34
ENTRE A ÁFRICA E O RECIFE: INTERPRETAÇÕES DO CULTO CHAMBÁ

105-430-1-SP

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 105-430-1-SP

ENTRE A ÁFRICA E O RECIFE: INTERPRETAÇÕES DO CULTO CHAMBÁ

Page 2: 105-430-1-SP

ENTRE A ÁFRICA E O RECIFE: INTERPRETAÇÕES DO CULTO CHAMBÁ

Resumo:

Este artigo tem como objetivo trazer para o debate em torno das perspectivas atlânticas que buscam delimitar fronteiras e perceber continuidades entre práticas culturais na África e na diáspora, sobretudo, no que diz respeito ao Brasil e aquele Continente. Para tanto, partimos da discussão acerca de possíveis interfaces entre rituais religiosos organizadores do cotidiano dos africanos da etnia chamba, situados nos atuais Nigéria, Camarões e Togo, e um terreiro de candomblé no Recife/PE – Terreiro Santa Bárbara – cuja nação é denominada xambá. Deste modo, pontuamos correspondentes entre o Mama Tchamba no Togo – ritual em memória da escravização e resistência das mulheres a submissão islâmica no século XIX – e a Louvação de Oyá – cerimônia de caráter feminino no Terreiro Santa Bárbara. Elencamos por fim, interseções entre culto à Afrekête – vodu daomeano – e a presença deste enquanto um dos orixás do panteão daquele Terreiro.

Palavras-chaves: África. Mama Tchamba. Afrekête. Nação Xambá. Recife.

Abstract:

This article aims to bring to the debate surrounding the outlook Atlantic that seek to delimit the borders and see continuities between cultural practices in Africa and the Diaspora, especially with respect to Brazil and that continent. The starting point was the discussion of possible interfaces between organizers of the daily religious rituals of African ethnicity chamba, located in today's Nigeria, Cameroon and Togo, and a Terreiro de Candomblé in Recife / PE - Terreiro Santa Barbara - whose nation is referred Xambá. Thus, the corresponding point between the cult Mama Tchamba in Togo, whose roots are in the process of social memory of slavery in the nineteenth century, and the resistance of women Islamic Chamber to submission, and the Worship of Oyá, womanhood ceremony, which recalls the first ialorixá made in Recife Pai Rosendo, precursor of the cult Xambá in Pernambuco.

Key-words: Africa. Mama Tchamba. Afrekête. Nacion Xambá. Recife.

2

Page 3: 105-430-1-SP

Introdução

Os trabalhos acadêmicos sobre tráfico e escravização vêm mostrando uma

ligação entre as re-elaborações de identidade e a organização dos cultos de orixás,

semelhante às recriações dos africanos e seus descendentes nas experiências da

escravidão e da liberdade. Assim, como partes das negociações de identidades étnicas e

das construções de nações, forjadas pelos sujeitos no cativeiro, foram rememoradas

também nos espaços religiosos. Grupos étnicos genéricos, como nagô, angola, jeje; e as

identidades mais específicas, como savalu, moçambique e chamba, puderam ser

encontradas nas recriações das religiões de matriz africana, em particular, nos cultos de

orixás (PARÉS, 2006). Estes denominados de candomblés na Bahia, Rio de Janeiro e

demais estados do eixo Sul e Sudeste; sendo conhecidos como xangôs em Pernambuco,

Alagoas, Paraíba e no Rio Grande no Norte.1 Até o presente momento, os estudos sobre

tráfico e escravidão no Recife, onde a identidade chamba (tchamba ou xambá) aparece,

não apontam relações entre essa etnia e a população de cativos na região, visto que

existiu uma supremacia de africanos da região centro-ocidental, sobretudo da área

Congo-Angola. Porém, encontramos, nos cultos africanizados na Cidade, uma memória

de configuração de identidade étnico-religosa, ligada aos grupos humanos da região

ocidental, em particular dos atuais Nigéria, Camarões e Togo, ou seja, parte do território

de domínio da língua chamba leko e da etnia chamba da região do Mapeo, ou seja, da

chambaland.2

Neste artigo, objetivamos analisar alguns aspectos, sociais, políticos,

econômicos, sobretudo religiosos do povo chamba da região ocidental africana, cuja

história está entrelaçada às experiências com o comércio e o tráfico atlânticos entre os

séculos XVIII e XIX, no intuito de perceber suas interseções com o culto xambá em

Pernambuco. Temos para perscrutar tais interseções o Terreiro Santa Bárbara – Nação

Xambá, conhecido na atualidade como Casa Xambá, localizado em Portão de Gelo no

bairro de Beberibe/Olinda, Região Metropolitana do Recife, como campo etnográfico,

visto que há nesse espaço sinais diacríticos que nos remetem a possíveis reelaborações

de certas práticas rituais dos chambas da região do Mapeo – atual Nigéria e Camarões, a

1 A palavra “xangô” nestes estados adquiriu sentido polissêmico. Além de ser o nome do orixá ligado ao trovão e a justiça, é também nomeclatura recorrente para denominar a festa litúrgica (xirê) e o espaço físico onde ocorre a prática religiosa, chamada também de terreiro ou barracão.2 Denominamos de chambaland toda a área da África Ocidental entre as regiões do Mapeo e do Yeli, territórios que no século XIX foram centro das disputas pelo controle do comércio das caravanas de cola. Cf. Richard Fardon, www.book.google.es/books?ed=x6Yv_4A/IVEC&pg=PA31&dq=chamb%C3A18/r=&hl=pt-BR#&Pa29, M1.

3

Page 4: 105-430-1-SP

exemplo do ritual Mama Tchambá e os Jup matrikin – rituais femininos, cujas

características podem ser identificadas com rituais do Terreiro Santa Bárbara – Nação

Xambá, a exemplo a Louvação de Oyá; e o culto à Afrekête ou Averekete, vodu

daomeano que no Terreiro Santa Bárbara é considerado um orixá feminino.

Até o momento, pouco se sabe sobre o etinônimo xambá/chamba/tchamba no

Brasil. Sendo nossos referenciais os estudos de Robin Law, Rodrigo Rezende e Mariza

de Carvalho Soares, ambos os historiadores, e a antropóloga, que atribuem a localização

dos chamba/tchamba à região ocidental da África, onde hoje estão os atuais Nigéria,

Camarões e Togo; o antropólogo Richard Fardon, cujo trabalho, Beetween god, the dead

and the wild: chamba interpretations of ritual and religion, nossa base bibliográfica

para a composição desta narrativa. Outros pesquisadores, como Alessandra Brivio, da

University of Milano-Biccoca, focalizam o culto chamba no Togo e no Benin, dentro

das perspectivas de memória da escravidão como fios condutores da reelaboração do

culto (LAW, 2006: 109-131; REZENDE, 2006; SOARES, 2007; BRIVIO, 2009).

