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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ
RAFAEL ALENCAR RODRIGUES
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º, CAPUT, E § ÚNICO DA LEI 7.492/86.
CURITIBA
2008
i
RAFAEL ALENCAR RODRIGUES
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º, CAPUT, E § ÚNICO DA LEI 7.492/86.
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, na área de concentração em Direito Penal, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil - UniBrasil. Orientador: Prof. Dr. Maurício Kalache.
CURITIBA
ii
2008
TERMO DE APROVAÇÃO
RAFAEL ALENCAR RODRIGUES
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º, CAPUT, E § ÚNICO DA LEI 7.492/86.
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no
curso de Pós-Graduação em Ministério Público - Estado Democrático de Direito,
Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas
do Brasil – UniBrasil, examinada pelo Professor Orientador Maurício Kalache.
_____________________________
Prof. Dr. Maurício Kalache
Orientador
Curitiba,____ , de ____ de 2008.
iii
Sumário.
Resumo............................................................................................................................... v
1. Introdução..................................................................................................................... 1
2. Origens históricas do princípio da taxatividade................................................... 3
2.1. O movimento das luzes e o esboço inicial do princípio da taxatividade. A
função assecuratória das liberdades individuais frente ao poderio punitivo do
Estado........................................................................................................................
3
2.2. A “Escola Clássica”, a consagração do Princípio da Legalidade e a sua
função preventivo-geral.............................................................................................
12
2.3. A supressão do princípio da taxatividade como forma de manutenção dos
modelos de Estado autoritários contemporâneos......................................................
17
3. A expressão “gestão fraudulenta” e a inconstitucionalidade do art.4º, caput
da Lei 7.492/86.........................................................................................................
27
3.1. O art.4º, caput, da Lei 7.492/86 definido como tipo penal aberto. A análise do
tipo objetivo...............................................................................................................
27
3.2. A conduta de “gerir fraudulentamente” como fator desencadeante de patente
insegurança jurídica e seu possível âmbito de validade............................................
35
4. A expressão “gestão temerária” e a inconstitucionalidade do parágrafo
único do art. 4º da Lei 7.492/86..............................................................................
42
4.1. A total impossibilidade regulatória do tipo penal fincado na expressão
“gestão temerária”.....................................................................................................
42
4.2. O crime de “gestão temerária” como forma de ação culposa e a sua inaptidão
por ausência de previsão do resultado típico.............................................................
46
4.3. O crime de “gestão temerária” (art. 4º, § único da Lei 7.492/86) como crime
de perigo concreto.....................................................................................................
51
5. Conclusão............................................................................................................. 55
Bibliografia............................................................................................................... 59
iv
Resumo.
O princípio da taxatividade da lei penal é conquista advinda do ideário liberal que consubstanciou o movimento histórico do Iluminismo no século XVIII. Após o Iluminismo, a fixação do princípio nas legislações constitucionais e infra-constitucionais dos Estados de Direito passou a ser a regra, sendo suprimido somente para atender a interesses repressivos ditatoriais. A lei 7.492/86 tipifica em seu art.4º, caput, e § único, respectivamente, os crimes de “gestão fraudulenta” e “gestão temerária”, expressões estas completamente desapegadas de um sentido semântico cognoscível ao destinatário da norma. A falta de técnica do legislador, ao eleger tais condutas como merecedoras da reprimenda penal do Estado, acaba por representar verdadeiro rompimento com o preceito da taxatividade e das funções a ele inerentes. Apesar dos esforços despendidos pela doutrina no sentido de atribuir um âmbito de validade para os referidos tipos legais incriminadores, é patente a necessidade de declaração de sua inconstitucionalidade, sob pena de perpetuação de indesejável insegurança jurídica e legitimação de decisões judiciais arbitrárias. Palavras-chave: Princípio da taxatividade da lei penal; Crimes financeiros; Gestão fraudulenta; Gestão temerária.
v
Agradecimento.
Meu mais sincero agradecimento ao Dr. Nilton Bussi, professor universitário,
Procurador de Justiça aposentado e advogado, pelas primeiras orientações acerca da
temática proposta e pelas lições diárias sobre direito e sobre o mundo jurídico que
somente os legitimamente mestres podem oferecer.
1
1. Introdução.
O princípio da legalidade é preceito que, hordiernamente, constituiu um dos
principais pilares sobre os quais se funda o Estado Democrático de Direito. Este princípio
fundamental deve ser necessariamente observado pelo legislador quando da constituição de
um tipo legal incriminador, estabelecendo a criminalização de condutas então merecedoras de
repúdio social, e também pelo magistrado e o membro do Ministério Público, quando da
análise do caso concreto. O respeito aos ditames do princípio da legalidade passa
necessariamente pela análise de todos os seus aspectos derivativos.
Mandamento esculpido em todas as legislações constitucionais e infra
constitucionais dos países que adotam o modelo liberal de Estado, o princípio da legalidade
determina, em quatro divisões, que só existirá crime ou pena, se decorrentes de uma lei prévia
à ação que foi incriminada, se essa lei seja definida de modo escrito, formando o tipo legal
incriminador, se essa lei, prévia e escrita, defina o objeto de regulação de modo estrito,
evitando o emprego da analogia na sua aplicação, e, se esta lei incriminadora seja certa, isto é,
precisa e clara nos seus termos, de modo a estabelecer os limites sobre os quais o poder
punitivo do Estado irá atuar. Esta última variação recebe a denominação autônoma de
princípio da taxatividade.
Apesar de o princípio da legalidade ser estabelecido como mandamento fundamental
e imprescindível à sustentação do citado modelo de Estado liberal, é admirável que ainda
hoje, mesmo após as lições firmadas pela história, no sentido de sua imprescindibilidade à
manutenção das liberdades individuais frente ao poderio punitivo e arbitrariedade estatal, o
princípio da legalidade, na sua concepção de taxatividade da lei penal, venha sendo espancado
pela lei penal especialmente criada para regular determinadas formas de criminalidade.
Os dispostos no art.4º caput e parágrafo único da Lei nº 7.492 de 16 de Junho de
1986, ainda vigente no Brasil, são exemplos lamentáveis de como a total falta de técnica na
formulação das leis penais pode afrontar o ordenamento jurídico constitucional, rompendo
com as conquistas democrático-liberais consubstanciada no princípio da taxatividade.
Atendendo aos reclamos do Banco Central do Brasil (BACEN), autarquia
responsável por regulamentar, fiscalizar, dar apoio, intervir, liquidar e punir
administrativamente as instituições financeiras no Brasil com o fito de zelar pela normalidade
do funcionamento dos mercados financeiro e de capitais, a Lei 7.492/86 (Lei dos Crimes
Financeiros) reflete a insensata busca do legislador pátrio pelo estabelecimento de crimes
2
baseados em formulações genéricas destinados a estabelecer o maior campo de cobertura
possível dentro da esfera de regulação do Direito Penal. Esta tendência, cada vez mais
freqüentemente, verificável principalmente em relação à incriminação dos ilícitos de natureza
econômica em detrimento de um mínimo de casuísmo que deve acompanhar o tipo legal
incriminador, tem o absoluto inconveniente de ferir de morte o preceito fundamental
constitucional da taxatividade da lei penal.
Tais dispositivos legais, pela sua falha estrutura típica, desandam completamente da
realidade das instituições financeiras no Brasil, pois não atendem à finalidade regulatória a
que se destinam, levando enorme insegurança jurídica aos operadores desses
empreendimentos e, em certa medida, impedindo o desenvolvimento do setor no Brasil,
inclusive, levando-as ao ostracismo frente a concorrência internacional.
Dessa forma, importante se faz o cotejamento da gravidade representada pelo
descumprimento do princípio da taxatividade ante a análise do art.4º, caput e § único da Lei
dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, de modo a destacar a imprescindibilidade
de declaração de sua inconstitucionalidade e, com a reformulação de seus preceitos legais,
seja criada uma normatização que atenda eficazmente a proteção aos bens jurídicos
socialmente eleitos como merecedores da tutela penal e, ao mesmo tempo, sem representar
um óbice às liberdades negociais financeiras, tendo em vista os riscos ligados a tal realidade.
Além disso, notório é o fato de o tema possuir papel de destaque na ciência jurídico-
penal brasileira na atualidade, tendo em vista os sucessivos escândalos no sistema financeiro
nacional ocorridos desde a década de 70.
Este trabalho vem perfilar-se a outras críticas à Lei 7.492/86 e ao descumprimento
com o princípio da taxatividade da lei penal, estudos estes já consagradas pela doutrina
nacional e estrangeira, tendo como ponto de apoio a discrepância entre o mandamento
constitucional firmado pelo art.5º, XXXIX da Carta Magna e o disposto nos art.4º, caput e §
único da referida lei, destacando a importância de conservação das garantias individuais
firmadas pela lei penal, independentemente da forma de criminalidade a que se propõe criar,
sob pena da legitimação de perigoso e tirânico arbítrio judicial, o que, por si só, representa
uma anátema dentro do ideal almejado de Estado Democrático de Direito.
3
2. Origens históricas do princípio da taxatividade.
2.1. O movimento das luzes e o esboço inicial do princípio da taxatividade. A
função assecuratória das liberdades individuais frente ao poderio punitivo do
Estado.
O princípio da taxatividade, ou princípio do mandado de certeza, aparece
historicamente como o aperfeiçoamento do princípio da legalidade dos delitos e das
penas. Dessa forma, o princípio da taxatividade perfila-se na história às conquistas de
ordem democrático-liberais possibilitadas pelo iluminismo. Porém, mesmo antes do
movimento que culminou na revolução francesa, observa-se que o princípio da
legalidade já era uma preocupação vigente como forma de garantia da liberdade do
indivíduo frente ao poderio punitivo do Estado.
A primeira forma de manifestação do princípio da legalidade foi certamente
verificada na necessidade de se garantir ao indivíduo a possibilidade de conhecer a lei
que incrimina uma determinada conduta e a respectiva pena. Dessa forma, a primeira
revelação do princípio da legalidade veio, em verdade, para atender aos anseios da
burguesia emergente à época frente ao poder despótico dos soberanos, e que versava
sobre a confecção de leis que estabelecessem as condutas que mereceriam a
persecução penal do Estado e quais seriam as conseqüências da aplicação dessa lei.
Nesse sentido, menciona Nilo Batista que:
“Sem dúvida, a principal função do princípio da legalidade é a função constitutiva, através da qual se estabelece a positividade jurídico-penal, com a criação do crime (pela associação de uma pena qualquer a um ilícito qualquer). Nem sempre se percebe que o princípio da legalidade não apenas exclui as penas ilegais (função de garantia), porém ao mesmo tempo constitui a pena legal (função constitutiva).”1
De outra sorte, como se verá, esta observação tão bem desenvolvida por Nilo
Batista, pode ser complementada com a extensão da função de garantia do princípio da
legalidade já para a fase de criação do tipo legal incriminador, com o estabelecimento
1 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.68
4
da conduta a ser incriminada através do tipo penal, e isto antes mesmo que se faça
qualquer juízo de valor acerca da proporcionalidade entre a gravidade desta conduta e
a pena correspondente.
A imposição do estabelecimento de leis penais previamente às condutas
humanas que mereceriam punição estatal, v.g., princípio da anterioridade da lei penal,
simboliza a primeira de uma série de desdobramentos do princípio que, em verdade,
representam o desenrolar lógico de um mesmo mandamento garantista, isto é, que a lei
criada pelo Estado estabeleça quais condutas merecem a reprimenda penal e quais os
efeitos de sua aplicação, criando, dessa maneira, a conduta criminosa através do tipo
legal incriminador e estabelecendo a respectiva pena. Eis a função constitutiva, ou de
constituição, no estabelecimento do positivismo jurídico-penal delineada por Nilo
Batista, mas agora em relação a confecção do próprio tipo legal, e não somente em
relação a previsão da pena.
Nesta esteira, ensina o ilustre jurista espanhol Enrique Bacigalupo que “La ley
penal tiene una función decisiva en la garantía de la libertad. Esa función suele
expresarse en la máxima nullum crimen, nulla poena sine lege. Esto quiere decir que
sin una ley que haya declarado previamente punible ningún hecho puede merecer una
pena del derecho penal”.2
Não restam dúvidas, e como ponto de partida da análise pretendida, que a
função de garantia do princípio da legalidade deu origem aos desdobramentos hoje
aceitos por toda a doutrina jurídico-penal, ecoando seus reflexos nos textos
constitucionais e infra constitucionais. Assim, importantes se fazem as palavras de
especial efeito esclarecedor formuladas pelo insigne Francisco de Assis Toledo:
“O nullum crimen, nulla poena sine lege tem sua longa história, por vezes acidentada, com fluxos e refluxos. Por isso já foi objeto de muitas interpretações, conforme acentua Maurach, cada uma delas desempenhando papel político de realce, antes que se chegasse à concepção atual, mais ou menos cristalizada na doutrina. Presentemente, essa concepção é obtida no quadro da denominada ‘função de garantia da lei penal’ que provoca o desdobramento do princípio em exame em quatro outros princípios, a saber: a) nullum crimen, nulla poena sine lege previa;
2 Em tradução livre: “A lei penal tem uma função decisiva na garantia da liberdade. Essa função aparece expressa na máxima nullum crimen, nulla poena sine lege. Isto quer dizer que sem uma lei que não haja declarado previamente punível nenhuma ação pode merecer uma pena de Direito Penal.” (BACIGALIPO, Enrique. Principios de Derecho Penal: Parte General. Madrid: Akal, 1994, p. 32)
5
b) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; c) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; d) nullum crimen, nulla poena sine lege certa.”3
Porém, antes do exame da função de garantia do princípio da legalidade e sua
relação com o postulado da lex certa, imprescindível se faz a leitura do panorama
histórico que revelou as bases do princípio da taxatividade.
Assevera o saudoso Heleno Cláudio Fragoso, mestre de todos nós, que a
origem do princípio da legalidade remonta ao direito romano ao tempo das questiones
perpetuae onde “estavam os magistrados adstritos à previsão legal anterior para os
crimes e as penas a serem aplicadas, quanto aos crimina publica (legitima
ordinária)”4, afirmando que o primeiro desdobramento atribuído ao princípio da
legalidade visava atender à necessidade da criação de leis anteriores à ação para que
ela fosse punível através de pena também previamente estabelecida. Ensina ainda o
ilustre jurista em sua inestimável lição que:
“Afirma-se que o mais seguro antecedente histórico do princípio da reserva legal, é a Magna Carta, imposta pelos barões ingleses ao rei João sem Terra, em 1215. Em seu art. 39, estabelecia ela que nenhum homem livre poderia ser submetido a pena nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terrae. O que parece, no entanto, esse dispositivo não representa garantia de direito substantivo, mas apenas processual.”5
No entanto, a despeito de todos os apontamentos acerca das origens históricas
do princípio da legalidade, que certamente teve como primeiro entendimento o sentido
da formulação da lei penal, obrigatoriamente anterior à imputação de reprovação às
condutas e à aplicação da pena, matéria esta tão bem tratada pelo insuperável mestre
Fragoso, cabe lembrar que visa o presente trabalho atingir de forma objetiva a
problemática intrínseca às leis imprecisas e demasiadamente abertas e geradoras de
insegurança jurídica o que, por si só, representa na atualidade derradeira afronta aos
preceitos que informam o dito Estado Democrático de Direito.
3 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal: de acordo com a lei n. 7209 de 11-7-1984 e com a Constituição Federal de 1988. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.22 4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Observações sobre o princípio da reserva legal. Disponível em: < http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/heleno_artigos/arquivo11.pdf >. Acesso em: 1 de set. 1998. p.1 5 Ibid., p.2
6
Nesse sentido, primeiramente cabe destacar que a origem histórica da variante
direta ao princípio da reserva legal, traduzida por Feurbach na fórmula latina nullum
crimen, nula poena sine lege certa, não é firmada sobre as bases do mesmo paradigma
que deu azo à obrigatoriedade da anterioridade da lei penal já mencionada.
O núcleo da questão, envolvendo a necessidade de a reprovação de condutas
previamente definidas só poder advir de preceitos escritos de forma clara e
devidamente assentadas sobre vernáculos inteligíveis aos destinatários da norma, teve
como primeiro alicerce o liberalismo representado pelo movimento iluminista, que
culminou na revolução francesa e foi movida pelo ideário de combate ao absolutismo
prepotente de soberanos despóticos. Mas, diferentemente da anterioridade da lei penal,
o princípio da taxatividade surge como idéia evoluída e intrínseca ao conceito da lei já
formada, e avessa à praxis adotada pelos juízes à época, que pela amplidão e incerteza
dos preceitos legais, assumiam o papel dos legisladores, proferindo sentenças por
vezes arbitrárias e sem qualquer substrato lógico em relação a outros entendimentos,
gerando, portanto, perigosa insegurança jurídica.
Destarte, menciona Cezar Roberto Bitencourt que:
“As idéias de igualdade e de liberdade, apanágios do Iluminismo, deram ao Direito Penal um caráter formal menos cruel do que aquele que predominou durante o Estado Absolutista, impondo limites à intervenção estatal nas liberdades individuais. Muitos desses ‘princípios limitadores’ passaram a integrar os Códigos Penais dos países democráticos e, afinal, receberam assento constitucional, como garantia máxima de respeito aos direitos fundamentais do cidadão.”6
O desdobramento do princípio da legalidade na obrigatoriedade da
formulação de leis penais que estabeleçam de forma clara e precisa as condutas que
pretendam punir, só surgiu quando já eram maduras as idéias sobre a possibilidade de
o crime ser criado tão somente através de lei. Assim, é possível afirmar que, dentro da
evolução tomada pelo princípio, o desdobramento em lex certa só auferiu autonomia
quando já era o crime definido por lei anterior à conduta e escrita, mas que ensejaria
irreparáveis dúvidas que ainda dariam margem à aplicação deveras discricionária.
6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípios Garantistas e a Delinqüência do Colarinho Branco. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 11. Julho – Setembro. São Paulo: Revista dos tribunais, 1995, p.118
7
Dessa maneira, o viés assumido pelo princípio da taxatividade, em verdade,
representa o derradeiro aperfeiçoamento do princípio da legalidade, pois só se
demonstra viável quando todos os outros desdobramentos da premissa já estão sendo
observados pela lei penal.
