1-Discursos habermasianos

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    1/467

    Discursos habermasianos

    Clvis Ricardo Montenegro de LimaMaria Nlida Gonzalez de Gmez

    (Orgs.)

    Ttulo anterior: Dilogos habermasianos

    Braslia, DFMaio2012

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    2/467

    2011 Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia(Ibict)

    Emir Jos Suaden

    DiretorClia ZaherCoordenadora de Ensino e Pesquisa, Cincia e Tecnologia da Informao

    OrganizadoresClvis Ricardo Montenegro de LimaMaria Nlida Gonzalez de Gmez

    Reviso gramaticalJeanne Marie Claire Sawaya

    Normalizao dos trabalhos e elaborao de fcha catalogrfca

    Mrcia Feijo de FigueiredoCRB-7/ 5893

    C749

    Discursos habermasianos. Organizado por Clvis RicardoMontenegro de Lima e Maria Nlida Gonzalez de Gmez Rio de Janeiro : IBICT, 2010.468 p.

    Verso eletrnica 2012.

    Ttulo anterior: Dilogos habermasianos.

    ISBN: 978-85-7013-090-71. Jrgen Habermas. I. Lima, Clvis Ricardo Montenegro, org..

    II. Ttulo.

    CDD 165

    Ibict

    SAUS Quadra 5, Lote 6, Bloco H70070-912 - Braslia, DFwww.ibict.br

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    3/467

    APRESENTAO ................................................................................................6

    APONTAMENTOS SOBRE COOPERAO E CRTICA NASFILOSOFIAS DE R. RORTY E J. HABERMASFlvio Beno Siebeneichler ....................................................................................7

    AS CRTICAS DE HABERMAS AO EMPIRISMO NA MORALGiovani M. Lunardi ..............................................................................................21

    TICA DO DISCURSO: CONTEDO MORAL ERESPONSABILIDADE SOLIDRIA

    Jovino Pizzi ............................................................................................................31

    VERDADE E PODER EM DISCURSOS: REFLEXES SOBRE ASTEORIAS DE HABERMAS E FOUCAULTDanilo Persch e Mrio Antnio da Silva ...........................................................46

    HABERMAS E A PERSPECTIVA METACRTICA DA RAZOINSTRUMENTAL

    Antnio Baslio Novaes Thomaz de Menezes ................................................64

    IDEOLOGIA E CRTICA NA Teoria da ao comunicativaAlessandra Gen Pacheco. ...................................................................................84

    CONTROLE SOCIAL: UMA LEITURA A PARTIR DA AOCOMUNICATIVA DE JRGEN HABERMASNdia Maria do Socorro Chrachar de Oliveira Lima. ....................................106

    SUMRIO

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    4/467

    PRESSUPOSTOS DA TEORIA SOCIAL HABERMASIANA:Trabalho e interaoClodomiro Jos Bannwart Jnior .....................................................................127

    NOTAS PARA AGENDA DE PESQUISA DO TRABALHOIMATERIAL A PARTIR DA TEORIA DO AGIR COMUNICATIVOClvis Montenegro de Lima ..............................................................................153

    DIREITO ENQUANTO COMPENSAO DA MORAL:RESPONSABILIDADE HABERMASIANA E EXCEES

    ROUSSEAUNIANASJos N. Heck ........................................................................................................169

    RELAES INTERNACIONAIS, COSMOPOLITISMO E DIREITOSHUMANOS NO PENSAMENTO DE JRGEN HABERMASDavi Jos de Souza da Silva ...............................................................................193

    INDETERMINAO COGNITIVA DOS DIREITOS HUMANOSE RISCO DE RETORNO DO FANTASMA JUSNATURALISTA EMDISCURSOS DE APLICAO DO DIREITO POSITIVO

    Andr Luiz Souza Coelho. .................................................................................219

    O FUTURO DA HUMANIDADE NUMA ERA BIOTECNOLGICA:ENTRE SLOTERDIJK E HABERMASMurilo Mariano Vilaa ........................................................................................236

    HABERMAS E A SOCIOLOGIA DA SADECharles Feldhaus. .................................................................................................255

    HABERMAS E A EDUCAO: APORIAS SOBRE A PERFORMANCEElaine Conte e Rosa Martini. ............................................................................267

    UM ESTADO PARA O COSMOPOLITISMOFrderic Vandenberghe. .....................................................................................291

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    5/467

    GESTO MUNICIPAL E COMUNICAO PBLICA: UMAPERSPECTIVA CRTICASilvia R. Costa Salgado .......................................................................................319

    MODERNIDADE EM HABERMAS: ARQUITETURA MODERNA EPS-MODERNAEugnia Vitria Cmera Loureiro ....................................................................344

    INTERAO E INTERSUBJETIVIDADE NO PROJETOFILOSFICO DE AXEL HONNETH

    Herbert Barucci Ravagnani................................................................................368

    O DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL COMPARTILHADONA PERSPECTIVA DO DIREITO COSMOPOLITA, DO AGIRCOMUNICATIVO E DA TEORIA DISCURSIVASrgio Gustavo de Mattos Pauseiro. .................................................................388

    JUDICIALIZAO DA POLTICA: UM ENSAIO SOBRE OPROCEDIMENTALISMO DELIBERATIVO NA JURISDIOCONSTITUCIONAL BRASILEIRAMrcio Renan Hamel .........................................................................................404

    SOBRE JOGO DE LINGUAGEM: HABERMAS E WITTGENSTEINCllia Aparecida Martins ....................................................................................420

    O OUTRO NA INTERSUBJETIVIDADENadja Hermann ...................................................................................................436

    HABERMAS E A QUESTO DO REALISMO MORALAntnio Frederico Saturnino Braga .................................................................449

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    6/467

    6

    APRESENTAO

    A realizao dos Colquios Habermas tem funcionado comooportunidade privilegiada de interao e discusso entre pesquisadores eestudantes focados ou interessados na obra do lsofo e socilogo alemo

    Jrgen Habermas.

    A recepo da obra de Habermas no Brasil marcada por forteinterdisciplinaridade: lsofos, socilogos, cientistas polticos, educadores,

    operadores do direito, cientistas da informao, comuniclogos,administradores. Os Colquios Habermas reetem esta pluralidade.

    A forma de colquio permite que os participantes do encontro noapenas compartilhem seus trabalhos acadmicos, mas tambm que discutamaspectos controversos da extensa obra do autor da Teoria do Agir Comunicativo.

    Os Colquios Habermas so uma iniciativa de pesquisadores dos

    Departamentos de Filosoa da Universidade Federal de Santa Catarina e daUniversidade Estadual de Londrina. Cabe aqui destacar a participao nesteprocesso dos professores Delamar Jos Volpato Dutra e Alessandro Pinzani.

    O Colquio Habermas em 2010 foi realizado em parceria do InstitutoBrasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia com seus pesquisadoresidealizadores. No Colquio de 2010 foram apresentados 38 artigos originais,de pesquisadores de todas as regies do pas. Esta Coletnea contm estestrabalhos.

    Espera-se que sua publicao contribua para a discusso das teorias doagir comunicativo e do discurso, especialmente para as questes da losoaprtica.

    Clvis Ricardo Montenegro de Lima

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    7/467

    7

    APONTAMENTOS SOBRE COOPERAO E CRTICA NASFILOSOFIAS DE R. RORTY E J. HABERMAS

    Flvio Beno Siebeneichler1

    Gostaria de salientar inicialmente que tomo como ponto de partidauma constatao quase unnime: o fato de que as obras O espelho da natureza(1979) e Contingncia, ironia e solidariedade(1989), de Richard Rorty, bem como oslivros de Jrgen Habermas: Teoria do agir comunicativo (1981) e Verdade e justicao(1999), destacam-se entre as tentativas loscas contemporneas mais radicais

    e inuentes que visam no somente crtica da losoa, mas tambm suareconstruo aps a queda da metafsica (Adorno).Meu principal objetivo consiste em mostrar, mediante enfoque de

    pontos relevantes, que a elaborao dessas duas losoas paradigmticasda atualidade constitui exemplo nico de cooperao e crtica entre doispensadores que, apesar de seguirem caminhos distintos, empenham-se emlevar adiante, cada um sua maneira, o ditame hegeliano segundo o qual a

    tarefa principal da losoa consiste em apreender a contemporaneidade pormeio de pensamentos2. E no desempenho dessa tarefa ambos tentam aprenderum do outro, no somente dos pretensos acertos, mas tambm dos erros. Eisto equivale a dizer que o nvel terico atingido por um deles inuenciouhermeneuticamente o do outro e vice-versa. Com isto no pretendo armarpura e simplesmente que o pensamento de um modicou essencialmente odo outro!

    A necessidade de mediao e cooperao entre teorias opostas destacada claramente por Habermas. Segundo ele, a crtica losca nose pode reduzir a uma simples negao estril de pontos de vista contrriosconsiderados errneos. Porquanto um trabalho losco fecundo implicano somente inspeo crtica e distanciamento, mas tambm aproximaoe acoplagens. Caso contrrio, no haveria possibilidade de criar elosfecundos com outros princpios e teorias. Habermas pensa que sua teoria faz

    1 Universidade Gama Filho/ Rio de Janeiro.2 Nota: Richard Rorty faleceu em 2007.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    8/467

    8

    jus a isso porque possui um carter inteiramente aberto e no convencional.Ele esclarece, no entanto, que seu mtodo com base na possibilidade deacoplagens dialtico porquanto as conexes que ele tem na mira tambm

    so dialticas. Elas constituem uma verdadeira ligao (Anschluss), no umasimples anexao sincrtica (Angleichung) de um princpio terico a outro.3Tal princpio de acoplabilidade orienta, de um lado, o mtodo de

    anlise de teorias seguido por Habermas, o qual consiste em um exame crticodetido e acurado das pretenses de validade de uma teoria em particular etambm das suas possibilidades de acoplagem. De outro lado, esse mtodomarca, por assim dizer, o prprio ritmo da sua linguagem terica que se

    desdobra em dois passos principais:

    no primeiro momento, ele analisa e desenvolve determinadoprincpio terico at o ponto em que deixa entrever suas aporiase sua incapacidade de gerar novas acoplagens com outrosprincpios;

    a seguir, o ponto insatisfatrio tomado como base a partir daqual ele mesmo tenta a construo de novo princpio tericoque submetido, a seguir, a uma espcie de teste pragmtico deacoplagem. E a partir da ele passa a analis-lo sob o ngulo desua capacidade de fornecer respostas a novos desaos.

    Rorty, bem verdade, no desenvolve explicitamente uma teoriada busca cooperativa da verdade. Isso talvez seja consequncia de suacentrao maior em uma crtica losoa tradicional que se orienta peloespelho da autoconscincia de um sujeito que reete a realidade. Sua teoriaps-metafsica no necessita mais do conceito tradicional de verdade.Porm, isso no o impede de tomar parte em amplos e vivazes processosde aprendizagem, mediante cooperao e crtica com outros pensadores,especialmente com M. Heidegger, J. Dewey, F. Nietzsche, W. Sellars e,especialmente, J. Habermas.