Portanto, sendo variadas as explicações sobre os chambas enquanto grupo étnico

e organização de seus cultos, privilegiamos discutir, por ora, o complexo social e

religioso dos Chambas do Mapeo, abordando o jup, ritual que além da dimensão de

ordenamento social, pode ser interpretado também como uma forma de os chambas do

Mapeo estabelecerem, em particular, seus papéis de gênero. Para Durkheilm, a religião

tem a função de dar sentido a vida dos atores sociais no coletivo, ou seja, as práticas

religiosas livram os indivíduos da anomia, ou seja, da perda de seus referenciais na

comunidade (BERGER, 1985 EVANS-PRITCHARD, 1995). Para os chambas do

Mapeo, o jup se divide em várias formas, sendo destinados para cada evento cotidiano,

desde colheitas até as relações entre homens e mulheres. No entanto, neste trabalho,

observaremos os jup matriklin (matrilineares)- cultos femininos, em particular, para

perscrutar as interseções na Louvação de Oyá e o espaço de domínio das mulheres do

Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do Recife.

Contudo, além de focalizarmos o território Chamba na África, em particular na

região do Mapeo, discutiremos, a partir do ritual do jup, sua relação com o mundo

espiritual e o material – entre o mundo visível e o invisível. Ao longo de toda a

discussão sobre o ritual do jup, estaremos sinalizando suas possíveis reelaborações em

casas de culto aos orixás no Recife, sobretudo aquele que na atualidade representa senão

a única, a mais visível em práticas que a identificam como de Nação Xambá, ou seja, o

Terreiro Santa Bárbara.

4

Page 5: 105-430-1-SP

Territorialidade da Chambaland na África

Descrever a localização dos chambas torna-se tarefa árdua, uma vez que, este,

ou melhor, grupos humanos que aparecem nas informações de antropólogos e

historiadores, são apontados em diversos territórios do continente Africano. Ora

localizados na parte ocidental, nas regiões entre o rio Benué e os montes Adamawa,

falantes da língua “leko”, cuja história de ocupação territorial está no século XIX, no

apogeu da jihad dos povos Fulanis, que empurraram os falantes do leko para a região do

Mapeo – atuais Nigéria e Camarões.3 Para outros estudiosos, como o professor togolês

Gayibor da Universidade do Benin, a etmologia tchamba foi atribuída aos povos

kasselem: Denji, Larene, Dagnma, Kpatakapani, Akpowa, Kouboni, Watowwa, que se

instalaram entre o final do século XVII e início do XVIII, na região da “tchambaland”,

sendo este período também um correspondente da etnia no tráfico africano para Brasil.

Essa região – chamba – na África se tornou, a partir de 1850, com a dominação do Islão,

ponto nevrálgico de disputas pelo domínio do comércio de caravanas de cola, atrativo

para os povos vizinhos: bariba, mandigas, kotocolis, que disputavam o controle da

comercialização da cola. O historiador Robin Law caracteriza o grupo étnico chamba,

como povo falante do gur, habitantes do noroeste do Daomé, também envolvidos nas

rotas comerciais da cola; enquanto Paul Lovejoy aponta os kotocolis, povo islâmico mas

que também tinha participação nos negócios de caravanas de noz de cola, como uma

espécie de subetnia chamba (SOARES, 2007).

Vale ressaltar que, nas décadas de 1940-50, estudiosos como René Ribeiro, que

investiga a influência da cultura africana pós-abolição e a inserção do negro na

sociedade republicana, apontaram os chambas como etnia da região Centro-Ocidental,

sobretudo da área Congo-Angola. Isso a partir de suas pesquisas nos terreiros de xangôs

do Recife e Maceió, onde os adeptos dos cultos aos orixás, nessas cidades, relatavam

como sendo os “Shambás” povo do Congo e Angola, visto que em seus rituais

utilizavam tambores com os nomes de ingomes (ngoma) – Iam, Melê-ancó e Melê,

correspondentes do Rum, Pi, Lé. Outros sinais diacríticos apontados por Ribeiro, na

tentativa de aproximar o culto chamba de rituais praticados no Recife e em Maceió que

tinham como brinquedo o coco-de-roda, distinguindo-se dos demais terreiros de 3Cf. Richard Fardon, www.book.google.es/books?ed=x6Yv_4A/IVEC&pg=PA31&dq=chamb%C3A18/r=&hl=pt-BR#&Pa29, M1.

5

Page 6: 105-430-1-SP

linhagem nagô, que costumavam ter como brinquedo maracatus. Uma comida votiva

específica dos terreiros chambas¸o pirão ou “falofa” de Angola foi também tomada por

Ribeiro como indício de culto centro-ocidental.4

Desse modo, sendo motivo de encontros e desencontros entre os pesquisadores a

precisão na localização dos chambas e de seus correspondentes na organização dos

cultos de orixás na diáspora, ficamos com as explicações de Richard Fardon, que

concebe a chambaland como metrópole do comércio da cola, que se tornou atrativo de

diversos outros povos, que, na medida em que ocuparam a região foram incorporando

elementos da cultura islâmica, da cultura dos falantes do “leko” e do “daka”.5 Além dos

grupos humanos falantes do leko e do daka, outros grupos étnicos se organizaram dentro

da chambaland; segundo o togolês Gayibor, estavam os baribas, os kotocolis e os

mandigas, que viveram sob o domínio do clã kasselem (primeiro grupo étnico a se

instalar na chambaland e se identificarem como tchamba). Para Fardon, chamba pode

ser pensado como uma espécie de “território agregador”. A geografia desse “território

agregador” pode ser estendida por toda a área entre o Mapeo – hoje Camarões e Nigéria,

e Yeli – atual Togo.

No século XIX, os grupos humanos da chambaland estavam organizados socio-

politicamente de formas diversas, regidas em clãs (patriarcais, matriarcais, mistos).

Comunidades acéfalas, chefia ritualizada, pequenos estados conquistados, cuja sucessão

se dava pela linhagem dos kasselem, visto que foram os primeiros a se instalar na

região. Por volta de 1896, Obwê Doré era rei chamba, cujo governo era auxiliado por

um conselho composto de líderes dos diferentes clãs. Sendo o comércio da cola a base

econômica e de disputas políticas pelo domínio do território (FARDON, 2007).