Sobre as idéias que marcaram a confecção do princípio da legalidade e seus
desdobramentos, importantes se fazem as lições de Heleno Cláudio Fragoso ao listar
as características marcantes do contributo iluminista em matéria de Direito Penal na
história, apontando como conquistas do indivíduo frente ao Estado:
“...a proteção da liberdade individual contra o arbítrio judiciário; a abolição da tortura; abolição ou limitação da pena de morte e a acentuação do fim estatal da pena, com afastamento das exigências formuladas pela igreja ou devidas puramente a moral, fundadas no princípio da retribuição.”7
Dessa forma, conclusivas são as brilhantes observações de Hans Welzel
acerca do avanço que o iluminismo significou para a administração da justiça penal,
trazendo garantias de integridade do indivíduo frente ao poderio punitivo do Estado:
“Las condiciones que se habían tornado insostenibles en la administración de justicia penal mejoraron decisivamente en la Ilustración y el Absolutismo Ilustrado. Por motivos de distinta índole, en parte contradictorios, la Ilustración condujo a una sujeción estricta del juez a la ley; trajo un tratamiento laico racional del Derecho Penal, una morigeración de las penas de acuerdo al punto de vista de la necesidad estatal y con ello una restricción de la pena de muerte, una amplia aplicación de las penas privativas de libertad, la eliminación del tormento, etc.”8
Neste mesmo sentido, Claus Roxin destaca como conseqüência deste embate
entre burguesia e absolutismo, a preocupação de pôr fim às decisões arbitrárias e de
acordo com o alvitre oportunista do julgador frente a um dado caso concreto:
7 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direto penal: parte geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.41 8 Em tradução livre: “As condições que haviam se tornado insustentáveis na administração da justiça penal melhoraram decisivamente no Iluminismo e o Despotismo Esclarecido. Por motivos de índole distinta, em parte contraditórios, o Iluminismo conduziu a uma sujeição estrita do juiz a lei; traçou um tratamento laico racional do Direito Penal, uma mensuração das penas em acordo ao ponto de vista da necessidade estatal e com isto uma restrição da pena de morte, uma ampla aplicação das penas privativas de liberdade, a eliminação do suplício, etc.” (WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 4. ed. Santiago de Chile: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p.13)
8
“Un fundamento en el que aún hoy se basa el principio de legalidad reside en un postulado central del liberalismo político: la exigencia de vinculación del ejecutivo y del poder judicial a leyes formuladas de modo abstracto. La burguesía, en su enfrentamiento con el absolutismo, había conseguido la importante conquista de que los gobernantes y los jueces (a menudo dependientes de aquéllos) no pudieran ejercer la potestad punitiva a su libre arbitrio (y en su caso arbitrariamente), sino sólo en la medida en que haya una clara precisión legal de aquélla.”9
Os expoentes da afirmação do Direito Penal sobre bases sólidas, representadas
por leis claras e precisas e, portanto, marcando as primeiras linhas sobre as quais foi
definido o princípio da taxatividade em detrimento do arbítrio judiciário, identificam-
se em Motesquieu com a sua celebrada obra L’esprit des lois de 1748, e em Cesare
Beccaria autor de Dei Delitti e Delle Pene de 1764, texto que se mantém atual em seus
próprios termos, mesmo passados aproximadamente três séculos da sua primeira
edição.
Montesquieu, preconizador da separação dos poderes na estrutura do Estado,
compôs magistralmente a idéia de que juízes não poderiam criar crimes ou sanções ao
aplicarem sobre a lei qualquer carga de valoração, entendendo, dessa forma, uma
conduta como detentora de maior ou menor gravidade. Estas tarefas caberiam
exclusivamente ao Poder Legislativo dentro das funções a ele atribuídas, o que, de
certa forma, vem traçar mais fortemente o esboço do princípio da legalidade em sua
concepção de certeza da lei penal na forma celebrada na atualidade.
A preocupação, neste momento, reflete a mesma que motiva a formulação da
Lex Certa por Feuerbach, v.g., a necessidade de se celebrar uma justiça penal sobre
bases verdadeiramente transparentes, firmando a segurança jurídica da aplicação da lei
penal e estabelecendo a barreira protetora do indivíduo frente ao poderio punitivo do
Estado, revelando ainda, preocupações com a função preventiva geral da lei penal ao
possibilitar ao destinatário da norma a correta intelecção do binômio lícito/ilícito,
9 Em tradução livre: “Um fundamento em que ainda hoje se baseia o princípio da legalidade reside em um postulado central do liberalismo político: a exigência de vinculação do executivo e do Poder Judiciário a leis formuladas de forma abstrata. A burguesia em seu enfrentamento com o absolutismo, havia conseguido a importante conquista de que os governantes e os juízes (menos dependentes daqueles) não poderiam exercer o poder punitivo a seu livre arbítrio (e em seu caso arbitrariamente), senão só na medida em que há uma clara precisão legal daquele poder.” (ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, tomo I, Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. PEÑA, Diego-Manuel Luzón. CONLLEDO, Miguel Díaz y García. REMESAL, Javier de Vicente (tradução). Madrid: Civitas, 2007, p.144)
9
permitindo assim, a adequação de suas condutas de acordo com as reprovações
esculpidas na legislação penal. Montesquieu ainda menciona neste sentido que:
“...Entretanto, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a um tal ponto, que nunca sejam mais que um texto fixo da lei. Se representassem uma opinião particular do juiz,viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos que nela são assumidos.”10
Segundo Montesquieu, ao Juiz não era dada a tarefa de interpretar as leis,
sendo, portanto, apenas a “boca” que proclama o que foi previamente estabelecido
pelo legislador através da confecção do texto da lei. Ao legislador, portanto, cabia a
análise da gravidade da conduta incriminada e a sua modulação, com a atribuição de
uma pena correspondente dentro de uma proporcionalidade baseada no
estabelecimento da maior ou menor reprovação social de uma conduta eleita como
merecedora dessa sanção penal:
“Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse em certos casos muito rigorosa. Porém, os juízes da nação não são, conforme já dissemos, mais que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta lei não podem moderar nem a força nem o rigor. É, pois, a junta do corpo legislativo que, em uma outra ocasião, dissemos representar um tribunal necessário, e que aqui também é necessária; compete à sua autoridade suprema moderar a lei em favor da própria lei, pronunciando-a menos rigorosamente do que ela.”11
No mesmo período, Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, consolidou em
sua obra os fundamentos sobre os quais se construiu o Direito Penal moderno, através
da formação do dito movimento de reforma humanitário, que possuía como principal
escopo o respeito a personalidade humana. A projeção das idéias esculpidas em “Dos
Delitos e das Penas” alcançou de forma imediata algumas codificações penais de
países da Europa.12
10 MONTESQUIEU, barão de (Charles-Louis de Secondant). O Espírito das Leis. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 167 11 Ibid., p.172 12 Heleno Cláudio Fragoso, a respeito dos reflexos causados pela célebre obra de Beccaria na legislação penal européia do final Século XVI, e início do XVII, menciona que: “Tais idéias produziram prontamente resultados na legislação penal. Na Rússia, já em 1767, Catarina II, em suas Instruções dirigidas à comissão encarregada da
10
Sobre a necessidade de as disposições legais punitivas serem devidamente
constituídas sobre margens claras e precisas, cabe esclarecer que os primeiros
apontamentos firmados por Beccaria diziam respeito a preocupação de dar uma
resposta imediata ao poder ilimitado atribuído aos juízes da época, que aplicavam
arbitrariamente a lei, sem que a ela fosse atribuída qualquer limite interpretativo.
No entanto, os dogmas lançados no séc. XVIII continuam atuais nos termos
em que se traduzem em garantias do indivíduo frente ao Estado. Mister se faz,
portanto, as afirmações consolidadas eternamente na famosa obra de Beccaria no
sentido de que “se a arbitrária interpretação das leis constitui um mal, a sua
obscuridade o é igualmente, pois precisam ser interpretadas. Tal inconveniente ainda é
maior quando as leis não são escritas em língua comum.”13
A insegurança jurídica das decisões judiciais, causada pela interpretação
realizada pelo julgador sobre alicerces legais imprecisos e incertos, foi duramente
atacada por Beccaria, que em outra passagem de sua consagrada obra, deixa claro a
sua preocupação com a amplidão de entendimentos possíveis aplicados a uma mesma
lei, o que seria a negação da existência do próprio dispositivo como elemento fixador
da norma. Fato este que seria comumente aferido quando diferentes juízes estivessem
imbuídos da tarefa de analisar e valorar um mesmo caso concreto, avessos a qualquer
silogismo entre a norma e a conduta a ser imputada como criminosa:
“Cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou da má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, da reunião de todas as pequenas causas que modificam as aparências e transmudam a natureza dos objetos no espírito mutável do homem.”14
elaboração de um novo código penal, as acolhe integralmente. A influência da obra de Beccaria aparece no código promulgado por Leopoldo II, da Toscana, em 1786, no qual foi abolida a pena de morte e a tortura, limitando-se o arbítrio judicial e mitigando-se as penas. Frederico, o Grande, na Prússia, segue também as novas idéias, o mesmo ocorrendo com José II, da Áustria, com sua lei penal de 1787, aprimorada pelo Código promulgado em 1803. Em França, com a Revolução Francesa, surgem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, bem como os códigos penais de 1791 e 1810. Este último, ainda em vigor, veio a exercer notável influência na legislação penal do século passado.” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições... p. 42) 13 BECCARIA, Marquês de (Cesare Bonesana). Dos Delitos e das Penas. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 24 14 Ibid., p. 22
11
Dessa forma, o movimento das luzes preconizado pelos fundamentos lançados
a partir das obras citadas que marcaram, em definitivo, a história da Teoria Geral do
Estado e do Direito Penal, baseado em autores revolucionários como Montesquieu e
Beccaria, condenava a utilização pelo magistrado de qualquer sentido diverso daquele
expressamente trazido pela lei quando do julgamento, ante a análise do caso concreto.
Não seria permitido ao julgador valorar o caso concreto emitindo o posterior
juízo sobre a maior ou menor gravidade da conduta. Esta era a tarefa na qual o
julgador não se imiscuía, cabendo apenas ao legislador, como se “tribunal” fosse,
conforme menciona Montesquieu na passagem de sua magistral obra supra transcrita.
Enfim, a tarefa do magistrado, traduzia-se unicamente em subsumir o fato à norma
penal incriminadora15, praticando um perfeito silogismo entre ambos.
Segundo o magistral Nelson Hungria, a subtração do princípio da taxatividade
do ordenamento jurídico-penal seria fator desencadeante de inevitável insegurança
jurídica ao destinatário da lei penal, pela ilimitada discricionariedade atribuída ao
julgador:
“Com a abolição do sistema de enumeração taxativa dos crimes ou com a licença para o arbitrium judicis ou a analogia na incriminação de fatos e irrogação de penas, não poderia ser coibida, nos seus requintes e caprichos, a sensibilidade ético-social dos juízes criminais, que seriam naturalmente levados à hipertrofia funcional, pois este é o destino fatal de todo poder incontrolado ou de imprecisas linhas de fronteira. O indivíduo passaria a viver em constante sobressalto, sempre na iminência de se ver sujeito à reação penal por fatos cuja antissocialidade escapasse ao seu mediano senso de ajustamento à moral ambiente.”16
15 Em relação a estas vedações impostas pelo iluminismo e seu momento histórico, importantes se fazem os ensinamentos de Claus Roxin no sentido de que “Actualmente hay un acuerdo unánime en el sentido de que esa concepción mecanicista del juez es impracticable. Todos los conceptos que emplea la ley (con excepción de las cifras, fechas, medidas y similares) admiten en mayor o menor medida varios significados. (...) el juez siempre tiene que eligir entre diversas posibilidades de significado, y esa actividad creadora que se realiza según determinadas reglas es lo que se denomina interpretación”. Em tradução livre: “Atualmente há um acordo unânime no sentido de que essa concepção mecanicista de juiz é impraticável. Todos os conceitos que a lei emprega (com exceção das cifras, datas medidas e similares) admitem em maior ou menor medida vários significados. (...) o juiz sempre tem que eleger entre diversas possibilidades de significado, e essa atividade criadora que se realiza segundo determinadas regras é o que se denomina interpretação.” (ROXIN, Claus. Derecho Penal…p.148) 16 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v.1, p.16
12
Com base nestas premissas, conclusivas são as observações de Luiz Regis
Prado a respeito da função garantidora das liberdades individuais, representada pelas
linhas exógenas observadas do princípio da taxatividade:
“Procura-se evitar o arbitrium judicis através da certeza da lei, com a proibição da utilização excessiva e incorreta de elementos normativos, de casuísmos, cláusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos. O princípio da taxatividade significa que o legislador deve redigir a disposição legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico (lex certa). Tem ele, assim, uma função garantista, pois o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante constitui autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade.”17
Deste entendimento firmado sobre os dogmas do iluminismo é que se fixou,
pela primeira vez, a função de garantia do princípio da taxatividade, isto é, garantiu-se
ao indivíduo que conhecesse, previamente e de forma suficientemente consciente, a
conduta merecedora da sanção penal, estabelecendo, ainda, a obrigatoriedade de o juiz
observar e aplicar o perfeito silogismo entre o estabelecido na lei e o fato punível,
impedindo-o de atribuir falsos sentidos à norma, fazendo juízos de valor a respeito da
lei penal de acordo com sua discricionariedade e sob a influência de suas impressões
pessoais e conhecimento de mundo, o que, sem dúvida alguma, sempre implica na
substituição do legislador pelo magistrado, e na formação de decisões judiciais
arbitrárias, desproporcionais e desapegadas dos aspectos inerentes a formação da culpa
do acusado da prática de crime.
2.2. A “Escola Clássica”, a consagração do Princípio da Legalidade e a sua função
preventivo-geral.
As idéias de cunho liberal firmadas pelo movimento iluminista ganharam
ainda mais força com a chamada “Escola Clássica”18. Tal movimento doutrinário é
representado por uma gama de importantes doutrinadores e pensadores, figurando
17 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 6.ed. São Paulo: RT, 2006, v.1 p.133 18 Segundo Heleno Cláudio Fragoso em suas Lições “não existiu realmente uma Escola “Clássica” Este nome foi dado pelos positivistas, com certo sentido pejorativo, a toda a atividade doutrinária dos juristas que os antecederam (Jimenez de Asúa). Dificilmente, porém, será possível reunir tais juristas sob um corpo de doutrina comum, em relação ao direito punitivo e aos problemas básicos do crime e da pena.” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições... p.42).
13
entre eles, Romagnosi, Bentham, Kant, Hegel e Carrara. Porém, nenhum deles
manifestou de forma mais clara os postulados do princípio da legalidade do que Paul
Johann Anselm Ritter Von Feuerbach.
Como bem assevera Nilo Batista, as obras de Feuerbach não vislumbram as
fórmulas latinas genéricas baseadas no nullum crimen nulla poena sine lege. Esta
consagrada formulação, em verdade, é decorrente de outros articulados constantes das
obras do consagrado autor alemão promulgadas pelas expressões nulla pena sine lege,
nullum crinem sine poena legali e nulla poena (legalis) sine crimine19.
Destaca-se nesse período, a preocupação da doutrina com a função
preventivo-geral da lei penal, o que agregou ao princípio do nullum crimen nulla
poena sine lege certa a função de estabelecer o canal de comunicação entre a conduta
proibida pelo Estado e a intimidação do indivíduo, destinatário da lei penal, no sentido
de coagi-lo a não praticar as condutas descritas nos verbos dos tipos legais
incriminadores.
Dessa forma, o princípio da taxatividade é reconhecido por outra função a ela
essencial, v. g., a função de informar de forma precisa ao destinatário da norma, as
condutas proibidas dentro da idéia inerente ao contratualismo de que o que não é
proibido é permitido. Segundo as idéias advindas do contratualismo, as condutas
permitidas pertenceriam a um arcabouço de direitos intrínsecos à pessoa humana que,
portanto, não dependeriam de qualquer outorga do Estado ao indivíduo a título de
autorização de seu exercício.
