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5/28/2018 oJogoDaDetetive-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/o-jogo-da-detetive 1/106 O JOGO DA DETETIVE Tey de Louré Nota da contracapa do livro O Jogo da detetive é um livro em que você irá acompanhar com interesse o poder de raciocínio, a intuição e a lucidez de uma moça, filha de famoso detetive, e que inesperadamente se vê às voltas com situações que a levam a assumir, por natural herança, a vocação do pai. Em cada página você viverá momentos de encadeados impulsos, fortes e convincentes, que o levarão com facilidade ao final da história, porque os pontos de apoio do suspense são agulhas de um tricô de malhas que o envolverão. Fim da nota Copyright - 1971 by Tey de Louré Capa de Ferruccio Verdolin Filho Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total desta obra, sem a permissão por escrito da Editora. Rua Felipe dos Santos, 508 - Lourdes 30180-160 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil CEP 30161 - CP 1068 - FAX - (031 ) 337-2834 PABX - (031 ) 337-274 Impresso no Brasil Printed in Brazil FICHA CATALOGRÁFICA L 892 Louré, Tey de  O jogo da detetive, 2 edição- Belo Horizonte:  Vigília, 1996.  214p  1. Romance policial 1 . Título  CDD 8o8.83872  CDU 82-312.4 ISBN-85-259-0082-6 869.0(81 )-312.4 In memória de AGATHA CHRISTIE, para mim, a maior escritora de todos os tempos. Uma Homenagem As idéias surgem, motivadas por alguma necessidade dentro de nós. E quando elas são ousadas e difíceis é necessário termos alguém do nosso lado, que participe de nosso propósito, estimulando-nos e encorajando-nos diante das dificuldades . que surgem a todo momento. Tive do meu lado, enquanto escrevia este livro, a companhia de um garotinho maravilhoso, de apenas onze anos de idade, que lia os meus manuscritos e, empolgado, fazia perguntas diversas sobre o enredo e chegava até a corrigir erros! Acredito que ele tenha sido a mola mestra neste trabalho. Sem o incentivo e a atenção que ele me dedicava, talvez não fosse possível este livro acontecer. Por isso, quero prestar uma homenagem especial a este garotinho maravilhoso, chamado Luciano, que, para minha alegria, é meu sobrinho. Obrigada, querido. Cenário

o Jogo Da Detetive

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O JOGO DA DETETIVE Tey de Lour Nota da contracapa do livro O Jogo da detetive um livro em que voc ir acompanhar com interesse o poder de raciocnio, a intuio e a lucidez de uma moa, filha de famoso detetive, e que inesperadamente se v s voltas com situaes que a levam a assumir, por natural herana, a vocao do pai. Em cada pgina voc viver momentos de encadeados impulsos, fortes e convincentes, que o levaro com facilidade ao final da histria, porque os pontos de apoio do suspense so agulhas de um tric de malhas que o envolvero. Fim da nota Copyright - 1971 by Tey de Lour Capa de Ferruccio Verdolin Filho Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo parcial ou total desta obra, sem a permisso por escrito da Editora. Rua Felipe dos Santos, 508 - Lourdes 30180-160 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil CEP 30161 - CP 1068 - FAX - (031 ) 337-2834 PABX - (031 ) 337-274 Impresso no Brasil Printed in Brazil FICHA CATALOGRFICA L 892 Lour, Tey de O jogo da detetive, 2 edio- Belo Horizonte: Viglia, 1996. 214p 1. Romance policial 1 . Ttulo CDD 8o8.83872 CDU 82-312.4 ISBN-85-259-0082-6 869.0(81 )-312.4 In memria de AGATHA CHRISTIE, para mim, a maior escritora de todos os tempos. Uma Homenagem As idias surgem, motivadas por alguma necessidade dentro de ns. E quando elas so ousadas e difceis necessrio termos algum do nosso lado, que participe de nosso propsito, estimulando-nos e encorajando-nos diante das dificuldades . que surgem a todo momento. Tive do meu lado, enquanto escrevia este livro, a companhia de um garotinho maravilhoso, de apenas onze anos de idade, que lia os meus manuscritos e, empolgado, fazia perguntas diversas sobre o enredo e chegava at a corrigir erros! Acredito que ele tenha sido a mola mestra neste trabalho. Sem o incentivo e a ateno que ele me dedicava, talvez no fosse possvel este livro acontecer. Por isso, quero prestar uma homenagem especial a este garotinho maravilhoso, chamado Luciano, que, para minha alegria, meu sobrinho. Obrigada, querido. Cenrio

Para orientar o leitor, apresento em planta baixa o cenrio usado nesta histria. Com ele, ser muito oportuno acompanhar a movimentao dos personagens. Nota do corretor nas duas proximas pginas ha um mapa da casa. Fim da nota Captulo Um Marilu entrou displicentemente na saleta, deixando-se cair numa confortvel poltrona. Parecia estar alheia ao mundo. Apenas olhava tudo sua volta, como numa inspeo de reconhecimento. Tudo era igual, como h quatro anos atrs. Os mveis, os tapetes, as cortinas, apenas acrescidos de um cheiro de coisas que ficaram guardadas dentro de um ba. Cheiro de coisas que pararam de viver por algum tempo. Fechou os olhos por instantes, como se estivesse vendo o passado, agora to pungente. Um passado feliz, que fora interromper-se de maneira trgica. Abriu os olhos e eles depararam com o pequeno porta-retrato sobre a lareira, de onde sua me sorria. Levantou-se e foi at ele, passando o dedo de leve sobre o rosto alegre de Suzana. Naquela poca, a casa fora palpitante, festiva, cheia de vida. Correu a mo pelos cabelos lisos, jogando-os para trs, como se com isso quisesse se libertar do passado. - Como se sente? - perguntou Louise, entrando na saleta e vendo a amiga to absorta. Marilu voltou-se, tentando sorrir. Ali estava a fiel amiga, no seu porte elegante e discreto, que lhe lembrava nobreza. - Estou bem. Apenas vagando um pouco pelo passado. Marilu viu surgir entre os olhos da amiga um pequeno sulco que ora significava preocupao, ora compenetrao. - Ela era muito bonita - disse Louise tambm admirando a foto. - Voc se parece muito com ela. - Mame era linda - respondeu Marilu, um tanto sria. Voltou poltrona, deixando-se c air. - uma pena. uma pena. - Voc est triste - disse a amiga, sentando-se ao seu lado, envolvendo-lhe as mos. Mais triste do que era. Isto mau. Creio que foi um erro ter voltado. - Mas eu tinha de voltar! - falou Marilu com convico. - Voc no entende, Louise? como se eu tivesse me perdido aqui naquele dia. - Marilu sacudiu a cabea com desespero. - No posso conti nuar fugindo. No devia ter fugido, quando tudo aconteceu. Devia ter ficado aqui. Nos primeiros meses, s eria um verdadeiro martrio. Lembraria de tudo o tempo todo, mas depois, fatalmente eu iria me acostumar e ho je ja estaria livre desta amargura. - Marilu respirou fundo. Louise fitava-a quase aflita. - No, no devo mai s fugir. Hoje sei, e como, que devemos encarar tudo de frente. Quer sejam as coisas agradveis ou desagradaveis. - Tlvez voc tenha razo, minha querida. No sei ao certo o que possa perturb-la tanto n a morte de sua me, mas se o que sente... Marilu novamente respirou fundo. Quase um suspiro. - Foi tudo horrvel. Tudo horrve l. Um dia, quando puder

conviver com esta realidade, contarei tudo a voc. Louise tentou sorrir-lhe. Marilu saiu da saleta e seus passos ficaram ecoando pe lo corredor, at se perderem. Louise olhou sua volta e sentiu tdio. Foi at lareira e ficou olhando a foto que so rria. Os traos do rosto de Suzana eram suaves, seus dentes perfeitos. Cabelos brilhantes, como seu prprio so rriso. Quanta ironia traz a vida, pensou. Uma mulher ainda jovem, muito bonita, rica, feliz, ... e morta. Er a uma estpida fatalidade. Suzana teve tudo que uma mulher pudesse sonhar e no entanto... Louise apertou os lbios. Como era estranha a vida, pensou. tudo to vago... Quando conheceu Marilu, jamais pensou que se tornariam to amigas, que um dia a acompanharia de volta ao passado, apoiando-a numa dor que ainda desconhecia, embora soubesse existir. Deixou fluir em sua mente os vrios rostos, quase estranhos, das pessoas com quem iria conviver durante aqueles dias, e mecanicamente somou sete. - Sete - falou alto e sorriu. - Se eu fosse supersticiosa... Um forte estrondo a fez saltar de seus pensamentos, e com tristeza certificou-se de que o barulho fora um trovo. Aproximou-se de uma das portas envidraadas e olhou para o cu. Havia sol, mas nuven s pesadas de chuva j se aproximavam. Contemplou o jardim com vrios matizes colorindo a tarde e, mais adia nte, as rvores que formavam o bosque, to prximas umas s outras, que suas sombras certamente deveriam s e sobrepor, tornando o lugar sombrio e mido. Louise sentiu o tdio invadi-la, ao concluir que, se o tempo mudasse, no poderia de sfrutar das delicias que o campo oferece. Outro trovo e o sol desapareceu, como se houvesse se assustado com o barulho. Olh ando para aquela tarde lgubre, sentiu angstia. Talvez at remorsos de ter aceito o convite de Marilu. O que fazer, quando se hspede numa casa de campo, e com chuva? Imaginou os dias se arrastando pelas hora s nevoentas... Seria um verdadeiro suplcio, pensou. Lembrou de ter colocado um livro e o seu trabalho de tric em meio bagagem e isto a alegrou um pouco. Pelo menos teria uma ocupao. O grupo parecia interessante, mas no o conhecia bem para poder emitir qualquer pa recer, e ela sabia como era difcil para fazer amizades. Sempre achou que deveria ser algo espontneo e que cres cesse aos poucos. Voltou saleta, pois na varanda j soprava um vento forte, cortante, fechando as po rtas envidraadas. Novamente seus olhos encontraram a foto de Suzana. Era um rosto difcil de esquece r. Sentou-se na poltrona defronte, em contemplao. Ouviu risadas. Certamente era o grupo que regressava de algum passeio, interromp ido pelo mau tempo. Na porta de vidro as primeiras gotas anunciaram a chegada da chuva e, com certez a, do inverno tambm. Louise viu os pingos vacilarem e depois escorrerem, e logo, logo, a transparncia tornouse fosc. A penumbra cobria a saleta. Por alguns momentos as vozes soaram ntidas, mas em seguida foram se dista nciando, at se perderem por completo, misturando-se com o barulho da chuva. Viu o dia agonizando numa pequena rstia de luz e com essa tnue claridade voltou a contemplar a foto de Suzana, que parecia atrair sua

ateno. As formas, at ento inertes, de repente criaram vida. Viu quando a boca de Suzana m oveu-se como a falar-lhe algo. No, no era a foto. Era Suzana que se colocara sua frente e, sorrindo-lhe mui to, falava-lhe. Parecia feliz. Louise no conseguia entender Suzana e notou que isto a entristeceu. Viu quando el a apanhou o candelabro sobre a lareira, trazendo a luz at bem prximo do seu rosto, como se para v-la melho r. Louise contraiu os olhos rapidamente, ofuscados pela luminosidade. Suzana chamava-a baixinho e com doura tocou-lhe o ombro. Louise estremeceu assustada. A saleta estava iluminada e Marilu segurava-lhe o o mbro. - Estava dormindo, querida? Desculpe-me por t-la assustado. Louise tentou sorrir. Olhou para a lareira e viu a foto que continuava l em cima, sempre sorrindo. - O jantar ser servido daqui a pouco - falou Marilu. Louise passou a mo pelos cabe los. - Vou aprontar-me, ento. Deso logo. Ao alcanar a porta da saleta, encontrou-se com o Sr. Rodolfo Ralph, pai de Marilu , que entrava. - Viu como j esfriou? - falou-lhe. - Vou j acender a lareira. L fora a chuva caa forte, e pela porta envidraada Louise apenas viu a excurido, que invadira o jardim, apagando suas cores. Captulo Dois O salo de jogos estava iluminado e, com as cortinas arriadas, ocultava o negrume da noite. Louise observava a todos do grupo com muita ateno. Comportavam-se como se fossem p arentes, com muita intimidade, como se passar uns dias naquela casa fosse um hbito comum para todos. Marilu falara-lhe muito pouco sobre eles. Apenas que, antes de Suzana morrer, "o grupo" estivera sempre ali, numa visita que parecia no ter fim. Todos bebiam, enquanto, atentos s cartas, sorviam a noite. Era ntido o barulho da chuva que persistia em trazer de vez o inverno, mas o aconchego do salo fazia desta idia uma boa sugesto. - A chuva comeou um pouco antecipada este ano, no Rodolfo? - perguntou Ivan, enqua nto embaralhava as cartas. Louise olhou para ele, achando-o simptico. AtE a cicatriz que tinha na fr onte dava-lhe um charme especial. - , e isto significa que o inverno j est s portas. Basta chover nesta poca para inici ar o frio - disse o Sr. Ralph, com o cachimbo no canto da boca. - E o que pior - concluiu Melissa em tom aborrecido, apalpando o coque delicado que sempre usava. - Aqui nesta regio, temos o inverno mais rigoroso do paz. - Gosta de frio, Louise? - perguntou Marilu. - Acho uma estao bonita, mas muito doda - disse sorrindo. - Tenho um pequeno proble ma circulatrio que fica evidente nesta estao. - Coisa grave? - perguntou Clara, olhando por sobre os culos. - No, no. Um tratamento para dilatao dos vasos sangineos resolveria, mas acontece que nunca encontro tempo para isso. - Tempo ou coragem? - perguntou sorrindo Ivan. Louise correspondeu-lhe.

