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ENTRE A ÁFRICA E O RECIFE: INTERPRETAÇÕES DO CULTO CHAMBÁ
ENTRE A ÁFRICA E O RECIFE: INTERPRETAÇÕES DO CULTO CHAMBÁ
Resumo:
Este artigo tem como objetivo trazer para o debate em torno das perspectivas atlânticas que buscam delimitar fronteiras e perceber continuidades entre práticas culturais na África e na diáspora, sobretudo, no que diz respeito ao Brasil e aquele Continente. Para tanto, partimos da discussão acerca de possíveis interfaces entre rituais religiosos organizadores do cotidiano dos africanos da etnia chamba, situados nos atuais Nigéria, Camarões e Togo, e um terreiro de candomblé no Recife/PE – Terreiro Santa Bárbara – cuja nação é denominada xambá. Deste modo, pontuamos correspondentes entre o Mama Tchamba no Togo – ritual em memória da escravização e resistência das mulheres a submissão islâmica no século XIX – e a Louvação de Oyá – cerimônia de caráter feminino no Terreiro Santa Bárbara. Elencamos por fim, interseções entre culto à Afrekête – vodu daomeano – e a presença deste enquanto um dos orixás do panteão daquele Terreiro.
Palavras-chaves: África. Mama Tchamba. Afrekête. Nação Xambá. Recife.
Abstract:
This article aims to bring to the debate surrounding the outlook Atlantic that seek to delimit the borders and see continuities between cultural practices in Africa and the Diaspora, especially with respect to Brazil and that continent. The starting point was the discussion of possible interfaces between organizers of the daily religious rituals of African ethnicity chamba, located in today's Nigeria, Cameroon and Togo, and a Terreiro de Candomblé in Recife / PE - Terreiro Santa Barbara - whose nation is referred Xambá. Thus, the corresponding point between the cult Mama Tchamba in Togo, whose roots are in the process of social memory of slavery in the nineteenth century, and the resistance of women Islamic Chamber to submission, and the Worship of Oyá, womanhood ceremony, which recalls the first ialorixá made in Recife Pai Rosendo, precursor of the cult Xambá in Pernambuco.
Key-words: Africa. Mama Tchamba. Afrekête. Nacion Xambá. Recife.
2
Introdução
Os trabalhos acadêmicos sobre tráfico e escravização vêm mostrando uma
ligação entre as re-elaborações de identidade e a organização dos cultos de orixás,
semelhante às recriações dos africanos e seus descendentes nas experiências da
escravidão e da liberdade. Assim, como partes das negociações de identidades étnicas e
das construções de nações, forjadas pelos sujeitos no cativeiro, foram rememoradas
também nos espaços religiosos. Grupos étnicos genéricos, como nagô, angola, jeje; e as
identidades mais específicas, como savalu, moçambique e chamba, puderam ser
encontradas nas recriações das religiões de matriz africana, em particular, nos cultos de
orixás (PARÉS, 2006). Estes denominados de candomblés na Bahia, Rio de Janeiro e
demais estados do eixo Sul e Sudeste; sendo conhecidos como xangôs em Pernambuco,
Alagoas, Paraíba e no Rio Grande no Norte.1 Até o presente momento, os estudos sobre
tráfico e escravidão no Recife, onde a identidade chamba (tchamba ou xambá) aparece,
não apontam relações entre essa etnia e a população de cativos na região, visto que
existiu uma supremacia de africanos da região centro-ocidental, sobretudo da área
Congo-Angola. Porém, encontramos, nos cultos africanizados na Cidade, uma memória
de configuração de identidade étnico-religosa, ligada aos grupos humanos da região
ocidental, em particular dos atuais Nigéria, Camarões e Togo, ou seja, parte do território
de domínio da língua chamba leko e da etnia chamba da região do Mapeo, ou seja, da
chambaland.2
Neste artigo, objetivamos analisar alguns aspectos, sociais, políticos,
econômicos, sobretudo religiosos do povo chamba da região ocidental africana, cuja
história está entrelaçada às experiências com o comércio e o tráfico atlânticos entre os
séculos XVIII e XIX, no intuito de perceber suas interseções com o culto xambá em
Pernambuco. Temos para perscrutar tais interseções o Terreiro Santa Bárbara – Nação
Xambá, conhecido na atualidade como Casa Xambá, localizado em Portão de Gelo no
bairro de Beberibe/Olinda, Região Metropolitana do Recife, como campo etnográfico,
visto que há nesse espaço sinais diacríticos que nos remetem a possíveis reelaborações
de certas práticas rituais dos chambas da região do Mapeo – atual Nigéria e Camarões, a
1 A palavra “xangô” nestes estados adquiriu sentido polissêmico. Além de ser o nome do orixá ligado ao trovão e a justiça, é também nomeclatura recorrente para denominar a festa litúrgica (xirê) e o espaço físico onde ocorre a prática religiosa, chamada também de terreiro ou barracão.2 Denominamos de chambaland toda a área da África Ocidental entre as regiões do Mapeo e do Yeli, territórios que no século XIX foram centro das disputas pelo controle do comércio das caravanas de cola. Cf. Richard Fardon, www.book.google.es/books?ed=x6Yv_4A/IVEC&pg=PA31&dq=chamb%C3A18/r=&hl=pt-BR#&Pa29, M1.
3
exemplo do ritual Mama Tchambá e os Jup matrikin – rituais femininos, cujas
características podem ser identificadas com rituais do Terreiro Santa Bárbara – Nação
Xambá, a exemplo a Louvação de Oyá; e o culto à Afrekête ou Averekete, vodu
daomeano que no Terreiro Santa Bárbara é considerado um orixá feminino.
Até o momento, pouco se sabe sobre o etinônimo xambá/chamba/tchamba no
Brasil. Sendo nossos referenciais os estudos de Robin Law, Rodrigo Rezende e Mariza
de Carvalho Soares, ambos os historiadores, e a antropóloga, que atribuem a localização
dos chamba/tchamba à região ocidental da África, onde hoje estão os atuais Nigéria,
Camarões e Togo; o antropólogo Richard Fardon, cujo trabalho, Beetween god, the dead
and the wild: chamba interpretations of ritual and religion, nossa base bibliográfica
para a composição desta narrativa. Outros pesquisadores, como Alessandra Brivio, da
University of Milano-Biccoca, focalizam o culto chamba no Togo e no Benin, dentro
das perspectivas de memória da escravidão como fios condutores da reelaboração do
culto (LAW, 2006: 109-131; REZENDE, 2006; SOARES, 2007; BRIVIO, 2009).
