladas nos quartetos (outra vez, aqui de-fenderemos exceções, inclusive sem rimas).

Estará Pessoa mais para a regra ou para a exceção no que concerne à forma do

soneto – ou será algo como uma ponte entre tradição & ruptura?

1.3.3.2.2. SONETO!

Sob muitas formas, esta tese conta com uma posição privilegiada. Primeira-

mente, estou estudando os sonetos e apenas os sonetos de Pessoa: isto não só reduz o

corpus a investigar, como também fornece um enquadramento (literal!) à busca dos

textos originais. Este enquadramento é literal, porque os sonetos que buscamos, em

princípio, apresentam uma forma fixa: reconhecer 14 versos divididos em 4 estrofes é

algo relativamente fácil em meio a quaisquer poemas. Por exemplo, em meio a odes,

fragmentos de odes e apontamentos sem forma ou rima de Álvaro de Campos, um

soneto é “um caco [que] brilha, virado do exterior lustroso”, para usar uma imagem

do poema Apontamento feito pelo próprio Campos (cf. BERARDINELLI, 1999).

Creio mesmo que uma edição de todas as obras de Pessoa seria uma aventura

mais tratável, caso os poemas a estudar (e a encontrar e a fixar) fossem agrupados

segundo sua forma (ou ausência de forma) poética. Só posso imaginar o trabalho

hercúleo de uma edição crítica como a da INCM, que se propôs a ler os poemas de

Pessoa em compartimentos temporais – editando todos os rascunhos encontrados

em determinadas delimitações temporais.

Outra razão para minha posição privilegiada está em contar com edições como

as da INCM, que tanto tempo dedicaram à leitura dos originais pessoanos... e a todas

as demais edições disponíveis da obra de Pessoa, que por vezes sem tantos recursos

financeiros e prazos indeterminados (como os da INCM) fizeram leituras muitas

vezes mais acertadas. Tenho, pois, o privilégio de comparar edições, com o auxílio

de ferramentas tecnológicas tais como scanner, microfilmes e telas de plasma que

ampliam manuscritos digitalizados como uma lupa implacável.

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Diante dessas vantagens, pus-me a estudar os manuscritos e datiloscritos dos

poemas candidatos a sonetos de Pessoa, frequentemente num ambiente assim dis-

posto: de um lado, uma edição crítica da INCM; de outro, uma edição alternativa,

sem o selo de crítica mas não por isso de menor qualidade; protagonizando a cena,

uma grande tela de computador exibindo, em ampliação exagerada, uma digitalização

do testemunho original do poema, em letra ou datilografia de Pessoa; sob meus de-

dos, um outro computador para eu tecer a minha versão, resumindo as contribuições

das múltiplas edições, após cautelosamente compará-las, contrastá-las, criticá-las.

Digo isso não como extenso agradecimento (merecido) a todos os editores que

incluíram em suas publicações algum soneto de Pessoa, mas para que se esclareça

como cheguei a incluir, neste estudo, poemas que nunca antes tinham sido vistos

como sonetos.

Apresentarei, a seguir, um exemplo de análise debruçada sobre um desses po-

emas, que nem a edição da INCM, nem a edição independente viram como soneto.

O Rei O Rei, cuja coroa de oiro é luz Fita do alto trono os seus mesquinhos. Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos E por trono Lhe deram uma cruz. O olhar fito do Rei a si conduz Os olhares fitados e vizinhos Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos, As pálpebras descidas de Jesus. O Rei fala, e um seu gesto tudo prende, O som da sua voz tudo transmuda E a sua viva majestade esplende; Meu Rei morto tem mais que majestade: Fala a Verdade nessa boca muda; Essas mãos presas são a Liberdade.

~ Fernando Pessoa, 31-7-1935

Comecemos pela fixação do texto deste soneto. PRISTA (2000) & SFD3

(2006) divergem na definição de três versos do poema e nenhum deles o distingue

como soneto, o que me causa algum espanto, por uma série de motivos que me fize-

ram gritar “Eureka!” e que apresento a seguir. Logo, além de divergirem entre si em

três versos, discordo eu de ambos noutros dois – discordância que resultou na altera-

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ção do total de versos do poema, eu acrescentando o v.11 e empurrando os ex-versos

11, 12 e 13 à nova numeração de 12, 13 e 14 – o suficiente para um soneto!

Analisemos as leituras variantes deste texto, começando pelas divergências en-

tre SFD3 & PRISTA.

* v.6: “Os olhares fitados e vizinhos” (PRISTA) “Os olhares fitados e sozinhos” (SFD3) * v.8: “As pálpebras descidas de Jesus.” (PRISTA) “As pálpebras mortas de Jesus.” (SFD3)

Em ambas as dissensões sigo a leitura de PRISTA, pois, como ele, sempre edi-

to as últimas versões do texto, ao passo que SFD3 em geral preferem as primeiras

variantes escritas pelo poeta. Entendo que a última variante não necessariamente foi

dubitada pelo poeta, ao contrário da primeira, deveras posta em questão pelo mero

fato de o poeta ter escrito uma segunda.

Especificamente, o uso da primeira variante no v.8 (editada por SFD3), além

de quebrar o decassílabo, geraria extrema perda poética com a repetição de “mortas”,

cuja segunda ocorrência o poeta dubitara ao escrever a versão aprimorada com “des-

cidas”; segue a primeira:

Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos As pálpebras mortas de Jesus.

Reparemos, agora, para o paralelismo expresso no último terceto, culminando

num fecho para o qual apresentamos três leituras distintas:

v. 14: “Suas mãos presas são a Liberdade” (PRISTA) “E essas mãos presas são a Liberdade” (SFD3) “Essas mãos presas são a Liberdade” (minha fixação)

Reparando no v. 13 (“Fala a Verdade nessa boca muda”), vê-se um paralelismo

de pronomes antecedendo as palavras “boca” (v.13) e “mãos” (v.14): são os prono-

mes “sua/suas” ou “nessa/Essas”, dependendo da versão escolhida por um editor,

visto que Pessoa parece dar margem à leitura de ambas. Note-se, porém, que Pessoa

dubitou a variante “sua” sobreposta à palavra “nessa” no v.13 (vide o círculo cortado

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com uma cruz que Pessoa usa como símbolo de dubitação). Logo, opto por manter

o paralelismo de pronomes nesta edição, fixando “nessa/Essas”.

Nem PRISTA nem SFD3 reconhecem o poema como soneto – ambos excluindo

de suas edições a linha que edito como v.11. A razão desse irreconhecimento talvez ve-

nha de Pessoa ter cortado dois versos logo abaixo do v.11, dando margem à interpre-

tação de que também tivesse cortado o próprio v.11, escrito em letra bem menor.

Figura 16 – Poema O Rei (63-34), previamente não reconhecido como soneto.

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Aqui, incluo tal v.11, pois ele completa o soneto, deixando o poema com 14

versos (PRISTA & SFD3 publicam o texto com só 13 dos seus versos). Eis meus

argumentos para a reconsideração deste poema como soneto.

a) Todos os elementos de um soneto tradicionais estão presentes no poema:

métrica decassilábica, rimas interpoladas nos quartetos, presença de quatro estrofes

(dois quartetos & dois tercetos).

b) Sobre a rima, note-se a força encantatória que têm, visto serem apenas duas

as terminações nos primeiros oito versos (abba abba), o que talvez já seja suficiente

para separar a agulha de um soneto pessoano no meio de um palheiro de poemas!

c) Sabemos que o poeta preparou o tríptico de sonetos No Túmulo de Christian

Rosencreutz para a publicação (que não chegou a ocorrer) na Revista Sudoeste de No-

vembro de 1935 (mesmo ano de O Rei ) – e o poema incompleto no verso da página

do soneto em questão (Mãe de Deus) também pode ser lido como soneto (como ar-

gumentaremos em nossa edição). Logo, O Rei estaria na companhia de outros 4 so-

netos escritos no mesmo período de alguns meses; e, ainda que isso por si só não

tenha o peso de argumento final, serve para emprestar um contexto de plausibilidade

ao reconhecimento do poema como soneto.

d) Note-se que o poema incompleto Mãe de Deus, no verso do testemunho,

além de poder ser lido como soneto, complementa perfeitamente a temática de O Rei:

um soneto dedicado a Cristo, logo em seguida um outro dedicado à Virgem Maria.

e) Ao fim do poema dedicado a Maria, Pessoa enigmaticamente escreve, entre

parênteses, uma espécie de assinatura ou apontamento abaixo dos versos:

(A Mulher, Rosa nesta Cruz que é o mundo).

Ora, “O Rei” esteve na cruz e é a Cruz; “Mãe de Deus” é a Rosa segundo Pes-

soa; Christian Rosencreutz é ambos, Rosa-Cruz. Nada mais natural que temas afins

fossem tratados por Pessoa em seus últimos 5 sonetos, de tom elevado e místico.

f) Agora, chegamos ao problema dos tercetos: se o poema for um soneto, co-

mo poderia um soneto não rimar perfeitamente nos tercetos? O reconhecimento do

poema como soneto deveria facilitar a leitura e não complicá-la! Pela “navalha de

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Ockham” (lei da simplicidade), a explicação mais simples deveria ser a mais correta –

e um soneto só seria mais simples se fizesse o poema rimar, em vez de acrescentar

mais um verso que não rima ao poema. Era essa justamente a minha dúvida ao me

deparar com este texto, pois pelos quartetos eu intuía estar perante um soneto, que

contudo eu não reconhecia nos tercetos da edição crítica; em posse do manuscrito, a

navalha de Ockham cortou as demais possibilidades ao meu ver. Eis o meu processo

de investigação.

Primeiro, vejamos a edição de PRISTA para os versos 9 em diante.

