26
Curso de Direito Processual Penal 1 Uma Visão Garantista acerca do DIREITO PENAL DO INIMIGO. Nossa capacidade de verdadeiramente amar, tem que ser maior que nossa vulnerabilidade,tem que ser maior que nossos egoísmos e temores. Marcelo Henrique dos Santos RESUMO: Trata-se o presente artigo de abordagem teórica relacionada à tratativa do direito penal, enquanto instrumento decorrente da nova sistematização traduzida pela Constituição Federal, com o fito de conceder efetividade à manifestação das garantias individuais e coletivas, não como mecanismo de repressão social ou de aviltamento de direitos, mas com a essência que realmente deve expressar, ou seja, a de aplicação da lei penal naquelas circunstâncias em que ela deve ser utilizada e não como substitutivo de políticas públicas às avessas. Objetiva-se ainda indicar algumas propostas de correta aplicação social do direito penal dentro da concepção garantista e de respeito à preservação da dignidade humana. 1. Considerações iniciais: Nos dias atuais, observa-se uma crescente e equivocada tendência de se utilizar o direito penal como a panacéia hábil a resolver todas as mazelas, sem uma consideração mais aprofundada até mesmo da efetiva indicação, tanto das causas reais dos problemas, quanto da técnica que se relaciona à questão da correta tratativa dos ilícitos, diferenciando-os adequadamente, vale dizer, dentro da exegética que deve levar em conta vários princípios, dentre os quais o da INTERVENÇÃO MÍNIMA. Segundo pontifica Luiz Luisi, em sua obra “Os princípios Constitucionais”, este último deve ser denominado de princípio da necessidade, que surgiu como orientador e limitador do poder criativo do crime, “preconizando que só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário para a proteção de um bem jurídico”. Sobre tal assertiva tornaremos a dar mais ênfase, em função de sua ligação com o tema proposto. Quando se agita a questão da atividade repressora estatal sob o ponto de vista de fatos penalmente relevantes, é preciso que se compatibilize aspectos de extrema relevância, todos aliados ao nascedouro, fundamentos, aplicabilidade, princípios e especialmente, quanto à disputa verificada entre o Prof. Marcelo Henrique dos Santos

1. Considerações iniciais - Página de Entrada · sido tratado, ou seja, afirmam-se ... identificada a validade da importância do bem num grau de imprescindibilidade superior,

Embed Size (px)

Citation preview

Curso de Direito Processual Penal 1

Uma Visão Garantista acerca do DIREITO PENAL DO INIMIGO.

Nossa capacidade de verdadeiramente amar, tem

que ser maior que nossa vulnerabilidade,tem que

ser maior que nossos egoísmos e temores.

Marcelo Henrique dos Santos

RESUMO: Trata-se o presente artigo de abordagem teórica relacionada à tratativa do direito penal, enquanto instrumento decorrente da nova sistematização traduzida pela Constituição Federal, com o fito de conceder efetividade à manifestação das garantias individuais e coletivas, não como mecanismo de repressão social ou de aviltamento de direitos, mas com a essência que realmente deve expressar, ou seja, a de aplicação da lei penal naquelas circunstâncias em que ela deve ser utilizada e não como substitutivo de políticas públicas às avessas. Objetiva-se ainda indicar algumas propostas de correta aplicação social do direito penal dentro da concepção garantista e de respeito à preservação da dignidade humana.

1. Considerações iniciais:

Nos dias atuais, observa-se uma crescente e equivocada tendência

de se utilizar o direito penal como a panacéia hábil a resolver todas as mazelas, sem

uma consideração mais aprofundada até mesmo da efetiva indicação, tanto das

causas reais dos problemas, quanto da técnica que se relaciona à questão da

correta tratativa dos ilícitos, diferenciando-os adequadamente, vale dizer, dentro da

exegética que deve levar em conta vários princípios, dentre os quais o da

INTERVENÇÃO MÍNIMA. Segundo pontifica Luiz Luisi, em sua obra “Os princípios

Constitucionais”, este último deve ser denominado de princípio da necessidade, que surgiu como orientador e limitador do poder criativo do crime, “preconizando que

só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário

para a proteção de um bem jurídico”. Sobre tal assertiva tornaremos a dar mais

ênfase, em função de sua ligação com o tema proposto.

Quando se agita a questão da atividade repressora estatal sob o

ponto de vista de fatos penalmente relevantes, é preciso que se compatibilize

aspectos de extrema relevância, todos aliados ao nascedouro, fundamentos,

aplicabilidade, princípios e especialmente, quanto à disputa verificada entre o

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 2

chamado Estado Social Mínimo e o Estado Penal Máximo, tudo para que se possa

dar a correta visibilidade sobre a importância da intervenção mínima no regime penal

pátrio.

À evidência, não se pretende esgotar o assunto, que dadas às

ramificações e antecedentes lógicos que apresenta, certamente mereceria estudo e

análise não somente mais aprofundada, como também de algum dos eminentes

cultores da moderna visão da aplicação do direito penal, dentro dos limites a que o

mesmo deve permanecer vinculado e não apenas deste subscritor, que quando

muito pode ser definido como alguém que guarda em si profunda e sincera

irresignação com os lamentáveis rumos que têm sido adotados não somente pelo

Estado, mas também por alguns operadores do direito que se deixam levar pelo

mórbido e insidioso canto da repressão penal e do recrudescimento das liberdades

individuais e até mesmo coletivas.

Como afirmado, não se tem a pretensão de exaurimento de temário

de tamanha complexidade, mas não nos afastaremos do firme desiderato de

provocação para uma discussão crítica que possa concorrer para a adoção de um

posicionamento apartado do modelo que ora se observa e que, seguramente não

tem contribuído para o aprimoramento de nossas relações. Não se pode aceitar a

falácia apregoada pelos quatro ventos, no sentido de que a criminalidade precisa ser

cada vez mais combatida e enfrentada como um câncer social que necessita ser

extirpado, como se tal procedimento cirúrgico fosse o suficiente para dar cabo a tal

problema, cuja origem deve ser valorizada, detectada e trabalhada, sob pena de

tornar-se recorrente e insuperável como todas as mazelas sociais, que politicamente

são alimentadas com o estrito fim eleitoreiro e fisiologista, por aqueles que vêem nos

desvios criminais, ímpares oportunidades para eternizarem-se nos cargos eletivos à

custa do sofrimento social de centenas de milhares de combalidos e desafortunados,

encontráveis em todos os cantos deste país.