    3 HABERMAS, J. Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufstze. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1999. p. 15.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    9/467

    9

    Convm observar, no nal deste prlogo, que o relevo dado porminha comunicao cooperao, mediao e crtica entre dois autorescontemporneos tem muito a ver com seu contexto de surgimento, que foi um

    frum de discusso organizado em dezembro do ano passado por professorese alunos dos Programas de Ps-Graduao em Filosoa da UFRJ e da UGFpor ocasio do lanamento da Revista thicaCadernos Acadmicos, que trazum dossi sobre o pragmatismo no qual so contempladas as posies deRorty e Habermas.

    Escolhi como estratgia de minha comunicao uma apresentaoem duas partes: na primeira, intitulada Gnese da relao cooperativa e

    crtica entre Habermas e Rorty, chamo a ateno para duas presenas: a deHabermas nos textos de Rorty e a deste ltimo nos textos do primeiro. J nasegunda parte, tento esboar convergncias e diferenas marcantes entre amboslanando mo de duas questes que permeiam os textos de Rorty e Habermas,a saber: a questo envolvendo o destino da losoa aps a ruptura do espelhoda natureza; e a questo da relao entre o privado e o pblico.

    GNESE DA RELAO COOPERATIVA E CRTICA ENTRE ASFILOSOFIAS DE RORTY E HABERMAS

    Presena de Habermas nos textos de Rorty

    necessrio iniciar pela apresentao da presena de Habermas nostextos de Rorty por uma simples razo: Rorty descobre Habermas antes deser descoberto por este, ao menos nos textos escritos por ambos. Por essa

    razo Habermas aparece no pensamento de Rorty antes mesmo de Rortyfazer parte da grande lista dos autores com os quais Habermas estabelecerelaes de acoplagem dialgica e crtica. A apario de Habermas em textosde Rorty se d em 1979, no Cap. VIII do Espelho da natureza. Este captulotrata precisamente da losoa sem espelho que deve entrar em vigor apsa desconstruo do paradigma mentalista.4

    4 Cf. RORTY, R. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton University Press, 1979. Na presente co-municao utilizada a segunda edio da traduo dessa obra para o alemo: Der Spiegel der Natur.Eine Kritik der Philosophie. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1981.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    10/467

    10

    Nesse texto Rorty se detm basicamente em dois elementosfundamentais da teoria habermasiana e apeliana, a saber, em primeiro lugar,a hermenutica quase-transcendental formulada por Habermas, em 1968,

    no livro Conhecimento e interesse, portanto durante a fase que antecede a guinadapragmtica. Em segundo lugar, ele se manifesta quanto pragmtica universalhabermasiana escrita em 1976, em plena fase de elaborao do paradigma dateoria do agir comunicativo. Esse fato permite aventar a hiptese de que ideiase conceitos de Habermas anteriores publicao da teoria do agir comunicativotiveram inuncia hermenutica no trabalho rortyano, seja na desconstruodo espelho da natureza, seja na construo de uma nova losoa sem espelho.

    E essa inuncia se aprofunda, se alarga e se multiplica no decorrerdos anos 80. Em texto editado por A. Guidens e outros, intitulado Habermasand Modernity, Rorty faz excelente comentrio crtico da obra habermasiana etenta aproximar o pensamento habermasiano do de J. F. Lyotard.5 Entretanto, no pequeno e, ao mesmo tempo, grande e decisivo livro de Rorty intituladoContingncia, ironia e solidariedadeque a presena de Habermas se manifesta commaior intensidade. Ele passa a ser, ao lado de Heidegger, Marx e Dewey, nosomente um contraponto estimulante, mas tambm um foco inspirador paraRorty.6

    Rorty nos textos de Habermas

    Rorty irrompe na obra de Habermas em 1980, um ano antes dapublicao da Teoria do agir comunicativo, em Rplicaescrita por Habermas a mde responder a objees contra a teoria do agir comunicativo.7

    Tais menes se limitam, no entanto, ao desconstrutivismo deRorty e fazem referncias aoEspelho da natureza. Habermas se apoia nelaspara armar que a losoa no pode mais, a partir de agora, dirigir-se ao

    5 Cf. Id. Habermas y Lyotard sobre la posmodernidad in: GUIDDENS, A., RORTY, R. et all. Haber-mas y la modernidad. Madrid: Catedra, 1988, 253-276.6 Cf. Id. Contingence, irony, and solidarity. Cambridge University Press, 1989. No presente trabalho uti-

    lizada a terceira edio da verso para o alemo realizada por Christa Krger: Kontingenz, Ironie undSolidaritt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1995.7 Cf. HABERMAS, J. Vorstudien und Ergnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M.:Suhrkamp,1984, 561.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    11/467

    11

    mundo, natureza, histria ou sociedade assumindo a posio de umsaber totalizador.8

    No entanto, a irrupo rortyana se torna, a partir da, cada vez mais

    frequente e avassaladora: em 1981, na conferncia intitulada A losoa comointrprete e guardadora de lugar, apresentada em um congresso organizadopela Associao Hegeliana (Hegel Vereinigung)9, Habermas se dedica a umainterpretao aprofundada e discusso de temas rortyanos: pr e contra!

    Convm destacar, todavia, um segundo texto intitulado Verdadee justicao no qual Habermas submete sua teoria do agir comunicativo uma profunda reviso luz de problemas levantados por um naturalismo

    mais severo e pelo realismo epistemolgico. No quinto captulo, intituladoVerdade e justicao, que constitui o tema central da obra, desenvolve-seum dilogo crtico com a guinada pragmtica de Rorty que serve de inspirao,correo e contraponto a Habermas.

    CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS ENTRE RORTY EHABERMAS LUZ DE DUAS QUESTES

    Neste ponto pretendo apresentar alguns resultados da relao dialtica

    entre Habermas e Rorty lanando mo de duas questes que considerocentrais em suas respectivas teorias: o destino da losoa aps a rupturado espelho da natureza e a tenso entre as esferas do privado e do pblico.Gostaria de sublinhar, no entanto, que o fato de orientar as consideraesmuito mais pela teoria habermasiana do que pela rortyana no signica que

    considero os argumentos habermasianos sempre mais convincentes do que osde Rorty. Signica apenas que, devido a limitaes de minha parte, sinto-merelativamente mais seguro em terreno habermasiano.

    8 Id. Theorie des kommunikativen Handelns, Vol. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1981, 15-16. Cf. tambm Op.cit., Vol. 2, 586.

    9 O texto que serviu de base a essa conferncia foi publicado em 1983 in: HABERMAS, J.Moralbewusst-sein und kommunikatives Handeln. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983, 9-28. Cf. traduo para o portugus(Conscincia moral e agir comunicativo) realizada por Guido A. de Almeida e publicada pela Ed. TempoBrasileiro em 1989.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    12/467

    12

    O destino da flosofa aps a ruptura do espelho da natureza

    O pressuposto da crtica rortyana losoa tradicional pode ser

    resumido da seguinte maneira: a maior parte de nossas convices loscas dominada por imagens e metforas, no por frases ou proposies. E alosoa tradicional ca presa imagem de uma conscincia que funcionacomo um grande espelho capaz de reetir diferentes tipos de representaesmais ou menos acuradas. E esse espelho tem de ser analisado com o auxliode mtodos apriorsticos. Por isso, a losoa tem de ser revista.

    Rorty escolhe como ponto de partida para sua reviso da losoaas crticas desenvolvidas por Heidegger, Wittgenstein e Dewey que so,segundo ele, os pensadores mais importantes do sculo XX porque rompemcom a concepo kantiana de losoa, que se caracteriza como uma cinciafundamental baseada em representaes da conscincia. Tal concepo deveser rejeitada, segundo ele. Deve ser abandonada, alm disso, a ideia de que ametafsica e a teoria do conhecimento constituem uma disciplina autnoma.

    Por conseguinte, aos olhos de Rorty a rejeio da losoa especularmoderna proposta por seus mentores lsofos constitui verdadeira demisso

    por justa causa. Porquanto, na sua interpretao, esses trs lsofos, que soos seus preferidos, interessam-se, em primeira linha, em refutar a problemticatradicional da losoa, isto , no se propem como objetivo principal farejarnela proposies falsas ou argumentos no slidos. Isso porque a possibilidadede se pensar uma nova cultura ps-kantiana no implica a necessidade de umademonstrao lgica da falsidade da doutrina kantiana. 10

    interessante observar que Rorty, ao menos na poca da redao do

    Espelho da natureza, no encara a demisso da losoa sistemtica com espritoderrotista. Antes, pelo contrrio, ele pensa que, a partir do momento emque deixamos de considerar a losoa como empreendimento de construosistemtica, possvel desenvolv-la como atividade teraputica, formadora eeducativa. Nesse novo contexto a losoa passa a desempenhar dois papisdistintos, a saber:

    10 RORTY, R. Der Spiegel der Natur. Eine Kritik der Philosophie. 2a. ed., Frankfurt/M.:Suhrkamp,1984, 16.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    13/467

    13

    o papel de um diletante bem informado, de um polipragmticoe de um mediador socrtico capaz de criar mediaeshermenuticas e tradues entre vrios tipos de discurso. Trata-

    se aqui da gura do intelectual formador ou educador que vai,constantemente, em busca de modos mais novos e interessantesde descrever as coisas11;

    a losoa tambm pode assumir o papel de inspetor da culturaque conhece os fundamentos comuns a todos e que, na qualidadede rei-lsofo, sabe o que os outros fazem na realidade apesarde eles mesmos no saberem porquanto ele conhece o contexto

    intransponvel (unvordenklich) das formas, da linguagem e daconscincia.

    importante destacar que, na concepo de Rorty, o mediadorpolipragmtico no utiliza por via de regra os discursos convencionais dascincias, cujo critrio de validade se estriba unicamente na comensurabilidade.Para entender isso convm lembrar uma distino importante entre discursonormal e discurso no normal que Rorty leva a cabo mediante a generalizaoda distino introduzida por Thomaz Kuhn entre cincia normal e cinciarevolucionria 12:

    o discurso normal comensurvel porque se desenvolve emum sistema de convenes reconhecidas em geral, as quaisestabelecem preliminarmente o que pode e o que no pode

    valer como bom argumento, como boa contribuio, comoboa crtica13. O seu produto sempre cincia (episteme), isto, enunciados que podem ser reconhecidos e aceitos por suaracionalidade;

    j o discurso extraordinrio incomensurvel porquanto deletomam parte pessoas que no reconhecem ou simplesmenteignoram tais convenes. Por isso, seu produto completamente

    11 Ibid., 345.12 Ibid., 348.13 Ibid., 348-349.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    14/467

    14

    indeterminado, ou seja, pode conter tudo ou nada, o absurdo, oimprevisvel, uma revoluo, etc.

    Fica claro, pois, o destino de uma losoa demitida, sem espelhoreetor e sem fundamento ltimo: ela constrangida a abandonar a posioprivilegiada que ocupava em um tribunal destinado a julgar a prioria culturaem geral e as pretenses cognitivas das cincias e da prpria metafsica.

