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Formao cultural de professores
ISSN 1982 - 0283
Ano XX boletim 07 - Junho 2010
Ministrio daEducao
Secretariade Educao a Distncia
SUMRIO
Formao Cultural de ProFessores
Apresentao da srie ........................................................................................................... 3
Rosa Helena Mendona
Proposta da srie
Formao cultural de professores ......................................................................................... 4
Monique Andries Nogueira
Texto 1 Formao cultural: questes tericas.................................................................................. 8
Monique Andries Nogueira
Texto 2 Cultura e formao de professores
A cultura na formao de professores ......................................................................................... 14
Clia Maria de Castro Almeida
Texto 3 Experincias estticas e linguagens artsticas
Inquietudes e experincias estticas para a educao ....................................................................... 22
Luciana Gruppelli Loponte
3Formao Cultural de ProFessores APRESENTAO DA SRIE
1 FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemolgicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1993.
2 Supervisora Pedaggica do Programa Salto para o Futuro.
A relao entre educao e cultura no pode
ser pensada de forma dicotmica. Jean-Clau-
de Forquin1 destaca que toda educao de
tipo escolar supe sempre na verdade uma
seleo no interior da cultura. Uma poss-
vel definio de currculo deveria ento dar
nfase, segundo o autor, a aspectos como
seleo e transposio didtica, ou seja, o
que levar para a escola das mltiplas experi-
ncias culturais vividas no cotidiano e como
torn-las acessveis s novas geraes.
Nesse contexto, a escola assume um im-
portante papel, no sentido de possibilitar o
acesso a variadas formas de expresso cul-
tural, em especial no campo da arte. E os
professores so mediadores dessa relao.
De que forma a leitura de um livro de litera-
tura, a frequncia a salas de cinema e teatro,
a ida a museus e a espetculos musicais e de
dana constituem um repertrio capaz de
enriquecer o currculo escolar?
Com a srie Formao cultural de professo-
res, a TV Escola, por meio do programa Salto
para o Futuro, traz cena o debate em torno
da importncia das experincias estticas e
das linguagens artsticas, visando contribuir
para prticas docentes mais ricas e estimu-
lantes.
A srie conta com a consultoria de Monique
Andries Nogueira (UFRJ). A pesquisadora
tem se dedicado investigao no campo
da formao cultural de professores. Os tex-
tos que compem esta publicao destacam
a importncia de colocar esta prtica no
mbito das polticas pblicas de formao
de professores. Nos programas televisivos,
buscamos entrevistar pesquisadores e pro-
fessores e registramos diversos momentos
em que arte e cultura possibilitaram a pro-
fessores e alunos vivncias estticas enri-
quecedoras.
Rosa Helena Mendona2
41 Professora da Faculdade de Educao da UFRJ. Consultora da srie.
PROPOSTA DA SRIE
Formao Cultural de ProFessores
Monique Andries Nogueira1
A proposta da srie Formao cultural de pro-
fessores abrir espao para um tema que,
pela sua importncia, j deveria estar in-
corporado aos discursos e s prticas dos
que almejam a melhoria da qualidade da
educao brasileira. Em meio a um encon-
tro nacional de pesquisadores e educadores
brasileiros, Gimeno Sacristn afirmou, sem
tergiversar, que se os professores no po-
dem dar o que no tm, preciso, antes de
mais nada, que sejam cultos para poderem
dar cultura (1996, p. 3), referindo-se ne-
cessidade de o professor ampliar seus refe-
renciais estticos, frequentando diferentes
espaos culturais, e no se limitando ao
eterno caminho entre casa e trabalho.
O termo cultura, assim como formao, apre-
senta uma multiplicidade de sentidos. Sendo
assim, achamos necessrio explicitar, j de
incio, qual o recorte escolhido nesta srie.
Ainda que entendamos que, por sua polisse-
mia, o conceito de cultura possa sempre dar
a impresso de que esteja restrito, em uma
ou outra abordagem, assumimos o risco e
apresentamos o vis escolhido: entendemos
formao cultural como o processo em que
o indivduo se conecta com o mundo da cul-
tura, mundo esse entendido como um espa-
o de diferentes leituras e interpretaes do
real, concretizado nas artes (msica, teatro,
dana, artes visuais, cinema, entre outros) e
na literatura (NOGUEIRA, 2008). Por ser pro-
cesso, trata-se de ao contnua e, alm dis-
so, cumulativa.
Nesta srie, procura-se abordar como po-
dem ser significativas as experincias est-
ticas para quem se dedica a formar outros
seres humanos, objetivando um crescimen-
to, tanto do ponto de vista pessoal, na me-
dida em que a arte favorece um processo de
construo de um saber sensvel, quanto
de ponto de vista profissional, j que, am-
pliando seus referenciais, o professor pode
desenvolver uma prtica docente mais rica
e estimulante.
Ao longo de minha prtica docente, convivi
com professores de perfis muito distintos:
5com variadas formaes, em diferentes cida-
des e estados, da rede pblica e privada, da
Educao Infantil universidade. Em meio
a tantas diferenas, uma ressaltava a meus
olhos: a bagagem cultural, isto , o conjun-
to de experincias e informaes extracur-
riculares, do campo da arte e da cultura,
que cada um apresentava e o modo como
isso aparecia na sua prtica docente. Ha-
via os que, embora dominassem seus con-
tedos disciplinares, no pareciam capazes
de alargar as experincias de seus alunos,
exatamente porque tinham suas prprias
experincias muito restritas: no liam obras
literrias, no iam ao cinema, ao teatro, a
concertos. Outros, no entanto, apesar de
muitas vezes lutarem contra situaes bas-
tante adversas, conversavam a respeito de
assuntos variados: filmes a que haviam as-
sistido, algum novo CD, o ltimo livro lido,
uma visita ao museu.
Nos professores do primeiro grupo, perce-
bia-se uma limitao clara no sentido de es-
tabelecer com os alunos uma ligao para
alm do contedo da sala de aula: falhavam
eles naquilo que me parece ser fundamen-
tal no ofcio de professor, que a ampliao
do universo cultural do aluno, o estmulo a
estar aberto s diferentes leituras da realida-
de, possibilitadas pela Arte e pela Literatura.
Como suas prprias experincias estticas
eram limitadas, seus recursos didtico-pe-
daggicos tambm eram restritos, o que se
refletia em sua prtica pedaggica.