Às vezes, a obviedade de alguns posicionamentos parece que não

possui o condão de contaminar setores mais nefastamente radicais que persistem

em emprestar ao Estado, feição para a qual ele não foi e não poderia ter sido

moldado. Conforme anunciou Churchil em meio aos conflitos da segunda grande

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 3

guerra, ”enquanto uma mentira dá uma completa volta ao mundo, a verdade ainda

está calçando as botas”. Esta tem sido a tônica com a qual o problema penal tem

sido tratado, ou seja, afirmam-se ilações ou meias verdades em torno de sua

eficácia, estadeando-se que somente o rigor será hábil para solucionar as mazelas e

diga-se bem em número razoável criadas pelo próprio estado em função de sua

ausência social ou de sua incapacidade de harmonizar adequadamente as relações

que lhe são pertinentes, ou o que é pior, conforme bem pontifica o Mestre Bizzotto,

com sua peculiar lente sócio-jurídica, bem explicitando o agir estatal, apontando

características que invariavelmente são identificadas em nosso sistema:

”A seletividade e o cinismo nas suas escolhas, pois capta os

vulneráveis do sistema social (criminalizados, vitimizados e os

policizados), deixando as elites sociais quase imunes às

conseqüências desastrosas que provoca. A atuação do sistema

penal passa a ser "coisa de pobre", sendo estes induzidos a um

antagonismo capaz de gerar a desestabilização ou a

autodestruição”. (in Aplicabilidade das normas constitucionais,

Bizzotto Alexandre,2004).

Uma das razões que envolve a manifestação acima enfocada, cinge-

se ao fato de que a justificativa da privação da liberdade enquanto mecanismo de

controle penal, já há muito ultrapassou os limites da razoabilidade social,

demonstrando de maneira segura o desacerto de sua adoção.

Os grandes dilemas residem em questões agitadas com plural

propriedade por Claus Roxim, tais como a questão relacionada à justificação da

privação da liberdade, elaborando-se uma controvérsia, em que se tem como

fundamental o despertamento para as razões justificadoras da pena e do próprio

sistema punitivo e dentro de tal questionamento inserem-se outros especificamente

adstritos ao merecimento da sanção, à dignidade do bem jurídico tutelado e à

ofensividade da conduta.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 4

Pois bem façamos algumas digressões a respeito dos pontos ora

agitados.

É fato que se não pode conceber a idéia da exclusão absoluta do

sistema penal como meio de regulação, mas é mais certo ainda, que não se pode

admitir sua utilização indistinta e desprovida de critérios sociais que levem em conta

o sopesamento equilibrado de sua aplicabilidade e antes mesmo, de sua delimitação

formal e prática.

Neste diapasão, abordemos o fato jurídico relacionado ao princípio

da necessidade, até porque, o mesmo se apresenta como de extrema pertinência

comparadamente ao da intervenção mínima. Tem-se por facilmente perceptível, que

somente admite-se a existência da pena com todas as suas implicações, em se

tendo a consideração inalienável de que a mesma não pode ser substituída por um

mal menor, sendo certo que qualquer tipo de penalização já guarda em si uma

pecha extremamente infamante e invasiva ao ser humano, a tal ponto que não se

pode avaliar em termos de reflexibilidade a extensão de seus danos físicos, morais e

mesmo psíquicos aos desviantes.

Outro prisma que deve ser adequadamente visualizado, é o

relacionado à identificação dos bens jurídicos. Somente deve ser aceita a

possibilidade da atuação repressiva em face de bens de elevada consideração para

o direito penal, a danosidade à liberdade individual somente é justificável quando

identificada a validade da importância do bem num grau de imprescindibilidade

superior, que efetivamente o ampare.

Neste contexto cabível evidenciar-se o princípio da exclusiva

proteção de bens jurídicos, que decorre da corrente minimalista do direito penal, que

ratifica a posição do mesmo como um instrumento de extremo poder inerente ao

Estado, que encerra manifestação de inequívoca concentração de violência e que

somente deve ser utilizada de forma extremamente comedida e racional, vale dizer,

sem qualquer outra motivação, desprovida de paixão, de populismos, de marcas de

inoperância social, como lamentavelmente assistimos cotidianamente.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 5

Parafraseando a Mestra Alice Bianchini, ao citar Quintero Olivares,

nas palavras de Juan Antonio Martos Núñez, segundo os quais:

“O principio da exclusiva proteção de bens jurídicos configura a

função básica do direito penal, a qual é a de estabelecer,

mediante a proteção de bens jurídicos, o mínimo social-ético

necessário para a convivência, na opinião da maioria. Daí a

necessária busca de um equilíbrio justo e harmônico entre a

função de proteção da sociedade e a de proteção dos direitos

fundamentais da pessoa. Portanto, o direito penal cumpre função

de garantia, concretizada no asseguramento de certos valores

reputados de grande transcendência social. Tecnicamente se as

denomina bens jurídicos, os quais constituem o objeto típico de

proteção das normas penais”. (Bianchini, Alice. Pressupostos

Materiais Mínimos da tutela penal. Vol.7. São Paulo. RT 2002).

Ao se perquirir sobre a aplicabilidade do direito penal, é curial que se

faça avaliação adequada dos valores e bens que deverão ser enquadrados. A

criminalização de relações precisa amoldar-se a uma perspectiva absolutamente

obediente a uma dialética principiológica que tenha por norte a preservação de

estamentos conquistados a fórceps e mediante o comprometimento com a

identificação do homem enquanto sujeito de direitos e não como mero indivíduo ao

qual o estado pode direcionar seu furor em detrimento da paz a que se acha

obrigado a manter, às vezes contra seus próprios interesses.

A dosimetria da ofensa irrogada é outro aspecto que se tem por

imprescindível dentro da sistematização da aplicação da sanção em desbenefício

dos desviantes que efetivamente tenham de ser alcançados pelos rigores da

mesma.

É fato inafastável que o direito punitivo estatal acha-se (ou pelo

menos deve estar) limitado. Dentre as balizas fundamentais destaca-se a

preservação da dignidade humana, um dos corolários mais efusivos e decisivamente

necessários à pacificação das relações. Neste mesmo contexto, tem-se por basilar,

o entendimento de que quanto menos o Estado intervier sob o ponto de vista Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 6

criminal, mais atuação estará obrigado a desenvolver com políticas socialmente

responsáveis e de inclusão, certamente este é o caminho mais difícil para aqueles

que estão acostumados à adoção de mecanismos que apresentem muito barulho e

pouca resposta prática, é muito mais simples se utilizar da violência como um

mecanismo eleitoreiro, do que enfrentá-la como um mal criado e alimentado por

inescrupulosos “sangue sugas” do dinheiro público e que seguramente pode ser

vencido, desde que se estanque seus nascedouros de desigualdade, desde que se

minimize e se enfrente os fatos políticos e sócio-econômicos com a devida

seriedade que merecem receber.