Portanto, sendo variadas as explicações sobre os chambas enquanto grupo étnico
e organização de seus cultos, privilegiamos discutir, por ora, o complexo social e
religioso dos Chambas do Mapeo, abordando o jup, ritual que além da dimensão de
ordenamento social, pode ser interpretado também como uma forma de os chambas do
Mapeo estabelecerem, em particular, seus papéis de gênero. Para Durkheilm, a religião
tem a função de dar sentido a vida dos atores sociais no coletivo, ou seja, as práticas
religiosas livram os indivíduos da anomia, ou seja, da perda de seus referenciais na
comunidade (BERGER, 1985 EVANS-PRITCHARD, 1995). Para os chambas do
Mapeo, o jup se divide em várias formas, sendo destinados para cada evento cotidiano,
desde colheitas até as relações entre homens e mulheres. No entanto, neste trabalho,
observaremos os jup matriklin (matrilineares)- cultos femininos, em particular, para
perscrutar as interseções na Louvação de Oyá e o espaço de domínio das mulheres do
Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do Recife.
Contudo, além de focalizarmos o território Chamba na África, em particular na
região do Mapeo, discutiremos, a partir do ritual do jup, sua relação com o mundo
espiritual e o material – entre o mundo visível e o invisível. Ao longo de toda a
discussão sobre o ritual do jup, estaremos sinalizando suas possíveis reelaborações em
casas de culto aos orixás no Recife, sobretudo aquele que na atualidade representa senão
a única, a mais visível em práticas que a identificam como de Nação Xambá, ou seja, o
Terreiro Santa Bárbara.
4
Territorialidade da Chambaland na África
Descrever a localização dos chambas torna-se tarefa árdua, uma vez que, este,
ou melhor, grupos humanos que aparecem nas informações de antropólogos e
historiadores, são apontados em diversos territórios do continente Africano. Ora
localizados na parte ocidental, nas regiões entre o rio Benué e os montes Adamawa,
falantes da língua “leko”, cuja história de ocupação territorial está no século XIX, no
apogeu da jihad dos povos Fulanis, que empurraram os falantes do leko para a região do
Mapeo – atuais Nigéria e Camarões.3 Para outros estudiosos, como o professor togolês
Gayibor da Universidade do Benin, a etmologia tchamba foi atribuída aos povos
kasselem: Denji, Larene, Dagnma, Kpatakapani, Akpowa, Kouboni, Watowwa, que se
instalaram entre o final do século XVII e início do XVIII, na região da “tchambaland”,
sendo este período também um correspondente da etnia no tráfico africano para Brasil.
Essa região – chamba – na África se tornou, a partir de 1850, com a dominação do Islão,
ponto nevrálgico de disputas pelo domínio do comércio de caravanas de cola, atrativo
para os povos vizinhos: bariba, mandigas, kotocolis, que disputavam o controle da
comercialização da cola. O historiador Robin Law caracteriza o grupo étnico chamba,
como povo falante do gur, habitantes do noroeste do Daomé, também envolvidos nas
rotas comerciais da cola; enquanto Paul Lovejoy aponta os kotocolis, povo islâmico mas
que também tinha participação nos negócios de caravanas de noz de cola, como uma
espécie de subetnia chamba (SOARES, 2007).
Vale ressaltar que, nas décadas de 1940-50, estudiosos como René Ribeiro, que
investiga a influência da cultura africana pós-abolição e a inserção do negro na
sociedade republicana, apontaram os chambas como etnia da região Centro-Ocidental,
sobretudo da área Congo-Angola. Isso a partir de suas pesquisas nos terreiros de xangôs
do Recife e Maceió, onde os adeptos dos cultos aos orixás, nessas cidades, relatavam
como sendo os “Shambás” povo do Congo e Angola, visto que em seus rituais
utilizavam tambores com os nomes de ingomes (ngoma) – Iam, Melê-ancó e Melê,
correspondentes do Rum, Pi, Lé. Outros sinais diacríticos apontados por Ribeiro, na
tentativa de aproximar o culto chamba de rituais praticados no Recife e em Maceió que
tinham como brinquedo o coco-de-roda, distinguindo-se dos demais terreiros de 3Cf. Richard Fardon, www.book.google.es/books?ed=x6Yv_4A/IVEC&pg=PA31&dq=chamb%C3A18/r=&hl=pt-BR#&Pa29, M1.
5
linhagem nagô, que costumavam ter como brinquedo maracatus. Uma comida votiva
específica dos terreiros chambas¸o pirão ou “falofa” de Angola foi também tomada por
Ribeiro como indício de culto centro-ocidental.4
Desse modo, sendo motivo de encontros e desencontros entre os pesquisadores a
precisão na localização dos chambas e de seus correspondentes na organização dos
cultos de orixás na diáspora, ficamos com as explicações de Richard Fardon, que
concebe a chambaland como metrópole do comércio da cola, que se tornou atrativo de
diversos outros povos, que, na medida em que ocuparam a região foram incorporando
elementos da cultura islâmica, da cultura dos falantes do “leko” e do “daka”.5 Além dos
grupos humanos falantes do leko e do daka, outros grupos étnicos se organizaram dentro
da chambaland; segundo o togolês Gayibor, estavam os baribas, os kotocolis e os
mandigas, que viveram sob o domínio do clã kasselem (primeiro grupo étnico a se
instalar na chambaland e se identificarem como tchamba). Para Fardon, chamba pode
ser pensado como uma espécie de “território agregador”. A geografia desse “território
agregador” pode ser estendida por toda a área entre o Mapeo – hoje Camarões e Nigéria,
e Yeli – atual Togo.
No século XIX, os grupos humanos da chambaland estavam organizados socio-
politicamente de formas diversas, regidas em clãs (patriarcais, matriarcais, mistos).
Comunidades acéfalas, chefia ritualizada, pequenos estados conquistados, cuja sucessão
se dava pela linhagem dos kasselem, visto que foram os primeiros a se instalar na
região. Por volta de 1896, Obwê Doré era rei chamba, cujo governo era auxiliado por
um conselho composto de líderes dos diferentes clãs. Sendo o comércio da cola a base
econômica e de disputas políticas pelo domínio do território (FARDON, 2007).