O Rei fala, e um seu gesto tudo preenche, O som da sua voz tudo transmuda. Meu Rei morto tem mais que majestade: Fala a Verdade nessa boca muda; Suas mãos presas são a Liberdade.

Minha primeira reação foi pensar: é estranho a palavra “preenche” não rimar

com nada, especialmente após 8 versos rimados.

Perante o manuscrito, encontrei o verso que edito como 11 (escrito entre os

versos com rimas “transmuda” e “majestade” – verso que Prista anota como riscado

pelo poeta, o que acima mencionei ser a possível razão de este soneto ter passado des-

percebido. Acrescentemos, pois, este verso à edição de Prista, tal como ele o lê.

O Rei fala, e um seu gesto tudo preenche, O som da sua voz tudo transmuda. E a sua viva majestade esplendor; Meu Rei morto tem mais que majestade: Fala a Verdade nessa boca muda; Suas mãos presas são a Liberdade.

Com essa operação, já teríamos seis versos adicionais aos dois quartetos, o su-

ficiente para um soneto – e poderíamos separar estes seis versos em duas estrofes,

visto que o manuscrito apresenta espaço (ainda que riscado) entre as primeiras três e

as últimas três linhas deste bocado de poema. Vejamos, pois, como ficam estes terce-

tos com espaço para respirarem:

O Rei fala, e um seu gesto tudo preenche, O som da sua voz tudo transmuda. E a sua viva majestade esplendor; Meu Rei morto tem mais que majestade: Fala a Verdade nessa boca muda; Suas mãos presas são a Liberdade.

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Analisemos estas rimas: deveria haver 3 pares de rimas – mas há só dois:

transmuda/muda e majestade/liberdade. Por que “preenche” não rima com “esplen-

dor”? Terá Pessoa perdido a rima em meio às rasuras de um manuscrito apressado?

É possível, mas não totalmente aceitável ao meu ver, visto que há outra explicação ao

menos tão possível quanto a primeira, a saber: ter PRISTA feito uma leitura imperfei-

ta. A leitura de “preenche” só à primeira vista parece acertada, por caber semantica-

mente no verso; no entanto, a de “esplendor” parece um tanto forçada, pois que

coisa seria uma “viva majestade esplendor”? “Esplendor” seria um tipo de majesta-

de? Majestade de “pé quebrado”, visto que a acentuação oxítona de “esplendor” faz

o verso ter onze sílabas em vez de dez. Há, ainda, outro problema: reparando bem

no manuscrito, “preenche” não parece conter dois “e”s, mas apenas um (como se

fosse “prenche”, sic!), ao que teríamos a absurda não-rima: “prenche/esplendor”.

A essa altura da análise, pensei: ora, se uma outra leitura plausível destes dois

finais de versos lograr uma rima, não só o poema soaria melhor, como estaria encon-

trado o argumento final para se considerar o poema um soneto!

E a rima foi encontrada. “Preenche”, que já vimos parecer mais “prenche”

(com um “e” só), pode muito bem ser lido como “prende”. Ora, esplendor é o subs-

tantivo do verbo “esplender”, preciosíssimo, que não por acaso na terceira pessoa do

singular do presente do indicativo se conjuga como “esplende” – perfeita rima para

“prende”. EUREKA! O esquema rímico dos tercetos torna-se subitamente cdc ede.

Uma dúvida: seria “esplende” mera alucinação da mente do editor? De volta

ao manuscrito, a leitura parece totalmente possível e, na verdade, muito mais acertada

ante as garatujas pessoanas. De todo modo, mesmo se considerarmos esta leitura tão

plausível quanto a de PRISTA, ainda tem ela a vantagem de reconhecer o soneto,

sem pés quebrados.

Outra dúvida: teria Pessoa alguma outra vez usado o verbo “esplender”? En-

contramos Álvaro de Campos a esplender o último verso do segundo soneto do ciclo

Costa do Sol, em 9-9-1932: “Que ‘splendeu astros sobre o mar Egeu”; eis outro soneto

esplêndido, escrito na mesma década.

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Acrescentando, pois, a nova rima aos tercetos e ajustando o pronome que ini-

cia o v.14 para “Essas” (para formar o paralelismo supracitado), chegamos à versão

final de nossa equação em soneto. Caso encerrado*; recitemos os tercetos.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende, O som da sua voz tudo transmuda E a sua viva majestade esplende; Meu Rei morto tem mais que majestade: Fala a Verdade nessa boca muda; Essas mãos presas são a Liberdade.

Vimos, pois, como o reconhecimento da forma do soneto fornece a fôrma com

que realizar a fixação de um poema.

Reconhecer a moldura do soneto fez com que alterássemos a fixação de outros

poemas, que portanto edito de modo distinto das publicações anteriores. Além de O

Rei, outros sonetos completos (ou quase completos) assim relidos são:

“Mãe de Deus, porque tu a Deus criaste” (poema já mencionado, escrito no verso do testemunho de O Rei); Ao Cabo da Boa Esperança IV – “Quem Deus escolhe, nunca fez /*felizes/” (último po-ema de um ciclo de sonetos, logo um soneto em si mesmo).

Os sonetos incompletos ou fragmentários que pude reconhecer sob a moldura

de 14 versos são em maior número – donde serão tratados a seguir, em seção à parte.

1.3.3.2.3. INCOMPLETUDE

O que é um soneto incompleto? É possível algo incompleto ser reconhecido

como soneto, forma poética conhecida justamente por seu acabamento? Como ter

por certo como soneto um poema a que faltam versos inteiros?

Decidimos incluir fragmentos de sonetos entre os sonetos rematados por Pes-

soa, sempre que possamos defender o reconhecimento do soneto como tal. O pro-

blema da incompletude em Pessoa, na realidade, ultrapassa o desafio do reconhecimen-

to de fragmentos de soneto, pois, em certo sentido, poderíamos chamar de incompletos

todos os poemas que Pessoa não publicou em vida.

* Caso quase encerrado; após a revisão deste capítulo, a Prof ª. Berardinelli notou no ms. uma var. alternativa – e provavelmente posterior – para os vs. 13 e 14 (vide edição final do soneto O Rei na pág. 239).

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Qualquer medida de incompletude que empregarmos, portanto, não será isenta

de arbitrariedade; donde, decidimos não segregar os fragmentos em relação a um

grupo especial contendo sonetos “mais acabados”. Por exemplo, suponhamos que

nossa medida de completude esteja na presença de catorze versos; nesse caso, o po-

ema “Mãe de Deus, porque tu a Deus criaste”, mesmo com três de seus catorze ver-

sos em estado deveras fragmentário, estaria ainda em nossa classe de sonetos “mais

para completos que para incompletos”, visto ser notório o corte do poema.

Entretanto, que dizer de um soneto como o Ao Cabo da Boa Esperança III (“Foi

quem te descobriu que te criou”), ao qual falta um verso inteiro (além de fragmentos

de versos)? Seria ele “menos soneto”, ainda que sua “sonetude ” seja evidente, por se

tratar do terceiro poema de um ciclo de sonetos?

Sem acreditar em limites arbitrários, propusemo-nos, pois, o desafio de legiti-

mar até mesmo os sonetos mais fragmentários de Pessoa.

Alguns poemas se justificam como sonetos com argumentos similares aos do

soneto III Ao Cabo da Boa Esperança, por comporem, junto a outros sonetos, uma

guirlanda. São eles:

Abdicação VII – “Com a expressão a dor menos se apaga” (após seis sonetos num mes-mo ciclo, não é preciso muito para adivinhar como soneto o fragmento de um sétimo). “Por que atalhos, Princesa, nos perdemos...” (o quarto soneto de uma curiosa guirlanda sem título, escrita por Pessoa em 1914; só sabemos a ordem dos poemas devido aos numerais apostos ao incipit de cada parte; sendo o quarto poema da série, após três so-netos, não é disparate supor que ele também seja soneto; SFD1, porém, não o editam como tal). “Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço” (apenas com um quarteto, esta peça principia o terceiro poema de uma série, após dois sonetos; portanto, é reconheci-do como soneto por motivos idênticos aos do fragmento anterior; CASTRO-2004, & SFD3-2006 concordam). O Halo Negro III – Hymno a Amun-Rá : “Evoco em vão lembranças comovidas” (também o terceiro poema de um ciclo de sonetos, logo um soneto; aqui, este reconhecimento ajuda a fixação dos versos; cotejando as leituras de CASTRO-2001 e SFD2-2005, mui-tas vezes segui SFD2, que não goza do selo de crítica; numa ocasião, divergi de ambas, empregando o molde das rimas do soneto como guia para a divergência). Costa do Sol IV: “Sossego? Outrora? Ora adeus! Foi feita” (quarta parte de um ciclo, precedida por três sonetos completos; além da razão contextual para ser tomado como soneto, o fragmento apresenta rimas abba no primeiro quarteto, esquema característico em muitos sonetos pessoanos; BERARDINELLI-1999 já havia reconhecido o soneto). “Se fecho os olhos, sou a minha treva” (embora não seja parte de uma guirlanda de so-netos formalizada com um título, este bocado de poema foi escrito no mesmo dia 14-9-

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1919 de outros dois sonetos completados, À Noite e “No alto da tua sombra, a prumo sobre”, apresentando o mesmo tema e o mesmo padrão de rimas abba).

Há outros nove poemas com versos em branco (cada um com pelo menos um

faltante) que reconheci como sonetos; dependendo de onde estão os espaços em

branco, apresentarei razões distintas para os reconhecer como sonetos; dois deles

têm lacunas no meio do poema; quatro, no fim; dois, tanto no meio quanto no fim e

um, no começo.

Comecemos pelo começo, isto é, por um soneto com lacunas logo no incipit.

Trata-se de um fragmento publicado por DIONÍSIO (2005) e ZENITH (2006). Tal

como no soneto inédito “Ai de quem não só sente, mas conhece”, o poeta elenca

Sóror Mariana Alcoforado para protagonizar versos de amor e de meditação.