Sobre o princípio da ofensividade, colhemos a seguinte lição do

Mestre italiano Ferrajoli:

“Este cânone tem o valor de critério polivalente de minimização das

proibições penais. Ele equivale a um princípio de tolerância

tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao

mínimo necessário e, com isso, reforçar a sua legitimidade e

fiabilidade, pois, se o direito penal é um remédio extremo, devem

ficar privados de qualquer relevância jurídica os delitos de mera

desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos

reparáveis, e à de ilícito administrativo todas as violações de normas

administrativas, os fatos que lesionem bens não essenciais ou que

são, só em abstrato, presumidamente perigosos” (Ferrajoli,Luigi.

Derecho y razón: Teoria do garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés

Ibanés et al.Madri: Trotta, 1995a).

Dentro desta ótica que necessariamente passa pelo mais absoluto

descrédito vivenciado pelo atual modelo repressivo criminal da atualidade, o mais

brilhante Mestre garantista do centro-oeste brasileiro, em sua mais atual e reluzente

obra, assim se manifesta ad professum:

“É inadmissível aceitar a aplicação do Direito Penal despido da

básica noção de proporcionalidade. O operador do sistema penal,

para obter a sua sanidade e a do próprio sistema, não pode partir da

visão que tem a premissa da vingança como resultado a ser Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 7

almejado. O ponto de partida na interpretação das normas penais

que estão em vigor é o da disseminação da liberdade e da tolerância

democrática, ambas permeadas por um sentimento de amor ao

próximo e de perdão aos erros humanos.

Não adianta responder à violência humana com mais violência. Há

na reprodução da violência pelo Estado a agravante moral da

consciência planejada da violência, fator que seria para qualquer ser

humano um ato de maior culpabilidade. Já para o Estado, esta

circunstância é explicada na discricionariedade dos atos de império.

É irônico ou não?

Completa com maestria o eminente magistrado goiano:

Pessoas que estão em situação motivadora da prática de crime (em

boa parte), são levadas por situações que fogem ao controle e não

têm condições de ponderar a existência da sanção penal e sua

respectiva cominação abstrata da pena. Vários são os óbices

sopesados na avaliação subjetiva no momento da prática de um

crime. O temor da pena é o menor deles, pois quem chega a decidir

cometer uma violência não se importa com as conseqüências

jurídicas, haja vista que o rompimento com as árduas barreiras dos

valores que adquiriu na sua formação pessoal é fator muito mais

relevante para os desígnios individuais.

As classes dominantes dependem da manutenção do sistema a tal

ponto que hoje em dia – e sempre foi assim com os detentores do

poder – dão amplo apoio às medidas cada vez mais duras e

desrespeitosas aos direitos constitucionais. Através de mecanismos

de envolvimento social na simbologia de que o crime é uma falha

exclusiva do indivíduo e não resultante do modelo social injusto,

criam-se verdades fabricadas que deságuam no clamor público

exigindo castigo, no apelo dos cidadãos a respostas estatais

emotivas. Estas exigências objetivam retirar do cardápio do Estado

Democrático de Direito qualquer preocupação de cunho ético que

não esteja aliada às maiorias momentâneas influenciáveis”.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 8

(Bizzotto, Alexandre. Valores e Princípios Constitucionais. Ed.2003.

Goiás, AB Editora, p.78-80).

Certamente uma das naturezas jurídicas que dão colorido máximo

ao princípio da intervenção mínima, é sua visão constitucional, na medida em que

seu nascedouro seguramente exsurge da certeza de que a atuação criminal

somente pode se dar nos estritos moldes preconizados pela Carta Cidadã, de ver-se

que qualquer manifestação obtusa a tal exegese, padecerá de moléstia sistêmica e

incurável.

É preciso que se tenha por certo, que a definição da Constituição

Federal deve expressar desejo incontroverso de materializar a proteção de todos e

de cada um, ainda que se tenha de adotar posição antagônica à opinião da maioria,

que facilmente pode (e tem sido) manipulada por interesses não muito consentâneos

à posição de defesa e de afirmação do Estado Regular e Democrático de Direito.

Neste sentido, transcrevemos a sempre luminosa visão do eminente jurista Aury

Lopes Jr.:

“Uma Constituição democrática deve orientar a democratização

substancial do processo penal, e isso demonstra a transição do

Direito passado ao Direito futuro. Num Estado Democrático de

Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico

de Estado-policial, pois o processo deve adequar-se à Constituição e

não vice-versa”. (Lopes Júnior, Garantias Constitucionais e Processo

Penal: Lumen Juris. 2002, p.64).

A bem da verdade, não há um consenso a respeito da conceituação

de tal princípio, não se destacando, entretanto, divergência no que concerne à sua

função como limitadora do poder de punir do Estado que deve ser colocado numa

escala eminentemente COMPLEMENTAR.

Dentro de tal ótica restritiva, observa-se duas outras subtendências

que muito preocupam, quais sejam, a do direito penal do risco e a do direito penal

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 9

do inimigo, objeto do presente estudo. Embora ambos estejam marcados pelo

rigorismo do Estado e pelo populismo penal.

O paradigma que determinou a atuação mais rigorista do estado

pode ser encontrado a partir do surgimento do Estado Moderno, vale dizer, quando

este passou a monopolizar o exercício da violência física, ou melhor, de seu

emprego para a identificação de um controle social de poder. Dentro deste contexto

histórico Baratta com peculiar argúcia, identifica as principais nuances do

predomínio estatal que se deu de forma absolutamente indevida e à margem do

respeito aos direitos individuais, senão vejamos o dizer do mestre italiano:

“A este fenômeno de monopolización Del empleo de la fuerza física

como sanción Del orden social y de las relaciones privadas,

corresponde- como es notório-el nascimento e desarrollo Del Estado

central moderno” ( Baratta, A. Viejas y nuevas estratégias em la

legitimacion Del derecho penal. Poder y Control, Barcelona, n.0,

p.79, 1986).

Assim, vê-se que é emblemática a posição do Estado ao longo de

seu desenvolvimento, ao aplicar através do direito repressivo a superposição de

seus interesses em detrimento daqueles inerentes à coletividade e aos indivíduos.