Feuerbach traduziu a doutrina da função preventivo-geral na teoria da coação
psicológica da lei e da pena criminal. Nesta consagrada teoria a pena exerceria típica
função pedagógica, uma vez que, quando da sua aplicação, simbolizava a expurgação
pelo Estado de uma dada conduta praticada pelo destinatário da norma que,
conhecedor da reprovação legal, ainda assim praticasse o núcleo do tipo. Do
entendimento da teoria da coação psicológica como mera concepção de teoria da pena,
parte a lição do saudoso Nelson Hungria, destacando a função preventivo-geral da
pena tomada em si mesma dentro do contexto do princípio da legalidade: 19 BATISTA, Nilo. Op. cit., p.66
14
“Com a eliminação do nullum crimen, nulla poena sine lege, estará truncado um dos próprios fins políticos da pena, qual o da prevenção geral (ou da coação psicológica, segundo a fórmula de Feuerbach), pois seria asburdo cogitar-se do caráter preventivo de penas sem o memento de expressos textos legais, isto é, penas que não se conhecem, a serem editadas para fatos ainda não definidos como crimes para ciência e governo dos cidadãos.”20
De outra forma, o jurista espanhol Enrique Bacigalupo, em consagrada obra
acerca da parte geral do Direito Penal, sintetiza o conceito e alcance da teoria da
coação psicológica de Feuerbach para além da pena em si, abrangendo também a
própria função informativa da conduta desencadeadora do mal maior consubstanciada
na lei penal, mencionando que:
“...la ley penal debía preceder a la acción delictiva porque de esta manera podía la pena cumplir su función preventiva, es decir, inhibidora del impulso delictivo. ‘Por lo tanto’, decía Feuerbach, ‘las transgresiones se impiden se cada ciudadano sabe con certeza que la transgresión será seguida de un mal mayor que aquel que correspondería a la no satisfacción de la necesidad mediante la acción’ (delictiva). De allí se deduce que la ‘conexión del mal con el delito tiene que ser amenazada en una ley’. ‘El fin de la ley y de la amenaza contenida en ella es, por tanto, la intimidación dirigida el hecho condicionado por la pena’.”21
Neste sentido, importantes se fazem as lições do jurista alemão Günther
Jakobs, ao mencionar que não constitui a teoria da coação psicológica de Feuerbach
uma teoria da pena, propriamente, mas sim relacionada também diretamente com os
dispositivos primários das leis penais. Neste sentido, o autor menciona que “La
formulación más conocida de las teorías de la prevención general negativa se debe a
Feuerbach, pero no como teoría de la pena, sino de la conminación penal mediante leyes
penales (teoría de la coacción psicológica)”.22
20 HUNGRIA, Nelson. Comentários... v.1, p.25 21 Em tradução livre: “...a lei penal devia preceder a ação delitiva porque desta maneira podia a pena cumprir sua função preventiva, quer dizer, inibidora do impulso delitivo. ‘Portanto’, dizia Feuerbach, ‘as transgressões se impedem se cada cidadão sabe com certeza que a transgressão será seguida de um mal maior que aquele que corresponderia a não satisfação da necessidade mediante a ação’ (delitiva). Disso se deduz que ‘a conexão do mal com o delito tem que ser ameaçada em uma lei’. ‘O fim da lei e da ameaça nela contida é, portanto, a intimidação dirigida à ação condicionada pela pena’.” (BACIGALIPO, Enrique. Op. cit., p.33) 22 Em tradução livre: “A formulação mais conhecida das teorias da prevenção geral negativa se deve a Feuerbach, mas não como teoria da pena, senão da cominação penal mediante leis penais (teoria da coação psicológica)” (JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte General, fundamentos y teoría de la imputación. Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzales de Murillo (tradução). 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997, p.26)
15
Também se perfila a este entendimento o ilustre professor da Faculdade de
Direito de Munich, Claus Roxin, que fazendo um paralelo com a função preventivo-
especial da pena, conclui que a prevenção geral, em verdade, se materializa em
momento anterior ao estabelecimento de uma pena a um dado tipo legal incriminador:
“...la prevención general tiene una relación mucho menos estrecha con la pena que la prevención especial. Y es que le prevención especial – por lo menos en un Estado de Derecho – siempre está vinculada a un delito ya cometido y a un autor concreto. Ella se realiza, entonces, de manera exclusiva en la reacción estatal a los delitos. En cambio, la prevención general siempre quiere ser efectiva ya antes de la comisión de los delitos e impedirlos en lo posible desde el principio.”23
A aplicação da pena representava, portanto, um exemplo de conduta a ser
desprezado pelo destinatário da lei penal em sua aplicação pedagógica. Porém, mesmo
antes da aplicação da pena, só se tornaria eficaz a esperada coação psicológica se
baseada em exemplos de condutas não só previamente estabelecidas em lei, mas,
necessariamente, estabelecidas de forma clara e precisa em expressões suficientemente
inteligíveis aos destinatários da lei penal, relativamente às condutas que efetivamente
seriam proibidas e merecedoras da sanção. Dessa maneira, tendo o claro conhecimento
de quais condutas implicariam na persecutio criminis do Estado e a conseqüente
aplicação da pena estabelecida, o indivíduo, ressentindo-se dos seus efeitos, tenderia a
evitá-las.
Segundo assevera Jakobs, ainda sobre a famosa teoria da coação psicológica,
há de ser destacado que Feuerbach entendia que todas as contravenções penais
surgiriam da “sensualidade”, entendida como o “apetite do homem” por se ver
impulsionado a comissão da prática delitiva pelo simples prazer da ação. Ao Estado
caberia tão somente “neutralizar o estímulo sensorial através de outro estímulo
sensorial”. Esta resposta do Estado às necessidades inerentes ao homem seria
representada por um mal maior e imposto consubstanciado na pena criminal. Dessa
23 Em tradução livre: “...a prevenção geral tem uma relação muito menos estreita com a pena do que a prevenção especial. E é que a prevenção especial- pelo menos em um Estado de Direito – sempre está vinculada a um delito já cometido e a um autor concreto. Ela se realiza, então, de maneira exclusiva na reação estatal aos delitos. Em troca, a prevenção geral sempre quer ser efetiva antes da comissão dos delitos e impedi-los na medida do possível desde o princípio.”(ROXIN, Claus. La teoria del delito em la discusión actual. Manuel A. Abanto Vásques (tradução). Lima: Editora Jurídica Grijley, 2007, p. 80)
16
forma, conclui o autor que “La efectividad concorde del poder legislativo y ejecutor
con el fin de intimidar desalentando constituye la coacción psicológica”24
Assim, a função preventivo-geral da lei penal, em verdade, parte não só da
aplicação em concreto da pena, mas também de toda forma de informação e intelecção
por parte do destinatário da lei penal, acerca das condutas eleitas pelo Estado como
violadoras de bens jurídicos e dos efeitos decorrentes do cometimento dessas condutas,
efeitos estes simbolizados pelas penas aplicadas. Neste sentido, menciona o exímio
jurista português Jorge de Figueiredo Dias, em consagrada obra de processo penal, que
“o princípio da legalidade defende e potencia o efeito de prevenção geral que está e
deve continuar ligado não unicamente a pena, mas a toda a administração da justiça
penal”25.
Destarte, conclui-se que uma das funções inerentes ao princípio da
taxatividade, tida como variante do princípio da legalidade, consubstancia-se
exatamente na potencialidade que o tipo legal incriminador, formulado sobre bases
literais suficientemente certas e precisas, possui em relação a intimidação do
destinatário da lei penal, v.g., sabedor de quais condutas são verdadeiramente
alcançadas pelo Direito Penal. Assim, o indivíduo antes mesmo de visualizar os seus
efeitos penais, já os teme, pelo simples fato de reconhecer que sua conduta constitui
crime.
Sobre a teoria da coação psicológica de Feuerbach e a sua vinculação às
formulações de leis claras e precisas em conformidade, destarte, com o princípio da
taxatividade, ensina Claus Roxin que:
“...Feuerbach, no sólo ideó la formulación, que sigue siendo usual aún hoy, nulla poena sine lege, sino que le añadió una fundamentación autónoma partiendo de la teoría de la pena, a saber: si el fin de la conminación penal consiste en la intimidación de potenciales delincuentes, la determinación psíquica que se pretende sólo se puede lograr si antes del hecho se fija en la ley del modo más exacto posible cuál es la acción prohibida; pues se falta una ley previa o ésta es poco clara, no se podrá producir el efecto intimidatorio, porque nadie sabrá si su conducta puede acarrear una pena o no.”26
24 Em tradução livre: “A efetividade conforme do poder legislativo e executivo com o fim de intimidar desalentando constitui a coação psicológica”. (JAKOBS, Günther. Op. Cit., p.26). 25 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra, 2004, p.128 26 Em tradução livre: “...Feuerbach não só idealizou a formulação, que segue sendo usual ainda hoje, nulla poena sine lege, senão que lhe acrescentou uma fundamentação autônoma partindo da teoria da pena a saber: se o fim
17
Portanto, só se pode falar em efeito intimidativo da lei penal, se antes do
estabelecimento da pena, houver uma lei penal clara e precisa capaz de informar a seus
destinatários as condutas efetivamente reprovadas e que acarretarão a persecução penal
estatal. Não existiria qualquer ultimato do Estado para com os destinatários da lei
penal, se mesmo com duríssimas penas, uma dada lei não estabelecesse, de forma clara
e inteligível, quais as condutas que gerariam o “mal maior” representado pela pena.
Dessa forma, notório é o raciocínio que conclui ser ilógico temer os efeitos sem antes
saber o que pode causá-los.
2.3. A supressão do princípio da taxatividade como forma de manutenção dos
modelos de Estado autoritários contemporâneos.
Por diversas vezes na história, o princípio da taxatividade foi suprimido pelo
Estado em decorrência da legitimação de ideários políticos de viés autoritário, que
procuravam modular o conceito de crime, ou que criavam novas infrações penais
através de expressões semânticas desprovidas de qualquer precisão e certeza,
possibilitando a imposição da força punitiva estatal de acordo com os interesses
políticos predominantes, e servindo a qualquer motivação como impulso
desencadeador da persecução penal e aplicação da sanção penal em perseguição aos
reconhecidos como “inimigos do regime”.
Porém, há de ser notado que após a fixação das bases do princípio da
legalidade no Direito Penal pós movimento iluminista, segundo afirma Heleno Cláudio
Fragoso, o desaparecimento do princípio da legalidade sob as bases do princípio da
taxatividade das legislações que adotam o modelo de Estado de Direito Ocidental “é
puramente episódica”27.
da cominação penal consiste na intimidação de potenciais delinqüentes, a determinação psíquica que se pretende só se pode lograr se antes do ato se fixe na lei de modo mais exato possível qual é a ação proibida; pois se falta uma lei prévia ou esta é pouco clara, não se poderá produzir o efeito intimidatório, porque ninguém saberá se sua conduta pode acarretar uma pena ou não.” (ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p.146) 27 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Observações..., p.4
18
Nota-se que a não reprodução dos preceitos advindos do princípio da
legalidade no ordenamento jurídico de determinados países acompanhou a rampante
inclinação pela ordem política totalitarista que marcou grande parte dos países no
início do século XX, e que só apresentou algum declínio na Europa com o final da
Segunda Guerra Mundial, sendo este, por outro lado, o marco histórico inicial das
famigeradas ditaduras militares firmadas nos países da América Latina após a primeira
metade do Século XX. Assim, citam-se como exemplos históricos dessa legislação de
ocasião, o conceito de crime estabelecido pelo regime nazista, a lei penal do Estado
soviético e, no Brasil, a Lei de Segurança Nacional.
A Lei Complementar de 28 de junho de 1935 inseriu o § 2º no StBG (Código
Penal Alemão), evidentemente criado para a legitimação do poderio do Estado nazista
através da lei penal, vez que tal dispositivo definia o conceito de crime então vigente,
estabelecendo que
"É punido quem pratica uma ação que a lei declara punível ou que merece punição segundo o conceito básico de uma lei penal e uma sã consciência do povo. Se nenhuma lei determinada pode se aplicar diretamente ao fato, este será castigado conforme a lei cujo conceito básico melhor corresponder"28
Assim, reconhece-se no conceito de crime da Alemanha nazista, o
reconhecimento do princípio da legalidade, no sentido da anterioridade da lei penal
como primeiro eixo punitivo. Já o uso ilimitado da analogia incriminadora e a total
desconsideração do princípio da taxatividade ao prescrever o desrespeito ao “são
sentimento do povo alemão” como determinante à verificação de fato que merecesse a
intervenção penal do Estado, figura como, o segundo eixo que possibilitava a
aplicação da punição.
Hans Welzel, ao discorrer sobre a história do Direito Penal alemão, em
capítulo de seu consagrado manual menciona que:
“El primer paso hacia la ruptura con la tradición europea continental – después que Rusia ya en 1917 había abolido el principio nulla poena – fue la ley complementaria de 28 de junio de 1935. Ella posibilitaba, junto a la punición legal, también una extralegal de acuerdo al
28 HUNGRIA, Nelson. Comentários..., v.1, p.20
19
‘sano sentimiento del pueblo’; sin embargo, de todos modos ligada a la idea básica de una ley penal.”29
Assim, qualquer ato entendido como ofensivo ao “são sentimento do povo
alemão” era considerado como crime autônomo aveso a qualquer legalidade quanto ao
prévio estabelecimento da conduta ou da pena, e ainda, quanto à comunicação ao
destinatário da lei penal de quais condutas eram de fato reprovadas por este
mandamento. Seria entendido como contrário a esse “são sentimento do povo”,
obviamente, qualquer conduta que contrariasse os ditames do nacional-socialismo, ou
que representasse qualquer óbice aos objetivos aquilatados pelo Führer e o partido
nazista, abandonando, dessa forma, “en gran medida las conquistas impuestas desde la
Ilustración”, conforme bem assevera Claus Roxin30. Em verdade, como ensina Nelson
Hungria, representava ofensa ao são sentimento do povo alemão o que o Führer assim
qualificasse, afirmando que no Estado alemão sob o controle do nazismo
“Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘o novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo (Volksempfinder), depreendidos e filtrados , não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui o leão mostra a garra...) segundo a revelação (Kundmachung) do Führer. Schaffstein, professor de direito em Leipzig, proclama, sem rodeios, do alto de sua cátedra: ‘A lei é o que o Führer ordena’ (‘Gesetz ist, was fer Führer befiehlt’).”31
O vaporoso conceito, com sua infinidade de sentidos possíveis para a
expressão “são sentimento do povo”, simboliza um dos maiores exemplos de
desrespeito ao princípio da lex certa de que se tem notícias na história, até mesmo
pelos efeitos nefastos decorrentes da aplicação desse dispositivo legal pelos tribunais
nazistas ao tempo da Segunda Grade Guerra.
Em relação a lei do Estado soviético, menciona-se que a revolução
bolchevique deu origem ao conceito material de crime identificado como ação
29 Em tradução livre: “O primeiro passo feito à ruptura com a tradição européia continental – depois que a Rússia já em 1917 havia abolido o princípio nulla poena – foi a lei complementar de 28 de junho de 1935. Ela possibilitava, junto a punição legal, também uma extralegal de acordo com o ‘são sentimento do povo’; sem embargo, de todos os modos ligada à idéia básica de uma lei penal.” (WELZEL, Hans.Op. cit., .24) 30 ROXIN, Claus. Derecho Penal…, p.143 31 HUNGRIA, Nelson. Comentários...,v.1, p.18
20
socialmente perigosa, isto é, ação contrária aos interesses da classe dominante, a classe
proletária.
O Código Penal soviético de 1922 estabelece em seu art.6º um conceito
material de crime que atendesse a esses interesses políticos, estabelecendo em seu
texto que “como delito deve ser considerada toda ação ou omissão socialmente perigosa, que
ameaça os princípios básicos da constituição soviética e a ordem jurídica criada pelo governo
dos operários e camponeses, para o período de transição ao Estado Comunista”32.
O Código Penal soviético de 1926 definia que “é socialmente perigosa toda a ação
ou omissão, que se dirija contra o sistema soviético ou atinja a ordem jurídica, que é instituída
pelo regime dos operários e camponeses, para o período de transição à ordem social
comunista”. Tal dispositivo ainda era acompanhado de ressalva que dispunha que “não se
apresenta como crime a ação que, embora realize as características formais de qualquer dos
artigos da Parte Especial deste código, não tenha caráter de socialmente perigosa, em virtude
de sua evidente insignificância e ausência de conseqüências danosas”33.
Em 1958, reformularam-se as bases sobre as quais se fixaria a política socialista na
União Soviética no evento conhecido como “XX Congresso do Partido Comunista”, o que
gerou reflexos também na lei penal que, no artigo 7º do Código Penal soviético, passou a
definir como crime:
“Crime é toda a ação ou omissão socialmente perigosa, prevista em lei, que se dirija contra a ordem social soviética ou a ordem estatal da sociedade soviética, o sistema econômico socialista, a personalidade, os direitos políticos, os direitos trabalhistas, os direitos de propriedade e os demais direitos do cidadão; bem como as demais ações socialmente perigosas previstas em lei penal, que atinjam a ordem jurídica socialista. Não será crime a ação ou omissão, ainda que formalmente tenha as características de qualquer conduta prevista em lei penal, se, em virtude de sua insignificância, não apresentar qualquer perigo social.”34
O que há de comum nos três conceitos de crime que serviam de premissa à
aferição do fato punível no Direito Penal soviético é sempre o fato de a conduta
criminosa ser necessariamente atrelada ao conceito de “socialmente perigosa”. Apesar
de a reforma institucional de 1958 ter carreado à lei penal o princípio da legalidade na 32 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Apontamentos sobre o conceito de crime no direito soviético. In: Revista brasileira de criminologia e direito penal. n. 5. Rio de Janeiro: Instituto de Criminologia da Universidade do Estado da Guanabara. 1964, p.67 33 Ibid., p.68 34 Ibid., p.69
21
sua concepção de anterioridade da lei penal, há de se observar que não se acompanhou
a tendência em relação ao princípio da taxatividade. Esta afirmação é verdadeira, pois
a expressão “socialmente perigosa” não possui qualquer significado se tomada em seus
próprios termos.
Há de ser notado que conduta socialmente perigosa pode ser qualquer conduta
possível e imaginável em face das diversas tábuas de valores sociais que compõem a
sociedade. Como exemplo, pode-se dizer que seria socialmente perigoso, levando-se
em conta a tábua de valores de uma hipotética comunidade de pescadores, o fato de se
deixarem ao abandono anzóis, malhas de rede e outros equipamentos próprios à prática
da pesca, e potenciais causadores de lesões corporais, nas beiras de rios, lagos e praias,
bem como seria socialmente perigoso, de acordo com a tábua de valores de uma
comunidade de cozinheiros, deixar uma panela no fogo, ou alimentos a descoberto,
etc. Se tais fossem as classes sociais dominantes, em um Estado cuja a lei penal fosse
baseada sobre o conceito indeterminado de “periculosidade social”, muito
provavelmente tais condutas, para nós irrelevantes, seriam tidas como crimes
altamente reprováveis.
Porém, o uso de tal conceito indeterminado no Estado soviético, vinha, por
óbvio, para legitimar a política autoritarista que se justificava em apoio à almejada
transição do capitalismo ao comunismo, iniciada com a revolução bolchevique de
1917. Nesse sentido, Heleno Cláudio Fragoso, enfrentando o tema do conceito
material de crime na lei penal soviética, é categórico ao dizer que:
“É evidente que a periculosidade social é encarada em termos de conveniência política e segundo os interesses do partido e do grupo dominante, que fala em nome da classe trabalhadora. Piontkowski afirmava que a periculosidade social não é mais do que a simples caracterização política geral do crime. Aqui, realmente, aparece a marca significativa do direito penal socialista. A periculosidade social deve ser considerada de acordo com a ‘consciência jurídica socialista’ (sizialistischen Rechtsbewusstsein), devendo o conceito material de crime ser aplicado tendo por base a consciência de classe como princípio geral (Klassenbewusstsein als Generalklausel).”35
Assim, por se embasarem sobre elementos normativos totalmente moduláveis
de acordo com os interesses das políticas dominantes, interpretada pelo grupo 35 Ibid., p.71
22
totalitarista de acordo com as conveniências da manutenção e fortalecimento do poder,
é que tanto a lei penal do nacional-socialismo quanto a lei penal do Estado soviético
não foram capazes de corresponder ao preceito garantista do cidadão frente ao Estado,
consubstanciado no princípio da taxatividade, o que representa a própria negação in
totum do modelo de Estado liberal do Iluminismo, mas que, de outra forma, atendia
fielmente aos ditames do regime ditatorial, legitimando quaisquer práticas no sentido
de manutenção da ordem política então vigente.