- Creio que os dois. - Com a sade no se brinca. Devemos sempre estar atentos - observou Clara, deixando bem evidente sua experincia de vida. - Estou de acordo com a senhora. Penso inclusive que as medidas de profilaxia so indiscutveis e devem ser seguidas regra, mas sempre defendo isto quando se trata da sade dos outros. - Lou ise pensou um pouco e concluiu: - No sei bem, mas muitas vezes me comporto como se no fosse perecvel. Os outros precisam se cuidar porque podem morrer, mas eu... - Somos todos assim - falou o Sr. Ralph, aps ligeira baforada. - Tambm nunca estam os satisfeitos, e apesar das amarguras, vivemos sempre cheios de sonhos e fantasias. - Sonhos! - exclamou Louise lembrando-se de seu sonho com Suzana. - s vezes eles nos parecem to reais. Domingos apareceu a porta, acariciando o bigode bem cuidado. - O tempo enlouqueceu de vez. Venta forte e chove muito. - Onde est Karla? - perg untou Melissa olhando preocupada para ele. - Na saleta, junto a lareira. a mesma friorenta de sempre. - No vai jogar conosco ? - perguntou-lhe o Sr. Ralph. - Se estiverem dispostos a perder... Todos sorriram. O silncio invadiu o ambiente, com o reincio da partida. Fitavam atentos as cartas que tinham s mos, enquanto em suas mentes o raciocnio flua na tentativa de uma boa jogada. O barulho da chuva, batendo contra o vidro das janelas, pareceu intensificar. Repentinamente, ouviu-se um rudo de algo quebrando-se, seguido de um grito de mul her. A ateno de todos foi cortada e se olharam assustados. O Sr. Ralph levantou-se rpido. - Veio da cozinha. Violeta! - exclamou. - Deve ter-lhe acontecido algo. - E saiu ligeiro do salo, seguido de Domingos e Ivan. Na mesa, as cartas ficaram abandonadas em desordem, revelando que aquela partida j estava encerrada, e que no haveria vencedor. Clara levantou-se e foi at uma das janelas, afastando a cortina. Louise apenas vi u alguns pontos de luz, vindos do jardim que circundava a casa. Numa noite de luar, aquelas luzes certamente at rapalhariam, pensou. Clara aproximou-se da mesa, visivelmente preocupada. Domingos apareceu porta e fitaram-no interrogativamente. - Foi um pequeno acidente - explicou. - Violeta cortouse numa vasilha que se que brou e est sangrando muito. - Pobrezinha! - exclamou Melissa. - Vamos ajud-la. Saram todos, atravessando o cor redor em direo cozinha, enquanto, na saleta, Karla tentava concentrar-se na leitura; mas no conseguia des ligar-se dos rudos externos. O estalar da madeira no fogo ardente da lareira parecia um estranho chamado e el a olhava para as chamas, enquanto em sua mente a voz de Suzana ressoava, repetindo em sua lembrana: " - Gosto de olhar o fogo. Ele traa formas maravilhosas, tingindo-as de cores inc rveis. Nem na aquarela do

mair pintor do mundo possvel encontrar os tons que se fundem nos semitons, ou at no s contrastes harmoniosos que faz fluir da madeira. um quadro vivo. Pena que dure to pouco. " Tdo para Suzana durou pouco, pensou Karla. Voltou ao livro, insistindo em concent rar-se na leitura, mas era impossvel saber o que estava lendo. O vento l fora assobiava forte e ela se lembro u de uma certa noite. A noite quando Suzana morreu... Tudo parecia igual. O vento, a chuva, o friozinho comeand o... - No, no. Eu no quero pensar. No quero me lembrar daquela maldita noite! - gritou Ka rla, passando a mo pela cabea, num gesto de desespero. Um toque suave no vidro da porta que conduzia ala norte do jardim fez Karla leva ntar vagarosamente a cabea. Viu apenas a escurido. Aguou os ouvidos e apenas ouviu a chuva, o vento e o crepitar do fogo. Pareceu-lhe estar s naquela casa. No ouvia ningum. Karla sentiu medo. Um medo muito grande. Novamente ouviu bater no vidro, como se algum estivesse l fora, querendo entrar. Seria ela? - pensou, apavorada. S podia ser Suzana. Aquela sala era seu lugar preferido na casa. Karla tentava controlar a respirao e afastar o medo, quando viu um vulto que se ap roximava da porta envidraada. Ocultou o rosto entre as mos, gritando. Um grito de pavor. Ouviu ainda quando algo chocou-se contra o vidro. Viu o rosto de Domingos, que parecia envolto numa neblina, e ouviu sua voz. - Voc est bem, Karla? Beba isso. Vai lhe fazer bem. Domingos ajudou-a a sentar-se no sof onde estava deitada e ela, depois de sorver algo forte, olhou volta. - Voc se assustou com a luz que apagou, querida, ou com o estampido do trovo? - pe rguntou-lhe Marilu. - Ela olhou para a porta e viu que estava semi-aberta, apesar da chuva intensa. Apontou em direo a ela cheia de medo. - Calma! Rodolfo e Ivan esto l fora arrastando um galho de jasmineiro que tombou e est forando a porta. Fique calma. Karla olhou para a lareira. As chamas continuavam ardentes e crepitantes, enquan to l fora o ronco do vento era incessante. O Sr. Ralph entrou, seguido de Ivan, ambos encharcados. - Como est, K arla? Mais calma? - No quero ficar aqui - falou ela em resposta. - Quero ir embora. Todos ficaram em silncio. - Mas que bobagem, minha querida? - perguntou o Sr. Ralph. - Por que quer ir emb ora? Voc sempre gostou tanto daqui... Karla sentiu que todos a fitavam. - No gosto mais - falou ela com olhos cheios de pnico. - Sinto-me vigiada, encurra lada... Novamente os olhares de todos pareceram feri-la, interrogativamente. - ... Eu no sei bem dizer o que sinto. E uma sensao estranha... S sei que aqui eu no estou bem. E como se algum estivesse me observando o tempo todo. Algum que no consigo ver... Houve um instante de perturbao, mas Domingos quebrou-o, inteligentemente. - No liguem para Karla. Continua melodramtica. No tempo de colgio, obrigava-me a ir s representaes de teatro de sua turma, e era infalvel: l estava ela nas cenas mais dramticas. Eu me d ebulhava em lgrimas. - Nunca me falou sobre sua vida artistica - comentou o Sr. Ralph. - Foi s no tempo de colgio, e isto j faz um bom tempo... - Quantos predicados! - ex

clamou Melissa. - Atriz, atleta... - No considero assim. Jamais fui uma revelao em tudo que fiz. Ivan consolou-a. - Ora, o que isso, Karla? Quanta modstia! Afinal, j quase conseguiu classificao para ir s Olimpadas. Acho isso estupendo! - "Quase" uma palavra extremamente desagradvel para mim. Soa como prmio de consolao. Violeta entrou trazendo ch para todos. - O que foi isso em sua mo? - perguntou Karla, assustando-se com a faixa que envo lvia a mo da criada, com uma mancha de sangue. - Um pequeno corte, senhorita - respondeu-lhe sem qualquer afetao. - Foi um ferimento aparentemente pequeno, Violeta, mas tudo indica que cortou um vaso sangineo - advertiu o Sr. Ralph. Ela saiu sem nada dizer. - H pessoas incrveis! - voltou a falar o Sr. Ralph. Acreditem que Violeta me fez j urar que no vou lev-la ao hospital para ma sutura. Certamente, este ferimento vai voltar a sangrar... E saiu, seguido de Ivan, para trocar-se. Captulo Trs As malas em desordem, com roupas espalhadas pela cama, deixavam Karla desanimada . Tinha quase certeza de que colocara um pijama para inverno na bagagem, mas no conseguia encontr-lo. A cab ea ainda estava pesada, devido ao pequeno desmaio que tivera instantes antes, o que aumentava o seu desnimo. O mal-estar a fez tirar os culos redondos, como se a incomodassem. Continuou remexendo a bagage m lentamente, e em meio a uma confuso de roupas encontrou seu lbum de fotografias. Sorriu, sentando-se jun to ao toucador e comeou a folhe-lo. Em cada pgina, ia deparando-se com fotos suas, em vrias idades. Como atriz, incorporada a vrias personagens que representou, e como atleta. Sempre achou que deveria conquistar Domingos de uma maneira indireta. Supunha qu e seria maravilhoso se atrasse sua ateno, atravs de atividades que a destacassem, pois automaticamente esta ria tambm conquistando seu respeito e admirao. Tentou o teatro, mas quando viu que aquilo no era o forte dele, sentiu-se desespe rada. Passou ento a observ-lo, tentando saber qual a atividade que ele admirava na mulher. Um dia, no clube, de scobriu que Domingos admirava a mulher desportista, quando o viu deslumbrar-se com a boa forma e grac iosidade de Suzana numa partida de tnis. Suzana! ... Sempre ela. No colgio, fora a melhor em tudo, at mesmo no teatro. Lembrou-se de como lhe apresentara Domingos, um dia, sada do colgio. " - Este meu primo, do qual lhe falei. Chama-se Domingos e vai ficar morando aqu i agora, para prosseguir os estudos. " Ele mal a olhara. Dissera-lhe um rpido "muito prazer", voltando a dedicar toda su a ateno a Suzana. Sentiu dio por ele. dio que foi aumentando medida que foi conhecendo-o melhor. Um d io estranho... Tinha vontade de v-lo. Ento ia at casa de Suzana e l ficava infeliz, pois ele contin

uava em estado de adorao constante "prima". Aquela foto que tiraram juntos foi o primeiro gesto de ateno que lhe dedicara. Foi numa tarde, em meio a tantos "clics", tendo Suzana como modelo, houve um momento supremo para ela: peq ueno, mas intenso. Ele entregara a cmara Suzana, pedindo-lhe que os fotografasse; e mesmo apesar de tant o tempo, ainda agora podia sentir-lhe o calor da mo sobre seu ombro. Esta foto, ela guardaria para sem pre, com muito amor. Amor... Que loucura era sua vida. Quantos anos vivendo em funo de um amor que mal a reconhecia. Ela queria crer, a princpio, que ele se interessava por Suzana, por causa do seu dinheiro, mas cansou-se de enganar a si mesma. Era paixo mesmo. Uma incrvel paixo. Quando Suzana conhecera Rodolfo e ambos se apaixonaram, Domingos desapareceu. Um dia foi procurar Karla, mas a alegria que pareceu rond-la desmoronou-se. Ele voltara para falar-lh e de Suzana. Era preciso fazer alguma coisa e ela tentou. - Mas vocs so primos, Domingos. No recomendvel uma unio entre parentes. - Primos s na cabea dela - respondeu ele enfurecido. - Eu sou primo de Clara, que no irm dela. O pai de Suzana casou-se com a me de Clara em segundas npcias, apenas isto. Karla sentiu-se perdida. Este era um trunfo, que - pensou - a natureza teria col ocado em suas mos, mas nem esta estava do seu lado. Comeou, ento, a dedicar-se avidamente ao esporte, e quand o estava quase conseguindo sobressair-se como uma possivel atleta, ele a criticou, dizendo que o seu corpo estava ficando musculoso, talvez mais forte que o dele. Sentiu vergonha e dio de si mesma. Passara uma vida, vivendo em funo de um amor, e no conseguira nada nem de si, nem para si. A morte de Suzana chegou a trazer-lhe algumas esperanas. Novamente em seus sonhos , Domingos a reconhecia afinal como a mulher de sua vida, falando-lhe de amor, enchendo-a de felicidade. Nos primeiros meses, ela sabia que tudo seria difcil demais para ele. Mas, depois, no conseguiri a sobreviver por muito tempo sendo escravo de uma lembrana, de uma lembrana impossvel. E foi acalentando esta il uso, que quatro anos haviam se passado e ele ainda continuava reverenciando Suzana. Ele, Rodolfo e Iv an. E talvez muitos outros. Suzana fora uma mulher incrivelmente fascinante. Todos os homens ficavam deslumb rados com ela. Era uma mulher vibrante, ativa, participante de tudo que estivesse acontecendo. Era horrv el aceitar tal realidade, mas Suzana realmente fora uma mulher diferente, uma mulher sem igual. E por isso, Ka rla a odiava. Odiava e muito. Com todas as suas foras. Mesmo depois de morta, Suzana, eu a odeio, assim pensava. E vou continuar odiand o-a sempre e muito, at que voc seja completamente esquecida... Seria isso possvel? - insistiu seu pensamento. Somente o tempo poderia dizer. Por enquanto, aquela noite trgica parecia ter sido ontem para ela. Suzana linda e morta. Sangue. Muito sangue. Qualquer um deles no grupo, que tivesse morrido, no teria deixado um vazi o to grande, como o que