    Essa concluso aguou naturalmente a curiosidade de Habermas emrelao losoa de Rorty e o inspirou, certamente, a caracterizar a losoacomo guardi da racionalidade e como intrprete das esferas da vida.

    Habermas formula inicialmente a seguinte questo geral: ser que acrtica ao fundamentalismo, desenvolvida por Rorty, implica necessariamenteo abandono da teoria da modernidade, de Kant, que conara em umaracionalidade procedimental que serve como base da validade de nossasacepes justicadas no campo do conhecimento cientco, das ideias moraise das avaliaes estticas?

    Habermas no formula uma resposta direta a essa questo. Apresenta,em vez disso, uma narrativa das diferentes etapas percorridas pela crtica losoa, as quais culminam na crtica rotyana. Ele pensa que, por essecaminho, possvel claricar algumas pressuposies dessa crtica, mesmoque no se chegue a uma soluo dos pontos controversos.

    Primeira etapa da crtica losoa:a crtica losoa e ao fundamentalismo kantinao tem incio em

    Hegel que substituiu o modo de fundamentao transcendental por outro,de cunho dialtico.

    Segunda etapa:na segunda etapa tomou corpo, segundo Habermas, uma crtica

    dirigida aos modos de fundamentar inerentes losoa de Kant e doprprio Hegel. Ela foi desenvolvida por seguidores kantianos e hegelianos,especialmente por Strawson, Paul Lorenzen e Karl Popper. Strawson, sabido, desenvolve uma posio analtica inspirada em Kant, a qual mantmuma pretenso universalista, ao passo que Paul Lorenzen interpreta Kant

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    15/467

    15

    em uma perspectiva construtivista. K. Popper, por seu turno, trabalha nalinha de um racionalismo crtico que substitui a ideia de fundamentao pelomtodo do exame crtico. Habermas menciona ainda, na linha da crtica ao

    hegelianismo, a epistemologia dialtica de Lukacs e o negativismo de Adorno.

    Terceira etapa:na terceira etapa Habermas descobre uma crtica ainda mais radical

    dirigida simultaneamente contra Kant, contra Hegel e contra os seguidoresps-kantianos e ps-hegelianos14. Trata-se de posies hermenuticas epragmticas que questionam simplesmente qualquer tipo de pretenso deracionalidade e isso a um nvel de radicalidade jamais visto15. Habermasconstata que a crtica radical desenvolvida por Paul Feierabend, MichelFoucault, R. Rorty e outros, e que pretende superar o espelho da natureza,coloca em questo as pretenses de fundamentao e autofundamentao dalosoa. Porquanto eles simplesmente abandonam o horizonte no qual semovia a losoa da conscincia.

    Ao apresentar a terceira etapa da histria da crtica dirigida contraa losoa, Habermas levanta uma questo importante: em que sentido as

    novas ideias da hermenutica e do pragmatismo devem ser entendidas?

    No sentido de uma renncia total pretenso da razo inerente losoa, o que equivaleria a uma demisso do papel da losoa?

    Ou no sentido de um novo paradigma, o qual, mesmosubstituindo o jogo de linguagem mentalista da losoa daconscincia, no abrigaria os modos de fundamentao da

    losoa da conscincia?16

    Antes de formular uma resposta, Habermas traa, em grandes pinceladas,os contornos de quatro formas contemporneas de demisso da losoa:

    a) a demisso teraputica ou quietista inaugurada por Wittgenstein.Nessa linha, a losoa teria de ser interpretada no como cura de

    14 HABERMAS, J.Moralbewusstasein und kommunikatives Handeln, 12.15 Ibid., 16.16 Ibid., 18.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    16/467

    16

    uma doena, mas como a prpria doena que ela pretendia curar.Habermas lembra aqui a conhecida formulao wittgensteiniana,segundo a qual os lsofos apenas tumultuaram e embaralharam

    os jogos de linguagem que funcionam normalmente no dia-a-dia17. Ora, essa losoa de cunho teraputico deixa tudo comoestava antes porquanto ela retira as medidas de sua crtica dasformas de vida em que se encontra. Por essa razo, a antropologiacultural uma das substitutas convocadas para assumir as tarefasantes desempenhadas pela losoa, que foi demitida por justacausa;

    b) a segunda forma de demisso da losoa tida como dramtica.As atitudes de Heidegger e Bataille constituem para Habermasuma forma de demisso dramtica j que ela se reveste de umcarter epocal: ela prope o retorno contemplativo, herico,do homem contemporneo e da losoa soberania de umSer primordial, de algo que , ao mesmo tempo, impensvel eintransponvel (Unvordenkliches)18;

    c) Habermas elenca ainda, em terceiro lugar, uma forma maissutil e ambgua de demisso da losoa que ele designa comosalvacionismo neo-aristotlico. Tal linha de pensamento pretendesalvar, de um lado, velhas verdades loscas. Por outro lado,sob o pretexto de conservar verdades clssicas, ela demitepraticamente a losoa uma vez que a esvazia de todas aspretenses de validade. Dito de outra forma: as doutrinasdos clssicos so utilizadas no como contribuies para umadiscusso racional ou como um tesouro lolgico, mas comosimples fontes de iluminao e reavivamento19;

    d) em quarto lugar caracterizado o modo rortyano deautodemisso da losoa que culmina na passagem para umdiscurso extraordinrio, incomensurvel. Segundo Habermas,Rorty introduz uma variante interessante ao contrapor entre

    17 Ibid., 19.18 Ibid., 1919 Ibid., 20.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    17/467

    17

    si dois tipos de discurso ou dilogo: de um lado, o discursonormal ou comensurvel da cincia. De outro, o discurso nonormal, incomum ou dilogo incomensurvel. No discurso

    normal da cincia conhecemos os procedimentos que permitemsolucionar problemas e ordenar questes controversas porqueh medidas que garantem consenso. Ao passo que em dilogosincomensurveis as orientaes bsicas continuam sendocontroversas. Ora, discursos incomensurveis no podem tercomo objetivo a passagem para uma normalidade comensurvelou para o consenso, porquanto se contentam com a esperana

    de que o dissenso seja, pelo menos, fecundo. E nesse sentido,eles so edicantes (edifying)20.

    Habermas avalia esta quarta forma assegurando que a verso rortyanada losoa aglutina todas as qualidades que a losoa adquiriu por meiodas suas sucessivas demisses, especialmente as verses teraputica, hericae salvacionista. Por isso arma textualmente que: Talvez possamos, um dia,comemorar R. Rorty como o Tucdides de uma tradio de pesquisa que setornou possvel aps ter-se iniciado a terapia wittgensteiniana21.

    No meu entender, possvel resumir a crtica de Habermas ao modocomo Rorty interpreta a autodemisso da losoa em dois pontos:

    Primeiro ponto: Habermas est convencido da consistncia dosargumentos elaborados por Rorty.

    Segundo ponto: ele no aceita a concluso de Rorty, segundo aqual a losoa tem de abandonar no somente o papel de indicadora dolugar das cincias e de juza da cultura, mas tambm o de guardi (Hter)da racionalidade. Habermas pensa que a concluso rortyana levaria a umarenncia pura e simples das pretenses racionais que acompanham a losoadesde a sua origem.

    Por essa razo, ao nal de sua narrativa dos principais lances histricosda autocrtica de uma losoa demissionria, Habermas contrape-se a todasas formas de autodemisso ao defender a tese de que a losoa mesmo

    20 Ibid., 21.21 Ibid., 19.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    18/467

    18

    destituda das funes de juiz com o poder de indicar as posies a seremocupadas pelas cincias pode e deve continuar mantendo pretenses de

    validade. Mesmo que para isso tenha de assumir as funes mais modestas

    de intrprete hermenutico e pragmtico do mundo da vida e de guardio daracionalidade22.

    A TENSO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    interessante observar que tanto Habermas como Rorty concordamem armar que mesmo aps a ruptura do espelho da natureza continua

    acesa a velha tenso entre o privado e o pblico23

    . Rorty atesta, por exemplo,que pensadores nos quais predomina a tendncia autonomia privada e autocriao se inclinam a ver a esfera pblica com os olhos de Nietzsche,isto , como algo que se contrape simplesmente a uma instncia profundaque existe dentro de ns. Ao passo que os pensadores mais inclinados a umacomunidade com mais justia e liberdade tendem a considerar o desejo deplenitude individual como algo que leva imperceptivelmente ao esteticismo eao irracionalismo.

    Autores como Kierkegaard, Nietzsche, Beaudelaire, Proust eHeidegger so exemplos de uma vida privada autoconstruda e plena. Eautores como Marx, Stuart Mill, John Dewey, Habermas e John Rawls noso exemplos, arma Rorty, mas concidados que se engajaram num esforosocial comum para tornar nossas instituies e modos de comportamentomenos cruis e mais justos.

    Nessa linha de raciocnio no h disciplinas cientcas ou losoascapazes de abranger em uma s viso a plenitude privada e a solidariedade.

    Visto que, por sua vez, o vocabulrio da autonomia necessariamente privado,segundo Rorty. Ao passo que o vocabulrio da justia intrinsecamentepblico. Por essa razo, ele formula uma tese que pode ser condensada nosseguintes termos:

    22 Ibid., 11-12.23 RORTY, R. Kontingenz, Ironie und Solidaritt, 12.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    19/467

    19

    Uma aproximao entre essas duas tendncias somente possvelquando consideramos que o objetivo de uma sociedade justa e livreconsiste na permisso que ela concede aos seus cidados de seremirracionais, ou privatizantes ou estetizantes contanto que utilizem o

    tempo que lhes pertence e no causem danos a outros nem lancemmo de recursos utilizados por pessoas menos favorecidas 24.

    Nesse ponto, Rorty chega concluso de que necessrio assumiruma posio na qual nos contentamos em saber que a ideia de autocriaoe de solidariedade tem o mesmo valor. No entanto elas so, denitivamente,incomensurveis. Esta posio caracterizada como a de um liberal irnico

    que est ciente de que suas convices mais profundas so contingentes e deque a esperana que nutre de que o sofrimento, a crueldade e a humilhaoacabem falvel. Alm disso, ele no sabe dar uma resposta questo: por quedevemos deixar de ser cruis? Por que a crueldade perniciosa?

    Segundo Rorty, todo aquele que acredita na possibilidade dessasrespostas , no fundo, um metafsico. Porm existe, segundo ele, outra sada,a da utopia liberal apoiada em uma ironia universal que implica renncia s

    pretenses racionais de uma teoria e a passagem para a narrativa edicante25

    . possvel notar que a concepo de Habermas quanto tensoentre o privado e o pblico provoca mais divergncia do que coincidncias,as quais no podem ser discutidas aqui. Por isto, considero adequado nalizara presente comunicao chamando a ateno para dois pontos presentes nopensamento de Habermas:

    para Habermas, a losoa no pode abandonar a pretenso daracionalidade. Porque a morte, a liquidao ou a demisso pura esimples da losoa implicariam igualmente a morte da convicosegundo a qual as ideias do verdadeiro e do incondicional socondies necessrias, quando se trata de formas humanas deconvivncia que dependem de um jogo entre o privado e opblico;

    24 Ibid., 13.25 Ibid., 16.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    20/467

    20

    a teoria do agir comunicativo se caracteriza pela tentativa depensar a subjetividade a partir da intersubjetividade, o queimplica na co-originariedade ou equiprimordialidade do privado

    e do pblico.Concluindo: se verdade que tanto Rorty como Habermas se

    empenham, em seu labor losco, em seguir o ditame hegeliano que osobriga a apreender seu tempo em pensamentos, verdade tambm que existeuma distncia entre ambos, a qual do tamanho da distncia que separa odiscurso terico comensurvel de outro no comensurvel. Dito de outra

    forma: a distncia que separa um discurso que pretende ser apenas edicantee formador de um discurso losco empenhado em fazer jus a pretensesde validade.