Sóror Mariana Ela ☐ De ter a esperança por saudade ☐ ☐ ☐ ☐ ☐ Ah, se ela só amasse não amar! Porque a maior vontade é não-querer. Feliz de quem, triunfante de si, Colhe a flor de não dar nem pertencer, E amando só o seu desdém do amor Vê, enquanto /*lhe sonha e/ lhe sorri, Em suas mãos fanar a inútil flor.

~ Fernando Pessoa, /*1918/

DIONÍSIO não reconhece este poema como soneto; quem o faz é ZENITH

(2006), que sobre sua fixação deixa a seguinte nota:

Trata-se dos últimos sete versos de um soneto inacabado. O autor esboçou mais dois versos, destinados a um dos quartetos: “Ela ☐ / De ter a esperança por saudade”.

Em nossa edição, acrescentamos os versos incompletos como pertencentes ao

primeiro quarteto do soneto. ZENITH não confessa o raciocínio que o leva a dedu-

zir o poema como soneto, mas talvez tenha considerado as seguintes pistas: dois ter-

cetos decassílabos com esquema rímico aba cbc, fragmentos de outras estrofes com

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rimas distintas (“-ade” & “-ar”) a indicar a possibilidade de quartetos, a existência de

outro poema sobre Sóror Mariana que se desenvolve como soneto (“Ai de quem não

só sente, mas conhece”)... A hipótese de mais um soneto parece, pois, conferir a li-

nha mais simples para unir as pistas num todo significativo.

Após o início, o meio. Há dois candidatos a soneto com lacunas ao meio. O

primeiro é o Sonho de Górgias (“Sonhei uma cidade informe e colossal”), único soneto

assinado por Carlos Otto, ao qual falta o segundo quarteto e um verso do primeiro

terceto (vide FIGURA 2). Dados os espaços em brancos do testemunho, lemos o

esquema rímico como: abba ☐☐☐☐ ☐cc cdc. Havendo um quarteto inicial e um terce-

to final completos, a hipótese do soneto parece-nos inevitável.

O segundo poema com lacunas ao meio é “Como a dor e a ilusão não podiam

bastar”, com um testemunho de leitura muito difícil. O esquema rímico parece pou-

co convencional: abcb ad ☐☐ efe gf ☐.

O primeiro quarteto surge com versos alexandrinos, ao passo que os dois ver-

sos existentes do segundo poderão ser decassílabos – se é que a leitura feita destes

últimos dois está correta, o que não é certo, dado o grau de ilegibilidade do texto.

Todavia, entre a hipótese de um soneto com rimas não-convencionais e um poema

amorfo (casualmente começando em quarteto e findando em tercetos fragmentários),

cremos que a primeira opção seja a mais provável em Pessoa.

Passemos aos quatro poemas com espaços em branco no fim. Como podemos

inferir que seu invisível fim estaria logo no décimo-quarto verso e não em qualquer

outra parte?

Tomemos o texto “Abro o baú antigo, e à minha vista”, que nos oferece dois

quartetos e um terceto completos, mais um verso em que imediatamente vemos um

segundo terceto inacabado. Surpreendentemente, CASTRO (2001) não reconhece o

soneto, publicando-o numa série de seis estrofes dispostas aparentemente ao acaso; já

SFD2 (2005), como nós, reconhecem no manuscrito um soneto incompleto, conso-

lidando as seis estrofes de CASTRO em apenas quatro conjuntos (dois quartetos e

dois tercetos). Reforçando nossa inferência, vemos: 1) a constante métrica decassilá-

bica e 2) um dos esquemas rímicos típicos em sonetos pessoanos (abba baab cdc e ☐☐).

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“Do frio abismo onde o Passado habita” apresenta oito versos rimados e um

v.9 incompleto; o padrão de rimas abba baab leva a crer que o verso interrompido

iniciasse um terceto com uma rima “c”; além disso, há um outro poema com tema

afim, incipit e imagens similares, que se desenvolve como soneto completo: “Do

abismo onde o Passado dorme e espera”; SFD2 concordam.

O poema Post-Mortem (cota 153-29, p.51), escrito e rasurado num caderno com

versos de 1902, também apresenta rimas abba baab; logo o sustentamos como soneto

com o mesmo argumento formal que empregamos no poema acima – com o adendo

de que Post-Mortem tem um nono verso completo, de terminação “c”, o que leva a

crer que o poeta estivesse a iniciar o primeiro terceto.

Ao poema “Como os melhores, nada fiz da vida” também falta um fim. Infe-

lizmente incompleto, ele foi reconhecido como soneto por CASTRO (2004), seguin-

do a opinião de Patrick Quillier, responsável pela tradução francesa deste texto pela

editora Gallimar, Paris: 2001.

Como os melhores, nada fiz da vida. Como os que sonham não a quis achar. Trago-a nos braços, vindo na descida, Como quem quer e teme abandonar. Dormes, planície absurda ao só luar, Diversa, sossegada, indefinida, E no meu coração há um gelar De quanto dei de sonho à hora ida. Neve em quem sou, se ser quem sou me ocorre –– E alheio, plácido, sem neve ou vê-la, ☐ ☐ ☐ ☐

~ Fernando Pessoa, 31-12-1932

Nem Castro nem Quillier compartilham extensas razões para reconhecer este

fragmento como soneto; a seguir, apresento as minhas:

Argumento Material: o poema foi escrito, com mesma tinta e caligrafia, no verso de um

soneto completo;

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Argumento Semântico: o poema apresenta um tema filosófico afim ao do soneto imedia-

tamente anterior, como que formando um dístico: aliás, há o algarismo “2” no alto da

página (CASTRO anota este detalhe);

Argumento Estrutural: o poema apresenta os mesmos esquemas métrico, rímico e es-

trófico (ainda que este último de modo incompleto) do soneto anterior: abab baba cd☐ ☐☐☐: semelhante esquema, tão específico quanto poeticamente desafiador (pela difi-

culdade de se encontrarem rimas), por si só já seria suficiente para flagrar um soneto

em Pessoa.

Há dois outros poemas em que as lacunas habitam o meio e o fim do texto. O

primeiro deles é “Eu sou luar sobre mim-mesmo, e a ponte”, que entendemos como

um soneto com dois versos em branco (v.5 e v.14), ainda que o poeta não tenha dei-

xado evidente espaço em branco para o v.5. A dedução de se tratar de um soneto

vem primeiramente das rimas interpoladas nos quartetos (abba ☐aab), molde frequen-

temente empregado por Pessoa, além de percebermos na primeira e terceira estrofes

respectivamente um quarteto e um terceto completos – pistas que, somadas, permi-

tem dizer ser bastante provável estarmos perante um soneto. SFD1 (2005) não reco-

nhecem o texto como soneto, tomando por incompleto apenas o verso derradeiro.

O último soneto fragmentário a analisar é “A natureza deu-te aquela cor”, evi-

dentemente um rascunho: falta por completo um terceto, e o que há – se enxergamos

um soneto – encontra-se em retalhos. Além disso, o segundo verso tem o ritmo

quebrado, hendecassílabo em meio a decassílabos. O interessante neste fragmento

de obra é, como anotaram SFD1, ele desenvolver a mesma temática do “Soneto que

não se devia escrever”, sendo também um poema de amor. Como se pode ver no

testemunho, o soneto tem por título o número “2”, como continuação (interrompi-

da) do soneto anterior, donde nossa rotulação do soneto.

1.3.3.2.4. SONETO?

Já definimos “soneto” e exemplificamos como sua forma e fôrma auxiliam a

releitura de poemas candidatos a soneto, sejam eles completos ou meros fragmentos.

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Agora, visitaremos textos que provocam os limites de nossa definição de “soneto”,

partindo dos menos aos mais provocadores.

Converso às vezes comigo E esse diálogo a sós Com o impossível amigo Que sonha cada um de nós, Vai de clareira em abrigo Ouvido, visto, veloz Nas expressões que consigo Das sombras a que dá voz. E a perfeita consonância De quem fala com quem ouve Aquece a lume de infância A casa em que ainda chove, E eu durmo a alada distância Da conversa que não houve.

~ Fernando Pessoa, 25-11-1924

“Converso às vezes comigo” parece-nos um dos poemas mais inofensivos

no quesito provocação dos limites do soneto, ainda que CASTRO (2001) não lhe tenha

conferido status de soneto em sua edição, publicando numa única estrofe o que ve-

mos como dois tercetos; diante do testemunho, distingo a separação de uma nova

estrofe após o v.11. Não só enxergo um soneto, mas um soneto especial em tema e

estrutura, que, além de sintetizar a questão da heteronímia, apresenta métrica rara entre

os sonetos Pessoa, com versos todos em redondilha maior.

Debrucemo-nos sobre dois outros sonetos que editamos, apesar de não apre-

sentarem medidas uniformes ao longo de seus versos. O primeiro, “Há um lago para

barcos de crianças” [vide abaixo] importa para o soneto a tradição lírica de alternar

decassílabos e hexassílabos: como os decassílabos heróicos têm acentuação na 6a e

10a sílabas, os versos curtos (de 6 sílabas) não quebram o ritmo – e o poema segue a

forma costumeira do soneto: 2 quartetos e 2 tercetos, rimas alternadas e Volta no v.9.

Elemento tradicional no soneto, a “Volta” indica a mudança de tom que em geral

ocorre na passagem dos quartetos aos tercetos, com o poeta freqüentemente intro-

duzindo uma antítese ou conclusão, reviravolta em sentido amplo. Vide o poema.

Há um lago para barcos de crianças No fim do meu sonhá-lo. Quero cercá-lo de ócios e esperanças Para poder criá-lo.