J nos professores do segundo grupo, nota-
va-se um repertrio mais rico, sendo comuns
as referncias a filmes, peas de teatro, m-
sicas, livros, enfim, ao mundo da cultura,
em suas aulas. Por conseguinte, seus alunos
tambm eram motivados a frequentar esses
espaos e a estabelecer relaes entre essas
leituras e os contedos escolares. Nessas
salas de aula, percebia-se um movimento
instigador, estimulante, no qual o interesse
pela herana cultural da humanidade ficava
manifesto.
Nesta srie, procuraremos abordar essas
experincias estticas e revelar como se
tornam fundantes de uma outra prtica
docente, uma prtica que, por se perceber
portadora e criadora de cultura, plural e
transformadora. Concordamos com Adorno
(1996), quando afirma que a formao cul-
tural (Bildung) , ao mesmo tempo, ade-
quao e autonomia, e preciso que assim
seja. adequao, quando oferece aos indi-
vduos formas de se reconhecerem perten-
centes a um grupo, por meio da aquisio
de seus valores, tradies e conhecimen-
tos. Por outro lado, autonomia quando,
de posse dessas mesmas ferramentas cul-
turais, o indivduo pode alar voos e ir alm
do que est posto. Para Adorno, portanto, o
problema surge quando se perde esse tnue
equilbrio e o polo da adaptao fica mais
forte, impossibilitando a prtica emancipa-
dora.
6Pretendemos demonstrar, a partir das en-
trevistas, debates e textos desta srie, que
o incentivo formao cultural dos profes-
sores, por meio da frequncia a eventos ar-
tsticos e de experincias estticas, aponta
para a possibilidade de uma prtica docente
marcada pela autonomia e pela pluralidade.
2 Estes textos so complementares srie Formao cultural de professores, com veiculao no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 21 a 25 de junho de 2010.
TEXTOS DA SRIE FORMAO CULTURAL DE PROFESSORES2
A srie pretende abordar uma questo que se apresenta quando so discutidos os saberes ne-
cessrios docncia: alm dos contedos especficos de sua disciplina, fundamental que o
professor tenha parmetros estticos mais amplos e, para isto, importante que ele tenha uma
slida formao cultural, que lhe d os subsdios necessrios para atender s novas e velhas
demandas que so colocadas no seu cotidiano. Esta srie tem como objetivos discutir o concei-
to de indstria cultural, a formao cultural dos professores e, ainda, visa mostrar diferentes
iniciativas neste mbito.
TEXTO 1 - FORMAO CULTURAL: QUESTES TERICAS
Nesse texto, sero abordados os fundamentos que balizam nossa compreenso do conceito de
formao cultural, assim como o alcance desse tema no campo da educao e, particularmente,
na formao de professores.
TEXTO 2 - CULTURA E FORMAO DE PROFESSORES
Clia Maria de Castro Almeida dirige seu foco questo especfica do lugar da cultura na for-
mao de professores. Mapeia como nossa legislao educacional trata da questo, alm de
apresentar dados de pesquisas que comprovam a pouca frequncia dos professores brasileiros
a espaos de arte e cultura.
TEXTO 3 - EXPERINCIAS ESTTICAS E LINGUAGENS ARTSTICAS
Luciana Grupelli Loponte traz necessrias reflexes a respeito do papel da arte na educao,
particularmente no que se refere s possibilidades que a arte contempornea oferece forma-
7o docente. O potencial de inquietude e transformao presente na arte contempornea passa
a ser visto como porta de entrada para experincias estticas significativas e relevantes para o
professorado.
Os textos 1, 2 e 3 tambm so referenciais para o quarto programa, com entrevistas que refletem
sobre esta temtica (Outros olhares sobre formao cultural de professores) e para as discusses do
quinto programa (Formao cultural de professores em debate).
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. Teoria da semicultura. Educao e Sociedade. Revista Quadrimestral de Cincia da
Educao, Ano XVII, n. 56. Campinas: Papirus/Cedes, 1996.
NOGUEIRA, M. A. Formao cultural de professores ou a arte da fuga. Goinia: UFG, 2008.
SACRISTN, G. Tendncias investigativas na formao de professores. Trad. e transcrio de Jos
Carlos Libneo. Mimeo, 1996.
8TEXTO 1
Formao Cultural: questes teriCas
Monique Andries Nogueira 1
1 Professora da Faculdade de Educao da UFRJ. Consultora da srie.
A expresso formao cultural vem sendo
cada vez mais utilizada, para os mais diver-
sos propsitos. Pretendemos, neste texto,
desenvolver esse conceito, a partir de sua
gnese, para depois relacion-lo com o cam-
po da Educao.
O termo cultura deriva-se do latim cultur e
era originalmente relacionado aos cuidados
dispensados ao campo, isto , seu cultivo
com plantas e animais. A partir do sculo XVI,
seu sentido inicial sofre transformaes e
com o Movimento Iluminista, em meados do
sculo XVIII, que a utilizao do sentido figu-
rado do termo ganha fora. A metfora de se
cultivar o esprito, assim como se cultiva a
terra, recebe reconhecimento e o termo cul-
tura passa a ser entendido como o estado do
esprito cultivado, quase sempre associado
ideia de civilizao (CUCHE, 1999).
Mais tarde, intelectuais nacionalistas ale-
mes criticaram a influncia da corte fran-
cesa e passaram a utilizar o termo cultura
para o que autntico, profundo, e civi-
lizao para o que seria suprfluo, mero
refinamento estrangeiro. Essa polarizao
permanece por boa parte do sculo XIX: para
os alemes, a noo de cultura abarca o
conjunto de tradies artsticas e intelectu-
ais que marcam determinado povo; para os
franceses, a noo de cultura se funda de
civilizao, denotando todo um patrimnio
de arte e conhecimento que se compreende
como universal. Essa polarizao marca o
debate sobre cultura presente no sculo XX,
oscilando entre dois polos, um universalista
(de herana francesa) e outro particularista
(de origem germnica).
Atualmente, percebe-se uma tendncia, na
qual nos inclumos, de se aproximar esses
dois polos, isto , entender a cultura tanto
do ponto de vista local quanto do ponto de
vista universal. No caso da Educao, esse
debate ganha contornos peculiares.
9Em geral, a Educao, ao longo dos tempos,
vinha adotando a concepo francesa, isto
, universalista. Os currculos e contedos
considerados educacionais giravam em
torno de saberes consagrados. Os crticos,
muitos provenientes de outras reas das ci-
ncias humanas, notadamente da sociolo-
gia, apontavam equvocos e afirmavam que
muito do que era considerado universal
era apenas europeu, branco e masculino.