No entanto, o chamba não pode ser visto sob a ótica de um “guarda-chuva”

étnico, a exemplo dos nagôs, jejes e angolas, também tidos como grupos de procedência

portuária que atribuíram identidade aos grupos humanos apreendidos nessas áreas, na

época do tráfico atlântico (REZENDE, 2006; PARÉS, 2006).6 Segundo Robin Law, o

grupo de procedência, ou melhor, a etnia chamba, segundo ele, falante do gur, em

termos demográficos, não teve presença significativa no Brasil. Foram apontados no

4 Cf. René Ribeiro, Entrevista com Dudu Obaitó, 30 marc. 1954, fl. 01. Manuscritos. Arquivo Particular de Celina Ribeiro.5 Segundo Richard Fardon, o grupo étnico da chambaland falava uma língua chamada chamba leko – comum entre os povos da Nigéria e Camarões, e o chamba daka – língua falada pelos grupos da região do Yeli. Cf. (FARDON, 2007).6 O debate sobre “guarda-chuva” étnico no Brasil escravista foi inaugurado por João José Reis. Ver desse autor várias obras, sobretudo, Rebeliões escravas no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835 (REIS, 2003).

6

Page 7: 105-430-1-SP

Recôncavo Bahiano, por volta de 1778; em Minas Gerais, em 1795. Mariza de Carvalho

Soares aponta uma presença não significativa em termos demográficos de escravos

chambás no Rio de Janeiro, também no século XVIII. Enquanto em regiões do nordeste,

não temos registro de africanos chambás, salvo narrativas de praticantes dos cultos de

orixás, que remetem à memória de organização de seus rituais, a elementos encontrados

nas práticas religiosas dos povos da Nigéria e Camarões – região do Mapeo – e, Togo –

região do yeli.

Assim, a religião como um complexo para além das explicações de relação entre

os humanos e o mundo não dizível, sendo sobretudo uma forma de atribuir sentido aos

sujeitos dentro de suas comunidades, questionamo-nos: Que relações poderiam existir

entre os chambas da região do Mapeo e os devotos de orixás em Pernambuco? Que

elementos rituais podem ser lidos ou interpretados como continuidade de práticas

religiosas especificas do Mapeo entre os xambás do Recife? Como a identidade chambá

pode ter se configurado em termos religiosos deste lado do Atlântico, visto que há uma

supremacia dos cultos da região iorubá?

Por ora não temos todas as respostas para essas perguntas sobre a religião

chambá no Brasil, sobretudo em Pernambuco, porém, ao analisarmos parte dos rituais

no Mapeo, encontramos pontos convergentes entre o culto chamba na África e no

Recife.

Culto Jup entre os chambas do Mapeo: como interpretá-lo?

Do mesmo modo que outras sociedades africanas, cujas práticas religiosas

traduzem a organização social da comunidade, para os chambas do Mapeo – região da

Nigéria e de Camarões – que mantêm suas práticas religiosas tradicionais; os cultos ou

rituais, seja ou não de ajustamento social, que auxiliam os sujeitos a se perceberem

dentro de suas comunidades, são, por vezes, inalcançáveis às percepções antropológicas.

Segundo Fardon, ficam os antropólogos na dependência de informantes nativos para

alcançarem o universo dessas culturas que nos são diferentes. Por muitas vezes, esses

informantes nativos se apresentam para o antropólogo de variadas formas: “mal

declarados”, por não conseguirem traduzir o universo de sua cultura, por não terem

completado as etapas de iniciação de rituais que lhes conferem poder. Ou ainda, pelas

desconfianças em relação à alteridade; “pouco declarados”, por não serem capazes de

explorar verbalmente todos os códigos simbólicos correntes em suas culturas; e os “não

7

Page 8: 105-430-1-SP

declarados”, por ter em seus rituais uma grande teia de complexos simbólicos, os

sujeitos não conseguem decifrá-los, visto que, ao ser interpretado por outrem, já perdem

o significante do original (FARDON, 2007).

Para Cliffort Geertz, apenas os sujeitos sociais são os informantes e intérpretes

de suas culturas, o investigador ou antropólogo representa apenas um leitor de segunda

mão do universo simbólico da cultura altera (GEERTZ, 1989). Por isso, os relatos

antropológicos podem ser parciais, apresentar ausências, incapacidades, incongruências.

Sendo caminho árduo atingir as interpretações de primeira mão de uma cultura, Richard

Fardon, ao estudar a religião dos chambas do Mapeo, considerou os indivíduos desse

grupo étnico, como informantes “mal declarados”. Isto é, encobrem intencionalmente,

seja por interesses próprios, seja por mentiras altruísticas seja para proteger o segredo da

organização de seus cultos. São sujeitos mal-informantes para o antropólogo, pois

atribuem sentidos a determinados aspectos rituais, que seriam rechaçados em outros

contextos, dependendo da etapa de iniciação no ritual em que esteja o indivíduo. Por

isso, as interpretações mal construídas sobre os rituais e cultos são características dos

discursos dos chambas (FARDON, 2007: 5).

Portanto, sendo um complexo de múltiplas e cruzadas interpretações e

performances, por sua vez, sendo os rituais não simplesmente eventos que ocorrem

entre parênteses em tempo e espaço coordenados, mas que compreendem tradições de

exemplificações e transmissões que têm ancoradouros institucionais, aprendidos por

participação em uma ou mais associações, Fardon enveredou pelo contexto institucional

complexo (clãs, ritos, localidades, prerrogativas de gênero, etc.), que têm

correspondentes entre os limites étnicos chambas.

Por serem muitas e complexas as interpretações dos rituais dos chambas do

Mapeo falantes do leko, todas as performances de culto, sejam eles de altos ou baixos

custos, dramáticos ou silenciosos, ocorrendo com ou sem frequência, com um número

grande ou reduzido de membros, nos espaços públicos, que são, por sua vez, produto

das organizações familiares, privadas. São todos pertencentes aos clãs oficiais. Estes

cultos podem ser lidos por qualquer nativo como o mais importante, autêntico e

poderoso entre os cultos do Mapeo, opinião que só será corroborada pelos membros de

seu próprio clã. Isto é, a valorização, como o mais autêntico e o mais importante, é

atribuída por uma pessoa que tem no seu clã a legitimização dessa grandeza, não tendo

o mesmo correspondente em outro clã. Segundo a Antropóloga Karin Barber, as

performances ou manifestações públicas dos cultos são momentos de perceber a

8

Page 9: 105-430-1-SP

organização social e a política interna das sociedades e não a religião por si. Desse

modo, a crença e a existência dessa religião não podem ser, por sua vez, explicadas pela

frequência pública, mas a manifestação pública e a narrativa dos membros de cada clã

representam a estrutura social desses grupos. Partes de um ritual público, ou melhor, a

performance de cada clã é grandiosa por si só e dá legitimação ao culto público. Este,

por sua vez, só tem atributo valorativo, devido à preparação particular de cada grupo.

Para os chambas, as representações coletivas são mais importantes que as individuais, as

crenças são orientadas pela coletividade (BARBE IN MOURA, 1989: 142-173).