    REFERNCIAS

    GUIDDENS, A., RORTY, R. et all. Habermas y la modernidad. Madrid: Catedra. 1988,253-276.

    HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, 2 vls., 3 ed., Frankfurt/M.:Suhrkamp, (1981) 1985.

    ______.Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983.

    ______. Vorstudien und Ergnzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns.

    Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984.

    RORTY, R. Der Spiegel der Natur. Eine Kritik der Philosophie. Trad. Michael Gebauer. 2ed., Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984.

    ______. Kontingenz, Ironie und Solidaritt. Trad. Christa Krger. Frankfurt/M.:Suhrkamp, 1992.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    21/467

    21

    AS CRTICAS DE HABERMAS AO EMPIRISMO NA MORAL

    Giovani M. Lunardi1I

    Habermas considera que manifestaes, juzos e regras moraispossuem um teor cognitivo, expressando um saber. Identicando estesaber, segundo ele, podemos fundamentar ou justicar algo moralmente.Para o lsofo alemo, a tarefa da losoa moral justamente aprofundar

    a fenomenologia das disputas morais para descobrir o que os participantesfazem quando (acreditam) justicar algo moralmente. Vrias teorias moraisda modernidade empreenderam esforos nesse sentido de explicao do teorcognitivo da moral: o aristotelismo, o kantismo e o empirismo2.

    Habermas entende que as explicaes empiristas so insucientes, pois

    o empirismo concebe a razo prtica como a capacidade de determinaro arbtrio de acordo com as mximas da inteligncia, enquanto o

    aristotelismo e o kantismo no contam apenas com motivos racionais,mas com uma autovinculao da vontade motivada pelo discernimento.

    De acordo com ele, o empirismo entende a razo prtica como sendorazo instrumental. Para algum que age, razovel agir de certa forma e node outra, se o resultado (esperado) de seu ato de seu interesse, o satisfaz oulhe agradvel. Em determinada situao, tais razes valem para determinadoator, que tem determinadas preferncias e quer atingir determinadas metas.

    Ele denomina essas razes pragmticas ou preferenciais, porque elasmotivam para a ao, e no porque suportem julgamentos ou opinies, talcomo o fazem as razes epistmicas. Elas constituem motivos racionais paraos atos, no para as convices. Claro que elas afetam a vontade apenas medida que o sujeito atuante se apropria de determinada regra de ao. fundamentalmente nisso que reside a diferena entre os atos premeditados

    1 Doutor em Filosoa. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC (Campus Ararangu). Universi-dade Federal de Rondnia/UNIR. E-mail: [email protected] HABERMAS, Jrgen.A incluso do outro. So Paulo: Edies Loyola, 2002. p. 22-23.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    22/467

    22

    e os atos motivados espontaneamente. Tambm um propsito umadisposio; mas essa, diferena da tendncia, s se constitui mediante aliberdade do arbtrio, a saber, na medida em que um ator adota uma regra de

    ao. O ator age racionalmente quando o faz a partir de razes, e quando sabepor que est seguindo uma mxima. O empirismo s leva em consideraorazes pragmticas, ou seja, o caso em que um ator deixa vincular seuarbtrio, pela razo instrumental, s regras de destreza ou aos conselhos daprudncia (como diz Kant). Assim, ele obedece ao princpio da racionalidadedos ns: Quem quer um m, tambm quer (na medida em que a razo temuma inuncia decisiva sobre seus atos) o meio imprescindvel para tanto, queest em seu poder (KANT FMC, BA 45)3.

    Habermas enderea suas crticas ao empirismo na moral especicamenteao lsofo escocs David Hume. Da mesma forma que para os outros empiristas,ele arma que os motivos pragmticos expostos pelo empirista escocs paraposicionamentos e atos morais s fazem sentido enquanto pensarmos emrelacionamentos interpessoais em comunidades pequenas e solidrias, comoas famlias ou as vizinhanas. Sociedades complexas no podem manter suacoerncia apenas sobre a base de sentimentos como a simpatia e a conana, mais

    ajustados aos espaos reduzidos. O comportamento moral diante de estranhosexige virtudes articiais, sobretudo disposio para a justia. Em vista dascadeias abstratas de aes, os participantes de grupos primrios de refernciaperdem o controle sobre a reciprocidade entre prestaes e recompensas e, com isso, os motivos pragmticos para a benevolncia. Os sentimentos deobrigao que salvam as distncias entre estranhos no so racionais paramim do mesmo jeito como o a lealdade para com meus aparentados, em

    cuja condescendncia eu posso, por minha vez, conar. Na medida em que asolidariedade o avesso da justia, no h nada que deponha contra a tentativa deexplicar o surgimento dos deveres morais a partir da transferncia de lealdadesde um grupo primrio para os grupos cada vez maiores (ou da transformao deconana pessoal em conana sistemtica). Segundo Habermas, uma teorianormativa no prova sua validade com questes de psicologia moral; antes,ela tem de explicar a prevalncia normativa dos deveres. Em casos de conitosentre, por um lado, um compromisso benevolente dos sentimentos e, por outro,

    3 Ibidem.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    23/467

    23

    um mandamento abstrato de justia, a teoria normativa deve esclarecer por que,para os membros de um grupo, deve ser racional preterir sua lealdade para comas pessoas que conhece face a face em favor de uma solidariedade para com

    estranhos. Contudo, quando as dimenses de comunidade de seres racionaisque merecem igual respeito ultrapassam o limite do compreensvel, os sentimentosconstituem uma base evidentemente estreita demais para a solidariedade entre seus membros4.

    A investigao que empreendemos no presente trabalho justamentede examinar a plausibilidade das crticas de Habermas losoa empirista deHume, como explicao do fenmeno moral. Evocamos basicamente duasdiculdades para a plausibilidade das crticas habermasianas:

    primeiro, a relao entre empirismo e a teoria moral na losoahumeana;

    segundo, a concepo de razo prtica e o papel dos sentimentosem sua losoa moral.

    Devido exiguidade do tempo disponvel, vamos nos deter nopresente trabalho em examinar somente a primeira diculdade, qual seja:

    denir claramente qual o mtodo utilizado por Hume em sua losoa morale a relao com a losoa empirista.

    II

    O lsofo escocs dene sua metodologia como uma tentativade introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais

    armado no subttulo do Tratado.5

    Hume apresenta esta abordagem como omtodo experimental de raciocnio deduzindo mximas gerais a partir de umacomparao de casos particulares.6 Para os intrpretes tradicionais, o escocscom sua metodologia inscreve-se na histria da losoa na denominadalosoa empirista. Alm disso, a investigao da moral atravs de um

    4 HABERMAS, Jrgen.A incluso do outro. So Paulo: Edies Loyola, 2002. p. 11-60.5 Cf. o subttulo deA Treatise of Human Nature. HUME, David. Tratado da natureza humana:uma ten-

    tativa de introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Traduo de DboraDanowski. So Paulo: Editora Unesp, 2001.6 HUME, David. Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral. Traduo de JosOscar de Almeida Marques. So Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 231.(EPM 1.10)

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    24/467

    24

    modelo empirista, ou seja, a observao e anlise das aes morais, e do quemotiva estas aes morais, perseguida por Hume, considerada pelos seuscrticos como fonte de um ceticismo relativista. Este relativismo coloca

    as obrigaes morais, o dever-serdeterminado pelas inclinaes das paixes eemoes. Ou seja, a denominao de empirista losoa de Hume j atribuitambm a denominao de ctico sua losoa moral.

    Mas aqui, j nos deparamos com nosso primeiro problema. SegundoJoo Paulo Monteiro, o termo empirista jamais foi usado por Hume. Pode-se apenas, de acordo com Monteiro, armar que Hume, na mesma linha queBacon, Hutcheson, Locke e Berkeley, apontava a necessidade da experincia,

    em face da incapacidade da razo por si mesma de gerar saber acerca do mundo.H tambm vrios elementos inatistas na losoa de Hume que contrariamuma atribuio de puramente empirista para sua teoria, assegura Monteiro7.

    Outro comentador, Gilles Deleuze, na obra Empirisme et subjectivit,dedicada ao estudo de Hume, assinala que incompleta a denio que apresentao empirismo como uma teoria segundo a qual o conhecimento s comeacom a experincia. Para Deleuze, esta denio insatisfatria: primeiramente,porque o conhecimento no o mais importante para o empirismo, mas apenaso meio de uma atividade prtica; em seguida, porque a experincia no tempara o empirista e para Hume, em particular, esse carter unvoco e constituinteque se lhe empresta. Ainda, segundo Deleuze, a experincia tem dois sentidosrigorosamente denidos por Hume, e em nenhum deles ela constituinte:

    De acordo com o primeiro sentido, se denominamos experincia acoleo de percepes distintas, devemos reconhecer que as relaes no

    derivam da experincia; elas so o efeito dos princpios de associao,dos princpios da natureza humana, a qual, na experincia, constitui umsujeito capaz de ultrapassar a experincia. E se empregamos a palavraem seu segundo sentido, para designar as diversas conjunes dosobjetos no passado, devemos ainda reconhecer que os princpios novm da experincia, pois, ao contrrio disso, a experincia que deveser compreendida como um princpio8.

    7 Notas de Joo Paulo Monteiro. HUME, D. Tratado da natureza humana. Traduo de Seram da SilvaFontes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001.8 Deleuze, Gilles.Empirismo e Subjetividade:ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Traduode Luiz B. L. Orlandi. So Paulo: Ed. 34, 2001. p. 121.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    25/467

    25

    Percebemos, ento, em face das observaes apresentadas, anecessidade de aprofundarmos em nossa pesquisa a temtica dalosoa empirista e o mtodo de anlise da moral utilizada por

    Hume.

    Na sua execuo da defesa da primazia dos sentimentoscomo a maneirapela qual os seres humanos tanto adquirirem o conhecimento de questes defatos e existncia quanto se revelam capazes de avaliaes morais sobre asaes de outros e de si mesmo (cf. E 35), Hume vai dedicar-se ao cultivoda verdadeira metafsica (E 12). O lsofo escocs, no entanto, j havia se

    pronunciado contra qualquer forma de investigao em losoa moral queno fosse metodologicamenteda mesma forma que a utilizada na losoa naturalou nas cincias naturais (cf. E 27). Ele estava contrapondo-se metafsicaescolstica e, principalmente, ao racionalismo dogmtico, o qual pretendiafundamentar exclusivamente na razo todas as atividades que so prpriasdo ser humano9. Hume cita o padre Malebranche, Cudworth e Clarke comopensadores dessa teoria abstrata da moral que exclui todo sentimento epretende fundar tudo na razo (E 197 n. 1).