Suzana deixara. Depois de sua morte, um mundo cheio de rotina e de espera. Uma longa e duvidosa espera para que aquele sonho louco se concretizasse. Domingos... Sempre Domingos... A sua juventude j se dissipara e ainda estava espera do seu momento. Suzana morta, a engrenagem perdera o controle: Marilu fugira de todos, indo mora r no exterior com a madrinha; Domingos tambm mudara-se do pas, indo especializar-se; Ivan refugiara-se em sua ca sa de campo, passando a beber mais do que a conveno social permitia; Rodolfo, sempre se ausentando para ir ter com a filha, nico elo entre ele e Suzana; Melissa tambm esperando. Apenas Clara parecia no seu habitat natural, assumindo, de vez, quase todos os domnios de Suzana. E este tempo vinha se arrastando lentamente h quase quatro anos. J no tinha esperanas de que alguma coisa mudasse. Era como se o mundo tivesse parado, ocioso de novos acontecimentos. Foi quando Marilu resolveu voltar, cheia de recordaes, quere ndo rever tudo e todos, e, para culminar, Domingos tambm estava de volta e isto a deixava estonteante de fel icidade. Vltar quela casa? No, no era algo de agradvel para ela. Mas Domingos iria, e isto j lhe bastava. Tudo estaria acontecendo como antes. Uma sensao antiga, que pensou nunca mais voltar a sentir, estava ali, palpitante, agitando seu sangue, sufocando sua respirao, acelerando seu pulso. E f oi com a ansiedade de uma colegial que ela contara os dias para o grande reencontro. Mas a lembrana de Suzana se fizera presente entre eles, muito forte, mal chegaram ali. Como se no bastasse aquela sensao da sua presena, havia tambm o imenso retrato, que continuava fazendo f undo s escadas do salo, embora ele fosse um elemento dispensvel para ativar a memria de todos naquela casa. Como Karla, os demais sentiam que Suzana continuava ali, subindo escadas, sentad a na saleta, tocando piano, passeando pelo jardim. Como sou tola, pensou. Nada ser como antigamente. Eu no devia ter voltado aqui. Tudo isto parece mais um tmulo. O tmulo de Suzana. Sentiu que no iria conseguir dormir to cedo. Se no tivesse esquecido seu livro na s aleta... Captulo Quatro Karla entrou na saleta e foi vendo, sobre o assento da poltrona, o livro que tanta falta estava lhe fazendo. Na lareira ardia um fogo pequeno, mas o calor no ambiente era aconchegante. Karla sentou-se, ajeitou os culos e abriu o livro. Sempre lia quando tinha insnia, para afastar pensamentos desagradveis. A chuva j era mansa, mas o vento insistia, produzindo sons estranhos, assustadore s, que aos poucos foram se tornando distantes para ela. A leitura a absorveu por completo e logo, logo, seu s lhos j estavam diminutos de sono. Era hora de dormir, pensou. Era melhor subir. Na penumbra, cruzou o corredor e penetrou no salo. Karla caminhava abafado, evita

ndo fazer rudo. Alcanou a escada e foi deslizando a mo direita pelo corrimo, proporo que a galgava, at que, d e repente, sentiu-a pegajosa. Parou e olhou-a. Estava suja. Suja de sangue. Karla olhou em volta, as sustada. Ningum. Apenas o barulho da tempestade que se firmara l fora. meia luz, ela, esttica na escada, com os olhos cheios de medo, procurava por algum. Sangue, pensou. De quem ser? Continuou a subir e descobriu mais sangue pelo corri mo. Sentiu pavor. A cabea latejava, impedindo-a de pensar. No alto da escada, o pequeno hall do primeiro pavimento estava tenuemente iluminado pelas arandelas laterais, e as cortinas que cobriam o imenso vitral pareciam balouar de leve, tornando o ambiente mais misterioso ainda. Karla segurou a cabea e seu pensamento se agitou. Por que tudo aquilo a assustava tanto? Estaria ela sonhando? Estava sentindo uma estranha sensao, como se j tivesse vivido algo semelh ante. Ouviu um rudo abafado. Aguou os ouvidos. Pareciam passos. Passos que vinham da ala norte. Karla correu, penetrando pela ala sul e num s flego alcanou seu quarto, trancando-se rpido. Apoiad a porta, permaneceu no escuro, esperando que os passos se aproximassem. J mais calma, resolveu deitar-se, tentando dormir. Alguns relmpagos penetravam pel o vidro, iluminando com luz macabra o aposento. Pensou ouvir bater porta e isto fez novamente seu corao ag itar-se, batendo descontroladamente no peito. Apesar do medo, novamente aguou os ouvidos, e levantou a cabea do travesseiro. Res pirou aliviada. Era apenas o vento de encontro sua janela. No mais, o silncio era total. Aos poucos, sentiuse vencida pelo sono e o rumor suave dos pingos da chuva contra o vidro pareceram-lhe um tentador convite . Sentiu que o ambiente foi ficando leve, longnquo, mas de maneira lenta, quase imperceptvel. Parecia flutuar. O pensamento parou e ela viu apenas cores. Cores que fluam do cho para o teto, num a rco-ris faiscante. Um rudo numa das janelas apagou as luzes multicores. Seria a chuva certamente, pe nsou, tentando no perder seu mundo colorido, mas outra vez o rudo distraiu-a. Parecia que algum estava l fora na chuva, e quisesse entrar. Ela no conseguia ouvir direito e aguardou com ansiedade esperando que tud o no passasse de uma iluso. Novamente, e desta vez bem ntido, o toque no vidro quebrou sua indiferena, fazendo -a levantar a cabea do travesseiro, para olhar em direo janela, mas nada viu. Apenas a escurido. Acendeu o abajur e caminhou receosa, em direo janela, erguendo a cortina. Ficou imvel, sem condies de gritar ou correr. Viu o inconfundvel rosto de Suzana, co lado ao vidro, embaando-o com seu hlito quente, movendo a boca, dizendo-lhe algo que Karla no conseguia compreender. Parecia pedir para deix-la entrar. Havia sangue, muito s angue pelo corpo de Suzana, que escorria junto com a gua da chuva. Era uma imagem horrvel de se ver e Karla sentiu muito medo. Precis ava sair dali, correr, gritar pelos outros, mas no conseguia. Sua boca se abria, mas no emi

tia nenhum som e suas pernas pareciam presas ao cho, como se pesassem muito. Karla deixou a cortina cair e foi se afastando, quase se arrastando, sem consegu ir deixar de olhar o vulto de Suzana, que parecia insistir para que a deixasse entrar. Com muito esforo, Karla alcanou a porta, tentando destranc-la, mas a chave parecia emperrada e no tinha condies de mov-la sequer na fechadura. Suzana batia com fora no vidro, insistindo. K arla no queria olhar naquela direo, e na ansia de fugir dali, insistia com desespero em abrir a porta. Foi quando ouviu o barulho da janela abrir-se violentamente e um vento forte inv adir o quarto, agitando com fria as cortinas, penetrando pela sua roupa, atingindo de maneira cortante o seu corpo. Karla continuava na luta desesperada, tentando abrir a maldita porta, cuja chave no girava na fechadura; mas mal conseguindo manter-se de p, arrastou-se at cama, agarrando-se a ela, enquanto olhava para a janela escancarada, esperando Suzana entrar. E viu quando a mo dela, suja de sangue, segurou o parapeito... No queria ver, mas algo a forava a continuar olhando. Suzana transps a janela e veio arrastando-se pelo quarto, indo em sua direo. Karla encolhia-se junto cama, tremendo, plida de espanto e medo, vendo Suzana se aproximando mais e mais, at conseguir alcan-la. Karla caiu sobre a cama, tentando gritar, mas no conseguiu. Via as mos sujas de sa ngue de Suzana aproximarem-se de seu pescoo e sua respirao foi ficando sufocada, dificil, e ento el a conseguiu gritar. Um grito de horror. Sentou-se na cama, suando frio. Estava gelada e com a respirao ofegante. Passou as mos pelo pescoo e descobriu que o laarote do pijama sufocava-a. Levantou-se rpido para fechar a jane la que estava aberta, com a chuva molhando todo o carpete. Voltou cama, procurando se acalmar. Tudo foi um pesadelo, pensou. A janela abriu -se com o vento forte, perturbando-lhe o sono. Karla, apesar de justificar tudo o que havia lhe acontec ido, concluiu que ainda estava muito impressionada com a morte trgica de Suzana. Tinha medo de enlouquecer com a queles pesadelos horrveis que a atormentavam j h quatro longos anos. E, naquela casa, sabia que seri a muito pior. Certamente, ali, enlouqueceria. Era preciso deixar aquele lugar, urgentemente, mas ao mesmo tempo no queria e nem podia magoar Rodolfo e Marilu. Recordou-se do pesadelo de instantes. Ainda bem que tudo no passava de um sonho m au, pensou. Achou que no resistiria a uma cena desta, na realidade tudo foi um sonho, tentou convencerse mais uma vez, cerrando os olhos, fechando a mo sobre a fonte. Ento sentiu-a pegajosa, como h pouco, quando to cara o corrimo da escada, sujo de sangue. Abriu os olhos de repente, sentindo-se gelar. At onde tudo aquilo seria um sonho mau? Captulo Cinco Louise despertou e a primeira coisa que ouviu foi o vento. Deixou o leito, camin hando preguiosamente sobre o tapete felpudo, at uma das janelas, erguendo a cortina. Viu o dia frio que fazia

l fora. A chuva parecia haver cessado, embora o cu permanecesse encoberto, mas o vento cortante seguramente imp ediria que qualquer um da casa se animasse a sair. Ouviu o carrilho que l do salo anunciava as oito horas da manh. Era melhor vestir-se e descer. Com certeza, todos j haviam se levantado. - Bom dia! - disse ela entrando na copa, onde j se preparavam para o lanche matin al. Apesar do frio, sentiu animao entre eles. - uma pena estar um dia assim. Temo que Louise se sinta entediada, sem poder sai r para um passeio. A paisagem aqui maravilhosa - disse Clara. - Tem razo. Estes dias podero ser os mais desagradveis de sua vida, Louise - disse Marilu com preocupao. - No se preocupem comigo, por favor. - Karla continua a dorminhoca de sempre - observou Marilu. - Dorme mais que a prp ria cama. - Minha fome no permite esper-la - falou Melissa, colocando-se de p. - Acho que vou cham-la. - Pode deixar, Melissa. Preciso mesmo apanhar um trabalho no quarto - interveio Louise, saindo em seguida. J havia alcanado as escadas, quando encontrou Violeta que cuidadosamente lustrava o corrimo. - Bom dia, Violeta! Est melhor? A moa franzina ergueu os olhos escuros e rpidos, baixando-os logo, de volta ao tra balho. - Sim, senhorita. Obrigada. Louise segurou a mo ferida de Violeta e viu que a bandagem estava com uma mancha de sangue. - Vamos at meu quarto - disse sria. - Precisamos cuidar melhor deste ferimento. Karla tentava, enquanto isso, se convencer de que deveria levantar, mas o barulh o do vento deixava-a desanimada. Seria um dia maante, embolorado, sem brilho. Ouviu passos no corredor , que se aproximavam. Um leve toque, e a voz de Louise se fez ouvir. - Karla?..: - Sim?... - respondeu ela com preguia, entrelaando os dedos na curta cabeleira. - Bom dia! Estamos esperando-a para o caf. Tudo bem? - Tudo bem? Impossvel! Com es te dia horrvel!... resmungou. - Anime-se, Karla - disse Louise sorrindo. - Impossvel - repetiu ela, desolada. - Minha vontade de s acordar quando fizer sol , mas em todo caso... Deso logo. Aps ter cuidado do ferimento de Violeta, Luise caminhava j no final do corredor, q uando ouviu a chave do quarto de Karla girar na fechadura e resolveu esper-la. - Desculpe o meu pssimo humor, - foi falando, assim que viu Louise - mas no imagin a como o mau tempo me deprime. - Isto natural. Principalmente quando se est no campo - confortou-a Louise. Quando comearam a descer as escadas para o salo, Karla parou, ficando sria. Parecia que alguma coisa a perturbava. Olhou em volta como se procurasse algo. - O que houve? - perguntou-lhe a amiga, notando seu alheamento. Karla no respondeu. Apenas aproximou-se do corrimo, tocando a madeira polida. - No pode ser... No pode ter sido um sonho... - disse por fim, vacilante, fechando a mo direita e esfregando os dedos. Louise a olhava de forma interrogativa, j com a pequena ruga entre os olho