Há uma constante luta para que se chegue ao ideal da atuação

estatal, sobretudo, ao se colocar a questão paradoxal que se vivenciava na era

moderna e que transposta para os presentes dias, marcada que está pelo

distanciamento sem precedentes entre os ideais iluministas que estabeleceram os

contornos fundamentais para a respeitabilidade da condição humana e a realidade

social que hoje vivenciamos, que insiste em retornar aos medievos tempos de

dominação, de excepcionalidades absurdas, justificadas pela necessidade de

“controle” do agir humano, para se estabelecer a “paz”.

Refrise-se que a questão da criminalidade ou de seu enfrentamento,

apresenta componentes que não podem ser analisados com os olhos firmados no

horizonte da vetusta Escola Positivista, capitaneada por Cesare Lombroso, R.

Garófalo e Enrico Ferri, aliás, Ferri considerado o pai da moderna sociologia

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 10

criminal, pelo menos estabeleceu alguns pontos que precisam ser colocados como

positivos, tais como a visão de que o delito não era produto exclusivo de nenhuma

patologia e que era sim de corrente de inúmeros fatores dentre os quais, o de índole

social. Entretanto, o mestre italiano pecava de forma crassa, ao estabelecer que o

combate e a prevenção aos desvios, deveriam ser realizados através de uma ação

realista e científica dos poderes públicos que necessariamente deveriam antecipar-

se aos mesmos, incidindo sobretudo, nos fatores sociais criminógenos, segundo

aponta Garcia- Pablos, A. e Gomes, Criminologia. São Paulo, p.157, RT, 1997.

São lamentavelmente obscuros os tempos atuais, em que se

convive francamente com um modelo neofeudal de regulação, em que o

agigantamento do poderio do estado, mais e mais amplia o já gigantesco fosso entre

os excluídos e os incluídos sociais. São facilmente perceptíveis os mesmos alvores

que impingiram sofrimento e supressão de garantias e de direitos durantes séculos a

fio, não se pode tolerar a dominação despótica e intransigente dos mecanismos

oficiais que tentam justificar sua atuação, em paradigmas faustos de racionalidade.

Ao tratarmos do populismo penal que marca a atuação do Estado,

afirma-se que na verdade, não se tem uma preocupação verdadeira quanto à

problematização da questão da macro criminalidade, preferindo-se tratá-la da

mesma forma como se faz em relação à criminalidade doméstica. Adota-se uma

política da exposição de mecanismos equívocos e insidiosos, mas que

aparentemente estão habilitados à apresentação de respostas que são almejadas

pela sociedade, em função da propaganda enganosa que foi produzida oficialmente,

com o claro intuito de gerar uma falsa impressão nos cidadãos “de bem”.

É preciso que a própria sociedade esteja atenta para as armadilhas

oficiais e que especialmente não se permita aderir ao cordão abjeto dos carrascos

inquisidores que suprimem garantias como quem respira, que castram direitos como

quem funcionalmente sangra porcos para a própria subsistência.

1.1 Direito penal do inimigo:Características.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 11

No mesmo, identifica-se uma realidade política que tem a nítida

preocupação de aumentar o poder do Estado contra o cidadão e não em favor dele,

ante à consideração do dever público de prover a paz social.

As agruras que se observam em tal poderio, decorrem de fatores de

diversas ordens, dentre eles, os de matizes sociológicas e mesmo históricas, na

medida em que a dominação tem sido exercida como manifestação expressa do

Estado ao longo dos séculos sempre em detrimento do homem, sempre em

desbenefício da legalidade e da igualdade.

Em se tratando de legalidade, é preciso que se agite sua relação

espúria com os regimes autoritários, vinculados a um capitalismo perverso, vil,

excluidor e maniqueísta, no sentido de que a única coisa que importa é a sua

sobrevivência.

Tal legalidade, vinculada a um sistema de capitalismo nefasto,

construído dentro de premissas de relações sociais subordinadas ao poder estatal,

não permite que o cidadão possa ser identificado como agente de concorrência

positiva para o estabelecimento de padrões aceitáveis e ideais para o próprio meio

em que coexiste com o próprio Estado.

Desde o Brasil colonial, o que se vivencia é a dialética da

dominação, aliada à exploração numa flagrante demonstração de verticalização do

poder. Nesta linha de contexto histórico lamentavelmente identificado por séculos

em nosso país, assim se posiciona o Doutor em filosofia do direito da USP, Alysson

Leandro Mascaro:

“O próprio reconhecimento de classe tarda e se fragiliza na vasta

rede de cumplicidade, apadrinhamento, favorecimento, e mais ainda,

se fragiliza na impossibilidade real de liberdade e consciência cujas

castrações advêm da escravidão, por exemplo”. ( Mascaro, Alysson.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 12

Critica da legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo, Quatier

latin,2003, pp. 95 e 96).

É sintomática e absolutamente terrível a constatação deste

autoritarismo, enquanto fator de afastamento da preservação da dignidade humana,

enquanto mecanismo de degeneração social, sobretudo por tratar-se de mecanismo

de fomento à utilização dos mais sórdidos instrumentos estatais, que nada mais

fazem a não ser a reprodução da hierarquização e do jugo subordinante do Estado,

com o claro escopo de suprimir direitos e de fortalecer a concentração da

“autoridade”.

A ilustre Profª. Marilena Chauí, bem expressa este dilema

ocasionado pela manifestação do que Alysson Leandro Mascaro denomina de

autoritarismo social e jurídico:

“É uma sociedade autoritária na qual as diferenças e assimetrias

sociais e pessoais são imediatamente transformadas em

desigualdades, e estas, em relações de hierarquia, mando e

obediência (situação que vai da família ao Estado, atravessa as

instituições públicas e privadas, permeia a cultura e as relações

interpessoais). Os indivíduos se distribuem imediatamente em

superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação

possa tornar-se inferior em outra, dependendo dos códigos de

hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as

relações tomam a forma de dependência, da tutela, da concessão,

da autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a regra da

vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o

paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes,

exaltados como qualidades positivas do caráter nacional”. (Chauí,

Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo, Brasiliense, 1993,

p. 54).

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 13

Verifica-se também, uma tendência à internacionalização e à

globalização do direito penal, utilizando-se especialmente da mídia, como

mecanismo incentivador do populismo penal, o que inclusive tem sido largamente

visto em nosso país através de programas que achincalham a imagem do ser

humano a níveis absurdamente observáveis, COM JÚBILO POR PLATÉIAS ÁVIDAS

POR VINGANÇA.