No entanto, o chamba não pode ser visto sob a ótica de um “guarda-chuva”
étnico, a exemplo dos nagôs, jejes e angolas, também tidos como grupos de procedência
portuária que atribuíram identidade aos grupos humanos apreendidos nessas áreas, na
época do tráfico atlântico (REZENDE, 2006; PARÉS, 2006).6 Segundo Robin Law, o
grupo de procedência, ou melhor, a etnia chamba, segundo ele, falante do gur, em
termos demográficos, não teve presença significativa no Brasil. Foram apontados no
4 Cf. René Ribeiro, Entrevista com Dudu Obaitó, 30 marc. 1954, fl. 01. Manuscritos. Arquivo Particular de Celina Ribeiro.5 Segundo Richard Fardon, o grupo étnico da chambaland falava uma língua chamada chamba leko – comum entre os povos da Nigéria e Camarões, e o chamba daka – língua falada pelos grupos da região do Yeli. Cf. (FARDON, 2007).6 O debate sobre “guarda-chuva” étnico no Brasil escravista foi inaugurado por João José Reis. Ver desse autor várias obras, sobretudo, Rebeliões escravas no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835 (REIS, 2003).
6
Recôncavo Bahiano, por volta de 1778; em Minas Gerais, em 1795. Mariza de Carvalho
Soares aponta uma presença não significativa em termos demográficos de escravos
chambás no Rio de Janeiro, também no século XVIII. Enquanto em regiões do nordeste,
não temos registro de africanos chambás, salvo narrativas de praticantes dos cultos de
orixás, que remetem à memória de organização de seus rituais, a elementos encontrados
nas práticas religiosas dos povos da Nigéria e Camarões – região do Mapeo – e, Togo –
região do yeli.
Assim, a religião como um complexo para além das explicações de relação entre
os humanos e o mundo não dizível, sendo sobretudo uma forma de atribuir sentido aos
sujeitos dentro de suas comunidades, questionamo-nos: Que relações poderiam existir
entre os chambas da região do Mapeo e os devotos de orixás em Pernambuco? Que
elementos rituais podem ser lidos ou interpretados como continuidade de práticas
religiosas especificas do Mapeo entre os xambás do Recife? Como a identidade chambá
pode ter se configurado em termos religiosos deste lado do Atlântico, visto que há uma
supremacia dos cultos da região iorubá?
Por ora não temos todas as respostas para essas perguntas sobre a religião
chambá no Brasil, sobretudo em Pernambuco, porém, ao analisarmos parte dos rituais
no Mapeo, encontramos pontos convergentes entre o culto chamba na África e no
Recife.
Culto Jup entre os chambas do Mapeo: como interpretá-lo?
Do mesmo modo que outras sociedades africanas, cujas práticas religiosas
traduzem a organização social da comunidade, para os chambas do Mapeo – região da
Nigéria e de Camarões – que mantêm suas práticas religiosas tradicionais; os cultos ou
rituais, seja ou não de ajustamento social, que auxiliam os sujeitos a se perceberem
dentro de suas comunidades, são, por vezes, inalcançáveis às percepções antropológicas.
Segundo Fardon, ficam os antropólogos na dependência de informantes nativos para
alcançarem o universo dessas culturas que nos são diferentes. Por muitas vezes, esses
informantes nativos se apresentam para o antropólogo de variadas formas: “mal
declarados”, por não conseguirem traduzir o universo de sua cultura, por não terem
completado as etapas de iniciação de rituais que lhes conferem poder. Ou ainda, pelas
desconfianças em relação à alteridade; “pouco declarados”, por não serem capazes de
explorar verbalmente todos os códigos simbólicos correntes em suas culturas; e os “não
7
declarados”, por ter em seus rituais uma grande teia de complexos simbólicos, os
sujeitos não conseguem decifrá-los, visto que, ao ser interpretado por outrem, já perdem
o significante do original (FARDON, 2007).
Para Cliffort Geertz, apenas os sujeitos sociais são os informantes e intérpretes
de suas culturas, o investigador ou antropólogo representa apenas um leitor de segunda
mão do universo simbólico da cultura altera (GEERTZ, 1989). Por isso, os relatos
antropológicos podem ser parciais, apresentar ausências, incapacidades, incongruências.
Sendo caminho árduo atingir as interpretações de primeira mão de uma cultura, Richard
Fardon, ao estudar a religião dos chambas do Mapeo, considerou os indivíduos desse
grupo étnico, como informantes “mal declarados”. Isto é, encobrem intencionalmente,
seja por interesses próprios, seja por mentiras altruísticas seja para proteger o segredo da
organização de seus cultos. São sujeitos mal-informantes para o antropólogo, pois
atribuem sentidos a determinados aspectos rituais, que seriam rechaçados em outros
contextos, dependendo da etapa de iniciação no ritual em que esteja o indivíduo. Por
isso, as interpretações mal construídas sobre os rituais e cultos são características dos
discursos dos chambas (FARDON, 2007: 5).
Portanto, sendo um complexo de múltiplas e cruzadas interpretações e
performances, por sua vez, sendo os rituais não simplesmente eventos que ocorrem
entre parênteses em tempo e espaço coordenados, mas que compreendem tradições de
exemplificações e transmissões que têm ancoradouros institucionais, aprendidos por
participação em uma ou mais associações, Fardon enveredou pelo contexto institucional
complexo (clãs, ritos, localidades, prerrogativas de gênero, etc.), que têm
correspondentes entre os limites étnicos chambas.
Por serem muitas e complexas as interpretações dos rituais dos chambas do
Mapeo falantes do leko, todas as performances de culto, sejam eles de altos ou baixos
custos, dramáticos ou silenciosos, ocorrendo com ou sem frequência, com um número
grande ou reduzido de membros, nos espaços públicos, que são, por sua vez, produto
das organizações familiares, privadas. São todos pertencentes aos clãs oficiais. Estes
cultos podem ser lidos por qualquer nativo como o mais importante, autêntico e
poderoso entre os cultos do Mapeo, opinião que só será corroborada pelos membros de
seu próprio clã. Isto é, a valorização, como o mais autêntico e o mais importante, é
atribuída por uma pessoa que tem no seu clã a legitimização dessa grandeza, não tendo
o mesmo correspondente em outro clã. Segundo a Antropóloga Karin Barber, as
performances ou manifestações públicas dos cultos são momentos de perceber a
8
organização social e a política interna das sociedades e não a religião por si. Desse
modo, a crença e a existência dessa religião não podem ser, por sua vez, explicadas pela
frequência pública, mas a manifestação pública e a narrativa dos membros de cada clã
representam a estrutura social desses grupos. Partes de um ritual público, ou melhor, a
performance de cada clã é grandiosa por si só e dá legitimação ao culto público. Este,
por sua vez, só tem atributo valorativo, devido à preparação particular de cada grupo.