s. - Ainda sinto aqui, na minha mo... Sangue! Estava sujo de sangue aqui quando toqu ei ontem noite. Sujou minha mo. - Voc disse ontem noite? - Sim, quando desci para buscar o livro que esqueci na saleta. - Virou-se brusca mente para Louise. - Eu no sonhei. Juro que no. Todos dizem que tudo que me acontece so pesadelos, mas isto no foi. Estou certa que no. - Calma, querida. Eu acredito que voc no tenha sonhado e para tudo existe uma expl icao lgica. possvel que tenha se sujado de sangue ao tocar no corrimo... Karla abriu os olhos de espanto, encarando Louise. - Voc acredita em mim? Acha po ssvel isto? - Claro que sim. Quando subia para chama-la, encontrei Violeta polindo o corrimo. Voc se esqueceu que ela est com um ferimento recente na mo e que sangra constantemente? - Ento o sangue com que me sujei ontem era... - ... de Violeta - completou Louise entre um pequeno sorriso. Karla olhou para a enorme tela. - No era dela? Louise ficou sria. Por que Karla pensava que era o sangue de Suzana que estava no corrimo? - No era dela! - exclamou Karla num suspiro. - No. No era dela - confirmou Louise, tentando ocultar a confuso que a pergunta de Karla criou em sua cabea. O Sr. Ralph apareceu ao p da escada, apressando-as para o lanche, ficando assim e ncerrada aquela estranha conversa. O lanche ja estava terminando quando Karla olhou para todos, cheia de mistrio. - Eu devo pedir desculpas a voc, Rodolfo, e a voc, Marilu; mas preciso contar-lhes o pesadelo horrvel que tive esta noite. - Abaixou os olhos. - Ela estava como sempre: linda. Linda, apesar da chu va e do sangue que escorria pelo corpo. - Ela? - perguntou Marilu. - Suzana. Ela estava janela do meu quarto, batendo no vidro, pedindo para entrar . E eu tive medo. Muito medo. Tentei fugir, mas as pernas no se moviam, quis gritar e no tinha voz; tentei abrir a porta, a chave estava emperrada. Foi tudo horrvel. - Karla tremia. - Foi horrvel, horrvel... - dis se j em prantos, saindo quase correndo, deixando todos perplexos. - Como um sonho pode perturbar tanto uma pessoa? perguntou Marilu. - Karla muito impressionada, querida - respondeu Clara. - No sei no, mas tambm no me sinto muito bem aqui. Minha cabea est pesada, tenho calaf rios... - Olhou para Rodolfo. - Perdoe-me, querido, - continuou Melissa - mas voc sabe que acredi to em outra vida aps esta. Sabe que sou mdium esprita. - Olhou para Marilu um tanto constrangida. Querida, si nto que sua me ainda no conseguiu encontrar a paz. Se ela se suicidou mesmo... Marilu interveio com convico. - Mame no se matou. Foi um terrvel acidente, veja se se convence disso, por favor. Ela no tinha motivos para querer morrer; e mesmo se tivesse, no o faria nunca. Ela era uma mulher fort

e, muito forte. Sabia enfrentar os problemas de frente. - Perdoe-me - falou Melissa desconcertada. - Voc pode estar certa; alis, tambm pens o assim. Mas uma morte to sbita pode ter feito muito mal a sua me. Ela era jovem, cheia de vida e de plano s... - Apertou os lbios com os dentes. - Entenda-me, querida... ela pode no ter aceitado a morte... Maril u fechou os olhos engolindo o pranto. - O que voc acha disso tudo? - perguntou Ivan a Rodolfo. - Eu no acredito, mas no impeo ningum de acreditar. - Caso seja isto uma verdade, - falou Domingos - e pode ser, pois h lgica no que Melissa diz, o que podemos fazer por ela? - Precisamos orar, meu amigo. Orar muito, para que ela encontre o seu descanso. Podemos tambm ir mais alm, atravs de uma sesso, onde ela poder se comunicar conosco e dizer o que a aflige . Talvez possamos ajud-la a alcanar a paz . - No sei, no, mas penso que no devemos nos impressionar com um pesadelo de Karla observou Ivan, desacreditando das convices de Melissa. - Bem se v que no conhece Karla, meu querid o. Ela no de se impressionar com nada. A verdade que ela uma pessoa sensitiva, embora no te nha desenvolvido suas potencialidades. - Melissa movimentou a cabea como se estivesse tensa. - Des de que aqui cheguei, sinto minha cabea pesada, dores pelo corpo, um mal-estar constante. So sem dvida alguma, os fluidos negativos que esto dentro desta casa. Captulo seis Aps o almoo, Clara entrou na saleta e atiou o fogo na lareira. - Que bonito trabalho est fazendo, Louise! - disse aproximando e tomando-o em sua s mos. - Sempre quis aprender a tricotar, mas confesso que nunca tive oportunidade. - Por que no aproveita ento estes dias quando estamos juntas? - perguntou-lhe Loui se. - No sou professora, mas posso ensinar-lhe o que sei. - Mas no fcil ensinar-me - observou ela, sentando-se ao lado da amiga. - Uma vez S uzana tentou e logo desistiu, porque sou canhota. - Realmente, fica um pouco mais complicado, mas s at tomar o jeito. Depois tudo fi car compreensvel. - Arriscaria a ensinar-me? - Arriscaria sim - respondeu Louise sorridente. - Podemos comear agora? Vou busca r o material. Louise deixou a saleta e, quando cruzou o corredor em direo ao seu quarto, ouviu u m barulho. Lembrou-se de Karla, muito abatida pela manh, e decidiu ir v-la, entrando sem bater. Karla estava de costas, olhando algo sobre a cmoda e assustou-se, voltando-se rpid o em direo porta. - Desculpe-me, no devia ter entrado sem bater - falou constrangida. - Assustei vo c. - No foi nada - respondeu-lhe, ainda assustada. - Sou mesmo uma tola. Deixo-me impressionar at com um sonho bobo. - Voc est bem? Est mais calma? - Sim, claro - respondeu, tentando ocultar seus temores. - Vamos descer? A salet

a est muito agradvel, com a lareira acesa. - Mais tarde apareo por l. Agora pretendo descansar um pouco. Tive um sono muito t umultuado esta noite. - Est bem. At l. Fechou a porta atrs de si e encaminhou-se para seu quarto. Quando alcanou a maaneta , ouviu o barulho de chave girar na fechadura. Voltou-se, olhando para a porta de Karla. Por que ela se fechava a chave? Seria s por medo? Quando Louise voltou saleta, o Sr. Ralph, que folheava um livro, falou-lhe: - Voc est mesmo animada. Ensinar Clara a tricotar! Ser uma faanha, se conseguir - di sse rindo, colocando o cachimbo de volta boca. - No entendi seu comentrio, Sr. Ralph - falou sria. - Clara muito desatenta para de dicar-se a um tipo de trabalho como este. Imagine que ela saiu daqui muito nervosa, pois no sabe onde d eixou os culos e, sem eles, no vai conseguir tecer. Ouviram a voz dela, que vinha de longe, falando com Violeta para encontrar-lhe o s culos, rpido. - Coitada! - disse Louise. - Parece to aflita! - Ela lhe contou que canhota? - perguntou o Sr. Ralph, achando graa em tudo aquil o. - Sim - respondeu Louise sem preocupao. - E isto no dificulta? - Vai depender dela. Afinal de contas, ser canhota no uma deficincia fsica, no mesmo ? Um ch, para aquecer o dia nevoento, foi servido na saleta e todos esgotaram seus adjetivos, censurando o tempo que persistia. - Acho que vou fazer como Tia Clara e comear a aprender tric. Estou vendo que este tempo vai insistir por alguns dias, e preciso preench-lo de algum modo. - Aproveite que temos professora em casa - disse Clara entusiasmada. Aps o jantar, enquanto os outros foram para o salo de jogos, Louise e Clara contin uaram tricotando na saleta. - Interessante - disse ela, parando o trabalho e rompendo o silncio. - Nunca acre ditei que as pessoas, aps a morte, tenham condio de voltar; mas hoje, quando ouvi Karla contar aquele pesadelo , confesso que fiquei impressionada. - Fez silncio, olhando para a foto da lareira com olhar distante. No gostaria de sonhar com ela. No gostaria mesmo. Depois Melissa ainda disse aquelas coisas todas. No sei no, mas tambm estou sentindo o corpo dodo, a cabea um pouco tonta... Deve ser por causa da queda brusca de temperatura. Isto geralmente causa distrbio s na presso arterial ou ento provoca resfriados. - Pode ser isto - disse ela aps pensar um pouco. Estou me deixando influenciar pe las idias absurdas de Melissa e Karla. O Sr. Ralph entrou na saleta, entregando a Clara seus culos. - Voc os esqueceu no salo de jogos - disse ele. - Oh, meu Deus! Por isso estou achando esquisito - disse ela, sorrindo. - Devia amarr-los ao pescoo, minha cara - acrescentou ele em tom de brincadeira. - No sei por que os perco tanto! Fazem-me tanta falta! - exclamou, voltando novam ente s agulhas. Captulo Sete

Todos deixaram o salo de jogos comentando a sorte. Karla, que continuava indifere nte, permaneceu mesa, olhando as cartas, alheia s vozes e risos que se afastavam. Quisera sentir sono, pensou. Lanou um olhar displicente para as cartas espalhadas, sem ter vontade de guard-las . Afinal, nunca fora uma pessoa organizada, concluiu, num ltimo olhar mesa. O rudo longnquo de um trovo fez Karla lembrar-se do mau tempo e aproximar-se de uma das janelas. Ergueu a fina cortina e viu o imenso jardim, com algumas luzes filtrando-se em meio s ra magens, e que, ao balouar do vento, pareciam vultos em constante movimentao. - Noite macabra! - falou para si mesma. - o cenrio ideal para um filme de terror. As rvores mais prximas da casa brilhavam com o reflexo das luzes sobre as ramagens molhadas. - At quando, meu Deus? At quando? - Suspirou profundamente. - Parece que este temp o no vai mudar nunca. - Mais calma? - perguntou Ivan, tocando-lhe os ombros com delicadeza. Ela se assustou, voltando-se bruscamente, e sufocando um grito. - Perdo! - disse ele se desculpando. - Assustei voc. Estava to distrada!... - No foi nada - respondeu sorrindo. - Sou uma tola. - Est se sentindo melhor agora ? Karla deixou a janela, dando-lhe as costas. Depois voltou-se, comprimindo os lbios. - No. No estou me sentindo bem. este tempo, esta casa, as recordaes... No sei, Ivan, mas tudo me deprime tanto! No devia ter vindo. Mas quando soube que Domingos viria, confesso que no resisti. - Evitou olh-lo nos olhos. - Mas no foi s por isso. Fiquei sabendo que Rodolfo pediu a ele q ue viesse, para fazer companhia a Marilu, e eu no podia ficar de braos cruzados. - Karla suspirou fundo e encarou o rapaz. - Oh, Ivan! - disse, abraando-o. - No posso permitir que ela tambm o roube de mim. Primei ro foi a me, depois a filha!... Isto nunca, nunca! - protestou em pranto. - Ora, o que isso? Esta se comportando como uma colegial. J no nenhuma criana! Lemb re-se bem que tanto voc como Domingos tm idade para ser os pais de Marilu. - Eu sei, eu sei - disse, ainda chorando. - Mas Rodolfo est pretendendo aproxim-los e isto me deixa muito infeliz. Assim no terei nenhuma chance. - O que Rodolfo disse a Domingos, disse a todos ns. Ele quer que faamos Marilu sen tir-se amada. Voc sabe; o amor prende, e esta a nica chance que tem para ter a filha de volta ao seu lado . - Acha mesmo isso? No est querendo... - No, no. - interrompeu, enxugando-lhe as lgrimas. - No existe outra inteno, esteja ce rta. - concluiu sorrindo. Karla tentou corresponder ao sorriso, mas entristeceu-se logo. - Mas ela to parecida com a me... Eu tenho medo, Ivan. Muito medo. Ele sorriu novamente, com ternura. - Esquea esses pensamentos tristes e vamos tomar um ch. Sairam do salo de jogos, encontrando Violeta no corredor. - Onde est o pessoal? perguntou Ivan. A criada respondeu, sem fit-los. - J subiram, senhor. - Por favor, sirva-nos um ch na saleta - disse ele. O ar aquecido envolveu-os, provocando uma sensao agradvel de aconchego. Karla aproximou-se da lareira ainda crepitante e fitou demoradamen te a foto de Suzana.