Inegavelmente um dos pilares fundamentais em que se apóia a

própria existência lídima da democracia, é o princípio da dignidade da pessoa

humana, mas que valores acham-se inseridos no contexto de tão fundamental

axioma? Responde-nos com a peculiar sapiência o constitucionalista Alexandre de

Moraes:

“A dignidade humana é um valor espiritual e moral que se manifesta

singularmente na autodeterminação consciente e responsável da

própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das

demais pessoas”. (Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 3.

ed., p.60,São Paulo. Atlas, 1998).

Depreende-se com meridiana clareza, que tal conceito é de uma

amplitude sem precedentes, de ver-se que não se pode analisá-lo, sem que se faça

uma extensão de seus efeitos, de sua vinculação com inúmeros outros ao mesmo

correlatos, como também de se fazer a necessária gradação de importância entre

todos eles. Sua função é basicamente, a de conceder norte inafastável, para que

todo o sistema de respeitabilidade do ser humano possa desenvolver-se de forma

adequada, aos próprios fins a que o Estado está obrigado a observar. Neste correr

de idéias, mais uma vez nos inspiramos nas luzes áureas do Mestre Bizzotto, senão

vejamos:

“Toda sistemática constitucional com seus inúmeros matizes de

funcionamento têm o compromisso jurídico e ético com a dignidade

humana, porquanto a falta dela em qualquer circunstância faz com

que a situação violadora do valor constitucional ceda, amoldando-se

ao valor líder. Assim, a dignidade da pessoa humana significa

conceder a esta todo o respeito em suas complexidades materiais e Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 14

espirituais, valorizando a felicidade humana que deve ser o

parâmetro maior de todo sistema normativo.

Nesta linha de raciocínio, o intérprete que deseje a preservação da

realidade constitucional, tem, na dignidade humana, uma saudável

espécie de camisa-de-força cunhada pelo sentimento de amor ao

próximo que é usada para facilitar a descoberta de caminhos que

levem à realização humana: seja penetrando no sentimento

individual, seja incursionando nas vontades sociais, em um

imensurável equilíbrio”. (Bizzotto, Alexandre. Valores e Princípios

Constitucionais. Ed.2003. Goiás, AB Editora, p.138-139).

A “coisificação” do ser humano aviltado pela ação ou conformação

do próprio Estado degrada e torna letra rasa os princípios informadores da nova

dialética constitucionalizadora e garantista e que deveria ser maximamente

assegurada pelo mesmo.

O direito penal do inimigo é aquele através do qual o Estado vê o

cidadão como um perigo em potencial e não como sujeito de direitos. O mestre

Bizzotto, numa abordagem peculiar e sempre apropriada, em sua magistral

referência acima mencionada, agita a questão relacionada à afronta do direito penal

do inimigo, ao princípio constitucional do pluralismo (que prefere encampar no

denominado valor constitucional do respeito ao ser diferente), pois ao ver o outro

como inimigo desconsidera a essência humana e não enxerga as naturais

diferenças humanas em sociedade que são por óbvia natureza, extremamente

complexas.

Sem qualquer dúvida, total razão assiste ao eminente doutrinador,

na medida em que não se pode desprezar, que este tipo de ótica distorcida é fruto

de um Estado que a cada dia mais aparta-se da vocação social para a qual deveria

estar voltado. O próprio Estado em sua função máxima de se voltar às disparidades

e às vicissitudes mais graves que assolam a sociedade, não pode se permitir

qualquer tipo de discriminação, especialmente naquele campo relacionado à

aplicação de regulações de extremada perplexidade, como aquelas pertinentes ao

direito criminal.Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 15

Tal desconsideração ao se perpetrar por meio de ações

determinadas ou permitidas pelas atividades estatais, são verdadeiros absurdos que

precisam ser corrigidos com o máximo de ativismo sócio-jurídico, qualquer tipo de

distorção à proteção máxima dos cidadãos, deve ser expurgada, mais grave e

detestável é o fato de tais desrespeitos serem laborados por quem deveria agir para

manter a preservação da compatibilidade entre o dever de punir e a preservação da

liberdade.

Parece retórica vil e infundada a insistência de se afirmar que

qualquer tipo de intervenção dura e repressiva nada resolve em se tratando da

agrurosa situação que se vivencia em nosso país, mas o que se percebe a cada dia,

é que há de parte do Estado, um certo prazer mórbido no exercício e na manutenção

de um suposto poderio sobre a criminalidade. Na realidade, o que se observa com

meridiana clareza, é o fato de que em face de sua inoperância para estabelecer,

ditar e concorrer para que políticas públicas de qualidade social e de respeito à

valorização humana, o Estado prefere “brincar” de bandido e mocinho em meio a

uma coletividade atônita, que até prefere render-se aos encantos de “benfeitores”

que comandam as facções criminosas, em suas localidades habitacionais, mas que

se lhes apresentam de forma igual, ou pelo menos de maneira diferente daquela

prometida pelo governante que deles somente se recorda proximamente ao pleito

que lhe interessa.

Outras tônicas marcantes nesta modelar forma de intervenção, são a

ausência de garantias, o endurecimento das penas e toda sorte de instrumentos

derivados do law and order moviment, que segundo Roberto Lyra e João Marcello

Araújo Júnior em sua obra Criminologia, possui as seguintes nuances:

“A pena se justifica como castigo e retribuição; os chamados crimes

atrozes sejam punidos com penas severas e duradouras (morte e

privação da liberdade longa); as penas privativas de liberdade

impostas por crimes violentos sejam cumpridas em estabelecimentos

penais de segurança máxima, sendo o condenado submetido a um

excepcional regime de severidade, diverso daquele destinado aos Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 16

demais condenados; a prisão provisória tenha o seu espectro

ampliado, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime;

haja diminuição dos poderes de individualização do juiz e menor

controle judicial da execução da pena, que deverá ficar a cargo,

quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias”.

(Criminologia. 4. ed. atual .Rio de Janeiro: Forense 1995)

É preciso que se faça algumas considerações quanto à absurdidade

do movimento conhecido como law and order, apregoado pelos reacionários norte-

americanos e que ganhou notoriedade na década de 90 com o mayor de New York,

que simplesmente, “patrolou” os direitos individuais e até mesmo coletivos de seus

súditos, sob a alegação da necessidade de restaurar a “paz e o equilíbrio”, abalados

pelo terrorismo urbano.

Não é difícil estabelecer-se dicotomia entre tal movimento e aquele

que é denominado de garantismo, enquanto aquele é gravado pela Política de

Tolerância Zero, o último acha-se estruturado na democracia positiva, na

preservação das liberdades públicas e especialmente no respeito aos basilares

princípios que compõem a moderna visão do Estado, enquanto o verdadeiro gestor

da sociedade, mas não como um ser absolutista e draconiano que conduz o destino

de cegos como melhor lhe aprouver.