Analisando a diversidade dentro da religião chamba na região do Mapeo, por

meio de informações de nativos, Fardon chega à conclusão de que interpretações

desencontradas, por vezes desconhecidas entre os sujeitos, resultam da organização

social na qual os indivíduos vão tendo acesso aos sistemas de culto a partir do momento

que são iniciados. A diversidade de cultos entre os chambas do Mapeo é tamanha a

ponto que as explicações sobre ventura e desventura, presentes em outras áreas da

chambaland, não têm nenhuma relevância, devido ao grande número de explicações

oferecidas pela diversidade de cultos. Por exemplo, embora seja a crença na bruxaria

algo compartilhado por todos os chambas, seja do Mapeo (Nigéria e Camarões) ou do

Yeli (Togo), os habitantes do Mapeo acreditam que os fenômenos de bruxaria partem do

matriclã mais próximo (FARDON, 2007: 17).

Sobre os fenômenos da bruxaria e como os chambas do Mapeo lidam com tais

questões, Fardon relatou que ao retornar, após seis anos, a comunidade, um de seus

informantes - Titlεsime, que costuma passear de motocicleta pelas aldeias com Fardon,

disse que se tornou alvo de inveja dos outros anciãos, alvo de bruxaria. Ou seja, muitas

explicações do cotidiano são atribuídas aos fenômenos da bruxaria, como apontam as

pesquisas de Peter Geschiere, acerca dos discursos sobre feitiçaria elencados nos

acontecimentos da modernidade (GESCHIERE, 2006: 9-38).

Partindo destes correspondentes, focalizamos o ritual do Jup descrito por

Richard Fardon, na década de 1970, encontrado nas regiões montanhosas, na área dos

montes Adamawa nas proximidades da Nigéria e de Camarões, vale do rio Benué, rio

dedicado a Oyá, orixá patrono do Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá (FARDON,

2007: 17).7 Assim, os jup praticados por homens – os jup patrilinear, bem como os jup 7Oyá/Iansã/Iá Messan, orixá dos ventos e das tempestades e do rio Niger, chamado de Odò Oya. Sendo também lembrada pelo rio Benué. Foi a primeira esposa de Xangô – orixá dos trovões e da justiça, considerado também com um personagem histórico, foi o terceiro rei de Oyó, filho de Oraniam e Torosí (filha do reio dos tapas – Elempê), recebeu o título de Obá kossô na terra de Oyó. (VERGER, 2002: 134-141; 168-170.)

9

Page 10: 105-430-1-SP

matrilinear – voltados para as mulheres, e os jups mistos, dos quais participam homens,

mulheres e crianças, a exemplo do jup kupsa – ritual da colheita. Para os indivíduos

habitantes do Mapeo, não há explicações sobre a definição desses rituais, eles sabem

porque “ver”, “ver-tudo”, “segurando” ou “devendo”, “fazer” ou “concertá-lo”. Isto é,

pratica-se o jup¸ mas não se explica porque ele é praticado. Porém, não se esconde a

importância de ser membro de um jup, visto que ele confere pertencimento ao grupo.

Homens, mulheres e crianças têm diferentes narrativas de suas experiências com o jup.

Para alguns filósofos ou antropólogos, como Horton, seriam essas ocorrências típicas de

sociedades fechadas, cujas explicações sobre seu funcionamento são atribuídas à

vontade e aos ensinamentos dos ancestrais, dos mais velhos, da tradição (HORTON,

1991). Porém, entre os chambas do Mapeo, as explicações sobre os jups não são apenas

atribuídas à vontade dos ancestrais, mas também como mecanismos encontrados pelos

humanos para a cura de suas doenças. São formas de prognosticar, diagnosticar e obter a

cura de doenças, além de dar ordenamento a sua estrutura social. Por isso, os jups são,

em sua maioria, voltados para as doenças e suas curas, tendo nos cultos femininos sua

grande concentração.

Outras atribuições para o jup são dadas por criança que dizem ser os jups

“coisas” de adultos, controladas pelos anciões, enquanto as mulheres acreditam ser jup a

preservação do homem, sobre a qual elas nada podem saber. Para os homens, as

conotações do jup crescem em complexidade desde a iniciação. A posse ou custódia

deles define o valor do homem em termos das obrigações que é capaz de cumprir para

seu próprio status, e o dos homens de seu clã, não perdendo de vista que os homens que

participam dos jups são de descendência matrilinear, mesmo sendo os jups dos homens

os primeiros na hierarquia desses rituais.

Há também os jups coletivos, a exemplo do jup kupsa – ritual da colheita, que

reúne todos os membros de um clã: homens, mulheres, crianças. Ocorre apenas quatro

vezes no ano. Desse ritual (jup kupsa), participam três homens com a função de

tocadores, de acordo com a seguinte ritualística: um homem toca um tambor grande -

tom tom, feito para ser tocado pela primeira vez, e um terceiro tambor, numa versão

menor que o segundo, sendo vigorosamente batido por um bastão, dando um pulso a

toda a orquestração. Enquanto isto, os outros sete homens circundam os músicos,

balançando-se e tocando um grupo de cornetas de cabaça, que variam de um a cinco pés

de comprimento. Os sons das cornetas, de acordo com o comprimento, variam desde o

som do sopro quando se coloca um. As mulheres, separadas por uma espécie de tapume,

10

Page 11: 105-430-1-SP

dançam e cantam sem ver as movimentações dos homens (FARDON, 2007: 43). Assim,

são os jups realizados, geralmente com músicas, toques de tambores, danças, como

comumente ocorre em todos os cerimoniais religiosos de sociedades africanas, cujas

práticas sagradas não são dissipadas da vida laica. Segundo Fardon, é a performance do

jup. Além de música e dança, nos jups existe o oferecimento de alimentos, bebidas

alcoólicas; a cerveja de milho é típica dos rituais, faz parte da materialização do ritual.

Outros jups mistos são encontrados no Mapeo, como o jup da-i-kun, ritual de

equilíbrio entre as forças dos homens e as das mulheres. Ser membro do jup traz

prestígio nos termos de ciclo de vida de ambos, homens e mulheres (que têm seu

próprio culto – jεm). Tradicionalmente as pessoas que têm criações de animais, cultivam

cereais, como a cerveja de milho de Guiné, elas devem ofertar essas riquezas para o jup,

para que possa ser ‘mostrado’ (isi) e ‘visto’ (nyεn) o jup. Frangos oferecidos ao jup se

tornam jup kpa, cerveja oferecida se torna jup sim, e assim por diante para outros itens.