- Uma mulher fascinante! - exclamou. - Uma mulher como outra qualquer - observou Ivan, sentando-se numa poltrona. Karla voltou-se para ele. - Voc tambm sabe que ela era diferente. - Outra vez olhou a fotografia. - Uma mulh er mpar, como Domingos sempre dizia. Uma mulher sem igual. - No se deve apegar tanto a uma lembrana, Karla. Suzana est morta; portanto, voc no d eve se torturar assim. Deve esquec-la. - Voc sabe que isto impossvel. s vezes, chego a duvidar de sua morte, to presente el a se faz em minha lembrana. No consigo esquec-la - disse, apertando a cabea. - No consigo libertar-me d ela. Violeta entrou trazendo o ch e ficou aguardando as xcaras. Aps terminarem, Ivan sug eriu amiga: - Vamos subir? J bastante tarde, e quem sabe, amanh teremos um dia cheio de sol? - uma sublime esperana, Ivan. Sem dvida alguma. Atravessaram abraados o salo de fest as, subindo as escadas. No hall superior pararam para se despedir, pois os homens ocupavam a ala norte, enquanto que as mulheres ficavam na ala sul, com exceo de Clara. - Se estiver sem sono, conte carneirinhos - disse o amigo, em tom de brincadeira . - Est bem - respondeu-lhe com um leve sorriso, caminhando para o corredor. Parou por alguns momentos em dvida, enquanto ele a fitava. Os olhos dela se voltaram para a cortina que balanav a suavemente sobre o vitral. Chegou a comprimi-los para ver melhor. - O que foi? Ela ergueu os ombros indecisa. - No foi nada. Apenas um mal-estar. Boa noite, Ivan. - E afastou-se, entrando pel o corredor escassamente iluminado. Um chuvisqueiro manso comeou a bater na sua janela, ressoando um convite ao sono, e Karla se deixou levar por esta doce cantiga da n atureza. Pouco depois, estava flutuando pelo pas dos sonhos, mas que foi bruscamente interrompido. Karla acordo u assustada. Pareceu-lhe ouvir passos no corredor. Passos lentos, abafados. Sentiu novamente o medo aoitar -lhe o corpo. Uma sensao estranha a invadiu. Uma sensao que lhe pareceu j ter sentido antes. Os passos continuavam e Karla ficou imvel, olhando para a porta, como se esperass e que algum fosse entrar ali a qualquer momento. Sua respirao era curta, ofegante; seu corao palpitava descom passado. Os passos sumiram. Karla ficou por algum tempo com a cabea erguida, espera de que recomeassem. Silncio profundo. Apenas o rudo abafado do chuvisqueiro persistia. Levantou-se devagar, indo at porta e ficou com o ouvido colado nela por alguns instantes. Decidida, abriu-a cuidadosa mente, espreitando o corredor. Estava deserto, envolto na penumbra da noite. Cptulo Oito -Para tudo existem as compensaes - falou Domingos. - Imaginem este frio sem uma la reira. - verdade - concordou Ivan. - Para tudo existem atenuantes. A natureza mesmo pro digiosa. - S que desta vez ela no est colaborando conosco - falou Melissa. - Vim para c quere

ndo rever lugares gravados em minha retina e que me causam profunda saudade. Lugares onde sempre p assava horas, e que me transmitiam paz. Mas para este reencontro indispensvel que faa sol... - Confesso que tambm queria rever muita coisa. Depois de tanto tempo, impossvel ne gar a saudade - disse Ivan. - Recordar... Pensei que recordar fosse voltar a viver... murmurou Marilu. - E no , minha filha? - perguntou-lhe Rodolfo, tirando o cachimbo da boca, encaran do-a preocupado. - Hoje estou certa que no - respondeu num sussurro. - Cada momento, um momento di ferente. Podemos montar todo um cenrio, sem esquecer sequer um nico detalhe, mas ele no ser igual nun ca. Ns no seremos os mesmos. Rodolfo meneou a cabea em tom de dvida. - Voc tem razo - falou Louise erguendo-se do trabalho. - Mas, mesmo assim, no podem os negar a nostalgia de uma lembrana... bom recordar. Claro que, com isto, no estou querendo dizer que devemos viver de lembranas. - Cada momento um novo momento - sintetizou Ivan, acendendo o cigarro. - isto me smo. - H pouco vocs falavam sobre a lei da compensao da natureza e fiquei pensando... - m anifestou Clara, tirando os culos e repousando o trabalho no colo. - Nem tudo na vida compensado. A juventude, por exemplo. Nunca se pode dizer compensada pela velhice. - Ouvi algum dizer que cada idade tem seu encanto... - Observou Rodolfo. - Mas cr eio que s vivendo para saber. Aps um silncio repousante, Clara levantou-se, deixando o tric sobre a poltro na, comentando: - Acho melhor ir ter com Violeta. Talvez esteja precisando de ajuda no Dreparo d o almoo. Com aquele ferimento na mo... Melissa aproximou-se de uma das portas envidraadas, com os braos cruzados. - Chuva, vento, frio. Que cenrio desolador! Sinto-me sufocada aqui dentro. - Calma, querida - falou-lhe Rodolfo. - Este tempo passar. - Mais um dia assim e no sei se vou suportar... - Podemos jogar uma partida de gamo aps o almoo - props Ivan. - Voc sempre gostou. - o jeito - respondeu ela descontente, e deixou-se cair novamente no sof. Outra vez o silncio invadiu a saleta. Melissa, inquieta, puxava o lao que fechava a gola da blusa. - Parece que o almoo no ser problema para Violeta - disse Clara, entrando na saleta . - uma criada bastante eficiente. - E dedicada - completou Melissa. - Coisa rara hoje em dia. Geralmente, elas no q uerem nada e reclamam de tudo. Clara sentou-se, recomeando o trabalho, mas logo interrompeu-o novamente. - Onde ser que deixei os culos? - perguntou, olhando em volta e saindo procura del es. - Como tia Clara pode ser to distrada? - comentou Marilu sorrindo. Logo, ela reapareceu, colocando os culos. - Estou preocupada com Karla, Rodolfo. No desceu at agora. No seria bom saber o que est havendo? perguntou Clara. - No necessrio - ouviram a moa dizer porta. Estava abatida, distante, aptica. - At que enfim voc apareceu, minha querida! - exclamou o Sr. Ralph de modo afetuos o. Ela caminhou lentamente at o centro da saleta, sem nada dizer, com os olhos parad

os e exibiu um caderno de capa vermelha. Todos olhavam para ela, interrogativamente. - Estava sobre meu toucador hoje pela manh... - disse respirando fundo, - ... e a berto nesta pgina - completou, abrindo o caderno e lendo: "Brincando no Infinito" Tudo era lindo. Tudo era azul, muito azul... Azul leve, azul suave, azul bonito. Havia sol, muito sol. Brilhante, quase ardente, dormente. Havia brisa; brisa de vento manso, Que sopra va calmo, Embaraando meus cabelos, Agitando minha roupa. Havia paz. Paz infinita. Eu no tinha mais que descobrir Qual o "caminho". Eu j havia partido para o meu mundo, E corria leve, Brincando pelo infinito." De novo respirou profundamente, sem tirar os olhos do livro. - Era o caderno de poesia da mame - disse Marilu. E este era o seu poema preferid o. - Isto mesmo - concordou Karla. - Todos ns, com exceo de Louise, claro, sabemos dis to. - Estava em seu quarto? - perguntou Marilu, aproximando-se dela. - Sobre o meu toucador, para ser mais precisa, aberto nesta pgina. Marilu apanhou o caderno, olhando em seguida para Karla. - Isto ... sangue? - per guntou assombrada. - Por isso estou to assustada. Por que esta mancha de sangue, justamente nesta pgi na? - indagou Karla com firmeza. - O que estranho para mim - disse Clara - este caderno ter ido parar em seu quarto. - Eu no sei o que est acontecendo - disse Karla, mas esta noite, j era bem tarde, q uando acordei ouvindo passos pelo corredor. Passos abafados, furtivos. Levantei e olhei, mas no vi ningum. Todos ficaram em silncio olhando para ela. - Vocs no esto pensando que eu sonhei, no mesmo? Por favor, acreditem em mim - falou implorando. Rodolfo aproximou-se dela, apanhando o caderno e o folheou, colocando-o em seguida sobre a mesa. Deixou escapar um suspiro profundo. Suzana! Era possvel ouvir sua voz suave e ritmada, lendo-lhe suas obras, enquanto caminhavam pelo jardim o u pelo bosque, ou mesmo ali, naquela saleta, em dias nevoentos como aquele. - Eu acredito em voc, Karla - disse finalmente. - S que no existe nada de absurdo e m tudo isto. Esta mancha de sangue pode ter sido a prpria Suzana que tenha se machucado, algm ferimento lev e, alguma coisa neste gnero e manchado o livro; os passos, pode ter sido algum de ns. Tudo tem uma expli cao lgica. s no ficarmos imaginando coisas. - Concordo - falou Marilu. - Ontem fiquei at bem tarde no quarto de Louise, conve rsando. - E como voc explica este caderno ir parar no quarto de Karla, aberto nesta pgina? - indagou Melissa desafiante. - No sei. Mas se procurarmos a verdade dentro da lgica, tenho certeza de que encontraremos uma explicao plausvel. - Dentro do seu raciocnio, a nica explicao lgica que vejo, que algum de ns fez isto. Talvez para assustar Karla. Digamos, uma

brincadeira. De mau gosto, concordo, mas uma brincadeira; embora dificil de acreditar que algum de ns seja capaz disso - concluiu Melissa. - Eu tambm no consigo admitir tal idia - concordou Domingos. - Volto a insistir. Suzana ainda no saiu desta casa. Ela precisa de ns para encont rar o "seu caminho". Apanhou o caderno sobre a mesa, abrindo-o. - Se prestarem bastante ateno no que di z o poema, talvez consigam entender o que estou querendo dizer. Ela precisa encontrar o "seu camin ho". Precisa ficar "leve para correr de encontro ao seu infinito". Precisamos ajud-la. tudo que sei. Captulo Nove Posso entrar? - perguntou Marilu, entreabrindo a porta do quarto. - Claro, querida - respondeu Melissa, recostando-se no leito, pondo-se a ajeitar no alto da cabea o penteado, que lhe ficava muito bem. - No h muita opo num dia assim - falou melanclica. Marilu recostou-se aos ps da cama. - No se torture. Dias maravilhosos viro - falou sorridente. - Este tempo chuvoso a penas para dar entrada ao inverno. A, teremos aqueles dias de sol morno e um friozinho ameno. - Calor ou frio, isto no me importa, mas o sol... Ah, como ele importante para mi m. Riram. Melissa foi quem ficou sria primeiro. - No sei por que, mas sempre em dias assim, que se sucedem, sinto-me angustiada, aflita, sem lugar. como se jamais fosse tornar a ver o sol... - Voc propaga tanto esta estrela... No resta dvida ser chamado o "rei sol". - E no mesmo rei? - Sim - respondeu Marilu pensativa. - Rei. Invencvel, incrvel, soberano e soberbo. Maravilhoso. Ficaram em silncio por alguns instantes. Melissa fitou-a. - Voc est bem? - atreveu-se a perguntar. - Sim - respondeu-lhe sria. - No me parece - falou-lhe, aproximando mais da amiga, segurando-lhe as mos. Marilu contemplou aquele gesto carinhoso, depois o rosto de Melissa. Descobriu q ue pela primeira vez via aquele semblante, que sempre lhe pareceu bonito e que, no entanto, j trazia as pr imeiras marcas do tempo. Melissa sentiu-se constrangida com aquele profundo olhar. - Se mame estivesse aqui, estaria como voc - disse Marilu entristecida. - Como assim? - perguntou Melissa, deixando vista uma ruga na testa. - No a estou entendendo. - Quando morreu, ela estava to linda, parecia to jovem... - respirou fundo. - esta a imagem que guardo dela. Jamais pensei que mame fosse envelhecer. - Voc est querendo dizer que, se Suzana estivesse viva, estaria envelhecida assim, como eu, no mesmo? perguntoulhe com um sorriso triste. Marilu pensou um pouco, antes de responder. - Sabe Melissa? Para mim, mame seria sempre jovem e bonita. Mas agora, olhando pa ra voc, deparei-me com a realidade. Sei que so da mesma idade. - Sou um ano e meio mais velha, para ser precisa - consertou Melissa, rapidament e.