Argumentamos em vão. Distraído, certo, bate Por trás do nosso debate O coração.

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Um lago como se o pusesse ali Quem ali o não pôs, E onde um pequeno barco álacre vi Puxado com retrós...

Depois, a esquadra que a ninguém faz mal... (Vieram mais brincar) Quem me dera na vida

Ter uma alma exactamente igual A essa esquadra que, ao irem merendar, Ficou, como eu, calma e esquecida...

Sei bem que gostas de mim, Sabes bem quanto te quero, E argumentamos assim, No tom arrastado e insincero

De quem fala só de cousas Que nada têem conosco Como quem com mãos ociosas,

Num gesto alheado e manso, Limpa o pó de um manipanso Santo e tosco.

~ Fernando Pessoa, 18-8-1934 ~ Fernando Pessoa, 2-11-1935

O segundo destes poemas é “Argumentamos em vão”, que nem PRISTA

(2000) nem SFD3 (2006) reconhecem como soneto, publicando-o com apenas 3

estrofes (2 quartetos e 1 sexteto). Considerando-o um soneto, ainda que não-

tradicional, editamo-lo com 2 tercetos em vez de um sexteto – até porque há um

espaço (rasurado pelo poeta) entre o que vemos como terceira e quarta estrofes.

Trata-se também de um soneto especial em Pessoa, que apenas escreveu mais

2 em redondilha maior (“Converso às vezes comigo” & “Morreu. Coitado ou coitada”).

Contudo, o soneto em questão é diferente, alternando duas medidas; como os versos

em redondilha maior acentuam-se na 3a ou 4a sílabas, os versos curtos não quebram o

ritmo do poema – tal como hexassílabos não quebram decassílabos heróicos, sendo

as odes de Ricardo Reis grande exemplo da fluida alternância entre 6 e 10 sílabas.

Pessoa tem mais um candidato a soneto não-tradicional de medidas incons-

tantes, alternando decassílabos e hexassílabos como em “Há um lago para barcos de

crianças”. Segue-se o poema, escrito em estrofe única.

Pobre de tudo, excepto de o saber, Volvo atrás para ler Aquele anúncio à porta da morada Do regedor do Nada Onde se diz que alguém perdeu na rua Uma alma que era sua, E quem a achasse que a trouxesse ali Onde o anúncio vi. Encontrei-a, escondi-a, não a dei Por achada ante a lei. Mas sofro a dor de não poder saber Dela o que hei-de fazer, Que ter uma alma a mais faz pena e dó: São dois a um estar só. ~ Fernando Pessoa, 23-6-1934

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Este poema provoca um pouco mais os limites da definição de soneto: a fa-

vor do ratificação, temos justamente 14 versos que rimam (aabbcc...), um desenho

métrico e uma Volta no v.9; por outro lado, não há separação de estrofes, e a métrica

é alternada: cada parelha de rimas contém um verso decassílabo e outro hexassílabo.

Por que, então o incluímos aqui? Ora, a métrica variável já apareceu nos dois

poemas que acabamos de analisar (“Há um lago para barcos de crianças” & “Argumen-

tamos em vão”), e a fluidez métrica não impediu que os víssemos como sonetos. As

rimas emparelhadas, ainda que raras em sonetos de Pessoa, não são estranhas à histó-

ria do soneto: no Brasil, Alberto de Oliveira (1857-1937), cultivou rimas emparelha-

das em seus sonetos, empregando-as por exemplo em A Casa da Rua Abílio (1928);

em Inglês, Shakespeare, que em geral usava rimas alternadas, fez em parelhas seu

soneto nº 126 “O thou, my lovely boy, who in thy power” – poema que aliás tem 12

em vez de 14 versos, e nem por isso deixou de ser consagrado como soneto.

Que dizer, porém, da ausência de estrofes? No soneto Inglês, muitas vezes a

única separação espacial ocorre no dístico final, desalinhando-o em relação aos de-

mais 12 versos, no que se chama de “estrambote” (algo como que um espaçamento

de parágrafo ao fim do soneto Inglês); vide os 35 Sonnets do próprio Pessoa, que fo-

ram assim publicados, como poemas inteiriços. Logo, não seria uma revolução com-

pleta fazer um soneto de estrofe única.

Também com estrofe única e rimas emparelhadas é o poema “O rio, sem que

eu queira, continua”, mais um a empurrar as paredes do soneto tradicional. Seus

versos seguem métrica regular (decassilábica) e, se cogitamos como soneto o poema

“Pobre de tudo, excepto de o saber”, abrimos precedente para este, de 30-1-1919,

que por ter métrica regular seria, então, “menos ousado” que aquele.

O rio, sem que eu queira, continua. Espelha-se, fora de eu ser eu, a lua Nas águas do meu ser independentes... Meus pensamentos, /*sóbrios/ ou doentes Nunca saem p’ra fora do meu ser. No barco ao pé da margem, ao mover O remador os remos, fica tudo... A noite é clara, o coração é mudo E a palavra que eu vou dizer, e fôra, A ser dita, a noção na alma da hora, Passa, como um murmúrio vão de vento... E eu, só na noite com meu pensamento Não me distingo do que me rodeia... E então é só real a lua cheia...

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Agora, imagine o leitor tirar a rima de um tal soneto, espicaçando ainda mais

as fronteiras de nossa forma poética: sem rimas, poderíamos chamar um poema co-

mo o anterior de soneto? Em termos formais, mesmo sem rimas, o texto que se

segue tem 14 versos decassílabos regulares.

Em vão, fechado em seu diurno curso O repetido sol os mesmos dias Traz, e seus montes e extensões da terra Os mesmos homens mesmamente lembram E esquecem, para mim que mais anseio Que as horas todas, quer as encha a obra Ou o vazio as deixe nulas – vida Ou ‘spaço por viver. E hora a hora Mais entre mim e o que não sou o abismo ‘Sboroando-se se abre, dia a dia A soma estéril dos negados prazos De conseguir exsurge. Nem já caibo No pouco que de mim eu quis, nem duro Mais que o que o tempo dura para mim.

~ Fernando Pessoa (ou Ricardo Reis?), 20-9-1923

A ausência de rimas, o erudito uso de “exsurge” e as muitas inversões fazem

com que o poema caiba mais à assinatura de Ricardo Reis que à do ortônimo – jus-

tamente como refletimos acerca do poema “Trago nas mãos as oferendas todas”

(vide seção “Atribuição”), em situação idêntica à deste. Se algum leitor não se sentir

confortável em chamar os dois poemas de sonetos, pedimos que reflita que outros

tipos de “soneto” poderia escrever Ricardo Reis, heterônimo que sempre escreveu

com métrica apurada mas jamais com rimas? Talvez, aqui, o estilo de um heterônimo

tenha determinado o alargamento do conceito de “soneto”. Inovação?

Que dizer de um poema com rimas, mas rimas aparentemente aleatórias e em

versos de medida variável, numa estrofe única? É o caso do poema a seguir.

Onde ides vós, deixando por colher As flores do caminho que trilhais, Sem que o frescor da relva vos encante Ou vos chamem o /*sussurro/ e havidos ais Da fonte capciosa? Onde ides vós, ninfas, sem ver No prado ou bosque escuro ou vala hiante A açucena real ou certa rosa? Onde ides vós que sem saber seguis O destino sem norte Dos vossos passos, que de vós não são? Onde ides que na fresca aurora is Ao ocaso da incerta e inútil sorte Da vossa confiada indecisão?

~ Fernando Pessoa, 4-10-1916

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Será isto um soneto? Ainda que nada tradicional, trata-se de uma estrutura

regular; basta mirar o testemunho e logo vemos um padrão: 4 versos longos, 1 curto,

4 longos (ou 1 médio e 3 longos), 1 curto, 4 longos; exceto pelo v.6 (octossílabo),

todos os versos longos são decassílabos; os 2 curtos são hexassílabos. Em termos de

esquema métrico temos, pois: 10-10-10-10-6-8-10-10-10-6-10-10-10-10 sílabas.

O esquema rímico é interessantíssimo: abcb d acde f gefg - ao todo, 7 pares de

rimas diferentes! A alternância de versos longos e curtos lembra o estilo das odes de

Ricardo Reis... Mas Reis nunca rimou! Logo, atribuímos o poema ao ortônimo.

Qual a última fronteira, através da qual já não se poderia chamar um poema

de soneto? Chegamos à análise dos dois poemas desta tese que mais instigam o con-

ceito tradicional de soneto.

O primeiro deles é um trecho do extenso poema Un Soir à Lima.

Un Soir à Lima (excerto final) (...) Sonho porque me banho No rio irreal da música evocada. Minha alma é uma criança esfarrapada Que dorme num recanto obscuro. De meu só tenho, Na realidade certa e acordada, Os trapos da minha alma abandonada E a cabeça que sonha ao pé do muro. Mas, mãe, não haverá Um Deus que me não torne tudo vão, Um outro mundo em que isso agora está? Divago ainda: tudo é ilusão. Un Soir à Lima... Quebra-te, coração...

~ Fernando Pessoa, 17-9-1935

Note-se o original esquema rímico do poema; nos 8 primeiros versos (2 quar-

tetos fundidos), temos um esquema incomum de rimas complexamente interpoladas:

abbc abbc. Lembre-se o leitor de que, à Portuguesa, os vs.1 & 5 rimam (banho/tenho)!

No sexteto não-tradicional que conclui o poema, temos rimas alternadas, com

um verso semifinal que, pronunciado à francesa (“Limá”), rima com “está” e

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“haverá”, preparando o suspense da rima final, posta em estrofe solitária, especialís-

sima; o esquema de rimas do sexteto fica: dedede.

Se soneto, trata-se de um soneto nada tradicional, ainda que com elementos

bastantes para o incluirmos nesta investigação, dentro dos alargamentos que o nome

“soneto” permite englobar.

