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1 www.marciopeter.com.br ENSINO CONTINUADO 1998 A LETRA · 1ª AULA A noção de Real e os momentos de uma análise Revista Opção nº 20 - Artigos sobre Pai Real, de analistas da Escola da Causa Márcio Peter de Souza Leite 10 de março de 1998 Os autores estão usando a noção de Pai real como S 1 , código dessa discussão sobre fim de análise. O fim da análise seria o encontro com esse elemento último que determina a estrutura, S 1 conotado como Pai Real, nessa discussão específica. Esse elemento último, S 1 ou Pai Real, seria a função paterna. No fim da análise haveria uma imaginarização dessa função, trata-se portanto de um imaginário na estrutura. Nesse modelo de fim de análise, tomar a construção da fantasia como o elemento último não é tomar a estrutura, é tomar uma imaginarização (porque a fantasia é uma imaginarização) do Pai Real, é tomar o Pai Real através de uma colocação em ato de uma cena imaginária, que é a fantasia. O fim da análise está sendo pensado pelos cartéis do passe, tal como determinado por J.A.Miller, como consistindo no relato da sessão na qual foi construída a fantasia e portanto terminou a análise, mas essa construção não passa de uma imaginarização do Pai real. Construir uma fantasia é construir uma cena, que é sempre uma imaginarização de um fato último de estrutura: é isso que eles chamam de Pai real, é o uso que naquele momento, eles estão fazendo do termo. Sabendo da dificuldade de precisão nos diferentes usos de um mesmo termo, Lacan elegeu a matemática, o matema, como a forma ideal da transmissão, porque não há como imaginarizar um número. É o ideal da transmissão científica. Muitas vezes até um mesmo autor usa um mesmo termo de formas diferentes, só existe unanimidade no uso de um termo no matema. Lacan diz que o Pai Real é o espermatozóide, aí entra a genética e a transmissão hereditária. O pai fecundador. Metaforicamente pode-se pensar o Pai Real como função paterna, em termos de função do pai. O único matema do pai é o Nome-do-Pai, NP, que está definido em relação ao Outro, em relação ao DM, o que lhe dá uma precisão conceitual. O NP é a Lei no Outro, é o significante da Lei no Outro, não é qualquer significante. Lacan começou a falar em pai quando começou a separar o Pai Simbólico do Pai Imaginário; do Pai Real ele falou muito pouco. Num momento tardio da doutrina, ao usar o nó borromeano, Lacan eleva o pai à categoria de função paterna para explicar o efeito da fala num sujeito, isto é, a produção do sentido, a maneira pela qual uma pessoa fica presa ao sentido, o que seria a função do parlêtre. O NP, como agente de separação só aparece no Seminário XXV, e a lógica aí é totalmente diferente, a função paterna aparece então como o quarto nó, acrescentando-se aos registros do Imaginário, do Simbólico, e do Real. Isso não existia em Lacan anteriormente. O que havia era a função paterna como efeito do Simbólico, o NP estava dentro do Simbólico. Nesse último momento da teoria, a função paterna não está dentro do Simbólico, não é um elemento do Simbólico, é o agente da separação, um elemento fora do Simbólico, é o agente de separação do S 1 do ‘a’ causando a falta. São construções complementares diferentes. No momento anterior, o Simbólico continha a função paterna que é um direito do simbólico (a construção da função paterna é diferente no simbólico e no real).

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www.marciopeter.com.br ENSINO CONTINUADO • 1998 • A LETRA · 1ª AULA

A noção de Real e os momentos de uma análise Revista Opção nº 20 - Artigos sobre Pai Real, de analistas da Escola da Causa

Márcio Peter de Souza Leite

10 de março de 1998

Os autores estão usando a noção de Pai real como S1, código dessa discussão sobre fim de análise. O fim da análise seria o encontro com esse elemento último que determina a estrutura, S1 conotado como Pai Real, nessa discussão específica. Esse elemento último, S1 ou Pai Real, seria a função paterna. No fim da análise haveria uma imaginarização dessa função, trata-se portanto de um imaginário na estrutura.