- Ela estaria tambm envelhecida. Linda ainda, acredito eu, mas envelhecida. - Fit ou a amiga com ternura e ao mesmo tempo com tristeza. - Voc representa muito para mim. Como eram amigas! - - concordou. - Amigas... Marlu fitou-a demoradamente. - Voc no guarda mgoas dela, no mesmo? - No... No guardo. - Um pequeno sorriso iluminoulhe o rosto. - No sei por que, mas nunca consegui ser inimiga d Suzana. Ela era a mulher que conquistara meu noivo e mesmo assim... - r espirou profundamente. - Deve ter sido terrvel - observou Marilu. - Pareceme at que o casamento de vocs j e stava marcado... - Estava. Para o dia dezoito de julho. Faltavam trs meses, quando tudo aconteceu. - Melissa fechou os olhos como se para recordar melhor. - Naquele dia, pensei que fosse morrer. Marilu guardou silncio por instantes, enquanto umedecia os lbios. - Tenho observado que voc ainda conserva uma esperana... - atreveu-se. - Esperana!... - exclamou com um sorriso irnico. Sinto-me ridcula. No tenho mais ida de para ter esperanas... - Ora, Melissa! Mas que tolice est dizendo?! Novamente deixou um sorriso irnico aflorar-lhe os lbios. - Tolice!... - Meneou a c abea num gesto negativo. Claro que no. impossvel negar a realidade, Marilu. Ainda h pouco voc descobriu que j envelheci. Esta a verdade. No h mais sonhos, mais iluses, mais esperana. Casamento, vestido branco, mu itas flores, luz, alegria... Tudo isto ficou para trs, com minha juventude. Morreu. Acabou. O que s into por seu pai j no faz mais sentido. - Como est magoada, Melissa! - exclamou surpresa Marilu. - At ainda h pouco pensava que no guardasse ressentimentos de mame. - Firmou os olhos como se procurasse alcanar um ponto imag inrio. - Perdoe-me, Melissa! Afinal voc uma vtima. No poderia ser de outra forma. As duas se abraaram. - Voc quem deve me perdoar - falou Melissa emocionada. - Ningum teve culpa de nada , pode acreditar. Amor algo que acontece sem que possamos evitar. Nem ela, nem Rodolfo tiveram cul pa. Marilu secou as lgrimas inoportunas da amiga, num gesto de profundo carinho. - Como deve ter sofrido, minha querida! Melissa sacudiu a cabea como se quisesse afastar aquele clima triste que se havia formado. - Mas tudo j passou e no vale a pena ficatmos lembrando de coisas desagradveis. - S orriu. - Vamos mudar de assunto? O sorriso de Marilu dissipou-se logo, para seu rosto tornarse srio. - Tenho notado que papai anda se sentindo muito s, e tambm observei que ele gosta de sua companhia. Por favor, Melissa. No o abandone. No o deixe sentir solido. Ele amava muito mame, ms agora ela j se foi, e no podemos deixlo viver s de le branas. Posso estar sendo egosta pedindo-lhe isto, mas acredito que aquele amor que sentia por papai ainda no se acabou. Deve estar a, em seu peito, apenas adormecido. Encontre-o. J hora dele despertar. - Confesso que este amor no morreu e muito menos est dormindo dentro de mim. Est vi vo, muito vivo, sangrando at. - Suspirou. - No posso negar tambm que continuo esperando, sonhando.. . mas depois que

viemos para c, as coisas que aconteceram com Karla me pareceram um aviso. Estou c om medo, Marilu. - No se deixe impressionar com os pesadelos de Karla - disse sria. Tudo isto apenas uma impresso forte que est nos deixando tensos. - Ficou de p, com expresso segura. - A forma trgica com o mame morreu, a casa abandonada por ns logo em seguida aps o seu funeral, tudo isto est mexendo con osco agora. Eu sabia que, mesmo apesar de quatro anos passados, quando chegssemos aqui, teramos a sensao de que tudo acontecera ontem. Um leve toque porta fez as duas olharem na mesma direo. O rosto de Louise apareceu sorridente. - Atrapalho? - Claro que no, querida. Vamos, entre! - falou Marilu. - A casa est deserta - diss e Louise entrando e fechando a porta atrs de si. - Parece que todos esto aproveitando para descansar. - Tambm com este tempo, no resta muito a fazer - lamentou Melissa apontando a jane la. - Veja s que horror! Chuva, vento e frio. Dormir a nica opo. - Estou preocupada com voc, Louise - falou Marilu. - Veio acompanhando-me, imagin ando uns dias tranqilos no campo, e veja s. Deve estar se sentindo numa priso. - No se preocupe com isto. Afinal de contas, ningum tem culpa do tempo estar assim ; e, alm do mais, as borrascas no duram eternamente. Um novo toque porta, e a figura de Clara despontou esfogueante, com o seu trabalho de tric mo. - Desculpem se interrompo, mas preciso de voc, Louise. Perdi uma malha e no sei co mo fazer - falou inconsolvel. - Deixe-me ver - falou a moa, apanhando o trabalho com um bonito sorr iso. - Voc est mesmo levando a srio as suas aulas de tric, titia. Estou encantada! - Por qu? - perguntou desconfiada. - Por acaso pensou que no fosse capaz de aprend er? Marilu ficou com expresso grave. - Ora, que isso titia? No nada disso. Apenas fiz um elogio. A senhora tem tantos afazeres e conseguir conciliar mais um... - Pronto! - disse Louise entregando o trabalho para Clara. - Agora est tudo certo . A senhora uma tima aluna - brincou. - No sei como fui perder aquela malha. No consigo entender. - Isto perfeitamente natural - explicou Louise. Melissa suspirou, como se estive sse criando coragem. - Talvez tenha perdido a malha, porque est trabalhando sem os culos - arriscou. - falou pausado. - Pode ser isto mesmo. Mas acontece que no consigo lembrar-me onde os deixei concluiu, j deixando o quarto. Elas apenas riram. Captulo Dez A lareira continuou crepitante por mais um dia. Na saleta ntima, o tema discutido continuava sendo o tempo. Violeta entrou trazendo o ch. - Quem diria que estamos em plena lua cheia! - observou Domingos, acariciando o bigode que com certeza agradavalhe muito. - Com tanta chuva, mais fcil acreditar que estamos em pleno dilvio - brincou Ivan. - Violeta, minha querida - falou Melissa. - Voc precisa ir cidade cuidar deste fe

rimento. Continua sangrando. Veja como est manchada a atadura! A moa encolheu-se, cheia de medo. - Amanh vamos lev-la ao hospital - falou Clara categrica. - Isto no pode continuar a ssim. A criada aproximou-se de Rodolfo, apavorada. - O senhor prometeu! - falou alto, quase gritando, saindo em seguida. - Como pode ser to estpida, meu Deus? - disse indignado. - Calma, Rodolfo - falou Melissa. - Ela est assustada. Vou tentar convenc-la a se tratar. Os passos de Melissa se perderam no corredor. Rodolfo respirou profundo, sentind o-se mais aliviado. - Melissa! - disse com ternura. - Uma grande mulher, sem dvida. - No acredito que ela v convencer Violeta - observou Clara, levantando os olhos po r sobre os culos. - No com esta ttica. - A senhora no acredita na linguagem do amor? - perguntou Marilu com desapontamen to. - Voc ainda no conhece a vida, minha querida. Tem a cabecinha cheia s de coisas bon itas. Com pessoas ignorantes como Violeta, voc tem que ser dura, quase m. Tem de dar ordens, mandar. s o que sabem fazer: obedecer. Louise parou o trabalho, encarando-a. Estava diante de uma nova Clara, pois at en to julgara-a diferente. Ivan fitou Louise, notando sua expresso de decepo; e quando esta encarou-o, ele apenas levantou as sobrancelhas, numa expresso de solidariedade. Marilu abriu a boca para dizer algo, mas resolveu calarse. Fechou a revista de m odas, despedindo-se para dormir. Karla resolveu acompanh-la, acusando dor de cabea. E quando o carrilho bate u as vinte e trs horas, todos j se haviam recolhido. Karla olhou pela janela e viu s a escurido. As luzes do jardim estavam apagadas. C errou as cortinas, jogando-se na cama. Folheou um livro, mas no teve disposio para ler. A cabea estava pesada, com o se fosse apanhar um resfriado, e apoiando-a sobre os braos ficou de bruos, revendo a cena que h pouc o transcorrera na saleta. Clara, prepotente, poderosa, autoritria, menosprezando os criados. Chegou a imagi n-la com uma enorme coroa, agitando o cetro do poder nas mos. Era estranho como ela assumira o lugar de Suzana naquela casa, como se julgasse ser a sua substituta. Suzana... Novamente ela. To decidida, mas ao mesmo tempo to ponderada. Exprimia um a ordem em forma de pedido. Tudo to sutil, to nobre... Tudo muito caracterstico dela. Uma casa imensa, que conduzia com tranqilidade, certa do resultado de cada deciso tomada. Ali era seu reino. Desde as hortncias que cobriam o imenso jardim, as rvores do bosque, os quadros qu e ornvam as paredes, as cortinas que cobriam as janelas e vitrais. Tudo enfim, naquele pedao do mundo, era fruto de sua prodigios a imaginao. Quantas vezes imaginou-se no lugar de Suzana, tendo Domingos ao seu lado, a casa repleta de amigos que se maravilhavam com suas habilidades. As plpebras de Karla estavam pesadas. Precisava desligar o abajur antes de adorme cer, pensou.