Para os chambas, as representações coletivas são mais importantes que as individuais, as
crenças são orientadas pela coletividade (BARBE IN MOURA, 1989: 142-173).
Analisando a diversidade dentro da religião chamba na região do Mapeo, por
meio de informações de nativos, Fardon chega à conclusão de que interpretações
desencontradas, por vezes desconhecidas entre os sujeitos, resultam da organização
social na qual os indivíduos vão tendo acesso aos sistemas de culto a partir do momento
que são iniciados. A diversidade de cultos entre os chambas do Mapeo é tamanha a
ponto que as explicações sobre ventura e desventura, presentes em outras áreas da
chambaland, não têm nenhuma relevância, devido ao grande número de explicações
oferecidas pela diversidade de cultos. Por exemplo, embora seja a crença na bruxaria
algo compartilhado por todos os chambas, seja do Mapeo (Nigéria e Camarões) ou do
Yeli (Togo), os habitantes do Mapeo acreditam que os fenômenos de bruxaria partem do
matriclã mais próximo (FARDON, 2007: 17).
Sobre os fenômenos da bruxaria e como os chambas do Mapeo lidam com tais
questões, Fardon relatou que ao retornar, após seis anos, a comunidade, um de seus
informantes - Titlεsime, que costuma passear de motocicleta pelas aldeias com Fardon,
disse que se tornou alvo de inveja dos outros anciãos, alvo de bruxaria. Ou seja, muitas
explicações do cotidiano são atribuídas aos fenômenos da bruxaria, como apontam as
pesquisas de Peter Geschiere, acerca dos discursos sobre feitiçaria elencados nos
acontecimentos da modernidade (GESCHIERE, 2006: 9-38).
Partindo destes correspondentes, focalizamos o ritual do Jup descrito por
Richard Fardon, na década de 1970, encontrado nas regiões montanhosas, na área dos
montes Adamawa nas proximidades da Nigéria e de Camarões, vale do rio Benué, rio
dedicado a Oyá, orixá patrono do Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá (FARDON,
2007: 17).7 Assim, os jup praticados por homens – os jup patrilinear, bem como os jup 7Oyá/Iansã/Iá Messan, orixá dos ventos e das tempestades e do rio Niger, chamado de Odò Oya. Sendo também lembrada pelo rio Benué. Foi a primeira esposa de Xangô – orixá dos trovões e da justiça, considerado também com um personagem histórico, foi o terceiro rei de Oyó, filho de Oraniam e Torosí (filha do reio dos tapas – Elempê), recebeu o título de Obá kossô na terra de Oyó. (VERGER, 2002: 134-141; 168-170.)
9
matrilinear – voltados para as mulheres, e os jups mistos, dos quais participam homens,
mulheres e crianças, a exemplo do jup kupsa – ritual da colheita. Para os indivíduos
habitantes do Mapeo, não há explicações sobre a definição desses rituais, eles sabem
porque “ver”, “ver-tudo”, “segurando” ou “devendo”, “fazer” ou “concertá-lo”. Isto é,
pratica-se o jup¸ mas não se explica porque ele é praticado. Porém, não se esconde a
importância de ser membro de um jup, visto que ele confere pertencimento ao grupo.
Homens, mulheres e crianças têm diferentes narrativas de suas experiências com o jup.
Para alguns filósofos ou antropólogos, como Horton, seriam essas ocorrências típicas de
sociedades fechadas, cujas explicações sobre seu funcionamento são atribuídas à
vontade e aos ensinamentos dos ancestrais, dos mais velhos, da tradição (HORTON,
1991). Porém, entre os chambas do Mapeo, as explicações sobre os jups não são apenas
atribuídas à vontade dos ancestrais, mas também como mecanismos encontrados pelos
humanos para a cura de suas doenças. São formas de prognosticar, diagnosticar e obter a
cura de doenças, além de dar ordenamento a sua estrutura social. Por isso, os jups são,
em sua maioria, voltados para as doenças e suas curas, tendo nos cultos femininos sua
grande concentração.
Outras atribuições para o jup são dadas por criança que dizem ser os jups
“coisas” de adultos, controladas pelos anciões, enquanto as mulheres acreditam ser jup a
preservação do homem, sobre a qual elas nada podem saber. Para os homens, as
conotações do jup crescem em complexidade desde a iniciação. A posse ou custódia
deles define o valor do homem em termos das obrigações que é capaz de cumprir para
seu próprio status, e o dos homens de seu clã, não perdendo de vista que os homens que
participam dos jups são de descendência matrilinear, mesmo sendo os jups dos homens
os primeiros na hierarquia desses rituais.
Há também os jups coletivos, a exemplo do jup kupsa – ritual da colheita, que
reúne todos os membros de um clã: homens, mulheres, crianças. Ocorre apenas quatro
vezes no ano. Desse ritual (jup kupsa), participam três homens com a função de
tocadores, de acordo com a seguinte ritualística: um homem toca um tambor grande -
tom tom, feito para ser tocado pela primeira vez, e um terceiro tambor, numa versão
menor que o segundo, sendo vigorosamente batido por um bastão, dando um pulso a
toda a orquestração. Enquanto isto, os outros sete homens circundam os músicos,
balançando-se e tocando um grupo de cornetas de cabaça, que variam de um a cinco pés
de comprimento. Os sons das cornetas, de acordo com o comprimento, variam desde o
som do sopro quando se coloca um. As mulheres, separadas por uma espécie de tapume,
10
dançam e cantam sem ver as movimentações dos homens (FARDON, 2007: 43). Assim,
são os jups realizados, geralmente com músicas, toques de tambores, danças, como
comumente ocorre em todos os cerimoniais religiosos de sociedades africanas, cujas
práticas sagradas não são dissipadas da vida laica. Segundo Fardon, é a performance do
jup. Além de música e dança, nos jups existe o oferecimento de alimentos, bebidas
alcoólicas; a cerveja de milho é típica dos rituais, faz parte da materialização do ritual.