    De forma contrria, o projeto Humeano prope-se a conhecer aessncia da mente seus poderes e, ao mesmo tempo, qualidades pelomtodo da observao e experincia. Seu mtodo um exame newtonianoda dinmica da mente humana, pois somente com esse mtodo experimentalpodemos identicar as distines morais, portanto uma vez que o vcio e a

    virtude no podem ser descobertos unicamente pela razo ou comparaode ideias, deve ser por meio de alguma impresso ou sentimento por eles

    9 Cf. MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Racionalidade e crise:estudos de histria da losoa modernae contempornea. So Paulo: Discurso Editorial e Editora da UFPR, 2001. p. 114. Segundo MacIntyre,o modelo de justicao racional aristotlico vai estar presente no sistema legal, teolgico e educacionalescocs baseado na ideia de princpios que podiam ser defendidos racionalmente. Mais especica -mente, no mbito das instituies escocesas do sculo XVIII, o papel do professor de losoa moralera crucial na defesa, segundo o modelo aristotlico, dos fundamentos racionais da teologia crist, damoral e da lei, devendo se ensinar os princpios da Religio Natural e da Moralidade e a verdade dareligio crist. Da mesma forma, o tesmo da poca armava que o conhecimento de Deus era possvel

    apenas pela razo. J podemos antever os motivos pelos quais Hume no foi aceito como professorda Ctedra de Filosoa Moral em Edimburgo (1745) e Glasgow (1752) que, por exemplo, exigia quefosse dada instruo sobre as verdades da religio racional de modo favorvel revelao crist. Cf.MACINTYRE, 1991, p. 238-239, 268-269, 308-309.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    26/467

    26

    ocasionados que somos capazes de estabelecer a diferena entre os dois(T470). As relaes entre impresses ou sentimentos podem ser descobertasapenas pela experincia, pois somente dessa forma conhecemos sua

    inuncia e conexo; e essa inuncia, no deveramos jamais estend-la paraalm da experincia (T466). Para o lsofo escocs, somente a experincianos proporciona um conhecimento adequado dos assuntos humanos, e tendonos ensinado qual sua relao com as paixes humanas, percebemos que agenerosidade dos homens muito restrita, e, raramente indo alm dos amigose da famlia, ou, no mximo, alm de seu pas natal (T 602). Os assuntoshumanos dizem respeito a relaes entre os prprios seres humanos ou com

    objetos externos; so relaes de impresses e sentimentos que no podemser compreendidas, unicamente, por uma razo demonstrativa ou dedutiva quesomente descobre relaes de ideias. Na Sinopsedo Tratado, Hume arma quese um homem comoAdo fosse criado apenas com seu entendimento, mas semexperincia, nunca seria capaz de inferir todos os raciocnios concernentes acausas e efeitos (cf. T650-651). Ento, o mtodo adequado em losoa moral o experimental, ou seja, ao julgar as aes humanas, devemos proceder combase nas mesmas mximas que quando raciocinamos acerca de objetos externos(T403). Pois, segundo Hume, quando consideramos quo adequadamente seligam as evidncias naturale moral, formando uma nica cadeia de argumentos,no hesitaremos em admitir que elas so da mesma natureza e derivam dosmesmos princpios (E 90).

    No entanto, embora utilizando o mesmo mtodo experimental, ocorreimportante diferena: na losoa moral, contrariamente losoa natural,no se pode realizar experimentos com premeditao e exato controle das

    variveis. O lsofo escocs admite que:

    A prpria losoa experimental, que parece mais natural e simplesque qualquer outra, requer um esforo extremo do juzo humano.Na natureza, todo fenmeno composto e modicado por tantascircunstncias diferentes que, para chegarmos ao ponto decisivo,devemos separar dele cuidadosamente tudo o que supruo einvestigar, por meio de novos experimentos, se cada circunstncia

    particular do primeiro experimento lhe era essencial. Esses novosexperimentos so passveis de uma discusso do mesmo tipo; demodo que precisamos da mxima constncia para perseverar em nossa

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    27/467

    27

    investigao, e da maior sagacidade, para escolher o caminho correto,dentre tantos que se apresentam. Se isso ocorre at na losoa danatureza, quanto mais nalosoa moralem que existe uma complicaomuito maior de circunstncias, e em que as opinies e sentimentos

    essenciais a qualquer ao da mente so to implcitos e obscuros quefrequentemente escapam nossa mais rigorosa ateno, permanecendono apenas inexplicveis em suas causas, mas at mesmo desconhecidosem sua existncia (T175, grifo nosso)

    No incio do Tratado ele j havia nos alertado:

    Quando no sou capaz de conhecer os efeitos de um corpo sobre outro

    em uma dada situao, tudo que tenho a fazer pr os dois corposnessa situao e observar o resultado. Mas se tentasse esclarecer damesma forma uma dvida no domnio da losoa moral, colocando-me no mesmo caso que aquele que estou considerando, evidente queessa reexo e premeditao iriam perturbar de tal maneira a operaode meus princpios naturais que se tornaria impossvel formar qualquerconcluso correta a respeito do fenmeno (Txviii-xix).

    Como bem lembra Guimares, o lsofo escocs observa que osujeito do experimento tambm objeto e, pela simples conscincia quetem de sua condio, seu comportamento observado se modica10. Analde contas, como arma Hume, na introduo do Tratado, ns no somossimplesmente os seres que raciocinam, mas tambm um dos objetos acercados quais raciocinamos (Txv). Por isso, em losoa moral,

    (...) devemos reunir nossos experimentos mediante a observaocuidadosa da vida humana, tomando-os tais como aparecem no cursohabitual do mundo, no comportamento dos homens em sociedade,em suas ocupaes e em seus prazeres. Sempre que experimentosdessa espcie forem criteriosamente reunidos e comparados, podemosesperar estabelecer, com base neles, uma cincia, que no ser inferiorem certeza, e ser muito superior em utilidade, a qualquer outra queesteja ao alcance da compreenso humana (Txix).

    10 Cf. GUIMARAES, 2007, p. 206.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    28/467

    28

    Para realizar esse seu intento, Hume elabora o Tratado da natureza humanaexaminando seus aspectos constituintes: o entendimento, as paixes e a moral.O Tratado ento almeja o conhecimento geral, por isso losco, das leis e

    princpios da natureza humana11

    . Ou seja, sua concepo de losoa investigaras operaes e os princpios da natureza humana, segundo um mtodo natural deinvestigao. Isso signica que no um procedimento analtico ou conceitual, poissegundo Hume, mais importante observar as coisas do que as denominaes

    verbais (E 322); no podemos car discutindo acerca de palavras (T297). bvio que o lsofo escocs considera que os conceitos devem ser corretamentedenidos, pois, se algum alterar as denies, no posso pretender discutir com

    ele sem saber o sentido que atribui s palavras (T407)12

    . interessante perceber como Hume pode ser interpretado como umctico radical, segundo o qual ele estaria negando em seu Tratado no s aexistncia dos objetos externos como a do prprio sujeito; o que por si steria implodido qualquer possibilidade de uma cincia da natureza humana, queseu livro prometia apresentar ao leitor, como da cincia em geral. Ele mesmoresponde aos que o acusam de ser um ctico radical:

    (...) se sou realmente um desses cticos que sustentam que tudo incertoe que nosso juzo no possui nenhuma medida da verdade ou falsidadede nada, responderia que essa questo inteiramente suprua,e que nem eu nem qualquer outra pessoa jamais esposou sincera econstantemente tal opinio. A natureza, por uma necessidade absolutae incontrolvel, determinou-nos ajulgar, assim como a respirare a sentir.No podemos deixar de considerar certos objetos de um modo maisforte e pleno em virtude de sua conexo habitual com uma impresso

    presente, como no podemos nos impedir de pensarenquanto estamosdespertos, ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamosnossos olhos para eles em plena luz do dia. Quem quer que tenhase dado ao trabalho de refutar as cavilaes desse ceticismo total, naverdade debateu sem antagonista e fez uso de argumentos na tentativade estabelecer uma faculdade que a natureza j havia implantado emnossa mente, tornando-a inevitvel (T183, grifo nosso).

    11 GUIMARES, 2007, p. 207.12 Preferimos a seguinte traduo:HUME, David. Tratado da natureza humana. Traduo de Seram da Silva Fontes. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2001. p. 474.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    29/467

    29

    Ou seja, a natureza forte demais e est pronta para rebater qualquerargumento ctico que possa ser apresentado (cf. T 657). Est claro que opensamento humeano, repetindo MacIntyre, representou uma subverso do

    pensamento da sua poca. No entanto, sua losoa tem uma contrapartepositiva: a losoa moral, ou cincia da natureza humana pode ser de duasmaneiras diferentes, cada uma delas possuidora de um mrito peculiar e capazde contribuir para o entretenimento, instruo e reforma da humanidade (E 5).

    O que nos interessa mais propriamente para os objetivos de nossainvestigao como, segundo a losoa moral de Hume, utilizando ummtodo experimental, podemos estabelecer valores, princpios, critrios e

    a discriminao e justicao de contedos morais a partir de sentimentospresentes na natureza humana? Essa a principal diculdade, conforme asinterpretaes precedentes, de sua losoa moral: como responder tal questosem recair em um ceticismo normativo, um emotivismo, um relativismoaxiolgico ou em um naturalismo descritivista (moralidade psicologizada)?

    Como resposta a essas questes, inicialmente, atribumos losoade Hume a seguinte a concepo de naturalismo moral:os fundamentos damoralidade com um sistema de valores constituem-se, unicamente, em nossanatureza humana. Ou melhor, os sentimentos humanos so a base para osjulgamentos normativos. Escreve o lsofo escocs na Primeira Investigao:

    A natureza moldou a mente humana de tal forma que, to logo certoscaracteres, disposies e aes faam seu aparecimento, ela experimenta[sente] de imediato o sentimento [feels the sentiment] de aprovao ou decondenao, e no h emoes que sejam mais essenciais que essaspara sua estrutura e constituio (E 102)13.

    Para o lsofo escocs, a hiptese mais provvel que a moralidade algo real, essencial e fundado na natureza. Por isso possvel

    13 Ao longo desta segunda parte de nossa investigao, vamos registrar em vrios momentos a utili-zao, pelos tradutores das edies brasileiras do Tratado e das Investigaes, dos termos sentir [to feel]e experimentar [to experience] como sinnimos. Muitas vezes, os tradutores iro acrescentar o termoexperimentar sem o mesmo constar no texto original de Hume (Exemplos: T118, trad. p. 149; T

    469, trad. p. 508; T577, trad. p. 617; T608-609, trad. p. 648;E 20, trad. p. 37). A nossa suspeita queo texto original de Hume mais direto, sem a necessidade do acrscimo do termo experimentar parase referir ao que sentimos de forma imediata (feeling). Mas isso poderia ser objeto de discusso emoutro momento.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    30/467

    30

    explicar a distino entre vcio e virtude, bem como a origem dosdireitos e das obrigaes morais, e que, por uma constituio primitivada natureza, certos caracteres e paixes, s de vistos e contemplados,produzem um desprazer, e outros, de maneira semelhante, suscitam

    um prazer. O desprazer e a satisfao no so apenas inseparveis dovcio e da virtude; constituem sua prpria natureza e essncia (T296).