Nelson Hungria destaca com maestria o significado da substituição dos
valores individuais consubstanciados no Estado liberal, conquista atribuída ao
Iluminismo, e o que representava o indivíduo nos exemplos de Estado totalitário
citados, demonstrando que a massificação proposta pelos ideários comuns marxistas,
em verdade, constituiu ponto de apoio sobre o qual se pontuou o rompimento com o
princípio da taxatividade, na medida em que, passa ser definido como crime, o que
efetivamente significam ofensas aos valores sociais impostos à massa pelo ente central
de poder:
“Na Rússia soviética, proclama-se que o individuum é o mal e deve ser combatido, anulado, subvertido da massa, que significa o povo reduzido a um vasto aglomerado de produtos humanos estandartizados, erradicados de alma, confundidos na desolante mesmice de ‘modelos de fábrica’. Na Alemanha nacional-socialista, ao invés do ideal marxista da massa, fala-se, para servir ao ferrenho antiindividualismo de Hitler, no interesse do povo, que é defendido como ‘comunhão indissoluvelmente ligada pelo sangue e pelo território’ ou como ‘única grandeza política’, de que o Estado é forma natural; mas o resultado é o mesmo: o indivíduo reduzido à expressão mais simples. Embora com fundamentos diferentes, chega-se, na Rússia e na Alemanha, a uma fórmula idêntica. ‘Não há direitos individuais em si mesmos’.”36
Fragoso, em comento a lei penal soviética, estabelece o paralelismo entre esta
e a lei do Estado nazista, ao discorrer sobre a finalidade intrínseca da vaporosa lei
analisada como sustentáculo do regime totalitário soviético:
“Em conclusão ao que ficou exposto, podemos afirmar que a concepção material de delito penetrou no Direito Penal soviético pela porta estreita da simples conveniência política da revolução. Foi inspirada numa concepção puramente utilitarista da ordem jurídica, inteiramente alheia ao fundamento ético que lhe dá o ideal de Justiça. A orientação legislativa que parece beneficiar o réu é anulada, por um lado, por opiniões equívocas e contraditórias, como as de Durmanow e Gerats, e, por outro lado, pela subordinação à
36 HUNGRIA, Nelson. Comentários...,v.1, p.17
23
chamada consciência jurídica socialista, fórmula que não pode deixar de lembrar-nos a do ‘são sentimento do povo alemão’, posta a circular pelo nacional-socialismo. Único intérprete dessa consciência jurídica socialista é o partido que domina o Estado totalitário.”37
Dessa forma, quando se fez necessário, a quebra do Estado com o princípio da
taxatividade da lei penal foi o “mero luxo de prepotência”, a que se refere o mestre
Nelson Hungria38, sendo largamente utilizada para lastrear os tipos legais
incriminadores então criados sobre elementos normativos desprovidos de qualquer
sentido lógico, tipos penais abertos e elementos semânticos indeterminados.
Assim também ocorreu no Brasil, com a famigerada Lei de Segurança
Nacional (Decreto-Lei nº 898 de 29 de setembro de 1969), que entre nós, deu o suporte
jurídico necessário à ditadura militar que marcou vergonhosamente a história brasileira
de 1964 a 1981. A respeito, Heleno Cláudio Fragoso, o autor que, sem dúvida
nenhuma, mais se dedicou ao tema, observa que “a Lei de Segurança Nacional surgiu
em momento de crise institucional, como expressão de um suposto direito penal
revolucionário, inspirada por militares, que pretenderam incorporar na lei uma
doutrina profundamente antidemocrática e totalitária”39, ainda que o princípio da
legalidade tenha tido assento obrigatório em todas as nossas constituições desde a
Carta Política do império de 1824, conforme ensina Nelson Hungria “No Brasil
independente, o nullum crimen, nulla poena sine lege tem sido, tradicionalmente, um
princípio constitucional e uma norma de direito penal”40.
A reforma do Decreto-Lei nº 898/69 deu origem a Lei de Segurança Nacional
ainda vigente (Lei 7.170 de 14 de dezembro de 1983), que mantém em seu texto tipos
penais abertos e indeterminados herdados do antigo texto repressivo que, conforme
assevera Fragoso, “vinha sendo aplicada pela Justiça Militar de forma draconiana, com
observação estrita da doutrina de segurança nacional, o que possibilitava a perseguição
de pessoas que se manifestavam contra o Governo, por fatos que nada tinham a ver
com a segurança do Estado”, concluindo ao dizer por fim que, por estes motivos, “a
37 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Apontamentos..., p.73 38 HUNGRIA, Nelson. Comentários...,v.1, p.22 39 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Para uma interpretação democrática da Lei de Segurança Nacional. Disponível em: <http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/heleno_artigos/arquivo39.pdf >. Acesso em: 7 de out. 2008, p.1 40 HUNGRIA, Nelson. Comentários...,v.1, p.39
24
substituição da lei de segurança havia se tornado inadiável”41. Porém, Fragoso
confirma que a Lei 7.170, que inicialmente teria representado um grande avanço do
Estado Democrático brasileiro à época, na verdade reproduzia o defeito irremediável
da inconstitucionalidade pelo descumprimento do princípio da taxatividade, afirmando
que “a definição vaga de certos delitos, que apareceu na nova lei, é um sinal de que a
doutrina na segurança nacional subsiste”42.
Assim, o autor carioca cita as expressões “sabotagem”, “terrorismo”, “paz
social” e “prosperidade nacional” como exemplos desses conceitos indeterminados
que ferem de morte o princípio da legalidade concebido como Lex certa, e que
permearam as leis de segurança nacional desde o Decreto Lei de 1969. Ora, não há
como negar que tão só pela vagueza das expressões, mas também pela total ausência
de correspondentes no Código Penal, torna-se impossível qualquer aferição de plano
de quais condutas constituiriam atos de “sabotagem”, “terrorismo”, ou que sejam
capazes de opor obstáculos aos objetivos nacionais positivados na lei de segurança
nacional, simbolizados pelos conceitos de “paz social” e “prosperidade nacional”43.
Dessa forma, Fragoso afirma, categoricamente, em um de seus vários textos
dedicados ao combate às arbitrariedades advindas do regime militar legitimadas sobre
bases legais voláteis, exemplificando com conceito de “sabotagem”, que:
“Uma das críticas mais constantes que se tem feito às leis de segurança que estiveram em vigor desde 1967 é a do emprego de expressões vagas e indeterminadas, que atingem, como se sabe, o princípio da reserva legal. A palavra ‘sabotagem’ não tem significação técnica e não se sabe que atos a configurariam. Essa palavra também é empregada como nomen júris
41 FRAGOSO, Heleno Cláudio. A nova Lei de Segurança Nacional. Disponível em: <http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/heleno_artigos/arquivo32.pdf >. Acesso em: 7 de out. 2008, p.1 42 Ibid., p.2 43 Sobre estas duas últimas expressões menciona Fragoso que: “As referências à paz social e à prosperidade nacional podem levar à perplexidade. Que se entende por paz social? ROBERTO LYRA FILHO (‘O que é direito’, 1982, 50) diz que se chama de paz social a ordem estabelecida em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de classes e de grupos. Seja como for, se se entende por paz social a normalidade da ordem social estabelecida, é obvio que a criminalidade comum também atinge a paz social. Não podemos, portanto, ter um crime contra a segurança do Estado com a simples ofensa à paz social, pois isto nos levaria a considerar crimes contra a segurança nacional o homicídio, o latrocínio, o estupro e, inclusive, os simples crimes contra a honra. Isso seria um rematado despautério. Assim sendo, só é possível entender a ofensa à paz social como crime contra a segurança do Estado, se a ação for praticada com o propósito político-subversivo, pois só assim teremos ofensa aos interesses políticos da Nação. O mesmo se aplicaria nos casos de ofensa à prosperidade nacional.” (Fragoso. Para...p. 6)
25
de um crime contra a organização do trabalho. Todavia, no art. 202 CP comum, a palavra ‘sabotagem’ não aparece como forma de ação delituosa.”44
O art. 20 da Lei 7.170/83 incrimina as seguintes condutas, entre elas, a prática
de “atos de terrorismo”, o “saque” e a “depredação”:
“art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.”45
Dessa forma, o dispositivo legal transcrito representa, antes de tudo, um
festival de conceitos indeterminados que pouco ou nada significam em termos
intelectivos ao destinatário da norma. Lógico, por outro lado, que se pode atribuir a
estes conceitos algum significado ante um dado caso concreto, porém, conforme já
afirmado em tópico anterior, sem qualquer garantia de viabilidade de assegurar a
segurança jurídica das decisões como reflexo garantista da lei penal. Daí tornar-se
inconteste o fato de tais expressões infringirem o princípio da taxatividade, não
possibilitando qualquer aplicação prática, por outro lado, possível em um simples
Estado de Direito, pois certamente os regimes ditatoriais o eram, porém, jamais seria
aplicável dentro de um Estado Democrático e Direito.
Em comento ao malfadado art. 20 da lei de Segurança Nacional ainda vigente,
Heleno Cláudio Fragoso é peremptório em suas palavras:
“No art.20, onde se punem diversas ações heterogêneas, inclusive o terrorismo, encontramos uma das disposições mais defeituosas da lei. A definição legal do terrorismo apresenta dificuldades técnicas consideráveis, porque não há clara noção doutrinária do que ele significa. A nova lei é extremamente imperfeita, porque segue a linha casuística de nossas leis de segurança, misturando terrorismo com crimes violentos contra o patrimônio, com finalidade subversiva, que não constituem terrorismo. Por outro lado, a lei reproduz o defeito máximo das leis que têm estado em vigor, pretendendo definir o crime com a referência genérica ‘atos de terrorismo’. Isso numa lei penal é inadmissível, sobretudo porque não se sabe com segurança o que são atos de terrorismo.”46
44 FRAGOSO, Heleno Claudio. A nova Lei..., p.4 45 BRASIL. Lei 7.170 de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 15 de dezembro de 1983. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7170.htm>. Acesso em 02 de novembro de 2008. 46 FRAGOSO, Heleno Claudio. A nova Lei..., p.5
26
Dessa forma, a história tem mostrado nos momentos “episódicos” referidos a
título de exemplo, que a quebra do legislador com o princípio da taxatividade, dando
margem a decisões completamente ao dispor da discricionariedade do Julgador, no
sentido de considerar uma dada conduta como incursa ou não em um tipo legal
incriminador inscrito sobre alicerces imprecisos e incertos, veio, em verdade,
especialmente com o objetivo maior de socorrer interesses escusos ou
antidemocráticos, gerando inadmissível desigualdade entre os destinatários da norma
consubstanciadas em inadmissível insegurança jurídica.
O que se pode concluir é que, o asco causado pelas atrocidades lastreadas
nestas leis do autoritarismo, seria causa de afastamento de toda e qualquer
possibilidade em se ter repetidas nas leis que as sucederam os erros que deram origem
a estas anátemas do Estado Democrático de Direito. Porém, como se verá, não é isso
que se verifica na vigente ordem legal, e os ditos “tipos penais abertos” ainda
continuam a servir, circunstancialmente, a interesses completamente alheios às
garantias principiológicas das liberdades individuais, face ao poderio punitivo do
Estado.
27
“Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para indicar se esses atos são conformes à lei escrita, ou se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém, simples questão de fato, então se verão mais cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos, tanto mais intoleráveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; que se fazem tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram, pois a crueldade dos tiranos é proporcional, não a suas forças, porém aos entraves que lhes são opostos; e são tanto mais nefastos quanto não há quem possa libertar-se de seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.” (BECCARIA, Marquês de (Cesare Bonesana). Dos Delitos e das Penas. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2007, p.23)
3. A expressão “gestão fraudulenta” e a inconstitucionalidade do art.4º, caput da
Lei 7.492/86.
3.1. O art.4º, caput, da Lei 7.492/86 definido como tipo penal aberto. A análise do
tipo objetivo.
O art.4º, caput, da Lei 7492/86, define como criminosa a conduta de “gerir
fraudulentamente instituição financeira”. Contudo, não se pode esperar que tal ação, da
forma como é descrita, seja apta para estabelecer uma reprovação, sendo identificada,
portanto, como tipo legal incriminador.
Ocorre que, independentemente da legítima intenção do legislador em buscar
a efetiva proteção do bem jurídico “higidez da gestão das instituições financeiras e das
atividades daí decorrentes, com a conseqüente proteção do patrimônio da instituição
financeira e dos investidores”47, a forma pela qual se buscou essa tutela na Lei dos
Crimes Contra o Sistema Financeiro discorda dos princípios básicos de direito que
informam o dito Estado Democrático de Direito48.
47 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: Ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciária, lavagem de capitais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 179 48 Necessárias se fazem as observações do ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes e dos notáveis juristas Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco em comento ao princípio da legalidade: “A Constituição estabelece, no art.5º, XXXIX, que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Cuida-se do princípio da legalidade ou da reserva legal estrita em matéria penal. Assinala-se, ainda, o disposto no art. 5 º, XL, da CF/88, que prescreve que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” E continuam a insubstituível lição, citando o entendimento do distinto professor da faculdade de Direito de Coimbra, Jorge de Figueiredo Dias: “Essas disposições encontram fundamentos
28
A afirmação baseia-se principalmente na impossibilidade de uma verificação
clara de qual conduta é realmente reprovada a partir da expressão “gerir
fraudulentamente” trazida pelo referido art.449. Conforme se observa de plano,
imperativa se faz a forçada ligação do referido dispositivo com alguns poucos
dispositivos instalados no Código Penal, para que se tente estabelecer uma ponte capaz
de definir quais condutas poderiam ser entendidas como “fraudulentas”. Porém,
inexiste uma definição prévia, verificável em qualquer diploma legal, do que deva ser
entendido por “fraude” na atuação relativa à complexa gestão de uma instituição
financeira.
O entendimento da mencionada expressão legal só ganha sentido aplicável ao
caso concreto, quando da subsunção do suposto ato fraudulento, aferido como possível
crime financeiro, à norma descrita no tipo do art.4º caput. Tal aplicação é feita pelo
magistrado, que deve observar os fatos imputados ao agente acusado da pratica da
gestão fraudulenta de instituição financeira. Por esse motivo, tal conduta definida no
art.4º é determinada como tipo penal aberto, pois é o juiz quem o “fecha” no caso
concreto, declarando a conduta reprovável e merecedora da sanção penal.
Porém, como se observa, não houve por parte do legislador a preocupação em
direcionar o aplicador da lei, no sentido de orientar o que se pode entender por “gestão
fraudulenta”50, v.g., como tal “fraude” se operaria, uma vez que se trata de conceito
indeterminado que acarreta notória incerteza, pois muitos são os meios pelos quais um
vinculados à própria idéia do Estado, baseados especialmente no princípio liberal e nos princípios democrático e da separação de poderes. De um lado enuncia-se que qualquer intervenção no âmbito das liberdades há de lastrear-se em uma lei. De outro, afirma-se que a decisão sobre a criminalização de uma conduta somente pode ser tomada por quem dispõe de legitimidade democrática. Observa Jorge Figueiredo Dias que o princípio do nullum crimem nulla poena sine praevia lege, deixa-se fundamentar, internamente, com base na idéia de prevenção geral e do princípio da culpa. O cidadão deve poder distinguir, com segurança, a conduta regular da conduta criminosa, mediante lei anterior, estrita e certa”. In: MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.588 49 Nesse sentido leciona Roberto Podval: “Sobre o tema, nada mais caberia dizer em face da explícita inconstitucionalidade do art.4º da lei (por não trazer a norma a descrição da conduta passível de ser tipificada como fraudulenta ou temerária), não fosse o fato de que tal norma, a despeito do vício insanável, continua a ser aplicada”. In: PODVAL, Roberto. Crimes Contra o Sistema Financeiro. In: FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui (coords.). Leis penais especiais e sua interpretação especial. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.829 50 Segundo Manoel Pedro Pimentel “a falta de sistematização doutrinária de Direito penal econômico deixou um claro na relação que deve existir entre a dogmática e a práxis. Muita improvisação, muito ensaio experimental, muita incerteza acompanham a imperfeita formulação legislativa, males que persistem em os nossos dias” In: PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos tribunais, 1973, p. 42
29
agente pode executar a chamada fraude. Tantos são os meios e formas de se conjeturar
a sua ocorrência, que se poderia dizer que muitas “fraudes” não fazem parte do
arcabouço de condutas que interessam ao Direito Penal, sendo, portanto, impassíveis
de reprovação por parte do sistema punitivo do Estado. Nessa esteira, insuperável é a
lição de Nelson Hungria segundo o qual “É força reconhecer que há uma fraude
penalmente atípica, isto é desprovida daquele cunho de acentuada periculosidade
social que justifica a reação punitiva”51.