Outros jups mistos são encontrados no Mapeo, como o jup da-i-kun, ritual de
equilíbrio entre as forças dos homens e as das mulheres. Ser membro do jup traz
prestígio nos termos de ciclo de vida de ambos, homens e mulheres (que têm seu
próprio culto – jεm). Tradicionalmente as pessoas que têm criações de animais, cultivam
cereais, como a cerveja de milho de Guiné, elas devem ofertar essas riquezas para o jup,
para que possa ser ‘mostrado’ (isi) e ‘visto’ (nyεn) o jup. Frangos oferecidos ao jup se
tornam jup kpa, cerveja oferecida se torna jup sim, e assim por diante para outros itens.
Aqui, o jup é nada mais nada menos que a oferenda aos deuses ou ancestrais. Uma vez
oferecido ao jup, com raríssimas exceções, não pode ser comido, bebido ou no caso dos
aparatos, manuseados por não iniciados. Analogicamente, nos rituais dos cultos
africanos, no Brasil, ocorrem também práticas semelhantes ao jup, isto é, as obrigações
para os orixás que formam o panteão de um terreiro. Ou seja, além das celebrações em
homenagem aos orixás – xirês – nas quais alguns homens, comumente em número de
três, exercem a função de tocadores dos tambores sagrados, enquanto os demais
acompanham em círculo os passos de dança que caracterizam cada orixá. As mulheres,
por sua vez, agrupadas em um círculo interno ao dos homens, cantando e dançando.
Deste modo, todos e todas simultaneamente respondem ao coro das toadas tiradas pelo
dirigente da festa, isto é, do babalorixá e/ou da ialorixá.
Características de um Jup Matrilinear
Contudo, sendo inúmeros os jups, tanto para homens como para mulheres,
focalizaremos, aqui, o jup matrikin (matrilinear), visto que existem aparentes
correspondentes entre os rituais dominados pelas mulheres chambas do Mapeo e as
práticas xambás do Recife, que fazem parte do Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá.
11
São inúmeros os jups matrilineares, ou seja, cuja ordenação é de domínio
feminino; constituem o segundo culto na hierarquia de organização da sociedade
chamba da região do Mapeo, visto que os cultos patrilineares são considerados os
primeiros. Porém, são aqueles mais dispendiosos que estes últimos, seguem o curso das
colheitas, isto é, os rituais de dominação dos homens. Os jups matrilineares estão
relacionados com as causas de doenças, como nos referimos anteriormente, a exemplo,
a lepra, as causas de epilepsia, os problemas da visão e questões de ordem curativa.
Semelhante a outras análises antropológicas que apresentaram interpretações dos
próprios sujeitos, que atribuem à mulher ou à ancestralidade feminina as causas de
infortúnios em suas sociedades. Entre os chambas do Mapeo, os cultos femininos têm a
função de trazer o equilíbrio, a saúde e o ajustamento do grupo.8
Uma tradicional reunião de jup matriclã dura aproximadamente um dia, embora
seja planejada com antecedência, tendo em vista que o é necessário fermentar o milho
para a fabricação da cerveja; esta, após sua destilação, é preparada. Outros apetrechos
alimentícios fazem parte do cardápio votivo, como animais: galinhas, cabras. A maioria
do jup tem um local (jup bum) fora da vila, geralmente ao lado de uma montanha, onde
alguns dos utensílios do culto são escondidos debaixo de potes com a cabeça para baixo,
no lugar onde as reuniões acontecem. O jup inicia-se com o encontro na casa de quem
vai “dar o jup”, ou seja, realizar sua obrigação a sua divindade, lugar para onde os
membros partem carregando cerveja e a comida que irão consumir. Eles ficam fora de
casa o dia todo até quando os membros retornam para a residência do devoto que está
realizando sua obrigação, ao escurecer, anunciando sua chegada com assobios e
chocalhos característicos do jup, regados com cerveja e outras bebidas alcoólicas na
casa do dono do culto, onde alguns membros dormem e, ao acordar no outro dia, tomam
mais cerveja e, assim, a reunião é encerrada. Esse momento pode também ser pensado
como mecanismo de dramatização do social, no qual sagrado e profano se misturam, em
tempo e espaço determinados; é jogo entre sagrado-profano, como diz Ronald Grimes,
ao caracterizar um ritual (GRIMES, 1982).
A categoria mais numerosa do jup matrilinear é voltada para a doença e a cura, a
exemplo do ngwan ji, que significa “aquele que dá a luz à vermelhidão”. Um jup desse
tipo acontece quando uma cobra pica algum indivíduo, deixando como sintomas
manchas vermelhas na superfície da pele. Por outro lado, outros sintomas, como dores
8 A discussão sobre cultos femininos ligados aos processos de desventura, infortúnio dentro das sociedades tradicionais na África é vasta. Ver a respeito do assunto (TUNER, 1974).
12
de cabeça e nas costas, não só diferenciam as ações de outros jups, mas sobretudo, se
apresentam como sinais diacríticos de um determinado culto. Por exemplo, picadas de
cobra tendem sempre a estar associados ao culto da folha de manteiga de karité cujo
procedimento é a masseração dessas folhas que podem depois ser jogada na propriedade
ou plantação a proteger de futuras desventuras com aquele animal. Sobre as folhas
utilizadas nos jups, elas são uma das bases de todos os rituais chambas do Mapeo, do
mesmo modo que as folhas passaram a representar para os cultos de orixás na diáspora;
sem elas nada pode ser feito, as ervas e folhas, além de curativas, farmacológicas, são o
caminho pelo qual os orixás, os ancestrais são invocados. Cada orixá/ancestral tem sua
própria folha. Nas religiões de matriz africana, em particular, no Brasil, denomina-se
este ritual de babaxé ou bate-folha (ALBUQUERQUE, 2006).