O octeto mais a estrofe de 5 versos mais o verso final podem, numa perspec-

tiva, ser tomados por 2 quartetos e 2 tercetos, sendo os tercetos quebrados em 5+1

versos – de modo a gerar o suspense necessário para a conclusão do longo poema

que seria Un Soir à Lima, com pronúncia francesa. O excerto que editamos tem mé-

trica e rimas trabalhadas, embora aqui tais elementos não surjam como surgem num

soneto tradicional.

Há uma grande pergunta: como considerar 'soneto' apenas parte de um poe-

ma maior? É justo (ou apenas conveniente) escolher uma parte sem um todo?

Ora, em sua edição crítica, PRISTA (2000) anota: “Na verdade, este texto

número 323 [o número de Un Soir à Lima na edição] deve ser entendido como soma de

segmentos consideráveis em independência, ainda que se sucedam justapostos no

alinhamento do tomo.” Se Un Soir à Lima é composto de partes encaixadas que po-

demos apreciar isoladamente, nossa liberdade parece aceitável: conjecturar como

soneto não-tradicional o excerto derradeiro de um poema multifacetado. Notemos

que PRISTA (bem como nós) considera o trecho em questão como final por estar

datado – ao que acrescentamos a razão semântica de o texto apresentar uma idéia de

fecho ao Soir, invocando-se a conclusiva quebra do coração em estrofe exclusiva.

Há, ainda, uma outra questão ou confissão: o excerto que escolhemos é tam-

bém excerto do próprio testemunho que estudamos: noutras palavras, nesta edição

não apenas reduzimos Un Soir à Lima ao último manuscrito do Soir encontrado por

PRISTA, como também escolhemos apenas a porção final deste manuscrito, a qual

vemos como soneto; o segmento completo teria 3 outros quartetos, anteriores ao

soneto no testemunho:

Ah, vejo tudo claro! Estou outra vez ali. Afasto do luar externo e raro Os olhos com que o vi.

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Mas quê? Divago, e a música acabou... Divago como sempre divaguei Sem ter na alma certeza de quem sou, Nem verdadeira fé ou firme lei. Divago, crio eternidades minhas Num ópio de memória e de abandono. Entronizo fantásticas rainhas Sem para elas ter um trono.

Acreditamos que o soneto extraído do testemunho tem certa independência

em relação aos quartetos, por introduzir tanto uma estrutura rímica e métrica distinta,

quanto uma nova dimensão semântica de sonho ao poema. Mesmo assim, deixamos o

símbolo “(...)” acima do soneto, indicando a existência dos quartetos.

Un Soir à Lima é, ainda, uma peça para piano composta pelo harpista belga

Félix Godefroid, virtuose em seu instrumento, que escreveu música tanto para harpa

quanto para piano: a mãe de Pessoa costumava tocar este Soir quando a família vivia

em Durban. Segundo o biógrafo Cavalcanti Filho (2001: 104):

Dois meses antes de morrer, [Pessoa] ouve na telefonia [i.e., rádio de então em Portugal] essa música, e as recordações o assombram. Sente falta do pai, com quem não conviveu; da mãe, que o trocou por marido novo; de tudo “que poderia ter sido”; e então, pálido, “me inva-de uma saudade dum misterioso passado meu”, como um presságio ruim de que sua hora esta-va próxima.

Cavalcanti Filho então cita outro fragmento de Un Soir à Lima.

Cesso de sorrir Pára-me o coração E, de repente, Essa querida e maldita melodia Rompe do aparelho inconsciente. Numa memória súbita e presente Minha alma se extravia

Nosso último candidato a soneto é também o último poema encontrado de

Pessoa, escrito dois meses após Un Soir à Lima.

Há doenças piores que as doenças, Há dores que não doem, nem na alma Mas que são dolorosas mais que as outras. Há angústias sonhadas mais reais Que as que a vida nos traz, há sensações Sentidas só com o imaginá-las Que são mais nossas do que a nossa vida. Há tanta cousa que, sem existir, Existe, existe demoradamente, E demoradamente é nossa, é nós...

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Por sobre o verde turvo do amplo rio Os circunflexos brancos das gaivotas... Por sobre a alma o adejar inútil Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo. Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

~ Fernando Pessoa, 19-XI-1935

Como poderia ser “soneto” um poema sem rimas, sem quartetos ou tercetos

e que conta 15 em vez de 14 versos?!

Vamos por partes. Em termos formais, já consideramos como possíveis so-

netos outros poemas sem rimas e de estrofe única que, no entanto, apresentam al-

gum esquema métrico – como é o caso deste, em que os versos são rigorosamente

decassílabos. Note-se que o v.6 precisa ser lido com diérese entre “o” e “imaginá-

las”, para que seja decassílabo: “Sen-ti-das-só-com-o-i-ma-gi-ná-las”.

A grande questão para o reconhecimento do soneto parece-nos estar na pre-

sença de 15 em vez de 14 versos. Embora seja nosso único candidato a soneto com

mais de 14 versos, não é impossível haver sonetos assim: tome-se a reconhecida for-

ma do “soneto caudato”, um soneto “com cauda”, isto é, com 3 versos ao fim do

poema, além dos 14 tradicionais. No entanto, numa passagem em prosa, Pessoa

demonstra-se cético sobre a consideração dos sonetos caudatos: “Creio porém que

os títulos grandes não são títulos, porque são descrições, como os sonetos caudatos

não são sonetos, porque têm dezassete versos.” (In: Da República, s.d.)

Se Pessoa não considera um poema de 17 versos como soneto, quer isto di-

zer que também descartaria um de 15? Há pelo menos um caso célebre de soneto

com 15 versos que Pessoa certamente conhecia e reconhecia: o soneto número 99 de

Shakespeare:

1 The forward violet thus did I chide:

Sweet thief, whence didst thou steal thy sweet that smells,

If not from my love’s breath? Thy purple pride

Which on thy soft cheek for complexion dwells

5 In my love's veins thou hast too grossly dyed.

The lily I condemned for thy hand,

And buds of marjoram had stol’n thy hair:

The roses fearfully on thorns did stand,

One blushing shame, another white despair;

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10 A third, nor red nor white, had stol’n of both

And to his robbery had annex’d thy breath;

But, for his theft, in pride of all his growth

A vengeful canker eat him up to death.

More flowers I noted, yet I none could see

15 But sweet or color it had stol’n from thee.

Embora hoje em dia se considere a possibilidade de este soneto shakespeari-

ano ter sido um esboço que o poeta viria a rever (talvez reduzindo-o a 14 versos), à

época de Pessoa ele era tomado por soneto tal como foi editado; além disso, a estru-

tura do soneto ainda não tinha sido fixada à época de Shakespeare, e uma linha extra

era comum, particularmente a poemas conectados entre si; Sidney Lee apresenta uma

série de exemplos de sonetos da época com 15 versos (In: Elizabethan Sonnets. Wes-

tminster: Constable, 1904).

Há um outro argumento a favor da consideração deste poema pessoano co-

mo soneto; leiamos a definição de “estrambote” segundo o dicionário Houaiss.

estrambote (datação séc. XVII)

n. substantivo masculino 1 Rubrica: versificação. adição de um ou mais versos, ger. de um terceto, aos 14 vs. de um soneto; estramboto 2 Rubrica: música. estrofe acrescentada ao vilancico, à guisa de coda ('seção conclusiva') etimologia: it. strasmbotto (sXIII) 'breve composição poética satírica ou amorosa de oito versos hen-

decassílabos com rima alternada'; do fr. ant. estribot 'composição satírica', cruzando com strambo 'bizarro, estranho'

~ HOUAISS (2001)

Portanto, num dos sentidos que Houaiss ratifica em seu verbete (“adição de

um ou mais versos”), poderíamos ver como estrambote o verso final do poema de Pes-

soa – o que nos parece razoável, já que o 15o verso se destaca visualmente do restan-

te do poema, concluindo-o (como coda).

Se este não fosse o último poema de Pessoa, consideraríamos atribuí-lo ao

heterônimo Ricardo Reis, que costumava escrever versos metrificados sem rimar.

Não só os versos brancos, mas também o vinho lembra Os Jogadores de Xadrez de

Reis: tais jogadores sentem o seu jogo de xadrez como mais real que a vida, como se

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a vida fosse sonho e o xadrez, a realidade – tal como no poema derradeiro de Pessoa

o poeta sente as “angústias sonhadas mais reais / que as que a vida nos traz”.

Tendo sido escrito 11 dias antes de Pessoa falecer, trata-se de uma espécie de

estertor em Poesia e em Português, que de certo modo se relaciona ao estertor oficial

do poeta, em Inglês: “I know not what tomorrow may bring”.

Poderíamos defender os versos brancos do último poema como “novas dire-

ções”: de certo modo, vemos o poema como sugestão de que o poeta já não sabe o

que o amanhã do soneto traz. Note-se a última palavra do poema: “nada”. Há uma

bela ambigüidade nela. No soneto P-há (1929), assinado por Álvaro de Campos con-

forme, como notou a Prof. Cleonice Berardinelli, “nada” significava não só a inexis-

tência de qualquer coisa, mas também “nascida” (nata), forma feminina e singular do

particípio do verbo “nascer”. Trata-se do mesmo “nada” polissêmico do último so-

neto. Se, com o segundo sentido, lemos o “nada” final do poema final de Pessoa, a

vida nada é uma nova vida...

Logo, o soneto também pode ser novo. Há um eco do estertor de Sócrates:

“Críton, lembra-te de que devemos um galo a Asclépio”. Ao tomar cicuta após con-

denação pela Pólis, as últimas palavras de Sócrates lembram a Críton que Asclépio,

divindade da medicina, deveria ser paga com um galo quando alguém se curasse de

uma doença: a fala final de Sócrates implica que o veneno da cicuta é também cura: a

morte torna-se renovação – e a de Sócrates renova a história. O “nada” final do últi-

mo poema de Pessoa torna-se renascimento do soneto.