Aqui, o jup é nada mais nada menos que a oferenda aos deuses ou ancestrais. Uma vez

oferecido ao jup, com raríssimas exceções, não pode ser comido, bebido ou no caso dos

aparatos, manuseados por não iniciados. Analogicamente, nos rituais dos cultos

africanos, no Brasil, ocorrem também práticas semelhantes ao jup, isto é, as obrigações

para os orixás que formam o panteão de um terreiro. Ou seja, além das celebrações em

homenagem aos orixás – xirês – nas quais alguns homens, comumente em número de

três, exercem a função de tocadores dos tambores sagrados, enquanto os demais

acompanham em círculo os passos de dança que caracterizam cada orixá. As mulheres,

por sua vez, agrupadas em um círculo interno ao dos homens, cantando e dançando.

Deste modo, todos e todas simultaneamente respondem ao coro das toadas tiradas pelo

dirigente da festa, isto é, do babalorixá e/ou da ialorixá.

Características de um Jup Matrilinear

Contudo, sendo inúmeros os jups, tanto para homens como para mulheres,

focalizaremos, aqui, o jup matrikin (matrilinear), visto que existem aparentes

correspondentes entre os rituais dominados pelas mulheres chambas do Mapeo e as

práticas xambás do Recife, que fazem parte do Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá.

11

Page 12: 105-430-1-SP

São inúmeros os jups matrilineares, ou seja, cuja ordenação é de domínio

feminino; constituem o segundo culto na hierarquia de organização da sociedade

chamba da região do Mapeo, visto que os cultos patrilineares são considerados os

primeiros. Porém, são aqueles mais dispendiosos que estes últimos, seguem o curso das

colheitas, isto é, os rituais de dominação dos homens. Os jups matrilineares estão

relacionados com as causas de doenças, como nos referimos anteriormente, a exemplo,

a lepra, as causas de epilepsia, os problemas da visão e questões de ordem curativa.

Semelhante a outras análises antropológicas que apresentaram interpretações dos

próprios sujeitos, que atribuem à mulher ou à ancestralidade feminina as causas de

infortúnios em suas sociedades. Entre os chambas do Mapeo, os cultos femininos têm a

função de trazer o equilíbrio, a saúde e o ajustamento do grupo.8

Uma tradicional reunião de jup matriclã dura aproximadamente um dia, embora

seja planejada com antecedência, tendo em vista que o é necessário fermentar o milho

para a fabricação da cerveja; esta, após sua destilação, é preparada. Outros apetrechos

alimentícios fazem parte do cardápio votivo, como animais: galinhas, cabras. A maioria

do jup tem um local (jup bum) fora da vila, geralmente ao lado de uma montanha, onde

alguns dos utensílios do culto são escondidos debaixo de potes com a cabeça para baixo,

no lugar onde as reuniões acontecem. O jup inicia-se com o encontro na casa de quem

vai “dar o jup”, ou seja, realizar sua obrigação a sua divindade, lugar para onde os

membros partem carregando cerveja e a comida que irão consumir. Eles ficam fora de

casa o dia todo até quando os membros retornam para a residência do devoto que está

realizando sua obrigação, ao escurecer, anunciando sua chegada com assobios e

chocalhos característicos do jup, regados com cerveja e outras bebidas alcoólicas na

casa do dono do culto, onde alguns membros dormem e, ao acordar no outro dia, tomam

mais cerveja e, assim, a reunião é encerrada. Esse momento pode também ser pensado

como mecanismo de dramatização do social, no qual sagrado e profano se misturam, em

tempo e espaço determinados; é jogo entre sagrado-profano, como diz Ronald Grimes,

ao caracterizar um ritual (GRIMES, 1982).

A categoria mais numerosa do jup matrilinear é voltada para a doença e a cura, a

exemplo do ngwan ji, que significa “aquele que dá a luz à vermelhidão”. Um jup desse

tipo acontece quando uma cobra pica algum indivíduo, deixando como sintomas

manchas vermelhas na superfície da pele. Por outro lado, outros sintomas, como dores

8 A discussão sobre cultos femininos ligados aos processos de desventura, infortúnio dentro das sociedades tradicionais na África é vasta. Ver a respeito do assunto (TUNER, 1974).

12

Page 13: 105-430-1-SP

de cabeça e nas costas, não só diferenciam as ações de outros jups, mas sobretudo, se

apresentam como sinais diacríticos de um determinado culto. Por exemplo, picadas de

cobra tendem sempre a estar associados ao culto da folha de manteiga de karité cujo

procedimento é a masseração dessas folhas que podem depois ser jogada na propriedade

ou plantação a proteger de futuras desventuras com aquele animal. Sobre as folhas

utilizadas nos jups, elas são uma das bases de todos os rituais chambas do Mapeo, do

mesmo modo que as folhas passaram a representar para os cultos de orixás na diáspora;

sem elas nada pode ser feito, as ervas e folhas, além de curativas, farmacológicas, são o

caminho pelo qual os orixás, os ancestrais são invocados. Cada orixá/ancestral tem sua

própria folha. Nas religiões de matriz africana, em particular, no Brasil, denomina-se

este ritual de babaxé ou bate-folha (ALBUQUERQUE, 2006).

Outra classe de jup da doença e da cura é aquele em que são diagnosticadas

sensações de inchaço no estomago - noga, também subdividido de acordo com os

sintomas secundários; nesse caso, a cor dos excrementos do paciente. O resto dos cultos

é menos propício a classificação. Noga, que é responsável por estômago distendido

acompanhado de dor fina, tem duas formas distintas de sufixos: O masculino ou coruja

e o branco (noga disa, coruja; noga lum, masculino; noga burgi, branco). Para um

informante de Mapeo, o termo noga não tem etimologia. O primeiro dos dois cultos

pertence a pelo menos, seis, aproximadamente metade, dos matriclãs do Mapeo; o

segundo por três matriclãs dos quais dois têm ambas as versões. Ambos os jup exigem o

pagamento de entrada de quatro galinhas, mas do segundo tipo também uma cabra.

Por outro lado, as carnes e demais comidas utilizadas nos jups, como cabras

sacrificadas e cortadas de maneira costumeira, cujas partes são doadas para os

participantes, como o pernil, que é repartido entre quatro patriclãs envolvidos no culto,

remetem-nos às obrigações que ocorrem no Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do

Recife. Após os víveres serem cozidos e oferecidos aos orixás, são distribuídos entre os

presentes, que ingerem as carnes e as distribuem entre os demais, seguindo a hierarquia:

primeiro ao babalorixá, a ialorixá e depois para os irmãos. Analogamente, entre os

chambas do Mapeo, a cabeça da cabra é dada ao homem que dirige o b∂nt∂ng, ele é

sempre um filho de uma mulher Yangur. As costas da cabra são cortadas em duas partes

(a parte superior para o macho, kum lum, e para a fêmea, a parte inferior, kum nu) são

dadas aos dois tocadores de tambor, ambos Yangur; ao passo que o peito e as vísceras,

dizem que pertencem ao jup, que se diz que é comido pelos proprietários do culto.