Defendiam, tal como os intelectuais ger-
mnicos do sculo XIX, a necessidade de se
abarcar as manifestaes culturais locais,
distintivas de determinados grupos sociais,
ainda que minoritrios do ponto de vista da
hegemonia poltica e econmica. Essa pos-
tura pode ser reconhecida principalmente
no campo das discusses sobre currculo,
em particular nas questes relativas mul-
ticulturalidade e, certamente, tem validade.
Contudo, importante ressaltar o perigo
de se cair em um processo igualmente no-
civo que o da recusa a qualquer contedo
que represente o pensamento consagrado.
Conforme nos lembra Rouanet, h o perigo
de se adotar uma postura anticolonialista,
que termina por se constituir em xenofobia:
cultura autnoma aquela que pode ser
posta a servio de um projeto de autonomia,
e no vejo porque s a cultura gerada den-
tro das fronteiras nacionais possa contribuir
para esse objetivo (1999, p. 127).
Exemplifiquemos: estudar Cervantes, conhe-
cer sua obra-prima, viajar junto com Dom
Quixote combatendo os moinhos de vento,
tudo isto absolutamente necessrio e rico,
do ponto de vista da prpria constituio de
humanidade. No porque um aluno more
na periferia do Rio de Janeiro que seus limi-
tes tenham que ficar restritos ao jornal do
bairro. Mais uma vez recorremos a Rouanet:
O ideal democrtico a universalidade,
o que significa criar condies para que
todos tenham acesso lngua culta, e
no a segregao, que excluiu grandes
parcelas da populao do direito de usar
um cdigo mais rico, que lhes permiti-
ria estruturar cognitivamente sua pr-
pria prtica, com vistas a transform-la
(1999, p. 137).
Da mesma forma, ainda que sejam valoriza-
das, em sala de aula, as produes musicais
que o aluno vivencia cotidianamente, como
o samba ou outros ritmos mais populares,
no razovel que no se possa apresentar
a ele obras-primas consagradas, como afir-
ma Snyders, respondendo s crticas perti-
nentes de Bourdieu a respeito do elitismo da
msica erudita:
A msica de Mozart msica de clas-
se: ouvimos nela a vida das cortes se-
nhoriais, respiramos nela a atmosfera
arcaizante de galanteria e de lacaios
empoados; o acesso a Mozart hoje, as
condies que fazem com que ele seja
ou no ouvido, so fenmenos de classe.
10
Entretanto, as obras primas de Mozart
possuem em si mesmas elementos para
ultrapassar as barreiras de classe, tanto
as de seu autor como as de seu pblico;
um ensino elaborado necessrio, sem
dvida, para que os alunos tomem cons-
cincia desses elementos e isto consti-
tui tambm uma das justificativas desse
ensino (1992, p. 43).
importante afirmar que
o potencial de transfor-
mao da arte intrnse-
co sua prpria nature-
za, no estando restrito a
um discurso que se quer
engajado. A arte no re-
volucionria apenas por
ser escrita por ou para
trabalhadores. Quanto a
isso, adverte-nos Marcuse
(1977, p. 14):
Quanto mais imediatamente poltica for
a obra de arte, mais ela reduz o poder
de afastamento e os objetivos radicais e
transcendentes de mudana. Neste sen-
tido, pode haver mais potencial subver-
sivo na poesia de Baudelaire e de Rim-
baud que nas peas didticas de Brecht.
fundamental, portanto, ter em mente o
potencial transformador da Arte e, por con-
seguinte, sua centralidade em um projeto
de formao de professores para uma so-
ciedade que se quer transformada. Esse po-
tencial pode estar igualmente localizado em
obras de arte de origem popular ou erudita.
Tambm importante distinguir as produ-
es artsticas verdadeiramente populares
daquelas produzidas pela indstria cultural,
tendo em vista, prioritariamente, o lucro
comercial, acima de qualquer preocupao
com qualidade est-
tica.
Poder-se-ia afirmar
que o professor est
imerso na cultura:
os apelos visuais,
sonoros, corporais
esto por toda par-
te, especialmente
veiculados pelos
grandes meios de
comunicao de
massa. Por que, ento, insistir na ideia de
que a formao cultural dos professores ain-
da incipiente e precisa ser incrementada?
Porque preciso estarmos alertas quanto ao
processo de coisificao da arte, isto , sua
incorporao pela indstria cultural. nes-
se processo de mercantilizao que se retira
o potencial transformador da arte. Segundo
Pucci (1995, p. 26), a arte introduz a dimen-
so do novo, do subjetivo, do arriscado, do
ambguo, qualidades no to bem vistas pe-
los planejadores da Razo Instrumental. J
a indstria cultural, transformada em sens-
vel instrumento de controle social, confere
importante afirmar
que o potencial de
transformao da arte
intrnseco sua prpria
natureza, no estando
restrito a um discurso
que se quer engajado.
11
aos produtos culturais um ar de semelhan-
a, de homogenizao, de coisificao.
Essa falsa variedade est ancorada em uma
suposta liberdade de escolher o que sem-
pre a mesma coisa (ADORNO E HORKHEI-
MER, 1985, p. 156). Nesse processo, deno-
minado semicultura (ADORNO, 1996), o
indivduo no vivencia uma experincia es-
ttica profunda: apenas uma fruio epi-
drmica, pouco vigorosa e, principalmente,
passageira, uma vez que preciso estar sem-
pre disposto a consumir o novo produto a
ser lanado. As ondas de que o meio fono-
grfico brasileiro lana so um triste exem-
plo dessa pasteurizao: a cada vero, novos
modismos/artistas so lanados no merca-
do. H toda uma veiculao de produtos
correlatos (DVDs, roupas, calados, shows),
exaustivamente divulgados, que atingem
nmeros realmente impressionantes de
vendagem, frequentemente batendo os re-
cordes dos anos anteriores. No entanto, da
mesma forma que se apresentam de forma
avassaladora, no resistem a mais de uma
estao, curiosamente o perodo em que o
mundo da moda lana seus novos produ-
tos. Nesse sentido, a expresso modismo,
quando aplicada aos produtos da indstria
cultural, no fortuita.