As lições garantistas não podem ser vistas como utopia de uns

poucos juristas ou sociólogos que apresentam teses de consistência duvidosa, com

escopo de alcançarem notoriedade, com o fim de construírem uma nova tese

acadêmica para a venda de livros ou para atingimento de titulação nas academias.

Elas precisam ser antes de mais nada, compreendidas como pura manifestação da

democracia, como lídima necessidade para a coexistência pacifica e harmoniosa

entre os cidadãos e o próprio estado.

Segundo A. Garcia-Pablos, (in Criminologia, São Paulo, Revista dos

Tribunais, 1997), há a necessidade de se analisar a atividade do Estado dentro de

uma perspectiva conflitual concernente a três teorias que encasam orientações

distintas quanto ao processo de aplicabilidade do processo penal, quais sejam, a da

aprendizagem social (social learning), a do controle social e do etiquetamento Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 17

(labeling approach). De todas as terias ora evidenciadas, destaca-se a última

delas, que ganhou corpo efetivo a partir do início da década de 70. Tal tese também

denominada de Teoria da Reação Social, derivava do modelo teórico oferecido pelo

interacionismo simbólico fulcrado nas obras de Charles Cooley (human nature and

social order) e de George Mead (Mind, self and society).

Inegavelmente, esta última é a que mais merece ser observada pelo

Estado, na medida em que desloca o problema da criminologia do plano de ação

dos desviantes, ao pertinente ao da reação daqueles que detém o poder, assim, o

processo de estigmatização do delinqüente é colocado no centro das investigações

desta corrente, o que sem qualquer dubiedade, apresenta-se como ponto mais que

vantajoso sob a ótica do que deve ser a moderna sistematização penal.

Em linhas bastante objetivas e práticas, quanto à aplicabilidade da

política criminal, depreende-se como fundamentais para implementação do labeling

o encontro das seguintes proposições: descriminalização das condutas menos

graves, não intervenção extrema e radical, vale dizer, ampliando-se as raias da

tolerância e flexibilidade funcional da aplicação da lei penal, informalização e

desinstitucionalização dos mecanismos de controle penal e especialmente dentro de

uma linha estritamente garantista, a proteção dos desviantes contra os gravíssimos

males dos processos judiciais indeterminados, verdadeiros ranços e heranças

absolutistas que não permitem a construção de uma sistemática hábil a manter

inalteráveis a dignificação do cidadão, apesar de sua peculiar circunstancialidade de

investigado processual.

O conceito de JUSTO PROCESSO passa obviamente pela

aplicabilidade real dos fatores de proteção e de regulação sociais sempre tendo por

paradigma uma política de preservação inafastável dos direitos mais intangíveis dos

desviantes, que antes de qualquer outra consideração, possuem o manto protetivo

informado por vários escudos inexpugnáveis, destacando-se, os princípios da

dignidade humana e o da não culpabilidade, este que pode emprestar uma falsa

idéia de aplicação meramente processual, mas que amalgamado ao primeiro erigem

o cidadão a uma condição de plasmabilidade impar, inclusive e especialmente

oponível em face do próprio Estado.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 18

Sem qualquer dúvida, a visão trazida pelo labeling significou uma

inovadora concepção aos estudos sócio-jurídicos, que sobretudo podem ser cada

vez mais aprimorados com a inserção dos alvores garantistas. Sem que se inclua as

modernas táticas de investigações e de processo, aduzindo-se aspectos de

sociologia na administração da justiça penal, é praticamente impossível reverter-se o

quadro maligno em que nos encontramos. A política criminal que efetivamente

precisa interessar ao Estado e à sociedade tem que ser aquela que estabeleça

mecanismos de recomposição das relações, sem que isto gere desprestigio de

outras, sendo fundamental que se possa recepcionar do Estado um tratamento

compatível com o seu dever máximo, qual seja, o de somente intervir quando

estritamente necessário, notadamente em se tratando de fazê-lo através do direito

criminal, sede que deve sempre ter por premissa maior, o tipo de atuação que se

identifica, a proporcionalidade da mesma ao desvio e a privação da liberdade como

ultima ratio. Seja em caráter provisório ou mesmo após a ultimação do processo

regularmente verificado.

2. Nascedouro e Críticas à teoria do Direito P. do Inimigo.

Jacobs, um dos principais incentivadores do movimento do direito

penal do inimigo, afirmou em 1999, numa conferência proferida em Berlim, que as

pessoas que se portavam socialmente como “inimigos”, não poderiam ser tratados

como cidadãos, vale dizer, seu próprio comportamento era o desencadeador da

reação estatal, que não poderia ser outra. Tal referência elaborada pelo Prof.

Cornelius Prittiwitz no 9° Seminário Internacional do IBCCRIM, realizado em São

Paulo, em outubro de 2003, foi feita com extremo tom de justa crítica, até porque, o

mesmo “autor” da tese restritiva, em 1985, posicionara-se de forma diametralmente

oposta.

A modernidade coloca o mundo diante de uma série de conflitos, uns

mais emergenciais que outros. O sopesamento de tais desinteligências, não pode

ser feito de maneira simplista e desprovida de uma preocupação social mais

elevada. As questões de cunho social não têm recebido o devido trato, nem da

sociedade e muito menos pelo Estado, sendo certo que em muitas das vezes a

primeira tem sido engodada pelo último, mas apenas culpá-lo, talvez não seja de

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 19

todo razoável numa análise razoavelmente crítica e ponderada. Cabe ao Estado

ocupar-se adequadamente de todas as suas funções sem maquiá-las, e

especialmente sem transferir a searas que efetivamente não são as sedes

adequadas para tratamento dos anseios sociais. É o que se tem observado através

da constante intervenção do Estado, via endurecimento do sistema penal e

penitenciário.

É preciso que se tenha em mente, que o problema da

MISERABILIDADE/POBREZA é bem mais complexo do que se imagina, embora

possa apresentar encaminhamentos para sua solução, que obrigatoriamente não

passam pelo direito penal como instrumento válido de resolução de males que pelo

mesmo não podem ser regulados.

O ex-Ministro da Fazenda e hoje membro da ONU, Rubens Ricupero

em palestra proferida durante o Sétimo Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor

realizado em São Paulo entre 16 e 17 de maio de 2004, apresentou severas críticas

à questão da concentração de renda como um dos fatores mais relevantes para o

desencadeamento dos mais graves problemas que hoje se verifica, nele incluindo-se

o da violência.