Outra classe de jup da doença e da cura é aquele em que são diagnosticadas
sensações de inchaço no estomago - noga, também subdividido de acordo com os
sintomas secundários; nesse caso, a cor dos excrementos do paciente. O resto dos cultos
é menos propício a classificação. Noga, que é responsável por estômago distendido
acompanhado de dor fina, tem duas formas distintas de sufixos: O masculino ou coruja
e o branco (noga disa, coruja; noga lum, masculino; noga burgi, branco). Para um
informante de Mapeo, o termo noga não tem etimologia. O primeiro dos dois cultos
pertence a pelo menos, seis, aproximadamente metade, dos matriclãs do Mapeo; o
segundo por três matriclãs dos quais dois têm ambas as versões. Ambos os jup exigem o
pagamento de entrada de quatro galinhas, mas do segundo tipo também uma cabra.
Por outro lado, as carnes e demais comidas utilizadas nos jups, como cabras
sacrificadas e cortadas de maneira costumeira, cujas partes são doadas para os
participantes, como o pernil, que é repartido entre quatro patriclãs envolvidos no culto,
remetem-nos às obrigações que ocorrem no Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do
Recife. Após os víveres serem cozidos e oferecidos aos orixás, são distribuídos entre os
presentes, que ingerem as carnes e as distribuem entre os demais, seguindo a hierarquia:
primeiro ao babalorixá, a ialorixá e depois para os irmãos. Analogamente, entre os
chambas do Mapeo, a cabeça da cabra é dada ao homem que dirige o b∂nt∂ng, ele é
sempre um filho de uma mulher Yangur. As costas da cabra são cortadas em duas partes
(a parte superior para o macho, kum lum, e para a fêmea, a parte inferior, kum nu) são
dadas aos dois tocadores de tambor, ambos Yangur; ao passo que o peito e as vísceras,
dizem que pertencem ao jup, que se diz que é comido pelos proprietários do culto.
Digamos que o peito e as vísceras sejam o que chamamos de axé – partes vitais dos
13
animais, que são oferecidos aos orixás. A distribuição da carne Liranεpbu reflete a
cooperação dos dois matriclãs em suas performances. A cabeça da cabra é dada ao
membro do matriclã elefante (kongla kum), que toca o gongo para eles. Um pernil é
dado para o matriclã névoa (jam kun), e o outro, para os homens do patriclã dagabu, que
trouxeram o jup dagam. O que resta é comido pelos proprietários do culto.
No entanto, mesmo não sendo referida prática uma característica específica dos
chambas da região do Mapeo, pois se estende a quase todo o território do continente
Africano e a outros grupos humanos fora do Continente, a exemplo dos gregos na
antiguidade. Na diáspora, foi possível encontrar a ritualística da divisão dos animais
apenas em ato religioso, nos terreiros de culto aos orixás. Entre os xambás do Recife,
toda essa perfomance de oferecimento de víveres ao jup do Mapeo é denominada de
“comer ebó”. Eles oferecem os animais, ou melhor, partes apenas destinadas aos orixás,
enquanto as demais partes da carne são consumidas pelos devotos. As partes vitais dos
animais, que denominados de axés, após um período de descanso aos pés dos orixás, são
depois também partilhadas entre os devotos. Ou seja, o ebó (a comida do orixá) é
ingerida pelos adeptos do culto xambá no Recife, sendo também a prática de “comer
ebó”, segundo o antropólogo Nicolau Parés, estendida aos terreiros jejes (PARÉS,
2006).
O Mama Tchamba e o Culto a Afrekête: continuidades ou releituras de práticas
religiosas na Cidade do Recife
Embora muitos dos jups matriclãs sejam voltados para as questões de ventura e
desventura, sobretudo da doença e da cura, há rituais femininos, como o Mama
Tchamba, cujas raízes explicativas estão no processo de escravidão do século XIX e a
conversão ao islamismo dos Fulanis. As mulheres que resistiram a escravização não se
submetendo à conversão do islamismo, sendo embarcadas para as Américas como
cativas, passaram a ser homenageadas nos cultos da região ocidental da África, a
exemplo do Togo, Mali, Benin, Costa do Marfim, norte de Gana, alto Volta, como
ancestrais. Sendo apenas rituais de participação feminina, no qual as mulheres
incorporavam os espíritos ancestrais que não se submeteram ao Islão. Nesses cultos, são
tidas como rainhas, além de lideranças espirituais, como também libertadoras de seu
povo (FARDON, 2007).
14
Na atualidade, ocorre nesses rituais a presença de mulheres pintadas, vestidas
com adornos em palha, encobrindo o rosto com máscaras. São oferecidas comidas,
bebidas, ao embalo da percussão religiosa. As mulheres, incorporadas pelo espírito
mama tchamba, transmitem recados aos presentes, dançam, cantam em celebração da
união dos parentes que foram dispersos pela diáspora. São essas mulheres constituídas
de poder para dominar os vodus dos ancestrais que foram vendidos como escravos para
as Américas. São cultos familiares, cada aldeia tem seu próprio ancestral mama
tchamba, ou seja, é uma forma de ressignificação do processo de escravização, uma
memória de resistência. Tais cultos foram se organizando depois do processo de
descolonização da África, alguns começam a surgir na década de 1970, a exemplo do
ritual dos halkar, que ordenam a realidade pós-colonização, por meio de rituais que
atribuem aos iniciados papéis de dominadores e dominados, re-escrevendo o processo
de colonização-descolonização.9
Encontros ou ressignificações do culto chamba ou do ritual mama tchamba,
enquanto ordenadores e releituras da realidade, sobretudo no que diz respeito aos
processos constituídores de poder às mulheres, estão presentes nas ritualísticas de
comando feminino, no Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do Recife, a Louvação
de Oyá, ritual onde a matriarca comanda todo o culto, pode ser um indício relevante
para perscrutarmos além do “poder do fraco”, ou seja, a afirmação das mulheres no
espaço religioso, sinais diacríticos na perspectiva atlântica. Assim, a Louvação de Oyá,
que ocorre, anualmente, no dia 13 de dezembro, ao meio-dia, consiste numa cerimônia
na qual a ialorixá ou uma filha-de-santo do Terreiro – dedicada a Oyá – incorporada
pelo orixá Oyá, dança, canta no meio dos filhos-de-santo do Terreiro, transmite os
recados dos ancestrais para cada pessoa presente no culto, sendo reverenciada pelos
devotos como ancestral Oyá Megué, orixá protetor dos “xamabarianos” do Terreiro
Santa Bárbara, que vêm entre os seus súditos anualmente orientá-los, aliviar suas
angustias, dar um novo sentido a suas vidas. Nos anos 1920-30, esse ritual era
comandado pelo babalorixá Artur Rosendo Pereira, que, segundo narrativas dos adeptos
do xangô no Recife, foi ele à África buscar os fundamentos do culto xambá, viveu no
meio do povo soba na Nigéria, e teria aprendido os rituais xambás com um certo “tio