Diferentemente, as obras de arte, sejam de
origem popular ou erudita, promovem no
apreciador, seja ele ouvinte ou espectador,
um crescimento na direo de sua prpria
humanizao. A relevncia da experincia
esttica est justamente nesse processo,
pois no contato com a Arte, seja assistindo
a um filme e sentindo empatia pelos perso-
nagens, seja participando de um concerto e
se transportando para outro perodo hist-
rico, seja apreciando uma pintura e viven-
ciando o ideal de beleza e humanidade nela
expresso, o homem anseia por absorver o
mundo e, ao mesmo tempo, integr-lo a si
mesmo. Para Fischer, isto claro na medida
em que faz parte da natureza humana essa
transcendncia:
O desejo do homem de se desenvolver e
completar indica que ele mais que um
indivduo. Sente que s pode atingir a
plenitude se se apoderar das experin-
cias alheias que potencialmente lhe con-
cernem, que poderiam ser dele. E o que
um homem sente como potencialmente
seu inclui tudo aquilo de que a huma-
nidade, como um todo, capaz. A arte
o meio indispensvel para essa unio
do indivduo com o todo; reflete a infini-
ta capacidade humana para a associa-
o, para a circulao de experincias e
ideias (2002, p. 13).
a partir de afirmaes como essa que rei-
teramos nossa convico de que a formao
cultural dos professores fundamental e ur-
gente. Como formador de futuros cidados,
o professor, antes de tudo, precisa estar co-
nectado com o mundo da cultura, cultura
12
essa entendida como patrimnio de todos.
inerente ao seu ofcio fazer as mediaes
necessrias para que seu aluno possa tomar
posse de todo esse patrimnio. Contudo,
se ele mesmo no possui os instrumentos
de anlise necessrios para esse fruir mais
aprofundado, como estimular esse processo
em seus alunos? Da a necessidade de inves-
timentos vigorosos nessa direo.
Uma conjugao de
es -foros se faz neces-
sria: mudanas curri-
culares nos cursos de
formao de profes-
sores, estmulo fre-
quncia de espaos cul-
turais, descontos para
professores nos ingres-
sos, enfim, uma efetiva
poltica de incentivo
formao cultural dos
professores. Efetivamente, uma conjugao
de esforos e medidas que se constituam em
um projeto poltico e no apenas iniciativas
isoladas, quase sempre marcadas por inte-
resses localizados ou sem continuidade.
preciso ultrapassar a lgica de uma poltica
de eventos para se viabilizar uma poltica de
Estado, na direo de um conjunto de medi-
das, a curto, mdio e longo prazos, que ga-
rantam a formao cultural dos professores
em um nvel aprofundado.
no reconhecimento do potencial da Arte
e da cultura em geral na transformao das
pessoas que defendemos sua apropriao por
todos os indivduos, sem distino de classe,
gnero ou etnia. E no reconhecimento da
Educao como uma das alavancas primor-
diais para a transformao social (FREIRE,
1993), que defendemos a formao cultural
dos professores como elemento central no
processo de emancipao da sociedade.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. Teoria da
semicultura. Educao
e Sociedade. Revista
Quadrimestral de Cin-
cia da Educao, ano
XVII, n. 56. Campinas:
Papirus/Cedes, 1996.
ADORNO, T. e
HORKHEIMER, M.
Dialtica de esclarecimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
CUCHE, D. A noo de cultura nas cincias hu-
manas. Bauru: Edusp, 1999.
FISCHER, E. A necessidade da arte. 9. ed. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
FREIRE, P. Professora sim, tia no cartas a
quem ousa ensinar. So Paulo: Olho Dgua,
1993.
Como formador de
futuros cidados, o
professor, antes de tudo,
precisa estar conectado
com o mundo da
cultura, cultura essa
entendida como
patrimnio de todos.
13
MARCUSE, H. A dimenso esttica. So Paulo:
Martins Fontes, 1977.
PUCCI, B. Teoria crtica e Educao. In: PUC-
CI, B. (org.) Teoria crtica e educao: a ques-
to da formao cultural na Escola de Frank-
furt. 2. ed. Petrpolis/So Carlos: Vozes/
Ufscar, 1995.
ROUANET, S. P. As razes do iluminismo. 6.
ed. So Paulo: Cia. das Letras, 1999.
SNYDERS, G. A escola pode ensinar as alegrias
da msica? So Paulo: Cortez, 1992.
14
1 Professora no Mestrado em Educao da Universidade de Uberaba.
2 Por coerncia terica, grafo alguns termos no masculino e no feminino.
3 O sensvel e o artstico no podem ser desprezados quando se busca compreender a constituio do ser humano (Vygotsky, 2003).
TEXTO 2
Cultura e Formao de ProFessoresa Cultura na Formao de ProFessores
Clia Maria de Castro Almeida 1
Em educao, uma ideia questionvel, mas
amplamente generalizada, a de que o su-
cesso do processo de ensino e aprendizagem
se vincula diretamente ao domnio de con-
tedos escolares pelo pro-
fessor ou pela professora2
e capacidade de transmi-
ti-los. A fim de contribuir
para esse debate, defendo
aqui a necessidade de a
formao docente incluir
experincias estticas que
permitam a professores e
professoras mediarem a
aprendizagem de conte-
dos curriculares e amplia-
rem o repertrio cultural
de alunos e alunas com
mais facilidade e segu-
rana. Tambm discuto a
contribuio de experin-
cias estticas para proces-
sos de subjetivao constitutivos da profis-
sionalidade docente. Para tanto, parto dos
pressupostos de que fatores sociais e cultu-
rais so decisivos constituio de saberes
docentes e sua mediao na aprendizagem
discente e, ainda,
de que estudos so-
bre a relao entre
docentes e cultura
podem ampliar a
compreenso das
prticas educativas
referentes no s
mediao do co-
nhecimento esco-
lar, mas tambm
formao humana
em sentido lato,
que supe forma-
o cultural e est-
tica3.
Toda prtica social
tem dimenso cultural, ou seja, a cultura
Toda prtica social tem
dimenso cultural,
ou seja, a cultura
aprendida e apreendida
referncia para
diversos procedimentos
ou normas de pensar,
agir e relacionar-se
compartilhados e
reconhecidos pelos
sujeitos na vida pessoal
e na vida profissional.
15
aprendida e apreendida referncia para di-
versos procedimentos ou normas de pensar,
agir e relacionar-se compartilhados e reco-
nhecidos pelos sujeitos na vida pessoal e na
vida profissional. Cultura e educao no
se dissociam, pois os processos educativos,
sejam institucionais ou no, inserem-se em
uma cultura4.
luz de Bourdieu e Jean Claude Passeron
(1975) quando asseveram que as relaes
entre competncias culturais e lingusticas
prprias de certa classe social determinam
o desempenho na escola , tambm se pode
supor que, quanto maior e mais variado for
o repertrio cultural do professorado, mais
numerosas e apropriadas sero as escolhas
possveis para que este medeie a construo
de conhecimentos escolares.