Dentre os principais pontos de sua abordagem, o mencionado

diplomata alegou que o relatório econômico-social para a América Latina,

confeccionado pela CEPAL, pouco antes do natal de 2003, mostra que apesar de

todos os esforços posteriores à crise econômica de 1982, não foi possível a

superação das disparidades entre as cifras de pobreza anteriores à crise da divida

externa e posteriormente alcançados. O crescimento econômico e a DÉCADA

PERDIDA (50) e a MEIA DÉCADA PERDIDA (de 97 a 2002) foram decisivos para

que isso se desse.

Um dos outros gravíssimos problemas agitados, é a questão da taxa

de desemprego, a verificada na América Latina é a maior já vista desde que se

iniciou a tomada de tal medida, há aproximadamente 30 (trinta) anos, sua verificação

acha-se gravitando entre 11 e 13%.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 20

Lamentavelmente, a despeito dos populistas discursos que se

observa, especialmente de parte do Governo Central, os índices verificados em

nosso país, está alarmantemente dentro de tais catastróficos níveis, notadamente,

em função dos bolsões de absoluta miséria que facilmente são encontrados.

A valorização do homem pelo Estado, independentemente de sua

posição, é necessariamente uma tarefa inalienável.

Seguramente um dos conflitos mais efervescentes, é o pertinente ao

equilíbrio das relações jurídicas, a despeito de existirem outras ocorrências que

também atingem bens e interesses relevantes. A função primordial do Estado é

efetivamente a de saber identificá-los, classificá-los, para que possa atuar de forma

preventiva e repressiva se for o caso, mas sempre tendo por baliza o cidadão como

sujeito digno dos mais irretocáveis direitos. Conforme acima exaustivamente

afirmado, a preservação do princípio da dignidade humana, não pode ser tratada

como algo apenas exposto na Carta Federal para ser decantado em verso e prosa,

mas sim como letra fundante de um sistema que necessita ser corrigido, e

redimensionado, em função das décadas de abandono ou arbítrio em relação às

garantias individuais e coletivas.

Neste contexto, importa trazer à reflexão que a utilização dos

mecanismos criminais, como os únicos hábeis à resolutividade das graves ou

mesmo mínimas questões intersubjetivas, não se apresenta somente como um

grave equívoco, mas sobretudo como um aviltante desprestígio à dignidade humana.

Dentro de tais matizes, destaca-se o sempre luminoso e coerente

posicionamento do Mestre Bizzotto, assim expressado:

“Oportuno dizer que a utilização do Direito Penal estilo chibata que

vigora atualmente no sistema penal é um grande erro. Sem respaldo

de condições sociais adequadas, ele retrata a figura de um cego

atirando a esmo no meio da multidão. Não há substrato para sua

atuação. Configura-se a penalização pela penalização”. ( Bizzotto,

Alexandre. Valores e Princípios Constitucionais. Ed.2003. Goiás, AB

Editora, p.77).

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 21

São mais que lapidares e apropriadas as considerações do ilustre

jurista goiano que as complementa, afirmando com a peculiar objetividade e senso

de justiça, que o lugar comum ao qual o Estado tem se permitido, qual seja, o da

resposta à violência humana com mais violência, de nada adianta.(Ob. cit.p.78).

Torna-se também necessária trazer à colação a visão de Kelsen1, no

que concerne à aplicação do Direito, com a adequada interpretação da norma, como

um fenômeno que deve estar acompanhado de um caso concreto, que respeite

sobretudo a hierarquização da autonomização do sistema normativo jurídico.

A ótica kelseniana é de subida importância para que se possam

estabelecer alguns paradigmas concernentes ao Direito Penal enquanto ciência

normativa.

Em sua obra lapidar, o filósofo do direito indica uma reflexão sobre

este, como um sistema absolutamente diferenciado no qual se observa uma

logicidade que necessariamente precisa amoldar-se ao objeto formal, efetivamente

encontrado no ordenamento jurídico.

Tal digressão de cunho filosófico, tem por escopo estabelecer que a

aplicação do Direito Criminal aos desviantes, somente pode-se realizar dentro de

uma perspectiva dialética e ontológica bastante estabilizada sob o prisma

sociológico e por conseguinte justificador de tal aplicabilidade. Não basta que a

imputação exista de forma eficaz para a senda jurídica, é preciso que o exame

prévio do rompimento das relações esteja satisfeito.

Busca-se mais uma vez socorro nos ensinamentos do ilustre

preceptor Bizzotto, para quem o rigorismo da pena ou a avaliação indiscriminada e

desmesurada das condutas, em nada contribuem para o decréscimo da violência.

1Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado,6ªed.São Paulo:Martins Fontes, São Paulo,1998.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 22

Concorda-se em gênero e número com tais inflexões,

acrescentando-se que o clamor pela aplicação de castigos cada vez mais severos e

degradantes aos desviantes, apenas projeta a extrema ausência de coragem, tanto

do Poder Público, quanto da sociedade civil para proverem o enfrentamento

socialmente correto das questões mais agrurosas e aviltantes que batem às nossas

portas e para as quais cerramos os olhos e os corações.

Critica-se tal teoria (mais que uma teoria, uma nefasta realidade), na

medida em que a mesma dá azo a uma série de desmandos em nome de uma

“suposta defesa social”, que antes de sê-la, a prejudica e a impede de ser

implementada de forma justa e coerente aos anseios daqueles que não estão com

suas visões empanadas, ou que não foram contaminados pelos cânticos sedutores

da “demonização” do Direito Penal, utilizável como a última possibilidade de se

estabelecer uma sociedade livre e soberana.

Considerações finais.

A principal face do Direito Penal, é aquela em que o mesmo é

utilizado como meio protetivo do cidadão e não como instrumento repressivo, ou de

dominação.

A supressão da vingança privada não pode ser substituída pela

oficial. A proteção da comunidade deve ser conjugada à daqueles que se desviaram

dos padrões de normalidade genérica e razoavelmente estabelecidos pelo Estado.

A relação entre conduta delitiva, aplicação da jurisdição e eventual

sanção penal, imprescinde de uma visão conjugada ao Direito Penal Mínimo, que

possa PROPICIAR DE FATO A APLICAÇÃO DE UM PROCESSO PENAL

GARANTISTA.