    Hume concede aos crticos que mesmo considerando essa hiptesefalsa, ainda assim evidente que a dor e o prazer, se no so as causas do vcioe da virtude, so ao menos inseparveis destes (T296). Dessa forma, o lsofoescocs deriva os princpios morais do exame da natureza humana, ou seja, deum fundamento naturalista. Hume arma que nosso sistema de moralidade

    resulta diretamente da maneira particular como os seres humanos foram criadosnessa estrutura humana: de fato, quando consideramos quo adequadamenteas evidncias naturais e morais se aglutinam, formando uma cadeia nica deargumentao, no hesitaremos em admitir que tm a mesma natureza e derivamdos mesmos princpios (T404). Segundo ele, essas distines [morais e degosto] esto fundadas nos sentimentos naturais da mente humana (E 103).E esses sentimentos no podem ser controlados ou alterados por nenhuma

    espcie de teoria ou especulao losca (E 103). O lsofo escocsabandona pressupostos sobrenaturais, religiosos, teolgicos e dogmticos elana-se tarefa losca com uma inteno especca distinta dos objetivosdalosoa tericae dalosoa natural14 : realizar na losoa moral uma investigaoda natureza humana. Deleuze arma que, em Hume, a natureza humana em seusprincpios ultrapassa a mente, que nada na mente ultrapassa a natureza humana;nada transcendental15. Ou melhor, o naturalismo humeano, como escrevePaulo Faria, consiste, essencialmente, na disposio de tirar todas as consequnciasdo reconhecimento desse fato acerca da natureza humana: que o que somoscapazes de pensardepende, tambm, do que somos capazes de sentir16. ParaHume, a moralidade mais propriamente sentida do que julgada17.

    14 Ver anexo 3.15 DELEUZE, 2001, p. 14.16 APUD AZEVEDO, Marco Antnio Oliveira de. Biotica Fundamental. Porto Alegre: Tomo Editorial,2002. p. 15.

    17 HUME, D. Tratado da natureza humana. Traduo de Seram da Silva Fontes. Lisboa: Fundao Calo-uste Gulbenkian, 2001. p. 544. HUME, David. Tratado da natureza humana:uma tentativa de introduziro mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais. Traduo de Dbora Danowski. So Paulo:Editora Unesp, 2001. p. 510.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    31/467

    31

    TICA DO DISCURSO: CONTEDO MORAL ERESPONSABILIDADE SOLIDRIA

    Jovino Pizzi1

    INTRODUO

    A tica do discurso justica o contedo de uma moralidade quesalienta a simetria entre os sujeitos e a solidariedade entre todos. ParaHabermas a solidariedade a outra face da justia (1999, p. 42), ou seja,

    so duas faces da mesma moeda. Esta uma armao chave em relaoao contedo cognitivo do mbito moral. A validade das normas pressupeuma fundamentao normativa estruturada linguisticamente, de forma a

    vincular a justia com a solidariedade. A nfase est em uma razo prticacapaz de fundamentar princpios igualitrios e universalistas da moral e dodireito (2009, p. 63). A legitimao do estado de direito deve preservar suaneutralidade ideolgica, alicerada em uma moral racional, isto , laica (ou

    secular). Com isso, as exigncias normativas devem ser aceitas por todosem uma sociedade pluralista, formada por cidados de diferentes credos e,inclusive, por no crentes (HABERMAS, 2009, p. 69).

    A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedadecom sinais profundos de secularizao. A prospectiva habermasiana parte dofato de que, com o desenvolvimento da sociedade democrtica moderna e aprpria integrao social passa a ser determinada por uma razo comunicativa

    laica. A compreenso moderna do mundo suplantou cosmovises mticas,religiosas e metafsicas (HABERMAS, 1988, p. 101). A dissoluo dasjusticativas mtico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo eparticipativo, a assuno discursiva de pretenses de validez suscetveisa crtica (1988, p. 107). O o condutor do entendimento obedece a umprocedimento racional ligado ao mundo da vida. As normas que orientamo agir so fruto desse processo comunicativo intersubjetivo entre sujeitos-

    1 E-mail: [email protected]

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    32/467

    32

    participantes tendo como base a validez do acordo consensuado entre todosos concernentes. Desse modo, os sujeitos se entendem racionalmente sobrepretenses de validade normativas. E somente podem ter validade as normas

    aceitas por todos os participantes em um discurso prtico.Nessa perspectiva, a razo secular consegue apropriar-se, atravsdos recursos do pensamento ps-metafsico, dos contedos semnticos dastradies, sem renunciar jamais a autonomia que lhe inerente. O ponto de

    vista moral no deriva de asseres do tipo emprico-formais ou ligadas aodeterminismo causal, muito menos se limita a anlise dos aspectos semnticodos proferimentos. A traduzibilidade da razo prtica requer, pois, uma

    conexo com as prticas cotidianas dos sujeitos em dilogo com os demais. possvel, portanto, descrever o processo de fundamentao e explic-lo, massem que isso signique a adoo deste tipo de fundamentao (HOERSTER,1975, p. 150). Nisso parece estar o perigo, pois essa mesma razo secular podeperder-se no momento da defesa solidria de metas coletivas. Em outraspalavras, ela sofre o risco de no chegar a tempo e revelar sua impossibilidadepara aanar laos de solidariedade, seja dentro dos Estados nacionais, nasrelaes interestatais ou supranacionais (KALDOR, 2005).

    Por um lado, isso decorrncia do debilitamento dos aspectosmotivacionais de uma moral racional autnoma e laica, porque propornormas morais no signica, de fato, a assuno de um compromissosolidrio. Embora esse dcit possa ser corrigido dentro dos limites doEstado constitucional democrtico, pelo direito positivo, mesmo assim, elamoral no consegue impulsionar uma ao coletiva solidria, ou seja, umaao moralmente instruda. Por outro lado, a questo se vincula ideia deque os princpios vlidos para todos possam realmente acarretar em umcompromisso prtico, isto , no consequente engajamento efetivo em favorda justia e da solidariedade.

    Esse o foco desta pesquisa: o potencial de uma moral laica ps-metafsica que ainda repousa adormecido. Pois, o delineamento de princpios

    vlidos para todos (consensuados comunicativamente, portanto) no mobilizaos sujeitos para assumirem concretamente as responsabilidades diante desituaes de injustia e da falta de solidariedade. Da, ento, a preocupao emdelinear as consideraes de Habermas a respeito da moral ps-metafsica,

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    33/467

    33

    cujos fundamentos laicos asseguram tanto os direitos fundamentais como osprincpios do estado de direito. No seu modo procedimental, essa perspectivafundamenta um ponto de vista moral. Todavia, essa razo secular parece

    denhar medida que no consegue superar as debilidades motivacionaise proporcionar a realizao solidria de metas coletivas. Ela ecaz noconcernente observncia individual dos deveres, mas parece ser um tantoincapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidrio, ou seja, no seatreve a preceituar uma ao moralmente instruda. Em decorrncia, toleraa resignao dos sujeitos diante de injustias e da no solidariedade; estudare compreender as potencialidades e os possveis dcits dessa moral laica a

    proposta deste trabalho.

    A RAZO PS-METAFSICA SECULARIZADA

    A questo em anlise se vincula prpria autocompreenso darazo ps-metafsica, consolidada a partir do desencantamento das imagensreligioso-metafsicas do mundo e o nascimento das estruturas de conscinciamodernas (HABERMAS, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, alosoa j no arroga mais fundamentos ontoteolgicos ou cosmolgicospara modelos universalmente vinculantes (HABERMAS, 2006, p. 276). Da,ento, o moral point of viewvinculado aos interesses de todos, renunciando,portanto, a qualquer perspectiva substancial de uma forma de vida exemplar,isto , externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou umamoral laica secularizada, de forma que a conscincia moral civil ganhouautonomia diante das perspectivas cosmolgicas e religiosas, possibilitandouma tica regida por princpios (HABERMAS, 1988, p. 301). Por isso, oponto de vista moral deve reconstruir uma perspectiva intramundana, ou seja,dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, semcorrer o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrncia,da perspectiva universalista (HABERMAS, 1999, p. 33-34).

    Alm disso, h outro aspecto signicativo em relao tica. Trata-sedo fato de que o vigor armativo das ticas clssicas evaporou-se j faz algumtempo (HABERMAS, 2009, p. 217). Nesse sentido, no se justica apenasuma genealogia da tradio moral ocidental e de seus aspectos semnticos, mas

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    34/467

    34

    em estudar e debater sobremaneira as caractersticas dessa moral ilustrada, isto, de uma razo prtica emancipada (HABERMAS, 1988, p. 302). Em outraspalavras, trata-se de estudar o potencial semntico e simblico dessa moral laica

    e sua particular inuncia na vida prtica das pessoas.O discurso sobre a secularizao sofreu modicaes no decorrerdos anos 80 e 90 do sculo passado. No entanto, foi nos albores do sculoXXI que ele ganhou propores ainda mais abrangentes. Atualmente, existeforte inclinao secularizao da moral, permeando os diferentes discursospblicos e processos polticos. Essa moral secular encontra-se, todavia,constantemente assediada por propostas, s vezes, pertinentes, como o

    caso da relao da complementaridade entre f e saber. Na verdade, no hcomo fugir da discusso a respeito da forma como as cosmovises, sejammetafsicas ou religiosas, so traduzidas simbolicamente por meio da aberturaao tratamento discursivo ou lingustico (MENDIETA, 2001, p. 42).

    Essa temtica abre um leque signicativo de apreciaes, principalmentena contestao do papel e do valor da metafsica (PINZANI, 2009, p. 118). Todavia,o foco deste projeto est em discutir a sensibilidade moral em relao justia e solidariedade. Na verdade, quando Habermas arma que a solidariedade oanverso da justia (1999, p. 42), ele salienta no s um retorno do tema, masuma nova congurao e uma nova atitude diante da questo.

    A preocupao em torno justia varia bastante. Ela faz parte dopensamento losco do sculo XX e do atual. Grande parte do pensamentomoderno abandonou o vnculo entre justia, economia e poltica. O perodomedieval tinha como foco a conexo justia e paz, aspectos consideradosessenciais para o bem viver. Como conhecido, a losoa moderna e, maisrecentemente, o ethical turnintroduziu mudanas signicativas para a reexolosca. Esse giro tico da losoa consagrou um novo impulso para aracionalidade prtica, porm as ressalvas parecem advir de um ponto de vistamoral que no se incorpora nas atitudes das pessoas e garante a superaodas situaes de injustia e de no solidariedade, tanto em relao a aspectosestruturais, como em questes relacionadas ao mundo da vida cotidiana.