Ora, se a educao tem vnculos fortes com
a cultura, ento pertinente discutir a con-
tribuio das experincias culturais da vida
cotidiana para a formao de docentes e sua
prtica educativa.
Para Maurice Tardif, o saber docente5 plural
e construdo em diferentes tempos e espa-
os da vida em sociedade; um saber resul-
tante de um amlgama de vrios saberes: os
saberes da formao profissional, os saberes
disciplinares, os saberes curriculares e os sa-
beres experienciais. Aqui nos interessa dis-
cutir os saberes experienciais, ou seja, aque-
les saberes que mobilizam conhecimentos
adquiridos atravs da histria de vida, da
experincia de trabalho e da socializao
(TARDIF, 2002).
Se, como afirma Tardif, os saberes experien-
ciais colaboram para a constituio do saber
docente e se resultam, em grande parte,
das experincias da vida em sociedade ,
ento cabe perguntar: que experincias so
essas? Incluem experincias culturais e es-
tticas como prticas de leitura e hbito de
frequentar museus, salas de concerto, tea-
tro, cinema, exposies de artes visuais, es-
petculos de dana etc.? E quais so as con-
tribuies que essas experincias trazem
prtica pedaggica?
Ainda so escassos os estudos que desta-
cam os vnculos entre cultura e educao
e defendem a escola como centro de for-
mao cultural onde as disciplinas das hu-
manidades voltadas ao sentir e ao pensar
(msica, literatura, teatro, cinema, artes
visuais e outras) so vistas como parte im-
portante da educao escolar; tambm so
4 A cultura no somente um conjunto de imperativos no qual se inscreve necessariamente todo projeto pedaggico e que o professor deve bem conhecer se quer poder domin-lo [...]; tambm, mais fundamentalmente, o que constitui o objeto mesmo do ensino, seu contedo substancial e sua justificao ltima [...]. (Forquin, 1993, p. 1678).
5 Tardif (2000) emprega o termo saber para designar um conjunto de conhecimentos, competncias, habilidades e atitudes.
16
escassos estudos que apontem a relevncia
das experincias estticas para processos de
subjetivao e para a constituio da profis-
sionalidade docente. Mas tal escassez no
se justifica por falta de reconhecimento da
importncia desses vnculos, apontados por
vrios autores que defendem uma poltica
de formao (inicial e continuada) que asse-
gure ao professor e professora o acesso a
formas variadas de expresso artstica.
No Brasil, a posio oficial quanto a uma
formao cultural para docentes incipien-
te e difusa. Com efeito, o Plano Nacional de
Educao apenas sugere que os currculos
dos cursos de formao para o magistrio
assegurem uma ampla formao cultural,
e recomenda uma parceria entre as institui-
es formadoras e os equipamentos cultu-
rais pblicos e privados com o objetivo de
[...] criar oportunidades de convivncia com
um ambiente cultural enriquecedor [...]
(BRASIL, 2001, p. 74).
Tambm as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para formao de professores/as da
educao bsica abordam vagamente o pro-
blema da formao cultural. Tal documen-
to diz que [...] a organizao curricular de
cada instituio observar [...] outras formas
de orientao inerentes formao para a
atividade docente, entre as quais o preparo
para [...] o exerccio de atividades de enrique-
cimento cultural [...]; e tambm recomenda
[...] iniciativas que garantam parcerias para
a promoo de atividades culturais destina-
das aos formadores e futuros professores
(BRASIL, 2002).
A ambiguidade e a superficialidade desses
documentos no tocante problemtica
da formao cultural do professorado so
reiteradas pelos dados de uma pesquisa
recente (GATTI; BARRETO, 2009) sobre as
licenciaturas. A pesquisa indica a presena
de disciplinas optativas nos currculos das
licenciaturas que, pela sua denominao,
podem ser relacionadas educao es-
ttica; mas isso no significa que visem
formao cultural de professores e profes-
soras dito de outro modo, podem ser dis-
ciplinas instrumentais, voltadas ao ensino
de tcnicas artsticas.
A mesma pesquisa indica que muitas licen-
ciaturas incluem no currculo atividades
culturais, atividades cientfico-culturais
ou seminrio cultural. Mas, no dizer das
pesquisadoras, [...] pelo material examina-
do [...] fica muito pouco claro do que cons-
tam e qual o tratamento que lhes ofereci-
do [...] (GATTI; BARRETO, 2009, p. 124). O que
nos leva suposio de que foram inseridas
no currculo para atender no papel s re-
comendaes dos documentos oficiais.
Outra pesquisa (UNESCO, 2004), de mbito
nacional, evidencia a necessidade de os r-
gos governamentais se preocuparem mais
com a formao cultural de docentes. Feita
17
em 2002, ela enfocou o perfil de professores
e professoras da educao bsica no Brasil
e, dentre outros quesitos, levantou informa-
es sobre o consumo cultural e as prefern-
cias e atividades culturais. Os dados foram
obtidos mediante questionrio, respondido
por uma amostra representativa cinco mil
pessoas do universo constitudo por do-
centes de escolas pblicas e privadas das 27
unidades federativas. Sobre a participao
docente em eventos e atividades culturais
(visitas a museus e exposies de artes visu-
ais, frequncia a teatro, concertos, cinema
etc.), os dados so alarmantes: 62,1% nun-
ca foram a um concerto de msica erudita,
17,4% nunca foram ao teatro, 14,8% nunca
foram a um museu, 8,6% nunca visitaram
uma exposio em centros culturais e 8,6%
nunca foram ao cinema.
Os baixos ndices de consumo de bens cul-
turais obtidos nessa pesquisa podem indicar
que, em muitos municpios brasileiros,
pequena ou nula a oferta de equipamentos,
aes e eventos culturais. No Brasil, a maio-
ria das aes culturais no abrange muitos
segmentos do mercado consumidor, pois
esto nos grandes centros urbanos e so
destinadas a um pblico mais exigente e di-
ferenciado que vive nas capitais de mais pro-
jeo (CAIADO, 2001). Ou seja, o investimen-
to pblico em cultura subsidia o consumo
das camadas de mdia e alta renda (SANTOS,
2009). Ao no contemplar pequenos munic-
pios e a periferia das grandes cidades, tais
aes no atingem as camadas de mais bai-
xa renda, nas quais a maior parte do profes-
sorado se inclui.