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1.4. ESTADO DA QUESTÃO – o espalhamento de cacos...

Quão estudados foram os sonetos de Pessoa? É preciso averiguar o estado

desta questão, brevemente visitando os textos que dão suporte a esta tese. Dividire-

mos esta seção em duas partes: uma, relacionando as edições dos escritos de Pessoa

que contenham sonetos (Bibliografia Ativa) e outra, abarcando artigos e capítulos de

livros que se dedicaram a estudar alguns sonetos do poeta (Bibliografia Passiva).

1.4.1. ATIVA: escritos de Pessoa

A bibliografia ativa difere dos objetos de estudo desta tese. Entre estes estão

os testemunhos manuscritos, datiloscritos e, por vezes, publicações que contenham

os originais possíveis dos sonetos de Pessoa. Já tratamos destes, ao discorrer sobre a

busca dos testemunhos.

Agora, abordaremos as edições que se debruçaram sobre esses testemunhos,

enumerando algumas de suas contribuições para o seu estudo. Algumas dessas edi-

ções já surgiram no corpo desta introdução, mas aqui as re-visitaremos de maneira

metódica, visando a mapear mais claramente o estado da questão.

Como não há quaisquer edições – críticas ou populares – dos sonetos de Pes-

soa como um todo, buscamos tais poemas em diversas edições gerais da obra do poeta,

bebendo de umas e de outras em maior ou menor grau. Curiosamente, a única edi-

ção existente de que temos notícia a publicar exclusivamente sonetos de Pessoa foi feita

pelo próprio poeta, que, em 1918, editou seus 35 Sonnets em Lisboa, pela Monteiro &

Co. Não é, pois, de admirar que Pessoa não seja visto como sonetista.

Comecemos pelas edições críticas da obra do poeta, organizadas pela Imprensa

Nacional Casa da Moeda (INCM). Como elas contêm muitos dos sonetos de Pessoa,

cabe perguntar: qual a sua contribuição para o estudo desses poemas?

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Em primeiro lugar, as edições da INCM, embora nada infalíveis, aventura-

ram-se a destrinçar, de modo sistemático, a letra taquigráfica de Pessoa. Realizando

uma série de contribuições inestimáveis para os estudos pessoanos, os volumes da

INCM abordaram as seguintes questões:

i. Qual a última versão de um poema de Pessoa? Isto é: por que estágios pas-

sou um texto de Pessoa, chegando à última versão que se deseja editar? Como iden-

tificar a última vontade editorial do poeta no âmbito de um poema?

ii. Que tipos de tinta e papel empregou Pessoa em sua escrita e datilografia?

Que pistas tais materiais fornecem para a datação e contextualização de um poema?

iii. Como editar trechos de poemas sobre os quais há dúvidas de leitura?

Sobre a primeira destas questões, as edições da INCM são rigorosíssimas em

anotar as sucessivas emendas que Pessoa fez em seus poemas; os editores laboraram

demoradamente para identificar as últimas variantes de um texto, esforçando-se por

publicar a última vontade visível de Pessoa. Acreditamos que tais edições foram

enormemente bem-sucedidas, dada a dimensão da empreitada; grande parte de nos-

sas revisões de fixação dos sonetos se sustenta, pois, sobre o trabalho da INCM (vide

capítulo sobre “Fixação dos Testemunhos”).

No que concerne ao segundo desafio, muitas de nossas datações conjectura-

das se fundamentam em pistas deixadas pelos editores da INCM; outra vez, apoia-

mo-nos sobre os seus ombros (vide seção sobre “Datação”).

Acerca da terceira indagação, as convenções de fixação do texto empregadas

pela INCM proporcionam ferramentas “limpas” (precisas e minimalistas) para se

editar um texto, mesmo quando há abundantes dúvidas de leitura: além da já citada e

defendida opção por editar as últimas variantes de um texto, lembremos artifícios tais

como as marcas de espaço em branco (☐), leitura conjecturada (/*exemplo/) e pala-

vra ilegível (†), que se tornaram padrão dado o prestígio das edições da INCM.

No entanto, como nenhuma edição é perfeita, os volumes da INCM têm suas

limitações, algumas das quais realço a seguir, entendendo-as como instigações aos

futuros editores de Pessoa.

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SELEÇÃO: A INCM optou por não editar alguns poemas publicados em vi-

da pelo poeta, não fornecendo, pois, uma visão definitivamente global da obra de

Pessoa.

COMPARTIMENTAÇÃO & INCOMPLETUDE: Como sua estratégia de

publicação dividiu a obra de Pessoa ortônimo de maneira cronológica, algumas se-

ções temporais foram publicadas antes de outras – e até a presente data não está dis-

ponível o volume relativo à juventude da obra do poeta (1902-1914).

ORDENAÇÃO & DATAÇÃO: Uma desvantagem para a separação crono-

lógica dos poemas de Pessoa está em como lidar com os poemas sem data (ou sem

data evidente); já observei que as edições da INCM deixaram de incluir alguns poe-

mas cujo testemunho não apresenta data, mas cuja datação poderia ser deduzida

(como também mostramos). Que fará a edição INCM diante disso: apresentar um

grande volume final com os poemas sem data, ou deduzir datações aproximadas para

tais textos, anexando-os aos volumes cronológicos em suas segundas edições?

INEDITISMO: Mesmo os trabalhos da INCM não esgotaram os inéditos de

Pessoa; encontramos, por exemplo, sonetos apenas publicados alhures como inéditos

– e mesmo alguns que permanecem inéditos. Se este estado de coisas se dá nos so-

netos, é de supor que ele também se verifique para outras formas poéticas cultivadas

por Pessoa.

AMPLITUDE: Como o labor das edições da INCM é colossal, proporcio-

nalmente ele dá margem a mais erros de leitura que o de uma edição focalizada: co-

mo busco apenas os sonetos, levo a vantagem de reconhecer de imediato a forma de

poemas com 14 versos, que, nas páginas da INCM, por vezes se perderam em meio à

multidão de textos; como vimos, essa identificação facilita uma série de deduções de

leitura.

Pelas razões acima, tivemos de consultar também outras fontes de pesquisa, a

fim de rever a fixação do texto dos sonetos de Pessoa. As seguintes edições foram

extremamente úteis nessa empreitada:

SFD: edição feita pelo grupo de Manuela Pereira da SILVA, Ana Maria

FREITAS e Madalena DINE (uso a sigla “SFD” criada com as iniciais dos sobreno-

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mes para indicar o trabalho). Embora não apresente aparato crítico, ao menos no

que toca aos poemas do ortônimo em Português, esta edição é mais completa que a

da INCM, tendo apresentado muitos sonetos até então inéditos; por exemplo, apenas

SFD publicaram de maneira sistêmica os sonetos ortônimos em Português sem data e

os datados de 1902 a 1914; nesse sentido, nossa revisão do texto desses sonetos toma

como ponto de partida a pesquisa de SFD. Ante os sonetos que a INCM também

publicou, empregamos SFD como saudável alternativa, a fim de confrontar duas

leituras dos testemunhos em busca da melhor fixação. Por fim, apenas SFD republi-

caram, como sonetos de 2 quartetos e 2 tercetos, dois poemas que a edição da Ática

de 1955 tinha divulgado com estrofes fundidas: “Depois que o som da treva, que é

não tê-lo” & “Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora” (ambos de 13-9-1932) – o

primeiro em estrofe única e o último com os tercetos amalgamados na Ática.

ZENITH: Richard Zenith, conhecido editor do Livro do Desassossego de Ber-

nardo Soares, também apresenta, numa antologia pessoana, alguns sonetos que não

constam nos volumes da INCM. Por exemplo, só ele publicou o único soneto do

heterônimo Íbis (Junho de 1911) e o texto “Em vão, fechado em seu diurno curso”.

Para os sonetos que a INCM não publicou mas que SFD, sim, usamos a antologia de

Zenith como contraponto para a revisão dos textos; exemplos de poemas trabalha-

dos a partir de Zenith e SFD são: Gomes Leal, Nova Ilusão & Soneto Aos anos do Miguel.

LOPES: Teresa Rita Lopes foi a primeira a publicar os sonetos de alguns he-

terônimos pessoanos bastante desconhecidos; logo, baseamo-nos em sua edição ao

rever o texto dos sonetos de Carlos Otto, Vicente Guedes, Diniz da Silva e Dr. Pan-

crácio. Também empregamos sua edição dos versos de Álvaro de Campos como

olhar alternativo à excelente edição da Prof. Cleonice Berardinelli, especialmente no

que diz respeito aos poemas de atribuição duvidosa entre Campos e Pessoa-ortônimo

(e.g., “ Estou ‘screvendo sonetos regulares” & “Ah como outrora era outra a que eu

não tinha”).

FREIRE: Luísa Freire dedicou-se a estudar e editar os poemas pessoanos em

Inglês; nesse sentido, sua contribuição é vital para a fixação dos sonetos de Charles

Robert Anon, Alexander Search e Pessoa ortônimo em Inglês – seja nos muitos po-

emas que apenas ela publicou, seja nos casos de sonetos em que também contamos

com a perspectiva da INCM para contraponto.

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GALHOZ (1960-1969): Maria Aliete Galhoz organizou, em 1986, a obra

poética de Pessoa para a Editora Nova Aguilar. Nela, incluiu 7 sonetos que aqui estu-

damos a partir de sua edição: o ciclo Em Busca da Beleza, com 6 sonetos que não cons-

tam na edição da INCM, e o poema Visão (1910), que Galhoz incluiu no Cancioneiro

do ortônimo, mas que atribuímos ao heterônimo Vicente Guedes (vide a assinatura

no testemunho).