O movimento do garantismo não deve ser colocado, conforme já

expressado em linhas volvidas neste despretensioso ensaio, como uma tentativa

acadêmica e despreparada, ou mesmo como mais uma construção filosófico-jurídica

permeada por meros objetivos tecnicista, sendo imprescindível vislumbrá-lo como

algo essencial à preservação não somente da sociedade, mas do próprio estado.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 23

Inegavelmente, é preciso que se assevere que o pragmatismo

processual penal está longe de se adequar à realidade estabelecida formalmente em

nossa Carta Magna. É preciso que se supere definitivamente a célebre distinção

entre o ser e o dever ser do direito, ainda mais, ao se levar em conta o fato de que a

preservação da dignidade humana não pode ser tratada como algo marcado por

abstração que pode mistificar um dos fundamentos inafastáveis da existência do

próprio Estado, da própria sociedade e do homem como elemento indispensável à

gravitação de todos os sistemas, não somente o jurídico, mas todos os demais que

se relacionam às realidades que encontram no ser humano a razão maior de tudo.

É preciso que insistentemente estejamos nos perguntando sobre

qual é o verdadeiro papel do processo penal, para que o mesmo existe e

especialmente para que ele se presta, são estas as questões que a todo instante

devem estar motivando a aplicação processual.

A rigor, não se pode perder de vista que a leitura a ser feita do

processo penal, somente pode se dar à luz dos axiomas garantistas insculpidos por

Ferralolli e formalmente adotados por nossa Constituição Federal.

O fato a ser apreciado com extrema acuidade, diz respeito à

implementação dos aludidos direitos, vale dizer, de lhes conferir efetiva eficácia, de

não apenas lhes tratar como um avanço poucas vezes visto, de não apenas

considerá-los como algo a que apenas um seleto grupo social faz jus.

Uma Carta Democrática como a nossa, deve apresentar como lógico

correspondente um processo penal de mesma índole, até porque, este emerge

daquela. Tal obviedade parece infelizmente, estar contaminada e impactada pelos

alvores fascistas da década de 40.

Quando se combate a ideologia retrógrada que se projeta na

aplicação do direito repressivo e da persecução penal em seu todo, faz-se uma

crítica não meramente formal, mas especialmente ao contexto absolutamente

equívoco que por décadas a fio vem sendo agravado.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 24

Assim, as políticas de “lei e ordem” e “tolerância zero” são

manifestações lamentáveis do reavivamento de métodos arcaicos, ultrapassados e

inadequados para se solucionar novos problemas cujo enfrentamento passa por

várias respostas, menos pelas indicações acima mencionadas, por serem nítidas

expressões de um contexto histórico que nada contribuiu para o aprimoramento do

homem.

Vivemos numa sociedade de elevado risco criminal e responder a tal

constatação com o endurecimento dos movimentos repressivos nunca será a

solução ideal. O atalho das duras medidas é uma das mais falaciosas e inócuas

providências.

Lamentavelmente experimentamos dias em que a questão da

penalidade transformou-se num processo de emergencialidade em que se “impõe”

uma resposta qualquer, por pior que seja sua consistência ou atecnia, tudo com o

fito de se “resolver” o problema da criminalidade, sem qualquer conferência

sistêmica de seus reflexos, sem qualquer racionalidade quanto à sua aplicabilidade

material.

Bastaria que os operadores do direito penal pátrio se ativessem

com meridiana sensibilidade aos ditames dos três primeiros artigos de nossa

Constituição, não se exigindo um aprofundado conhecimento constitucional, mas

basicamente o cumprimento de seus magnos estamentos, iniciando-se pela

observação insofismável da dignificação do homem como máxima expressão da

sobrevivência racional da própria sociedade.

A conciliação de todos os valores do indivíduo e da sociedade e de

todos os fatores instrumentais e finalísticos, é problema de composição de forças

que a mecânica não pode resolver, mas o Direito sim, mercê da organização social e

da disciplina jurídica.

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 25

Nesta consideração é preciso que se exalte a posição dos

operadores jurídicos, enquanto detentores de uma responsabilidade formal e

material sem precedentes para a efetividade e resguardo dos valores mais

sagrados, erigidos com a nítida função de dar dignificação à vida, de conceder

aquela igualdade tangível e ontologicamente realizável.

Não somos meros expectadores de um processo que se encontra

em irreversível rota de declínio, não somos meros despachantes processuais que

em suas tarefas seculares limitam-se a concordar com as “expectativas” oligárquicas

daqueles que não cumprem seus deveres e por conseguinte nos empurram

concepções desarraigadas da realidade fenomênica e social que deveriam enfrentar

com o devido senso moral e de responsabilidade social.

Somos por fim agentes de transformação, mais que isso, somos

responsáveis pelo encaminhamento progressivo e utilitário do direito de punir, assim,

não podemos ser coniventes com o retorno predeterminado à origem nefasta do

inquisitorialismo e das penas dele decorrentes.

A regulamentação essencial da vida é o que precisa ser focado

como fundamento maior a ser assegurado pelo direito de punir. A função mediata do

Estado é da prover a paz e o equilíbrio sociais, não o desamor, não a instabilidade,

não a discórdia sem precedentes. Fora dessa regulamentação da vida, não há

segurança e muito menos a tão almejada justiça.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Verso e Reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002;

BARATTA, A. Viejas y nuevas estratégias em la legitimacion Del derecho penal. Poder y Control. Barcelona, n.0, 1986;

BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da tutela penal. Vol.7. São Paulo: RT, 2002;

BIZZOTTO, Alexandre. Aplicabilidade das normas constitucionais, Goiás: AB Editora, 2004;

Prof. Marcelo Henrique dos Santos

Curso de Direito Processual Penal 26

__________________. Valores e Princípios Constitucionais. Goiás: AB Editora, 2003;

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo: Brasiliense, 1993;

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoria do garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibanés et al.Madri. Trotta, 1995;

LUISI, Luiz. Os princípios Constitucionais. ;

GARCIA - PABLOS, A. e Gomes, Criminologia. São Paulo: RT, 1997;

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998;

LOPES JÚNIOR, Garantias Constitucionais e Processo Penal: Lumen Juris. 2002;

MARCARO, Alysson. Critica da legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quatier latin, 2003;

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3. ed., São Paulo: Atlas, 1998;

RODRIGUES, Saulo Tarso. Criminologia. A política criminal alternativa e os princípios de Direito Penal Mínimo de Alessandro Baratta: Na busca da (re) legitimação do Sistema Penal. SP: Ômega, 2003.

ZOMER, Ana Paula. Ensaios Criminológicos. Tradução: Lauren Paoletti Stefanini. São Paulo: IBCCRIM, 2002;

Criminologia. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1995;

Prof. Marcelo Henrique dos Santos