Mas outros fatores contribuem para o baixo
ndice de consumo cultural entre professo-
res e professoras. Em pesquisa mais recente
(ALMEIDA; CAMARGO; SILVA, 2007), que cor-
robora os ndices acerca do consumo cultu-
ral obtidos na pesquisa UNESCO, as profes-
soras entrevistadas afirmam que jornadas
de trabalho intensas e salrios baixos, bem
como a falta de familiaridade com certos
tipos de produo artstica suas histrias
de vida familiar e escolar no registram tais
experincias limitam ou impedem certas
prticas culturais. Essas justificativas con-
firmam que a dificuldade de acesso a certas
expresses da cultura se vincula ao nvel de
educao, profisso, localizao domici-
liar e, sobretudo, s transmisses familiares
como assinala Bourdieu (1998).
Os resultados das pesquisas aqui citadas
permitem supor que as experincias cultu-
rais da maior parte do professorado brasi-
leiro no se distinguem das experincias
do alunado, pois compartilham a mesma
cultura amorfa disseminada pela indstria
cultural via meios de comunicao massi-
va. Assim, cabe indagar: como professores e
professoras podem ampliar a bagagem cul-
tural de alunos e alunas se os repertrios de
experincias estticas de ambos se asseme-
lham?
18
O baixo ndice de frequncia a eventos cul-
turais entre professores e professoras se tor-
na ainda mais srio porque fatores sociais
e culturais so centrais na constituio de
saberes docentes e na mediao de conheci-
mentos escolares. Ora, na prtica educativa,
no s se busca cumprir as prescries da
cultura escolar6, mas
tambm se expressa
uma subjetividade pro-
duzida pela cultura vi-
vida em sociedade.
Se escola cabe a
responsabilidade de
ampliar a dimenso
expressiva e criativa
de alunos e alunas,
familiarizando-os com
um mundo cultural
alheio ao cotidiano de
suas vidas, premen-
te a necessidade de
se implementar uma
poltica de formao
profissional que preve-
ja o desenvolvimento cultural e esttico do
professorado da educao bsica.
Defender uma formao cultural que ultra-
passe os limites do que a cultura massiva
pode oferecer, de modo algum, supe op-
la chamada cultura erudita. No se trata
de preferir uma a outra, pois os universos
distintos de significados culturais que tran-
sitam na sociedade contempornea no po-
dem ser hierarquizados; antes, tm de ser
previstos no processo criativo dos sujeitos
e nas mediaes possveis entre o vivido, o
aprendido e o imagi-
nado. Nesse caminho,
cabe ao professorado
reconhecer as cultu-
ras locais de que o
alunado participa s
vezes de forma dspar
e levar sala de aula
outros universos de
significados para que
possam ser confronta-
dos, apropriados e re-
construdos.
O consumo de bens
culturais direito de
todos, por isso tarefa
do Estado implemen-
tar aes coordenadas
e contnuas para ampliar as condies de
acesso cultura mediante servios cultu-
rais que garantam formas de incluso e
participao de todos; ou seja, uma polti-
ca cultural que amplie as dimenses exis-
tenciais para alm do trabalho e da sub-
O baixo ndice
de frequncia a
eventos culturais
entre professores e
professoras se torna
ainda mais srio
porque fatores sociais e
culturais so centrais na
constituio de saberes
docentes e na mediao
de conhecimentos
escolares.
6 Cultura escolar o [...] conjunto dos contedos cognitivos e simblicos que, selecionados, organizados, normalizados, rotinizados, sob o efeito dos imperativos de didatizao, constituem habitualmente o objeto de transmisso deliberada no contexto das escolas [...] (Forquin, 1993, p. 167).
19
sistncia. Equivocadamente, as polticas
pblicas para se democratizar a cultura se
fundamentam na ideia de que os entraves
ao consumo de tais bens so materiais: m
distribuio ou ausncia de espaos cultu-
rais, ingressos com preo muito alto etc.
No entanto, na contramo do que revelam
as pesquisas, as barreiras simblicas pre-
ponderam como forma de impedir alguns
segmentos da populao de consumirem
certos bens culturais.
A sensibilidade, sobretudo em relao a ex-
perincias de apreciao artstica da msi-
ca, da dana, do teatro, das artes visuais e
do cinema, tambm constitui os saberes do-
centes. Se tais experincias so reiterativas
da cultura amorfa disseminada pela mdia
massiva, elas expressam uma formao ini-
cial e continuada ineficiente, agravada pela
insero precria ou pela falta de insero
na vida cultural. Superar esse problema de-
pende do Estado (definio de prioridades,
controle e acompanhamento de aes pro-
gramadas ou fomentadas pelo governo) e da
sociedade civil (que tem papel decisivo na
construo dos sistemas culturais). Ao pro-
fessorado cabe se mobilizar no s em prol
do controle de gastos pblicos com cultu-
ra, mas tambm de sua participao direta
na definio de polticas culturais em geral
e polticas para a formao de profissionais
da educao em particular.
Ora, se as barreiras simblicas preponderam
como empecilhos para que certos segmen-
tos da populao nesse caso, professores
e professoras, alunos e alunas consumam
certos bens culturais, ento necessrio que
os currculos de formao docente deem
mais ateno a prticas estticas, culturais
e de criao. Enfim, se a escola instrumen-
to poderoso para formar o gosto e estimular
a apreciao e o uso de bens simblicos de
forma duradoura e estvel, ento, urgen-
te uma reviso curricular da formao ma-
gisterial e polticas pblicas para formao
cultural e esttica de docentes atuantes na
educao bsica do Brasil. No uma polti-
ca de eventos 7, mas uma poltica que crie
um programa educativo a ser desenvolvido
em longo prazo e abarque educao escolar,
estudos superiores e formao continuada;
um programa em que as instituies forma-
doras sejam espaos no s de produo e
difuso cultural, como tambm e sobretu-
do de mediao cultural; um programa em
que dadas as condies atuais de trabalho
e salrio de professores e professoras haja
uma democracia cultural que lhes possibili-
te consumir outros bens culturais alm dos
que so oferecidos pela indstria cultural.
7 [...] conjunto de programas isolados que no configuram um sistema, no se ligam necessariamente a programas anteriores nem lanam pontes necessrias para programas futuros. (Teixeira Coelho, 1999, p. 300).
20
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22
TEXTO 3
exPerinCias esttiCas e linguagens artstiCas
inquietudes e exPerinCias esttiCas Para a eduCaoLuciana Gruppelli Loponte
1
Uma sala escura, um vdeo. Na tela nos-
sa frente, uma mulher equilibra-se sobre
a linha do horizonte sobre o mar, em uma
praia qualquer, num vai-
e-vem contnuo e lento,
enquanto a mudana das
nuvens atrs dela revela
a passagem do tempo.