Nesse modelo de fim de análise, tomar a construção da fantasia como o elemento último não é tomar a estrutura, é tomar uma imaginarização (porque a fantasia é uma imaginarização) do Pai Real, é tomar o Pai Real através de uma colocação em ato de uma cena imaginária, que é a fantasia. O fim da análise está sendo pensado pelos cartéis do passe, tal como determinado por J.A.Miller, como consistindo no relato da sessão na qual foi construída a fantasia e portanto terminou a análise, mas essa construção não passa de uma imaginarização do Pai real. Construir uma fantasia é construir uma cena, que é sempre uma imaginarização de um fato último de estrutura: é isso que eles chamam de Pai real, é o uso que naquele momento, eles estão fazendo do termo.

Sabendo da dificuldade de precisão nos diferentes usos de um mesmo termo, Lacan elegeu a matemática, o matema, como a forma ideal da transmissão, porque não há como imaginarizar um número. É o ideal da transmissão científica. Muitas vezes até um mesmo autor usa um mesmo termo de formas diferentes, só existe unanimidade no uso de um termo no matema.

Lacan diz que o Pai Real é o espermatozóide, aí entra a genética e a transmissão hereditária. O pai fecundador. Metaforicamente pode-se pensar o Pai Real como função paterna, em termos de função do pai. O único matema do pai é o Nome-do-Pai, NP, que está definido em relação ao Outro, em relação ao DM, o que lhe dá uma precisão conceitual. O NP é a Lei no Outro, é o significante da Lei no Outro, não é qualquer significante.

Lacan começou a falar em pai quando começou a separar o Pai Simbólico do Pai Imaginário; do Pai Real ele falou muito pouco. Num momento tardio da doutrina, ao usar o nó borromeano, Lacan eleva o pai à categoria de função paterna para explicar o efeito da fala num sujeito, isto é, a produção do sentido, a maneira pela qual uma pessoa fica presa ao sentido, o que seria a função do parlêtre. O NP, como agente de separação só aparece no Seminário XXV, e a lógica aí é totalmente diferente, a função paterna aparece então como o quarto nó, acrescentando-se aos registros do Imaginário, do Simbólico, e do Real.

Isso não existia em Lacan anteriormente. O que havia era a função paterna como efeito do Simbólico, o NP estava dentro do Simbólico. Nesse último momento da teoria, a função paterna não está dentro do Simbólico, não é um elemento do Simbólico, é o agente da separação, um elemento fora do Simbólico, é o agente de separação do S1 do ‘a’ causando a falta. São construções complementares diferentes. No momento anterior, o Simbólico continha a função paterna que é um direito do simbólico (a construção da função paterna é diferente no simbólico e no real).

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Em Lacan, não existe uma teoria sobre a origem da linguagem. Parte-se de um dado da experiência: existe a linguagem, existe o simbólico, não se pergunta a origem, Lacan parte da existência do simbólico. Dentro do Simbólico Lacan isola um elemento que funciona de forma diferente dos outros, é um significante particular que ele chama NP, é o significante da Lei no Outro. Se o NP é um significante, ele decorre da existência do Simbólico, ele não pode fundá-lo.

Quando Lacan passa para o Real ele está tentando dar conta de que maneira o Real determina o Simbólico, isto é, da idéia que há algo anterior ao Simbólico que o determina. Esse é o último momento da teoria de Lacan. O Real aqui é outro, diferente do seu conceito, tanto do período do Imaginário, quanto do período do Simbólico.

O real no momento do Imaginário era o real da realidade, depois no momento do Simbólico o real era o da psicose, do fora do Simbólico, mas esse fora do Simbólico, não aparece como determinando o Simbólico, o Real é apenas o não simbolizável. No terceiro momento, o período do Real, Lacan começa a falar na determinação do Simbólico pelo Real, ele tenta positivar esse Real. Aí ele entra na questão do traço unário, da Letra, começa a falar do fora do Simbólico e tenta determiná-lo para que se possa entender as leis que condicionam o Simbólico. Esse é o esforço do último Lacan: já que é o Real que determina o Simbólico vai falar do Real, mas como isso não é possível, porque falar do Real seria simbolizá-lo Lacan começa a usar o recurso da topologia pois aí ele não estaria simbolizando o Real.