    Sem dvidas, isso evidencia que a orientao do agir no se resume resoluo de conitos, mas a uma pragmtica vinculada a polticasdeliberativas. Essas polticas no dependem de interesses particulares

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    35/467

    35

    ou, ento, de pressupostos metafsicos, pois esto ligadas a princpios ounormas reconhecidas como vlidas para todos. A ampliao signica o norestringimento da moral ao mbito privado ou ao horizonte familiar, muito

    menos ao fato de garantir a cada sujeito individualmente o que lhe devido,mas em um dever moral, pois se trata de um compromisso entre todos.A sociedade medieval, principalmente a francesa, tolerava a vingana

    como meio para a resoluo de conitos, de modo especial em relao aoscrimes contra a honradez (GAUVARD, 2006 II, p. 56). Esse era um tipo desoluo privada, s vezes com a intermediao de um juiz ou rbitro. Noentanto, a justia no se limita ao campo privado, pois apresenta carter

    pblico. A nasce uma distino importante: a justia pblica e a ocial. Dessemodo, temos a justia legal, regulada por um poder judicirio, encarregadaprimordialmente de regular os conitos particulares, garantindo os direitosa cada indivduo. Por isso, se, na Idade Mdia, a preocupao se centrava no

    vnculo entre paz e justia (GAUVARD, 2006, II, p. 55), no sculo XX, otema retomado por Rawls, um dos autores renomados na questo da justia.Otfried Hffe, Paul Ricoeur e muitos outros pensadores tambm marcampresena na discusso. Macpherson (1991) fala da ascenso e queda da justiaeconmica. Atualmente, muito se fala sobre responsabilidade social, ticasaplicadas, polticas armativas etc., embora exista a impresso de haverdebilitamento da justia e da solidariedade. Nessa linha, o discurso moralse traduz, s vezes, em simples marketing ou em campanhas lantrpicas(espordicas, portanto).

    OS NOVOS DESAFIOS PARA A JUSTIA

    Dos anos 70 para c, a losoa e, consequentemente, a tica,experimentam uma transformao profunda. A nova congurao na ticacoloca em evidncia questes relacionadas fundamentao e aplicao.Neste processo, h revalorizao de diversos conceitos, como o caso dajustia. Encontramos um leque de concepes relacionadas justia. Diantedisso, algumas questes so expressivas:

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    36/467

    36

    1. Como a justia deve ser entendida, principalmente quando se falade secularizao e na sua inuncia na hora de tomar decises?Esse debate est inserido naquilo que Habermas denomina

    de genealogia da razo ocidental (2009, p. 225). Esta razocomunicativa ps-moderna assume caractersticas laicas, aspectoque permite a legitimao de um Estado democrtico de direitoneutro, isto , capaz de promover a integrao social a partir desuas prprias bases ou fundamentos. No se trata, portanto, deum Estado na forma hobbesiana, mas de uma sociedade ps-secular estabelecida em um Estado constitucional e democrtico

    (HABERMAS, 2002, p. 131-133).2. O segundo aspecto diz respeito aos prprios pressupostosfundamentais dessa razo secular. Em Rplicas e objees (1980),Habermas muda sua tese, porquanto a validez das normas eprincpios no se vincula apenas a uma situao contraftica,mas elas devem orientar decises dignas de conana, cujaspretenses de validez esto ligadas a um sistema de refernciadescentralizado (2006). Nesse sentido, imprescindvel estudarcomo devemos pensar a prpria autocompreenso da razoiluminista e secular, pois a encarregada de garantir sua peculiarneutralidade diante dos ideais de bem. Nesse caso, a secularizaono se vincula ao aspecto jurdico ou da relao entre a Igreja eo poder secular do Estado (HABERMAS, 2002, p. 131); nem setrata de uma espcie de jogo preocupado essencialmente emeliminar um dos competidores (2002, p. 132).

    O qualicativo secular indica, pois, uma sociedade na qual osfundamentos de deciso seculares tem como base uma moral profana(2002, p. 133). Como entender a razo laica e neutra diante dos contedossemnticos que a realidade cotidiana carrega consigo? Essa pergunta salientaa necessidade de garantir o sentido a conceitos loscos como pessoa,liberdade, individualizao, histria, emancipao, comunidade e solidariedadeto carregados de experincias e conotaes, pois procedem de doutrinas dobem ou, no caso, de tradies religiosas (HABERMAS, 2009, p. 237).

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    37/467

    37

    3. Da, ento, o terceiro aspecto relacionado a uma moral secularenvolvida em uma crise de conana, pois parece demonstraruma incapacidade prtica para sustentar atitudes solidarias de

    metas coletivas. Essa razo prtica revela uma dicotomia interna,pois no promove atitudes cooperativas concretas e solidrias damesma forma que a observncia individual dos deveres morais(HABERMAS, 2009, p. 223). Essa moral iluminista e laica,embora consiga sensibilizar moralmente os sujeitos diante dasinjustias, no alcana impulsionar uma ao coletiva solidria.Em outras palavras, ela exitosa em manter aceso o sentido da

    injustia social, tanto em relao marginalizao de grupos, perda da conscincia de classe social de muitas categoriassociais e a imigrao dentro do prprio pas, como tambmavivar a sensibilidade em relao pobreza sumamente drsticaem diversos continentes. No entanto, apresenta os sintomas deum dcit motivador e no tem xito para exigir dos sujeitosa assuno da responsabilidade pelas aes coletivas e na lutacontras as injustias sociais.

    As antinomias da razo prtica revelam, portanto, algo de inquietante,ou seja, a constatao (de certo modo, emprica) de progressiva perda desolidariedade entre as pessoas e os grupos, principalmente diante de situaesconcretas de injustia. Para Habermas, a solidariedade considerada comoum conceito limite. Ele supe uma abstrao em relaes s questes do bem

    viver, at conseguir reduzi-la a questes de justia (1989, p. 432). No entanto,ao denir a justia como a outra face da solidariedade, Habermas parecediluir a justia aos mbitos do bem viver, isto , ao aspecto ftico.

    HAVERIA JUSTIA SEM SOLIDARIEDADE?

    Seguidor da tradio crtica, Habermas reitera o processo desecularizao das sociedades modernas, o qual parece conceder prioridade instrumentalizao das pessoas e das relaes sociais, mesmo que essaspessoas, no fundo, conservem a conscincia moral e acreditem em uma

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    38/467

    38

    justia social e na solidariedade humana. Para o autor, a perspectiva loscaproduziu uma modernidade que se reabastece em suas prprias fontes.Por sua vez, ela apresenta, entre outras coisas, debilidades motivacionais

    de uma moral racional que apenas podem ser asseguradas nos limites doEstado constitucional democrtico atravs do direito positivo (2009, p. 221).A suspeita gira em torno progressiva perda de solidariedade, ou seja, sexigncias de um compromisso moral no impedem, em nada, as tendnciasde uma insolidariedade, pois existe um progressivo desaparecimento entreos diferentes setores da sociedade, principalmente em situaes de injustiaconjuntural ou social. Na verdade, a falta de solidariedade vai aumentando de

    modo proporcional ao crescimento dos imperativos do mercado na formade custos-benefcio-clculos ou da competncia de servios em mbitos davida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivduos, na sua relaocom os demais, a uma atitude objetivista (HABERMAS, 2009, p. 218).

    A questo central da racionalidade comunicativa, alm de garantirvnculos relevantes entre os sujeitos, est em supor laos de solidariedadee compromissos de justia. Os princpios normativos obedecem exignciasdiscursivas. Este , sem dvidas, o grande desao de uma perspectivauniversalista disposta a no perder de vista o bom e o justicvel de cadacultura, nem desprezando os que clamam por justia e solidariedade. Por isso,a solidariedade deve ser entendida como condio de justia. Para Habermas,o conceito de razo deve articular uma intersubjetividade comunicativapromovedora da justia e de laos de solidariedade.

    Assim, a justia no se reduz benevolncia, empatia, intuio ouao cuidado, mas solidariedade. No fundo, justia e solidariedade no soprincpios morais diferentes, mas dois aspectos de um mesmo princpio(COHEN; ARATO, 2000, p. 425). A justia ultrapassa os limites semnticospara ganhar o espao de uma pragmtica-fenomenolgica, capaz de ressaltardescritivamente a experincia vivida pelos diferentes interlocutores, sem,por isso, abandonar ou rechaar os princpios, as normas e regras de carteruniversal. O sentido da justia no separa, portanto, razo (Vernuft) deentendimento (Verstand), nem desvincula a fundamentao da sua realizaoprtica. No se trata de uma questo lgica, mas pragmtica, porque repercutenas consequncias prticas do agir.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    39/467

    39

    Os ideais da Ilustrao salientam a igualdade jurdica, assim comotambm a igualdade social e econmica. Esse delineamento nos leva a insistirque a justia deixa de ser uma questo apenas vinculada ao aspecto semntico

    (isto , sua denibilidade conceitual), mas ao aspecto pragmtico. Essapragmtica pressupe uma neutralidade do procedimento (HABERMAS,1998, p. 386), porque ningum pode garantir, por si s, sua autonomia moral.Ela depende da interao comunicativa, ou seja, dos esforos cooperativosque ningum pode ser obrigado por meio das normas jurdicas, mas quetodos so conclamados a seguir (ou obedecer). Nesse sentido, a perguntaa quem so os sujeitos da justia nos leva s vtimas da injustia. A

    preocupao em saber quem so os sujeitos da justia remete inclusive sfuturas geraes.Em sntese, a razo ps-metafsica se fundamenta em princpios

    irrenunciveis. Ela presume a mobilizao solidria entre as pessoas, isto ,na participao coletiva. A neutralidade procede na medida em que a inclusode todos realmente acontea. Somente assim possvel garantir os preceitosde justia e laos de solidariedade.

    Todavia, h um problema: essa razo parece enfrenta uma dicotomiainterna. Seus dcits se manifestam no horizonte de um pensamento dividido.Por um lado, permanece a percepo ou a sensibilidade moral em relao injustia, mas, por outro, cresce a des-solidariedade. pertinente referir-se insolidariedade ou, ento, ausncia de solidariedade para salientar esse deixarde lado a responsabilidade por uma sociedade justa e solidria. No fundo,a solidariedade vai escasseando cada vez mais, debilitando o compromissofrente s injustias e aos injustiados, bem como a responsabilidade diantedas futuras geraes e dos riscos que o meio ambiente sofre.

    Essa decincia afeta no apenas as pessoas como tal, mas faz partetambm do jogo poltico, no sentido de manter o status quo de uma sociedadeestruturalmente organizada, instrumentalizando no apenas a relao entreos sujeitos, mas colocando tambm em risco a ideia de uma sociedade globale multicultural. At mesmo os governos inuentes que so sempre osatores polticos mais importantes deste cenrio prosseguem, sem titubear,com seus jogos de poder social-darwinistas (HABERMAS, 2009, p. 219).Em outras palavras, para Habermas, no falta apenas vontade poltica para

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    40/467

    40

    desejar instituies e processos de ordem mundial reformada, mas inclusive aperspectiva de uma poltica interna global satisfatria (2009, p. 219).