Digamos que o peito e as vísceras sejam o que chamamos de axé – partes vitais dos

13

Page 14: 105-430-1-SP

animais, que são oferecidos aos orixás. A distribuição da carne Liranεpbu reflete a

cooperação dos dois matriclãs em suas performances. A cabeça da cabra é dada ao

membro do matriclã elefante (kongla kum), que toca o gongo para eles. Um pernil é

dado para o matriclã névoa (jam kun), e o outro, para os homens do patriclã dagabu, que

trouxeram o jup dagam. O que resta é comido pelos proprietários do culto.

No entanto, mesmo não sendo referida prática uma característica específica dos

chambas da região do Mapeo, pois se estende a quase todo o território do continente

Africano e a outros grupos humanos fora do Continente, a exemplo dos gregos na

antiguidade. Na diáspora, foi possível encontrar a ritualística da divisão dos animais

apenas em ato religioso, nos terreiros de culto aos orixás. Entre os xambás do Recife,

toda essa perfomance de oferecimento de víveres ao jup do Mapeo é denominada de

“comer ebó”. Eles oferecem os animais, ou melhor, partes apenas destinadas aos orixás,

enquanto as demais partes da carne são consumidas pelos devotos. As partes vitais dos

animais, que denominados de axés, após um período de descanso aos pés dos orixás, são

depois também partilhadas entre os devotos. Ou seja, o ebó (a comida do orixá) é

ingerida pelos adeptos do culto xambá no Recife, sendo também a prática de “comer

ebó”, segundo o antropólogo Nicolau Parés, estendida aos terreiros jejes (PARÉS,

2006).

O Mama Tchamba e o Culto a Afrekête: continuidades ou releituras de práticas

religiosas na Cidade do Recife

Embora muitos dos jups matriclãs sejam voltados para as questões de ventura e

desventura, sobretudo da doença e da cura, há rituais femininos, como o Mama

Tchamba, cujas raízes explicativas estão no processo de escravidão do século XIX e a

conversão ao islamismo dos Fulanis. As mulheres que resistiram a escravização não se

submetendo à conversão do islamismo, sendo embarcadas para as Américas como

cativas, passaram a ser homenageadas nos cultos da região ocidental da África, a

exemplo do Togo, Mali, Benin, Costa do Marfim, norte de Gana, alto Volta, como

ancestrais. Sendo apenas rituais de participação feminina, no qual as mulheres

incorporavam os espíritos ancestrais que não se submeteram ao Islão. Nesses cultos, são

tidas como rainhas, além de lideranças espirituais, como também libertadoras de seu

povo (FARDON, 2007).

14

Page 15: 105-430-1-SP

Na atualidade, ocorre nesses rituais a presença de mulheres pintadas, vestidas

com adornos em palha, encobrindo o rosto com máscaras. São oferecidas comidas,

bebidas, ao embalo da percussão religiosa. As mulheres, incorporadas pelo espírito

mama tchamba, transmitem recados aos presentes, dançam, cantam em celebração da

união dos parentes que foram dispersos pela diáspora. São essas mulheres constituídas

de poder para dominar os vodus dos ancestrais que foram vendidos como escravos para

as Américas. São cultos familiares, cada aldeia tem seu próprio ancestral mama

tchamba, ou seja, é uma forma de ressignificação do processo de escravização, uma

memória de resistência. Tais cultos foram se organizando depois do processo de

descolonização da África, alguns começam a surgir na década de 1970, a exemplo do

ritual dos halkar, que ordenam a realidade pós-colonização, por meio de rituais que

atribuem aos iniciados papéis de dominadores e dominados, re-escrevendo o processo

de colonização-descolonização.9

Encontros ou ressignificações do culto chamba ou do ritual mama tchamba,

enquanto ordenadores e releituras da realidade, sobretudo no que diz respeito aos

processos constituídores de poder às mulheres, estão presentes nas ritualísticas de

comando feminino, no Terreiro Santa Bárbara – Nação Xambá do Recife, a Louvação

de Oyá, ritual onde a matriarca comanda todo o culto, pode ser um indício relevante

para perscrutarmos além do “poder do fraco”, ou seja, a afirmação das mulheres no

espaço religioso, sinais diacríticos na perspectiva atlântica. Assim, a Louvação de Oyá,

que ocorre, anualmente, no dia 13 de dezembro, ao meio-dia, consiste numa cerimônia

na qual a ialorixá ou uma filha-de-santo do Terreiro – dedicada a Oyá – incorporada

pelo orixá Oyá, dança, canta no meio dos filhos-de-santo do Terreiro, transmite os

recados dos ancestrais para cada pessoa presente no culto, sendo reverenciada pelos

devotos como ancestral Oyá Megué, orixá protetor dos “xamabarianos” do Terreiro

Santa Bárbara, que vêm entre os seus súditos anualmente orientá-los, aliviar suas

angustias, dar um novo sentido a suas vidas. Nos anos 1920-30, esse ritual era

comandado pelo babalorixá Artur Rosendo Pereira, que, segundo narrativas dos adeptos

do xangô no Recife, foi ele à África buscar os fundamentos do culto xambá, viveu no

meio do povo soba na Nigéria, e teria aprendido os rituais xambás com um certo “tio

Antonio”, feiticeiro que vendia panelas no mercado de Dakar. Artur Rosendo era

9 Sobre ordenação da realidade ver (TAMBIAH, 1990).

15

Page 16: 105-430-1-SP

alagoano e no início da década de 1920 se estabeleceu na cidade do Recife, após fugir

de Maceió das perseguições étnico-religiosas.10

Na cidade, Artur Rosendo morou na rua da Regeneração, na casa de número

1045 no bairro de Campo Grande – área de subúrbio do Recife, onde abriu seu terreiro –

a Seita africana São João – sob a proteção ao orixá Xangô. Pai Rosendo, como ficou

conhecido, fez diversos sacerdotes e sacerdotisas nos preceitos que chamou de xambá,

entre seus/suas filhos(as)-de-santo mais famosos(as), esteve Maria das Dores da Silva

(Maria Oyá), iniciada na década de 1930, cujo terreiro foi estabelecido na rua do Limão

no mesmo bairro que morava o Babalorixá (FERNANDES, 1937: 18). Maria Oyá foi

apresentada como mãe-de-santo à comunidade de terreiro na cidade, no dia 13 de

dezembro de 1932, com o recebimento das folhas, faca e espada; nesta mesma data, ao

meio dia, foi realizado um ritual de coroação de Oyá no trono, comandando por Pai

Rosendo, como forma de atribuição das honras de ialorixá à Maria Oyá. Comumente,

Pai Rosendo realizava esta cerimônia, sempre que uma nova sacerdotisa, quando filha

de Iansã/Oyá, estava pronta.

Em meados dos anos 1940, foi pela primeira vez noticiada na Revista O

Cruzeiro, a cerimônia que Pai Rosendo realizava para apresentar uma nova ialorixá.