Por se tratar de fórmula extremamente genérica, a expressão “gestão
fraudulenta” padece de incontestável inconstitucionalidade, por afronta direta ao
princípio da legalidade na concepção de lex certa52 (art.5º, XXXIX da Constituição
Federal e art.1º do Código Penal). Observa-se que o princípio da legalidade vai de
encontro aos ditames de uma norma imprecisa e equívoca, por ofensa a sua variante
nullum crimen, nulla poena sine lege certa (Feuerbach), fundada em um Direito Penal
de garantia, e que significa que a lei penal deve ser dotada de derradeira clareza para
que possa ser aplicada e ter efetividade, caso contrário, padece de impossibilidade
reguladora, pois, sob sua orientação, sequer pode o destinatário da norma,identificar os
mandamentos negativos a ele dirigidos. Assim, conforme assevera Francisco de Assis
Toledo
“A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios. Para que a lei penal possa desempenhar uma função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só juristas.”53
51 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v.7. p.178 52 Notadamente, muito dos autores estudados não fazem diferenciação entre o princípio da reserva legal e o princípio da legalidade. Conforme assevera Uadi Lammêgo Bulos “...o princípio da legalidade não se separa do princípio da reserva legal. São sinônimos. Deveras a distinção entre ambos só procede de ponto de vista estritamene formal. No âmbito penalístico, não há porque fazermos tal distinção: a uma, porque tem sido utilizada largamente a terminologia reserva legal no mesmo sentido de legalidade. Inexiste, assim, justificativa para segregar expressões maturadas e desenvolvidas pela doutrina e pelos tribunais; a duas, porquanto a própria Constituição aproxima os termos nesse inciso XXXIX, que já contém em sua essência a idéia de reserva legal; a três, pois só no estudo genérico do pórtico da legalidade é possível fazer distinções, e, mesmo assim, com muito esforço, afinal o princípio da legalidade atinge todos os setores do fenômeno jurídico, não sendo peculiar a nenhum deles, porém comum a todos”. In: BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.251 53 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. Cit., p.29
30
Para João Marcelo de Araújo Júnior, o que acusa a inconstitucionalidade de
um dispositivo legal é a dificuldade probatória verificada na resolução do caso
concreto, decorrente da demasiada amplidão de um elemento normativo constante do
tipo penal. Nesse sentido, indaga o autor:
“A objetividade do tipo, entretanto, não deve chegar ao extremo das formulações amplas e gerais. Isto porque, além de violar o princípio da reserva legal, as chamadas ‘cláusulas gerais’ acabam por se transformar num obstáculo intransponível à capacidade probatória, pois quanto mais geral a cláusula constante da definição típica, mais fluído fica o seu conteúdo. Exemplo disso, que serve por todos, é o conceito de gestão fraudulenta constante da lei atual. Como provar a conduta se não sabemos no que consiste a dita conduta?”54
A doutrina mais moderna, no entanto, busca dar sentido à expressão,
escalonando o sentido de “gestão” e de “fraude” a serem empregadas no caso concreto.
Assim, segundo Luiz Regis Prado “gerir” assume o sentido de “ato de administrar, de
dirigir, de decidir e de gerenciar”55 quando inserido no tipo legal do art.4º, caput.
Quanto ao termo em pauta, as discussões são mínimas, pois como se observa, sua
aplicação não resta prejudicada, vez que o termo “gestão” é facilmente apreensível
pelo destinatário da norma, havendo, em verdade, identidade entre o vocábulo e o seu
sentido léxico usualmente empregado. Todavia, não restam dúvidas de que o termo
carrega o sentido de reiteração de atos, sendo impossível tornar típica de acordo com o
art.4º, desde logo, a conduta única do agente que se utilizou possível fraude em
gerência de instituição financeira56.
Quanto à conduta única do agente capaz de gerar dano à instituição financeira
por ele gerida, concorre opinião doutrinária tendente a realização da desclassificação 54 ARAÚJO JÙNIOR, João Marcelo de. Os crimes contra o sistema financeiro no esboço de nova parte especial do código penal de 1994. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 11. Julho – Setembro. São Paulo: Revista dos tribunais, 1995, p.156 55 SILVA, Paulo Cezar da. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 116 56 Assim também se solidifica a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais: “.... Gerir fraudulentamente é o ato de direção, administração ou gestão que traduza manobras ilícitas, com o emprego de fraudes. Ardis e enganos. Uma simples operação não caracteriza o fazer operar uma instituição...”(TRF 1ª R. – 3ª T. ACR 2003.01.00.003245-4/GO – rel. Des. Fed. Tourinho Neto – j.08/03/2005 – DJU 18/03/2005, p.20). Nesse sentido também posiciona-se o TRF 3ª Região: “... V – A palavra ‘gestão’ indica espaço de tempo em que a pessoa é administradora de uma pessoa jurídica, e não cada uma das operações que realiza. Gerir é atividade continuada, pressupondo habitualidade, sendo que um ou alguns atos isolados não constituem uma gestão. Opinião de Heleno Fragoso... VII – Alguns casos, pinçados em um universo de milhares de operações, não podem ser tidos como gestão fraudulenta ou temerária...” (TRF 3ª R. – 1ªT. HC 98.03.081133-9/SP – rel Des. Fed. Oliveira Lima – j.04/05/1999 – DJU 15/06/1999, p.689).
31
para outros crimes previstos no Código Penal, como por exemplo, o crime de
estelionato e os tipos de falsidade documental.
Nunca se pode afastar da necessidade de verificação do interregno
correspondente a um determinado período de exercício da administração de instituição
financeira para ser aferida a tal “gestão”, identificada como elementar dos tipos penais,
para que se possa considerar o agente como incurso nos tipos do art.4º e seu parágrafo
único:
“Colocamo-nos ao lado dos que entendem que o delito somente se perfaz quando a conduta é repetitiva, ocorrendo com habitualidade. Com efeito, a palavra gestão designa sempre um espaço de tempo em que o administrador dirige determinado organismo. Assim, quando dizemos que uma pessoa teve uma ótima ou péssima gestão, estamos referindo-nos a todo período em que exerceu tal mister e não apenas um ou alguns atos por ela praticados. Em regra gestão abrange todo período em que alguém administrou determinada entidade, espaço de tempo esse previsto em lei ou no estatuto da empresa. Um ato isolado, ainda que fraudulento ou temerário, não constitui uma gestão, e pode ser tido inclusive como estelionato, mas jamais como gestão fraudulenta ou temerária”57
No entanto, estas conclusões facilmente alcançadas da análise do termo
“gerir” não podem ser estendidas para a expressão “fraudulentamente” constante do
tipo penal em estudo. De início, cabe identificar qual o sentido que, possivelmente, o
legislador quis dar ao vocábulo. A doutrina aventura-se em estabelecer um sentido ao
termo em estudo, identificando-o como “fraude, dolo, ardil ou com malícia, visando a
obter indevida vantagem, independentemente de ser para si ou para terceiro (v.g.,
simulação de operações ou maquiagem de balanços para desviar ativos da instituição e
enganar investidores, outras instituições financeiras ou as autoridades que fiscalizem o
mercado)”58. Porém, por ser totalmente desprovido da certeza que deve,
invariavelmente, acompanhar o tipo legal incriminador, tal sentido não pode estar
abrigado na inteligência constante do breve texto do art.4º, caput da Lei 7.492/1986.
Ora, se adotado esse sentido contemplado por aqueles que defendem a
regularidade do disposto, não se poderia sequer identificar como se daria o iter ciminis
das condutas que se pretendem incriminar, restando dúvidas cabais sobre a
57 LIMA, Sebastião de Oliveira. LIMA, Carlos Augusto Tosta de. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, p.27 58 PRADO, Luiz Regis. Direito..., p. 181
32
possibilidade de a fraude se materializar através de um crimen falsi59, ou de artifícios,
ardis ou engodos, assim como o estelionato.
Coube à doutrina estabelecer os sentidos que a expressão “fraude” assumiria
em sentido genérico e quais condutas poderiam receber a pecha de fraudulentas. Para o
venerável Mestre Nelson Hungria, fraude em sentido genérico seria “qualquer meio
malicioso subterfúgio para alcançar um fim ilícito”60 e, mencionando Carrara, afirma,
quando em comento ao crime de estelionato, que:
“O esclarecido espírito do nosso legislador de 1930 ateve-se certamente ao mesmo raciocínio que, muitos anos depois, fazia o insigne Carrara eleger o nome estelionato para o crime em apreço: ‘prefiro sempre os vocábulos que servem melhor à clareza, considerando a linguagem como um instrumento tanto mais útil quanto mais isento do perigo de conduzir à obscuridade e confusão’. Além do inconveniente da equivocidade a que alude a censura carrareana, cumpre salientar que o termo fraude somente poderia servir de título a um crime sui generis, se se reconhecesse a necessidade de especial proteção à fides privata, àquele direito a verdade, de que falava Feuerbach, ou ao jus alteri competens veritatem postulandi (fora do conceito da fides publica), defendido por Sternberg. A impropriedade de tal vocábulo para designar o crimen stellionatus está em que, neste a matéria punível não é a fraude em si mesma, o engano ou induzimento em erro, mas a locupletação ilícita ou injusta lesão patrimonial.”61. (negritos nossos)
Também neste trajeto, direciona-se a douta opinião do jurista argentino
Sebastián Soler, citado pelo ilustre professor uruguaio Raúl Cervini, militando pela
impropriedade do termo “fraude” para designar um crime autônomo considerado em si
mesmo, devido a generalidade de sentidos que lhe podem ser atribuídos:
“Desde luego, el concepto de fraude es un concepto muy genérico cuyos rasgos generales consisten en una intención de engañar o perjudicar (concilium fraudis) y un daño real o
59 Juliano Breda menciona que “Faltam nessas definições uma maior explicitação da documentação suscetível de manipulações fraudulentas. Na relação entre a instituições e as autoridades do mercado o maior exemplo é o COSIF – Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiro Nacional - , em que o Banco Central realiza o primeiro estágio da supervisão bancária mediante as informações remetidas mensalmente pelo agente financeiro neste instrumento contábil. Além disso, todas as informações dirigidas eletronicamente por intermédio do SISBACEN” , e continua afirmando “Nas corretoras, os mapas diários das operações enviados à Bolsa e à CVM” , finalmente citando “Nas relações da instituição financeira com os clientes, interessam os extratos das operações e, principalmente, os contratos relativos aos serviços financeiros prestados”.In: BREDA, Juliano. Gestão Fraudulenta de Instituição Financeira e dispositivos processuais da Lei 7492/86. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.62 60 HUNGRIA, Nelson. Comentários...,v.7., p.169 61 Ibid., p.171
33
eventual (eventus damni). Es decir, el fraude, como la violencia, no es un crimen en sí; es uno de los grandes criterios que pueden servir para clasificar delitos. ‘El legislador no considera abstractamente el fraude (...) indica los elementos constitutivos cada vez que lo castiga como medio para consumar una particular infracción’(Tancredi Galimberti. Dizionario di Criminología, Vol. II, p. 1.043). Son numerosos los delitos de fraude, así como son los de violencia; pero no hay ni un delito de violencia ni un delito de fraude. Esta tesis no es una novedad, por cierto. Autores tan antiguos como Morin, al explicar el tema (1851) dicen: ‘Después de haber previsto varios crímenes de los cuales el fraude es un elemento esencial y todos los hurtos que se cometen por la sustracción fraudulenta de la cosa ajena, el Código penal incrimina ciertos fraudes diferentes en los seis párrafos de la sección que tiene por título Bancarrotas, estafas y otras especies de fraude’(Morin, Répertoire, vol. II, p.151)”62.
Assim, não há um embasamento capaz de trazer, definitivamente, o que deva
ser entendido por fraude em relação ao tipo penal aberto do art.4º, caput. A tarefa de
definir o sentido que deva ser atribuído ao vocábulo é exclusiva do juiz ao apreciar o
caso concreto. Por óbvio, a atuação do magistrado frente ao tipo penal formado com
termos de tamanha abrangência e indeterminação cria uma abissal insegurança
jurídica, na medida em que, outra realidade não há, senão a da espera por uma enorme
disparidade nos convencimentos firmados por diferentes julgadores na análise do caso
concreto, motivados por suas diferentes convicções e conhecimento de mundo, o que,
por óbvio, atinge frontalmente o princípio da legalidade e da separação de poderes.
Destarte, um mesmo fato poderia ser tido por um julgador como sendo crime
financeiro, constituído por engodo praticado por gestor financeiro e, por outro, a
mesma “enganação” poderia ser entendida como hipotética estratégia negocial,
adequada e totalmente aceitável ao difícil momento por que passa a instituição
62 Em tradução livre: “Desde logo, o conceito de fraude é um conceito muito genérico cujos traços gerais consistem em uma intenção de enganar ou prejudicar (consilium fraudis) e um dano real ou eventual (evebtus damini). É dizer, a fraude, como a violência, não é um crime em si; é um dos grandes critérios que podem servir para classificar delitos. ‘O legislador não considera abstratamente a fraude (...) indica os elementos constitutivos cada vez que a castiga como meio para consumar uma particular infração’(Tancredi Galimberti. Dizionario di Criminologia, vol. II, p.1.043). São numerosos os delitos de fraude, assim como são numerosos os de violência; mas não há nenhum delito de violência e nenhum delito de fraude. Esta tese não é uma novidade, por certo. Autores tão antigos como Morin, ao explicar o tema (1851) dizem: ‘Depois de serem previstos vários crimes dos quais a fraude é um elemento essencial e todos os furtos que se cometem por subtração fraudulenta de coisa alheia, o Código penal incrimina certas fraudes diferentes nos seis parágrafos da seção que tem por título Bancarrotas, estelionatos e outras espécies de fraude’ (Morin, Répertoire, vol. II, p. 151).”. (SOLER, Sebastián . La responsabilidad penal de los directores y administradores de sociedades anónimas en la Ley 2.230, de 2 de junio de 1893. Montevideo: Apartado de la Justicia Uruguaya. 1973, p.55. Apud. CERVINI, Raúl. El principio de legalidad y la imprescindible determinación suficiente de la conducta incriminada en los crímenes contra el sistema financiero (art.4º. de la Ley7.492/86). In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.171, n. 48, maio-junho de 2004)
34
financeira sob seu comando, não obstante audaciosa. Dessa forma, o juiz acaba
criando, a cada novo caso concreto estudado, uma nova norma incriminadora,
revelando, na praxis, a temida violação dos limites de atuação atribuídos ao Poder
Judiciário preconizada por Montesquieu, pois alheio a qualquer parâmetro legal que
defina marcos de limitação à atuação jurisdicional.
Essa idéia é corroborada pelo ilustre professor da Faculdade de Direito de
Munich, Claus Roxin, para quem:
“...la prohibición de preceptos penales indeterminados no sólo concuerda con el tenor literal de la Constituición (‘legalmente determinada’, cfr. nm. 11), sino que se corresponde por completo igualmente con la finalidad del principio de legalidad (nm. 18 ss.). Una ley indeterminada o imprecisa y por ello poco clara no puede proteger al ciudadano de la arbitrariedad, porque no implica una autolimitación del ius puniendi estatal a la que se pueda recurrir; además es contraria al principio de división de poderes, porque le permite al juez hacer cualquier interpretación que quiera e invadir con ello el terreno del legislativo; no puede desplegar eficacia preventivogeneral, porque el individuo no puede reconocer lo que se le quiere prohibir; y precisamente por eso su existencia puede proporcionar la base para un reproche de culpabilidad. Teóricamente también resulta indiscutido que por indeterminación las disposiciones penales pueden ser inconstitucionales y por tanto nulas.”63
Também neste sentido, figura-se a importante lição de Nilo Batista:
“A função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligível por todos os cidadãos. Formular tipos penais “genéricos ou vazios”, valendo-se de “cláusulas gerais” ou “conceitos indeterminados” ou “ambíguos”, equivale teoricamente a nada formular, mas é prática e politicamente muito mais nefasto e perigoso” 64
63 Em tradução livre: “... a proibição de preceitos penais indeterminados não somente concorda com o teor literal da Constituição (legalmente determinada, conforme n.11), senão que corresponde por completo igualmente com a finalidade do princípio da legalidade (n.18 e ss.). Uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso, pouco clara não pode proteger o indivíduo da arbitrariedade, porque não implica uma autodelimitação do ius puniendi estatal à que se possa recorrer. Ademais, é contrária ao princípio da divisão de poderes, porque permite ao juiz fazer qualquer interpretação que queira invadir com isso o terreno do legislativo. Não pode realizar eficácia preventiva geral, porque o indivíduo não pode reconhecer o que se quer proibir. E precisamente por isso, sua existência tão pouco pode proporcionar a base para a censura da culpabilidade. Teoricamente, também resulta indiscutível que – por indeterminação – as disposições penais podem ser inconstitucionais e, portanto, nulas.” ROXIN, Claus. Derecho Penal…, p.169 64 BATISTA, Nilo. Op. cit., p.78
35
Dessa forma, é notório que conceitos legais indeterminados que pretendem a
criminalização de uma conduta como a de “gestão fraudulenta”, não se prestam aos
fins regulatórios a que se candidataram, primeiramente, por demandar intervenção
direta do juiz no estabelecimento do seu sentido semântico, usurpando a função do
legislador a cada decisão. Em segundo lugar, por não se prestarem a garantir ao
destinatário da lei o preceito máxime no Estado Democrático de Direito da liberdade,
colocando óbice a atuação do poder punitivo estatal frente ao indivíduo (função
garantista). E por último, por não atendererem a necessidade do estabelecimento de um
canal de comunicação entre o Estado e o individuo, deixando de informar quais
condutas seriam derradeiramente incriminadas e de gerar o efeito preventivo-geral a
que se destina a lei penal.
3.2. A conduta de “gerir fraudulentamente” como fator desencadeante de patente
insegurança jurídica e seu possível âmbito de validade.
O que se pretende demonstrar por intermédio do presente estudo, é que a
abertura típica de uma lei que deixa de definir ao certo qual espécie de conduta é
reprovada, deságua na insegurança de sua aplicação, descumprindo a funcionalização
garantista e preventiva geral a que visa a lei penal. Não pode o indivíduo prever e
evitar a prática de um crime se sequer possui condições de identificar quais condutas
são reprováveis. Segundo Enrique Bacigalupo “La generalización se torna, por tanto,
inadmisible cuando ya no permite al ciudadano conocer qué está prohibido y qué está
permitido”65.