Se a frase acima apa-
rentemente demonstra
uma situao nonsen-
se, pode adquirir outro
significado se devida-
mente contextualizada.
Trata-se de uma descrio sucinta de Touch,
um vdeo/instalao da artista Janine Antoni,
apresentado na 7 Bienal do Mercosul, reali-
zada em Porto Alegre, de 16 de outubro a 29
de novembro de 2009, na mostra Fices do
Invisvel2.
A arte contempornea traa novos mapas es-
tticos e desconcerta as nossas provisrias
certezas sobre o que ou pode ser conside-
rado arte. Mas o que produes como essas
podem dizer ao campo da educao? Muito.
As exposies das quais
participaram essa e ou-
tros artistas demons-
traram uma intensa
preocupao pedaggi-
ca com aes educati-
vas que extrapolam os
conceitos mais comuns
do pedaggico, sem
tentar didatizar obras
to complexas, mas
tornando mais acess-
veis as discusses levantadas pelos artistas.
Por exemplo, vale destacar o projeto pedag-
gico da 7 Bienal do Mercosul que contem-
plou atividades prvias com vrios artistas,
colocados em disponibilidade ao pblico
em seminrios e residncias pedaggicas em
escolas da capital do Rio Grande do Sul e em
cidades do interior do estado.
1 Doutora em Educao, professora Adjunta da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do GT Educao e Arte da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (ANPEd)
2 Para mais detalhes ver http://www.fundacaobienal.art.br/ e http://www.youtube.com/watch?v=r_n2kfqNmpY
A arte contempornea
traa novos mapas
estticos e desconcerta
as nossas provisrias
certezas sobre o que
ou pode ser considerado
arte.
23
Neste texto, no entanto, no trato sobre a
importncia das aes educativas e a me-
diao entre obra e pblico, mas sim das
possibilidades e potencialidades que a arte
e, em especial, a arte contempornea, ofe-
recem para a formao esttica docente. As
questes que trago para discusso aqui j fa-
zem parte de minhas inquietaes h algum
tempo (Loponte, 2005, 2006, 2007): h espa-
o para criao e inveno na docncia? A
docncia pode ser uma obra de arte? O que a
docncia pode aprender com os/as artistas?
Que tica/esttica possvel para a docn-
cia na educao bsica? Estas questes so
alimentadas pelo trabalho especfico com
formao docente em arte (e outras reas) e
pelas provocaes tericas dos filsofos Mi-
chel Foucault e Friederich Nietzsche.
A arte no campo da educao (aqui pensan-
do em artes visuais, teatro, dana e msica),
uma rea de saber que ainda de certa for-
ma marginalizada na hierarquia curricular
escolar ou considerada como uma atividade
extracurricular, acessria ou alentadora da
seriedade das disciplinas mais importan-
tes. Muitas vezes a arte que entra na es-
cola uma arte consoladora, confortvel,
presente em decoraes de datas comemo-
rativas, recurso para outras disciplinas, re-
presentaes apenas para mostrar aos pais e
mes... Apesar desse cenrio to conhecido
e persistente, os avanos tericos do campo
da arte e educao so muitos, no pode-
mos ignorar. Basta considerar o incremento
de publicaes e eventos na rea nos lti-
mos anos, alm de experincias inovadoras
em algumas escolas. Mas no disso que se
trata este texto. Alm dessas questes, pre-
ocupa-me em pensar: quais as sonoridades
ouvidas pela escola quando se fala de arte? A
arte apenas conforta ou tambm pode per-
turbar, provocar, deslocar formas de pensar?
E o que dizer da relao entre arte e forma-
o docente?
Ao nos ajudar a pensar nessas questes,
Foucault e Nietzsche alimentam um pensa-
mento sobre arte que vai alm do campo de
um saber especfico, dominado apenas por
alguns. Perguntar se, afinal, a vida no po-
deria ser uma obra de arte, se no teramos
muito a aprender com os artistas ou se
podemos pensar que no h separao en-
tre arte e vida, se quisermos ser os poetas-
autores de nossas vidas (Foucault, 1995;
Nietzsche, 2001) so algumas indagaes
instigantes que podem impulsionar ques-
tes importantes para a formao docente.
A partir da amplitude dessas indagaes ini-
ciais, tenho me preocupado em investigar
temas mais especficos3: de que modo a arte
e a experincia esttica podem alimentar a
constituio da docncia na educao bsi-
ca? O que professores e professoras da edu-
3 Essas questes fazem parte do projeto de pesquisa Arte e esttica da docncia em fase de concluso em 2010, com financiamento do CNPq.
24
cao bsica, que atuam em nveis de ensi-
no diversos (da Educao Infantil ao Ensino
Mdio) e em campos disciplinares diversos
e no necessariamente com arte, podem
aprender com a arte e a experincia esttica
para a sua prpria formao continuada do-
cente? possvel encontrar espaos de cria-
o na docncia da Educa-
o Bsica?
As interrogaes ticas
que Foucault faz em seus
ltimos escritos (Fou-
cault, 1998, 2004), a partir
do profundo estudo sobre
os processos de subjetivi-
dade na Antiguidade, tm
me ajudado a entender
do que pode ser feita uma
possvel esttica de si do-
cente: um diferir-se per-
manentemente do que se
, um modo artista de
constituir-se, fugindo de
modelos identitrios para
a docncia, feitos de com-
petncias e habilidades
predeterminadas. Pensar
em uma docncia artis-
ta no , no entanto, pensar em um ponto
de chegada e a tico-esttica que a constitui
pouco tem a ver com a arte das obras-pri-
mas e sua insuspeitada originalidade cris-
talina. Assemelha-se mais quela arte que
se assume como esboo, como rascunho
contnuo, como busca de estilo, como expe-
rimentao, como resultado rduo e quase
infinito de trabalho do artista sobre si mes-
mo. Uma arte que se aproxima mais do que
chamamos hoje de arte contempornea,
avessa a rotulaes, legendas definidoras,
sentidos fechados, rompendo com frontei-
ras de materiais, tc-
nicas e temticas.
Para Bauman (2009,
p. 99), fazer da exis-
tncia uma obra de
arte nesse mundo
lquido-moderno
viver num estado
de transformao
permanente, auto-
redefinir-se perpe-
tuamente tornando-
se (ou pelo menos
tentando se tornar)
uma pessoa diferen-
te daquela que tem
sido at ento. Bus-
camos uma identi-
dade, para logo des-
cart-la. Praticamos
a destruio criativa
diariamente, con-
tinua provocando Bauman. Isso pode dizer
algo docncia?