Antonio”, feiticeiro que vendia panelas no mercado de Dakar. Artur Rosendo era
9 Sobre ordenação da realidade ver (TAMBIAH, 1990).
15
alagoano e no início da década de 1920 se estabeleceu na cidade do Recife, após fugir
de Maceió das perseguições étnico-religiosas.10
Na cidade, Artur Rosendo morou na rua da Regeneração, na casa de número
1045 no bairro de Campo Grande – área de subúrbio do Recife, onde abriu seu terreiro –
a Seita africana São João – sob a proteção ao orixá Xangô. Pai Rosendo, como ficou
conhecido, fez diversos sacerdotes e sacerdotisas nos preceitos que chamou de xambá,
entre seus/suas filhos(as)-de-santo mais famosos(as), esteve Maria das Dores da Silva
(Maria Oyá), iniciada na década de 1930, cujo terreiro foi estabelecido na rua do Limão
no mesmo bairro que morava o Babalorixá (FERNANDES, 1937: 18). Maria Oyá foi
apresentada como mãe-de-santo à comunidade de terreiro na cidade, no dia 13 de
dezembro de 1932, com o recebimento das folhas, faca e espada; nesta mesma data, ao
meio dia, foi realizado um ritual de coroação de Oyá no trono, comandando por Pai
Rosendo, como forma de atribuição das honras de ialorixá à Maria Oyá. Comumente,
Pai Rosendo realizava esta cerimônia, sempre que uma nova sacerdotisa, quando filha
de Iansã/Oyá, estava pronta.
Em meados dos anos 1940, foi pela primeira vez noticiada na Revista O
Cruzeiro, a cerimônia que Pai Rosendo realizava para apresentar uma nova ialorixá.
Desta vez, era a Iracema, sua filha legítima, que foi preparada desde criança para
assumir o comando de seu Terreiro. A festa pública de apresentação de Iracema de Oyá
– iniciada como ialorixá – bem como a de Maria das Dores (Maria Oyá) passaram a se
caracterizar como cerimônia de preparação das sacerdotisas filhas de Iansã de nação
Xambá, que, na ocasião de seu “decá”, isto é, da feitura enquanto ialorixá, recebiam as
folhas de seu orixá, faca ou navalha de seu obori,11 cuias, contas, cauris,12 e demais
apetrechos que foram utilizados em sua iniciação. Iracema recebeu a tumbemba
(pequena peneira), tesoura, pulseira de cauris, faca, dois abebês13 de Oxum, perfume,
navalha, pente vermelho; objetos que representavam além de sua iniciação as
obrigações que teria no futuro ao fazer por suas próprias mãos outras sacerdotisas.14
Naquele momento, cantou-se, dançou-se; e os demais iniciados, vestidos com suas
10 Em 1912, ocorreu a primeira grande investida de perseguição as religiões afro-brasileiras em Alagoas, no dia 2 de fevereiro de 1912 ocorreu o “Quebra”, uma leva de invasões e destruições nos terreiros de xangôs no Estado, acionada e incentivada pelas autoridades locais. Cf. (RAFAEL, 2006).11 Obori palavra yorubá que seguinifica “dar comida à cabeça”, ou seja, fortalecer a parte do corpo que serve de entrada para o orixá. Ao ser iniciada ou na renovação de sua iniciação ou ainda receber seu Decá – torna-se um(a) sacertote(a), é realizado um grande obori.12 Búzios.13 Abebê – espelho.14 Ao falarmos de Maria Oyá, enumeramos apenas três entre os objetos de uma entrega de decá, mas ela recebeu, assim como Iracema, os mesmo apetrechos.
16
roupas de saída de Iaô receberam seus orixás. No salão, os outros membros do terreiro
iniciados (iaôs) ou não (abiãs) viam saudar Iansã, o ancestral da nação, que sentada num
trono recebeu as reverências de todos os presentes.15
Após a morte de Pai Rosendo, no início dos anos 1950, ocorreu entre os terreiros
da cidade, cujos dirigentes foram iniciados pelo babalorixá, migrações para outras
linhagens rituais, como o nagô e o ketu. Levando a quase extinção das práticas
denominadas por ele de nação xambá na Cidade, sendo o terreiro Santa Bárbara – Ilê
Axé Oyá Megué – atual Casa Xambá, que teve como primeira ialorixá Maria Oyá –
consagrada ao orixá Oyá Megué – tendo no final dos anos 1930, substituída por
Severina Paraíso da Silva (Mãe Biu). Esta considerada a maior representante do culto
xambá na cidade, pois além de ter permanecido à frente do Terreiro Santa Bárbara ao
longo de 43 anos, foi a responsável pela invenção da tradicional Louvação de Oyá,
cerimônia que se constitui na memória do ritual de preparação de sacerdotisas filhas de
Oyá outrora feitas por Pai Rosendo (COSTA, 2009). Mãe Biu ao assumir o Terreiro
passou a fazer todos os anos, no dia 13 de dezembro, sempre ao meio dia, o ritual de
coroação de Oyá, demarcando a memória daquele ritual de seu antigo babalorixá. Além
do mais, Sob o comando de Mãe Biu, o Terreiro se configurou como a única casa que
deu prosseguimento ao ritual xambá. Deste modo, mesmo sendo a louvação de Oyá
realizada por Mãe Biu,16 uma espécie de teatralização das cerimônias de iniciação de
sacerdotisas filhas de Iansã, conforme os ensinamentos de Pai Rosendo, se configurou,
como já nos referimos anteriormente, em uma marca própria daquele terreiro. Em
nenhuma outra casa de culto aos orixás, em Pernambuco, se encontra semelhante
cerimônia anual. Por outro lado, mais que uma memória de ritual, a louvação demarca o
espaço de domínio feminino naquela casa.