Com efeito, referido problema é bastante acentuado em se tratando do objeto
do presente estudo. Ora, conforme é de conhecimento comum, é inafastável das
atividades bancárias o risco da atividade do gestor financeiro, não havendo qualquer
possibilidade de se admitir que exista uma padronização de condutas por parte desse
administrador. É no mínimo, previsível que, em várias situações, operações bancárias
arrojadas executadas com o único objetivo de auferir lucro para a instituição financeira 65 Em tradução livre: “A generalização se torna, portanto, inadmissível quando ela não permite ao cidadão conhecer o que está permitido e o que está proibido”.In: BACIGALIPO, Enrique. Op. cit., p.37
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ensejem certa suspeita por parte dos órgãos encarregados da persecutio criminis estatal
e dos órgão de fiscalização e controle da atividade bancária (BACEN), ainda mais se
tais operações envolverem a circulação negocial de valores por diversos países.
No caso das operações financeiras internacionais, a dúvida quanto a higidez
de uma dada execução negocial bancária pode restar potencializada pelo fato de
envolver outras normas jurídicas e administrativas internacionais regulamentares
dessas operações. Como exemplo, podem ser mencionadas as cessões de crédito feitas
entre instituições financeiras e empresas trading internacionais, que geralmente são
efetuadas sob a regulamentação das Leis do Estado de Nova York, nos Estados Unidos
da América, por este se tratar de pólo econômico mundial em que a grande maioria das
operações internacionais acabam passando por suas agências atuantes no mercado
financeiro. Tais normativas criam normas próprias para a condução desses
procedimentos sui generis de movimentação financeira e, muitas vezes, despertam a
suspeita dos órgãos encarregados pela persecução penal, pois, por vezes divergem das
normativas internas estabelecidas, por exemplo, pelo Banco Central.
Inobstante, importante frisar que se fosse negado às instituições financeiras
nacionais a adoção de tais normativas, certamente elas estariam fadadas ao ostracismo
internacional, e a perda da capacidade negocial geraria lesão aos lucros desses
empreendimentos. Ademais, amarrotaria o crescimento econômico do país como um
todo, ante o impedimento de entrada de capitais advindos de outros países e,
conseqüentemente, a formação da receita interna, o que leva à conclusão de que tais
impedimentos também contrariam os interesses econômicos nacionais.
Dessa forma, o gestor financeiro não pode jazer tolhido em sua possibilidade
de tomar as decisões que melhor convêm à instituição financeira, sob a ameaça de
sofrer a repressão do Estado com base em uma lei incriminadora sem qualquer
concretude, ou vinculada ao total arbítrio do julgador.
Nesse sentido, admite Ali Mazloum, embora partidário da corrente que julga
perfeita a redação do art.4º e parágrafo único, que:
“Nesse aspecto, o problema não reside no fato de ser ou não aberto esse tipo penal (especialmente a expressão gestão temerária), mas, sim, em querer o jurista, toscamente,
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medir com trena e posteriori, o grau de risco de um determinado empreendimento malsucedido, olvidando o contexto da gestão traçada, no mais das vezes, de forma estratégica e planejada pelo empresário. Se o parâmetro de análise for esse, o da trena, então sempre se estará diante de gestão temerária quando o empresário se sair mal em seus negócios. Nessa hipótese, das duas uma: ou o mercado financeiro cria fórmulas matemáticas para eliminar por completo o risco inerente à atividade empresarial, o que parece impossível, ou então deverá conformar-se com a sua completa estagnação pela inevitável ausência de iniciativas empresariais que o risco de insucesso de qualquer empreendimento provocaria. As duas hipóteses iriam de encontro ao almejado crescimento equilibrado do País a que se refere a nossa Carta Política”66
Daí a importância da regulação específica, ditada por um mínimo de
casuísmo, para bem ajustar a ação do direito penal material contra as condutas a serem
incriminadas nas relações de gestão financeira, delimitando, com precisão, o que é
proibido diante da lei penal, em homenagem ao princípio da taxatividade.
Nesse sentido, direciona-se a respeitável opinião de Francisco de Assis
Toledo em comento ao princípio da legalidade, dando destaque ao viés liberal
exegético deste preceito basilar e ensinando que:
“...funda-se na idéia de que há direitos inerentes à pessoa humana que não são nem precisam ser outorgados pelo Estado. Sendo assim, e como não se pode negar ao Estado o poder de estabelecer certas limitações ou proibições, o que não estiver proibido está permitido (permittitur quod non prohibetur). Daí a necessidade de editarem-se proibições casuísticas, na esfera penal, o que, segundo o princípio em exame, compete exclusivamente à lei”67
Destarte, na gestão diária da instituição financeira, o seu administrador
certamente age através de diversas operações em prol da saúde econômica da empresa,
podendo estas operações serem entendidas, ou não, como fraudulentas acaso surjam
dúvidas quanto a sua higidez. Por óbvio, se as operações referidas forem concretizadas
através dos exemplos de fraude constantes do Código Penal, haverá formação do
ilícito penal, isto claro, se analisada a partir do paradigma de determinação do tipo
penal como ratio cognoscendi da ilicitude.
Isto se dá, e é problema corrente na atual legislação penal criada para atender
casos específicos e urgentes, pois, se passa a uma mera questão de especialidade da
norma penal, em que a fraude anteriormente tipificada no diploma penal é apenas
66 MAZLOUM, Ali. Dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Célebre, 2007, p.88 67 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p.22
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transportada para uma lei especial, com o intuito de melhor reprimir uma forma de
criminalidade motivados por um falso programa de política criminal imposto pelo
Estado. Assim o disposto no art.4º caput, incriminador da chamada “gestão
fraudulenta”, só teria possibilidade de aplicação se identificada como lex specialis em
relação aos delitos praticados por condutas fraudulentas já consagradas no Código
Penal, pois estas já tiveram seu sentido cognitivo firmado pelo destinatário da norma.
Por outro lado, não se admite que a lei especial dê ensejo a “novas formas de fraudar”,
sob pena de tal dispositivo legal não poder sofrer uma limitação cognitiva nos diversos
sentidos aplicáveis, por dependerem exclusivamente do arbítrio jurisdicional.
Dessa forma, quando a conduta praticada no caso concreto e taxada de
“fraudulenta” não encontra correspondente na lei geral, somente se poderá vislumbrar
uma única reposta: não há como se estender o preceito incriminador, eivado de
incerteza, para as situações não contempladas anteriormente nos tipos do Código Penal
(v.g., conduta do gestor financeiro que atua através de fraudes documentais ou por
meio de ardis ou engodos com um fim ilícito de causar prejuízo, locupletando-se com
o produto do crime em seu exaurimento). E isto porque, o juiz sairia da esfera do
julgador, adentrando na função do legislador, isto sem mencionar o fato de tal
procedimento ferir diretamente o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e,
principalmente, espancar o princípio da taxatixidade.
Este entendimento é corroborado por Nilo Batista, que menciona o “emprego
de elementos do tipo sem precisão semântica” no tipo penal como uma das causas de
violação ao princípio da taxatividade:
“Tais elementos normativos não dispõem de um sistema de referência que permita um nível aceitável de ‘certeza típica’, o que não ocorrerá com elementos normativos jurídicos que remetam a conceitos anteriormente delineados” 68
Assim, o juiz ao analisar o tipo penal contido no art.4º da Lei 7.492/86, fica
sem qualquer parâmetro para proceder à devida subsunção do fato à norma
incriminadora. Não constam no referido dispositivo os elementos identificadores da
68 Ibid., p.82
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conduta ali descrita, que sejam suficientes a justificar a intervenção do direito penal na
esfera de operações financeiras de qualquer tipo. Dessa forma, o julgador não sabe ao
certo quais espécies de condutas a norma pretende incriminar, mal também extensivo
àqueles que operam as ditas instituições financeiras e que, por sua vez, não identificam
quais condutas poderiam ser taxadas como criminosas à luz do referido art.4º não
podendo, portanto, evitá-las em diversas situações. Assim menciona o brioso professor
uruguaio Raúl Cervini:
“Se estima, como corolario de todo lo expuesto, que con un texto como el art. 4º de la Ley 7492/86 el magistrado brasileño no tiene una disposición legal que determine en modo suficientemente preciso el comportamiento que pretende incriminar. Por el contrario: el instrumento legal es, a la vez, deliberada y suficientemente, impreciso, al punto de operar una completa delegación valorativa hacia criterios cuantitativos, probadamente ambiguos e indemostrables, tanto en técnica financiera como jurídica.”69
Ante esta problemática, o ilustre professor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni
ensina que, o juiz ao se deparar com tipos penais indeterminados e eivados de
incerteza, como o estudado, e que, portanto, ferem o princípio da taxatividade, pode
optar pela decretação da inconstitucionalidade da lei, ou pela aplicação da máxima
taxatividade na interpretação:
“Aunque la ley se expresa en palabras y éstas nunca son totalmente precisas, no por elle debe depreciarse el principio de legalidad, sino que es menester exigir al legislador que agote los recursos técnicos para otorgar la mayor precisión posible a su obra. De allí que no baste que la criminalización primaria se formalice en una ley, sino que la misma debe hacerse en forma taxativa y con la mayor precisión técnica posible, conforme al principio de máxima taxatividad legal. Este principio corre risgos cada día más graves, como resultado de la descodificación de la legislación penal. Aunque se trata de un principio elemental para la seguridad, no importa una legitimación del poder punitivo que con el tipo se habilita, pues la arbitrariedad puede producirse en la misma determinación legal. Cuando los limites legales no se establecen de esta forma, cuando el legislador prescinde del verbo típico y cuando establece una escala penal de amplitud inusitada, como cuando remite a conceptos vagos o valorativos de dudosa precisión, el derecho penal tiene dos posibilidades: (a)
69 Em tradução livre: “Se estima como corolário de todo o exposto, que com um texto como o do art.4º da Lei 7492/86 o magistrado brasileiro não tem uma disposição legal que determine de modo suficientemente preciso o comportamento que pretende incriminar. Ao contrário: o instrumento legal é, por sua vez, deliberada e suficientemente, impreciso, ao ponto de operar uma completa delegação valorativa formando critérios quantitativos, provadamente ambíguos e indemonstráveis, tanto em técnica financeira como jurídica”. (CERVINI, Raúl. El principio de legalidad y la imprescindible determinación suficiente de la conducta incriminada en los crímenes contra el sistema financiero (art.4º. de la Ley 7.492/86). In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.176, n. 48, maio-junho de 2004.)
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declarar la inconstitucionalidad de la ley; o (b) aplicar el principio de máxima taxatividad interpretativa.”70
O douto professor argentino explica a acepção da teoria da máxima
taxatividade interpretativa, acenando para o fato de esta se fazer de acordo com o
sentido mais restritivo dentro do arcabouço de possibilidades que o termo legal
comprometido pela incerteza possibilita, e tendo em vista o princípio constitucional do
in dubio pro reo, em que pese o autor, em certa medida, levar em conta que este
princípio apenas se aplicaria para a apreciação da prova processual penal:
“dentro del alcance semántico de las palabras legales puede haber un sentido más amplio para la incriminación o uno más limitado o restrictivo. Las dudas interpretativas de esta naturaleza deben ser resultas en la forma más limitativa de la criminalización. Se trata de la misma razón que da origen al principio procesal in dubio pro reo, que no es pacíficamente aceptada, pues se afirma que no consiste en una regla interpretativa del derecho penal sino en un criterio procesal de valoración de prueba.”71
Portanto, a primeira opção a ser adotada pelo julgador ao se deparar com o
rompimento com o princípio da taxatividade observável no tipo legal incriminador da
“gestão fraudulenta”, é a segregação do dispositivo através da decretação incidental de
sua inconstitucionalidade.
Contudo, se se pretender atribuir alguma validade ao disposto do art. 4º caput
da Lei 7.492/86, ante a análise do caso concreto, o juiz deverá aplicar o princípio da
máxima taxatividade na interpretação da lei, como que substituindo a aplicação do
70 Em tradução livre: “Ainda que a lei penal se expresse em palavras e estas nunca são totalmente precisas, não por isso se deve desprezar o princípio da legalidade, senão que é mister exigir do legislador que esgote os recursos técnicos para outorgar a maior precisão possível à sua obra. Assim, não basta que a criminalização primária se formalize em uma lei, senão que a mesma deve fazer-se de forma taxativa e com a maior precisão técnica possível, conforme o princípio da máxima taxatividade legal. Este princípio corre riscos cada dia mais graves, como resultado da descodificação da legislação penal. Ainda que se trate de um princípio elementar para a segurança, não importa uma legitimação do poder punitivo que com o tipo se habilita, pois a arbitrariedade pode produzir-se na mesma determinação legal. Quando os limites legais não se estabelecem desta forma, quando o legislador prescinde do verbo do tipo e quando estabelece uma escala penal de amplitude inusitada, como quando remete a conceitos vagos ou valorativos de duvidosa precisão, o direito penal tem duas possibilidades: (a) declarar a inconstitucionalidade da lei; ou (b) aplicar o princípio da máxima taxatividade interpretativa.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho Penal: Parte General. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p.116) 71 Em tradução livre: “dentro do alcance semântico das palavras legais pode haver um sentido mais amplo para a criminalização ou um mais limitado ou restritivo. As dúvidas interpretativas desta natureza devem ser resolvidas da forma mais limitativa da criminalização. Se trata da mesma razão que dá origem ao princípio processual do in dubio pro reo, que não é pacificamente aceito, pois se afirma que não consiste em uma regra interpretativa do direito penal senão em um critério processual de valoração da prova.” (Ibid., p. 119)
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princípio da taxatividade pelo legislador no momento da formulação da lei penal.
Como resultado, se a ação objeto da persecutio criminis estiver fora do campo
incriminador que usualmente se define como “fraude”, a partir da lei geral, esta
conduta deve ser entendida como mera infração administrativa de competência cível,
em prol da busca de uma tutela restaurativa.
Resta, neste caso, aos órgãos encarregados da persecução penal, a tarefa de
demonstrar cabalmente, através das provas colhidas na fase de investigação preliminar
e no curso da ação penal, a existência das fraudes com parâmetro nos dispositivos da
lei geral ante à existência de indícios da real prática de crime72. Este é o único meio
pelo qual, e ainda cum grano salis, pode ser vislumbrada qualquer validade da norma
do art.4º, caput, da Lei 7.492/86 frente à constatação de materialidade delitiva.
72 Este é também o entendimento firmado pela melhor doutrina, destacando sempre a necessidade de existirem provas suficientes da fraude para caracterização do delito do art. 4º. Observa-se, no entanto que a doutrina sempre se refere ao exame de fontes documentais para a constatação da materialidade do crime do art.4º, caput, o que revela a maior tendência de se ter por crime meio palpável o falso documental: “O elemento normativo do tipo – gestão temerária – isoladamente, põe em risco a certeza do Direito. Diante da falta de um elemento seguro no enunciado do tipo, indispensável seja a fraude apurada no exame dos livros, balanços e demais elementos da empresa, que revelem, de modo irrefutável, a manobra criminosa”. In: COSTA JÚNIOR, Paulo José. QUEIJO, Maria Elizabeth. MACHADO, Charles Marcildes. Crimes do Colarinho Branco. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.78.
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4. A expressão “gestão temerária” e a inconstitucionalidade do parágrafo único
do art. 4º da Lei 7.492/86.
4.1. A total impossibilidade regulatória do tipo penal fincado na expressão
“gestão temerária”.
O parágrafo único do art. 4º, da Lei 7492/86, determina como criminosa a
conduta de gerir temerariamente instituição financeira. Tudo que foi dito
anteriormente para o crime do art.4º, caput é indubitavelmente abarcado pelos
problemas constantes da estranha redação do seu parágrafo único. Porém, apesar das
observações já firmadas, incumbe destacar que a expressão “temerária” é passível de
críticas ainda mais ferrenhas.
Na contramão do que foi analisado em relação a expressão “fraudulenta”,
formadora do tipo objetivo do caput do art.4º, que ainda possui um ponto de possível
referência na lei geral, como observado outrora, sendo que a inconstitucionalidade do
caput advém, na verdade, da generalidade da expressão no contexto a que se candidata
regular, a imprecisão e incerteza da expressão do parágrafo único é ainda mais
acentuada.
Observa-se, desde o início, que a referida expressão não encontra sentido
no senso comum dos destinatários da norma. Não há intelecção por parte do
destinatário da norma do que seja a dita “gestão temerária” de instituição financeira,
cabendo unicamente ao julgador a tarefa de, em análise ao caso concreto, decidir se
uma dada conduta é temerária ou não.
Portanto, o sentido do vocábulo é totalmente direcionado de acordo com o
alvitre do juiz ou do órgão ministerial, o que, por óbvio, traz enorme insegurança
jurídica73 e, conseqüentemente, a flagrante inconstitucionalidade pelo descumprimento
73 Assim sendo, faz-se necessária a lembrança das palavras de Manoel Pedro Pimentel, para quem “o risco que corre o legislador, no campo do direito penal econômico, é exatamente este: ao delinear as figuras típicas, perde-se em conceituações lógico-formais, diante da dificuldade de escolher a via certa, reclamada pela realidade sócio-econômica”, e continua discorrendo que, “além disso, há reiterada insistência em redigir-se imprecisamente a lei, tornando-se bastante vagos os conceitos verbais, o que torna difícil precisar os contornos do fato tipificado” In: PIMENTEL, Manoel Pedro.Op. cit., p.38
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do princípio da legalidade na sua forma nullum crimen nulla poena sine lege certa já
descrito anteriormente. Assim, segundo Roberto Delmanto “é inconteste que a
conceituação do que venha a ser temerário não é passível de ‘delimitação conceitual
concreta’; vigorará, sempre, o casuísmo e a idiossincrasia deste ou daquele membro do
Ministério Público e do Poder Judiciário, abrindo-se perigoso precedente”74.