Um estranho rumor chegou-lhe at aos ouvidos. Tentou prestar ateno. Pareciam passos. Passos no corredor. No estava bem certa. Fora fatalmente atingida pelo sono, mas era bem possvel que f ossem passos. Algum que caminhava abafado. Ela deveria ir ver, pois, segundo Rodolfo, era necessrio procurar a verdade dentr o da lgica. Ela precisava ir... Saiu pelo corredor vagarosamente, pisando leve, tentando descobrir algum atravs da tnue claridade. O corredor pareceulhe mais comprido e estava completamente deserto. Avanou com caut ela, chegando ao hall que dava para as escadas que desciam para o salo de festas. Silncio profundo. Olho u em volta e sentiu que nem tudo estava igual ali. Parecia que faltava algo. Karla estava com medo. Semp re aquele maldito medo lhe dominava no momento da verdade, e, sentindo-se incapaz de venc-lo, achou melhor f ugir para o quarto. Mas, quando voltou-se para a porta que dava para o comprido corredor da ala sul, ouvi u um gemido. Parou sem voltar-se, ficando imvel, com o corao descompassado, sacudindo-lhe o peito. E o que ela no queria ouvir, ouviu. O gemido se repetiu. Karla voltou-se para o hall, olhando para o salo. Seus olhos estatelaram de panic o, a boca abriu sem emitir som algum. Suzana estava cada l embaixo, ensangentada. Ela se arrastava, tentando alcana r a escada, lutando contra a morte. Suzana gemia, parecendo pedir socorro, estendendo-lhe a mo suja de sangue. Karla permaneceu no alto da escada, imvel, sem conseguir gritar ou andar, vendo Suzana arrastando-se, subindo vagarosamente os degraus. Tudo aquilo parecia uma loucura. Karla no conseguia formar um pensamento exato do que estava acontecendo, vendo Suzana, que j parecia exausta, apontar para o vitral da ala norte, balbuciando palavras que no conseguia entender. E Suzana insistia, sempre apontan do naquela direo. Karla olhou para a farta cortina que tremia de leve com um friso de vento. Seus olhos se estarreceram com o que viu. Por baixo da cortina, escapava a ponta felpuda de um par de chinelos. Agora entendia o que Suzana lhe mostrava. Ela sabia que algum estava oculto ali. Novamente, o medo dominou Karla, mas, no sabendo como, uma fora inexplicvel impeliu-a, levando-a at cortina. A respirao estava entrecortada, quase sufocando-a. Num gesto brusco, levantou-a e viu apenas um vazio imenso, uma escurido total, enquanto uma dor aguda na cabea obrigou-a a levar as mo s testa, segurando-a com fora. Karla acordou assustada, sentando-se de chofre na cama, e sentindo a cabea doer t errivelmente. Aos poucos foi se acalmando, tentando conciliar as idias. - Novamente aquele sonho, pensou. E como sempre, pareceu-lhe to real. Muito real para ser um simples sonho, concordou consigo mesma. No deveria dizer nada a ningum. Certamente, iriam admitir auto-sugesto e at poderiam estar certos, pois lembrava-se de que, antes de adormecer, teve a impre sso de ouvir passos no corredor, e com certeza adormecera preocupada com aquilo. Por alguns instantes reteve a respirao, tentando ouvir melhor. Nada, alm do vento c ortante que continuava

assobiando. Era melhor voltar a dormir, pensou, fechando os olhos. Mas, novament e, os passos misteriosos se fizeram ouvir. Sentou-se na cama, certificando-se de que eles voltaram a ecoar, e estava bem desperta, estava segura disso. Desta vez, eram reais, embora parecessem com os de h pouco, que lhe povoaram os sonhos. Mas estes faziam parte da realidade e eram abafados, cautelosos. Sentiu que se aproximavam de seu quarto, e em pnico ficou encolhida na cama, olha ndo para a porta. - Os passos se aproximaram mais e mais, at alcanarem o quarto, e de repente cessar am. Algum estava parado ali, pensou com desespero. Com o pavor estampado nos olhos, Karla ficou observando a maaneta durante longo t empo. S que ela no se moveu. Captulo Onze Meio dia j se passara e as esperanas de um dia melhor haviam se perdido no cu nevoe nto, na garoa fria e no vento incessante. Ivan e Domingos contemplavam, pelo vidro da janela, o jardim sem brilho que tent ava resistir ao frio. Um toque suave porta d biblioteca, e logo viram Violeta entrar com a bandeja. - Com licena - falou tmida. - O caf que pediram. Ivan sentou-se escrivaninha, esper ando que ela o servisse, enquanto Domingos acomodou-se a uma poltrona defronte mesa. - Decidiu ir tratar-se, Violeta? - perguntou Domingos apanhando a xcara da bandej a. Ela encolheu os ombros. - A senhorita Melissa conversou comigo e disse que me far companhia. - E coisa simples, vai ver - falou Ivan, tentando incutirlhe coragem. - A que ho ras vo sair? - Daqui a pouco. Mais alguma coisa? - perguntou, enquanto recolhia as xcaras. Eles agradeceram e ela os deixou. Por algum tempo, ficaram em silncio, contemplan do o ambiente, como se sentissem ali uma presena. - Nunca imaginei esta casa sem Suzana - falou Domingos perturbado. - Ficou vazia - observou Ivan. - A casa sem Suzana ficou completamente sem vida. Ela era a alma de todos ns. - Marilu! - exclamou Domingos. - Fisicamente muito parecida com a me, mas tenho dvidas que tenha herdado a personalidade dela. - S de ser a filha de Suzana, j um bom comeo, meu amigo. Ser parecida com a me, estej a certo. Esta atitude dela, em querer voltar, um comportamento parecido com o de Suzana. Sua p ersonalidade est se moldando da me. - Em outros tempos, no perceberamos estes dias horrveis. Suzana preenchia nossa vid a com atividades diversas, interessantes, inteligentes, que nem notvamos o que acontecia l fora. - Pensei que as lembranas no seriam to fortes, depois de tanto tempo - falou Ivan n um lamento. A maaneta girou e eles olharam para a porta. Clara entrou e percebeu, como numa metamorfose, o rosto de ambos passar a exprim ir decepo. Por um momento, acreditaram que Suzana estivesse porta. - Desculpem-me se interr ompo - disse ligeiramente constrangida, percebendo o pouco entusiasmo no rosto deles. - Vim avis-los de que estamos indo at cidade.

Estou precisando falar com Dr. Nobel, pois Karla, com estas histrias todas, est me deixando muito tensa. Melissa vai ser a dama de companhia de Violeta, o que eu acho um verdadeiro absu rdo, mas que fazer? Depois, ela pretende ir ter com uns amigos, para tentar ajudar o esprito de Suzana. Vocs e ntendem. Coisas de Melissa. - Karla tambm vai? - perguntou Domingos. - Sim, disse que vai. Precisa falar com seu mdico por causa das dores de cabea que vem sentindo ultimamente. Pobrezinha! Anda to abatida! Tambm com tantos pesadelos! Fez uma pequena pausa, en quanto guardava os culos na bolsa. - E vocs? Desejam alguma coisa da cidade? Eles se olharam desinteressados. - No. No precisamos de nada. Obrigado - respondeu Ivan. Clara saiu, e por alguns instantes ouviram a voz dela, um pouco rouca, falando r ispidamente com Violeta. Depois, o silncio, regado de uma chuvinha fina que escorria pelo vidro da janela. Domingos sentiu que aqueles dias, ali, estavam-lhe sendo nocivos. J era possvel pe rceber que seu organismo estava se acostumando a um novo hbito: o de repousar aps o almoo. Isto no era bom, p ensou. Era um sintoma de que ficara ocioso. Olhou para Ivan e sentiu que ele tambm no tinha nenhum interesse em conversar. Cer tamente estava mergulhado no oceano de suas lembranas. O ch quente, com o dia frio, foi um convite irresistvel ao sono. Com este propsito, subiu para seus aposentos, deixando na biblioteca um homem sonhador. Ivan acendeu um cigarro e foi at janela ao lado, olhando os pingos esparsos da ch uva que batiam na vidraa. Um dia triste, pensou. Mas se estivesse feliz, no sentiria tristeza. Voltou mesa, sentindo o corpo um pouco solto; e como nada tinha a fazer, abriu g avetas, remexendo seus contedos. Era incrvel, mas em alguns papis encontrou a letra inconfundvel de Suzana, num traad o delicado e numa linguagem objetiva. Lembretes sobre datas de aniversrio, endereos, enfim, anotaes d iversas que sempre acompanham uma mulher verstil. Era inegvel ainda sua presena naquela casa. Em meio aos papis, encontrou uma foto d e Suzana. Uma foto que ele batera. Que poca maravilhosa aquela em que viveram lado a lado. Ele a amava muito, e o ca samento j era quase um fato consumado, quando tudo aconteceu. Crispou os lbios. Valia a pena lembrar? No sabia ao certo, pois, recordando momentos felizes, fatalmente lembraria tambm que ela o deixara para se casar com Rodolfo, seu melhor amigo..E pensar que fora ele quem apresentara os dois! - pensou, fechando os punhos. Quando Suzana lhe dissera que tudo estava acabado, ele pensou que fosse morrer. Os dias se arrastavam em horas de amargura. O tempo foi passando e uma sensao de perda invadiu-o. Foi procurar Suzana, mas esta j estava vspera do casamento com Rodolfo, e a felicidade que viu em seus olhos brilhantes, embora tentasse ocultar-lhe perante sua dor, o fez sen tir dio. dio de Suzana. Ele que sempre a amara, percebeu ento que a odiava. Depois de quatro anos, longe daquela casa, Ivan ainda no havia conseguido definir

ao certo o que sentia por Suzana, aps a sua morte. Muitas vezes uma sensao alegre, de amor, o invadia, mas al gumas vezes tinha vontade de sumir dali, tentar apagar da mente o vulto dela. S ela era capaz de nutrir, em um homem, dois sentimentos extremos: amor e dio. Sim , ele a amava. Era impossvel negar. Era impossvel sufocar aquele grito preso na garganta por mais tem po. - Eu a amo, Suzana - disse, olhando com ternura a fotografia. - Sempre a amarei. - Num gesto rspido, virou a foto sobre a mesa. - Mas eu a odeio tambm. Voc mostrou-me a felicidade e depois jo gou-me num eterno infortnio, fazendo de mim uma criatura infeliz, amargurada. - Recostou-se na polt rona, num gesto de abandono, olhando fixo para o nada. Captulo Doze No quarto, Domingos contemplava a natureza acinzentada. Como aqueles dias o ente diavam! Sentia-se sem rumo, sem ter o que fazer para absorver-lhe o tempo. Num mpeto, decidiu que dever ia ir embora, deixar aquele lugar, aquela casa, que agora mais parecia um mausolu. Foi at ao armrio, apanhou a mala, abrindo-a sobre a cama. Sim, ele queria ir embor a. No valia a pena ficar a desfiar fibra por fibra as recordaes. Mas um outro pensamento veio-lhe mente: deveria continuar ali. Rodolfo no lhe fiz era um convite, mas um apelo. Marilu finalmente resolvera regressar de seu exlio e pretendia voltar a mo rar ali. Era preciso que todos os amigos se acercassem dela, pelo menos no princpio, para que no se sentisse muit o s e cheia de lembranas trgicas. Uma semana, pensou, correndo os dedos pelo bigode. Rodolfo falara-lhe em apenas uma semana, que j lhe parecia um sculo. Voltou a guardar a mala, certo de que deveria ficar. Seria descortesia para com Rodolfo e Marilu. Mas o que fazer? No poderia ficar ali, olhando o tempo passar pelo vidro da janela. Poucas opes restavam: dormir, jogar, ler ou ouvir aquelas mesmas conversas. Ah, como elas o irritavam! Os pesa delos de Karla, que nunca conseguia discernir entre o sonho e a realidade; as opinies de Melissa, levando t udo para o campo espiritualista, e Clara, agora, dominando um reino que no era dela. Talvez fosse isso que o aborr ecesse mais. Clara, a impostora, tentando substituir Suzana. Uma afronta aos olhos de todos que a conheceram. Suzana: meiga, decidida, ponderada e gentil. Clara: prepotente, arrogante, autor itria e fria. S agora, quando ela havia assumido o lugar de Suzana, que a estava conhecendo mel hor. Jamais pensou que fosse assim. Talvez tudo pudesse se resumir numa explicao lgica: Clara era uma mulh er infeliz. Sabia-se l por qu. Mas o que fazer? Quase todos haviam sado. Estirou-se sobre o leito e sorriu, ouvi ndo o barulho do vento e da chuvinha que trazia o inverno, em contraste com o aconchego do aposento de corti nas abaixadas. Sem dvida, era um convite excitante ao descanso.