Após um período que vai da invenção do objeto ‘a’ até os anos 70, em que Lacan tenta abordar o Real pela lógica (ex. fórmulas quânticas da sexuação), ele passa para a topologia e começa a articular os registros entre si: não existe um sem o outro, reformula também a noção de Imaginário e funda o Simbólico a partir do Real. Proposta que é totalmente diferente das anteriores.

Nesse momento a função paterna não é Imaginária, nem Simbólica, nem Real, é um quarto nó, um quarto registro. Não se trata aqui do NP mas da função paterna enquanto agente de separação, produzindo a falta porque sem a falta, não há o Simbólico, sem o Simbólico, não há o significante, não há o N.P.

Com isso, Lacan está dando conta da noção de Real, o que possibilita a noção de Letra e a idéia da materialidade do significante. Essa articulação de Letra e traço unário não fica clara nesse momento do ensino de Lacan. A idéia do que articularia isso seria a noção de sinthome, que conotaria o Real em relação ao Simbólico.

O Imaginário também nesse momento passa para uma definição diferente. A existência dessa relação do Real, Simbólico e Imaginário dá existência ao parlêtre, que nada é senão a ilusão de que as coisas querem dizer algo, isto é de que existe o sentido. O sentido só pode ser construído a partir da relação do Real, Simbólico e Imaginário, que também é a função paterna, por isso o último nome dado por Lacan à função paterna é père-vérsion, a versão do pai, que é o sentido, o que dá a um sujeito a ilusão de que está dizendo uma coisa e não outra.

Por isso também a noção principal desse último Lacan é parlêtre, e não sujeito que pertence ao Simbólico, que está no eixo do ‘A’, do N.P, do significante.

O parlêtre não está no eixo do Simbólico, pertence ao Real, ao inconsciente como escrita, por isso falamos de Pai Real, que é além do simbólico. O fim da análise então não tem mais a ver com o Simbólico, com o significante, mas com o Real e com a Letra. Se no fim se constata uma fantasia, isso seria uma imaginarização do Pai Real.

Mas como verificar isso no Passe? Como verificar se essa construção da fantasia, no final da análise, é uma imaginarização do Pai Real e tem a ver com a Letra? É por isso que o modelo atual do passe que foi proposto por J.A.Miller, está sendo questionado, porque essa construção repetitiva de fantasias que vem sendo testemunhada pelo cartel do passe deixa em suspenso uma questão: e o Real? E a Letra? E o Sinthome? Que relação tem essa construção de fantasia com a materialidade do inconsciente desse sujeito?

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Existe em Lacan uma proposta de fim de análise, mas será a experiência do passe e os ensinamentos que daí decorrerem que tornarão possível a construção de uma teoria sobre fim de análise. Eu pessoalmente acho muito difícil essa verificação do final da análise, prefiro ficar no fato clínico constatável diariamente que a prática analítica opera. Como opera? O fato de eu não compreender o paciente (isso remete ao Real), de apenas tomar certos ditos dele que a mim se impõem como privilegiados no discurso (isso é tomar o significante em sua materialidade) e o fato de uma intervenção nesses elementos produzir efeitos de modificação subjetiva no paciente.

O analista que trabalha com os significantes, visando essa modificação subjetiva do paciente, não tem um objetivo terapêutico, pois a modificação subjetiva do paciente não é a que o analista julgaria desejável, não é o resultado muitas vezes do que o analista julgaria ideal. A análise tem resultados, porque se não tiver o paciente não volta, mas esses resultados são muitas vezes surpreendentes, o analista não sabe e não pode prever. O importante é o efeito clínico que faz com que o paciente volte, se ele volta, é porque há a transferência, se há a transferência, há algo que opera. Opera porque a intervenção do analista produz efeitos de supor alguma coisa no ‘A’.