Em análise ao parágrafo único da Lei 7492/86, afirma o insigne doutrinador
Paulo José da Costa Júnior:
“A lei não define o que seja a gestão temerária. O tipo é por demais aberto. Não apresenta ele a descrição da conduta incriminada. Seria mister que o legislador indicasse, no texto normativo, quais os comportamentos humanos que caracterizam a gestão temerária. Não constando tal descrição, viola-se o princípio da taxatividade do tipo penal, pondo em risco a segurança do direito” 75
Assim, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, dentro da solução por ele
desenvolvida no sentido de dar alguma aplicabilidade a preceitos que desandam do
princípio da taxatividade já observado, não admite a máxima interpretação taxativa
como seria cabível para o crime de “gestão fraudulenta” como visto, vez que esta
encontra algum apoio na lei penal. Segundo o douto professor argentino, para os casos
em que o dispositivo incerto e impreciso não se identifica com nenhum outro existente
na lei penal, só restaria, como única medida aceitável, a decretação de sua
inconstitucionalidade:
“En principio, debe optarse por la inconstitucionalidad cuando la aplicación de la máxima taxatividad interpretativa resulta demasiado artificiosa, lo que sucede cuando carece de todo punto de apoyo legal, como también cuando la ley contiene una irracionalidad irreductible que no responda a un notorio error material de imprecisión. En estos casos debe preferirse la inconstitucionalidad, porque el otro camino, aunque lo recoja la jurisprudencia, no impide la arbitrariedad selectiva de las agencias ejecutivas.”76
74 DELMANTO, Roberto. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.145 75 COSTA JÚNIOR, Paulo José. QUEIJO, Maria Elizabeth. MACHADO, Charles Marcildes. Op. Cit.,p.80. 76 Em tradução livre: “Em princípio, deve optar-se pela inconstitucionalidade quando a aplicação da máxima taxatividade interpretativa resulta demasiada artificiosa, é o que acontece quando carece de todo ponto de apoio legal, como também quando a lei contém uma irracionalidade irredutível que não responda a um notório erro material de imprecisão. Nestes casos deve-se preferir a inconstitucionalidade, porque o outro caminho, ainda que recorrendo a jurisprudência, não impede a arbitrariedade seletiva das agências executivas.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho..., p.117)
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Corroborando estas observações, Claus Roxin, ensina que “sólo se podrá
declarar la total nulidad de un precepto por indeterminación cuando no sea posible
reducirlo a un núcleo determinado”.77
Note-se, no entanto, que este último entendimento contraria o defendido neste
trabalho. Por óbvio, qualquer interpretação do tipo penal viciado pela incerteza no
estabelecimento da conduta incriminada deve ser declarada inconstitucional, na
medida em que atinge frontalmente os fins garantistas e preventivo-geral a que se
atribui a lei penal como visto. Ora, qualquer interpretação no sentido de buscar
significados não expressos nos termos da lei penal é vã tentativa de salvamento do
valor regulatório da norma, e não evita que dela decorram problemas advindos da sua
má interpretação, gerando inaceitável insegurança jurídica.
Tal análise é de suma importância para que se concretize o ideal de justiça no
caso concreto, pois, como se observa, a vedação aplicada ao juiz no sentido de
completar tipos penais defeituosos, dando o sentido que melhor lhe aprouver, é
corolário lógico do princípio da legalidade (art.5º, XXXIX da Carta Magna). Neste
sentido, figura a lição de especial efeito esclarecedor de Roberto Delmanto:
“Com efeito, observamos que as leis que definem crimes devem ser precisas, marcando exatamente a conduta que objetivam punir. Assim, em nome do princípio da legalidade, não podem ser aceitas leis vagas ou imprecisas, que não deixam perfeitamente delimitado o comportamento que pretendem incriminar – os chamados tipos penais abertos (Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, cit., p.223). Por outro lado, ao juiz que vai aplicar as leis penais é proibido não só o emprego da analogia, mas também da interpretação com efeitos extensivos para incriminar algum fato não previsto clara e textualmente como criminosos, ou tornar mais severa sua punição. As eventuais falhas da lei incriminadora, com lacunas ou falta de clareza quanto ao âmbito de incriminação, não podem, em desfavor da liberdade, ser preenchidas pelo juiz ou ter o alcance indefinidamente ampliado, por força de raciocínios exegéticos que tudo, ou quase tudo admitem, pois é vedado a este complementar o trabalho do legislador para punir alguém”78.
A análise do dispositivo legal em questão passa novamente pela necessidade
de se aferir os limites da gestão financeira responsável em relação aos investidores e,
77 Em tradução livre: “só se poderá declarar a total nulidade de um preceito por indeterminação quando não seja possível reduzi-lo a um núcleo determinado.” (ROXIN, Claus. Derecho…, p.173) 78 DELMANTO, Roberto. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. Op. cit., p.144
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ao mesmo tempo, compromissada com sucessos operacionais, cumprimento de metas e
obtenção de lucro.
A doutrina tenta, de certa forma, dar significado ao termo “temerário” no
conjunto do parágrafo único, definindo-o como “a impetuosidade com que são
conduzidos os negócios, o que aumenta o risco de que as atividades empresariais
terminem por causar prejuízos a terceiros, ou por malversar o dinheiro alheio
empregado na sociedade infratora”79. Porém, como já afirmado outrora, não há como
dispensar da interpretação dos dispositivos em análise, a realidade fática da
complexidade e do risco inerentes à atividade do gestor financeiro. Ora, é indissociável
a idéia de uma gestão audaciosa, arrojada e inovadora da imagem de sucesso no
concorrido mundo das finanças, razão pela qual a gestão temerária não pode ser
imputada a cada nova empreitada inexitosa do gestor financeiro, v.g., de uma operação
com o intuito de obter o lucro almejado para a instituição financeira e seus
investidores.
Filia-se a este entendimento Paulo Cezar da Silva:
“Afirmar que a gestão temerária é uma conduta dolosa de administração inescrupulosa e audaciosa de instituição financeira é muito pouco para estabelecer a imaginada responsabilidade penal, pois o risco de algo não sair da forma vislumbrada acompanha os negócios, ou melhor, é inerente a eles”80
Assim, também se firma o entendimento de Manoel Pedro Pimentel, um dos
maiores estudiosos dos Crimes Contra o Sistema Financeiro no Brasil:
“...o legislador criou um monstro ameaçador, que poderá sobressaltar qualquer administrador ou controlador de instituição financeira, cerceando sua ação, inibindo sua iniciativa, porque poderá, em algum momento, ser acusado de gerir temerariamente a empresa, sem que existam parâmetros objetivos para limitar o critério acusatório. A falta de um elemento seguro na descrição do fato tipificado a um critério eminentemente subjetivo, reduzindo duramente a garantia assegurada pelo princípio constitucional de reserva legal, repetindo no art.1º do CP”81
Este posicionamento também é corroborado pelo ilustre Miguel Reale Júnior:
79 MANTECCA, Paschoal. Crimes contra a economia popular e sua repressão. São Paulo: Saraiva, 1989, p.41 80 80 SILVA, Paulo Cezar da. Op. cit., p. 119 81 PIMENTEL, Manoel Pedro.Op. cit., p.52
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“Deve-se ter presente, também, ser próprio da instituição financeira a operação de risco, em razão do que variará a diferençado valor do spread. O risco é próprio da atividade da instituição financeira. De outra forma, qualquer inadimplência do devedor poderia redundar em se considerar temerária a gestão. Os financiamentos não pagos multiplicam-se, mormente em tempo de recessão, e nem por isso se pode dizer que a insolvência de alguns clientes torna temerária a gestão de instituição financeira. O risco, repita-se, é próprio do negócio, e não a sua exceção. A gestão da instituição desdobra-se em multifária possibilidade de ação de risco, sendo impossível fixar qual conduta arriscada venha a se configurar como temerária nos termos da lei penal. Por essa razão, sem um referencial concreto o processo de tipificação restaria entregue a atuação criadora do juiz penal, a valer-se de sua posição subjetiva para, a partir do fato concreto, construir o tipo incriminador” 82
Ainda sobre a análise do termo “temerário”, menciona Luiz Regis Prado,
citando os escritos de José Carlos Tórtima, que a conduta se realizaria pelo agente de
forma aberta “não necessitando de artifícios para executar as operações perdulárias ou
de alto risco para o patrimônio da Instituição e dos investidores”83.
Ora, conclui-se que a conduta de gerir temerariamente instituição financeira,
não encontra qualquer amparo na lei penal. Não se sabe ao certo o que significa a dita
“gestão temerária”, sendo seu sentido totalmente modulado pelo julgador ante a
análise do caso concreto. Dessa forma, não se tem uma conduta incriminada, mas em
verdade um comportamento cuja aferição se torna praticamente impossível, e que
pode, perigosamente, gerar efeitos nefastos na administração das instituições
financeiras, na medida em que o preceito incriminador assume ares de iminente
ameaça de reprimenda para qualquer simples ato de gestão a ser tomado pelo
administrador.
4.2. O crime de “gestão temerária” como forma de ação culposa e a sua inaptidão
por ausência de previsão do resultado típico.
Inegavelmente, a doutrina confere ares de crime culposo à gestão temerária de
instituição financeira, pois a tradução mais fiel do que se pode entender por “gestão
temerária”, observada a habitualidade já relacionada à conduta de gerir, é a seqüência
82 REALE JÚNIOR, Miguel. Problemas penais concretos. São Paulo: Malheiros, 1997, p.19 83 TÓRTIMA, José Carlos. Crimes contra o sistema financeiro nacional: uma contribuição ao estudo da lei 7.492/86. 2 ed. Rio de Janeiro Lúmen Júris, 2002 p.35 apud: PRADO, Luiz Regis. Direito...,p. 182
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de atos que descumprem deveres gerais de cuidado, in casu, deveres gerais de cautela
nas operações de gestão financeira.
Ora, trata-se, portanto, de crime que só se opera pela inobservância de um
“dever objetivo de cuidado”84, materializado em imprudência, negligência ou
imperícia do agente, que deve dar causa ao resultado lesivo descrito na lei, conforme
exigência do art. 18, II do CP.
Assim sendo, a existência do resultado lesivo produzido pelo descumprimento
de um dever de cuidado deve ser parte integrante do tipo penal, não se admitindo,
todavia, a punição de crime culposo que não atinja um determinado resultado lesivo e
a conseqüente lesão a um bem jurídico penalmente tutelado. Dessa maneira, colocam-
se as lições de Eugenio Raúl Zaffaroni:
“O resultado não pode ser considerado fora do tipo culposo, nem se pode pretender que seja uma ‘condição objetiva de punibilidade’, é sim uma limitação à tipicidade objetiva, mas que se encontra dentro do tipo objetivo. Se considerássemos o resultado fora do tipo, os elementos do tipo objetivo culposo ficariam muito reduzidos, e o tipo culposo ficaria quase limitado a um conjunto de elementos normativos e subjetivos, o que afetaria a segurança jurídica. O resultado integra o tipo porque assim o exige a função garantidora cumprida pelo tipo e a lei em geral, para não dizer de todo o direito ”85
Portanto, é impossível conceber um tipo penal que descreva crime culposo
sem a previsão de um resultado lesivo típico, sob pena de, mais uma vez, ter-se
violado o princípio da legalidade. Isto porque a simples gestão imprudente da qual não
se vislumbra qualquer indício de lesão à higidez das instituições financeiras e das
relações negociais dela decorrentes e que, ao contrário, fosse determinante de lucro e
“prospecção” econômica, certamente não seria objeto da persecutio criminis estatal. E
pode se dizer mais. O seu autor certamente seria recompensado pelos “méritos” de
suas habilidades negociais e administrativas.
Assim, é inconcebível que uma conduta seja incriminada e, ao mesmo tempo,
fomentada pela necessidade constante de superação concorrencial e a obtenção de
lucros diários em prol da boa ventura no dito mercado financeiro e, muitas vezes,
objetivando a cobertura de obrigações assumidas pela instituição financeira. 84 Cf: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições...,1980 85 PIERANGELI, José Henrique. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 486
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Dessa maneira, resta volúvel qualquer argumentação no sentido de que o tipo
penal descrito no art.4º, parágrafo único da Lei 7.492/86 foi recepcionado pela ordem
constitucional vigente, pelos mesmos motivos pelo qual não foi o mandamento do
caput, acrescentando-se ainda o fato de a sua péssima redação acusar a existência de
um tipo de crime culposo sem, no entanto, prever o devido resultado fenomênico
decorrente da violação do dever de cuidado identificado como a prudência e cautela na
gestão financeira.
Paulo José da Costa Júnior direciona claramente seu entendimento neste
sentido, quando em comento aos chamados “crimes de colarinho branco” (da
expressão original “White-Collar Crimes” cunhada por Edwin Sutherland):
“A expressão ‘gestão temerária’ traz em si a idéia de um comportamento de natureza culposa e não mendaz. A gestão temerária aproxima-se da gestão imprudente, desairosa. Contudo, o § único do art.4º, embora não aluda expressamente à modalidade culposa, tudo leva a concluir que o dispositivo inseriu tal modalidade”86
Por isso, é absurda a idéia de que o tipo em análise seria exemplificação de
delito de mera atividade ou de perigo abstrato. Na longínqua hipótese de se reconhecer
válida a tipificação penal da conduta de “gerir temerariamente” uma instituição
financeira, o que dependeria de especificação legal do que se pode ter por “temerário”
em Direito Penal, essa norma penal incriminadora estaria sujeita a ser vinculado ao
resultado lesivo dela decorrente87. Aliás, esta necessidade (de ser observado o
resultado da efetiva lesão ao bem jurídico tutelado) é patente também ao tipo penal do
caput. Não se pode ter como plausível que as condutas de gestão fraudulenta e gestão
temerária sejam incriminadas por qualquer forma, se delas não provier qualquer
prejuízo à instituição financeira e investidores.
86 COSTA JÚNIOR, Paulo José. QUEIJO, Maria Elizabeth. MACHADO, Charles Marcildes. Op. cit., p.80 87 Esta crítica também é estendida para o crime de gestão fraudulenta antes analisado. Não há como se conceber o tipo de gestão sem a existência de um resultado lesivo se a lei não define quais condutas se entendem por fraudulentas, em administração financeira, lembrando a tênue linha divisória entre a fraude civil e a criminal. Se não se sabe ao certo a conduta a ser evitada, como poderia um administrador de instituição financeira se esquivar do ato? Pior do que isso é constatar a hipótese de já se ter operado de uma determinada forma e, sendo triunfante no seu intento, não se vislumbraria qualquer resultado lesivo, não se imputando uma fraude criminal ao gestor financeiro. Já em outra situação, observado o prejuízo decorrente da mesma operação antes bem sucedida, haveria a censura criminal do Estado. Este é um exemplo claro da inadmissível insegurança jurídica perpetrada pelo dispositivo do art.4º.
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E este é o entendimento que começa a despontar nos tribunais pátrios, em
atendimento à celeuma já discutida a algum tempo na esfera judicial:
“Habeas Corpus – Crime Contra o Sistema Financeiro Nacional – Lei 7.492/86, arts.4º, 6º e 10 – Inexistência de elementos do tipo – Trancamento da ação penal. 1. O crime de gestão fraudulenta pressupõe, como elemento normativo do tipo, manobras ilícitas, o emprego de ardis, de fraudes e engodos. A fraude, por sua vez, também pressupõe que o desiderato de prejudicar alguém ou a obtenção de vantagem indevida parta do agente ou outrem. Desse modo, havendo o fisco concluído pela ausência de qualquer prejuízo decorrente das operações narradas no libelo e realizadas pelos administradores da instituição financeira, faz-se mister que as ações não se realizaram voltadas à prática do mencionado delito. No máximo, pode-se dizer que as condutas dos gestores do Banco, diante da dúvida sobre a ilicitude da conduta, do ponto de vista da técnica contábil, foi imprudente. Contudo o legislador não puniu a forma culposa do delito de gestão fraudulenta. (...)” (TRF 4ªR. 8ª T. – HC 2005.04.01.012800-0/RS – rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz – J. 27/04/2005 – DJ 18/05/2005 – p. 904).
Portanto, na melhor das hipóteses, os crimes descritos no art. 4º e parágrafo
único da Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional deveriam ter sido
definidos como materiais, dependendo da previsão e existência de efetivo resultado
lesivo para sua consumação, não se podendo cogitar da procedência técnica de ter, as
respectivas condutas, o condão de, por si mesmas, produzir qualquer resultado
reprovável, pois da forma como são colocadas pelo legislador, efetivamente não se
direcionam no sentido de ofender bens jurídicos.
Esse entendimento é defendido pelo conspícuo mestre alemão e um dos
maiores penalistas da atualidade Günther Jakobs, que vincula a punibilidade de um
crime, inexoravelmente, à “danosidade social” dele decorrente:
“En definitiva, no cabe prescindir del filtro de la dañosidad social, y las normas que pasan ese filtro en parte son normas protectoras de bienes jurídicos, en parte normas para la creación de bienes jurídicos (delitos especiales y delitos de propia mano) y en parte normas para proteger la paz jurídica. Lo importante es que la punibilidad se oriente no a lo disvalioso per se, sino siempre a la dañosidad social”88
88 Em tradução livre: “Em definitivo, não cabe prescindir do filtro da danosidade social, e nas normas que passam esse filtro em parte são normas protetoras de bens jurídicos, em parte normas para criação de bens jurídicos (delitos especiais e delitos de mão própria) e em parte normas para proteger a paz jurídica. O importante é que a punibilidade se oriente não pelo desvalor por si, senão sempre pela danosidade social”. JAKOBS, Günther. Op. cit, p. 58
50
Isso já era observado na antiga Lei 1.521/51, que dispunha sobre os Crimes
Contra a Economia Popular, que só pecava por preconizar o uso das já apontadas
expressões genéricas “fraudulenta” e “temerária”, sem, no entanto, atribuir qualquer
significado nuclear a elas, falha lamentavelmente repetida na lei atual. O seu art.3º, IX,
regulava:
“Art. 3º. São também crimes desta natureza: (...) IX - gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de construções e de vendas e imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlios, pensão e aposentadoria; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falência ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados; (...)”89 (negrito nosso)
Como se observa, tal dispositivo possuía potencial de aplicação, pois
considerava a existência de um dos resultados lesivos nela descritos para, então, poder-
se cogitar da existência de uma conduta fraudulenta ou temerária, estas, porém, sem
sentido definido, o que gerava o vício insanável da inconstitucionalidade por patente
ofensa ao princípio da taxatividade.