LIND: Georg Rudolf Lind editou, em 1981, “Oito poemas ingleses inéditos”

de Pessoa, incluindo o soneto “God made my shivering nerves His human lyre”, até

a presente data possivelmente apenas com aquela edição.

ÁTICA: Praticamente não precisamos consultar a criticada edição da Ática,

dada a existência das obras acima, que tomaram aquela publicação como seu ponto

de partida. Em verdade, para nós a Ática tornou-se menos bibliografia ativa e mais

uma fonte de testemunhos, tendo-se perdido os manuscritos ou datiloscritos de tex-

tos como Barrow-on-Furness – para os quais a edição da Ática de 1942 é hoje o único

testemunho possível.

1.4.2. PASSIVA: escritos sobre Pessoa

Se a bibliografia ativa é basilar para uma fixação apurada dos sonetos de Pes-

soa, é na bibliografia passiva que se fundamenta o estudo de tais sonetos. Por um

lado, a bibliografia ativa está mais para a investigação filológica dos sonetos, e a pas-

siva, mais para a literária; por outro, de um ponto de vista transdisciplinar, acredito

que tais bibliografias sejam indissociáveis: Lingüística e Literatura se interpenetram,

pelo menos no que tange aos sonetos de Pessoa.

Se não há qualquer fartura de edições críticas para uma bibliografia ativa dos

sonetos de Pessoa , a escassez de bibliografia passiva é algo espantoso.

Peguemos o hercúleo trabalho bibliográfico de José Blanco: Pessoana (2008b).

Trata-se de 2 tomos: o menor serve de índice ao maior; poder-se-ia dizer, sem pilhé-

ria, que o índice tornou-se tão volumoso, que foi preciso editá-lo à parte. O volume

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maior consiste exclusivamente em referências bibliográficas (com breves resumos) de

uma quantidade massiva de estudos pessoanos. Que outro ponto de partida poderí-

amos tomar, no anseio de levantar bibliografia passiva para um estudo de Pessoa?

Abramos o índice (o vol. menor) em busca de “soneto”. Eis o que temos:

05.06.01.00. Soneto 3569

O número 3569 indica um verbete do volume maior, a saber, o de um texto

de António Coimbra Martins, que visitaremos logo adiante. Ora, um único texto para

um poeta com mais de três centenas de sonetos!

Portanto, não parece existir qualquer estudo global dos sonetos de Pessoa –

pelo menos não algum que José Blanco pudesse encontrar em seu esforço bibliográ-

fico. Nosso passo seguinte foi buscar, no índice de Pessoana, análises de sonetos indi-

viduais, encontrando indicações de estudos sobre os seguintes poemas:

35 SONNETS (FP) [48 verbetes] A criança que fui chora na estrada (FP) 2410 A Praça da Figueira, de manhã (Campos) 1895 ABDICAÇÃO (7 sonetos) (FP) 2297 ABDICAÇÃO (FP) 1016, 1541, 1631, 3030, 3272, 4349, 4602, 4612 AH, UM SONETO... (Campos) 1541, 1542, 3898, 5415 AO CABO DA BOA ESPERANÇA (FP) 6006 APPROACHING (Search) 1978 BARROW-ON-FURNESS 01 (Campos) 2335 BARROW-ON-FURNESS 03 (Campos) 1548 BARROW-ON-FURNESS 04 (Campos) 1542 BARROW-ON-FURNESS (Campos) 2927, 3916 Dormi. Sonhei. No informe labirinto (FP) 4938 EARLY FRAGMENTS (FP [Search]) 3020 EM BUSCA DA BELEZA (FP) 243, 2407 Emissário de um rei desconhecido (FP) 3803 Entre buxos e ao pé de bancos frios [As tuas mãos terminam em segredo] (FP) 5416 GALERIA AFRICANA (Dr. Pancrácio) 5423 GALERIA PORTUGUESA (Dr. Pancrácio) 5423 GLOSA (FP) 1684 GOMES LEAL (FP) 5844 METEMPSICOSE (Dr. Pancrácio) 5423 Meu coração, o almirante errado (Campos) 788 NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ 03 (FP) 6005 NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ (FP) [18 verbetes] ON AN ANKLE (...) (FP [Search]) 5259 ON DEATH (FP [Anon]) 3949 PASSOS DA CRUZ 04 (FP) 3262, 3632, 5895 PASSOS DA CRUZ 06 (FP) 2776, 3314 PASSOS DA CRUZ 10 (FP) 2415 PASSOS DA CRUZ 11 (FP) 5895 PASSOS DA CRUZ 13 (FP) 85, 2415, 4426, 5280

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PASSOS DA CRUZ (FP) [11 verbetes] [Poemas da juventude e adolescência] 631, 862, 4601, 5423, 5542, 5936 POEMAS DOS DOIS EXÍLIOS (FP) 2766 [Poemas em Francês] 4601, 4657 Qualquer coisa de obscuro permanece (FP) 1448 Quando olho para mim não me percebo (Campos) 5809 SONETO JÁ ANTIGO (Campos) 585, 2108, 2314, 2414, 2415, 2989, 3262, 3569, 5803 SONETO PARA PARECER NORMAL (Campos) 5415 SONETOS DE AMOR (E. Lança) 862 SONHO (Dr. Pancrácio) 5423 SONNET. Could I say what I think, could I express (Search [Anon]) 1978, 3020 SONNET (FP) 2237 SONNET. God made my shivering nerves His human lyre (TMF) (FP) 1978, 3028 SONNET I (FP) 1978 SONNET II (FP) 1978 SONNET XII (FP) 1888 SONNET XIV (FP) 1978, 2060 SONNET XVIII (FP) 1888, 4559 SONNET XXI (FP) 4559 SONNET XXII (FP) 2060 SONNET XXIII (FP) 1978, 4559 SONNET XXIV (FP) 1978 SONNET XXVI (FP) 5872 SONNET XXX (FP) 188, 189 SONNET XXXII (FP) 1978 Sou louco e tenho por memória [EU] (FP [Diniz da Silva]) 2410 Súbita mão de algum fantasma oculto (FP) 767, 768, 828, 1682, 1687, 4350 UN SOIR À LIMA (FP) 577 Vinte e três anos, vãos inutilmente (Íbis) 790

Em comparação com a única entrada sobre “soneto”, eis uma vastidão oceâ-

nica de bibliografia passiva. Algumas notas sobre a citação acima: sempre que um

artigo comenta mais de um soneto, mudamos-lhe a cor (os que enfocam apenas um

poema permanecem em preto). Por numerosas, não copiamos todas as indicações de

ensaios sobre os 3 ciclos de sonetos estudados: Passos da Cruz, No Túmulo de Christian

Rosencreutz e 35 Sonnets; alguns dos poemas desses 3 ciclos também apresentam estu-

dos individualizados (os relativos aos 35 Sonnets são reconhecíveis pelos títulos for-

mados pela palavra “Sonnet” seguida de algarismos romanos). Por fim, toda as

emendas entre colchetes são nossas, indicando discordâncias de algumas atribuições

feitas por Blanco.

Note-se que, segundo a bibliografia de Blanco, acima, há cerca de 42 sonetos

ingleses e 64 portugueses estudados – o que representa aproximadamente apenas um

terço dos sonetos que pessoa escreveu em cada uma dessas línguas. Os sonetos de

Pessoa estão, pois, dois-terços por estudar.

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Partimos, pois, a buscar os textos enumerados, logo nos deparando com um

em especial, que, com o de Martins acerca do “soneto”, nos serviu de inspiração para

estudar os sonetos de Pessoa. Eis o verbete 2314 de Blanco:

GARCEZ, Maria Helena Nery (1981) “Fernando Pessoa & Antero de Quental: uma sub-versão do soneto”. In: Revista Persona, n. 5. Porto: Centro de Estudos Pessoanos. In: Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo: Editora Moraes/USP, 1989.

Encontramos este precioso texto na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A auto-

ra debruça-se sobre um poema particular de Álvaro de Campos, mais especificamen-

te o terceiro soneto do heterônimo, de incipit “Olha Daisy: quando eu morrer tu hás-

de”, também conhecido pelo título Soneto Já Antigo.

Ora, há de pensar um crítico atento: como é que uma análise de um mero so-

neto pode auxiliar uma investigação global dos sonetos de Pessoa?

A resposta a essa pergunta está em Garcez ir tão fundo num soneto de Pes-

soa, que sua análise toca uma dimensão arquetípica, onde o que se conclui sobre um

soneto vale para o soneto pessoano em geral. À guisa de palavras para apreciar o feito

de Garcez, tomo emprestado de Haroldo de Campos um trecho de sua carta a Ro-

man Jakobson, acerca da profundíssima análise feita por Jakobson para o poema

Ulisses (de Mensagem), intitulada “Os oximoros dialéticos de Fernando Pessoa” (1968).

(...) e me parece que [este texto de Jakobson] representa a análise mais rigorosa e criadora jamais feita de um poema (e, por extensão, da poética mesma) de Pessoa. É uma home-nagem verdadeiramente à altura do gênio do poeta de Mensagem, e que está destinada, ademais, a se transformar em inesquecível pedra-de-toque para a futura crítica pessoana.