Olhou para o teto e admirou o pequeno lustre. Gostava daquela casa, e tinha algu mas lembranas dali. Quando viera do interior, o pai de Suzana levara-o para morar l. J fazia tanto tempo! Suz ana era uma adolescente; uma adolescente linda. Ficaram amigos e sempre percorriam juntos as alamedas do jardim e os diversos caminhos do bosque. Suzana e a natureza: um quadro vivo. Recordou-se do dia em que ela lhe dissera querer sempre viver naquela casa. Foi a partir daquele instante, que ousou sonhar que tambm ficaria ali, para sempre, ao lado dela. Se tivesse consegu ido o seu amor... Mas Suzana ao mesmo tempo to amiga, to companheira, to humana, parecia-lhe to distan te, quase um sonho remoto, uma estrela inatingvel. Estrela... Fora assim que Karla a denominar a um dia, quando, num mpeto de desespero, faloulhe de seu amor sufocado. Ela rira breve, dizendo-lhe: " - Voc est tentando alcanar uma estrela no cu, e com isto no percebe sequer um vaga-lume na terra. " Sentiu raiva de Karla. Que estrela, que vaga-lume!? No havia nada disto. Apenas S uzana existia. O tempo foi passando e ela foi se transformando numa mulher fascinante; mas Ivan apareceu, e ento, da para frente, a tristeza foi crescendo cada dia mais. As lembranas j no conseguiam sucumbir dor que lhe queimava o peito, e deixou que o pensamento continuasse correndo pelo passado. J ento, no havia esperana para suportar a realidade to contrria aos seus sonhos, quand o Suzana rompeu o noivado com Ivan. Que felicidade sentira naquele dia! Felicidade que durara pouc o, pois logo surgira outra verdade que no a dele: Suzana amava Rodolfo e iria se casar com ele. Novamente a amargura, o desespero e a desiluso invadiram-no, mas bem l no fundo, u ma chamazinha de esperana queimava: Suzana poderia romper tudo novamente e perceb-lo, sentindo o qu e ele sentia. Seria este um momento supremo, que se estenderia para sempre. Mas isto no aconteceu. A data do casamento estava cada dia mais perto e ela mais e mais feliz. Resolveu deixar aquela casa. No queria assistir de perto ao seu infortnio. Suzana! Uma mulher primeira vista privilegiada, e com uma morte to estpida. Morta! Seria mesmo verdade? Era quase possvel sentir, mesmo depois de quatro anos, sua presena. Parecia ouvir seus passos pelo corredor, caminhando leve, e seu corao ia se enchendo de alegria, esperando v-la surgir pela porta. Ele ainda a amava. Era impossvel negar tal sentimento. Quando ali entrou e defrontou-se com o enorme retrato no salo, foi o mesmo que tr az-la de volta vida. Era uma loucura, mas sentia sua presena em todos os lugares daquela casa. Levantou-se, aproximando da janela, erguendo a cortina. O dia continuava embrulh ado. Foi dali mesmo, daquela janela, que um dia ouvira a voz de Suzana, inconfundvel e firme, falando com Karla no jardim. " - Domingos apaixonado por mim? - perguntou rindo. - Ora, mas que tolice! Ele a inda uma criana, Karla. Somos bons amigos, quase irmos. " Domingos crispou as mos, deixando cair a cortina, voltando-se ao leito. Uma criana, pensou. Ela o julgava uma-criana. Talvez uma criana tola. No era justo c ontinuar amando aquela mulher. Ela fizera pouco de seu amor. Era preciso destru-la, apagla de sua vida. No queria mais ouvir

falar seu nome. Era preciso mat-la para sempre. O retrato... Aquele maldito retrato havia ressuscitado todas aquelas lembranas amargas. Era preciso destru-lo, acabar com aquela casa, o jardim , o bosque, enfim, tudo que respirasse Suzana. Tudo aquilo devia ser destrudo para que ela morresse para sempre, pois todas aque las coisas estavam impregnadas pelo seu fascnio. Captulo Treze A lareira foi atiada e o fogo cresceu forte e colorido. Marilu ficou ali, agachad a junto dela, contemplando por algum tempo as chamas oscilantes e rpidas. Correu a mo pelos cabelos, jogando-os p ara trs. " - No existe em nenhuma aquarela, mesmo do maior pintor do mundo, os diferentes tons que colorem as chamas. " - falou Marilu quase para si mesma. - Uma frase de mame - concluiu num suspiro triste. Louise levantou a vista do tric, j com um vinco acentuado entre os olhos, fitando a amiga. Esta deixou de lado o fogo, levantando-se e indo sentar-se numa poltrona. - impossvel, Louise. Impossvel. Ela est ainda muito viva em minha lembrana. Consigo senti-la em todos os cantos desta casa. Marilu estava muito tensa. Apoiou o rosto contra as mos e deixou um pranto resgua rdado sair. Louise aproximou-se da amiga, comovida. - No acha maravilhoso ela continuar pulsante, como se no tivesse morrido? - Acaric iou-lhe os cabelos, num gesto de ternura e conforto. - Minha querida, se ela era to especial, ser impossvel esquec-la. Marilu ergueu o rosto molhado de lgrimas. - Eu no quero esquec-la. S no consigo aceitar sua morte. No consigo. - Calma, meu bem. Isto no assim de um momento para o outro. Apenas o tempo poder a jud-la. Marilu levantou-se, indo at a lareira, apanhando a foto de Suzana, que sorria sem pre para a saleta. - Mame... - falou chorando. - Ah, mame! Que saudades sinto de voc. - Abraou a fotogr afia em prantos. Louise tentou ocultar uma lgrima indiscreta e no impediu que Marilu deixasse explodir toda sua emoo. Sentada encolhida no tapete, ela conti nuava abraada ao retrato, ora chorando, ora acariciando o rosto feliz da me. Louise ficou ali, num canto, contemplando a cena. Marilu mais parecia-lhe um bichinho acuado, indefeso, cuja me havia sido caada. - Quando mame tirou esta foto, no sabia que teria uma morte to precoce e to horrvel falou soluando. Por algum tempo, a emoo foi muito forte, mas logo Marilu se acalmou, deixando de c horar. Louise aproximou-se dela e, segurando-lhe as mos, ergueu-a com carinho. - No vai ser fcil, querida, mas voc conseguir. Levou-a at ao pequeno sof, onde se sent aram. - J estou me sentindo melhor - suspirou. - No imagina a fora que eu estava fazendo para que isto no acontecesse na frente de papai. Seria terrvel para ele. - Fez bem em conter-se - concordou Louise. - Tenho observado que todos sentem a falta de sua me. Ficam indecisos, no sabem o que fazer. como se tivessem perdido a lder do grupo. Marilu sorriu triste.

- Isto verdade. Ela comandava todos ns, preenchia nosso tempo com atividades incrv eis. Uma perfeita anfitri. - uma pena - falou Louise. - uma pena mesmo, que pessoas como Suzana vivam to pou co. - Obrigada, minha amiga - disse Marilu. - Obrigada mesmo! No sabe como est me ajud ando. - Posso fazer to pouco por voc... Ouviram passos. Passos apressados e ntidos. As duas olharam para a porta que semp re ficava aberta. Surgindo do corredor, apareceu Violeta. - Aceitam caf ou ch? - Violeta? Voc no foi cidade cuidar de sua mo? perguntou surpresa Marilu. - Sim, mas j voltei. Como a senhorita Melissa havia me falado, tudo foi muito rpid o, e assim que deixamos o hospital tomei um txi e voltei. Podiam precisar de mim. - Sem dvida, Violeta, voc no existe - falou Louise. - E Melissa? - Disse que ia encontrar-se com uns amigos para fazer uma reunio; no sei bem... Po sso trazer o ch? Marilu acenou que sim e, to logo a criada saiu, falou com aborrecimento: - Melissa envolvida com este tipo de crena. Uma mulher to culta... Espero que papa i no se aborea por isto. Voltou-se para a amiga. - Sabia que ela apaixonada por ele? - Quem? Melissa? - Sim. Eram noivos quando ele conheceu mame. A, papai e mame se apaixonaram e... - Posso concluir o final da histria, apesar de no ser muito comum. - Gostaria que papai se interessasse por ela. Ser muito difcil viver aqui sozinho. Mas ao mesmo tempo, tenho dvidas. Acho que nunca ir esquecer mame. - Apesar de muitos afirmarem o contrrio, acredito que existam pessoas que so mesmo insubstituveis. Veja outro exemplo: meu pai. - Thomas Colman! O grande Thomas Colman!... - falou Marilu. - Nunca existir outro igual. - Nunca! - exclamou Louise sria. - E pensar que no desfrutei de sua companhia... Suspirou. - Um homem incrvel, sempre procura da verdade. - Ainda bem que ele nos deixou voc. Seria desastroso para o mundo se no tivesse no s deixado uma herdeira. - No sou como papai, Marilu. Ele nico em toda a histria. - Ela olhou distante. - Pa ssei toda minha vida tendo-o distante de mim, fascinada por v-lo empenhado em casos intrincados e ardi losos. Acredito que, para ele, a busca da verdade era mais um quebra-cabea excitante, um jogo empolgante. U m novelo de l, com os fios embaraados, em que se debruava, vido por encontrar as pontas. - Sorriu. - Perd oe-me as reminiscncias... que, num dia como este, sempre recorremos s lembranas do passado. - Principalmente um passado cheio de nostalgia... - observou Marilu. Louise aproximou os olhos, deixando vista um sulco entre eles. - S em saber que ele foi um homem perseguidor da verdade, j uma doce lembrana. A filha de Colman colocou a mo sobre a testa, num gesto de fadiga, talvez devido longa espera em que sempre viveu. Seus olhos sonhadores se fecharam, e, ao invs de ver escurido, viu c ores que se fundiam, e a figura de um homem se formou. Ela, ento, mergulhou-se feliz naquela profuso de cor es e sequer percebeu a amiga que delicadamente abandonou a saleta.

Como uma bolha de sabo, a imagem escapou-lhe. Abriu os olhos decepcionada e desco briu-se s. Caminhou at a lareira, recolocou no lugar a foto de Suzana, voltando-se a sentar. - Uma bonita mulher! - falou para si mesma, emitindo um suspiro, enquanto se cur vava para alcanar o trabalho que estava na mesa ao lado. Vrios pensamentos cruzavam-lhe a mente, impedindo-a de concentrar-se na contagem de pontos. Vencida por estes constantes lampejos de lembranas, abandonou o tric, deixando o tempo voltar. Olhava para o fogo crepitante, e teve a sensao de estar no chal onde vivera a infnci a e a adolescncia, ao lado da me, onde em dias como aquele encolhia-se no colo materno, ouvindo histrias sobre o pai, enquanto o fogo crepitava na lareira. As plpebras comearam a pesar e Louise deixou-as cair, para ver melhor o passado. A porta de vidro colorido - que dava para a varanda frente da casa - se abrindo e sua me entrando por ela, sorrindo-lhe. Viu at o fogo da lareira agitar-se, debatendo, aoitado pelo vento l d e fora que penetrara na sala, invadindo-a pela porta aberta. Louise sentiu o frio toc-la, tentando gelar seu co rpo. Abriu os olhos. Parecia que por alguns segundos estivera realmente no chal, pois ainda sentia, no corpo, o frio do vento. Olhou a cortina que pendia da porta envidraada ao lado e percebeu que tremulava suavemente, quase imperceptvel. Um bocejo escapou-lhe e novamente voltou ao chal, vendo a me andando pela casa, atiando o fogo, sorrindo sempre com doura, enfim, dando vid a ao seu pequeno mundo. Era bom recordar, embora no conhecesse bem o seu passado. Vivera num mundo pequen o, mas fora muito feliz. Havia os maus momentos, isto sem dvida alguma, mas condicionavaos ao bvio, acreditando ser uma forma racional de super-los. O mundo havia lhe ensinado muito, mas a lio mais sufocante fora a de esperar. Foi o que mais fizera em toda a vida. Passava os dias, sempre atenta porta de vidro colorido, esperando por um milagre: seu pai entrando, com os braos estendidos para um longo abrao h tanto tempo contido, dizendolhe ter d escoberto a verdade dele, que eram ela e sua me. Ah, quantas vezes em sonhos aquela porta se abrira, encheudo seu mundo de alegri as que se misturavam s suas cores! Seu pai, enfim, estava chegando para ela. Agora seria feliz de fato. Nada mais importava. Apesar dos olhos fechados, sua retina projetava-lhe na mente este momento glorio so da infncia, que nunca chegou a acontecer: a porta se abrindo vagarosamente, o vento frio sendo o primeiro a entrar, invadindo a sala, agitando as cortinas, fazendo-a encolher-se. O vento frio... Seguido a ele, seu pai entrando, indo-lhe ao encontro, aquecendo -lhe o coraozinho cheio de saudades. O frio... Louise abriu os olhos. Novamente conseguira sentir o vento cortante qu e invadia a sala de sua casa, deixando, muito prximo dela, uma doce iluso de infncia. Marilu regressou saleta e os sonhos de Louise se perderam. - Estava dormindo? perguntou-lhe a amiga. - No, no. Apenas descansando.

Violeta apareceu porta, com uma bandeja fumegante. - O Sr. Ralph ainda no voltou? - perguntou, entrando e olhando em volta. - Papai s deve chegar noitinha. Violeta pareceu indecisa. - Estranho... - disse finalmente. - Ainda h pouco, quando vinha para c, tive a imp resso que o Sr. Ralph deixava o salo e entrava no corredor da saleta... - Voc sonhou, Violeta. Papai ainda no chegou, como pode ver. - Mas eu vi. Tanto que voltei at cozinha e apanhei mais uma xcara. Louise e Marilu olharam para a bandeja e viram a terceira xcara. - Voc tem certeza que viu papai? - perguntou sria. - Bem... Eu tenho e no tenho. Vi um vulto que passou muito rpido. - Um vulto! - exclamou Marilu depositando a xcara de volta bandeja. - Voc viu Domi ngos ou Ivan, vagando pela casa. Foi isto que viu. Violeta ergueu as sobrancelhas, tombando a cabea para o lado, deichando bem claro no estar to segura quanto Marilu. Ca