Tal lei foi, evidentemente, revogada pela atual Lei 7.492/86, ante a total
regulação da matéria quanto às práticas envolvendo instituições financeiras (art.2º,
parágrafo 1º, 2ª parte da Lei de Introdução ao Código Civil). Entretanto, o legislador
da lei vigente soçobrou a intelecção do dispositivo, criando tipos penais notoriamente
sem qualquer aplicação. O legislador, desapegado de qualquer técnica, firmou a
possibilidade de um delito econômico ser consumado a partir da simples conduta
“fraudulenta” ou “temerária” do gestor financeiro. Este desenho é impassível de
aplicação, pois não é possível identificar o que se pode entender por “fraude” se a
89 BRASIL. Lei 1.521 de 26 de dezembro de 1951. Altera dispositivos da legislação vigente sobre crimes contra a economia popular. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 27 de dezembro de 1951. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L1521.htm>. Acesso em 07 de outubro de 2008.
51
expressão for tomada isoladamente, salvo nos estritos termos emblemáticos prescritos
no Código Penal, e não se tem idéia do que seja a tal “gestão temerária”.
Daí a pertinência da importante observação de Soler destacada por Nilo
Batista, ao apontar o vício de elaboração do tipo penal, ofensivo ao princípio da
taxatividade, por “ocultar o núcleo do tipo” (v.g. verbo do tipo), decorrente do
equívoco “de ter sido o tipo ‘construído sobre a conseqüência’ e não sobre a ação”90.
Ocorre que, como já explanado anteriormente, a figura hipotética da gestão
audaciosa e arrojada é própria do bom gestor em qualquer tipo de empreendimento
competitivo. Obviamente, as condutas que constituam crimes já tipificados com
clareza e, portanto, aplicáveis porque de acordo com o princípio da legalidade, como
as contidas no Código Penal (fraudes documentais, estelionatos, etc...), desviam da
lealdade esperada na orientação da disputa pelo destaque no mundo dos negócios
financeiros e, por isso, devem ser incriminadas. Já as ações que não se valem dos
expedientes mencionados, não podem constituir crime, no máximo se
consubstanciando em infração administrativa com conseqüências civis reparatórias, se
deles advirem danos ao patrimônio da instituição financeira e seus investidores que
sejam rigorosamente comprovados.
Dessa maneira, Paulo José da Costa Júnior critica o novo posicionamento
constante da Lei 7.492/86, afirmando que: “A gestão apesar de temerária, poderá ser
bem-sucedida. A lei de economia popular só punia a gestão temerária que causasse
prejuízo”91.
4.3. O crime de “gestão temerária” (art. 4º, § único da Lei 7.492/86) como crime
de perigo concreto.
Para agregar alguma validade ao disposto no art.4º, parágrafo único, a
doutrina mais sensata renuncia à classificação de “crime” a ele atribuída,
considerando-o crime de perigo concreto e não de perigo abstrato, como sugerem
alguns autores mais incoerentes que, v.g., só admitem a possibilidade da validade dos 90 BATISTA, Nilo. Op. cit., p.81 91 COSTA JÚNIOR, Paulo José. QUEIJO, Maria Elizabeth. MACHADO, Charles Marcildes. Op. cit., p.80
52
tipos descritos se considerada a presunção juris tantum da situação de perigo a eles
vinculada.
Dessa maneira, em definição da pretendida classificação do crime, Claus
Roxin ensina que “los delitos de peligro concreto requieren que en el caso concreto se
haya producido un peligro real para un objeto protegido por el tipo respectivo”92.
Adepto do melhor entendimento, Miguel Reale Júnior discorre que:
“Parte da doutrina chega a considerar que o tipo penal do art.4º da Lei n.7.492/86 traz um crime de perigo abstrato, o que violaria, pela indeterminação e vacuidade, o princípio constitucional da legalidade e da taxatividade. É forçoso dar-se a moldura de delito de perigo concreto ao tipo indeterminado, visando adequá-lo às exigências constitucionais, graças ao estabelecimento de referências ao labor interpretativo e construtivo do juiz. Do contrário, o poder discricionário transforma-se em arbítrio, entregue exclusivamente às livres convicções subjetivas do magistrado, gerando a mais grave das inseguranças”93
Neste sentido, Ângelo Roberto Ilha da Silva, Procurador da República no Rio
Grande do Sul, tece as seguintes observações acerca do reconhecimento do crime de
gestão temerária como crime de perigo concreto:
“O legislador prevê, todavia, crimes de perigo concreto sem mencionar expressamente tal locução, e o intérprete terá de fazer uma exegese um pouco mais cuidadosa. Vejamos, mais uma vez, o crime de gestão temerária previsto no parágrafo único do art.4º da Lei 7.492, de 16.06.1986, descrito de fora lacônica: ‘se a gestão é temerária’. Trata-se sem dúvida de crime de perigo concreto, jamais podendo ser considerado como sendo de perigo abstrato ou presumido. O temor, vocábulo do qual deriva a adjetivação ‘temerária’, revela, a nosso ver, a exigência do perigo de forma concreta, vislumbrando-o sob o aspecto subjetivo. De modo que o perigo está contido no tipo do delito em questão e isso, e não só isso, demonstra que se trata de crime de perigo concreto. O perigo, repita-se, está presente no tipo, como reclama a doutrina para a configuração do crime de perigo concreto, e não se pode afirmar o contrário exclusivamente pelo fato de o vocábulo perigo não estar expresso, mas implícito na adjetivação ‘temerária’. O perigo não é só motivação, mas elemento do tipo.”94
Como conseqüência desse entendimento, conclui-se que a existência da
suposta gestão temerária deve comportar prova inequívoca por parte do parquet. Caso
92 Em tradução livre: “os delitos de perigo concreto requerem que no caso concreto se haja produzido um perigo real para um objeto protegido pelo tipo respectivo. (ROXIN, Claus. Derecho Penal…, p. 404) 93 REALE JÚNIOR, Miguel. Op. cit.,p.18 94 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 68
53
contrário, não havendo provas suficientes da concreta existência do perigo de dano na
execução de atos de gestão de instituição financeira, não pode como conseqüência
prática, pela só estrutura do tipo penal, haver qualquer possibilidade de aceitação da
respectiva ação penal junto ao jurisdicionado, pela inépcia material da vestibular
acusatória, decorrente da total ausência de condição da ação (justa causa), caso não
seja comprovado, de plano, o perigo oriundo da ação de gestão temerária.
A prova cabal do risco da operação financeira considerada temerária é de
suma importância, por ser o risco inerente a qualquer atividade de negociação
perpetrada por instituição financeira, conforme já debatido alhures. Sem a existência
da prova inequívoca, vertente do caso concreto, do risco descabido e imprudente, do
risco imensurável e sem qualquer razão que o dê sustento, do risco absurdo e sem
fundamento, não há qualquer possibilidade de se atribuir qualquer validez ou
aplicabilidade ao disposto no art. 4º § único, sob pena de insofismável retorno a temida
e odiosa versari in re ilícita.
Neste diapasão, formam-se as observações de Ângelo Roberto Ilha da Silva
quanto a possibilidade de reconhecimento do disposto no comentado § único do art. 4º,
tão somente como crime de perigo concreto, caso se cogite, por óbvio de alguma
validade:
“Há razões de cunho insofismavelmente lógico. As relações que se estabelecem no mercado financeiro são, pela sua própria natureza, associadas ao risco: é dizer, pelo perigo. Assim, somente a ação totalmente despropositada que cause uma evidente repulsa, ou seja, transcendente aos limites de risco aceitos como normais ou suportáveis, poderá caracterizar-se como gestão temerária, cujo perigo terá de ser apurado no caso concreto. (...) No crime de estão temerária, utilizado aqui como exemplo emblemático, em razão de sua taxatividade muito rarefeita, só se poderá afirmar o valor protegido pela norma em contraposição ao desvalor exteriorizado pela conduta, auferindo-se o perigo de forma concreta, ou seja, caso a caso.”95
Esta prova deve ser o mínimo exigido para que se cogite de qualquer hipótese
de crime, ainda assim, observadas a valoração de prova dissuasiva produzida pelo
acusado. Esta prova merece uma apreciação atenta por parte do julgador, pois é a única
proveniente da análise técnica da gestão financeira objeto da ação penal e capaz de
95 Ibid., p. 69-71
54
identificar a verdadeira intenção do agente, e potencialmente capaz de desfazer
qualquer equívoco causado por uma análise “fria” de números perpetrada pelo Banco
Central. A ausência de balanceamento entre as provas produzidas pela defesa e o
referido órgão de investigação, dá ao parquet federal a falsa certeza sobre a ocorrência
de atos gestão fraudulenta ou temerária quando, em verdade, tratavam-se de simples
atos de gestão96.
Por outro lado, a sentença deve ser guarnecida de fundamentos que sustentem
a existência da gestão fraudulenta ou temerária, sob pena de, em repetindo os parcos
conceitos disseminados pela parte da doutrina que aceita a constitucionalidade dos
dispositivos em análise, somente confirmar a existência do grave prejuízo intelectivo
das expressões analisadas e a sua conseqüente inconstitucionalidade pelo rompimento
com o princípio da taxatividade.
96 O TRF da 3ª Região, em manifestação sobre o assunto, determinou que “É inepta a denúncia que não descreve qualquer conduta comissiva do paciente inserida no encadeamento causal do delito previsto no art.4º, por outro lado faltando descrições que fizessem concluir, do cargo ocupado, pela necessária intervenção no procedimento de concessão de empréstimo, com efetivos poderes de decisão” (TRF 3ªR – 2ªT – HC 2003.03.00.067995-0/SP – rel. Des. Fed. Peixoto Júnior – J.10/02/2004 – DJU 12/03/2004, p.436)
55
5. Conclusão.
A lei n° 7.492 de 16 de junho de 1.986 estabelece os chamado “crimes
financeiros” e, tipifica no seu art.4º, caput, a conduta do gestor que gere
fraudulentamente instituição financeira. Já o § único do mesmo artigo incrimina a
conduta do agente que gere de forma “temerária” instituição financeira.
Como se depreende da leitura dos dispositivos supra mencionados, não há
uma concretude lógica por eles firmadas, no sentido de estabelecer cabalmente quais
condutas seriam realmente objeto da persecução penal do Estado, isto é, quais ações
seriam características da gestão fraudulenta ou temerária tipificadas.
Falha perpetrada pelo legislador que, atendendo às exigências feitas pelo
Banco Central do Brasil, leva à inaplicabilidade das citadas regulamentações dispostas
no art.4º, caput, e § único, impossibilitando que se possa estabelecer um devido juízo
de censura sobre as condutas apontadas como incursas na gestão fraudulenta ou
temerária, sem que isso corrompa a esfera da segurança jurídica.
A inaptidão regulatória dos citados dispositivos penais é corolário lógico da
aplicação do princípio da legalidade. Mandamento este que se originou em meio ao
consagrado ideário liberal, atinente ao movimento que marcou o século XVIII
conhecido por Iluminismo. A fixação das garantias individuais do homem frente ao
poderio arbitrário e despótico do Estado, simbolizado pelo alvitre dos monarcas e
magistrados, que ditavam as normas e as decisões ao seu talante, foi o principal
objetivo alcançado pelo chamado “movimento das luzes”.
Uma dessas garantias foi batizada como princípio da legalidade. Suas
premissas ditariam a imprescindibilidade de as decisões dos magistrados, ante a
análise de qualquer caso concreto, seguirem um perfeito silogismo entre o fato, e a
conduta descrita na lei penal, aferindo a punibilidade do suposto agente criminoso. Os
grandes expoentes das primeiras linhas sobre as quais se desenvolveu o princípio da
legalidade foram Montesquieu e Beccaria.
Mesmo que nessa época ainda não fosse proclamada de forma clara o
princípio da taxatividade, desdobramento do princípio da legalidade, que informa ser
necessária a constituição da lei penal sobre bases lingüísticas e semânticas precisas e
56
certas, é notório os primeiros indícios de preocupação da doutrina da época com esta
formulação. Não se admitiria que a lei prévia fosse formulada sobre bases incertas, de
modo a permitir a modulação das expressões legais pelo julgador, fugindo ao perfeito
silogismo defendido por Beccaria. Assim, fixada estava a função de garantia das
liberdades individuais frente ao poderio punitivo estatal, indissociável ao princípio da
taxatividade da lei penal.
Com a chamada “Escola Clássica do Direito Penal” consubstanciada
principalmente nas lições de Paul Anselm Ritter Von Feuerbach, o princípio da
taxatividade da lei penal ganhou corpo próprio na formulação latina nullum crimen,
nulla poena sine lege certa. Marca esta época, a teoria da coação psicológica lançada
pelo mesmo doutrinador. Teoria esta que lançou a função preventivo-geral da lei
penal, tendo como fundamento o receio da reprimenda penal incutido nos destinatários
da lei.
Indubitável, dessa forma, esta função preventivo-geral só se operaria quando
o destinatário da norma efetivamente conhecesse que sua conduta seria reprovada
através da lei penal. Tendo consciência de que sua conduta é criminosa, o indivíduo se
absteria da sua prática. Porém, esta conscientização sobre a conduta criminosa, só seria
alcançada pelo destinatário da norma, frente ao estabelecimento na lei penal de
preceitos claros e precisos de modo a não gerar dúvidas sobre quais condutas,
verdadeiramente, seriam objeto da persecutio criminis estatal. Dessa forma,
identificou-se a função preventivo-geral do princípio da taxatividade da lei penal.
Destarte, a lei penal que nega o princípio da taxatividade, conforme se
depreende das expressões introduzidas no presente estudo, descumpre as funções
garantista e preventivo-geral da lei penal, esfacelando os valores do Estado liberal e
legitimando arbitrariedades.
Após a adoção dos valores esculpidos pelo Iluminismo como regra base a ser
adotada por toda forma de Estado de Direito, episodicamente o princípio da
taxatividade foi suprimido das legislações penais. A subtração deste preceito
fundamental foi medida tomada para operacionalização de interesses escusos de novas
políticas de controle social de viés totalitário. São exemplos históricos desse
57
rompimento com a premissa constitutiva, os conceitos de crime formulados na lei dos
Estados soviético e da Alemanha nazista. No Brasil, a negativa ao princípio da
taxatividade deu suporte à ditadura militar de 1964, quando a famigerada Lei de
Segurança Nacional, traçada sobre conceitos típicos indeterminados e incertos,
garantia a repressão pelo Estado brasileiro dos movimentos contrários a ordem
imposta.
Dessa forma, não restam dúvidas, sendo historicamente comprovado, que a lei
penal fundada sobre elementos incertos e indeterminados, consubstanciou ditames de
interesses antidemocráticos.
Todas estas críticas alcançam os dispositivos circunscritos ao art.4º, caput, e §
único da Lei dos Crimes Financeiros.
A expressão “gerir fraudulentamente”, núcleo do tipo do art.4º, caput, destoa
do mandamento constitucional da legalidade como lex certa. Isto se dá, porque
inexiste propriamente um tipo penal de “fraude”, da mesma forma que não existe um
crime autônomo de “violência”. Apesar de estas expressões estarem ligadas à cognição
da ilicitude da conduta, não há exatamente como determinar como a mencionada
fraude se operaria dentro do contexto da gestão de instituição financeira.
Para se poder atribuir alguma validade e aplicabilidade ao disposto no art.4º,
caput, necessário se faz a aplicação por parte do julgador, de uma interpretação
taxativa ao dispositivo, isto é, de uma interpretação restrita aos termos legais já
firmados pela lei penal e que possuam sentido semântico delineado. Neste diapasão,
não se nega que constituiria gestão fraudulenta de instituição financeira, aquela
firmada sobre crimes de estelionato ou falsidades documentais, pois estas são espécies
cognitivamente apreendidas pelo destinatário da norma do conceito maior “fraude”.
Dessa forma, a gestão fraudulenta, em verdade, funcionaria como lex specialis dos
crimes já tipificados no Código Penal, não possuindo o condão de, por si mesma,
incriminar qualquer nova espécie de conduta criminosa, sob pena de completa negação
ao princípio da taxatividade.
Em relação ao disposto no § único do comentado art.4º, caput, da Lei dos
Crimes Financeiros, há de ser destacada a impossibilidade de se estabelecer a
58
intelecção por parte do destinatário da norma do que seja a mencionada “gestão
temerária”. O termo não comporta relação com outro já tipificado em lei que
possibilite o exercício interpretativo para o tipo do caput.
A equívoca redação do dispositivo parece tratar de crime de natureza culposa,
pois a expressão gestão temerária, em seu aspecto intelectivo, dá a entender a gestão
excessivamente desairosa, exercida pelo administrador da instituição financeira que
não observou deveres objetivos de cuidado previamente estabelecidos. Porém, mesmo
que fosse atribuída a modalidade de crime culposo ao disposto, de modo a estabelecer
o seu âmbito de validade, há de ser analisado que o tipo não prevê resultado
naturalístico, o que prejudicaria a sua aplicação.
Também em relação ao crime de gestão temerária, notória é a discussão
doutrinária no sentido de identificá-lo como crime de perigo concreto ou de perigo
abstrato. A doutrina atribui caráter de crime de perigo concreto ao disposto no § único,
como forma de incuti-lo alguma validade. Porém, também este âmbito de validade
restaria prejudicado, pois o risco é inerente à administração das instituições
financeiras, vez que o seu exercício implica na execução de operações que dependem
de diversos fatores que fogem ao controle do gestor, como por exemplo,
regulamentação internacionais, política de câmbio, concorrência, saúde econômica da
instituição financeira, etc.
Dessa forma, se alguma possibilidade de validade fosse atribuída ao crime de
gestão temerária, imprescindível se faria o sopesamento entre as provas produzidas no
processo de modo a identificar o dolo do agente e as circunstâncias sobre as quais se
operou a gestão, à míngua da fria análise contábil fornecida pelo BACEN quando da
instauração dos processos administrativos fiscalizatórios.
Portanto, pelo total descumprimento com o princípio da taxatividade, a
declaração de inconstitucionalidade do art.4º, caput, e § único da Lei 7.492/86 é
medida de extrema urgência, em função da manutenção do Estado Democrático de
Direito e os valores liberais conquistados pelo Direito Penal, em detrimento de
qualquer possibilidade de manifestação arbitrária do exercício do poder punitivo
estatal e da anarquização dos meios e métodos de controle dos crimes financeiros.
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