~ Haroldo de Campos, 1968 (In: CAMPOS, 2004)

Creio que Garcez fez para o soneto pessoano o que Jakobson fez para os po-

emas de Mensagem. Daí termos visitado repetidas vezes o texto da pesquisadora, em

busca de inspiração para entender algo sobre o corpo dos sonetos pessoanos (vide

seção “Atribuição”, em que citamos largamente a autora). Creio que uma das inten-

ções de Garcez foi mesmo buscar, através de um único soneto, algo que servisse à

totalidade dos sonetos de Pessoa; argumento a favor dessa percepção está na breve

citação e resenha que, ao introduzir sua análise, Garcez faz sobre uma nota de Luigi

Pareyson acerca do soneto (In: I Problemi dell’Estetica, 1966)

(...) diz-nos [Pareyson] que “a idéia do soneto não reside fora dos sonetos singulares que a realizam, mas vive neles, tanto mais operante e ativa quanto mais original e incon-

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fundível o soneto que a encarna, e cada soneto singular é sempre um modo particularís-simo de interpretá-la e realizá-la, de modo que faz parte da sua singularidade e originali-dade, isto é, de seu valor artístico, o seu modo peculiar e próprio de ser um soneto”. Mostra-nos [Pareyson] ainda que, num artista medíocre, gêneros e formas aparecem sem brilho algum, meros instrumentos indiferentes, despersonalizados, enquanto nas obras bem-sucedidas eles ostentam o cunho da individualidade que os assimilou e re-criou de maneira singular.

~ Maria Helena Nery Garcez, 1981

O outro texto que nos inspirou – o de Martins – foi encontrado no Instituto

Francês de Portugal ; nem mesmo a Casa Fernando Pessoa o tinha em suas prateleiras. O

autor realiza, de modo mais extenso, feito similar ao da análise de Garcez; se a pes-

quisadora justapôs Campos (Pessoa) a Antero de Quental, com vistas a entender uma

subversão específica do soneto, o autor António Coimbra Martins justapõe António

Feliciano de Castilho a Fernando Pessoa, visando a compreender revoluções mais

gerais da poética portuguesa... de Castilho a Pessoa. Logo, trata-se de um contexto

de análise muito mais amplo que o de Garcez, tanto temporalmente quanto temati-

camente – porque não limitado a um soneto específico, nem limitado ao soneto co-

mo forma poética protagonizante.

MARTINS, António Coimbra (1969) “De Castilho a Pessoa: achegas para uma poética histórica portuguesa”. In: Bulletin des Etudes Portugaises, Nouvelle Série, Tome XXX. Lis-boa: Institut Français au Portugal.

A amplitude da empreitada de Martins é inversamente proporcional à sua uti-

lidade específica para esta tese: como o soneto é mero coadjuvante no estudo, o que

tomamos emprestado é pouco em relação às 123 páginas de sua poética histórica,

ainda que esse pouco seja deveras inspirador e com texto delicioso de se ler.

No que concerne especificamente ao soneto, Martins resgata uma nota de

Castilho que sumariza um ponto de vista diametralmente oposto ao de Pessoa.

O soneto é uma bela composição; mas, pelo abuso que dela se fez, tanto como pelas suas apertadíssimas dificuldades, também já quase se não faz. O soneto português (pode-mos dizer sem exageração) nasceu com Bocage, e com Bocage morreu. De mais: um engenho que respeita a sua própria liberdade e sabe como os arrojos poé-ticos lhe vêm incalculados, repugna forçosamente a circunscrever por força o seu poe-ma em 154 sílabas, divididas por quatro períodos preestabelecidos, dois de 44 sílabas cada um, e dois de 33. O soneto, portanto, não parece muito compatível com a índole da escola poética hodierna, o que poderá em parte explicar a sua raridade.

~ António Feliciano de Castilho, apud MARTINS, 1969.

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No mesmo ensaio, Martins apresenta o outro pólo de sua poética histórica:

uma análise do mesmo soneto de Álvaro de Campos por que Garcez se aventurou! UM SONETO QUE SE DESTRÓI POR DENTRO. CONCLUSÃO SOBRE FER-NANDO PESSOA. Contra o período lírico, o burguês protestava porque bem via o que não era verso. Por isso, alguma vez Fernando Pessoa foi insidioso. Por isso, o verso mais venerável, o he-róico d’Os Lusíadas, havia que destruí-lo sem o burguês dar por isso. Ou, se preferir-mos, havia que passar o verso livre em contrabando. A fim de cometer a proeza, o mestre ilusionista da Saudade dada [de 1917] escolheu o terreno do soneto. Era dar tudo ao adversário. Nada prende mais que o colete de for-ça dos catorze versos, única viva das antigas formas fixas. Mas colete, correntes e cor-das, Pessoa desfez-se deles com uma presteza de Robert Houdin. Foi no Soneto já antigo (“Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de”). O Soneto já antigo é um beijo de Judas ao velho déspota que parece imortal. (...) [Martins segue a analisar, por 5 parágrafos, a estrutura formal desse soneto e conclui...] Agora medimos bem o triplo intento, sob o ponto de vista formal, do Soneto já antigo: pelo transporte de verso a verso anular subterrâneamente o número do decassílabo; pe-lo transporte de estância a estância transformar o desenho estrófico do soneto; por um e outro apagar-lhe as rimas. (...) Acontece (...) enfim, que [Pessoa] inculque o verso livre sob as espécies do clássico, na gaiola implacável do soneto.

~ António Coimbra Martins, 1969

Surpreendentemente, eis o estado da questão da tentativa de estudo global dos

sonetos em Português de Fernando Pessoa: uma análise profunda de um soneto, e

um ensaio para uma histórica poética portuguesa que, curiosamente, destaca o mes-

mo soneto da outra análise.

Nos estudo das obras pessoanas em Português, o maior número de sonetos

que alguns artigos abraçam duma só vez está no ciclo Passos da Cruz, abordado por

alguns trabalhos, como o de Maria Vitalina Leal de Matos (1993), que apenas realizou

uma aproximação semiótica desta guirlanda de 14 sonetos.

Na crítica em Inglês, há pelo menos uma notável tentativa de leitura global de

um grupo de sonetos de Pessoa – os 35 Sonnets.

PRING-MILL, Robert D. F. (1971) “The Themes of Fernando Pessoa's English Sonnets”. In: Tulane Studies in Romance Languages and Literature, number 4. New Orle-ans: Tulane University.

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Pring-Mill decide estudar o conjunto dos 35 Sonnets “to examine what they have

to say as a closed system: complete in itself and self-explanatory” [grifo dele]. Esta

decisão do investigador dá-se após uma série de opções de abordagem descartadas,

uma após a outra:

1. (…) to try to situate them [os 35 Sonnets] in relation to his poetry in Portuguese, attempting to assess just where they stand (both in themes and in treatment) vis-à-vis his four dis-tinct vernacular poetic personalities.

2. (…) to try to determine their precise relationship to the tradition of English philosophical

and meditative verse, especially in sonnet form. 3. (…) to study Pessoa’s highly convoluted use of the English language (…) 4. (…) to examine their topics and motifs not in the light of English poetry, but in the light of

Portuguese and Spanish poetry of the Golden Age, many of whose preoccupations co-me strangely to the surface again: bitingly modern in their significance for the twenti-eth-century poet, though clad in this curiously pseudo-Tudor garb of style.

~ Robert Pring-Mill, 1971

É pena que Pring-Mill se tenha aventurado apenas por uma dessas vias. Pa-

rece-nos que a integração entre os sonetos ingleses e os portugueses de Pessoa (a 1a

via acima descartada) é chave para uma visão geral da obra pessoana. Mesmo só

estudando os 35 Sonnets como um sistema fechado, Pring-Mill tem uma série de in-

sights, destacando alguns temas que encontramos, também, nos demais sonetos pes-

soanos – entre eles, a questão da aparência versus realidade, que Pring-Mill considera

central. Outros temas enfocados pelo pesquisador são: Sonho, Pensar, Fazer, Crer e

Amor – todos com respectivas microleituras que apresentamos na 3a parte desta tese.

Após buscar bibliografia passiva para o estudo geral e individual dos sonetos,

empreendemos uma terceira busca no índice de Pessoana: como foram estudados os

temas que identificamos como centrais nos sonetos de Pessoa?

Se os sonetos não foram estudados em exaustão, por outro lado os temas re-

correntes em Pessoa decerto o foram – e aqui a bibliografia passiva foi de grande

auxílio. Sempre que identificamos um tema desenvolvido por mais de meia dúzia de

sonetos, fomos ao respectivo tema no índice bibliográfico de Blanco, a fim de encon-

trar leituras pertinentes sobre outras partes da obra pessoana. Exemplo disso é o

tema do coração: pulsando nos sonetos, este tema também se encontra no índice de

Pessoana, que indica, entre outras coisas, dois belos ensaios sobre o coração em Pes-

soa; certamente tais ensaios influenciaram nossa leitura cardíaca (cf. COELHO, 1987: 94)

dos sonetos:

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GARCIA, José Martins (1985) “Em torno do coração”. Fernando Pessoa: coração despedaçado. Ponta Delgada: Univ. dos Açores. COELHO, Joaquim-Francisco (1987) “Álvaro de Campos Cardíaco”. In: Microleituras de Álvaro de Campos – e outras investigações pessoanas. Lisboa: Dom Quixote.

Portanto, na 3a parte desta tese, ao lermos agrupamentos de sonetos segundo

temas específicos, invocaremos textos sugeridos em Pessoana, segundo sua relevância

temática.

Exemplo de relevante análise temática, debruçando-se sobre sonetos particu-

lares, é o trabalho de BERARDINELLI (1965). Tal como Garcez (1981), a profes-

sora Berardinelli justapôs Antero e Pessoa, representando-os, cada um deles, por um

soneto: Elogio da Morte (Antero) & “Súbita mão de algum fantasma oculto” (Pessoa).

A análise dá-se na dimensão temática que esses poemas compartilham, investigando

as dívidas e rupturas de Pessoa para com Antero acerca do motivo do Inconsciente.

Trata-se, pois, de um estudo bastante distinto do de Garcez (1981), que explora as

revoluções formais nos sonetos anterianos e pessoanos. São investigações como as de

Berardinelli que nos inspiram e amparam a estudar os temas recorrentes nos sonetos

de Pessoa.

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