    AS EXIGNCIAS MORAIS EM SINTONIA COM O GIRO APLICADODA FILOSOFIA

    As exigncias normativas esto vinculadas ao querer. Para Hoerster(1975), a possibilidade de formular normas no signica que elas setransformem em atitudes. O objetivo do agente nem sempre pode coincidircom as pretenses de todos. A questo se relaciona ao momento da tomada

    de decises. O que realmente motiva os sujeitos para agir segundo princpios?Quem decide por quem? Garnkel (2006) trata de analisar a tomada dedecises a partir de concernentes situao cotidiana, isto , na motivaoque as pessoas observam ao tomarem decises. Na verdade, a justia e aprpria solidariedade no se limitam ao mbito conceitual (semntico,portanto). Assim, possvel compreender o que signica estar no mundo edistinguir sobre o que os sujeitos podem se entender e em que aspectos elespodem intervir no mundo.

    O nvel ps-convencional dos estgios morais pressupe comovlidas normas que todos possam querer (HABERMAS, 1999). No mbitodas condies concretas, a racionalidade comunicativa conduz a insero dosujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modoa unir e articular falae ao. Esse o horizonte no qual Habermas admiteum espao para o bom na teoria do justo, no como direito positivo, mascomo liberdades de indivduos inalienveis que se autodeterminam (1999, p.70). A pretenso universal de qualquer pretenso de validade deve assegurar,portanto, os direitos e liberdades de cada sujeito de forma a garantir tambmo bem-estar do prximo e da comunidade a que (os sujeitos) pertencem(HABERMAS, 1999, p. 71).

    O ethical turnevidencia mudanas que afetam apenas a tica como tal,mas tambm os diversos mbitos da vida prtica. Como diz Alcira Bonilla,as ticas do sculo XX abordaram em seus objetos caractersticas de ummodo tal que pouco incide nos assuntos prticos que foram aparecendocomo consequncia do desenvolvimento das cincias e da tecnologia ou da

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    41/467

    41

    dinmica prpria da vida social (2006, p. 78). Sem dvidas, as mudanas soprofundas e, por isso, uma nova congurao ou como dizem os ingleses atica se apresenta com um novo desenho, com o qual a fundamentao exige

    tambm formas de aplicao. A racionalidade prtica passa a se preocuparcom os diferentes mbitos da vida prtica. Essa preocupao tema para alosoa e incluso para os diferentes campos ou mbitos e envolvem a todosos sujeitos.

    Nesse processo, os conceitos tradicionais so retraduzidos e outrosrecebem novas delimitaes, enquanto outros passam por uma revalorizao.Essa exigncia salienta a necessidade de desenhar tambm uma arquitetnica

    conceptual da justia (RICOEUR, 1997, p. 14). Esse delineamento vaialm das denies e nos leva, portanto, fenomenologia da justia, pois apergunta o que justia se encontra confrontada com sua aplicao prtica.Por isso, a discusso evidencia a necessidade de ir alm da questo semnticae visualizar os aspectos pragmticos da justia e dos laos de solidariedade emuma sociedade pluralista.

    Por isso, as exigncias de justia devem responder quem so ossujeitos da justia, de modo que a busca por denies tenha em vista ofuturo da natureza humana e, se desejarmos, do prprio meio ambiente.

    A proposta poderia ser traduzida em uma nova arquitetnica pragmtico-fenomenolgica, modelo que no apenas destaca os possveis dcits da razosecular, mas procura tambm consagrar um dilogo interdisciplinar com osdiferentes campos de aplicao. Na verdade, a arquitetnica pragmtico-fenomenolgica da justia encontra em Kant um elemento imprescindvel,principalmente em seu postulado de que algo pode ser correto em teoria,mas no serve para a prtica (2000, p. 3). O debate atual da tica encontra emHabermas uma reformulao do imperativo categrico kantiano e, atravs dametodologia reconstrutiva, procura fundamentar normas vlidas para todos.Essa metodologia refora o tema da justia.

    Nesse sentido, repetimos mais uma vez: a pergunta o que justia nosleva a pesquisar no somente seu aspecto semntico e realizar uma genealogiada justia na tradio ocidental, mas tambm seu aspecto pragmtico. Emoutras palavras, trata-se de compreender no apenas o que justia, mastambm identicar quem so os afetados e como congurar a justia

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    42/467

    42

    em vistas s exigncias de solidariedade inclusive em relao s futurasgeraes. Esse delineamento nos leva, portanto, fenomenologia da justia,onde a pergunta o que justia se defrontada com sua aplicao prtica

    com as diferentes reas do conhecimento e atividades humanas. Por isso,as exigncias de justia devem responder quem so os sujeitos da justia, demodo que a busca por denies tenha em vista o futuro da natureza humanae, se desejarmos, o prprio meio ambiente, a economia, as empresas etc.,aspectos inerentes s ticas aplicadas.

    Macpherson arma que o modelo de Rawls satisfaz os critrios parauma teoria da justia econmica, enquanto realmente prope submeter os

    acordos distributivos a um princpio tico (1991, p. 26). Para este autor, oproblema a forma competitiva do modelo liberal, isto , uma economiatotalmente dominada pelo mercado no qual a reao negativa dos empresriosao incremento dos impostos faz com que diminua a produtividade global(1991, p. 26). O mercado acaba dominando as relaes, fazendo com que asexigncias normativas percam sua fora, de modo que a tica no pode fazer

    valer seus princpios em relao tomada de decises concretas. A propostatrata de ver as consideraes de Habermas a respeito da justia, desde o pontode uma fundamentao vista ps-metafsica, e mostrar os possveis dcitsdessa razo secular e neutra em uma sociedade laicizada.

    Por isso, alm de destacar as potencialidades de uma razo seculare, ao mesmo tempo, vericar as possveis debilidades motivacionais geramuma desconana na prpria razo secular, consequncia de uma aparenteantinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juzo contra a

    vulnerao das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresentacomo decitria na hora de motivar os sujeitos para agirem solidariamente.Este seria, portanto, o foco de estudo a ser aprofundado, na tentativa deevidenciar se tal dcit representa uma dicotomia interna da prpria razolaicizada ou, ento, se suas exigncias normativas ainda no foram totalmentetrazidas tona, isto , transformados em fora motivadora para o agirsolidrio. Em certo sentido, o fato de a solidariedade ir se tornando cada

    vez mais escassa, parece indicar que a tica normativa, neutra e voltada auma sociedade completamente laicizada, sente os efeitos de suas prpriaspretenses normativas.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    43/467

    43

    REFERNCIAS

    ALBERT, Michel. Capitalismo contra capitalismo. Buenos Aires; Barcelona; Mxico:Paids, 1993.

    APEL, K. O. La globalizacin y una tica de la responsabilidad. Buenos Aires: PrometeoLibros, 2007.

    BONILLA, Alcira. Quin es el Sujeto de la Biotica? Reexiones sobre lavulnerabilidad. In: LOSOVIZ, Alicia I.; VIDAL, Daniel A.; BONILLA, A. Biotica ySalud Mental:Intersecciones y dilemas. Buenos Aires: Akadia, 2006.

    COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew, Sociedad civil y teora poltica. Mxico, Fondo deCultura Econmica, 2000.

    CORTINA, Adela.Alianza y contrato: Poltica, tica y religin. Madrid, Trotta, 2001.

    FOSTER, Hal et all. La Posmodernidad. Barcelona, Bay Press y Editorial Kairs, 1985.

    GAUVARD, Claude. Justia e paz. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J.-C. Dicionriotemtico do Ocidente medieval. So Paulo: EDUSC, 2006 (dois volumes).

    GARFINKEL, H.Estudios en Etnometodologa. Mxico: UNAM; Bogot: UniversidadNacional de Colombia, 2006.

    GMEZ-HERAS, J. M. G & VELAYOS, C. (Eds.) Responsabilidad poltica y medioambiente. Madrid: Biblioteca Nueva, 2007.

    HABERMAS, J. Teora de la accin comunicativa. Madrid, Taurus, 1988 (dois volumes).

    ______.Escritos sobre moralidad y eticidad. Barcelona, Paidos/IEC, 1991.

    ______. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrtico de derecho en trminos deteora del discurso. Madrid: Trotta, 1998.

    ______. La inclusin del otro:Estudios de teora poltica. Barcelona; Buenos Aires;Mxico: Paids, 1999.

    ______. Israel o Atenas: Ensayos sobre religin, teologa y racionalidad. Madrid:Trotta, 2001.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    44/467

    44

    ______. El futuro de la naturaleza humana. Hacia una eugenesia liberal? Barcelona;Buenos Aires; Mxico: Paids, 2002.

    ______.Entre naturalismo y religin. Barcelona; Buenos Aires; Mxico: Paids, 2006.

    ______; RAWLS, John. Debate sobre el liberalismo poltico. Barcelona; Buenos Aires;Mxico: Paids, 1998.

    HFFE, Otfried.Justia poltica. Barcelona; Buenos Aires; Mxico: Paids, 2003.

    HOERSTER, N. Problemas de tica normativa. Buenos Aires: Alfa, 1975.

    JONAS, H. O principio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

    LOSOVIZ, Alicia I.; VIDAL, Daniel A.; BONILLA, Alcira. Biotica e Salud Mental:Intersecciones e dilemas. Buenos Aires: Akadia, 2006, p. 77-88.

    KALDOR, M. La sociedad civil global. Barcelona: Tusquets Editores, 2005.

    KANT, I. Teoria e prtica. 3a ed., Madrid: Tecnos, 2000.

    ______.Qu es la Ilustracin?Madrid: Alienza Editorial, 2004.

    MENDIETA, E. La linguisticacin de lo sagrado como cataltico de la modernidad.In:HABERMAS, J. Israel o Atenas: Ensayos sobre religin, teologa y racionalidad.Madrid: Trotta, 2001, p. 11-50.

    HONNETH, A. Crtica del poder: fases en la reexin de una Teora Crtica de lasociedad. Msteles (Madrid): A. Machado Libros, 2009.

    MACPHERSON, C. B. Ascenso e queda da justia econmica e outros ensaios. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1991.

    MALIANDI, R.tica: dilemas e convergncias. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2006.

    MUGUERZA, Javier. Desde a perplejidad. Mxico: Fondo de Cultura Econmica,1990.

    NIQUET, M. Teoria realista da moral. So Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.

  • 8/22/2019 1-Discursos habermasianos

    45/467

    45

    PETTIT, P. Una teora de la libertad. Madrid: Losada, 2006.

    PINZANI, A. Habermas. Porto Alegre: Artes Mdicas, 2009.

    PIZZI, Jovino. tica e ticas aplicadas: A recongurao do mbito moral. PortoAlegre: EDIPUCRS, 2006.

    RICOEUR, Paul. Ojusto ou a essncia da justia. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

    RICOEUR, Paul.A memria, a histria, ou esquecimento. Campinas: Editora Unicamp,2007.

    SIMN, Pablo e BARRIO, Ins M.Quin decidir por m?Madrid: Triacastela, 2004.

    WHITE, S. K. Razo, justia e modernidad