Desta vez, era a Iracema, sua filha legítima, que foi preparada desde criança para

assumir o comando de seu Terreiro. A festa pública de apresentação de Iracema de Oyá

– iniciada como ialorixá – bem como a de Maria das Dores (Maria Oyá) passaram a se

caracterizar como cerimônia de preparação das sacerdotisas filhas de Iansã de nação

Xambá, que, na ocasião de seu “decá”, isto é, da feitura enquanto ialorixá, recebiam as

folhas de seu orixá, faca ou navalha de seu obori,11 cuias, contas, cauris,12 e demais

apetrechos que foram utilizados em sua iniciação. Iracema recebeu a tumbemba

(pequena peneira), tesoura, pulseira de cauris, faca, dois abebês13 de Oxum, perfume,

navalha, pente vermelho; objetos que representavam além de sua iniciação as

obrigações que teria no futuro ao fazer por suas próprias mãos outras sacerdotisas.14

Naquele momento, cantou-se, dançou-se; e os demais iniciados, vestidos com suas

10 Em 1912, ocorreu a primeira grande investida de perseguição as religiões afro-brasileiras em Alagoas, no dia 2 de fevereiro de 1912 ocorreu o “Quebra”, uma leva de invasões e destruições nos terreiros de xangôs no Estado, acionada e incentivada pelas autoridades locais. Cf. (RAFAEL, 2006).11 Obori palavra yorubá que seguinifica “dar comida à cabeça”, ou seja, fortalecer a parte do corpo que serve de entrada para o orixá. Ao ser iniciada ou na renovação de sua iniciação ou ainda receber seu Decá – torna-se um(a) sacertote(a), é realizado um grande obori.12 Búzios.13 Abebê – espelho.14 Ao falarmos de Maria Oyá, enumeramos apenas três entre os objetos de uma entrega de decá, mas ela recebeu, assim como Iracema, os mesmo apetrechos.

16

Page 17: 105-430-1-SP

roupas de saída de Iaô receberam seus orixás. No salão, os outros membros do terreiro

iniciados (iaôs) ou não (abiãs) viam saudar Iansã, o ancestral da nação, que sentada num

trono recebeu as reverências de todos os presentes.15

Após a morte de Pai Rosendo, no início dos anos 1950, ocorreu entre os terreiros

da cidade, cujos dirigentes foram iniciados pelo babalorixá, migrações para outras

linhagens rituais, como o nagô e o ketu. Levando a quase extinção das práticas

denominadas por ele de nação xambá na Cidade, sendo o terreiro Santa Bárbara – Ilê

Axé Oyá Megué – atual Casa Xambá, que teve como primeira ialorixá Maria Oyá –

consagrada ao orixá Oyá Megué – tendo no final dos anos 1930, substituída por

Severina Paraíso da Silva (Mãe Biu). Esta considerada a maior representante do culto

xambá na cidade, pois além de ter permanecido à frente do Terreiro Santa Bárbara ao

longo de 43 anos, foi a responsável pela invenção da tradicional Louvação de Oyá,

cerimônia que se constitui na memória do ritual de preparação de sacerdotisas filhas de

Oyá outrora feitas por Pai Rosendo (COSTA, 2009). Mãe Biu ao assumir o Terreiro

passou a fazer todos os anos, no dia 13 de dezembro, sempre ao meio dia, o ritual de

coroação de Oyá, demarcando a memória daquele ritual de seu antigo babalorixá. Além

do mais, Sob o comando de Mãe Biu, o Terreiro se configurou como a única casa que

deu prosseguimento ao ritual xambá. Deste modo, mesmo sendo a louvação de Oyá

realizada por Mãe Biu,16 uma espécie de teatralização das cerimônias de iniciação de

sacerdotisas filhas de Iansã, conforme os ensinamentos de Pai Rosendo, se configurou,

como já nos referimos anteriormente, em uma marca própria daquele terreiro. Em

nenhuma outra casa de culto aos orixás, em Pernambuco, se encontra semelhante

cerimônia anual. Por outro lado, mais que uma memória de ritual, a louvação demarca o

espaço de domínio feminino naquela casa.

Além da Louvação de Oyá, o culto a Afrekête, se apresenta também como sinal

diacrítico desta (des)continuidade entre as práticas religiosas africanas e as

reelaborações dos cultos afro-brasileiros no Recife. Pai Rosendo, no auge de sua fama,

nos anos 1930, foi alvo de ridicularizações por outros sacerdotes das religiões de matriz

africana na cidade, que duvidavam da veracidade da viagem que ele teria feito à Costa

15 Maiores informações sobre a Louvação de Oyá ver René Ribeiro, O Cruzeiro, 1949; Valéria Gomes Costa, É do dendê! Op, cit.16 Com a morte de Mãe Biu em 27 de janeiro de 1993, a Louvação de Oyá passou a ser sem o momento de coroação da Ialorixá, pois nenhuma outra mãe-de-santo da Casa tinha até então sido designada para sentar-se no trono e transmitir as mensagens do Orixá para todas as pessoas presentes na louvação. Recentemente foi Zeza de Oyá (Oyá da Casa) indicada/designada para substituir Mãe Biu enquanto “rainha” da Louvação. No dia 13 de dezembro de 2008 pela primeira vez, após o falecimento de Mãe Biu, uma nova sacerdotisa incorporou Oyá e sentou-se no trono (COSTA, 2009: 141).

17

Page 18: 105-430-1-SP

da África, onde teria passado quatro anos aprendendo os “axés” do xambá. No entanto,

ele era o único dirigente de terreiro na cidade que cultuva Averekête, vodu daomeano da

cidade de Widah, outro motivo para suscitar curiosidades e levantar suspeitas entre

outros pais-de-santo na cidade sobre a legitimidade dele enquanto sacerdote afro-

religioso. Desta forma, a Casa Xambá, por mais uma vez, aparecer como o único

terreiro em Pernambuco cujo panteão de orixás inclui este vodun de origem daomeanda

ligado aos mares.17

Por outro lado, pouco sabemos a respeito do culto à Afrekête, segundo

Waldemar Valente, havia na praia de Agweh (Daomé) uma imagem deste vodun, e

todos os finais do mês de outubro os homens da cidade se reuniam e faziam uma

refeição diante do totem. Findada a alimentação, os meninos da cidade arremessavam

sobre aqueles homens, laranjas e limões, só parando quando eles fogiam das crianças