Parafraseando Nietzsche, acredito que a do-
cncia pode aprender muito com a arte e
artistas, e em especial com artistas contem-
O que professores e
professoras da educao
bsica, que atuam
em nveis de ensino
diversos (da Educao
Infantil ao Ensino
Mdio) e em campos
disciplinares diversos
e no necessariamente
com arte, podem
aprender com a arte e a
experincia esttica para
a sua prpria formao
continuada docente?
25
porneos. Com Michel Foucault, podemos
pensar em certa inquietude consigo mes-
mo, uma inquietude esttica que nos desa-
comoda. Bem antes de Foucault, Nietzsche
j vinha bradando pela arte e sua relao
mais prxima com a vida, nos convocando
a pensar nossa prpria existncia estetica-
mente. A arte no um mero tintinar de
guizos que se pode muito bem dispensar
ante a seriedade da existncia, j advertia
Nietzsche (2003) em seu primeiro livro aos
homens srios, principalmente aqueles
que encarnavam a racionalidade moderna
e que desacreditavam no potencial da arte
para a existncia. Seguindo as flechas lana-
das por estes dois autores, podemos olhar
para a docncia esteticamente, como uma
forma de arte? Acredito que sim, e esta tem
sido a aposta das minhas ltimas pesquisas.
Arte e esttica na escola so percebidas com
certo estranhamento por aqueles que no
so os chamados especialistas em arte.
Olha-se com desconfiana para um conhe-
cimento que parece pertencer somente a
alguns e que no to importante quanto
reas disciplinares mais nobres do curr-
culo escolar, ou consideradas mais srias.
Mas por que no unir estas possibilidades
em uma experincia de formao docente?
Uma das temticas que tenho perseguido
a arte contempornea e sua potencial rela-
o com a formao esttica docente. Vale
lembrar o quanto a discusso em torno da
arte contempornea polmica, se conside-
rarmos o quanto ainda prevalecem noes
de senso comum em torno destas produ-
es, tais como se isso arte, tambm sou
artista, qualquer coisa pode ser arte?,
mas isso arte?, no entendi nada, no
gostei, sou burro diante dessas obras. As
impresses mais comuns em torno da arte
contempornea so, em certa medida, deri-
vadas do apego s noes clssicas e romn-
ticas em torno da arte aprendidas (formal
ou informalmente) no percurso da nossa
formao, e extrapolam o mbito dessa dis-
cusso sobre formao docente. O que im-
portante deixar registrado aqui neste texto
so os movimentos que podemos fazer na
relao desestabilizadora que as produes
artsticas contemporneas (pensadas como
metforas para a criao e para a vida como
obra de arte) provocam aos modos mais co-
muns com os quais estamos acostumados a
problematizar a docncia.
Embora a arte tematizada por Nietzsche te-
nha sido sobremaneira a msica (Dias, 2005),
podemos estabelecer relaes importantes
do seu pensamento sobre arte e esttica e
com as provocaes estticas contempor-
neas para a formao. Rosa Dias (2006) nos
lembra o quanto a arte para Nietzsche no
pretende acalmar, nem suspender o desejo,
o instinto, a vontade. A arte antes de mais
nada o que intensifica a vida, enquanto
fora contrria a toda forma de negar a vida,
a arte a base de novos valores (Dias, 2006,
26
p. 197). Instigados pelo filsofo, e pela de-
sestabilizao esttica da arte contempor-
nea, podemos pensar em sermos artistas da
nossa prpria existncia, nossa vida como
obra de arte, e nossos modos de ser docen-
te contaminados por uma perspectiva est-
tica. preciso, no entanto, ao pensar e ler
essas questes, no cair em armadilhas f-
ceis como interpretar tais afirmaes como
sinnimos de tudo que fazemos arte,
qualquer um pode ser docente e artista,
s a arte pode salvar a escola e seus pro-
fessores. Nada disso. E nem h aqui uma
apologia pela formao de docentes de qual-
quer rea para trabalhar com arte na escola.
Se ainda uma determinada arte escolar,
sensvel, bonitinha e consoladora que
permeia muitas das experincias estticas
docentes (sejam de arte ou no) e conse-
quentemente de seus alunos, podemos ir
alm, pensando arte e experincia esttica
na formao docente como uma forma de
sacudir nossas ideias mais comuns a respei-
to, ambicionando uma formao arejada e
provocada por inquietaes estticas, inde-
pendentemente da rea de conhecimento.
H espaos para inveno e criao na do-
cncia? Com Nietzsche, penso em experin-
cias estticas que podem suscitar o estado
de embriaguez da criao, pensando na arte
bem alm de uma finalidade moral. Que po-
tncia a arte e a experincia esttica tm
para desacomodar, desalojar certezas de
docentes de Arte, Matemtica, Portugus,
Pedagogia, Histria ou qualquer outra rea?
Obras e experincias desestabilizadoras,
como as produes da arte contempornea,
podem nos tirar do lugar estvel onde nos
posicionamos cotidianamente como docen-
tes? Que espectadores-criadores podemos
ser? Reviver a experincia do criar na forma-
o docente, invenes de si mesmo (a) na
docncia, criar obras de arte em prticas
pedaggicas, embriagar nossos modos de
nos constituirmos como docentes: ambio
demais? Por que no?
Antes de qualquer mal-entendido, aviso que
no h aqui a busca por um educador mais
sensvel e adocicado pelas vias da arte.
preciso cuidado ao ler as palavras e pensar
no que j aprendemos e pensamos sobre
elas. da arte provocadora, zombeteira, em-
briagadora de que falamos aqui: uma arte
sem moral. No poderia ser diferente se
escolhemos nos acompanhar pelo filsofo-
danarino de fartos bigodes. Com ele, luta-
mos contra a finalidade moralizante da arte,
que ocupa largo espao nas interpretaes
estticas escolares. de uma outra arte que
precisamos se queremos abrir espaos de
criao na docncia. Sejamos menos ino-
centes e puros quando pensamos em arte e
docncia: ao Diabo com a moral (Nietzs-
che, 2006, p.77).
A imagem da artista Janine Antoni equili-
brando-se sobre a linha de horizonte em
dias sucessivos, aprendendo a equilibrar-se
no desequilbrio, pode ser uma boa metfo-
27
ra para pensar a relao entre arte, experi-
ncia esttica e docncia. Seremos capazes,
afinal, de transformar nossas experincias
docentes em arte?
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Presidncia da Repblica
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Junho 2010