O que cura é a transferência, é o amor de transferência. A psicanálise é uma cura por amor. O paciente volta porque há a transferência e a cura é operativa, porque as intervenções do analista mobilizam alguma coisa que é da ordem do Real e não da ordem do Simbólico. Essa modificação na ordem do Real é que produz o efeito de supor que o ‘A’ tem o que lhe falta.

Podemos perceber que uma análise tem:

O período do Imaginário, onde há essa suposição de saber no outro, colocado no lugar do Ideal; é a neurose de transferência, isso não dura muito, não é análise, é sugestão.

O período do Simbólico, a análise visa uma ação não mais no sentido da compreensão, mas de intervenção no inconsciente, é a análise freudiana e kleiniana. O analista introduz um discurso que não se refere ao conteúdo manifesto do discurso do paciente e não tem nada a ver com o horizonte imediato do paciente, o que leva a modificação subjetiva. Esse segundo momento é o da decifração, ao entrar nesses significantes privilegiados a análise já produz efeitos no inconsciente, mas ainda é um tempo passível de produzir sentido.

No terceiro momento, o período do Real, o analista está na posição de objeto ‘a’, a intervenção não visa a articulação simbólico, ela apenas apontaria o Real da Letra. Isso significa que o analista aprende da própria experiência, que certas intervenções em certos elementos do discurso do paciente, produzem efeitos que vão além do sentido. São significantes privilegiados que o analista marca, são cortes da sessão, que tem como resultado que o paciente volte numa posição subjetiva diferente e não consegue relacionar essa mudança com nada. Essa é a análise lacaniana. O primeiro momento é do Imaginário - a completude no ‘A’, o segundo momento, é do Simbólico - a relação entre significantes.

No terceiro momento, o período do Real, atua-se na causa do simbólico que é a materialidade do significante. Esse ponto impõe-se clinicamente e o que ocupa atualmente a comunidade analítica é a formalização teórica desse terceiro momento. No momento do estruturalismo havia a predominância do Simbólico sobre o Imaginário, imaginário como sinônimo de sentido, seria o sentido condicionado por um efeito da estrutura. Nesse terceiro momento que estamos estudando, trata-se do Real, determinando o Simbólico, é uma passagem mais difícil. O que significa o Real determinando a estrutura? Parece incoerente porque a idéia do Real anula a idéia de estrutura que supõe relação entre elementos e o Real não é relação, ele é em si mesmo.

No momento anterior podia-se perceber uma coerência interna e nesse último momento não. Há uma mudança na conceituação do ‘A’. Existe algo que condiciona o sujeito, que em princípio é o ‘A’, que não tem nada que o condicione, então o que muda é a noção de ‘A’. Esse ‘A’ enquanto linguagem era um sistema de relações, agora não é mais, muda também a noção de linguagem. O ‘A’ continua condicionando o sujeito mas não é mais aquele ‘A’ pensado como sistema de relações de linguagem, é o ‘A’ pensado como Letra, como uma causa material, anterior à relação. Quando Lacan dizia no momento do Simbólico que não existe o ‘A’ do ‘A’ estava referindo-se à

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metalinguagem; “não existe a metalinguagem” queria dizer que não há nada fora da linguagem, linguagem como sistema de relações.

Nessa passagem para o Real, Lacan está pensando em algo anterior à relação, algo anterior condicionando a relação, que é a Letra. Muda a noção de ‘A’ e muda a noção de linguagem: é agora alíngua. O átomo significante de que fala Juan B. Ritvo no seu texto é a Letra. A prática clínica baseada nesse último momento teórico é de difícil transmissão, nossa sorte é que Lacan deixou essa prática bem formalizada, ao contrário ela teria desaparecido. A própria enunciação “interpretação fora do sentido”, é uma nomeação que esclarece as intervenções mais silenciosas do analista.