(VALENTE, 1977: 39-40). Para Pierre Verger, as narrativas mitológicas, na África,

apresentam Afrekête como a criança mais nova e mimada, cujas travessuras lembram os

papéis de legba, expondo os segredos de seu pai e falando sobre eles sem a menor

descrição (VERGER, 2000: 539).18 Ambos os discursos apresentam os arquétipos de

Afrekête ligados ao peraltismo infantil, as impulsividades de crianças, adolescentes e

adultos jovens. Por sua vez, na memória dos filhos-de-santo do Terreiro Santa Bárbara,

aqueles que são consagradas a este vodun/orixá, no geral, possuem personalidades

semelhantes às acima descritas. Ao longo da história da Casa, apenas duas pessoas

foram omo (filho) afrekête; nos anos 1960, teve um rapaz, cujo nome não foi possível

saber, que era afilhado de batismo de Madrinha Tila e recentemente o bebê Luis

Vinícius, filho carnal de Luana de Oyá e Jorge de Xangô, também teve seu ori (cabeça)

consagrado ao vodun/orixá.19 Nas conversas entre o salão e a cozinha, na garagem e

demais dependências do Terreiro, ao acionarem as lembranças dos antepassados

xambás, é fato corrente entre todos os filhos-de-santo mais antigos, contarem as

características de dos filhos de Afrekête, sendo quase que uma unanime, a personalidade

tempestiva, levada, travessa. 17 No terreiro Santa Bárbara – nação Xambá, Afrekête é considerado um orixá feminino, na ordem do panteão da Casa temos: Exu, Ogum, Odé; Bêji, Nanã, Obaluaiê, Ewá, Xangô, Oyá, Obá, Afrekête, Oxum, Yemanjá e Orixalá. Ou seja, Afrekête é o 12º na ordem do panteão. 18 A mitologia de Afrekête também faz parte das narrativas da memória da escravidão os hulas, grupo étnico da Nigéria. Cf. (VERGER, 2000).19 Madrinha Tila de Orixalá, irmã carnal de Mãe Biu, foi Iaquequerê do Terreiro, sendo a sucessora de Mãe Biu em 1993, veio a óbito em 2001, sendo sucedida por Maria de Lourdes da Silva – atual ialorixá – a tia Lourdes de Iemanjá, irmã legítima de ambas. Jorge de Xangô é neto de dona Belmira de Ogum, uma das importantes ramas familiares do terreiro Santa Bárbara, e Luanda de Oyá é sobrina-neta de Mãe Biu e Mãe Tila.

18

Page 19: 105-430-1-SP

Contudo, tais experiências rituais que narramos, embora fragmentadas, por ora

não desencontradas, além de pensadas como reelaborações de uma tradição, podem

também ser associadas a continuidade de práticas religiosas africanas que conseguiram

resistir ao processo de escravização, mantendo alguns de seus principais fundamentos.

Fato marcante desse processo de interseções se faz presente na identidade nominativa

“xambá”. Os nomes conferem poder ao atribuir significado aos movimentos, objetos,

espaços, pessoas, etc. Por outro lado, o “poder do fraco”, que comumente é atribuído às

mulheres nas religiões tradicionais africanas, que podemos identificar também no

Mapeo, torna-se ponto de discussão para as descrições rituais dos xambás no Recife,

que não fazem apenas da Louvação de Oyá o grande ritual feminino, mas em toda a

ordenação do próprio terreiro, que, apesar de ter uma liderança masculina, o Babalorixá

Ivo do Xambá, que agrega não só o poder de liderança religiosa e político e social da

casa, mas que é comandado pelo orixá Oxum (dona de sua cabeça), sendo recorrente em

suas narrativas dizer que “quem comanda o terreiro é Oyá, sou apenas um instrumento

nas mãos delas”, sendo a Nação Xambá: um espaço de domínio feminino! Aqui está

talvez a força da ressignificação do ritual mama tchambá entre os xambás do Recife que

podem ser mais aprofundadas, uma vez que na história da casa há quatro mulheres: Mãe

Biu, Madrinha Tila, Tia Luiza e Tia Laura, exceto esta última, todas unidas por laços

sanguíneos de um mesmo núcleo familiar – o Paraíso da Silva, como os pilares de

preservação das práticas rituais – xambá – introduzidas pelo alagoano Artur Rosendo

Pereira.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICOS

ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino. Plantas litúrgicas medicinais nos cultos afro-brasileiros,

Recife: publicação do próprio autor, 2006.

BARBE, Karin. “Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos yorubas para com

o orixá” in Carlos E. M. de Moura (Org), Meu sinal esta no teu corpo: escritos sobre a religião

dos orixás. São Paulo: EUSP, 1989, pp. 142-173.

BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.

Petrópolis: Vozes, 1985.

19

Page 20: 105-430-1-SP

BRIVIO, Alessandra. “Our grandparents had bought people: the tchamba cult in Togo and

Bénin”, in: American historical association, 2009.

COSTA, Valéria Gomes. É do dendê! História e memórias urbanas da nação xambá no Recife

(1950-1992). São Paulo: Annablume, 2009.

FARDON, Richard. Beetween god, the dead and the wild : chamba interpretations of ritual and

religion. Edinburgh University Press: International African Library, 2007.

GEERTZ, Cliffort. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma

estranha cumplicidade. In: Revista Afro-Asia, 34, 2006, pp. 9-38.

FERNADES, Gonçalves. Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negro-fetichistas

do Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937 (Biblioteca de Divulgação Scientifica).

GRIMES, Ronald. Benginnigs in ritual studies, Lanhan: University Press of America, 1982.

HORTON, Robin. Ciencia y brujería, Barcelona: Editorial Anagrama, 1991.

LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do

termo ‘mina’. Revista Tempo – Dossiê África, vol. 10, nº 20, 2006, pp. 109-131.

PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.

Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

PRITCHARD, Evans Las teorias de la religión primitiva. Madri: Siglo XXI Editores, 1995.

RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: um estudo da perseguição aos terreiros de

Alagoas em 1912. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), Universidade Federal do

Rio de Janeiro, 2006.

REIS, João José. Rebeliões escravas no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São

Paulo: Cia. das Letras, Edição revista e ampliada, 2003.

REZENDE, Rodrigo Castro. As nossas Áfricas: população escrava e identidades africanas nas

Minas setecentistas. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) – Universidade

Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

SOARES, Mariza de Carvalho (org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim

ao Rio de Janeiro. Niterói: Eduff, 2007.

TAMBIAH, Stanley. Magic, science, religion and the scope of rationality. Cambridge:

Cambridge University Press, 1990.

TUNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Ed. Vozes, 1974.

VALENTE, Waldemar. Sincretismo religioso afro-brasileiro. 2 ed, São Paulo: Nacional, 1977.

VERGER, Pierre.Orixás: deuses iorubas na África e no novo mundo. 6 ed, Salvador: Corrupio,

2002.

_______. Notas sobre o culto de orixás e voduns na Bahia de todos os santos, no Brasil e na

antiga Costa dos escravos, na África. São Paulo: Edusp, 2000.

20