Além da Louvação de Oyá, o culto a Afrekête, se apresenta também como sinal
diacrítico desta (des)continuidade entre as práticas religiosas africanas e as
reelaborações dos cultos afro-brasileiros no Recife. Pai Rosendo, no auge de sua fama,
nos anos 1930, foi alvo de ridicularizações por outros sacerdotes das religiões de matriz
africana na cidade, que duvidavam da veracidade da viagem que ele teria feito à Costa
15 Maiores informações sobre a Louvação de Oyá ver René Ribeiro, O Cruzeiro, 1949; Valéria Gomes Costa, É do dendê! Op, cit.16 Com a morte de Mãe Biu em 27 de janeiro de 1993, a Louvação de Oyá passou a ser sem o momento de coroação da Ialorixá, pois nenhuma outra mãe-de-santo da Casa tinha até então sido designada para sentar-se no trono e transmitir as mensagens do Orixá para todas as pessoas presentes na louvação. Recentemente foi Zeza de Oyá (Oyá da Casa) indicada/designada para substituir Mãe Biu enquanto “rainha” da Louvação. No dia 13 de dezembro de 2008 pela primeira vez, após o falecimento de Mãe Biu, uma nova sacerdotisa incorporou Oyá e sentou-se no trono (COSTA, 2009: 141).
17
da África, onde teria passado quatro anos aprendendo os “axés” do xambá. No entanto,
ele era o único dirigente de terreiro na cidade que cultuva Averekête, vodu daomeano da
cidade de Widah, outro motivo para suscitar curiosidades e levantar suspeitas entre
outros pais-de-santo na cidade sobre a legitimidade dele enquanto sacerdote afro-
religioso. Desta forma, a Casa Xambá, por mais uma vez, aparecer como o único
terreiro em Pernambuco cujo panteão de orixás inclui este vodun de origem daomeanda
ligado aos mares.17
Por outro lado, pouco sabemos a respeito do culto à Afrekête, segundo
Waldemar Valente, havia na praia de Agweh (Daomé) uma imagem deste vodun, e
todos os finais do mês de outubro os homens da cidade se reuniam e faziam uma
refeição diante do totem. Findada a alimentação, os meninos da cidade arremessavam
sobre aqueles homens, laranjas e limões, só parando quando eles fogiam das crianças
(VALENTE, 1977: 39-40). Para Pierre Verger, as narrativas mitológicas, na África,
apresentam Afrekête como a criança mais nova e mimada, cujas travessuras lembram os
papéis de legba, expondo os segredos de seu pai e falando sobre eles sem a menor
descrição (VERGER, 2000: 539).18 Ambos os discursos apresentam os arquétipos de
Afrekête ligados ao peraltismo infantil, as impulsividades de crianças, adolescentes e
adultos jovens. Por sua vez, na memória dos filhos-de-santo do Terreiro Santa Bárbara,
aqueles que são consagradas a este vodun/orixá, no geral, possuem personalidades
semelhantes às acima descritas. Ao longo da história da Casa, apenas duas pessoas
foram omo (filho) afrekête; nos anos 1960, teve um rapaz, cujo nome não foi possível
saber, que era afilhado de batismo de Madrinha Tila e recentemente o bebê Luis
Vinícius, filho carnal de Luana de Oyá e Jorge de Xangô, também teve seu ori (cabeça)
consagrado ao vodun/orixá.19 Nas conversas entre o salão e a cozinha, na garagem e
demais dependências do Terreiro, ao acionarem as lembranças dos antepassados
xambás, é fato corrente entre todos os filhos-de-santo mais antigos, contarem as
características de dos filhos de Afrekête, sendo quase que uma unanime, a personalidade
tempestiva, levada, travessa. 17 No terreiro Santa Bárbara – nação Xambá, Afrekête é considerado um orixá feminino, na ordem do panteão da Casa temos: Exu, Ogum, Odé; Bêji, Nanã, Obaluaiê, Ewá, Xangô, Oyá, Obá, Afrekête, Oxum, Yemanjá e Orixalá. Ou seja, Afrekête é o 12º na ordem do panteão. 18 A mitologia de Afrekête também faz parte das narrativas da memória da escravidão os hulas, grupo étnico da Nigéria. Cf. (VERGER, 2000).19 Madrinha Tila de Orixalá, irmã carnal de Mãe Biu, foi Iaquequerê do Terreiro, sendo a sucessora de Mãe Biu em 1993, veio a óbito em 2001, sendo sucedida por Maria de Lourdes da Silva – atual ialorixá – a tia Lourdes de Iemanjá, irmã legítima de ambas. Jorge de Xangô é neto de dona Belmira de Ogum, uma das importantes ramas familiares do terreiro Santa Bárbara, e Luanda de Oyá é sobrina-neta de Mãe Biu e Mãe Tila.
18
Contudo, tais experiências rituais que narramos, embora fragmentadas, por ora
não desencontradas, além de pensadas como reelaborações de uma tradição, podem
também ser associadas a continuidade de práticas religiosas africanas que conseguiram
resistir ao processo de escravização, mantendo alguns de seus principais fundamentos.
Fato marcante desse processo de interseções se faz presente na identidade nominativa
“xambá”. Os nomes conferem poder ao atribuir significado aos movimentos, objetos,
espaços, pessoas, etc. Por outro lado, o “poder do fraco”, que comumente é atribuído às
mulheres nas religiões tradicionais africanas, que podemos identificar também no
Mapeo, torna-se ponto de discussão para as descrições rituais dos xambás no Recife,
que não fazem apenas da Louvação de Oyá o grande ritual feminino, mas em toda a
ordenação do próprio terreiro, que, apesar de ter uma liderança masculina, o Babalorixá
Ivo do Xambá, que agrega não só o poder de liderança religiosa e político e social da
casa, mas que é comandado pelo orixá Oxum (dona de sua cabeça), sendo recorrente em
suas narrativas dizer que “quem comanda o terreiro é Oyá, sou apenas um instrumento
nas mãos delas”, sendo a Nação Xambá: um espaço de domínio feminino! Aqui está
talvez a força da ressignificação do ritual mama tchambá entre os xambás do Recife que
podem ser mais aprofundadas, uma vez que na história da casa há quatro mulheres: Mãe
Biu, Madrinha Tila, Tia Luiza e Tia Laura, exceto esta última, todas unidas por laços
sanguíneos de um mesmo núcleo familiar – o Paraíso da Silva, como os pilares de
preservação das práticas rituais – xambá – introduzidas pelo alagoano Artur Rosendo
Pereira.
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